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7/21/2019 Do Feminismo a Seus Plurais http://slidepdf.com/reader/full/do-feminismo-a-seus-plurais 1/4 316 Estudos Feministas, Florianópolis, 20(1): 313-337, janeiro-abril/2012 O século XX é, por muitos, considerado o “século das mulheres” e, especialmente, do feminismo. Ainda que os fundamentos desse movimento remontem ao século XIX, tal assertiva é corroborada por Heloisa Buarque de Hollanda ao afirmar que as conquistas políticas e sociais, somadas à expansão no mercado de trabalho e no campo cultural, deram visibilidade ao protagonismo das lutas feministas. 1  Tais lutas ganharam especial representatividade a partir das revoltas de 1968 e ao longo da década de 1970. Nesse momento, a desmistificação da castidade, os contraceptivos, as possibilidades de exercício do prazer e da sexualidade, reinvidicados pela revolução sexual, podem ser sintetizados pelo lema “o pessoal é político”. Do feminismo aos seus plurais... Do feminismo aos seus plurais... Do feminismo aos seus plurais... Do feminismo aos seus plurais... Do feminismo aos seus plurais...  História oral, feminismo e política. PATAI, Daphne. São Paulo: Letra e Voz, 2010.

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316  Estudos Feministas, Florianópolis, 20(1): 313-337, janeiro-abril/2012

O século XX é, por muitos, considerado o

“século das mulheres” e, especialmente, dofeminismo. Ainda que os fundamentos dessemovimento remontem ao século XIX, tal assertiva

é corroborada por Heloisa Buarque de Hollandaao afirmar que as conquistas políticas e sociais,somadas à expansão no mercado de trabalhoe no campo cultural, deram visibilidade aoprotagonismo das lutas feministas.1  Tais lutasganharam especial representatividade a partirdas revoltas de 1968 e ao longo da década de1970. Nesse momento, a desmistificação dacastidade, os contraceptivos, as possibilidades

de exercício do prazer e da sexualidade,reinvidicados pela revolução sexual, podem sersintetizados pelo lema “o pessoal é político”.

Do feminismo aos seus plurais...Do feminismo aos seus plurais...Do feminismo aos seus plurais...Do feminismo aos seus plurais...Do feminismo aos seus plurais... História oral, feminismo e política.

PATAI, Daphne.

São Paulo: Letra e Voz, 2010.

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 Atualmente é bastante temerária a tarefade definir precisamente uma única feição aofeminismo, uma vez que tanto sua pluralidadecomo a legitimidade de seu ativismo políticosão reconhecidas especialmente em meiosacadêmicos. Tal complexidade faz com que as

reflexões apresentadas por Daphne Patai em História oral, feminismo e política  sejam muitocontemporâneas e pertinentes.

Daphne Patai é professora de Língua,Literatura e Cultura na Universidade deMassachusetts, EUA. Dedicou-se, durante adécada de 1980 e meados de 1990, ao estudoda literatura brasileira e aos women’s studies. Atualmente assume uma postura crí tica emrelação ao que considera “uma imposição daagenda política feminista em meio acadêmico”.Diz que ainda pensa o feminismo, mas contesta

os women’s studies  por assumirem posturasexcessivamente políticas, tal qual qualquer outrocurso ou programa. Para a autora, que escrevediretamente a respeito de programas euniversidades dos Estados Unidos, esse elementodepõe contra a potencialidade e o caráterinovador que o campo tinha a princípio.

 História oral, feminismo e política  é umacoletânea de textos escritos em momentosdistintos que partem, porém, de uma basecomum. Durante a década de 1980, Pataidesenvolveu uma série de entrevistas commulheres de diferentes grupos sociais e culturaisno Brasil, mais precisamente na região Nordestee no Rio de Janeiro. A pesquisa foi feita a partir dacoleta de testemunhos com a intençãodeclarada de “dar voz” às mulheres. Esse trabalho,publicado na época sob o nome de  BrazilianWomen Speak: Contemporary Life Stories e aindainédito no Brasil, engendrou uma série dequestionamentos sobre as implicações doengajamento feminista e de questões éticasrelacionadas à prática da história oral que, para

a autora, possui uma forte conotação política.Os textos oriundos dessas preocupações foramreordenados e são agora apresentados na formade ensaios provocativos, resultantes de um longatrajetória como professora, escritora e ser humano,segundo as palavras de Patai (p. 18).

O livro é composto de oito ensaios que,mesmo escritos separadamente, dialogam entresi no que concerne aos temas anunciados notítulo. Esses se entrecruzam delineando opensamento inquietante – e por vezes radical –da autora. Patai não se demora em definir

conceitos, privilegiando o estabelecimento deum diálogo direto com o leitor, inquirindo-o aposicionar-se em relação ao que é apresentado.

O texto de abertura chamado “Construindoum eu: uma história oral de mulheres brasileiras”resulta da introdução do trabalho  Brazil ianWomen Speak . Apresenta perspectivas iniciaissobre como Patai pensa a história oral e, aomesmo tempo, determina as balizas de

discussões que serão tecidas posteriormente.No que se refere aos usos da história oral,

podemos perceber uma série de preocupaçõeséticas que emergem do contato com as fontes.Para a autora, que não esclarece exatamente otratamento dado a esses depoimentos ou mesmose suas intencionalidades como pesquisadoravão além da coleta de entrevistas, não se podepensar um trabalho acadêmico a partir dedepoimentos em um contexto de generaliza-ções, uma vez que as especificidades do métodocentram-se justamente na singularidade das

experiências, na riqueza de cada depoimento ena intersecção das subjetividades envolvidas: ada entrevistadora e a da entrevistada. Acreditaque não se pode conhecer a história de todosaqueles que permanecem em silêncio e queencarar as histórias pessoais como representativasde algo é uma suposição corriqueira. Nesseaspecto contrapõe diretamente (mesmo que deforma involuntária) Alessandro Portelli, que apontao imediatamente contrário ao sugerir que arepresentatividade nas histórias de vida se dá justamente em sua capacidade de ser única eagrupar as possibilidades de uma época oumesmo através de sua construção textual, umavez que os relatos podem ser compreendidostambém como manifestações de estruturas dediscursos definidos e aceitos socialmente.2 Alémdisso, Patai alerta para o estabelecimento deuma relação de poder que formata as duaspersonagens do processo, uma vez que o statusacadêmico do pesquisador acaba por autorizá-lo a definir o que é pertinente ou não para os finsde sua pesquisa. Por outro lado, as narrativas,

uma vez consideradas como um processo derecontrução de si, acabam sendo fugidias aobjetivos preestabelecidos. Eis por que Pataidefende a ideia de autonomia das narrativas esugere discutir possibilidades de coautoria emtrabalhos acadêmicos. Questiona se o narrador/a, ao fornecer o material fundamental para aconfecção dos trabalhos, não teria portantodireito autoral e mesmo financeiro sobre aspossíveis publicações oriundas de seu depoi-mento. Esse ponto, no entanto, deixa algumaslacunas, uma vez que, na prática da história oral,

os depoimentos são fontes de pesquisa e reflexão.Não são, no entanto, as únicas fontes resultantesde narrativas, afinal documentos escritos, jornais,

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cartas e relatos também possuem autoria. Nessecaso, a coautoria também se aplicaria? Qualseria a atitude ética a ser tomada?

Tais preocupações são desenvolvidas noensaio seguinte: “Problemas éticos de narrativaspessoais, ou, quem vai ficar com o último pedaço

do bolo?”. Nesse, publicado originalmente em1987, a autora reitera suas preocupações éticas,questionando sobre o sentido dos trabalhosacadêmicos para aqueles que prestaramdepoimentos e ofertaram suas histórias de vida. Além do referido comprometimento com osentrevistados, o texto pondera o teor político dostrabalhos baseados em histórias de vida sob aperspectiva feminista. Isso porque a falta de umametodologia adequada e bem definidaimplicaria, muitas vezes, a apropriação e autilização das histórias de mulheres para fins

próprios, desconsiderando os interesses dasdepoentes. Tal atitude reproduziria, segundo Patai,um paradigma social dominante, pois, em vezde contestá-lo, estaria reiterando-o, já que amulher continuaria a ser usada como um meio.Esse ponto também pode ser consideradobastante polêmico, uma vez que, além depressupor a falta de métodos adequados naprática da história oral, não possibilita umareflexão apurada acerca do uso das fontes empesquisas acadêmicas. Por fim, é bastante frágilum argumento que tenta desqualificar o caráterpolítico de trabalhos ciêntíficos, pois, conformeanunciado no início desta resenha, o pessoal épolítico. Além disso, selecionar entrevistados,elaborar perguntas e elencar a abordagem dediferentes grupos sociais, com a finalidade de“dar voz aos silenciados”, não implicaria tambémum intuito político? Essa discussão é posteriormenteretomada no ensaio “História oral e feminismo:uma revisão crítica”, escrito em 2008. Esse tratadas características de uma pesquisa baseadana oralidade, cujo engajamento político era

assumidamente feminista. Uma das problemáticasapresentadas é justamente a dificuldade em sedefinirem campos acadêmicos por interessespolíticos e de militância, sendo essa apontadacomo uma fragilidade dos estudos da mulherque, para Patai, politizou excessivamente aprática acadêmica, conforme podemosperceber em “O que há de errado com os Estudosda Mulher?”. Ao falar sobre os estudos da mulher(women’s studies) como um campo acadêmiconos Estados Unidos, a autora tece uma críticamordaz ao que chama de  jogos feministas,

apresentando sua decepção perante um “sonhoutópico” que se transmutou em “pesadelodistópico”. Patai ironiza diferentes aspectos da

agenda feminista, alegando a existência depoliciamento ideológico, aliciamento político erejeição irrefletida de qualquer trabalho ou práticaatribuída ao masculino. O próprio vocabuáriofeminista é passível de crítica por representar seusolipsismo acadêmico/político. Como exemplos,

cria as seguintes siglas: TOTAL REJ, representandoa “total rejeição a qualquer coisa contaminadapelo masculino” (p. 100), ou  GENDERAGENDA,como a “redução de toda e qualquer questãoao gênero” (p. 100). Soa problemático, porém,que Patai esteja incorrendo naquilo que criticouanteriormente: acaba generalizando o queparece ser a sua experiência pessoal emdeterminado departamento. Seria suficiente paratecer uma crítica sistematizada aos women’sstudies?

 As questões polí ticas relacionadas às

problemáticas feministas são ressaltadastambém em “Quem chama quem desubalterno?”, no qual a autora critica de formaferrenha e nominal o trabalho de Gayatri Spivak. A crítica direta gira em torno da adoção e daincorporação do conceito de subalternidade.Para Patai, esse rótulo desqualifica osdepoimentos e as narrativas, delegando aosintelectuais a possibilidade de definir a validadede determinados discursos. Em uma crítica direta– e pouco usual em textos acadêmicos –, Pataise refere ao trabalho de Spivak:

por que uma intelectual esquerdista desejariaprovar que um grupo de pessoas –especialmente as historicamente silenciadas:as mulheres – não pode falar? Em nome deque tipo de conhecimento? Com quepropósito? E o que devemos entender datagarelice desses intelectuais que saem por aí pregando a impossibilidade de fala de outraspessoas? (p. 92)

Nesses termos, a autora argumenta anecessidade de se assumirem as fragilidades de

pesquisas cujas fontes são os seres humanos. Nãopodemos esquecer, no entanto, que a grandemaioria das fontes com as quais trabalhamos sãoproduções humanas e que as proposições deSpivak implicam muito mais uma qualificação epolitização do conceito de subalternidade queuma conformação de pessoas a uma condiçãode subalternos. Patai critica Spivak ao mesmotempo que dela se aproxima ao afirmar que aspretensões políticas e os compromissos devemser explícitos e possibilitar a percepção do outro,a partir daquilo que se faz significativo para o

outro e não apenas para fundamentar asverdades do/a pesquisador/a. Tal discussão

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também é encontrada em “Chega do solipsismo nouveau dos acadêmicos”, em que Patai iniciapontuando a necessidade de se consideraremas próprias posições e circunstâncias dopesquisador, assumindo-as, mas não astransformando no cerne das discussões. Critica

também as “políticas de identidade” quandoexacerbadas por criarem a quase necessidadede se autorreferendar e de narrar experiênciaspessoais como imperativo de um trabalho acade-micamente engajado. Esse posicionamentodenota, segundo a autora, uma práticameramente retórica, sem grandes contribuíçõesintelectuais ou sociais.

 As re lações entre questões sociai s etestemunhos de vida são o foco de “A verdadede quem? Iconicidade e exatidão no universoda literatura testemunhal”, no qual Patai parte do

texto guatemalteca Me llamo Rigoberta Menchúe así nació mi conciencia para problematizar aexatidão de um testemunho em oposição aoque esse pode significar coletivamente, aindaque factualmente inverídico. No caso deMenchú, trata-se de uma narrativa pessoalconsiderada exagerada por alguns, porémrepresentativa de uma coletividade, uma vez quefoi construída a partir das memórias da repressãovivida na Guatemala. Para a autora, essa narrativarepresenta a coletividade justamente porenquadrar-se em uma experiência políticacoletiva, porém, ao mesmo tempo, suscintaproblemas éticos por possíveis distorções einvenções dos fatos narrados. Os questiona-mentos relacionados aos métodos da históriaoral e ao uso do conceito de subalternidade sãoaqui retomados como um alerta, já que Pataiindaga em que medida o engajamento políticoautoriza e legitima elementos fictícios em umanarrativa. A autora sente-se interpelada aponderar sobre a necessidade do engajamentopolítico em detrimento da integridade e do

comprometimento acadêmico.O ensaio que encerra a obra, “A faceevanescente do humanismo”, sintetiza osargumentos da autora ao defender oreconhecimento de uma individualidade emcontraposição às políticas de identidadesfamiliares e à teoria pós-moderna. Para Patai, oengajamento político e a necessidade dereconhecimento de uma identidade feministasão formas de categorização incoerentes comum método de pesquisa que se volta aos

testemunhos e às histórias de vida. Segundo aautora, a retórica pós-moderna cria anecessidade de enquadramento e valorizaçãoidentitária, consequentemente, o indivíduo évalorizado apenas através de seus plurais. Oimperativo da identidade somado à militância

política representam, para Patai, a constituiçãode um dogma entre aqueles que deveriamveementemente refutá-lo.

 História oral, feminismo e política  é, nomínimo, provocativo. Acusa o panfletário naacademia, travestido em referências e conceitosrebuscados, que, para a autora, subvertem ossentidos do trabalho intelectual através de umaescrita direta, acusativa, sem meandros e,ironicamente, panfletária. O radicalismo de Pataie mesmo a ousadia em publicar textosrepresentativos de posicionamentos em diferentes

momentos, muitos dos quais a autora assumedesacordo, transformam-se em um vívido convitepara (re)pensarmos nossa prática acadêmica ereiterarmos a máxima de que o pessoal é, sim,político, afinal, ao assumir uma postura crítica emrelação a um feminismo engajado, inquirir sobrea necessidade de métodos de pesquisa éticos ealertar sobre a confluência entre os objetivosintelectuais e políticos, ponderando-os comoproblemáticos, a autora, certamente, assumeuma opção política no fazer acadêmico. A coletânea de Daphne Patai tem, finalmente, omérito de inspirar-nos ao exercício da autocríticae da reavaliação cotidiana de nossas práticas eposicionamentos teóricos, políticos e, já anunciara Aristóteles, indissociáveis.

No tasNotasNotasNotasNotas1 Heloisa Buarque de HOLLANDA, 2011.2 Alessandro PORTELLI, 1996.

ReferênciasReferênciasReferênciasReferênciasReferências

HOLLANDA, Heloisa Buarque de.  Feminismoscontemporâneos: uma introdução. Dispo-

nível em: <http://www.heloisabuarquedehollanda.com.br/?p=660&cat=3>. Acessoem: 12 jan. 2011.

PORTELLI, Alessandro. “A filosofia e os fatos:narração, interpretação e significado nasmemórias e nas fontes orais”. Tempo, Rio deJaneiro, v. 1, n. 2, p. 59-72, 1996.

Caroline Jaques CubasUniversidade do Estado de Santa Catarina