7

Click here to load reader

Do exílio à natureza da alma

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Do exílio à natureza da alma

Do exílio do homem à natureza da alma:

uma leitura comparada entre as Caminhadas de Rousseau e O Rei Leão

Introdução

Existem obras de arte separadas pelo tempo, espaço e cultura, mas que refletem em si

temas vitais, temas humanos, quase como se estes pertencesse a uma estrutura profunda da

criação artística, a um dilema existencial humano. É o caso de As caminhadas do caminhante

solitário, romance autobiográfico de Jean-Jacques Rousseau, escrito entre 1776 e 1778, de

publicação póstuma em 1782, e O rei leão, dos estúdios de animação da Walt Disney, que

chegou aos cinemas dos Estados Unidos em junho de 1994. As duas obras, que não

compartilham sequer o mesmo gênero artístico, dialogam com as mesmas vivências humanas:

a perda, o isolamento e o autoconhecimento.

Homem e Leão

O romance de Rousseau é o último escrito do autor considerado precursor do pré-

romantismo francês com sua atenção para a sensibilidade romântica. Esta obra, dividida em

dez partes, a última inacabada, são reflexões do pensador francês sobre sua vida e a situação

de perseguição política em que vivia e lembranças de seu passado.

O rei leão é o 32º filme Walt Disney Animation Studios. A história traz, em meio à

animação tradicional, a temática de assassinato em nome do poder, como a de Hamlet de

Shakespeare, uma de suas fontes principais, mas ambientada na savana africana e

protagonizada por leões. O tema central do filme é o ciclo da vida e como cada ser vivente

assume nele seu lugar e, no tempo de sua morte, é sucedido por outro: as sucessões dos

reinados, a cadeia alimentar, enfim, o fluxo constante das coisas. A história principia com o

nascimento de Simba, filho herdeiro de Mufasa, o então rei das Terras do Orgulho. Sobre o

crescimento do leãozinho se apoiará o desenvolvimento da trama. Em dado ponto, Scar, o

irmão caçula de Mufasa, planeja o assassinato do rei e do sobrinho para tomar lugar no trono.

Entretanto, Simba sobrevive e refugia-se – uma vez expulso pelo tio que diz ser o filhote

culpado da tragédia – na selva onde encontra Timão e Pumba, que cuidarão dele até ele se

tornar um leão adulto. Simba então retornará às Terras do Orgulho quando Nala, uma amiga

de infância, o encontra em seu exílio e explica como Scar está levando toda a vida do reino à

Page 2: Do exílio à natureza da alma

falência. Então, o jovem rei leão depõe seu tio e descobre que, na realidade, ele matou

Mufasa. A ordem por fim é restaurada e todos assumem seu lugar de direito no ciclo da vida.

Mas, apesar da presença unânime do tema do ciclo da vida, existe um subtema, ou um

modo de tratamento discursivo, extremamente recorrente na história (e nos filmes da Disney,

de modo geral): a questão do eu, de como o protagonista consegue assumir uma identidade,

impor suas vontades sobre a vida, superar os obstáculos que o reprimem, enfim, de como o eu

pode tornar-se mais, ou verdadeiramente, eu.

Rousseau dá o mesmo tratamento a suas reflexões. Evidentemente, enquanto Simba

busca um encontro consigo mesmo, – fala de si, mas fala no futuro – Rousseau já se

encontrou com seu eu e evidencia igualmente uma perda, um rompimento (com sua

sociedade), o exílio: “Eis-me, portanto, sozinho na terra, tendo apenas a mim mesmo como

irmão, próximo, amigo, companhia. [...] Procuraram nos refinamentos de seu ódio que

tormento poderia ser mais cruel para a minha alma sensível e quebraram violentamente todos

os elos que ligavam a eles.” (ROUSSEAU, 1986, p.23).

E é está a maior diferença entre as duas narrativas, talvez até a diferença crucial. Pois

se entendermos que a realidade de Simba é a de busca do eu, seu exílio futuro será mais

significativo que os aproximadamente 25 minutos que dele são mostrados entre os 89 que

totalizam o filme. Também será o ponto chave que permitirá uma aproximação maior entre as

Caminhadas Rousseau e a vida do príncipe-rei.

O príncipe que sonhava ser rei

Logo no início do filme, quando Mufasa apresenta o reino para Simba, o filhote

maravilha-se com tudo que será dele no futuro (ALLERS, MINKOFF, 1994, min. 9). Mais

tarde, Simba canta a segunda canção do filme, intitulada I just can’t wait to be king1. É nessa

canção que o príncipe alcança o ápice da exteriorização de sua volição, da exteriorização do

seu eu, com todo seu lirismo pessoal:

I'm gonna be a mighty king So enemies beware! […] I'm gonna be the mane event Like no king was before I'm brushing up on looking down I'm working on my ROAR

1 A análise comparada entre as obras será feita com as respectivas traduções referenciadas na bibliografia, mas no caso do filme, quando for necessário recorrer as canções, trabalharei com as versões originais em inglês, já que suas dublagens não são boas, tendo em vista que o sentido é comprometido em função da rima e da métrica.

Page 3: Do exílio à natureza da alma

[…] Everybody look left Everybody look right Everywhere you look I'm Standing in the spotlight! […] (Ibidem, min. 15)

O desejo de Simba pelo poder é latente; não diferente da natureza do desejo por poder

se seu antagonista, o tio Scar: ambos querem ser os mais importantes da sociedade leonina e

impor sobre o reino suas vontades... Mas todo o sonho com o futuro é posto abaixo após o

incidente em seu pai morre. Scar planeja uma debandada de gnus em que Simba esteja no

caminho, Mufasa, como previsto, tenta salvar o filho e morre pisoteado. O erro no plano é que

Simba consegue escapar das hienas que Scar mandou para matá-lo, exilando-se distante do

reino.

O interessante no modo é composta a canção é a recorrência das formas pronominais

da primeira pessoa do singular, apontando para o eu que fala – é Simba que fala, na verdade,

levando em conta a composição discursiva do filme, nenhum narrador intermediará a fala do

leão, logo, o que deles ouvimos é uma pura manifestação lírica dele mesmo.

Rousseau recorrerá igualmente a essas formas que reforçam a presença de enunciador

que vive a história, de subjetividade e forte sentimentalismo. Sobretudo, tanto o leão quanto o

pensador demonstram um sentimento de superioridade, de excepcionalidade, em relação aos

outros Em O rei leão, Simba é superior por ser príncipe e deter o poder real; nas Caminhadas

Rousseau é superior por transgredir o pensamento (errado) de seu tempo, considerando-se um

homem bom em detrimento da sua sociedade má:

O resultado que posso extrair de todas essas reflexões é que não fui realmente feito para a sociedade civil onde tudo é opressão, obrigação, dever, e que meu natural independente me tornou sempre incapaz das sujeições necessárias a quem quiser viver com os homens. [...] Seu erro [dos homens], portanto, não foi o de me afastar da sociedade como um membro inútil, mas o de proscrever dela como um membro pernicioso: pois, poucas vezes fiz o bem, confesso-o, mas quanto ao mal, durante minha vida, ele não entrou em minha vontade e duvido que exista algum homem no mundo que realmente o tenha feito menos do que eu. (ROUSSEAU, 1986, p.88)

Do exílio à natureza da alma

Então, fica claro que a proximidade temática entre o Rei Leão e as Caminhadas de

Rousseau é o exílio e a rejeição. Ambos são separados de suas sociedades e obrigados a viver

exilados, mas os motivos que o levam a este fim são diferentes.

Page 4: Do exílio à natureza da alma

Para Simba, aquilo que o força a viver longe das Terras do Orgulho é sua consciência,

a culpa que ele sente pela morte do seu pai. Esta consciência é implantada por Scar, a única

pessoa que o filhote vê após o trágico incidente com a debandada de gnus, logo, a primeira e

única imagem que o leãozinho faz da sociedade em relação a este incidente é aquela que vê no

tio, uma imagem de condenação e rejeição:

[Scar para Simba, que está junto do corpo morto de Mufasa] –Simba. O que você fez? –Houve a debandada. Ele tentou me salvar. Foi um acidente. Eu não quis que isso acontecesse. –É claro... É claro que não quis. Ninguém jamais pretende que estas coisas aconteçam. Mas o rei está morto. E se não fosse por você ainda estaria vivo. Oh! E o que sua mãe vai pensar? –O que eu vou fazer, tio? –Fuja, Simba. Fuja. Fuja pra longe e não volte mais. (ALLERS, MINKOFF, 1994, min. 37)

Para Rousseau, a sociedade o exila, repele o homem das ideias inapropriadas àquele

tempo. No início da sua narrativa, o protagonista já se encontra “afastado deles [a sociedade]

e de tudo” (ROUSSEAU, 1986, p.23).

E neste exílio, nesta separação entre eles e seus respectivos outros, o leão e o homem

terão o tal íntimo encontro consigo mesmos. O dano que a sociedade os causou2 será então

reparado pela natureza, que lhes servirá de abrigo e antro de crescimento pessoal; Simba

inclusive crescerá fisicamente nesta natureza:

Fugido para longe da savana Simba chega à selva, onde é encontrado desmaiado por

Timão, o suricate, e Pumba, o javali. O pequeno leão é então apresentado à filosofia de seus

dois salvadores: o Hakuna Matata, quem em suaíle significa algo como “sem problemas”. No

filme, o significado dessa filosofia é não se preocupar com o amanhã ou com as complicações

que surgem ao decorrer da vida, mas dela tirar o que há de melhor; é algo da mesma espécie

do latino carpe diem.

[Timão explica para Simba sua filosofia “sem problemas”] –Você tem que deixar o seu passado para trás. Olhe aqui, coisas ruins acontecem e ninguém pode fazer nada para evitar, certo? –Certo. –Errado! Quando o mundo vira as costas pra você, você vira as coisas para o mundo. –Mas não foi isso que me ensinaram.

2 No caso de Simba, é evidente que a sociedade não o quer mal, mas sim seu tio Scar, que planejou o golpe político para assumir o trono. Entretanto, admitirei nessa leitura comparada o ponto de vista de Simba, levando em conta que a focalização majoritária da narrativa é interna e nele.

Page 5: Do exílio à natureza da alma

–Então talvez precise de uma nova lição. Repita comigo: hakuna matata. –O quê?! [Pumba falando]– Ha-ku-na ma-ta-ta. Isto é: sem problemas. (ALLERS, MINKOFF, 1994, min. 43)

Rousseau adota a mesma filosofia em seu exílio. Não mais se preocupa com o

passado, com o que lhe fizeram os outros e dá as costas para eles. Em seus devaneios, na

quinta caminhada principalmente, em que ele conta sua estadia na ilha de St. Pierre3,

perceberemos a confluência entre a natureza da ilha e os movimentos de seu espírito:

Quando a noite se aproximava, descia dos cumes da Ilha e ia de bom grado sentar-me à beira do lago, sobre a praia, em algum refúgio escondido; lá, o ruído das vagas e a agitação da água fixando meus sentidos e expulsando da minha alma qualquer outra agitação, a mergulhavam num devaneio delicioso, [...]. O fluxo e refluxo dessa água [...] supriam os movimentos internos que o devaneio extinguia em mim e bastavam para me fazer sentir com prazer minha existência sem ter o trabalho de pensar. (ROUSSEAU, 1986, p.75)

Do mesmo modo, a natureza de O rei leão acompanha o espírito de Simba. Enquanto

o príncipe ainda está nas Terras do Orgulho, a savana e verdejante e repleta de vários animais;

as cores usadas na cena da canção I just can’t wait to be king (ALLERS, MINKOFF, 1994,

min. 15) são todas muito vivas e quentes, expressando todo o potencial e força do jovem leão,

todo aquele desejo latente pelo poder. Em outro momento, iniciando pouco antes da

debandada de gnus até o momento em que ele é encontrado por Timão e Pumba, o cenário

torna-se mais monocromático, desértico, perde vida e energia. A força da natureza volta,

então, quando a força de Simba volta e a tesão narrativa diminui, na canção Hakuna Matata:

neste ponto, o verde passa a predominar, a natureza é imponente, uma selva com abundância

de alimentos e água; a cena em que Simba cresce, em um sumário narrativo, o plano de fundo

é uma grande cascata (ibidem, min. 47).

O fluxo contínuo ou o ciclo da vida

Os dois protagonistas assumem um estado de plena felicidade em seus refúgios na

natureza e gozam do prazer de uma vida fora da sociedade. Mas este estado dura pouco e se

desfaz tão facilmente como veio aos rejeitados.

3 Rousseau refugiou-se por dois meses na Ilha de St. Pierre, Suíça. Foi para lá depois que a população de Motiers lapidou sua casa em setembro de 1765.

Page 6: Do exílio à natureza da alma

Para Rousseau, o estado de paz acaba, mesmo que ele não esteja na saudosa ilha de St.

Pierre, seu eu é pleno e feliz até que sua morte o encerra. Talvez tenha sido feliz por sua

reflexão perspicaz sobre a felicidade:

A felicidade é um estado permanente que parece não ter sido feito, na terra, para o homem. Tudo aqui vive num fluxo contínuo que não permite a nada manter uma forma constante. Tudo se transforma ao nosso redor. Nós mesmos mudamos e ninguém pode estar certo de amar amanhã o que ama hoje. Assim, todos os nossos projetos de beatitude para esta vida são quimeras. Aproveitemos a alegria do espírito quando a temos; evitemos afastá-la por nossa culpa, mas não façamos projetos para prendê-la, pois esses projetos são puras loucuras. (ROUSSEAU, 1986, p117)

Não é esse princípio de desapego e viver o presente o tal Hakuna Matata? Não é essa

consciência do fluxo natural das coisas a mesma do ciclo da vida? E seguindo esse princípio,

que norteia Rousseau no fim de sua vida e todo O rei leão, Simba retorna para destronar o tio

e assumir seu lugar, deixando a natureza que lhe garantia ausência de problemas assim como,

lá no passado, ele deixou para trás a imagem de seu pai morto e sua vida antes do exílio.

É curioso reparar que pensamento de Rousseau não muito se distingue da filosofia que

norteou a feitura do Rei leão, que não partiu de um autor, mas de um grupo de pessoas,

trabalhando entre sua criatividade e a tradição de mais de cinquenta anos dos estúdios. E,

podemos considerar que o filme reflete o pensamento ocidental, como uma obra

contemporânea que é, de 1994; no mínimo, reflete o pensamento estadunidense, que, de uma

forma ou outra, dita a conduta do nosso mundo por meio de seu poderio nas mais diversas

áreas. Assim, vemos que a atenção que Rousseau deu aos problemas do eu, da natureza e suas

considerações sobre a efemeridade das coisas boas e a importância de aproveitá-las no

momento em que acontecem, é a filosofia de massa que se mantém até os dias de hoje.

Page 7: Do exílio à natureza da alma

Referências bibliográficas e bibliografia consultada:

ALLERS, Roger, MINKOFF, Rob. O rei leão. Walt Disney Feature Animation, 1994. 89 min.

LAGARDE, André; MICHARD; Laurent. Jean-Jacques Rousseau. In:_____ XVIIIe Siècle –

les grands auteurs français du programme. Paris: Bordas, 1966. p.265-268.

MORETTO, Flúvia Maria Luiza. Introdução. In: ROUSSEAU, Jean-Jacques. Os devaneios do

caminhante solitário. Trad. De Flúvia Maria Luiza Moretto, 2ª ed. Brasília: Editora da

Universidade de Brasília, 1986. p.7-17.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Os devaneios do caminhante solitário. Trad. De Flúvia Maria

Luiza Moretto, 2ª ed. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1986.

SURRELL, Jason. Longa vida ao rei. In: _____ O Segredo dos roteiros da Disney – dicas e

técnicas para levar magia a todos os seus textos. Tradução Beatriz Sidou. São Paulo: Panda

Books, 2009. p.145-152.