Misérias do exílio

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MISRIAS DO EXLIO

OS LTIMOS MESES DE HUMBERTO DELGADO

Portugueses e Africanos na Arglia por Patrcia McGowan Pinheiro

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Quando o respeito pela verdade fracturado, ou at mesmo ligeiramente atenuado, tudo posto em dvida. SANTO AGOSTINHO A mentira poltica como a poluio. Quando se vive com ela, deixa de se sentir. A mentira poltica envenena-nos, mas impregna tambm os outros. Torna-se uma frmula de delicadeza, torna-se o saber viver. Quando explode em tragdia, demasiado tarde. PIERRE DAIX

NDICE GERAL1. Prefcio Edio Electrnica 2. Advertncia 3. Abreviaturas 4. Prefcio Edio Impressa 5. Primeira Parte: As Origens

6. Segunda Parte: A FPLN 7. Terceira Parte: Delgado em Argel 8. Quarta Parte: Os Meses do Fim 9. Quinta Parte: Tragdia e Traio 10. Sexta Parte: O Incio da 'Descolonizao Exemplar' 11. Personagens 12. Calendrio 13. Apndice Documental A: A Oposio Portuguesa depois da Morte de Delgado. 14. Apndice Documental B1: documentos sobre o MPLA. 15. Apndice Documental B2: documentos publicados antes do desaparecimento de Humberto Delgado. 16. Apndice Documental B3; publicados antes do desaparecimento de Humberto Delgado. 17. Apndice Documental B4: publicados depois do desaparecimento de Delgado. 18. Apndice Documental C: Alguns comentrios curiosos sobre o 'Caso Delgado': - Pedro Ramos de Almeida - Oleg Ignatiev - lvaro Cunhal 19. Bibliografia

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PREFCIO EDIO ELECTRNICA Periodicamente tenho tido oportunidade de revisitar na memria os quatro anos que passei no norte de frica, logo a seguir independncia da Arglia. Ao percorrer esse caminho, apoiada na documentao que guardei durante tantos anos, fico cada vez mais impressionada com o significado do que se passou. Quando releio o que escrevi nos finais dos anos setenta em O Bando de Argel, e num segundo livro, As Misrias do Exlio, nos anos 90, consolido a minha convico de que os acontecimentos de Argel revelaram e continuam a revelar muito sobre a natureza do salazarismo e da oposio anti-salazarista. Com efeito, ajudam a explicar a longevidade do Estado Novo. Para quem soubesse interpret-los, esses acontecimentos foram um pr-aviso de dramas futuros. Foram ainda um verdadeiro pressgio do que viria a acontecer mais tarde,

depois da queda da ditadura. E ajudam-nos hoje a entender alguns problemas da nossa actual poltica partidria. um lugar-comum dizer que para compreender o presente temos que conhecer o passado. Toda a gente concorda mas, na prtica, poucos reflectem sobre isso. Se tivesse havido entre 1966 e 1974 um verdadeiro interesse pelos acontecimentos de Argel da parte dos opositores ao salazarismo, talvez no tivessem ocorrido algumas das desgraas de 1974-75, nem tivesse continuado at hoje a persistente hegemonia de uma esquerda velha, caduca e desacreditada. No houve esse interesse. Bem pelo contrrio: ningum queria saber. Lembro-me da reaco de um familiar a quem mostrei em l967 alguns dos documentos escritos por Delgado. Era um simpatizante comunista e no gostou do seu contedo: Estes papis, disse ele, s podem ser fabricaes da PIDE. Recusou ouvir como eu os tinha recebido, todos eles, em Argel, das mos de pessoas que estavam a trabalhar com Delgado. E, assim, tudo foi varrido por baixo do tapete, como se diz na gria. O tema de Argel e as desavenas de Delgado com a Oposio tradicional entrou no longo rol dos tabus: questes que antes de 1974 no podiam ser abordados para no perturbar a unidade antifascista, e que desde ento precisam de ser escondidos para preservar o status quo. Nos conturbados tempos depois do 25 de Abril, mesmo os mais recalcitrantes maoistas no queriam ouvir falar em acontecimentos que reflectiam o pouco crdito dos seus protagonistas. Hoje, o muro de Berlim pode ter cado; j h muitos anos que os pases da chamada democracia popular podem ter corrido com os seus regimes comunistas. Em Portugal, porm, continuam de p velhos dolos com ps de barro. Continua a haver muita gente empenhada em esconder a verdade. No me refiro s ao mistrio que rodeia o assassinato de Delgado, embora haja pessoas ainda vivas que no querem levantar o vu sobre o crime. No existe por esse pas fora uma cidade, uma vila, uma aldeia onde no se encontre uma rua ou uma praa com o nome de Humberto Delgado. s crianas e aos estrangeiros que perguntam quem foi essa pessoa, a resposta sempre: Um general que foi candidato democrtico presidncia da repblica e que foi assassinado por ordem de Salazar. No entanto, quem investigar os acontecimentos que precederam a morte de Delgado, rapidamente chega concluso que Salazar no tinha razo alguma para querer que o general desaparecesse. por isso que o assunto se tornou tabu. Independentemente do problema de saber quem matou o general, e de quem tenha sido o seu mandante, o que os acontecimentos de Argel revelam, sobretudo, a incompetncia e a pattica infantilidade de todos, assim como a falta de moralidade de alguns dos actores do drama que se desenrolou naquela poca, no norte de frica. Aquele foi, em boa verdade, um palco onde todas as tendncias da oposio tiveram a oportunidade, que no existia em Portugal, de mostrar o que valiam. Relendo hoje os documentos tanto de Delgado, como dos comunistas, como da extrema-esquerda, ficamos com a desconfortvel sensao de ver e ouvir bonecos de carto, como se de um teatro do absurdo se tratasse, a desempenharem papis e a disputarem poderes pouco mais do que imaginrios. Um teatro onde no fcil distinguir entre o cmico e o trgico. por isso que os comunistas fizeram e fazem tudo para esconder o seu papel na farsa. por isso que inventaram histrias fantasiosas sobre o que se passou, tendo o prprio lvaro Cunhal recusado qualquer responsabilidade nos acontecimentos,

afirmando at o fim da vida que os documentos, publicados pelos protagonistas e comprovativos da verdade, eram apcrifos. As divises polticas e as impotncias que observamos no Portugal de hoje derivam em larga medida da persistncia obstinada de um mito que alimenta as hostes da esquerda e que intimida e culpabiliza a castrada direita. Poucos compreendem realmente o passado. Nem querem compreend-lo, como ficou amplamente demonstrado durante o famigerado concurso para o maior portugus; como tambm fica demonstrado anualmente com a benevolncia estendida Festa do Avante. O politicamente correcto, a mais recente arma da esquerda, probe uma discusso desapaixonada do salazarismo, como igualmente impede qualquer pergunta inconveniente sobre a impotncia e a mediocridade da oposio anti-salazarista no seu todo. A continuada influncia dos comunistas em alguns sectores cruciais da sociedade portuguesa depende do mito de uma herica resistncia contra uma feroz ditadura que durou quase meio sculo. Podem os comunistas no apreciar os oposicionistas nocomunistas e no se perderem de amores pelos herdeiros da Primeira Repblica, mas esto todos de mos dadas quando se trata de exagerar os pecados da ditadura. , porm, mais que evidente para um observador desapaixonado que, em comparao com as sanguinrias tiranias que foram os regimes comunistas ou os actuais infernos das ditaduras do terceiro mundo, o Estado Novo de Salazar no passava de uma ditadura bastante branda. Pretender o contrrio realmente uma ofensa ao sagrado dever de respeito pela verdade histrica e uma traio s centenas de milhes de mortos em outras paragens. Num pas pobre e subdesenvolvido como era o Portugal de ento, havia certamente muitas prticas tpicas de um estado policial: censura, partido nico, algumas centenas de presos polticos, obscurantismo no ensino, uma burocracia sufocante e muitas vezes prepotente, ausncia dos normais direitos cvicos e laborais, a represso de protestos e de manifestaes pacficas, o estatuto subordinado da mulher. Todos esses desafios aos princpios liberais existiam no Portugal de Salazar como, alis, existiam antes da Segunda Guerra Mundial em todos os pases da Europa rural e subdesenvolvida. Devido ao seu isolamento por causa da Segunda Guerra Mundial e da Espanha franquista, a sociedade portuguesa estava atrasada e parada no tempo. Tudo tinha fatalmente que culminar num desastroso confronto quando eclodiram as revoltas coloniais. Foram elas e a fuga dos emigrantes que precipitaram a modernizao. Mas um regime criticvel, e em muitos aspectos condenvel, no necessariamente um regime fascista. Confundir categorias polticas leva ao esvaziamento do seu sentido e semeia confuso. a arma do demagogo, do terrorista do verbo. Na escola anti-pedaggico e na vida poltica utilizado como instrumento de chantagem. Para os comunistas a confuso necessria para manter o seu estatuto herico e por isso que exageram vergonhosamente os malefcios do antigo regime. Muita gente, por diversos motivos, aceita a grande mentira. No importa que tenha havido vrias amnistias para militares revoltosos; no importa que a alguns dos exilados com maior evidncia em Argel lhes tenha sido permitido voltar para Portugal, ainda durante a ditadura; no importa que a polticos da oposio, deportados para as colnias, lhes fosse permitido exercer localmente as suas profisses. No importa nenhum desses sinais duma ditadura prpria da Ruritnia: o regime era fascista! por isso que tudo o que tenho escrito ao longo de quarenta anos sobre o que se passou em Argel tem sido mal recebido ou simplesmente ignorado. Fui avisada constantemente, at hoje, que apesar de minha narrativa ser verdadeira, era sempre inconveniente. Antes do 25 de Abril, ajudava o

fascismo. At aos anos 80, disseram-me que s podia favorecer os nostlgicos do Estado Novo. Hoje dizem-me que estou a prejudicar o bom nome da resistncia e ajudar a reaco. Houve somente um breve perodo, nos fins dos anos setenta, quando o ambiente era diferente e a comunicao social mais diversificada, que foi evidente alguma abertura. Havia muito mais debate do que h hoje: era o tempo da Aliana Democrtica. O meu primeiro ensaio sobre o caso Delgado, foi ento um best-seller e em seis meses venderam-se muitos milhares de exemplares do livro. A verso impressa do texto agora posto on-line, pelo contrrio, foi boicotada; no recebeu qualquer promoo ou publicidade. No sei quantos exemplares foram vendidos, porque at hoje o editor no me apresentou quaisquer contas. Foi pena ou talvez no. Agora existe a internet e uma audincia potencialmente muito maior. Sobretudo, h toda uma nova gerao de leitores. E se no tivesse havido aquele boicote, talvez eu no tivesse tido o incentivo para colocar o livro on-line. O valor histrico do livro consiste, sobretudo, na reproduo, na totalidade, de todos os meus documentos referentes aos acontecimentos narrados. A primeira edio, por presso de tempo, s trazia extractos de alguns deles. Esta edio tambm reproduz alguns comentrios curiosos incluindo um de lvaro Cunhal e outro de Pedro Ramos de Almeida. So curiosos porque descaradamente mentirosos, revelando mais uma vez a natureza dessa famigerada superioridade moral dos comunistas. Cunhal falou de documentos apcrifos. Ramos de Almeida e o agente russo Ignatiev mentiram escandalosamente sobre o meu passado poltico e alegada pertena ao Intelligence Service. As palavras dessas figuras so bem reveladoras do seu carcter e das suas motivaes. A verdade sobre o assassinato de Delgado ainda est por descobrir e talvez nunca seja conhecida. A verdade sobre a moralidade e os objectivos de muitos opositores ao Estado Novo j se sabe. Resta agora tirar as concluses. A minha esperana de que os textos agora publicados sejam instrumentos teis dessa tarefa. Algures no Alentejo, 15 de Setembro de 20007

~~~~~~NOTA TCNICA Peo desculpas aos mais qualificados em informtica por este site ser dos mais simples possveis. Utilizei o Google Page Maker, um instrumento pouco sofisticado e que nem sempre garante uma formatao uniforme. A Pgina Inicial traz o ndice Geral e uma lista das ligaes para cada captulo. Cada captulo tem a sua prpria pgina cada uma com ligaes para a Pgina Inicial, para a pgina anterior e para a pgina seguinte. Assim, em qualquer momento da leitura pode-se aceder a qualquer captulo do livro. As notas, normalmente de rodap ou no fim do captulo, encontram-se, nesta edio na coluna do lado direito de cada pgina. Todas as pginas so fceis de imprimir. Embora os leitores sejam livres de reproduzir e fazer circular as partes do texto que lhes interessam, ou mesmo o livro inteiro, pede-se respeito pelo meu copyright e, portanto, a sua atribuio minha autoria.

~~~~~~ ADVERTNCIA Quando apareceu, em 1979, a primeira edio deste livro trazia o ttulo O Bando de Argel. Escolheu-se esse ttulo na altura porque nesses anos a expresso era bem conhecida dos portugueses. Foi inventada por Vera Lagoa para classificar certos exilados polticos que se tornaram notrios pelas suas actividades na cidade norteafricana de Argel. Ficou na boca do mundo aquando da sua consagrao na cena de abertura de uma revista de grande sucesso que ocupou o palco no Parque Mayer. J no existe em Portugal esse tipo de revista, nem esse tipo de humor. Apresentase ao pblico esta segunda edio com o ttulo mais apropriado de Misrias do Exlio porque, na realidade, no s do 'bando' que o livro fala. Muitos outros portugueses e africanos aparecem nestas pginas. Gente honrada. Gente que fora vtima desse pequeno grupo. E, sobretudo, Humberto Delgado, homem justo que caiu vtima de homens injustos. O exlio poltico produz do melhor e do pior mas sempre uma misria. Para que se tirem as lies e que nunca mais os portugueses tenham de passar por ela, conta-se aqui o que se passou entre os exilados na Arglia durante os quatro anos de 1962 a 1966. Ao contrrio da primeira, a presente edio reproduz na ntegra os mais importantes documentos publicados pelas principais figuras e organizaes que participaram no drama que culminou no assassinato de Badajoz. Esta segunda edio foi inteiramente revista: os factos, as personagens e a interpretao so as mesmas, mas aqui encontram-se devidamente identificadas e localizadas. Assim, espera-se que o leitor consiga melhor entender o que se passou nesses tempos, j recuados mas que ainda deixam ecos na vida actual. ~~~~~~ Abreviaturas ABAKOAssociao dos Bakongos de Angola AFL/CIO American Federation of Labour/Congress of Industrial Organizations ALIAZO APU CDU Aliana dos Emigrantes do Zombo

Aliana Povo Unido Coligao Democrtica Unitria

COAFP Comit das Organizaes Antifascistas Portugueses CONCPConferncia das Organizaes Nacionalistas das Colnias Portuguesas DRIL FEPU FAP Directrio Revolucionrio Ibrico de Libertao Frente Eleitoral Povo Unido Frente de Aco Popular

FDLA Frente Democrtica de Libertao de Angola

FLN

Frente de Libertao Nacional da Arglia

FNLA Frente Nacional de Libertao de Angola FPLN (1) FPLN (2) FRELIMO Frente Patritica de Libertao Nacional Frente Portuguesa de Libertao Nacional Frente de Libertao de Moambique

GRPL Grupo Revolucionrio Portugus de Libertao GPRA Governo Provisrio da Repblica Argelina JAPPA Junta de Aco Patritica dos Portugueses de Argel JRP MAR MDP MNI Junta Revolucionria Portuguesa Movimento de Aco Revolucionria Movimento Democrtico >Popular Movimento Nacional Independente

MDIA Movimento da Defesa dos Interesses de Angola MNA Movimento Nacionalista de Angola

MPLA Movimento Popular de Libertao de Angola MUD-Juvenil Movimento de Unidade Democrtica-Juvenil NGWIZAKO NTOBAKO OAS OUA Associao dos Congoleses de expresso portuguesa Associao dos Bakongos de Angola

Organisation de lArme Secrte Organizao de Unidade Africana

PAIGC Partido Africano da Independncia de Guin e Cabo Verde PCA PCP PDA RR UIE UPA Partido Comunista Argelino Partido Comunista Portugus Partido Democrtico de Angola Resistncia Republicana Unio Internacional de Estudantes Unio das Populaes de Angola

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PREFCIO EDIO IMPRESSA

1. Em defesa da Histria A primeira edio deste livro apareceu h dezanove anos quando jovens que agora esto a entrar na idade adulta ainda no tinham nascido. Os acontecimentos nele descritos passaram-se h mais de trinta anos. So acontecimentos que pertencem histria contempornea, histria que no caso portugus resta, em larga medida, por fazer. Uma constatao de muitos historiadores, tanto nacionais como estrangeiros, da exiguidade em Portugal de memrias pessoais de importantes acontecimentos escritas por participantes ou observadores. Na Frana, Gr Bretanha, Estados Unidos, para falar s de alguns, as estantes das bibliotecas esto repletas deste gnero de obras, que constituem uma valiosa fonte de documentao e parte importante do patrimnio do respectivo pas. Em Portugal, pelo contrrio, parece haver o mesmo desprezo para com a documentao escrita, tal como existe com muitos dos nossos arruinados monumentos. No ltimo caso, podemos atribuir o fenmeno ao simples descuido ou falta de verbas necessrias para a conservao. Quanto escassez de memrias, a causa parece ser outra: a reticncia de muitas potenciais testemunhas deve-se ao receio das reaces. Num meio restrito, como o da intelectualidade portuguesa onde todos se conhecem, muitos partilham de cumplicidades de vria ordem, muitos so devedores de favores mtuos. Como na casa onde falta o po e todos ralham, tambm num pas onde o bolo pequeno cada um se agarra sua fatiazinha e no suporta que outros venham desvendar factos inconvenientes. As dcadas de ditadura exacerbaram uma situao j existente e que sobreviveu ao 25 de Abril. Ao receio de criar inimigos pessoais, juntou-se o temor de criar inimigos polticos, partidrios e, at, institucionais. A extrema polarizao ideolgica de antes e depois da instaurao da democracia veio acentuar as inibies. Assim, enquanto no faltam livros e artigos de jornais sobre alguns aspectos da vida e da morte do general Humberto Delgado, so rarssimas as pessoas que quiseram, publicamente, analisar ou documentar os ltimos meses da sua vida e as reaces, bastante diversas, notcia do seu desaparecimento. Nos Estados Unidos, a bibliografia sobre o assassinato do presidente John Kennedy, tanto impressa como cinematogrfica, vasta e no para de crescer. As teorias e hipteses continuam a confrontar-se e raramente acontece que os autores sejam insultados ou caluniados por terem a ousadia de publicar as suas opinies ou documentao sobre o trgico fim do presidente americano que perdeu a vida em Dallas. Em Portugal acontece o contrrio. Prevalecem poderosos tabus que poucos ousam romper. Na situao portuguesa no de admirar que assim seja. Vivemos em democracia; todos os dias se ouve falar na existncia de um Estado de Direito; suposto vivermos sem censura. No entanto, sobre o caso Delgado, sobre a oposio anti-salazarista, sobre a descolonizao, sobre os movimentos de libertao, existe esse gnero de censura to bem conhecido dos escritores e editores que viveram o socialismo real dos pases do Leste europeu. a auto-censura: a conscincia inibidora da existncia de assuntos incmodos os quais no se deve abordar.

A auto-censura castrante; estende-se a muitos campos. No s atinge a historiografia mas tambm a literatura criativa. Envenena os espritos e empobrece a vida intelectual. Subverte a prpria democracia. No pode haver combate de ideias se no for permitido o seu confronto franco. Se teorias ou relatos desagradveis, em vez de serem analisados abertamente, sejam abafados pela calunia e pela perseguio dos seus autores, torna-se difcil seno impossvel chegar verdade. Torna-se, com efeito, impossvel fazer Histria. A histria da ditadura e da oposio anti-salazarista; a histria da descolonizao; a histria dos movimentos de libertao das colnias portuguesas - todos estes temas, riqussimos em acontecimentos e lies para o futuro, continuam afogados em dogma, mitologia e mentira. Ou, ento, enterrados no silncio - o que talvez seja ainda pior. Os historiadores do futuro quando encontrarem mitos e mentiras, ao menos enfrentaro o desafio de cavar mais fundo. Se encontrarem silncio e lacunas devido ausncia de documentos e testemunhos como se a histria tivesse sido apagada; simplesmente no aconteceu. Desde 1965 tenho tentado que fossem conhecidas algumas verdades sobre o caso Delgado, que considero intimamente ligado com alguns aspectos do problema colonial. No foi somente por acreditar na necessidade histrica de publicar documentos. Foi tambm por respeito memria de uma figura importante nos anais do pas, uma figura que no hesitou em sacrificar a prpria vida pela causa em que acreditava. Considerei sempre que ignorar, ocultar ou deformar o perodo argelino da vida de Delgado constituiria a ltima traio sua memria. Senti ainda com mais intensidade o imperativo de contar a verdade na medida em que nunca partilhei da sua crena na viabilidade de uma aco armada partindo do exterior contra a ditadura. Por motivos bastante divergentes dos do Partido Comunista pensei ento, e continuo a pensar hoje, que Delgado no tinha uma apreciao informada sobre a conjuntura internacional dos anos 60. Por isso, embora admirando e apoiando de Londres em 1958 a sua candidatura presidncia da Repblica, nunca quis, nos anos do seu exlio, aderir a qualquer movimento que ele encabeasse. Ao contrrio do que depois disseram alguns, nunca tive qualquer contacto poltico ou pessoal com o general, alm de um nico aperto de mo quando lhe fui apresentada numa paragem de carro elctrico em Argel, na vspera da sua fatdica partida. Todavia, assisti de perto ao desenrolar da tragdia. Em Marrocos e na Arglia, de 1962 a 1966, conheci quase todas as principais personagens; recebi e guardei relevantes documentos; conversei quase diariamente com muitos que conviviam com o general e tambm com muitos argelinos e outros africanos. Nunca procurei conhecer Delgado pessoalmente, embora como jornalista pudesse muito bem t-lo entrevistado. Estava de tal maneira consciente do poo de intrigas em que se envolvia a comunidade lusfona na frica do Norte, que escolhi ficar afastada das organizaes e confinei as minhas actividades escrita. Nos anos que se seguiram, tenho por vezes lastimado esse distanciamento. Podia, talvez, ter tentado aconselhar o general; podia t-lo informado dos antecedentes do complot em que ele, ingenuamente, se metera; podia ter partilhado com ele os meus conhecimentos da poltica argelina e dos comunistas. Mas quem era eu para que ele me ouvisse? Uma modesta escritora, meia estrangeira, j com muitos inimigos polticos devido minha independncia e, no menos, pelo facto de ter sido uma vez comunista, deixando de o ser. Hesitei, portanto, em contactar Delgado e acabei por manter a postura de observadora. Foi esse sentimento de no ter feito o que podia enquanto o general estava vivo que tambm me impulsionou a tentar fazer-lhe justia depois de morto. Considerei essencial que se soubesse a verdade; que fossem desmascarados os inimigos de Delgado, doer a quem doesse. Pensei, e penso ainda, que a verdade sobre as

intrigas de Rabat e Argel fosse importante para um entendimento global da poltica da oposio anti-salazarista e de certos sectores do nacionalismo africano. A minha primeira tentativa neste sentido foi um artigo na revista poltica francesa Partisans, no Vero de 1965. Logo comeou uma campanha cheia de calnias contra a minha pessoa, campanha que ia durar muitos anos e que, talvez, no tenha ainda chegado ao seu termo. Como a vitimologia no o meu forte, no irei adiantar-me sobre o assunto neste prefcio. Contudo, como as respostas dos adversrios so tantas vezes reveladoras, os leitores encontraro em apndice um resumo destas, assim como um apndice reproduzindo o meu artigo da Partisans. Hoje o mundo bastante diferente do que era em 1979. A URSS desmoronou-se. Em toda a parte faz-se agora a verdadeira histria. Anlises pormenorizadas e documentadas sobre os partidos comunistas aparecem em Frana, na Inglaterra, nos Estados Unidos. Os russos publicam todos os dias relatos dos anos tenebrosos. Est hoje provado que infmias, longamente negadas e atribudas ao inimigo, foram realmente cometidas por comunistas. Os prprios russos confirmaram que os milhares de oficiais polacos abatidos em Katyn foram-no pelos soviticos e no pelos nazis como antes tinham insistido - apodando-se de fascista quem ousasse dizer a verdade. Tantas e tantas vtimas do comunismo foram reabilitadas. Tantos e tantos crimes desvendados.

Portugal, com os seus brandos costumes, foi poupado a uma grande parte dos sofrimentos que martirizaram outros povos europeus. Por isso, esquecemos muitas vezes que quem no foi poupado no mundo lusfono foram os africanos e, sobretudo, os angolanos. No drama angolano, existem muitas culpas e estas so partilhadas por portugueses que agiram em nome de Portugal. Alguns desses portugueses so os mesmos que aliciaram, perseguiram e abandonaram Delgado. Fizeram-no em nome de um ideal que hoje est desmascarado como o maior embuste do nosso sculo1. A honra de um povo depende da sua capacidade de reconhecer as culpas. Os alemes j o fizeram. Os russos esto em vias de fazer o mesmo. Os portugueses no podem ficar fora deste processo, sob pena de viver o futuro numa apagada e vil tristeza. No basta pedir desculpas ao povo judeu pela Inquisio. No basta culpar Salazar e os salazaristas pelos malefcios ptrios neste sculo. preciso tambm analisar o papel dos seus adversrios e procurar todas as culpas e em todos os campos. Espero que esta nova edio, melhorada e ampliada de O Bando de Argel ajude nesta tarefa difcil mas inadivel, que se impe a todos os investigadores srios. 2. Os antecedentes da aventura Alguns dos personagens que vim encontrar em Marrocos no Vero de 1962 j eram meus conhecidos. Tambm j sabia alguma coisa sobre a guerra de libertao dos argelinos contra a Frana. Participei na traduo para ingls de um livro publicado na Suia sobre a luta da FLN e a perseguio e tortura dos seus militantes2. No decurso desse trabalho tive os meus primeiros contactos com argelinos cuja luta estava a ser seguida apaixonadamente nos meios anticolonialistas ingleses. Na esquerda inglesa, depois do relatrio de Khruchtchev em 1956 sobre os crimes de Estaline e da represso da revoluo na Hungria, houve uma enorme efervescncia e a formao da chamada Nova Esquerda. O Partido Comunista Britnico perdera milhares dos seus militantes. Muitos deles, intelectuais de primeiro plano, envolveram-se em vivos debates sobre todos os aspectos do marxismo, especialmente sobre a questo colonial. Nessa Nova Esquerda encontravam-se todas as tendncias anti-estalinistas do marxismo, incluindo trotskistas de diversas faces.

Na dcada de 50, em colaborao com amigos portugueses ajudei no trabalho de divulgar a luta dos anti-salazaristas portugueses. Pessoalmente consegui que Kingsley Martin, director do influente semanrio New Statesman, viesse a Portugal por ocasio da visita da rainha de Inglaterra em Fevereiro de 1957. O jornalista ingls avistou-se com personalidades da oposio, entre as quais Antnio Srgio; descreveu depois as suas conversas num artigo que causou bastante escndalo nos meios salazaristas3. Consegui tambm que Gerald Gardiner, mais tarde Lord Chancellor4, viesse assistir ao julgamento de Ruy Lus Gomes acusado com quatro outros da tentativa de publicao de um artigo apelando pela a restaurao das liberdades. Tambm ajudei a organizar a visita de Robert Kee, da BBC, que fez o primeiro programa sobre Portugal na conceituada srie documental Panorama. Lanmos em 1961 uma publicao mensal5 e conseguimos a formao de uma Comisso6 composta por importantes figuras britnicas: parlamentares, juristas e conhecidos jornalistas que se preocupavam no s com a situao em Portugal mas tambm nas suas colnias. Desde o incio, porm, verificou-se uma tenso acentuada entre os portugueses quanto ao modo de tratar o problema colonial. Havia os que, seguindo a linha do PCP, se mostravam bastante reticentes sobre a questo da independncia das colnias portuguesas. Enquanto outros, geralmente pessoas de origem colonial, no aderiam tese segundo a qual s depois de derrotada a ditadura se podia enfrentar essa questo. Estes achavam que era precisamente no problema colonial que residia o ponto mais fraco do salazarismo. Em 1959, princpios de 60, passei alguns meses em Portugal com o objectivo de recolher dados para a feitura de um livro que seria publicado em 1961 com o ttulo Oldest Ally: A Portrait of Salazars Portugal7 . Foi nessa visita que conheci pela primeira vez Fernando Piteira Santos. Depois de voltar para Londres fui procurada por vrias pessoas interessadas na questo das colnias portuguesas, em especial trotskistas, j muito envolvidos no apoio FLN argelina. Um desses era Michel Raptis-Pablo, que mais tarde veio a desempenhar um papel significativo no nascimento da FPLN portuguesa8. Conheci tambm, ao passarem por Londres, vrios dirigentes dos incipientes movimentos nacionalistas das colnias portuguesas, entre os quais Aquino de Bragana, com quem continuei a ter contactos por correspondncia9. Durante os meses que se seguiram publicao de Oldest Ally, aumentaram as minhas reservas quanto utilidade de tentar colaborar com os exilados portugueses em Londres, to inibidos alguns deles em relao ao problema colonial - em particular os recm-chegados de Portugal - para quem a discusso s servia para perturbar a unidade anti-fascista. Esses mesmos elementos, sectrios e totalmente ultrapassados no seu estalinismo, no gostavam de mim nem do meu livro. Desconhecendo o debate aberto, normal num pas democrtico, eles achavam as minhas eclcticas relaes com a esquerda inglesa altamente suspeitas, em especial porque tinha me afastado do Partido Comunista ingls uns anos antes. Por conseguinte, quando Aquino de Bragana e Michel Raptis-Pablo insistiram comigo nas suas cartas de Marrocos para eu pensar em abandonar Londres e transferir-me para frica do Norte, comecei a pressentir uma sada. Num contacto mais estreito com os nacionalistas, pensava eu, talvez fosse possvel fazer um novo livro anti-salazarista, desta vez dedicado inteiramente ao problema colonial. A oportunidade de realizar este projecto surgiu quando assinei um contrato para a traduo inglesa de Os Maias de Ea de Queiroz, trabalho que no necessitava da minha presena em Londres10. Assim, com algum dinheiro na algibeira, avanado pelo editor, mais os necessrios dicionrios na bagagem, embarquei na companhia

de Carlos Lana11 para Rabat no Vero de 1962. No podia adivinhar que iria encontrar os mesmos problemas na frica do Norte, mas desta vez com contornos dramticos.Referncias

1. Palavras de Mrio Soares, 2. Hafid Keramane. La Pacification, Lausanne, La Cit, 1961. Quando viu a traduo, o editor ingls ficou de tal maneira chocado com as revelaes do autor argelino que acabou por recusar editar a verso inglesa, dizendo que no podia acreditar que os civilizados franceses pudessem cometer tais atrocidades. 3. New Statesman, Fevereiro de 1857, Kingsley Martin, Fascism in the name of Jesus (Fascismo em nome de Jesus). 4. Esse alto cargo no Reino Unido no tem equivalente em Portugal. o principal magistrado, responsvel pela nomeao dos juzes e a conduo da justia. o segundo ministro do governo. Um dos mais distintos juristas ingleses, Lord Gardiner ficou indignado com o que viu no tribunal salazarista e que descreveu no dirio Manchester Guardian de 19 de Outubro de 1957. 5. Portuguese and Colonial Bulletin, Londres. O primeiro nmero saiu em Fevereiro de 1961, celebrando a captura do Santa Maria em Janeiro de 1961. 6. Council for Freedom in Portugal and Colonies. 7. Peter Fryer e Patrcia McGowan Pinheiro, Oldest Ally, A Portrait of Salazars Portugal, Londres, Dobson, 1961. Peter Fryer tinha sido expulso do PC ingls em 1956 por escrever a verdade sobre a revoluo hngara. Este facto bastou para que Oldest Ally fosse boicotado pelos comunistas; ou seja, banido das livrarias do PC ingls; em Paris, segundo me informou Antnio Jos Saraiva, o PCP proibiu aos seus militantes o fornecimento de fotografias para as edies francesa e espanhola. No entanto, Oldest Ally descreve a poltica do PCP com serenidade e bastantes louvores, sem qualquer vestgio de anticomunismo primrio. A PIDE, por sua vez, tambm no gostou do livro: os autores foram proibidos entrada em Portugal e PMGP foi s permitida voltar a vir a Portugal dez anos mais tarde em 1971. 8. Ver Rol de Personagens. 9. Ver Rol de Personagens. 10. The Maias, Londres, The Bodley Head, 1961. 11. Carlos Alberto Lana (19191994) aderiu, ainda estudante, ao PCP. Organizou com Francisco Jos Tenreiro dois volumes, Contos e Poemas, Lisboa, Abril e Novembro de 1942, colectneas de obras de vrios autores que depois se distinguiram no neo-realismo portugus, tais como Mrio Dionsio, Sidnio Muralha, Soeiro Pereira Gomes e Manuel da Fonseca. Em Moambique, verificando o despropositado das directivas do PCP, concentrou-se em actividades culturais, sendo um dos principais promotores do Cine-Clube da Beira e da revista Paralelo 20. Foi preso em 1959, acusado de crime contra a Lei da Imprensa por ter circulado uma Carta Aberta ao Presidente da Repblica pedindo a discusso do problema colonial. Promoveu a formao de um grupo de brancos anticolonialistas, Movimento Democrtico de Moambique. O MDM reivindicava sem equvocos a total independncia das colnias e o apoio aos nacionalistas africanos. Com a partida de Moambique da maioria dos seus elementos, o MDM sobreviveu pouco tempo. Carlos Lana partiu para Rabat com o propsito de colaborar com

Marcelino dos Santos, mas cedo entrou em conflito com outros brancos de Moambique, adeptos do PCP. ~~~~~~

Primeira Parte

AS ORIGENS1. Prlogo As origens da Frente Patritica de Libertao Nacional e a sua instalao na Repblica Argelina, logo aps a independncia desta antiga provncia francesa em 1962, continuam enredadas em mistrio. Conspirao comunista, como diziam os salazaristas? At crise dos msseis no Outono de 1962, com Khruchtchev no Kremlin, os partidos comunistas pr-soviticos, plenamente empenhados na ento intensa campanha a favor da coexistncia pacfica, desconfiavam profundamente das intenes dos novos governantes da Arglia independente, tal como tinham desconfiado de Fidel Castro. Nessa poca, a revoluo rabe no tinha ainda cado sob a hegemonia sovitica. Os nacionalismos no-marxistas, para os partidos comunistas, estavam perigosamente prximos das teses chinesas. Solidariedade de um pas progressista? Os novos governantes da Arglia tinham as suas razes e a sua estratgia prprias quando decidiram abrir as portas aos exilados polticos estrangeiros. Essas razes continuaram, durante muito tempo, escondidas dos portugueses ingnuos. E, em larga medida, continuam ocultas. A Frente Patritica de Libertao Nacional foi o ttulo pomposo de um pequeno grupo de pessoas cujo fim era o aproveitamento de aces e sacrifcios feitos por outros. S em sentido figurativo comeram na frica do Norte o po amargo do exlio poltico. Na realidade gozaram de um exlio dourado, custa de um povo que ainda chorava um milho de mortos1 Como que esse grupo de pessoas, cujos nomes em 1962 apenas se conhecia nos cafs do Chiado, conseguiu instalar-se na Arglia logo aps a independncia deste pas? Como que chegaram a convencer os dirigentes argelinos anti-marxistas a dar-lhes asilo poltico, apoios financeiros e meios de propaganda, que nem o PCP, com tanta autonomia nos pases de Leste, alguma vez chegou a ter? No se sabe ainda muito bem a posio de alguns membros do que veio a ser conhecido como o bando de Argel no incio das suas aventuras: se estavam suficientemente afastados do PCP e ambicionavam concorrer com o partido de Cunhal. Para compreender toda a histria, teremos que recuar no tempo e traar o cenrio da situao internacional nos comeos da dcada de sessenta. O fim da guerra da Arglia Em 1961-62, a Frana estava traumatizada pela guerra da Arglia. A esquerda encontrava-se dividida. O Partido Comunista Francs, estalinista, sempre se recusou a apoiar a Frente de Libertao Nacional (FLN) argelina, chegando at a acusar os seus dirigentes de estarem vendidos aos Estados Unidos. Nasser, do Egipto, que ajudou os argelinos, era apontado como agente da CIA. O Partido

Comunista Argelino, composto em grande parte por colonos europeus, tinha-se desmoronado e muitos dos seus militantes ingressaram nas fileiras da OAS2. A Unio Sovitica ainda no tinha posto o p no Mediterrneo e muito menos em frica. Por toda a Europa onde havia emigrantes argelinos Frana, Blgica, Suia e Alemanha os dissidentes europeus da esquerda tradicional, intelectuais e jovens, criaram os famosos rseaux de soutien, grupos de apoio revoluo argelina. Nestes grupos havia representantes de toda a famlia marxista, salvo os incondicionais pr-soviticos3. Particularmente activos eram os trotskistas da IV Internacional4. Alguns europeus dos rseaux haviam sido presos em Frana e noutros pases. Um dirigente da IV Internacional, o grego Michel Raptis (mais conhecido pelo nome revolucionrio de Pablo), fora condenado na Holanda por falsificao de moeda a favor da FLN. Uma campanha internacional de solidariedade tornara-o famoso e altamente estimado junto de alguns sectores da FLN. Mas toda esta solidariedade tinha o seu preo. Cada grupo ideolgico europeu tentava influenciar e converter os argelinos sua linha poltica. Impotentes para influenciar a poltica nos seus prprios pases, e inflamados com os xitos recentes de Fidel Castro, esperavam o nascimento de uma Cuba rabe no Mediterrneo. Em nome do anti-colonialismo, davam largas ao seu paternalismo para com os argelinos, tal como veio depois a acontecer com os povos das colnias portuguesas. Entretanto, dentro da prpria Arglia, as guerrilhas estavam praticamente dominadas. De Gaulle prometera a paz e um referendo sobre o futuro estatuto da provncia. A guerra, em 1961, resumia-se a uma luta poltica entre as diversas faces argelinas no exterior e no combate OAS. Havia a emigrao de quase 400.000 argelinos que trabalhavam em Frana; em Marrocos e Tunsia, ao longo das fronteiras, havia 60.000 soldados argelinos armados, transformados agora em militares profissionais. Havia ainda milhares de presos nos crceres franceses, incluindo o futuro presidente Ahmed Ben Bella. A preocupao principal dos dirigentes argelinos j no era a derrota dos franceses e sim a luta intestina das vrias faces para alcanar o poder. Os grupos de apoio europeus envolveram-se com zelo na mesma luta. Cada um escolhia a sua tendncia argelina e declarava guerra s outras. Os argelinos encorajavam os seus clientes. Os da Tunsia, onde funcionava a sede do Governo Provisrio, eram hostis aos militares argelinos de Marrocos, e vice-versa. Ahmed Ben Bella, um dos dirigentes histricos, era um civil. Participara na elaborao e execuo da revolta inicial de 1954. Contudo, esteve preso durante cinco anos. Em 1962, pouco tinha em comum com os coronis das fronteiras. Era um galicizado, antigo sargento do exrcito francs, que admitia s ter estudado a lngua rabe na priso. O Coronel Houari Boumedienne, seu sucessor em 1965, passava por ser, semelhana de outros militares, um arabizante, um muulmano ortodoxo, ligado ao Egipto. A priso tinha isolado Ben Bella dos militares e aproximara-o das vrias tendncias dos rseaux europeus. No e meu objectivo pormenorizar a luta que encheu todo o Vero de 1962 e que culminou na escolha de Ben Bella pelo governo provisrio como presidente do novo pas e a sua relutante aceitao por parte dos coronis. O importante mostrar a fraqueza do chefe histrico face ao poder militar. Para compensar a sua falta de apoios nacionais, Ben Bella rodeou-se de conselheiros estrangeiros; para preencher o vazio da poltica interna, concentrou-se na poltica internacional; insistindo no no-alinhamento aos blocos da Guerra Fria, a sua primeira visita ao estrangeiro foi a Cuba, onde o no-alinhamento de Fidel Castro j se tinha evaporado com a sua

submisso poltica sovitica, evidenciada na crise dos msseis desse Outono. Desde o incio, Ben Bella proclamou o seu apoio s revolues africana e latinoamericana. Disse estar pronto at a oferecer ajuda aos Papuas da Ocenia se estes a pedissem. Michel Raptis-Pablo apareceu, justamente nesse contexto como um dos principais conselheiros do presidente Ben Bella. Tinha no s o prestgio da sua priso e dos seus escritos trotskistas, mas tambm uma corte de revolucionrios estrangeiros, alguns dos quais lusfonos. 2. O COMPLOT DE MARROCOS A Conferncia das Organizaes Nacionalistas das Colnias Portuguesas (CONCP) tinha a sua sede em Rabat, capital de Marrocos. Secretariada pelo gos Aquino de Bragana5 e pelo moambicano Marcelino dos Santos6, era composta principalmente pelo MPLA e PAIGC. Recebeu asilo e ajuda em Marrocos, graas alegada amizade pessoal existente entre o Rei Hassan II e Marcelino dos Santos.7 No princpio as relaes dos nacionalistas da CONCP com os argelinos no foram estreitas. Os lusfonos eram marxistas, crticos do PCP, mas desconfiados do islamismo dos argelinos e da sua poltica. Os argelinos pareciam j comprometidos em apoiar a UPA de Holden Roberto, movimento francamente anti-comunista. Holden Roberto mantinha excelentes relaes com muitos dirigentes argelinos, principalmente na Tunsia8. Em 1962 os chefes do MPLA, PAIGC e futura FRELIMO aguardavam nervosssimos a independncia argelina pelo apoio prestigioso que ela poderia trazer UPA. Por isso, procuraram desesperadamente um esquema que impressionasse os argelinos e anulasse a influncia de Holden Roberto. No entanto, tornava-se difcil saber qual a faco argelina que iria ganhar. Foi, portanto, nesse Vero quente, a arder de intrigas, cheio de grupos de presso internacionais, que Fernando Antnio Piteira Santos foi cair em Rabat9. Fugido de Portugal, aps um perodo de clandestinidade, atravessou a fronteira vestindo trs fatos. Com muitos inimigos na oposio anti-salazarista, perigosamente ambicioso (como diria mais tarde Delgado), Piteira Santos era um dos raros portugueses familiarizado com as dissidncias no movimento marxista. Expulso do PCP por duas vezes, em 1945 e 1951, acusado, primeiro, de delator quando preso e, depois, de pr-jugoslavo, numa altura em que Tito fora afastado da famlia comunista, Piteira Santos juntava fama de trotskista o ser visto, bem ou mal, pelos militantes do PCP como agente da PIDE Em Rabat foi bem acolhido pelos dirigentes da CONCP. Mas os portugueses que iam chegando a Marrocos e o encontravam ficavam perturbados. A maior parte eram desertores e refractrios. Exemplo: Helder Martins, que veio a ser ministro da Sade de Moambique e desertara de Londres do seu posto de mdico-oficial da Marinha de Guerra portuguesa10. Ao verificar a presena de Piteira Santos em familiar cavaqueira com os africanos alarmou-se. Imediatamente correu os cafs frequentados pelos exilados portugueses a alert-los para a presena na sede da CONCP de um perigoso agente da PIDE. Porm, pouco tempo depois, a seguir a longas conversas com os dirigentes nacionalistas, acalmou-se e converteu-se rapidamente num dos mais fiis colaboradores de Piteira. O mesmo iria acontecer com outros militantes do PCP que foram aparecendo, s mais tarde comeando as dissidncias.

Os dirigentes da CONCP encararam Piteira Santos como aliado e conseguiram para ele a ajuda dos marroquinos e documentos para poder viajar. Apresentaram-no tambm a Michel Raptis-Pablo que o recebeu de braos abertos. Todas os principais personagens estavam agora ali, preparando os ingredientes de uma trama que se iria revelar desastrosa. Nenhum representava qualquer movimento real no seu pas de origem. Cada qual ambicionava apenas o poder. Todos receavam os rivais de outros quadrantes ideolgicos. Contudo, uniam-se num mesmo objectivo: aproveitar a confuso que fatalmente iria acompanhar o nascimento do novo Estado argelino para l estabelecer uma base onde o grande rival - o PCP de Cunhal - estivesse sempre em segundo plano. Foi Pablo quem reuniu o grupo e concebeu o projecto de o apresentar aos argelinos, reforando com isto o seu prestgio junto de Ben Bella enquanto este ganhava trunfos na sua luta contra outras faces argelinas. O plano era muito simples mas bastante adequado s pretenses de todas as foras envolvidas. A nova Arglia, abandonada por quase um milho de colonos franceses, carecia dramaticamente de quadros tcnicos. A oposio portuguesa no exlio dispunha de mdicos, engenheiros e outros diplomados, alm de descontentes e mal pagos em Portugal. Alm destes havia os assimilados das colnias portuguesas, diplomados tambm, e irrequietos com a onda de nacionalismo africano. Com essa mercadoria os negociantes polticos contaram poder comerciar. Ofereceu-se a Ben Bella esta cooperao tcnica, uma cooperao a preo bastante mais em baixo comparada com uma futura e ainda hipottica cooperao francesa. Em contrapartida, Ben Bella daria todo o apoio CONCP, em prejuzo de Holden Roberto. E Piteira Santos, como chefe da oposio portuguesa na Arglia, teria finalmente vantagens sobre Cunhal e o resto da oposio. Apesar de expulso do PCP e escorraado durante longos anos por certos meios da oposio, ele poderia finalmente ter as suas massas, financeiras e humanas. Dono do direito de asilo e de bons lugares na Arglia, estaria optimamente colocado para negociar com outros sectores da oposio, desta vez com todos os trunfos na mo. Pablo tambm se sentia triunfante. O dirigente da Quarta Internacional trotskista via-se como conselheiro no s do presidente argelino como de futuros dirigentes de pases de expresso portuguesa, situao que lhe asseguraria uma primazia sobre os seus rivais no movimento trotskista. Ben Bella, que ambicionava ser o Fidel Castro do Mediterrneo, teria mais dois valiosos pontos de propaganda a adicionar ao seu projecto poltico: a solidariedade com os povos de Portugal e suas colnias de molde a contrabalanar o inconveniente (no plano demaggico) das excelentes relaes que a FLN mantinha com a Espanha de Franco; e a soluo parcial do problema de quadros para a reconstruo de Arglia. Agora s faltava um pormenor que desse ao plano o ltimo retoque convincente. O nome de Piteira Santos, que era desconhecido no estrangeiro, polarizava muitos inimigos na oposio anti-salazarista. Fora uma tese de licenciatura, no tinha obras publicadas e to pouco representava qualquer organizao. Para servir de bandeira impunha-se uma personalidade conhecida: uma figura idnea, de envergadura internacional, algum que no fosse um terico de revolues de caf, nem marxista. Os argelinos admiravam sobretudo homens de aco. Sem uma figura dessas para encabear a grande aliana que Piteira sonhava dirigir, o plano no teria qualquer viabilidade. Nem para vender aos argelinos, nem para encontrar eco dentro da oposio anti-salazarista. Foi assim que surgiu o nome do general

Humberto Delgado que, longe no Brasil, vivia totalmente alheio intriga que se tramava em Rabat. Primeira aposta: Henrique Galvo Quando os dirigentes nacionalistas da CONCP, ainda em 1961, procuraram uma oportunidade para estar na berlinda, aproveitando a luta armada iniciada pela UPA em Maro desse ano, voltaram-se para uma aproximao com a oposio nocunhalista. A princpio apostaram em Henrique Galvo. Galvo vinha do salazarismo, tal como Delgado. Mas a sua oposio era muito anterior do general. Durante largos anos o PCP e outros elementos da oposio tinham olhado esse velho africanista como uma personalidade a aproveitar. Em 1949 j o PCP tinha editado um panfleto clandestino que reproduzia o relatrio de Galvo sobre as condies de Angola na altura. Delgado, pelo contrrio, nunca foi visto com agrado pelo PCP e os seus simpatizantes. Se o apoiaram nas eleies de 1958, desistindo da candidatura de Arlindo Vicente, fizeram-no com bastante m vontade. Delgado era demasiado carismtico, demasiado independente para servir de fantoche. Embora se tente hoje esconder das novas geraes esta fase da poltica sinuosa do PCP, ela est suficientemente documentada para quem quiser averiguar a verdade. Atribuindo a captura do paquete Santa Maria inteiramente a Galvo, e querendo aproveitar-se da publicidade mundial volta do seu nome, os oposicionistas de esquerda, e tambm os nacionalistas da CONCP, estavam prestes em 1961 a tentar uma aliana com o capito. Sintomaticamente um futuro dirigente da FPLN nesse mesmo ano, em carta dirigida do Brasil a um correligionrio de Londres, escreveu: Delgado est impossvel. Ter que ser eliminado politicamente. Galvo o nosso homem!. Galvo, contudo, provaria tambm ser incontrolvel. Numa viagem Sucia destruiu em poucas palavras quaisquer esperanas que nele depositavam os aventureiros. Condenou o nacionalismo nas colnias portuguesas e atacou o comunismo, escapando assim de cair nas malhas que acabaram por enredar Delgado. A oposio volta a apoiar Delgado Como Galvo j no servia, voltou-se a propor Delgado como bandeira. O general, de passagem por Marrocos, quando da revolta de Beja, conversou com os nacionalistas da CONCP, deixando-lhes uma impresso favorvel. Mrio de Andrade11, Marcelino dos Santos e Aquino de Bragana eram indivduos que tinham sado de Angola, Moambique e Goa respectivamente 15 a 20 anos antes. Tinham fraqussimas possibilidades de encabear movimentos de luta armada. E sabiam bem que no seriam acolhidos de bom grado nas fileiras da UPA. Da o seu interesse em patrocinar um movimento anti-salazarista na metrpole com o qual pudessem contar no futuro para os ajudar a ascender ao poder. Quando Piteira Santos chegou a Rabat parece que os dirigentes da CONCP j tinham abordado Cunhal sobre a questo de Delgado, como cabea duma frente a ser formada. Mas a hora ainda no tinha chegado. Para negociar efectivamente com Cunhal, era preciso ter o trunfo de Argel nas mos. Piteira entusiasmou-se logo com o projecto Pablo-CONCP. No s iria conseguir a colaborao de Delgado como os seus projectos eram mais vastos. Tambm falava

em Rui Lus Gomes12 e outros universitrios portugueses de renome. A Universidade de Argel, outrora a segunda da Frana, abandonada pelos franceses, carecia de docentes. Atravs de Pablo, convenceu Ben Bella a oferecer uma cadeira ao distinto matemtico portuense, na altura exilado no Brasil13. Os contornos do plano acima relatados foram traados, sem inibies, nas conversas que eu e Carlos Lana tivemos com Aquino e Pablo. Para ambos, Fernando Piteira Santos representava uma pea chave. Pablo andava deliciado com o portugus. A melhor referncia que este podia colher junto dos trotskistas era ser um expulso do PCP e simpatizante dos jugoslavos. Aquino apreciava tambm o facto de Piteira ser um comunista dissidente. Carlos Lana e eu nutramos mais simpatias pelas teses chinesas e desconfivamos dos jugoslavos. Pablo insistia connosco, em vo, para que fossemos com ele Embaixada da Jugoslvia, que frequentava com assiduidade. Os Jugoslavos eram os nicos, dos pases de leste, que tinham ajudado a FLN argelina, mas nem por isso vamos utilidade em conhec-los. Carlos Lana j conhecia Piteira de Lisboa, tal como eu, e quando nos encontrmos em Rabat o futuro dirigente da FPLN mostrou-se extremamente afvel. No hesitou em falar dos seus projectos, tentando captar-nos como aliados. O facto de Carlos ter passado muitos anos em Moambique longe das intrigas de Lisboa valia como recomendao. O meu prestgio vinha do Oldest Ally e de ter uma prxima edio em francs e espanhol; e ser uma pessoa com contactos em Inglaterra que lhe poderiam ser teis, o que, sem dvida, o influenciou favoravelmente. As nossas reaces, porm, foram de desconfiana. Numa das nossas primeiras conversas, Piteira Santos emitiu uma frase lapidar que nos ps logo de sobreaviso: Ns temos de adquirir as armas antes que eles as tenham. Referia-se aos africanos. Ento seguiu-se o velho debate sobre a unidade antifascista. Mas Piteira era um aprendiz astuto: as suas conversas com Pablo e o ambiente anti-colonialista de Rabat rapidamente o convenceram da necessidade de modificar o seu discurso, pelo menos connosco e com os nacionalistas da CONCP. Com Aquino de Bragana tivemos um convvio dirio. Arranjmos um apartamento no mesmo prdio, onde igualmente habitavam Amilcar Cabral e a famlia, sendo frequentes os seres at altas horas. Aquino era um companheiro sedutor,. inteligente e culto maneira parisiense Tinha uma enorme admirao por Amilcar Cabral e Mrio de Andrade, mas mal sabia esconder a sua condescendncia para com os africanos em geral, especialmente os de pura raa negra. Para ele a chave da independncia colonial passava por um entendimento com os portugueses e no parecia ter muita confiana no xito de qualquer luta armada. Eu sou capaz de negociar com o prprio Salazardizia muitas vezes, algo vaidosamenteo essencial exercer a presso necessria para que ele venha a aceitar conversas connosco, recusando-as UPA. Enquanto Aquino insistia comigo, dizendo que eu tinha o dever de fazer um grande livro sobre o nacionalismo angolano, eu e Carlos Lana comemos a sentir que tnhamos cado num enleio cujas implicaes ainda no eram muito claras. Piteira Santos tinha outros aliados alm de Pablo. Era demasiado perito em intrigas para se entregar totalmente ao dirigente da Quarta Internacional trotskista, embora tivesse com este as maiores afinidades polticas. Atravs da CONCP, entretinha tambm relaes com personalidades que eram mais do agrado dos comunistas. Uma delas era Jacques Vergs, advogado francs, de origem franco-vietnamita. Antigo dirigente da Unio Internacional de Estudantes, com sede em Praga, ntimo amigo de Alexandre Chelepine, que veio a ser chefe do KGB, Vergs gozava de enorme prestgio entre argelinos e inmeros intelectuais franceses14. Naturalizou-

se argelino, converteu-se religio muulmana, casou com uma das grandes heroinas argelinas, Djamila Bouhired, e instalou-se em Argel. Foi o primeiro director do semanrio Rvolution Africaine, que depois se tornou rgo do partido FLN. Vergs era tido, na altura, por maosta e concorria com Pablo no controlo dos revolucionrios de diversas nacionalidades que afluam a Argel. Desde o incio seria amigo e protector da CONCP e, portanto, tambm disposto a ajudar Piteira. Conheci-o atravs do Aquino e ele logo me contratou para trabalhar no semanrio que ia dirigir. Outro poderoso protector de Piteira foi o notrio rseau Curiel, dirigido por Henri Curiel, um antigo secretrio-geral do Partido Comunista do Egipto15. A fama deste rseau era bastante sinistra e dizia-se que mantinha boas relaes com o PCP e com a polcia francesa. De tal modo que, quando Delgado nos ltimos dias rompe com os patriticos, o reseau Curiel conseguiu penetrar na organizao do general portugus. Os sonhos de Piteira Ainda em Rabat, Piteira sonhava com um Governo Portugus no Exlio, segundo o modelo do Governo Republicano Espanhol. Com sede na Arglia, presidido por Delgado e com o prestgio dos votos recebidos por este nas eleies de 1958, e ainda rodeado por nomes de destaque que lhe deviam os lugares, Piteira disporia finalmente de um trampolim para o assalto ao poder em Portugal e, se este demorasse, ao menos marcaria a sua posio como rival de Cunhal na lderana da oposio anti-salazarista. Vale a pena insistir nesta fase inicial do nascimento do grupo de Argel. Se no se entender o alcance do plano, ser difcil perceber a actuao desesperada e o fel de Piteira (como diria Delgado mais tarde), quando comeou a verificar o colapso dos seus esquemas. Na realidade, para muito boa gente afastada dos acontecimentos difcil, hoje como ontem, acreditar em tanto dio e tanta loucura como, trs anos depois, se verificou com o grupo de Piteira. Em retrospectiva, toda essa conspirao parece mirabolante. Teria Piteira Santos acreditado verdadeiramente que a Arglia iria ajudar numa invaso armada de Portugal? Teria ele realmente pensado que iria arranjar centenas de tcnicos portugueses para a Arglia? Teria ele imaginado que fosse possvel domesticar Delgado ou manipular lvaro Cunhal? Quem conhea a experincia portuguesa de 1974-75 sabe que o ambiente revolucionrio intoxicante para os espritos mais ambiciosos e permite todos os sonhos. Na frica do Norte o ambiente da segunda metade de 62 era esse. Depois de terem sido marginalizados durante tantos anos pelos comunistas ortodoxos, tanto o portugus como o grego Raptis andavam agora eufricos. Piteira Santos estava embriagado com as entrevistas que Pablo lhe conseguira com o chefe de Estado argelino. mesa do caf, num hotel de Argel, onde nos encontrmos por ocasio das festas da independncia, em Novembro de 1962, e na vspera da sua partida para Frana, falou-nos das negociaes que iria ter com outros exilados portugueses. Mal continha o seu delrio. Realmenteexclamou ns, da oposio portuguesa, temos sido muito saloios. Faltaram-nos iniciativas. Mas isso tudo acabou. Agora que estou tu-c, tu-l com Ben Bella, por que no havia tambm de estar tu-c, tu-l com De Gaulle?. No de admirar que Piteira andasse to optimista. Tinha encontrado a chave que lhe abrira o porto do seu isolamento. Depois das festas da independncia em Argel, com Ben Bella instalado no palcio do governo e Pablo num gabinete ao lado,

Piteira partiu para a Europa. Foi ao encontro dos outros exilados e de Cunhal, convencido de que agora seria ele a mandar. Em Dezembro de 1962, teve lugar em Roma a primeira conferncia da FPLN. Piteira Santos era indubitavelmente o grande do encontro. Estava no auge da sua carreira. Cheio de promessas, conseguiu lanar a empresa patritica. Delgado, que no podia ainda sair do Brasil por falta de passaporte, fez-se representar pelo Manuel Sertrio Marques da Silva16. Relutante, o PCP entrou no jogo, hesitando em mandar quadros seus a esse imprevisvel pas rabe, muulmano e oficialmente anti-comunista17. Porm, j no podia ignorar Fernando Piteira Santos.Referncias 1. Esse nmero hoje contestado em alguns meios. Os mais conceituados especialistas, porm, confirmam a estimativa feita j em 1962. Ver Michael Kettle, De Gaulle and Algeria 1940-1960, Londres, Quartet Books, 1993, e Alistair Horne, A Savage War of Peace, Londres, Macmillan, 1996. 2. Ver a narrativa de um ex-dirigente comunista argelino, Amar Ouzegane, que abandonou o PCA para juntar-se FLN. Le meilleur combat, Paris, Julliard,1962. 3. S quando o fim se aproximava que alguns sectores do PCF comearam a participar nos reseaux. 4. Agrupamento de seguidores de Lon Trotsky, assim chamado por combater a Terceira Internacional, patrocinada pela URSS. Depois do assassnio do seu fundador, a IV Internacional sofreu vrias cises e j na poca da guerra da Arglia existiam outros grupos reclamando do mesmo nome. Refere-se aqui IV Internacional dirigida por Ernest Mandel, Pierre Frank e Michel Raptis, este ltimo j em conflito com os dois primeiros. 5. Aquino de Bragana, nascido em Goa, tinha vivido alguns anos em Moambique. Depois emigrou para Frana onde travou conhecimento com os nacionalistas africanos, estabelecendo se mais tarde em Marrocos onde leccionava Matemtica. 6. Marcelino dos Santos, natural de Moambique. 7. Contava-se que Marcelino dos Santos, enquanto estudante em Paris, prestara servios ao ento prncipe herdeiro de Mohamed V, quando os marroquinos ainda lutavam pela independncia do antigo protectorado francs. 8. O diferendo MPLA-UPA tratado em pormenor na Sexta Parte. 9. Ver Rol de Personagens. 10.Ver Rol de Personagens. 11.Mrio Coelho Pinto de Andrade, nacionalista angolano e um dos fundadores do MPLA, 12.Ver rol de Personagens. 13.Ruy Lus Gomes no apareceu e Piteira atribuiu o fracasso aos preconceitos catlicos da esposa do professor que, diaia, no querer ir para um pas muulmano. 14.Vergs ganhou notoriedade internacional quando, anos mais tarde, assumiu o papel de advogado de defesa do nazi Kllaus Barbie e, actualmente, do terrorista Carlos, nos tribunais franceses. 15.Christopher Dobson e Ronald Payne, autores do The Dictionary of Espionage, Londres, Harrap, 1984. referem Curiel como pessoa misteriosa que tinha ficheiros no s na DST

(servios franceses de contra-espionagem) mas tambm em muitos servioa secretos do mundo- (p.35). Ainda segundo aqueles autores, pensa-se que ele, aps a expulso do Egipto por Nasser, tenha comeado a trabalhar para o KGB NA Europa Oriental. Curiosamente, era primo do espio britnico, George Blake,condenado a 42 anos de priso por espionagem a favor dos soviticos. Curiel acabou por se instalar em Paris e envolveu-se com grupos de apoio s organizaes terroristas e de libertao na Europa, na Amrica Latina e na frica do Sul. Os servios franceses acreditavam que ele fornecia aos russos informaes respeitantes a tais organizaes. A vida de Curiel terminou em 1978 quando foi assassinado em Paris por homens armados no identificados. 16.Advogado exilado no Brasil, foi durante algum tempo ntimo de Delgado. Ver Quarta e Quinta Parte e rol de Personagens. 17.Pouco antes, Ben Bella proibiu o PC Argelino.

~~~~~~ Segunda Parte

A FRENTE PATRITICA DE LIBERTAO NACIONAL3. PITEIRA SANTOS INCIA O SEU CONSULADO

O reino de Piteira comea mal Nesse final de 1962, parecia realmente que tudo iria correr bem para a empresa de Piteira. Contudo, logo de incio, a situao j comeava a fugir-lhe das mos. Argel, nos primrdios da independncia, era uma grande cidade abalada pela fuga em massa de mais de metade dos seus habitantes. Porto importante do Mediterrneo, assemelhava-se em tamanho, e at na topografia, a Lisboa da poca, com imponentes prdios de andares de luxo e bairros residenciais, com moradias e jardins, onde outrora habitavam os pieds noirs (os colonos). Agora a administrao, o policiamento e a maior parte do comrcio estavam nas mos de argelinos, quase todos inexperientes. Muitos aproveitavam a confuso para traficar em tudo e com todos. Entrava-se em qualquer repartio, at ao gabinete da presidncia da Repblica, passando facilmente por recm-nomeados contnuos analfabetos. As casas estavam a ser ocupadas por argelinos vindos dos bairros de lata, muitas vezes individualmente, mas tambm por intermdio de grupos de aventureiros que depois faziam fortunas no subaluguer. A cidade enchia-se de ex-combatentes desempregados e igualmente de marginais camuflados de nacionalistas. Toda a gente tinha armas. Como costumava dizer Pablo: era muito fcil contratar um assassino para eliminar um inimigo, pelo preo de uma cerveja. Apesar da situao catica e, inconcebivelmente, depois de uma guerra atroz, no havia o mnimo racismo. Os argelinos de todas as classes acolhiam de braos abertos nos amis europens qui viennent nous aider. A sbia poltica da FLN durante a guerra, que conseguira a mobilizao de tanta simpatia internacional, conquistara tambm o povo argelino para a amizade, at com os prprios franceses. Muito antes de Piteira conseguir montar o seu aparelho ditatorial, uma dezena de portugueses apareceu em Argel e arranjou, individualmente, emprego, alojamento e escolas para os filhos. A maioria eram mdicos. Alguns tinham estado em

Marrocos. Outros vieram directamente de Portugal, via Marrocos. Todos tinham contactos com a CONCP. Eram oposicionistas ao regime de Salazar e desafectos guerra colonial. Uns eram simpatizantes do PCP, mas tinham vindo sem consultar o partido. Chegavam de boa f, sem pensar em fazer revolues, mas simplesmente para escapar ao Portugal de Salazar. Levavam uma boa dose de idealismo - iam ajudar um pas martirizado - e naturalmente com ambies profissionais de encontrarem condies de trabalho que talvez no tivessem em Portugal. No sabiam nada dos projectos de Piteira. Para entrar na Arglia e depois obter colocao nos hospitais, bastava uma recomendao da CONCP em Rabat. Nem o controlo das fronteiras, nem a mquina burocrtica dos ministrios, nada disso funcionava ainda. No era preciso qualquer equivalncia de diplomas - todos eram bem-vindos. Tornava-se evidente que os dirigentes da CONCP no tinham acertado convenientemente todos os pormenores com Piteira. Depois da primeira conferncia da FPLN, Piteira Santos demorou-se na Europa. Constava que teria ido conhecer Moscovo e os pases de leste. Mas no se soube ao certo dos seus passos. O que facto que o primeiro emissrio oficial da FPLN que apareceu em Argel, logo no incio de 1963, foi o engenheiro Manuel Tito de Morais1 devidamente credenciado pela FPLN, e incumbido de se dirigir directamente a Pablo. Conheci-o em Paris por intermdio de Piteira Santos, quando por ali passei em servio do jornal Rvolution Africaine. Conheci-o em casa desse velho e distinto angolano Cmara Pires2, sempre amigo de portugueses e africanos, onde se reunia um numeroso grupo de exilados e onde Piteira Santos brilhava. Em Argel, alberguei Tito de Morais em minha casa durante trs noites e, a pedido de Piteira, apresenteio a Pablo. Tito comeou logo por se assustar com a notcia da presena em Argel de mdicos portugueses - e ainda mais assustado com a confuso evidente da vida argelina. No entanto, ambientou-se rapidamente. Pablo arranjou-lhe lugar como engenheiro encarregado da instalao elctrica do Hospital Moustapha; dentro em pouco, chegaria a esposa, Maria Emlia Tito de Morais, que foi colocada por Pablo no Ministrio da Sade, numa repartio que tratava da contratao de pessoal mdico estrangeiro. Semanas depois, quando Piteira voltou definitivamente a Argel, j o seu ajudante Tito estava, atravs de Pablo e de Vergs, em plena actividade a montar o bureau da FPLN, os seus meios de propaganda e o controlo dos portugueses. Tambm j estava empenhado no que se tornou a sua preocupao principal, isto , a colocao da sua numerosa famlia na administrao argelina. Mas o mal estava feito. Os portugueses que haviam chegado individualmente comeavam a libertar-se a pouco e pouco da censura oposicionista. semelhana de Portugal, logo aps o 25 de Abril, toda a espcie de literatura poltica estava venda nas ruas de Argel. Nos cafs encontravam-se revolucionrios, exilados polticos, idelogos e aventureiros de todos os quadrantes. Havia figuras pitorescas e algumas sinistras. Havia personagens claramente loucas, outras mais convincentes. O ambiente, nesses primeiros meses da independncia, era dum calor humano extraordinrio. As amizades e camaradagens formavam-se (e desfaziam-se) nas esplanadas e nos cafs, nesse Inverno cheio de sol. Pela primeira vez na vida, os portugueses tomaram conhecimento do complexo mundo que as duras censuras na me-ptria lhes tinha ocultado. Descobriram atnitos - que no fora o Partido Comunista Argelino a fazer a revoluo, mas a FLN, anti-comunista. Ouviram queixas de nacionalistas africanos contra o PCP; descobriram, enfim, que podia ser-se de esquerda e criticar, alto e bom som, os comunistas sem ser apodado de PIDE ou ser denunciado PIDE.

A velha chantagem: o perigo da PIDE Quando Piteira finalmente chegou, encontrou uma boa dezena dos seus potenciais quadros j familiarizados com o caos de Argel e com contactos e amizades argelinas; confusos, certo, quanto ao futuro, mas independentes da sua chefia. Havia pior: esses portugueses estavam a incentivar, sem consultar a FPLN, a vinda de outros. Piteira, sempre ajudado por Pablo e por outros conselheiros estrangeiros, procurou pr cobro a esse descontrolo. O governo argelino tinha fechado o consulado de Portugal e no havia relaes diplomticas. Em Fevereiro de 1963, abriu-se oficialmente, na presena de Ben Bella, o bureau do MPLA. Com o pretexto de salvaguardar os nacionalistas angolanos da penetrao da PIDE em territrio argelino, a FPLN ficou ento encarregada de tudo o que dizia respeito colnia portuguesa. A entrada de um cidado portugus na Arglia necessitaria doravante de uma recomendao da Comisso Delegada da FPLN ao governo argelino, que a transmitiria aos seus consulados em Frana e noutros pases. A Comisso Delegada era composta por Piteira Santos, Tito de Morais e Ruy Cabeadas. Uma vez na Arglia, o cidado portugus s arranjaria emprego atravs da Frente - a maioria composta por mdicos - e l estava a mulher de Tito no Ministrio da Sade. Quanto a alojamento (um ponto muito quente, porque havia belas casas para quem tivesse cunhas), Pablo estava directamente ligado ao departamento dos biens vacants - as propriedades e casas abandonadas pelos colonos. Deste modo, Piteira e Tito pois Cabeadas tinha pouco peso - controlariam a colnia portuguesa. O complot de Rabat ia tomando corpo. Mas havia ainda muitos problemas: primeiro, o j referido grupo de pioneiros, que em certa medida escapava ao controlo da FPLN; mais grave ainda, faltava dinheiro. O Estado argelino mostrava-se disposto a ajudar com casas e empregos, todavia a ajuda financeira foi sempre, mesmo para os africanos, exgua. Esta deficincia era gravssima para os planos de Piteira: arriscava comprometer as suas negociaes delicadas com o partido de Cunhal. Este podia no gozar duma base no Mediterrneo, porm no lhe faltavam apoios econmicos dos pases de Leste. Piteira enfrentava esse problema premente de todos os que pretendem governar: onde ir buscar o dinheiro? A soluo encontrada, foi a tradicional: os impostos aos seus sbditos. As peculiares relaes entre a Arglia e a Espanha Antes de descrever a luta de Piteira para a consolidao do seu domnio sobre a colnia portuguesa, vale a pena examinar o fundamento da argumentao que ele apresentou aos argelinos e aos portugueses para justificar as suas pretenses. S os menos informados podiam aceitar o raciocnio segundo o qual havia possibilidades de a FPLN evitar a infiltrao da PIDE em territrio argelino. Em primeiro lugar, a Arglia, apesar de ter sido uma provncia francesa, tinha um amplo sector da sua populao rabe, principalmente no litoral, de Oro at a fronteira marroquina, que falava espanhol, e muitos colonos eram espanhis. Em segundo lugar, durante a guerra contra os franceses, a FLN encontrara uma base segura em Madrid. Os argelinos consideravam a Espanha, apesar do regime franquista, como um pas aliado. Desde o incio, o novo Estado desenvolveu ptimas relaes com o governo espanhol. Pode citar-se um caso que muito chocou os recm-chegados de Portugal mas que, em retrospectiva, se torna bastante significativo.

Em 1963, alguns anti-franquistas foram condenados morte em Espanha. A esquerda europeia mobilizou-se em sua defesa. Esquerdistas na Arglia tentaram organizar uma manifestao junto Embaixada de Franco. Ao contrrio do que sucedeu anos mais tarde em Portugal, a Embaixada espanhola no foi saqueada: a manifestao foi dispersa com violncia e os manifestantes presos pelos militares argelinos em sinal de amizade para com Espanha. Os exilados portugueses ficaram horrorizados. Comearam a perguntar-se qual a sua segurana contra a PIDE num pas to benevolente para com os amigos da polcia portuguesa. Comearam tambm a interrogar-se acerca da validade das pretenses de Piteira, de servir de baluarte contra a vinda oculta de PIDES a Argel. Estas interrogaes persistiram e recrudesceram.

4. PREPOTNCIAS Dezoito meses turbulentos Os dezoito meses decorridos entre a instalao da FPLN na Arglia e a chegada do general Delgado em Junho de 1964 foram tumultuosos. Os camponeses argelinos no s ocuparam as grandes empresas agrcolas dos antigos colonos, como se iniciou a famosa experincia autogestionria, influenciada pelas ideias trotskistas de Pablo (decalcadas dos jugoslavos), e cuja rentabilidade econmica se revelou desastrosa. Afirmava-se, em discursos inflamados, a solidariedade com Cuba e a vontade de apoiar a 'Revoluo Africana'. No plano poltico interno houve, pelo menos, duas tentativas de revolta contra o regime de Ben Bella e, na fronteira, uma guerra com Marrocos. Os movimentos nacionalistas das colnias portuguesas, reunidos na CONCP, ficaram abalados com o reconhecimento dado pela Organizao de Unidade Africana (OUA) FNLA de Holden Roberto e com a vinda para Argel de representantes desse movimento3 . As actuaes um tanto inslitas do prprio Presidente Ben Bella quanto moralidade sexual deixaram os europeus de boca aberta: o dirigente argelino tinha o hbito bizarro de percorrer, escoltado, as ruas de Alger altas horas da noite e irromper nos apartamentos suspeitos de albergar casais 'ilcitos'. Apanhados in flagrante os infelizes pecadores eram logo despejados e, muitas vezes, presos. Os portugueses sentiam-se desorientados e inseguros nesse mundo estranho e turbulento de conspiraes que se sucediam umas s outras. As certezas ideolgicas aluram sacudidas pelas contradies flagrantes da poltica argelina e os portugueses, orgulhosos das suas ideias esclarecidas (eles e elas no eram todos progressistas?), sentiam-se revoltados perante o islamismo obscurantista que tanto inferiorizava a mulher rabe. Uma burocracia, pesada e incompetente, instalara-se na administrao e o medo no esprito de todos. Ao fim de poucos meses j havia, entre os exilados, quem fizesse comparaes com o Portugal de Salazar, nada favorveis Arglia. Para nos apercebermos do ambiente que o general Delgado foi encontrar quando finalmente conseguiu chegar a Argel, teremos de descrever a traos largos o que foi esse ano e meio no seio da colnia portuguesa. Como vimos, a nova Arglia independente no oferecia, nem aos exilados portugueses nem aos nacionalistas africanos, qualquer garantia de estarem mais ao abrigo da PIDE do que em qualquer pas da Europa ocidental. Bastava a um agente da PIDE, falando castelhano, arranjar passaporte espanhol para poder entrar e permanecer sem problemas em territrio argelino. Dado o nmero de argelinos que

falava espanhol, tanto rabes como colonos, o mesmo agente no teria, at, dificuldade em fazer-se passar por nativo. Se a PIDE porventura no tinha nas suas fileiras agentes to versteis (ela que, segundo a oposio anti-salazarista, seria a polcia poltica mais eficiente do mundo), ento sobrava-lhe outro meio directo e eficaz de vigiar os portugueses: atravs da polcia espanhola, sua aliada, instalada oficialmente em Argel, capital da Repblica Democrtica e Popular, e cujo regime se considerava socialista. Em 1963 j constava, e mais tarde colhi pessoalmente a prova absoluta disso, de que a nova polcia argelina estaria a ser treinada pela polcia de Franco. No se tratava da polcia de segurana pblica e sim da polcia de informao e controlo de estrangeiros. Naturalmente que aos argelinos assistiam razes por to inesperada escolha de professores de artes policiais, evitando o recurso ajuda da polcia francesa. No cabe aqui seno constatar o apoio espanhol que anulava qualquer argumentao dos dirigentes da FPLN de justificarem o seu papel de policiamento dos portugueses. Piteira e o seu grupo foram sempre perfeitamente impotentes para impedir o ingresso de agentes salazaristas em territrio argelino. E sabiam-no muito bem. To pouco isso os apoquentava. Tratou-se simplesmente de um pretexto - o velho papo de que se serviram - para impedir que fossem para a Arglia elementos da oposio susceptveis de contestar a sua hegemonia, evitando ao mesmo tempo que, os que j l estavam, escapassem ao seu controlo. Pretenses policiais O direito ao policiamento dos portugueses que a FPLN conseguiu das autoridades argelinas, atravs sobretudo de Pablo, teve consequncias dramticas para alguns membros da colnia portuguesa - consequncias que s podem ser verdadeiramente apreciadas por quem conhece de perto os problemas com que se depara o exilado poltico. Nesses tempos, o passaporte portugus tinha validade por dois anos. Um indivduo que chegasse ento Arglia, portador de um passaporte portugus, tinha na melhor das hipteses um mximo de dois anos durante os quais podia sair livremente do pas. Contudo, havia muitos que chegavam com passaportes mais antigos. E, sem consulado portugus, no havia onde renov-los. Para viajar com passaporte caducado os portugueses tinham que adquirir um titre de voyage de refugiado poltico, emitido pelo Ministrio dos Negcios Estrangeiros argelino (como representante das Naes Unidas, na emisso de tais documentos). E para provar a condio de refugiado tinham que recorrer FPLN na pessoa de Piteira Santos que representava esse organismo junto das autoridades argelinas. O significado de tudo isto era que um portugus que quisesse deixar a Arglia enfrentava dificuldades, o mesmo acontecendo com outros que necessitassem sair temporariamente para encontrar familiares, por exemplo em Frana: precisavam ter uma licena dos 'patriticos'4. Entretanto, os donos da Frente viajavam a seu bel-prazer. A prpria esposa de Piteira Santos, D. Estela, esteve vrias vezes em Lisboa, onde segundo se dizia at jantava com ministros do governo salazarista! Assim, a direco da FPLN passou a ter uma valiosa arma contra a dissidncia. Foram ao ponto de exigir que, chegada, os portugueses lhes entregassem os passaportes. O que Piteira, afinal, ambicionava era ter o mesmo poder sobre os portugueses de Argel que Cunhal tinha na URSS sobre Chico da CUF5 e outros. A FPLN tentou ser tanto a porta de entrada como de sada da Arglia. Com este instrumento fundamental para o controlo das suas fronteiras, Piteira comeou a organizar o seu reino. Logo de incio principiou a experimentar a sua arma: pessoas que queriam mandar vir cnjuges ou parentes tinham de entrar na ordem ou ento aconteciam demoras

inexplicveis na transmisso do aval da FPLN. Piteira julgou que as bases estavam finalmente estabelecidas para iniciar tambm a sua poltica fiscal. A formao da JAPPA Segundo as decises da primeira conferncia da FPLN, em Dezembro de 1962, Piteira Santos, Tito de Morais e Ruy Cabeadas constituram a chamada Comisso Delegada provisria da FPLN. A Frente no era mais do que uma dessas vrias tentativas de agrupamento de oposicionistas na ampla unidade sempre pregada por Cunhal. A novidade que Piteira Santos se encontrava em destaque, pela primeira vez, e sonhava dominar a Frente a partir de Argel. Entretanto, o PCP continuava a hesitar em mandar quadros seus. Concentrava-se ainda na consolidao de organismos montados dentro de Portugal. Estes organismos intitulavam-se Juntas de Aco Patritica (JAPs), para as quais se tentava recrutar anti-salazaristas de vrios quadrantes, mas sempre sob a direco oculta do PCP, maneira dos mais recentes MDP, FEPU, APU e CDU. Muito cedo, motivadas pelo alastramento das teorias de guerrilha da revoluo cubana, comearam as dissidncias dentro das JAPs que, no entanto, abrangiam uma nfima parte da populao portuguesa. Definiram-se duas linhas: a mais passiva, dos cunhalistas, visava conquistar a opinio contra a guerra no ultramar e contra a ditadura, num sentido unitrio (a velha tcnica de arranjar uma plataforma, onde fosse mais fcil captar adeptos para o partido); a outra era o comeo duma linha mais esquerda do PCP, que falava em luta armada e, em alguns casos, em luta de classes - conceito h muito tempo banido da propaganda unitria. volta destas duas linhas muito se tem escrito e muito se escreve ainda. Os vrios ramos da famlia marxista gastaram rios de tinta citando, cada um em seu favor, todo o panteo marxista, desde Marx a Trotsky, de Rosa Luxemburgo a Mao. Estes exerccios eram, e so, perfeitamente escolsticos: a querela foi sempre entre os pr-soviticos que queriam aproveitar as oportunidades para alargar a sua influncia, e os restantes, menos cnicos, que tinham outros objectivos. Mas a querela veio a ter os seus reflexos na Arglia, prejudicando, assim, os planos de Piteira. Formaram-se JAPs no estrangeiro entre pequenos ncleos isolados da emigrao portuguesa e naturalmente, entre os portugueses de Argel. A Junta de Aco Patritica dos Portugueses da Arglia (JAPPA), formada na primeira metade de 1963, veio a ser o palco de contestao do reino de Piteira e do seu grupo da Comisso Delegada e, em 1964, converter-se-ia no ncleo de apoio a Delgado. A princpio Piteira no se ops formao da JAPPA. Para levar a efeito os seus projectos, havia convenincia em enquadrar os portugueses e as JAPs eram tidas como os organismos de base da FPLN. S que Piteira no estava habituado a ter de enfrentar as bases e falar com elas abertamente, longe dos cafs ou encontros clandestinos de Lisboa, onde assembleias e debates no eram possveis. Quando abordou a questo de cotizaes (ou impostos a cada portugus), mencionando nmeros como 15 ou 20 por cento dos ordenados, encontrou logo resistncia e essa clssica reivindicao que, quase dois sculos antes, tinha resultado na Revoluo Americana contra a Inglaterra: No taxation without representation6. Importa referir os ordenados dos tcnicos portugueses na Arglia. Estes ganhavam sensivelmente menos que os cooperantes oficiais franceses, cujo governo os subsidiava. Em mdia, os mdicos auferiam volta de 3.000 dinars mensalmente, com 30 por cento pagos em francos suos, enquanto um mdico francs ganhava mais do que o dobro. Mas mesmo este ordenado, relativamente reduzido, significava aproximadamente vinte e tal contos mensais, o que, no Portugal da

altura, no era de desprezar. Muitos portugueses eram casados e a mulher normalmente tambm trabalhava. Havia, portanto, agregados familiares cujos ganhos bsicos perfaziam quarenta e tal contos por ms, 30 por cento dos quais iam directamente para um banco estrangeiro. As rendas de casa eram baixssimas, seno mesmo existentes, e o custo de vida igualmente baixo. Um movimento dirigido por gente honesta e capaz teria, provavelmente, contado, com o apoio generoso dos exilados portugueses. Porm, na situao imposta por Piteira, isso no aconteceu7. Todos queriam naturalmente saber o que se pretendia fazer com as cotizaes. Piteira Santos no exercia qualquer actividade profissional - seriam as cotizaes destinadas sua manuteno? Mas quem o havia escolhido como funcionrio-chefe da FPLN? O ambiente argelino de demagogia revolucionria em que se vivia, fornecia um sem-fim de argumentos para criticar a orientao da FPLN e do PCP. O comportamento ditatorial de Piteira, quanto s entradas e sadas do pas, gerava um surdo descontentamento. O nepotismo flagrante da famlia Tito de Morais que chegou, em 1964, a compreender uma dezena de pessoas, todas bem colocadas, j se tornava um escndalo. A vocao permanente do cl Tito de Morais O general Humberto Delgado, num comunicado de 5 de Dezembro de 1964, descrevendo a oposio portuguesa em Argel, disse, entre outras coisas: Uma tera parte constituda por uma famlia bem conhecida por representar um caso tpico de nepotismo camuflado em perseguio poltica8. Referia-se famlia chefiada pelo engenheiro Manuel Tito de Morais. Dois exemplos servem para exemplificar o que Delgado queria dizer. Uma filha do futuro ex-secretrio de Estado do Emprego no novo Portugal foi um dos primeiros membros da famlia a arranjar emprego na Arglia. A jovem, embora licenciada em medicina em Portugal, no cumprira o estgio. Os colegas que a conheciam afirmavam que apenas tinha frequentado umas aulas de psicologia na Suia. Mas com a madrasta no Ministrio da Sade a jovem mdica foi colocada como directora de uma clnica psiquitrica para crianas argelinas traumatizadas pela guerra, crianas que, na sua quase totalidade, s falavam rabe. O caso da 'enfermeira sequestrada', que foi descoberto acidentalmente por Viriato da Cruz, dirigente angolano9, e ouviu a histria da boca da prpria vtima. Um dia, num caf da baixa de Argel, Viriato foi abordado por uma senhora portuguesa cuja cara no lhe era desconhecida. A senhora, bastante perturbada, disse-lhe que o tinha visto uma vez de visita casa onde ela era forada a viver, por isso imploroulhe que a ajudasse. Era enfermeira, sem marido e com um filho de 16 anos e graves problemas econmicos. Nada sabia de poltica, mas como quis emigrar de Portugal recebeu uma carta da famlia Tito dizendo que havia empregos bem pagos para enfermeiras nos hospitais de Argel. Deste modo, foi para l atravs da Frente Patritica. H meses que vivia em casa de familiares do Tito de Morais, mas sem trabalhar como enfermeira. O cl tinha-lhe tirado o passaporte logo chegada, dizendo ser necessrio para tratar do emprego. Entretanto, em casa deles olhava pelos meninos. As semanas foram passando, mas de emprego como enfermeira nada. A senhora no falava francs, no conhecia ningum em Argel e no sabia a quem se dirigir. Comeou a ficar desesperada. Finalmente tinha exigido uma resposta definitiva. Os familiares de Tito disseram-lhe que j no havia necessidade de enfermeiras estrangeiras, que ela podia continuar em casa deles a cuidar dos meninos e at lhe davam dinheiro para pequenas despesas. A senhora ento exigiu o passaporte para poder voltar para Portugal; porm, o passaporte nunca mais aparecia.

Viriato da Cruz, ao descrever-me este encontro, estava visivelmente emocionado. Tinha reconhecido a mulher. Tratava-se de uma pessoa que ele presumira ser criada da famlia Tito10. ' um verdadeiro caso de sequestro!' exclamou Viriato. 'Eu sei que faltam enfermeiras! Eu no posso ajud-la - vejam l o que podem fazer!' Eu e o meu marido corremos os portugueses a contar o caso, com aviso de que iramos publicar os pormenores na imprensa. Pouco depois soubemos que a senhora tinha conseguido o passaporte e se fora embora. No me esqueo do comentrio de Viriato: 'Ento com gente como os Titos de Morais que se pretende construir a democracia em Portugal?' 5. COMEAM AS DISSIDNCIAS Enquanto as crticas direco de Piteira aumentavam dentro da JAPPA, fora dela tambm cresciam. Afinal, o problema de controlar a minscula colnia portuguesa estava a tornar-se bastante mais complexo do que o previsto em Rabat. Alm do primeiro grupo de pioneiros, idos sem autorizao de Piteira e que depois entraram, crticos, na JAPPA, havia tambm portugueses que ficavam margem da FPLN. Eram brancos de Moambique e Angola mais interessados na situao do ultramar do que na poltica metropolitana. Muitos tinham as suas prprias ligaes com os nacionalistas (em parte, do tempo da Casa dos Estudantes do Imprio, em Lisboa) e, atravs deles, conseguiram ir para a Arglia, recusando agora entrar para a FPLN. A CONCP, em Rabat, depois da instalao em Argel dos vrios bureaux dos movimentos nacionalistas, passou a ter pouca influncia. O PAIGC e o MPLA tinham delegaes distintas em Argel, a FRELIMO ainda no existia. O MPLA cindira-se em vrios grupos. O gos, Aquino de Bragana, residia em Argel, trabalhando agora na imprensa argelina. Contudo, as lutas entre as diversas faces dos movimentos nacionalistas ficam para tema de outro captulo. So referidas aqui somente para explicar como foi que, depois do complot de Rabat, com a FPLN seguramente fixada em Argel, as prprias divergncias entre os movimentos nacionalistas contriburam para subverter esse domnio monoltico que Piteira Santos pretendia ter sobre todos os cidados portugueses. Piteira esquecera-se de um facto fundamental. No fim de contas, negros ou brancos, cabo-verdianos, angolanos, moambicanos, todos eram ainda juridicamente portugueses e portadores de passaportes portugueses, excepto um pequeno nmero que aparecia com passaportes falsos. As autoridades argelinas, no meio de toda essa confuso, encontravam uma certa dificuldade em distinguir os portugueses das diversas partes do imprio, sobretudo os de pele branca. Outro facto que tambm veio estragar os planos de Piteira foi o influxo inesperado de elementos que no se consideravam simples tcnicos, vindos como cooperantes. Eram revolucionrios atrados Arglia pela esperana duma ajuda concreta para o lanamento da luta armada contra Salazar. O primeiro a chegar foi o indomvel Adolfo Ayala, combatente anti-salazarista desde os anos 30, inmeras vezes preso pela PIDE e companheiro de Delgado na viajem a Beja quando do assalto ao quartel dessa cidade alentejana no dia 1 de Janeiro de 1961. Sara de Portugal na mesma altura que Piteira Santos e, depois de alguns meses em Marrocos, chegou Arglia no princpio de 1963. Ayala era dos poucos cujo nico objectivo na vida era combater a ditadura. No lhe interessava um exlio confortvel, nem o bom ordenado de cooperante, nem o poder poltico. To pouco lhe interessavam as lutas ideolgicas entre as vrias faces. Estava disposto a colaborar com todos os que queriam aco. Esperanado no incio com

as possibilidades prometidas pela FPLN, trabalhava a tempo inteiro como secretrio do bureau da Frente. Muito cedo percebeu que os objectivos de Piteira no eram os seus e tudo fez para congregar a heterognea colnia portuguesa no sentido de unidade para uma aco que pudesse acabar com um exlio que detestava. Insistia sempre na necessidade de chamar o general Delgado para a Arglia e foi o primeiro a suspeitar de que era precisamente essa vinda que Piteira e os seus amigos se esforavam por evitar. A chegada do representante do PCP Quando em meados de 1963 o PCP decidiu finalmente mandar um representante para Argel e instalar l quadros seus, a luta intestina j se tinha tornado endmica. O enviado de Cunhal tentou chamar as pessoas ordem. Mas no foi capaz. Era Pedro Soares, membro do comit central e prottipo do velho estalinista, de falas mansas e muitos 'V. Excelncias' e outros tantos palavres e ameaas quando se sentia contestado. Para avaliar do estalinismo de Pedro Soares e do fosso existente entre as suas concepes polticas e o ambiente argelino, ilustrativo um pequeno episdio. Entre os numerosos revolucionrios do mundo inteiro que passaram por Arglia, de longe o mais carismtico foi Ernesto 'Che' Guevara. J em desacordo com a sovietizao da revoluo cubana, passou vrios meses na Arglia. Adorado pelos revolucionrios utpicos, Guevara era um vizinho incmodo para os adeptos do PCP na Arglia. Qual a reaco de Pedro Soares numa altura em que toda a imprensa argelina louvava Guevara? 'Ento, est c esse crpula?' A presena do Pedro Soares em Argel veio exacerbar as divergncias. Simpatizantes do PCP, em contacto directo na JAPPA com o enviado de Cunhal, aperceberam-se de que no iria partir deste qualquer iniciativa para tornar a FPLN num organismo de luta activa contra o salazarismo. Antes do Vero de 1964, em que chegou a Argel o general Humberto Delgado, vieram mais dois grupos de portugueses que iriam aumentar a confuso e dificultar ainda mais os que queriam monopolizar. Primeiro, foram cinco desertores, entregues FPLN, algo inesperadamente, pelo PAIGC; depois foram elementos da Frente de Aco Popular (FAP), a primeira dissidncia significativa de carcter maoista no interior do PCP. Os desertores eram incmodos por pertencerem a uma classe social com a qual os doutores da Comisso Delegada no estavam habituados a conviver. Quatro t