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OLHARES PLURAIS – Revista Eletrôn OLHARES PLURAIS - A Dossiê Especial: 40 anos de Vigiar e Pu OS CORPOS DE F RESUMO Este artigo apresenta parte não se trata de apresentar extrema importância ao p dúvida: sabe-se que durante ao poder, mas antes, ele já década de 1960, e entre os “O corpo utópico”. Trata-s corpo disciplinado. E com isto é, contradisciplinar, ma PALAVRAS-CHAVE: Fo THE FOUCAULT'S ABSTRACT This article presents part o since we do not intend to pr extreme importance to Fou it is known that during the but would he have thought and among the texts studied body". Thus, the aim of th disciplined body. And with is, against disciplinary, but KEYWORDS: Foucault; u INTRODUÇÃO O filósofo Nietzsche [...] não, pied divis repo 1 Doutorando no Programa de (UNIOESTE/Toledo). fabiobatis nica Multidisciplinar, Vol. 1, Nº. 14, Ano 2016 Artigos unir FOUCAULT: UTÓPICO, DISCIPLINADO E Artigo submetido em: out./201 da nossa dissertação em Filosofia. Parte porq um resumo da mesma, mas a partir dela a pensamento foucaultiano: o corpo. A disse e a década de 1970 Foucault explorou a temá á havia pensado tal tema? A partir daí nos re s textos estudados um nos chamou atenção, a se, assim, sob a ótica foucaultiana, de pensa ambos e para além de ambos um possível as autodisciplinado. oucault; corpo utópico; corpo disciplinado. S BODUES: UTOPIAN, DISCIPLINED AN of our dissertation in Philosophy. It is a part resent a summary of the dissertation, but from ucault's thought: the body. The dissertation w 1970s Foucault explored the subject of the b this issue before? From this, we resorted to th d one caught our attention, the conference fro his work is, in Foucault's view, to think the h both, and besides both, a possible useless a self-disciplined. utopian body; disciplined body. e, no século XIX, em um aforismo disse: ]. Até o momento, nada daquilo que deu colorido à e , onde está uma história do amor, da cupidez, da i dade, da crueldade? [...]. Já se tomou por objeto sões do dia, as consequências de uma fixação regular d ouso? (2001, p. 59). Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Esta [email protected] ISSN 2176-9249 153 E PARA ALÉM Fabio Batista 1 15 e aceito em: jan./2016 que é um recorte, pois apresentar um tema de ertação nasceu de tal ática do corpo atrelado eportamos as obras da a conferência de 1966: ar o corpo utópico e o corpo inútil e indócil, ND TO BEYOND because it is a cutout, m it, expose a theme of was born of such doubt: body hitched to power, he works of the 1960s, om 1966: "The utopian utopian body and the and indocile body, that existência teve história: se inveja, da consciência, da de pesquisa as diferentes do trabalho, das festas e do adual do Oeste do Paraná

OLHARES PLURAIS - Artigos 153

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OLHARES PLURAIS – Revista Eletrônica Multidisciplinar, Vol.

OLHARES PLURAIS - Artigos

Dossiê Especial: 40 anos de Vigiar e Punir

OS CORPOS DE FOUCAULT:

RESUMO Este artigo apresenta parte danão se trata de apresentar um resumo da mesma, masextrema importância ao pensamento foucaultiano:dúvida: sabe-se que durante a década ao poder, mas antes, ele já havia pensado tal tema? A partir daí nos reportamos as obras da década de 1960, e entre os textos estudados um nos chamou atenção, a conferência de 1966: “O corpo utópico”. Trata-se, assim, sob a ótica foucaultiana, de pensarcorpo disciplinado. E com ambos e para além de ambos um isto é, contradisciplinar, mas autodisciplinado. PALAVRAS -CHAVE : Foucault; co

THE FOUCAULT'S BODUES: ABSTRACT This article presents part of our dissertation in Philosophy. It is a part because it is a cutout, since we do not intend to present a summary of the dissertation, but from it, expose a theme of extreme importance to Foucault's thought: the body. The disseit is known that during the 1970s Foucault explored the subject of the body hitched to power, but would he have thought this issue before? From this, we resorted to the works of the 1960s, and among the texts studied one caubody". Thus, the aim of this work is, in Foucault's view, to think the utopian body and the disciplined body. And with both, and besides both, a possible useless and indocile body, that is, against disciplinary, but self KEYWORDS : Foucault; utopian body; disciplined body INTRODUÇÃO

O filósofo Nietzsche, no século XIX, em um aforismo disse:

[...]. Até o momento, nada daquilo que deu colorido à existência teve história: se não, onde está uma história do amor, da cupidez, da inveja, da consciência, da piedade, da crueldade? [...]. Já se tomou por objeto de pesquisa as diferentes divisões do direpouso?

1 Doutorando no Programa de Pós(UNIOESTE/Toledo). [email protected]

Revista Eletrônica Multidisciplinar, Vol. 1, Nº. 14, Ano 2016

Artigos

Dossiê Especial: 40 anos de Vigiar e Punir

OS CORPOS DE FOUCAULT: UTÓPICO, DISCIPLINADO E PARA ALÉM

Artigo submetido em: out./2015

apresenta parte da nossa dissertação em Filosofia. Parte porque é um recorte, pois entar um resumo da mesma, mas a partir dela apresentar

ncia ao pensamento foucaultiano: o corpo. A dissertação nasceu de tal se que durante a década de 1970 Foucault explorou a temática do corpo atrelado

ao poder, mas antes, ele já havia pensado tal tema? A partir daí nos reportamos as obras da década de 1960, e entre os textos estudados um nos chamou atenção, a conferência de 1966:

se, assim, sob a ótica foucaultiana, de pensarcom ambos e para além de ambos um possível corpo inútil e indócil,

isto é, contradisciplinar, mas autodisciplinado.

: Foucault; corpo utópico; corpo disciplinado.

THE FOUCAULT'S BODUES: UTOPIAN, DISCIPLINED AND TO BEYOND

This article presents part of our dissertation in Philosophy. It is a part because it is a cutout, since we do not intend to present a summary of the dissertation, but from it, expose a theme of extreme importance to Foucault's thought: the body. The dissertation was born of such doubt: it is known that during the 1970s Foucault explored the subject of the body hitched to power, but would he have thought this issue before? From this, we resorted to the works of the 1960s, and among the texts studied one caught our attention, the conference from 1966: "The utopian body". Thus, the aim of this work is, in Foucault's view, to think the utopian body and the disciplined body. And with both, and besides both, a possible useless and indocile body, that

disciplinary, but self-disciplined.

: Foucault; utopian body; disciplined body.

O filósofo Nietzsche, no século XIX, em um aforismo disse:

[...]. Até o momento, nada daquilo que deu colorido à existência teve história: se não, onde está uma história do amor, da cupidez, da inveja, da consciência, da piedade, da crueldade? [...]. Já se tomou por objeto de pesquisa as diferentes divisões do dia, as consequências de uma fixação regular do trabalho, das festas e do repouso? (2001, p. 59).

Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Estadual do Oeste do Paraná

(UNIOESTE/Toledo). [email protected]

ISSN 2176-9249

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UTÓPICO, DISCIPLINADO E PARA ALÉM

Fabio Batista1

out./2015 e aceito em: jan./2016

em Filosofia. Parte porque é um recorte, pois apresentar um tema de

. A dissertação nasceu de tal de 1970 Foucault explorou a temática do corpo atrelado

ao poder, mas antes, ele já havia pensado tal tema? A partir daí nos reportamos as obras da década de 1960, e entre os textos estudados um nos chamou atenção, a conferência de 1966:

se, assim, sob a ótica foucaultiana, de pensar o corpo utópico e o possível corpo inútil e indócil,

UTOPIAN, DISCIPLINED AND TO BEYOND

This article presents part of our dissertation in Philosophy. It is a part because it is a cutout, since we do not intend to present a summary of the dissertation, but from it, expose a theme of

rtation was born of such doubt: it is known that during the 1970s Foucault explored the subject of the body hitched to power, but would he have thought this issue before? From this, we resorted to the works of the 1960s,

ght our attention, the conference from 1966: "The utopian body". Thus, the aim of this work is, in Foucault's view, to think the utopian body and the disciplined body. And with both, and besides both, a possible useless and indocile body, that

[...]. Até o momento, nada daquilo que deu colorido à existência teve história: se não, onde está uma história do amor, da cupidez, da inveja, da consciência, da piedade, da crueldade? [...]. Já se tomou por objeto de pesquisa as diferentes

a, as consequências de uma fixação regular do trabalho, das festas e do

Graduação em Filosofia da Universidade Estadual do Oeste do Paraná

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Dossiê Especial: 40 anos de Vigiar e Punir

Foucault, passado menos de um século, compreendeu tal proposta e iniciou

investigações inabituais: sobre a doença mental, a morte, a sexualidade, o crime, o c

Diante desse quadro de estudos, importa a nós as investigações do filósofo francês sobre o

corpo.

Durante a década de 1970

poder, assim nasceu o binômio poder

enquanto superfície de inscrição do poder real; 2 corpo enquanto investido por técnicas de

poder que o torna dócil e útil. Porém, em 1966, Foucault havia proferido uma conferência

radiofônica cujo foco também era o corpo, no entanto, a

corpo utópico, um ensaio no qual Foucault nos apresentava um corpo

invisível, o corpo visto enquanto matriz de todas as utopias. Por fim, a partir de Foucault,

apresentar-se-á um outro corpo poss

se tornar inútil e indócil, a exemplo de um dançarino, iogue ou faquir

1 UMA CONFERÊNCIA DE 1966 Em uma conferência de 1966 Foucault discorreu sobre o corpo, cujo título

utópico”4. Curta, pois pensada para ser proferida em uma emissora de rádio, contudo, como

veremos, rica.

Sabe-se hoje que Foucault produziu inúmeros textos sob diversas circunstâncias, os

quais em sua maioria atualmente se encontram reunidos

encontram-se entrevistas, conferências, introduções, comentários acerca de literatura, artes

plásticas, cinema, e também sobre livros de outros filósofos, enfim, um riquíssimo material a

partir do qual podemos compreender

Contudo, esse pequeno texto sobre o corpo não se encontra nos volumes dos

foi publicado recentemente no Brasil, juntamente com outro texto. Este último já conhecido

do público brasileiro: “As heterotopias

2 O poder psiquiátrico (1973-1974),3 Artigo a partir da dissertação: de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Estadual de Londrina Doutor Marcos Alexandre Gomes Nalli.4 Em 1966 o corpo é pensado a partir do tema proposto a década de 1970, que o corpo estará atrelado ao poder.5 A primeira edição francesa em quatro volumes é de 1994 e reúne os mais variados tipos de textos de entre 1954-1988. Os quais foram organcontudo, organizada tematicamente. 6 Ver: FOUCAULT, Michel. Ditos e escritosde Janeiro: Forense Universitária, 2005

Revista Eletrônica Multidisciplinar, Vol. 1, Nº. 14, Ano 2016

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Dossiê Especial: 40 anos de Vigiar e Punir

Foucault, passado menos de um século, compreendeu tal proposta e iniciou

investigações inabituais: sobre a doença mental, a morte, a sexualidade, o crime, o c

Diante desse quadro de estudos, importa a nós as investigações do filósofo francês sobre o

Durante a década de 19702 Foucault ocupou-se do corpo. Ao pensá

poder, assim nasceu o binômio poder-corpo: 1 corpo-suplício; 2 corpo

enquanto superfície de inscrição do poder real; 2 corpo enquanto investido por técnicas de

poder que o torna dócil e útil. Porém, em 1966, Foucault havia proferido uma conferência

radiofônica cujo foco também era o corpo, no entanto, a abordagem era outra: tratava

corpo utópico, um ensaio no qual Foucault nos apresentava um corpo topia

invisível, o corpo visto enquanto matriz de todas as utopias. Por fim, a partir de Foucault,

á um outro corpo possível que procura ir além do poder disciplinar, e que quer

se tornar inútil e indócil, a exemplo de um dançarino, iogue ou faquir3.

UMA CONFERÊNCIA DE 1966 - “O CORPO UTÓPICO”

Em uma conferência de 1966 Foucault discorreu sobre o corpo, cujo título

. Curta, pois pensada para ser proferida em uma emissora de rádio, contudo, como

se hoje que Foucault produziu inúmeros textos sob diversas circunstâncias, os

quais em sua maioria atualmente se encontram reunidos nos chamados

entrevistas, conferências, introduções, comentários acerca de literatura, artes

plásticas, cinema, e também sobre livros de outros filósofos, enfim, um riquíssimo material a

partir do qual podemos compreender melhor o pensamento do filósofo francês.

Contudo, esse pequeno texto sobre o corpo não se encontra nos volumes dos

foi publicado recentemente no Brasil, juntamente com outro texto. Este último já conhecido

do público brasileiro: “As heterotopias” ou “Outros espaços6”. É provável que a ideia de

1974), Vigiar e punir (1975). “Sobre poder e corpo em Foucault”, 2015. A qual foi

Graduação em Filosofia da Universidade Estadual de Londrina – UEL, sob a orientação do Professor Doutor Marcos Alexandre Gomes Nalli.

Em 1966 o corpo é pensado a partir do tema proposto a Foucault, “Utopia e literatura”. E só posteriormente, na década de 1970, que o corpo estará atrelado ao poder.

A primeira edição francesa em quatro volumes é de 1994 e reúne os mais variados tipos de textos de entre 1988. Os quais foram organizados em ordem cronológica. No Brasil já temos a tradução desses volumes,

contudo, organizada tematicamente. Ditos e escritos: estética: literatura e pintura, música e cinema. Vol. III. 2ª ed. Rio

ro: Forense Universitária, 2005.

ISSN 2176-9249

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Foucault, passado menos de um século, compreendeu tal proposta e iniciou

investigações inabituais: sobre a doença mental, a morte, a sexualidade, o crime, o corpo.

Diante desse quadro de estudos, importa a nós as investigações do filósofo francês sobre o

se do corpo. Ao pensá-lo articulou-o ao

suplício; 2 corpo-disciplinas; 1 corpo

enquanto superfície de inscrição do poder real; 2 corpo enquanto investido por técnicas de

poder que o torna dócil e útil. Porém, em 1966, Foucault havia proferido uma conferência

abordagem era outra: tratava-se do

topia e utopia, visível e

invisível, o corpo visto enquanto matriz de todas as utopias. Por fim, a partir de Foucault,

ível que procura ir além do poder disciplinar, e que quer

.

Em uma conferência de 1966 Foucault discorreu sobre o corpo, cujo título é: “O corpo

. Curta, pois pensada para ser proferida em uma emissora de rádio, contudo, como

se hoje que Foucault produziu inúmeros textos sob diversas circunstâncias, os

nos chamados Ditos e escritos5. Aí

entrevistas, conferências, introduções, comentários acerca de literatura, artes

plásticas, cinema, e também sobre livros de outros filósofos, enfim, um riquíssimo material a

melhor o pensamento do filósofo francês.

Contudo, esse pequeno texto sobre o corpo não se encontra nos volumes dos DE. Ele

foi publicado recentemente no Brasil, juntamente com outro texto. Este último já conhecido

”. É provável que a ideia de

A qual foi apresentada ao Programa UEL, sob a orientação do Professor

Foucault, “Utopia e literatura”. E só posteriormente, na

A primeira edição francesa em quatro volumes é de 1994 e reúne os mais variados tipos de textos de entre o Brasil já temos a tradução desses volumes,

: estética: literatura e pintura, música e cinema. Vol. III. 2ª ed. Rio

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publicá-los em um mesmo livro tenha nascido da temática que subjaz aos dois: o espaço, o

lugar. Mas a nós importa, em especial, o primeiro que trata do corpo.

Poderiam objetar: “por que em meio aos livros

se ocupar de um simples texto que nem foi publicado em vida por Foucault?”. “Ora”,

poderíamos responder: “se paramos para estudar tal texto, ainda que aparentemente sem muita

relevância, é em vista de nosso tema

Foucault o inicia afirmando que o corpo é o contrário de uma utopia. Ou seja, que o

corpo é topia, lugar; enquanto a utopia seria um não

se-ia dizer: a utopia é um lugar sem lugar. O corpo, por sua vez,

irremediavelmente amarrado,

Posso até ir ao fim do mundo, posso, de manhã, sob as cobertas, encolherme tão pequeno quanto possível, posso deixarestará sempre comigo onde eu estiver. Está aqui, irremediavelmente, jamais em outro lugaroutro céu, lugar absoluto, pequeno fragmento de espaço com o qual, no sentido estrito, faço corpo (FOUCAULT, 2013, p. 7; itálicos nossos).

Aquilo que faço parece ser inseparável do

muitas coisas, como Foucault indicou acima,

sempre atrelado a ele: é com ele, por via dele que poderei fazer

que uma utopia deve ser co

Foucault pôs corpo e utopia lado a lado para opô

corpo como lugar e utopia como não

A que se deve o prestígio da utopia, a beleza, o deslumbramento da utopia? A utopia é um lugar fora de todos os lugares, mas um lugar onde terei um corpo um corpo que seria belo, límpido, transparente, luminoso, veloz, colossal na sua potência, bem ser que a utopia primeira, a mais inextirpável no coração dos homens, consista precisamente na utopia de um corpo incorporal (FOUCAULT, 2013, p. 8).

Temos, portanto: corpo

nos propiciaria a fantasia de um corpo incorpóreo, um corpo invisível, imaterial. Um corpo no

qual talvez nos encontrássemos menos amarrados, o qual fosse mais flexível e que, assim,

também nem mesmo fosse um corpo. Ainda, para além da utopia enquanto um lugar mágico,

o qual está próximo de um país de Alice que Lewis Carrol criou, temos, de acordo com

Foucault, mais duas formas utópicas de nos livrarmos do corpo, duas formas de apagarmos

esse lugar ao qual estamos presos. Ambas há muito já conhecidas de todos: o país dos mortos,

que “[...] são as grandes cidades utópicas que nos foram deixadas pela civilização egípcia”

Revista Eletrônica Multidisciplinar, Vol. 1, Nº. 14, Ano 2016

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Dossiê Especial: 40 anos de Vigiar e Punir

los em um mesmo livro tenha nascido da temática que subjaz aos dois: o espaço, o

lugar. Mas a nós importa, em especial, o primeiro que trata do corpo.

: “por que em meio aos livros e outros textos de maior importância,

se ocupar de um simples texto que nem foi publicado em vida por Foucault?”. “Ora”,

poderíamos responder: “se paramos para estudar tal texto, ainda que aparentemente sem muita

m vista de nosso tema”.

oucault o inicia afirmando que o corpo é o contrário de uma utopia. Ou seja, que o

enquanto a utopia seria um não-lugar, ou se se aceitar o paradoxo, poder

ia dizer: a utopia é um lugar sem lugar. O corpo, por sua vez, é um lugar a

amarrado, como parece indicar o texto:

Posso até ir ao fim do mundo, posso, de manhã, sob as cobertas, encolherme tão pequeno quanto possível, posso deixar-me derreter na praia, sob o sol, e ele estará sempre comigo onde eu estiver. Está aqui, irremediavelmente, jamais em outro lugar. Meu corpo é o contrário de uma utopia, é o que jamais se encontra sob outro céu, lugar absoluto, pequeno fragmento de espaço com o qual, no sentido estrito, faço corpo (FOUCAULT, 2013, p. 7; itálicos nossos).

faço parece ser inseparável do meu corpo. Pois, ainda que

como Foucault indicou acima, - esconder-se, encolher-

é com ele, por via dele que poderei fazer, agir. O que implica em dizer

que uma utopia deve ser considerada o seu contrário? Se sim, por quê? Em que medida

Foucault pôs corpo e utopia lado a lado para opô-los? Na medida em que ele parece pensar o

corpo como lugar e utopia como não-lugar. Vejamos:

A que se deve o prestígio da utopia, a beleza, o deslumbramento da utopia? A utopia é um lugar fora de todos os lugares, mas um lugar onde terei um corpo um corpo que seria belo, límpido, transparente, luminoso, veloz, colossal na sua potência, infinito na duração, solto, invisível, protegido, sempre transfigurado; pode bem ser que a utopia primeira, a mais inextirpável no coração dos homens, consista precisamente na utopia de um corpo incorporal (FOUCAULT, 2013, p. 8).

Temos, portanto: corpo e utopia; lugar e não-lugar; aquilo que nos

nos propiciaria a fantasia de um corpo incorpóreo, um corpo invisível, imaterial. Um corpo no

qual talvez nos encontrássemos menos amarrados, o qual fosse mais flexível e que, assim,

mesmo fosse um corpo. Ainda, para além da utopia enquanto um lugar mágico,

o qual está próximo de um país de Alice que Lewis Carrol criou, temos, de acordo com

Foucault, mais duas formas utópicas de nos livrarmos do corpo, duas formas de apagarmos

ar ao qual estamos presos. Ambas há muito já conhecidas de todos: o país dos mortos,

que “[...] são as grandes cidades utópicas que nos foram deixadas pela civilização egípcia”

ISSN 2176-9249

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los em um mesmo livro tenha nascido da temática que subjaz aos dois: o espaço, o

e outros textos de maior importância,

se ocupar de um simples texto que nem foi publicado em vida por Foucault?”. “Ora”,

poderíamos responder: “se paramos para estudar tal texto, ainda que aparentemente sem muita

oucault o inicia afirmando que o corpo é o contrário de uma utopia. Ou seja, que o

lugar, ou se se aceitar o paradoxo, poder-

é um lugar ao qual se está

Posso até ir ao fim do mundo, posso, de manhã, sob as cobertas, encolher-me, fazer-me derreter na praia, sob o sol, e ele

estará sempre comigo onde eu estiver. Está aqui, irremediavelmente, jamais em , é o que jamais se encontra sob

outro céu, lugar absoluto, pequeno fragmento de espaço com o qual, no sentido estrito, faço corpo (FOUCAULT, 2013, p. 7; itálicos nossos).

meu corpo. Pois, ainda que se possa fazer

-se, deitar-se - estarei

. O que implica em dizer

or quê? Em que medida

los? Na medida em que ele parece pensar o

A que se deve o prestígio da utopia, a beleza, o deslumbramento da utopia? A utopia é um lugar fora de todos os lugares, mas um lugar onde terei um corpo sem corpo, um corpo que seria belo, límpido, transparente, luminoso, veloz, colossal na sua

infinito na duração, solto, invisível, protegido, sempre transfigurado; pode bem ser que a utopia primeira, a mais inextirpável no coração dos homens, consista precisamente na utopia de um corpo incorporal (FOUCAULT, 2013, p. 8).

lugar; aquilo que nos ata; e aquilo que

nos propiciaria a fantasia de um corpo incorpóreo, um corpo invisível, imaterial. Um corpo no

qual talvez nos encontrássemos menos amarrados, o qual fosse mais flexível e que, assim,

mesmo fosse um corpo. Ainda, para além da utopia enquanto um lugar mágico,

o qual está próximo de um país de Alice que Lewis Carrol criou, temos, de acordo com

Foucault, mais duas formas utópicas de nos livrarmos do corpo, duas formas de apagarmos

ar ao qual estamos presos. Ambas há muito já conhecidas de todos: o país dos mortos,

que “[...] são as grandes cidades utópicas que nos foram deixadas pela civilização egípcia”

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Dossiê Especial: 40 anos de Vigiar e Punir

(FOUCAULT, 2013, p. 8), e a alma. Esta última conhecida das religiões e das fil

ainda que sob significados diferentes. Diante dela o

vez é pura, lugar do conhecimento. A alma deve apagar o corpo, ou ao menos pô

do contrário permaneceremos no plano do sensível e do devir,

e sem acesso à verdade que somente a alma pode alcançar

Assim a utopia, de acordo com Foucault, enquanto lugar

ainda a alma, é aqui a expressão de uma recusa

forma utópica de se apagar o corpo seria a última. Em muitas religiões

exemplo - ela é aquilo que desde sempre deve ser cuidado e salvo; aquilo que sobrevive à

morte do corpo. Na filosofia, desde a Antiguidade

simples acidente, ou um cárcere do qual é preciso se libertar

sempre mais importante que o corpo, a qual em um dado momento deve prevalecer sobre ele.

Mas seria assim simples: o próprio corpo não co

por exemplo, não seria uma estranha caverna, pergunta Foucault. Pois composta de duas

aberturas ou mais que só as vejo diante do espelho

daqui encontramos o ponto de inflexão no text

corpo é o contrário de uma utopia

mas não seria o próprio corpo uma utopia? Como veremos, o corpo parece ser antes utópico

que não utópico. Ou talvez e

ponto há uma passagem a qual é de extrema importância, na qual Foucault disse:

Corpo incompreensível, corpo penetrável e opaco, corpo aberto e fechado: utópicoolhado por alguém da cabeça aos pés, sei o que é ser espiado por trás, vigiado por cima do ombro, surpreso quando percebo isso, sei o que é estar nu; mesmo corpo que é tão visível, é afastado, cda qual jamais posso desvencilháposso tocar com meus dedos, mas nunca ver; […]. O corpo, fantasma que só aparece na miragem dos espelhos e, ainda assim, de maneira fragverdadeiramente, dos gênios e das fadas, da morte e da alma, para ser ao mesmo tempo indissociavelmente visível e invisível? [...]Não, verdadeiramente, não há necessidade da mágica nem do feérico, não há necessidade de uma alma nem de uopaco e transparente, visível e invisível, vida e coisa. que seja um

7 Esse argumento, no âmbito da Filosofia, a favor da alma em detrimento do corpo, nos remete a tradição que vai de Parmênides a Descartes, passando por Platão. Em Platão: o corpoao tema da alma em contraposiçãtradicional acerca do tema. De acordo com nosso filósofo: se tem é a ideia de uma produção da “subjetividade” ou “consciência” queum indivíduo. Esta produção estaria atrelada sobretudo aos saberes de radical 8 Acerca do tema alma e corpo na filosofia ver tópicos 2a e 2b do texto de Orlandiem minidesfile”.

Revista Eletrônica Multidisciplinar, Vol. 1, Nº. 14, Ano 2016

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Dossiê Especial: 40 anos de Vigiar e Punir

(FOUCAULT, 2013, p. 8), e a alma. Esta última conhecida das religiões e das fil

e sob significados diferentes. Diante dela o corpo é impuro, lugar do err

pura, lugar do conhecimento. A alma deve apagar o corpo, ou ao menos pô

do contrário permaneceremos no plano do sensível e do devir, portanto, no p

verdade que somente a alma pode alcançar7.

utopia, de acordo com Foucault, enquanto lugar mágico, ou

ainda a alma, é aqui a expressão de uma recusa obstinada do corpo. Entre essas

apagar o corpo seria a última. Em muitas religiões

ela é aquilo que desde sempre deve ser cuidado e salvo; aquilo que sobrevive à

morte do corpo. Na filosofia, desde a Antiguidade – Platão, por exemplo

simples acidente, ou um cárcere do qual é preciso se libertar8. Em ambos os casos a alma é

sempre mais importante que o corpo, a qual em um dado momento deve prevalecer sobre ele.

Mas seria assim simples: o próprio corpo não conteria lugares sem

por exemplo, não seria uma estranha caverna, pergunta Foucault. Pois composta de duas

aberturas ou mais que só as vejo diante do espelho (Cf. FOUCAULT,

daqui encontramos o ponto de inflexão no texto de Foucault. Se até aqui ele afirmou que o

corpo é o contrário de uma utopia e argumentou para justificar isto. Doravante, ele pergunta,

mas não seria o próprio corpo uma utopia? Como veremos, o corpo parece ser antes utópico

que não utópico. Ou talvez encerre as duas possibilidades: utopia e não utopia. Para esse

ponto há uma passagem a qual é de extrema importância, na qual Foucault disse:

Corpo incompreensível, corpo penetrável e opaco, corpo aberto e fechado: utópico. Corpo absolutamente visível, em um sentido: sei muito bem o que é ser olhado por alguém da cabeça aos pés, sei o que é ser espiado por trás, vigiado por cima do ombro, surpreso quando percebo isso, sei o que é estar nu; mesmo corpo que é tão visível, é afastado, captado por uma espécie de invisibilidade da qual jamais posso desvencilhá-lo. Este meu crânio, atrás do meu crânio, que posso tocar com meus dedos, mas nunca ver; […]. O corpo, fantasma que só aparece na miragem dos espelhos e, ainda assim, de maneira fragverdadeiramente, dos gênios e das fadas, da morte e da alma, para ser ao mesmo tempo indissociavelmente visível e invisível? [...] Não, verdadeiramente, não há necessidade da mágica nem do feérico, não há necessidade de uma alma nem de uma morte para que eu seja ao mesmo tempo opaco e transparente, visível e invisível, vida e coisa. Para que eu seja utopia, basta que seja um corpo (2013, p. 10-11; itálicos nossos).

Esse argumento, no âmbito da Filosofia, a favor da alma em detrimento do corpo, nos remete a tradição que vai

de Parmênides a Descartes, passando por Platão. Em Platão: o corpo-prisão da alma. Foucault (Cf. 2009) voltou ao tema da alma em contraposição ao corpo no primeiro capítulo de Vigiar e punirtradicional acerca do tema. De acordo com nosso filósofo: “a alma, prisão do corpo”. Em se tem é a ideia de uma produção da “subjetividade” ou “consciência” que delimita e define os modos de ser de um indivíduo. Esta produção estaria atrelada sobretudo aos saberes de radical psi: psicologia, psiquiatria

Acerca do tema alma e corpo na filosofia ver tópicos 2a e 2b do texto de Orlandi (Cf.

ISSN 2176-9249

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(FOUCAULT, 2013, p. 8), e a alma. Esta última conhecida das religiões e das filosofias,

corpo é impuro, lugar do erro; ela por sua

pura, lugar do conhecimento. A alma deve apagar o corpo, ou ao menos pô-lo de lado,

portanto, no plano das opiniões

mágico, ou além túmulo, ou

obstinada do corpo. Entre essas a mais forte

apagar o corpo seria a última. Em muitas religiões – cristianismo, por

ela é aquilo que desde sempre deve ser cuidado e salvo; aquilo que sobrevive à

emplo - o corpo parece ser

. Em ambos os casos a alma é

sempre mais importante que o corpo, a qual em um dado momento deve prevalecer sobre ele.

nteria lugares sem-lugar? A cabeça,

por exemplo, não seria uma estranha caverna, pergunta Foucault. Pois composta de duas

FOUCAULT, 2013, p. 10). A partir

o de Foucault. Se até aqui ele afirmou que o

o. Doravante, ele pergunta,

mas não seria o próprio corpo uma utopia? Como veremos, o corpo parece ser antes utópico

ncerre as duas possibilidades: utopia e não utopia. Para esse

ponto há uma passagem a qual é de extrema importância, na qual Foucault disse:

Corpo incompreensível, corpo penetrável e opaco, corpo aberto e fechado: corpo el, em um sentido: sei muito bem o que é ser

olhado por alguém da cabeça aos pés, sei o que é ser espiado por trás, vigiado por cima do ombro, surpreso quando percebo isso, sei o que é estar nu; no entanto, este

aptado por uma espécie de invisibilidade lo. Este meu crânio, atrás do meu crânio, que

posso tocar com meus dedos, mas nunca ver; […]. O corpo, fantasma que só aparece na miragem dos espelhos e, ainda assim, de maneira fragmentária. Preciso, verdadeiramente, dos gênios e das fadas, da morte e da alma, para ser ao mesmo

Não, verdadeiramente, não há necessidade da mágica nem do feérico, não há ma morte para que eu seja ao mesmo tempo

Para que eu seja utopia, basta

Esse argumento, no âmbito da Filosofia, a favor da alma em detrimento do corpo, nos remete a tradição que vai prisão da alma. Foucault (Cf. 2009) voltou

Vigiar e punir , invertendo a proposição “a alma, prisão do corpo”. Em Vigiar e punir o que

delimita e define os modos de ser de : psicologia, psiquiatria

(Cf. 2004): “Corporeidades

Page 5: OLHARES PLURAIS - Artigos 153

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OLHARES PLURAIS - Artigos

Dossiê Especial: 40 anos de Vigiar e Punir

Ou seja, as utopias não são o contrário do corpo. O próprio corpo encer

possíveis utopias por sua disposição anatômica: costas e nuca que não vejo de imediato. Ele

pode ser visível e invisível; opaco e transparente. Assim, ele seria fonte primeira de todas as

demais formas de utopia. Ainda que

como vimos acima, nos casos do lugar mágico, país dos mortos, e da alma.

Ora, diante disso, pode

Como diante dessa potência utópica que é o corpo, ainda sabemos qu

cá estamos? A resposta, segundo Foucault, seria: “[..], graças ao espelho e ao cadáver, é que

nosso corpo não é pura e simples utopia” (FOUCAULT, 2013, p. 15). O espelho e o cadáver

servem como meios de sempre nos trazer de volta, o

É por eles que descobrimos nossos corpos; ambos nos ensinam que temos um corpo. Pois,

As crianças, afinal, levam muito tempo para saber que têm um corpo. Durante meses, durante mais de um ano, elas têm apenas um ccavidades, orifícios, e tudo isso só se organiza, tudo isso literalmente toma corpo somente na imagem do espelho. De modo mais estranho ainda, os gregos de Homero não tinham uma palavra para designar a unidade do corpo. Por paradoxaque seja, diante de Tróia, abaixo dos muros defendidos por companheiros, não havia corpos, mas braços erguidos, peitos intrépidos, pernas ágeis, capacetes cintilantes em acima de cabeças: não havia corpo. A palavra grega para dizer corpo sóportanto, o cadáver e o espelho que nos ensinam (enfim, ensinaram aos gregos e agora ensinam às crianças) que temos um corpo, que este corpo tem uma forma, que esta forma tem um contorno, que no contorsuma, que o corpo ocupa um lugar (FOUCAULT, 2013, p. 15).

A imagem do espelho ensinando às crianças que elas têm um corpo, e o cadáver, o

corpo morto, inerte, ensinava aos gregos da antiguidade. Temos com eles dois exemplos de

como historicamente pode-

dissessem: “o espelho e o cadáver também são

imagem do meu corpo e não ele mesmo. E jamais poderei estar ali onde se encontrara o meu

cadáver”. Ao que Foucault responderia: “[...] descobrimos então que unicamente as utopias

podem fazer refluir nelas mesmas e esconder por u

nosso corpo” (FOUCAULT, 2013 p. 15

acabar, ainda que momentaneamente, com o corpo utópico; um modo de se aniquilar esse

“impulso” à utopia. Qual seria esse meio?

Ora, se o espelho e o cadáver, ainda que também utopias, servem para nos ensinar que há um

corpo; por que o amor seria um meio mais eficaz para esse fim? Talvez porque nesse último

caso entre em cena de forma

Seria talvez necessário dizer também que fazer amor é sentir o corpo refluir sobre si, é existir, enfim, fora de toda utopia, com toda densidade, entre as mãos do outro.

Revista Eletrônica Multidisciplinar, Vol. 1, Nº. 14, Ano 2016

Artigos

Dossiê Especial: 40 anos de Vigiar e Punir

Ou seja, as utopias não são o contrário do corpo. O próprio corpo encer

possíveis utopias por sua disposição anatômica: costas e nuca que não vejo de imediato. Ele

pode ser visível e invisível; opaco e transparente. Assim, ele seria fonte primeira de todas as

demais formas de utopia. Ainda que depois elas pareçam se voltar contra ele para apagá

como vimos acima, nos casos do lugar mágico, país dos mortos, e da alma.

o, pode-se perguntar: como não nos perdermos de uma vez por todas?

Como diante dessa potência utópica que é o corpo, ainda sabemos que temos um corpo, e que

cá estamos? A resposta, segundo Foucault, seria: “[..], graças ao espelho e ao cadáver, é que

nosso corpo não é pura e simples utopia” (FOUCAULT, 2013, p. 15). O espelho e o cadáver

servem como meios de sempre nos trazer de volta, ou de nos por sempre aqui no corpo

É por eles que descobrimos nossos corpos; ambos nos ensinam que temos um corpo. Pois,

As crianças, afinal, levam muito tempo para saber que têm um corpo. Durante meses, durante mais de um ano, elas têm apenas um ccavidades, orifícios, e tudo isso só se organiza, tudo isso literalmente toma corpo somente na imagem do espelho. De modo mais estranho ainda, os gregos de Homero não tinham uma palavra para designar a unidade do corpo. Por paradoxaque seja, diante de Tróia, abaixo dos muros defendidos por companheiros, não havia corpos, mas braços erguidos, peitos intrépidos, pernas ágeis, capacetes cintilantes em acima de cabeças: não havia corpo. A palavra grega para dizer corpo só aparece em Homero para designar cadáver. É o cadáver, portanto, o cadáver e o espelho que nos ensinam (enfim, ensinaram aos gregos e agora ensinam às crianças) que temos um corpo, que este corpo tem uma forma, que esta forma tem um contorno, que no contorno há uma espessura, um peso; em suma, que o corpo ocupa um lugar (FOUCAULT, 2013, p. 15).

A imagem do espelho ensinando às crianças que elas têm um corpo, e o cadáver, o

corpo morto, inerte, ensinava aos gregos da antiguidade. Temos com eles dois exemplos de

-se combater a permanente tentação do corpo utópico. E se a iss

dissessem: “o espelho e o cadáver também são outros lugares. Porque o espelho traz uma

imagem do meu corpo e não ele mesmo. E jamais poderei estar ali onde se encontrara o meu

cadáver”. Ao que Foucault responderia: “[...] descobrimos então que unicamente as utopias

podem fazer refluir nelas mesmas e esconder por um instante a utopia profunda e soberana de

nosso corpo” (FOUCAULT, 2013 p. 15-16). Mas, haveria uma forma exemplar de

acabar, ainda que momentaneamente, com o corpo utópico; um modo de se aniquilar esse

“impulso” à utopia. Qual seria esse meio? O amor, ou, como afirmou Foucault, fazer amor.

Ora, se o espelho e o cadáver, ainda que também utopias, servem para nos ensinar que há um

corpo; por que o amor seria um meio mais eficaz para esse fim? Talvez porque nesse último

caso entre em cena de forma evidente um elemento importante. Vejamos:

Seria talvez necessário dizer também que fazer amor é sentir o corpo refluir sobre si, é existir, enfim, fora de toda utopia, com toda densidade, entre as mãos do outro.

ISSN 2176-9249

157

Ou seja, as utopias não são o contrário do corpo. O próprio corpo encerraria as

possíveis utopias por sua disposição anatômica: costas e nuca que não vejo de imediato. Ele

pode ser visível e invisível; opaco e transparente. Assim, ele seria fonte primeira de todas as

oltar contra ele para apagá-lo

como vimos acima, nos casos do lugar mágico, país dos mortos, e da alma.

se perguntar: como não nos perdermos de uma vez por todas?

e temos um corpo, e que

cá estamos? A resposta, segundo Foucault, seria: “[..], graças ao espelho e ao cadáver, é que

nosso corpo não é pura e simples utopia” (FOUCAULT, 2013, p. 15). O espelho e o cadáver

u de nos por sempre aqui no corpo-lugar.

É por eles que descobrimos nossos corpos; ambos nos ensinam que temos um corpo. Pois,

As crianças, afinal, levam muito tempo para saber que têm um corpo. Durante meses, durante mais de um ano, elas têm apenas um corpo disperso, membros, cavidades, orifícios, e tudo isso só se organiza, tudo isso literalmente toma corpo somente na imagem do espelho. De modo mais estranho ainda, os gregos de Homero não tinham uma palavra para designar a unidade do corpo. Por paradoxal que seja, diante de Tróia, abaixo dos muros defendidos por Heitor e seus companheiros, não havia corpos, mas braços erguidos, peitos intrépidos, pernas ágeis, capacetes cintilantes em acima de cabeças: não havia corpo. A palavra grega

aparece em Homero para designar cadáver. É o cadáver, portanto, o cadáver e o espelho que nos ensinam (enfim, ensinaram aos gregos e agora ensinam às crianças) que temos um corpo, que este corpo tem uma forma,

no há uma espessura, um peso; em suma, que o corpo ocupa um lugar (FOUCAULT, 2013, p. 15).

A imagem do espelho ensinando às crianças que elas têm um corpo, e o cadáver, o

corpo morto, inerte, ensinava aos gregos da antiguidade. Temos com eles dois exemplos de

se combater a permanente tentação do corpo utópico. E se a isso

. Porque o espelho traz uma

imagem do meu corpo e não ele mesmo. E jamais poderei estar ali onde se encontrara o meu

cadáver”. Ao que Foucault responderia: “[...] descobrimos então que unicamente as utopias

m instante a utopia profunda e soberana de

16). Mas, haveria uma forma exemplar de acalmar ou

acabar, ainda que momentaneamente, com o corpo utópico; um modo de se aniquilar esse

O amor, ou, como afirmou Foucault, fazer amor.

Ora, se o espelho e o cadáver, ainda que também utopias, servem para nos ensinar que há um

corpo; por que o amor seria um meio mais eficaz para esse fim? Talvez porque nesse último

evidente um elemento importante. Vejamos:

Seria talvez necessário dizer também que fazer amor é sentir o corpo refluir sobre si, é existir, enfim, fora de toda utopia, com toda densidade, entre as mãos do outro.

Page 6: OLHARES PLURAIS - Artigos 153

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Dossiê Especial: 40 anos de Vigiar e Punir

Sob os dedos do outro que nos percorrem, tpõemseuspara ver nossas pálpebras fechadas. O amor, tammorte, sereniza a utopia de nosso corpo, silencianuma caixa, trancaespelho e da ameaça da morte; e se, apesar dessas duas figucercam, amamos tanto fazer amor, é porque no amor o corpo está (FOUCAULT. 2013, p. 16).

Dissemos acima que diante do espelho e do cadáver, ainda que ambos nos ensinem

que temos um corpo, estamos ainda frente à utopias, pois nós

um nem em outro. O primeiro é imagem em um espaço inacessível; o segundo é morte, e

assim ausência. Contudo, diante dessa utopia quase incontornável que é o corpo, nos restaria

um único e último meio através do qual ele se acalma

que isso ocorreria, disse Foucault. Por quê? Talvez porque nesse último caso a presença do

outro corpo diante de seu corpo, assegure o lugar do corpo aqui e agora.

a intensidade desse encontro

apagar todas as utopias – isso parece certo na medida em que o pronome

em destaque no trecho acima citado

mas, diante do cadáver do outro não se teria o mesmo efeito? Provavelmente não, porque no

caso do cadáver o que temos é a inércia do outro. E o que Foucault parece indicar com fazer

amor é que através desse encontro entre os corpos o importante é a presença do outro q

toca, lhe beija e lhe vê; é só assim, de acordo com Foucault, que o corpo está aqui, e não em

outro lugar.

O título, “O corpo utópico”, é curioso. Pois, de saída poderia se perguntar: qual a

relação entre corpo e utopia? A princípio

utopia, pois, ele é o lugar absoluto ao qual estaríamos presos, e uma utopia seria um não lugar.

Porém, nosso filósofo mostrou

ao dizer que as utopias eram vol

próprio corpo e, em seguida, talvez, retornem contra ele” (FOUCAULT, 2013, p. 11). Um

exemplo? De acordo com ele

a lenda dos corpos imensos. É a lenda dos gigantes que se conta na Europa, Ásia, África. Ora,

se o corpo e as utopias se põem lado a lado, ele como o próprio ponto de origem e de

aplicação delas, como sabemos que temos um corpo? Que estamos aqui com ele? O espelho, o

cadáver e o fazer amor seriam as vias pelas quais poderíamos acalmar a utopia de nossos

corpos, sobretudo através da última forma, através do entrelaçamento dos corpos no sexo, no

amor.

Revista Eletrônica Multidisciplinar, Vol. 1, Nº. 14, Ano 2016

Artigos

Dossiê Especial: 40 anos de Vigiar e Punir

Sob os dedos do outro que nos percorrem, todas as partes invisíveis de nosso corpo põem-se a existir, contra os lábios do outro os nossos se tornam sensíveis, diante de seus olhos semicerrados, nosso rosto adquire uma certeza, existe um olhar, enfim, para ver nossas pálpebras fechadas. O amor, também ele, como o espelho e como a morte, sereniza a utopia de nosso corpo, silencia-a, acalmanuma caixa, tranca-a e a sela. É por isso que ele é parente tão próximo da ilusão do espelho e da ameaça da morte; e se, apesar dessas duas figucercam, amamos tanto fazer amor, é porque no amor o corpo está (FOUCAULT. 2013, p. 16).

Dissemos acima que diante do espelho e do cadáver, ainda que ambos nos ensinem

que temos um corpo, estamos ainda frente à utopias, pois nós não nos encontramos nem em

um nem em outro. O primeiro é imagem em um espaço inacessível; o segundo é morte, e

assim ausência. Contudo, diante dessa utopia quase incontornável que é o corpo, nos restaria

um único e último meio através do qual ele se acalmaria: o corpo está aqui, é através do amor

que isso ocorreria, disse Foucault. Por quê? Talvez porque nesse último caso a presença do

corpo diante de seu corpo, assegure o lugar do corpo aqui e agora.

a intensidade desse encontro durante o entrelaçamento dos corpos seria fundamental para

isso parece certo na medida em que o pronome

em destaque no trecho acima citado, ou seja: a referência ao outro. Contudo, poderiam dizer:

do cadáver do outro não se teria o mesmo efeito? Provavelmente não, porque no

caso do cadáver o que temos é a inércia do outro. E o que Foucault parece indicar com fazer

amor é que através desse encontro entre os corpos o importante é a presença do outro q

toca, lhe beija e lhe vê; é só assim, de acordo com Foucault, que o corpo está aqui, e não em

corpo utópico”, é curioso. Pois, de saída poderia se perguntar: qual a

relação entre corpo e utopia? A princípio Foucault nos diz que o corpo é o contrário de uma

utopia, pois, ele é o lugar absoluto ao qual estaríamos presos, e uma utopia seria um não lugar.

nosso filósofo mostrou que o próprio corpo encerra utopias: “Enganara

ao dizer que as utopias eram voltadas contra o corpo e destinadas a apagá

próprio corpo e, em seguida, talvez, retornem contra ele” (FOUCAULT, 2013, p. 11). Um

ele uma das utopias mais velhas na qual o corpo é o ator principal é

s imensos. É a lenda dos gigantes que se conta na Europa, Ásia, África. Ora,

se o corpo e as utopias se põem lado a lado, ele como o próprio ponto de origem e de

aplicação delas, como sabemos que temos um corpo? Que estamos aqui com ele? O espelho, o

er e o fazer amor seriam as vias pelas quais poderíamos acalmar a utopia de nossos

corpos, sobretudo através da última forma, através do entrelaçamento dos corpos no sexo, no

ISSN 2176-9249

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odas as partes invisíveis de nosso corpo se a existir, contra os lábios do outro os nossos se tornam sensíveis, diante de

olhos semicerrados, nosso rosto adquire uma certeza, existe um olhar, enfim, bém ele, como o espelho e como a

a, acalma-a, fecha-a como se a e a sela. É por isso que ele é parente tão próximo da ilusão do

espelho e da ameaça da morte; e se, apesar dessas duas figuras perigosas que o cercam, amamos tanto fazer amor, é porque no amor o corpo está aqui

Dissemos acima que diante do espelho e do cadáver, ainda que ambos nos ensinem

não nos encontramos nem em

um nem em outro. O primeiro é imagem em um espaço inacessível; o segundo é morte, e

assim ausência. Contudo, diante dessa utopia quase incontornável que é o corpo, nos restaria

ria: o corpo está aqui, é através do amor

que isso ocorreria, disse Foucault. Por quê? Talvez porque nesse último caso a presença do

corpo diante de seu corpo, assegure o lugar do corpo aqui e agora. A presença do outro,

durante o entrelaçamento dos corpos seria fundamental para

isso parece certo na medida em que o pronome seus (olhos) aparece

. Contudo, poderiam dizer:

do cadáver do outro não se teria o mesmo efeito? Provavelmente não, porque no

caso do cadáver o que temos é a inércia do outro. E o que Foucault parece indicar com fazer

amor é que através desse encontro entre os corpos o importante é a presença do outro que lhe

toca, lhe beija e lhe vê; é só assim, de acordo com Foucault, que o corpo está aqui, e não em

corpo utópico”, é curioso. Pois, de saída poderia se perguntar: qual a

que o corpo é o contrário de uma

utopia, pois, ele é o lugar absoluto ao qual estaríamos presos, e uma utopia seria um não lugar.

que o próprio corpo encerra utopias: “Enganara-me, há pouco,

tadas contra o corpo e destinadas a apagá-lo: elas nascem do

próprio corpo e, em seguida, talvez, retornem contra ele” (FOUCAULT, 2013, p. 11). Um

uma das utopias mais velhas na qual o corpo é o ator principal é

s imensos. É a lenda dos gigantes que se conta na Europa, Ásia, África. Ora,

se o corpo e as utopias se põem lado a lado, ele como o próprio ponto de origem e de

aplicação delas, como sabemos que temos um corpo? Que estamos aqui com ele? O espelho, o

er e o fazer amor seriam as vias pelas quais poderíamos acalmar a utopia de nossos

corpos, sobretudo através da última forma, através do entrelaçamento dos corpos no sexo, no

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2 CORPO: DOS SUPLÍCIOS AO ADESTRAMENTO DISCIPLINAR

Na década de 1970,

corpo: poder e corpo se articulam, é sobre ele que o poder se exerce. E que corpo é este, como

isso funciona? De acordo com Foucault,

Se fizéssemos uma história do controle social do corpo, podo século XVIII inclusive, o corpo dos indivíduos é essencialmente a superfície de inscrição de suplícios e de penas; o corpo era feito para ser supliciado e castigado. Já nas instâncias de controle que surgem a partir do século XIXsignificaçãoque deve ser formado, reformado, corrigido, o que deve adquirir aptidões, receber um certo número de qualidades, qualificar(FOUCAULT, 2005, p. 119; itálico nosso).

Para que se possa compreender o lugar, a posição que o corpo ocupou nas

investigações foucaultinas no período por nós

as formas jurídicas - pode ser um importan

poder investiu o corpo, primeiro: superfície de suplícios; segundo: aquilo que deve ser

formado e reformado, apto a trabalhar na sociedade industrial

significações diferentes acer

Mas é, sobretudo,

formulação desses dois modos de exercer o poder sobre o corpo: “o corpo dos condenados” e

“os corpos dóceis”.

Em Vigiar e punir

vingança do poder real até fins do século XVIII. O corpo do condenado era a superfície

material sobre a qual o poder real se exercia. Castigar certos crimes até essa época era

apossar-se do corpo do súdito e sobre ele provocar

termo final: a morte. Isto porque

Nas monarquias europeias, o crime era não somente descaso pela lei, transgressão. Era, a um só tempo, uma espécie de ultraje feito ao rei. Todo crime era, por assim dizer, um pequde algum modo, sua força física. Na mesma medida, a pena era a reação do poder real contra o criminoso

Isto é, “a pena era a reação do poder real” sobre o corpo do criminoso.

dos suplícios havia uma outra forma de exercício de poder sobre o corpo. Fora do campo da

9 De acordo com Dreyfus e Rabinow (2010, p. 151), em referência a clínica: “Desde o início ele se interessou pelo corpo conforme era investigado pelos cientistas e pelo poder que reside em instituições especializadas. Mais recentemente, Foucault reconheceu que essa potente relação entre saber e poder, localizada no corpo, é, na verdade, um mecanismo geral de poder da maior importância para a sociedade ocidental”. 10 Sobre o ritual do suplício: as primeir(Cf. FOUCAULT, 2009).

Revista Eletrônica Multidisciplinar, Vol. 1, Nº. 14, Ano 2016

Artigos

Dossiê Especial: 40 anos de Vigiar e Punir

CORPO: DOS SUPLÍCIOS AO ADESTRAMENTO DISCIPLINAR

da de 1970, por outro lado, é sob outra perspectiva que Foucault abordou o

corpo: poder e corpo se articulam, é sobre ele que o poder se exerce. E que corpo é este, como

o funciona? De acordo com Foucault,

Se fizéssemos uma história do controle social do corpo, podo século XVIII inclusive, o corpo dos indivíduos é essencialmente a superfície de inscrição de suplícios e de penas; o corpo era feito para ser supliciado e castigado. Já nas instâncias de controle que surgem a partir do século XIXsignificação totalmente diferente; ele não é mais o que deve ser supliciado, mas o que deve ser formado, reformado, corrigido, o que deve adquirir aptidões, receber um certo número de qualidades, qualificar-se como corpo capaz de trab(FOUCAULT, 2005, p. 119; itálico nosso).

Para que se possa compreender o lugar, a posição que o corpo ocupou nas

investigações foucaultinas no período por nós aqui estudado, essa passagem

pode ser um importante ponto de partida. Dois modos pelos quais o

poder investiu o corpo, primeiro: superfície de suplícios; segundo: aquilo que deve ser

, apto a trabalhar na sociedade industrial-capitalista nascente

significações diferentes acerca do corpo9.

em Vigiar e punir que encontramos de forma explícita a

formulação desses dois modos de exercer o poder sobre o corpo: “o corpo dos condenados” e

Foucault partiu do estudo do corpo supliciado, o qual

vingança do poder real até fins do século XVIII. O corpo do condenado era a superfície

material sobre a qual o poder real se exercia. Castigar certos crimes até essa época era

se do corpo do súdito e sobre ele provocar sofrimentos calculados, graduados até o

termo final: a morte. Isto porque

Nas monarquias europeias, o crime era não somente descaso pela lei, transgressão. Era, a um só tempo, uma espécie de ultraje feito ao rei. Todo crime era, por assim dizer, um pequeno regicídio. Atacava-se não apenas a vontade do rei, mas também, de algum modo, sua força física. Na mesma medida, a pena era a reação do poder real contra o criminoso10 (FOUCAULT, 2012a, p. 105-106).

Isto é, “a pena era a reação do poder real” sobre o corpo do criminoso.

dos suplícios havia uma outra forma de exercício de poder sobre o corpo. Fora do campo da

De acordo com Dreyfus e Rabinow (2010, p. 151), em referência a História da loucura

: “Desde o início ele se interessou pelo corpo conforme era investigado pelos cientistas e pelo poder que especializadas. Mais recentemente, Foucault reconheceu que essa potente relação entre

saber e poder, localizada no corpo, é, na verdade, um mecanismo geral de poder da maior importância para a

Sobre o ritual do suplício: as primeiras páginas de Vigiar e punir descrevem o suplício de Damiens em 1757

ISSN 2176-9249

159

CORPO: DOS SUPLÍCIOS AO ADESTRAMENTO DISCIPLINAR

por outro lado, é sob outra perspectiva que Foucault abordou o

corpo: poder e corpo se articulam, é sobre ele que o poder se exerce. E que corpo é este, como

Se fizéssemos uma história do controle social do corpo, poderíamos mostrar que, até o século XVIII inclusive, o corpo dos indivíduos é essencialmente a superfície de inscrição de suplícios e de penas; o corpo era feito para ser supliciado e castigado. Já nas instâncias de controle que surgem a partir do século XIX, o corpo adquire uma

totalmente diferente; ele não é mais o que deve ser supliciado, mas o que deve ser formado, reformado, corrigido, o que deve adquirir aptidões, receber

se como corpo capaz de trabalhar

Para que se possa compreender o lugar, a posição que o corpo ocupou nas

aqui estudado, essa passagem – de A verdade e

te ponto de partida. Dois modos pelos quais o

poder investiu o corpo, primeiro: superfície de suplícios; segundo: aquilo que deve ser

capitalista nascente. Daí duas

que encontramos de forma explícita a

formulação desses dois modos de exercer o poder sobre o corpo: “o corpo dos condenados” e

liciado, o qual era exposto à

vingança do poder real até fins do século XVIII. O corpo do condenado era a superfície

material sobre a qual o poder real se exercia. Castigar certos crimes até essa época era

sofrimentos calculados, graduados até o

Nas monarquias europeias, o crime era não somente descaso pela lei, transgressão. Era, a um só tempo, uma espécie de ultraje feito ao rei. Todo crime era, por assim

se não apenas a vontade do rei, mas também, de algum modo, sua força física. Na mesma medida, a pena era a reação do poder

106).

Isto é, “a pena era a reação do poder real” sobre o corpo do criminoso. Mas, ao lado

dos suplícios havia uma outra forma de exercício de poder sobre o corpo. Fora do campo da

História da loucura e o Nascimento da : “Desde o início ele se interessou pelo corpo conforme era investigado pelos cientistas e pelo poder que

especializadas. Mais recentemente, Foucault reconheceu que essa potente relação entre saber e poder, localizada no corpo, é, na verdade, um mecanismo geral de poder da maior importância para a

descrevem o suplício de Damiens em 1757

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Lei e ao lado dele uma forma menos visível de poder, mais sutil, corria toda

poder disciplinar. O qual na virada do sécul

impondo a prisão como a pena universal por excelência

Direito, até início do XIX, era marcado, destroçado, havia

poder que dele fazia outro uso. Sua ação era mais da ordem da modelagem, da ortopedia, do

exercício do que da destruição, da violência calculada e da morte.

Ora, ao menos duas formas diferentes de se tratar o corpo coexis

ocidentais durante o século XVIII. Mas aos poucos, de acordo com uma necessidade de

ordem econômica e social, o poder em sua forma positiva passa a ocupar cada vez mais

espaço. Sai de cena o corpo supliciado e cada vez mais fica em evid

seja nas instâncias da justiça penal, seja em toda a sociedade. Assim, para que se possa

compreender o exercício do poder

É preciso, em primeiro lugar, afastar uma tese muito difundida, segundo a qual o poder nas sociproveito da alma, da consciência, da idealidade. Na verdade, nada é mais material, nada é mais físico, mais corporal que o exercício do poder... Qual é o tipo de investimento do corpo quesociedade capitalista como a nossa? Eu penso que do século XVII ao início do século XX, acreditourígido, constante, meticuloso. Daí esses terríveconcentram nas escolas, nos hospitais, nas casernas, nas oficinas, nas cidades, nos edifícios,

Antes de se exercer sobre alma (a subjetividade, a consciência) o poder visa ao

E se “atinge” a alma é porque antes atingiu o corpo: alma, subjetividade seriam produtos do

exercício do poder sobre o corpo, as quais serviriam de instrumentos para melhor prendê

malhas do poder, serviriam para reforçar seu domínio sobre ele

corpo do adulto, da criança

aquilo, por exemplo, que a psicologia se atribui como objeto, é antes efeito do poder sobre o

corpo. Pois, o poder disciplinar ope

identifica poder à proibição, torna

Dessa forma se quisermos efetivar um

considerar que o alvo primeiro do poder é o corpo, mas também

11 “De onde vem a prisão? Eu responderia: ‘um pouco de todas as partes’. Houve ‘invenção’, sem dúvida, mas invenção de toda uma técnica de vigilância, de controle, degestos, de sua atividade, de sua eficácia. E isso, a partir do século XVI e XVII, no exército, nos colégios, escolas, hospitais, ateliês. Uma tecnologia do poder apurado e cotidiano, do poder sobre os coúltima dessa era das disciplinas” (FOUCAULT, 2012, p. 33). 12 “Não se deveria dizer que a alma é uma ilusão, ou um efeito ideológico, mas afirmar que ela existe, que tem uma realidade, que é produzida permanentemente, em torno, na superfície, no interior do corpo pelo funcionamento de um poder que se exerce sobre osvigiados, treinados e corrigidos, sobre os loucos, as crianças, [...]” (FOUCAULT, 2009, p. 32).

Revista Eletrônica Multidisciplinar, Vol. 1, Nº. 14, Ano 2016

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Lei e ao lado dele uma forma menos visível de poder, mais sutil, corria toda

qual na virada do século XVIII para o XIX colonizaria o

impondo a prisão como a pena universal por excelência11. Ou seja, se o corpo no âmbito do

Direito, até início do XIX, era marcado, destroçado, havia paralelamente outra tecnologia de

poder que dele fazia outro uso. Sua ação era mais da ordem da modelagem, da ortopedia, do

exercício do que da destruição, da violência calculada e da morte.

Ora, ao menos duas formas diferentes de se tratar o corpo coexis

ocidentais durante o século XVIII. Mas aos poucos, de acordo com uma necessidade de

ordem econômica e social, o poder em sua forma positiva passa a ocupar cada vez mais

espaço. Sai de cena o corpo supliciado e cada vez mais fica em evidência o corpo adestrado,

seja nas instâncias da justiça penal, seja em toda a sociedade. Assim, para que se possa

compreender o exercício do poder disciplinar:

É preciso, em primeiro lugar, afastar uma tese muito difundida, segundo a qual o poder nas sociedades burguesas e capitalistas teria negado a realidade do corpo em proveito da alma, da consciência, da idealidade. Na verdade, nada é mais material, nada é mais físico, mais corporal que o exercício do poder... Qual é o tipo de investimento do corpo que é necessário e suficiente ao funcionamento de uma sociedade capitalista como a nossa? Eu penso que do século XVII ao início do século XX, acreditou-se que o investimento do corpo pelo poder devia ser denso, rígido, constante, meticuloso. Daí esses terríveis regimes disciplinares que se concentram nas escolas, nos hospitais, nas casernas, nas oficinas, nas cidades, nos edifícios, nas famílias... (FOUCAULT, 2004a, p. 147-148).

Antes de se exercer sobre alma (a subjetividade, a consciência) o poder visa ao

E se “atinge” a alma é porque antes atingiu o corpo: alma, subjetividade seriam produtos do

exercício do poder sobre o corpo, as quais serviriam de instrumentos para melhor prendê

malhas do poder, serviriam para reforçar seu domínio sobre ele. Adestra

adulto, da criança e só a partir daí constitui-se a alma de um e de outro

aquilo, por exemplo, que a psicologia se atribui como objeto, é antes efeito do poder sobre o

corpo. Pois, o poder disciplinar opera produzindo, de modo que a noção de repressão

identifica poder à proibição, torna-se inútil quando adentramos esses campos de análise.

Dessa forma se quisermos efetivar uma investigação consistente, torna

rimeiro do poder é o corpo, mas também

“De onde vem a prisão? Eu responderia: ‘um pouco de todas as partes’. Houve ‘invenção’, sem dúvida, mas

invenção de toda uma técnica de vigilância, de controle, de identificação dos indivíduos, enquadramento de seus gestos, de sua atividade, de sua eficácia. E isso, a partir do século XVI e XVII, no exército, nos colégios, escolas, hospitais, ateliês. Uma tecnologia do poder apurado e cotidiano, do poder sobre os coúltima dessa era das disciplinas” (FOUCAULT, 2012, p. 33).

“Não se deveria dizer que a alma é uma ilusão, ou um efeito ideológico, mas afirmar que ela existe, que tem uma realidade, que é produzida permanentemente, em torno, na superfície, no interior do corpo pelo funcionamento de um poder que se exerce sobre os que são punidos – de uma maneira geral sobre os que são vigiados, treinados e corrigidos, sobre os loucos, as crianças, [...]” (FOUCAULT, 2009, p. 32).

ISSN 2176-9249

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Lei e ao lado dele uma forma menos visível de poder, mais sutil, corria toda a sociedade: o

o XVIII para o XIX colonizaria o Direito penal,

. Ou seja, se o corpo no âmbito do

paralelamente outra tecnologia de

poder que dele fazia outro uso. Sua ação era mais da ordem da modelagem, da ortopedia, do

Ora, ao menos duas formas diferentes de se tratar o corpo coexistiam nas sociedades

ocidentais durante o século XVIII. Mas aos poucos, de acordo com uma necessidade de

ordem econômica e social, o poder em sua forma positiva passa a ocupar cada vez mais

ência o corpo adestrado,

seja nas instâncias da justiça penal, seja em toda a sociedade. Assim, para que se possa

É preciso, em primeiro lugar, afastar uma tese muito difundida, segundo a qual o edades burguesas e capitalistas teria negado a realidade do corpo em

proveito da alma, da consciência, da idealidade. Na verdade, nada é mais material, nada é mais físico, mais corporal que o exercício do poder... Qual é o tipo de

é necessário e suficiente ao funcionamento de uma sociedade capitalista como a nossa? Eu penso que do século XVII ao início do

se que o investimento do corpo pelo poder devia ser denso, is regimes disciplinares que se

concentram nas escolas, nos hospitais, nas casernas, nas oficinas, nas cidades, nos 148).

Antes de se exercer sobre alma (a subjetividade, a consciência) o poder visa ao corpo.

E se “atinge” a alma é porque antes atingiu o corpo: alma, subjetividade seriam produtos do

exercício do poder sobre o corpo, as quais serviriam de instrumentos para melhor prendê-lo às

. Adestra-se, torna-se dócil o

se a alma de um e de outro12. No limite

aquilo, por exemplo, que a psicologia se atribui como objeto, é antes efeito do poder sobre o

e modo que a noção de repressão, que

se inútil quando adentramos esses campos de análise.

investigação consistente, torna-se importante não só

“De onde vem a prisão? Eu responderia: ‘um pouco de todas as partes’. Houve ‘invenção’, sem dúvida, mas identificação dos indivíduos, enquadramento de seus

gestos, de sua atividade, de sua eficácia. E isso, a partir do século XVI e XVII, no exército, nos colégios, escolas, hospitais, ateliês. Uma tecnologia do poder apurado e cotidiano, do poder sobre os corpos. A prisão é a figura

“Não se deveria dizer que a alma é uma ilusão, ou um efeito ideológico, mas afirmar que ela existe, que tem uma realidade, que é produzida permanentemente, em torno, na superfície, no interior do corpo pelo

de uma maneira geral sobre os que são vigiados, treinados e corrigidos, sobre os loucos, as crianças, [...]” (FOUCAULT, 2009, p. 32).

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Dossiê Especial: 40 anos de Vigiar e Punir

É preciso se distinguir dos pararepressão uma importância exagerada. Pois se o poder só tivesse a função de reprimir, se agisse apenas por meio da censura, da exclusão, do recalcamento, à maneira de um grande supermodo negativo, ele seria muito frágil. Se ele é forte, é porque produz efeitos positivos a nível do desejo saber.saber sobre o corpo, foi através de um conjunto de disciplinas militares e escolares. É a partir de um poder sobre o corpo que foi possível um saber fisiol(FOUCAULT

Portanto, o poder não só como forma compacta, limitadora, aliás, não uma forma, mas

o caráter produtivo do poder, o caráter relacional entre poder e saber, relação que é uma

constante nesse período no pensamento de Foucault. Pode

e Rabinow (2010, p. 140), que suas pesquisas nessa época tem como baliza uma tríade: “o

genealogista é aquele que diagnostica e se concentra nas relações de poder, saber e corpo na

sociedade moderna”. O intercâmbio, a artic

ele: a tecnologia política do corpo “[...]

– [...]” (DREYFUS; RABINOW, 2010, p. 151).

Esta tecnologia política do corpo é ativada ou posta em funcion

procedimentos disciplinares, que se exercem sobre ele de forma detalhada, mais sobre os

processos do que sobre os resultados. Técnicas sempre menores, se comparadas aos rituais do

poder soberano, minuciosas, mas muito mais eficazes por serem e

uma rede sobre a sociedade; a disciplina é em última instância, e daí sua astúcia: “[...] uma

anatomia política do detalhe” (FOUCAULT, 2009, p. 134).

Pode-se encontrar entre os textos dessa época um número considerável de

que façam referência ao corpo: “tecnologia política do corpo”; “anatomia política”; “anatomia

política do detalhe”; “ortopedia social”, pois, “um dos maiores empreendimentos de Foucault

foi sua habilidade de isolar e conceituar o modo pelo qual o co

essencial para a operação das relações de poder na sociedade moderna” (DREYFUS;

RABINOW, 2010, p. 150).

Se o corpo é objeto de um poder de tamanha flexibilidade e funcionalidade; se a partir

desse investimento sobre o corpo se c

somos, o que fazer? É possível um outro corpo que não seja o produto da disciplina

corpo indócil e inútil? Já que a disciplina o torna dócil e útil. Um corpo que seja improdutivo,

que não se deixe levar pelos objetivos da sociedade ocidental moderna. Corpo que não seja só

13 É possível uma sociedade que não esteja atravessada por dispositivos disciplinares? Provavelmente simedida em que eles fazem parte de uma formação históricadado a mudança. O próprio Foucault

Revista Eletrônica Multidisciplinar, Vol. 1, Nº. 14, Ano 2016

Artigos

Dossiê Especial: 40 anos de Vigiar e Punir

É preciso se distinguir dos para-marxistas como Marcuse, que dão à noção de repressão uma importância exagerada. Pois se o poder só tivesse a função de reprimir, se agisse apenas por meio da censura, da exclusão, do recalcamento, à maneira de um grande super-ego, se apenas se exercesse de um modo negativo, ele seria muito frágil. Se ele é forte, é porque produz efeitos positivos a nível do desejo – como se começa a conhecer saber. O poder, longe de impedir o saber, o produz. Se foi possível constituir um saber sobre o corpo, foi através de um conjunto de disciplinas militares e escolares. É a partir de um poder sobre o corpo que foi possível um saber fisiol(FOUCAULT, 2004a, p. 148-149).

poder não só como forma compacta, limitadora, aliás, não uma forma, mas

o caráter produtivo do poder, o caráter relacional entre poder e saber, relação que é uma

constante nesse período no pensamento de Foucault. Pode-se afirmar, como observou Dreyfus

e Rabinow (2010, p. 140), que suas pesquisas nessa época tem como baliza uma tríade: “o

genealogista é aquele que diagnostica e se concentra nas relações de poder, saber e corpo na

sociedade moderna”. O intercâmbio, a articulação dessa tríade daria forma a uma noção cara a

ele: a tecnologia política do corpo “[...] - o cruzamento das relações entre poder, saber e corpo

[...]” (DREYFUS; RABINOW, 2010, p. 151).

Esta tecnologia política do corpo é ativada ou posta em funcion

procedimentos disciplinares, que se exercem sobre ele de forma detalhada, mais sobre os

processos do que sobre os resultados. Técnicas sempre menores, se comparadas aos rituais do

poder soberano, minuciosas, mas muito mais eficazes por serem elas ininterruptas, formando

uma rede sobre a sociedade; a disciplina é em última instância, e daí sua astúcia: “[...] uma

anatomia política do detalhe” (FOUCAULT, 2009, p. 134).

se encontrar entre os textos dessa época um número considerável de

referência ao corpo: “tecnologia política do corpo”; “anatomia política”; “anatomia

política do detalhe”; “ortopedia social”, pois, “um dos maiores empreendimentos de Foucault

foi sua habilidade de isolar e conceituar o modo pelo qual o corpo se tornou o componente

essencial para a operação das relações de poder na sociedade moderna” (DREYFUS;

RABINOW, 2010, p. 150).

Se o corpo é objeto de um poder de tamanha flexibilidade e funcionalidade; se a partir

desse investimento sobre o corpo se constituiu o indivíduo que somos, o corpo sujeitado que

somos, o que fazer? É possível um outro corpo que não seja o produto da disciplina

corpo indócil e inútil? Já que a disciplina o torna dócil e útil. Um corpo que seja improdutivo,

levar pelos objetivos da sociedade ocidental moderna. Corpo que não seja só

É possível uma sociedade que não esteja atravessada por dispositivos disciplinares? Provavelmente si

que eles fazem parte de uma formação histórica e, como sabemos, tudo que é histórico é perecível, dado a mudança. O próprio Foucault na década de 1970 afirmava a crise da sociedade disciplinar.

ISSN 2176-9249

161

marxistas como Marcuse, que dão à noção de repressão uma importância exagerada. Pois se o poder só tivesse a função de reprimir, se agisse apenas por meio da censura, da exclusão, do impedimento, do

ego, se apenas se exercesse de um modo negativo, ele seria muito frágil. Se ele é forte, é porque produz efeitos

como se começa a conhecer – e também a nível do O poder, longe de impedir o saber, o produz. Se foi possível constituir um

saber sobre o corpo, foi através de um conjunto de disciplinas militares e escolares. É a partir de um poder sobre o corpo que foi possível um saber fisiológico, orgânico

poder não só como forma compacta, limitadora, aliás, não uma forma, mas

o caráter produtivo do poder, o caráter relacional entre poder e saber, relação que é uma

e afirmar, como observou Dreyfus

e Rabinow (2010, p. 140), que suas pesquisas nessa época tem como baliza uma tríade: “o

genealogista é aquele que diagnostica e se concentra nas relações de poder, saber e corpo na

ulação dessa tríade daria forma a uma noção cara a

o cruzamento das relações entre poder, saber e corpo

Esta tecnologia política do corpo é ativada ou posta em funcionamento pelos

procedimentos disciplinares, que se exercem sobre ele de forma detalhada, mais sobre os

processos do que sobre os resultados. Técnicas sempre menores, se comparadas aos rituais do

las ininterruptas, formando

uma rede sobre a sociedade; a disciplina é em última instância, e daí sua astúcia: “[...] uma

se encontrar entre os textos dessa época um número considerável de expressões

referência ao corpo: “tecnologia política do corpo”; “anatomia política”; “anatomia

política do detalhe”; “ortopedia social”, pois, “um dos maiores empreendimentos de Foucault

rpo se tornou o componente

essencial para a operação das relações de poder na sociedade moderna” (DREYFUS;

Se o corpo é objeto de um poder de tamanha flexibilidade e funcionalidade; se a partir

onstituiu o indivíduo que somos, o corpo sujeitado que

somos, o que fazer? É possível um outro corpo que não seja o produto da disciplina13, um

corpo indócil e inútil? Já que a disciplina o torna dócil e útil. Um corpo que seja improdutivo,

levar pelos objetivos da sociedade ocidental moderna. Corpo que não seja só

É possível uma sociedade que não esteja atravessada por dispositivos disciplinares? Provavelmente sim, na como sabemos, tudo que é histórico é perecível,

década de 1970 afirmava a crise da sociedade disciplinar.

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Dossiê Especial: 40 anos de Vigiar e Punir

produtor de objetos e mercadorias, que não seja produtor e fonte de saber, que não seja

consumidor e consumido. Em suma: é possível um corpo indisciplinado? Ora, é provável que

um outro corpo que não o formatado pela disciplina seja possível. Para tanto seria

imprescindível atacar a disciplina, fazer parar seus procedimentos e técnicas, desarranjar sua

rede, na medida em que é através deles que somos aquilo que somos enquanto corpo

disciplinados.

Mas, ainda que possível, isso não seria muito fácil, na medida em que o próprio

Foucault não apontou uma saída evidente, uma forma de se esquivar às malhas da disciplina, à

maquinaria panóptica, que cotidianamente toma uma multiplicidade q

treina e exercita, cria hábitos. O que fazer se a escola

desejável? O que fazer se com o exército

fora das demais instituições? Ou seja, o que fazer

indivíduos, mas já é parte inseparável da vida ordinária?

De modo mais radical e difí

passou e passa por muitas vias,

isto é, do modelo de exclusão do leproso ao modelo de inclusão do pestífero e, por fim, ao

panoptismo15. Seria um beco sem saída? Porque se o poder funciona em rede, e nós somos os

pontos de tal rede, aquilo que liga os fios de tal rede, como m

daquilo que nos constitui? Apresenta

notado. Vejamos: quando estudou os arquivos sobre “a vida dos homens infames” e preparou

um livro a partir desse material, Foucault e

Alguém me dirá: isso é bem próprio de você, sempre a mesma incapacidade de ultrapassar a linha, de passar para o outro lado, de escutar e fazer ouvir a linguagem que vem de outro lugar ou de baixo; sempre a mesma escolha, do lado dque ele diz ou do que ele faz dizer. Essas vidas, por que não ir escutápor elas próprias, elas falam? Mas, em primeiro lugar, do que elas foram em sua violência ou em sua desgraça singular, nos restaria qualquer coisa se elas não tivessem, em um dado momento, cruzado com o poder e provocado suas forças? Afinal, não é um dos traços fundamentais de nossa sociedade o fato de que nela o destino tome a força da relação com o poder, da luta com ou contramais intenso das vidse chocam com o poder, se debatem com ele, tentam utilizar suas forças ou escapar de suas armadilhas (2003

Nosso filósofo procurou justificar essa hipotética crítica a sua “incap

ultrapassar a linha”, isto é, sua incapacidade de estar fora do poder, assim: afirmou que aquilo

que estudou e doravante apresentaria a nós não poderia ser estudado se não fosse o poder. Foi

14 FOUCAULT, Michel. História da loucura na Id15 Sistematização/concentração das disciplinas em um projeto arquitetural (proposto pelo inglês Jeremy Bentham no final do XVIII) transferível e adaptável as mais variadas instituições: prisão, fábrica, hospital,

Revista Eletrônica Multidisciplinar, Vol. 1, Nº. 14, Ano 2016

Artigos

Dossiê Especial: 40 anos de Vigiar e Punir

produtor de objetos e mercadorias, que não seja produtor e fonte de saber, que não seja

consumidor e consumido. Em suma: é possível um corpo indisciplinado? Ora, é provável que

outro corpo que não o formatado pela disciplina seja possível. Para tanto seria

imprescindível atacar a disciplina, fazer parar seus procedimentos e técnicas, desarranjar sua

rede, na medida em que é através deles que somos aquilo que somos enquanto corpo

Mas, ainda que possível, isso não seria muito fácil, na medida em que o próprio

Foucault não apontou uma saída evidente, uma forma de se esquivar às malhas da disciplina, à

maquinaria panóptica, que cotidianamente toma uma multiplicidade qualquer e individualiza,

treina e exercita, cria hábitos. O que fazer se a escola-disciplina nos parece necessária e

desejável? O que fazer se com o exército-disciplina acontece o mesmo, e o mesmo dentro e

fora das demais instituições? Ou seja, o que fazer se a disciplina hoje não só fabrica

indivíduos, mas já é parte inseparável da vida ordinária?

De modo mais radical e difícil: Foucault descreveu que o controle sobre o indivíduo

passou e passa por muitas vias, do internamento dos desrazoados14 à disciplina

isto é, do modelo de exclusão do leproso ao modelo de inclusão do pestífero e, por fim, ao

. Seria um beco sem saída? Porque se o poder funciona em rede, e nós somos os

pontos de tal rede, aquilo que liga os fios de tal rede, como modificar isso? Como se esquivar

daquilo que nos constitui? Apresenta-se aqui um problema que o próprio Foucault parece ter

notado. Vejamos: quando estudou os arquivos sobre “a vida dos homens infames” e preparou

um livro a partir desse material, Foucault expôs assim o problema:

Alguém me dirá: isso é bem próprio de você, sempre a mesma incapacidade de ultrapassar a linha, de passar para o outro lado, de escutar e fazer ouvir a linguagem que vem de outro lugar ou de baixo; sempre a mesma escolha, do lado dque ele diz ou do que ele faz dizer. Essas vidas, por que não ir escutápor elas próprias, elas falam? Mas, em primeiro lugar, do que elas foram em sua violência ou em sua desgraça singular, nos restaria qualquer coisa se elas não tivessem, em um dado momento, cruzado com o poder e provocado suas forças? Afinal, não é um dos traços fundamentais de nossa sociedade o fato de que nela o destino tome a força da relação com o poder, da luta com ou contramais intenso das vidas, aquele em que se concentra sua energia, é bem ali onde elas se chocam com o poder, se debatem com ele, tentam utilizar suas forças ou escapar de suas armadilhas (2003a, p. 208).

Nosso filósofo procurou justificar essa hipotética crítica a sua “incap

ultrapassar a linha”, isto é, sua incapacidade de estar fora do poder, assim: afirmou que aquilo

que estudou e doravante apresentaria a nós não poderia ser estudado se não fosse o poder. Foi

História da loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 2008a.

ão das disciplinas em um projeto arquitetural (proposto pelo inglês Jeremy Bentham no final do XVIII) transferível e adaptável as mais variadas instituições: prisão, fábrica, hospital,

ISSN 2176-9249

162

produtor de objetos e mercadorias, que não seja produtor e fonte de saber, que não seja

consumidor e consumido. Em suma: é possível um corpo indisciplinado? Ora, é provável que

outro corpo que não o formatado pela disciplina seja possível. Para tanto seria

imprescindível atacar a disciplina, fazer parar seus procedimentos e técnicas, desarranjar sua

rede, na medida em que é através deles que somos aquilo que somos enquanto corpos

Mas, ainda que possível, isso não seria muito fácil, na medida em que o próprio

Foucault não apontou uma saída evidente, uma forma de se esquivar às malhas da disciplina, à

ualquer e individualiza,

disciplina nos parece necessária e

disciplina acontece o mesmo, e o mesmo dentro e

se a disciplina hoje não só fabrica

que o controle sobre o indivíduo

à disciplina do soldado;

isto é, do modelo de exclusão do leproso ao modelo de inclusão do pestífero e, por fim, ao

. Seria um beco sem saída? Porque se o poder funciona em rede, e nós somos os

odificar isso? Como se esquivar

se aqui um problema que o próprio Foucault parece ter

notado. Vejamos: quando estudou os arquivos sobre “a vida dos homens infames” e preparou

Alguém me dirá: isso é bem próprio de você, sempre a mesma incapacidade de ultrapassar a linha, de passar para o outro lado, de escutar e fazer ouvir a linguagem que vem de outro lugar ou de baixo; sempre a mesma escolha, do lado do poder, do que ele diz ou do que ele faz dizer. Essas vidas, por que não ir escutá-las lá onde, por elas próprias, elas falam? Mas, em primeiro lugar, do que elas foram em sua violência ou em sua desgraça singular, nos restaria qualquer coisa se elas não tivessem, em um dado momento, cruzado com o poder e provocado suas forças? Afinal, não é um dos traços fundamentais de nossa sociedade o fato de que nela o destino tome a força da relação com o poder, da luta com ou contra ele? O ponto

as, aquele em que se concentra sua energia, é bem ali onde elas se chocam com o poder, se debatem com ele, tentam utilizar suas forças ou escapar

Nosso filósofo procurou justificar essa hipotética crítica a sua “incapacidade de

ultrapassar a linha”, isto é, sua incapacidade de estar fora do poder, assim: afirmou que aquilo

que estudou e doravante apresentaria a nós não poderia ser estudado se não fosse o poder. Foi

. São Paulo: Perspectiva, 2008a. ão das disciplinas em um projeto arquitetural (proposto pelo inglês Jeremy Bentham

no final do XVIII) transferível e adaptável as mais variadas instituições: prisão, fábrica, hospital, escola.

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Dossiê Especial: 40 anos de Vigiar e Punir

na medida em que vidas e técnicas de poder se encontra

perdidas de uma vez por todas, puderam ocupar um lugar nos arquivos da história: existências

cotidianas e ordinárias que ao se chocarem com o poder puderam ser anotadas, escritas e

registradas. Deleuze na pista do mesmo pr

O sujeito é sempre uma derivada. Ele nasce e se esvai na espessura do que se diz, do que se vê. Foucault tirará daí uma concepção muito curiosa do ‘homem infame’, [...]. O homem infame é [...] o homem comum, o homem qualquer, bruscameniluminado por um fato corriqueiro, queixa dos vizinhos, presença da polícia, processo... É o homem confrontado ao Poder, intimado a falar e se mostrar (DELEUZE, 1992, p. 134).

O homem infame, que é o homem comum, e nós que também somos homens comuns

somos uma derivada, na medida em que estamos sempre em embate com o poder disciplinar

do nascimento à morte. Essa tecnologia de poder que marca a vida de todos à toda hora, como

dela se esquivar? Voltamos aqui, portanto, ao ponto inicial, como constituir u

indisciplinado, não normalizado, não enquadrado e fabricado? Ou ao menos, como constituir

um corpo que volta os procedimentos disciplinares a seu favor? Sabe

encera uma negatividade, pelo contrário, é antes produtiva, mas é

torna dócil-útil, corpo dócil que obedece, corpo útil que produz. O importante talvez fosse

voltar a produtividade da disciplina a outros objetivos, um corpo disciplinado que dança,

como o do bailarino16. Ou dois exemplos que nos vêm d

corpo do faquir. Corpos forjados sob práticas ascéticas, sobre os quais se poderia dizer: “mas

não participam da cultura Ocidental, portanto não são alvos do tipo de poder que se

desenvolveu aqui”. Ao que se poderia respon

que é a disciplina tal como a conhecemos, mas que servem de exemplo, e mostram outras

possíveis configurações do corpo”. Um corpo ascético, e “disciplinado” (todavia, uma

disciplina que desafia a nossa e, portan

si mesmo, que adestrando

teríamos, em relação ao corpo disciplinado de todos os dias, um heterocorpo. Talvez por isso

esses corpos orientais nos pareçam exóticos, na medida em que enceram o outro daquilo que

16 E assim desarticular os dispositivos disciplinares pondo em xeque a sua necessidade. 17 Sobre esse ponto acerca do Oriente e Ocidente: “essa dissolução da constrangedora subjetividade europeia que nos foi imposta pela cultura a partir do século que o zen budismo me interessa. [...] as regras da espiritualidade budista devem tender a desindividualização, a uma dessubjetivação, a fazer passar a individualidade aos seus limites visarespeito ao sujeito” (FOUCAULT, 2011já não sejam uma saída, um modo de dessubjetivação e subjetivação: pois elas cada vez mais são capturadas pelas forças do capitalismo. Em que o corpo autodisciplinado propalado pelos adeptos ocidentais da ioga, por exemplo, talvez não passe de um objeto estético exposto na vitrine do mundo.

Revista Eletrônica Multidisciplinar, Vol. 1, Nº. 14, Ano 2016

Artigos

Dossiê Especial: 40 anos de Vigiar e Punir

na medida em que vidas e técnicas de poder se encontraram que essas vidas, que estariam

perdidas de uma vez por todas, puderam ocupar um lugar nos arquivos da história: existências

cotidianas e ordinárias que ao se chocarem com o poder puderam ser anotadas, escritas e

registradas. Deleuze na pista do mesmo problema, afirmou que

O sujeito é sempre uma derivada. Ele nasce e se esvai na espessura do que se diz, do que se vê. Foucault tirará daí uma concepção muito curiosa do ‘homem infame’, [...]. O homem infame é [...] o homem comum, o homem qualquer, bruscameniluminado por um fato corriqueiro, queixa dos vizinhos, presença da polícia, processo... É o homem confrontado ao Poder, intimado a falar e se mostrar (DELEUZE, 1992, p. 134).

O homem infame, que é o homem comum, e nós que também somos homens comuns

somos uma derivada, na medida em que estamos sempre em embate com o poder disciplinar

do nascimento à morte. Essa tecnologia de poder que marca a vida de todos à toda hora, como

dela se esquivar? Voltamos aqui, portanto, ao ponto inicial, como constituir u

indisciplinado, não normalizado, não enquadrado e fabricado? Ou ao menos, como constituir

um corpo que volta os procedimentos disciplinares a seu favor? Sabe-se que a disciplina não

encera uma negatividade, pelo contrário, é antes produtiva, mas é uma produtividade que

útil, corpo dócil que obedece, corpo útil que produz. O importante talvez fosse

voltar a produtividade da disciplina a outros objetivos, um corpo disciplinado que dança,

. Ou dois exemplos que nos vêm do Oriente17: o corpo do iogue, e o

corpo do faquir. Corpos forjados sob práticas ascéticas, sobre os quais se poderia dizer: “mas

não participam da cultura Ocidental, portanto não são alvos do tipo de poder que se

desenvolveu aqui”. Ao que se poderia responder: “corpos não ocidentais, que não sabem o

que é a disciplina tal como a conhecemos, mas que servem de exemplo, e mostram outras

possíveis configurações do corpo”. Um corpo ascético, e “disciplinado” (todavia, uma

disciplina que desafia a nossa e, portanto, implicando em indisciplina), mas que se volta sobre

si mesmo, que adestrando-se, se adestra para que o domínio sobre si seja maior; assim

teríamos, em relação ao corpo disciplinado de todos os dias, um heterocorpo. Talvez por isso

s nos pareçam exóticos, na medida em que enceram o outro daquilo que

E assim desarticular os dispositivos disciplinares pondo em xeque a sua necessidade. Sobre esse ponto acerca do Oriente e Ocidente: “essa dissolução da constrangedora subjetividade europeia que

nos foi imposta pela cultura a partir do século XIX é ainda o que está em jogo, penso eu, nas lutas atuais. É nisso que o zen budismo me interessa. [...] as regras da espiritualidade budista devem tender a desindividualização, a uma dessubjetivação, a fazer passar a individualidade aos seus limites visando a uma libertação no que diz

ito ao sujeito” (FOUCAULT, 2011, p. 244-245). Embora se deva notar que hoje as práticas orientais talvez já não sejam uma saída, um modo de dessubjetivação e subjetivação: pois elas cada vez mais são capturadas

rças do capitalismo. Em que o corpo autodisciplinado propalado pelos adeptos ocidentais da ioga, por exemplo, talvez não passe de um objeto estético exposto na vitrine do mundo.

ISSN 2176-9249

163

ram que essas vidas, que estariam

perdidas de uma vez por todas, puderam ocupar um lugar nos arquivos da história: existências

cotidianas e ordinárias que ao se chocarem com o poder puderam ser anotadas, escritas e

O sujeito é sempre uma derivada. Ele nasce e se esvai na espessura do que se diz, do que se vê. Foucault tirará daí uma concepção muito curiosa do ‘homem infame’, [...]. O homem infame é [...] o homem comum, o homem qualquer, bruscamente iluminado por um fato corriqueiro, queixa dos vizinhos, presença da polícia, processo... É o homem confrontado ao Poder, intimado a falar e se mostrar

O homem infame, que é o homem comum, e nós que também somos homens comuns

somos uma derivada, na medida em que estamos sempre em embate com o poder disciplinar

do nascimento à morte. Essa tecnologia de poder que marca a vida de todos à toda hora, como

dela se esquivar? Voltamos aqui, portanto, ao ponto inicial, como constituir um corpo

indisciplinado, não normalizado, não enquadrado e fabricado? Ou ao menos, como constituir

se que a disciplina não

uma produtividade que

útil, corpo dócil que obedece, corpo útil que produz. O importante talvez fosse

voltar a produtividade da disciplina a outros objetivos, um corpo disciplinado que dança,

: o corpo do iogue, e o

corpo do faquir. Corpos forjados sob práticas ascéticas, sobre os quais se poderia dizer: “mas

não participam da cultura Ocidental, portanto não são alvos do tipo de poder que se

der: “corpos não ocidentais, que não sabem o

que é a disciplina tal como a conhecemos, mas que servem de exemplo, e mostram outras

possíveis configurações do corpo”. Um corpo ascético, e “disciplinado” (todavia, uma

to, implicando em indisciplina), mas que se volta sobre

se, se adestra para que o domínio sobre si seja maior; assim

teríamos, em relação ao corpo disciplinado de todos os dias, um heterocorpo. Talvez por isso

s nos pareçam exóticos, na medida em que enceram o outro daquilo que

E assim desarticular os dispositivos disciplinares pondo em xeque a sua necessidade. Sobre esse ponto acerca do Oriente e Ocidente: “essa dissolução da constrangedora subjetividade europeia que

XIX é ainda o que está em jogo, penso eu, nas lutas atuais. É nisso que o zen budismo me interessa. [...] as regras da espiritualidade budista devem tender a desindividualização, a

ndo a uma libertação no que diz Embora se deva notar que hoje as práticas orientais talvez

já não sejam uma saída, um modo de dessubjetivação e subjetivação: pois elas cada vez mais são capturadas rças do capitalismo. Em que o corpo autodisciplinado propalado pelos adeptos ocidentais da ioga, por

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Dossiê Especial: 40 anos de Vigiar e Punir

somos. É certo que isso talvez pareça um exagero, na medida em que o mundo há vários

séculos se torna maior e menor ao mesmo tempo, isto é, as distâncias se apagam cada vez

mais e com isso as diferenças. Mas é provável que ainda possam existir muitos tipos de

corpos indisciplinados, até mesmo entre nós. Vejamos dois exemplos da literatura moderna

usados por Pelbart, o corpo magro do jejuador (Kafka, “Um artista da fome”), e o corpo

raquítico de Bartleby (Melville, “Bartleby, o escrivão”):

pensemos na fragilidade desses corpos, próximos do inumano, em posturas que tangenciam a morte, e que no entanto enceram uma estranha obstinação, uma recusa inabalável. Nessa renúncia ao mundo pressentimafirma algo essencial do próprio mundo. Nesses seres somos confrontados a uma surdez que é uma audição, uma cegueira que é uma vidência, um torpor que é uma sensibilidade exacerbada, uma apatia que é puro indício de uma vitalidade superior (PELBART, 2003, p. 43

Em ambos, o jejuador e Bartleby, imagens de corpos frágeis, mas que atestam uma

recusa inabalável, recusa do quê? Poderíamos dizer que é uma recusa ao sistema de coerção

da disciplina, que toma para si o corpo de cada um de nós e molda, adestra. Em ambos uma

recusa que é uma marca de resistência, ainda que essa resistência possa conduzir à morte.

Portanto, um outro corpo que não o disciplinado pode existir, contudo é sempre um

risco que nos levaria ao limite de nós mesmos.

que levar aos limites as possibilidades de configuração de outros corpos, de outros modos de

vida, isto é, novas formas de subjetividades.

CONCLUSÃO A trajetória aqui efetivada

estudado, antes da década de 1970, o corpo.

entanto, como se mostrou, corpo

outro lado, vimos que o corpo também foi compreendido pelo filósofo francês enquanto

objeto e alvo de poder, poder disciplinar: na

corpo é o lugar onde se exerce um tipo de poder com o

normal, o qual é, ou deve ser, politicamente dócil e economicamente útil. Por fim, diante da

necessidade de se avançar sobre a maquinaria disciplinar e fabricar outro corpo, pensou

um corpo inútil e indócil, contradis

ataque às disciplinas e fabricação de um outro corpo (isto é, uma outra subjetividade), seja

importante a potência utópica do corpo: isto é, talvez contra o poder

opor esta potência-criadora

Revista Eletrônica Multidisciplinar, Vol. 1, Nº. 14, Ano 2016

Artigos

Dossiê Especial: 40 anos de Vigiar e Punir

somos. É certo que isso talvez pareça um exagero, na medida em que o mundo há vários

séculos se torna maior e menor ao mesmo tempo, isto é, as distâncias se apagam cada vez

o as diferenças. Mas é provável que ainda possam existir muitos tipos de

corpos indisciplinados, até mesmo entre nós. Vejamos dois exemplos da literatura moderna

usados por Pelbart, o corpo magro do jejuador (Kafka, “Um artista da fome”), e o corpo

co de Bartleby (Melville, “Bartleby, o escrivão”):

pensemos na fragilidade desses corpos, próximos do inumano, em posturas que tangenciam a morte, e que no entanto enceram uma estranha obstinação, uma recusa inabalável. Nessa renúncia ao mundo pressentimos o signo de uma resistência. Aí se afirma algo essencial do próprio mundo. Nesses seres somos confrontados a uma surdez que é uma audição, uma cegueira que é uma vidência, um torpor que é uma sensibilidade exacerbada, uma apatia que é puro páthosindício de uma vitalidade superior (PELBART, 2003, p. 43

Em ambos, o jejuador e Bartleby, imagens de corpos frágeis, mas que atestam uma

recusa inabalável, recusa do quê? Poderíamos dizer que é uma recusa ao sistema de coerção

sciplina, que toma para si o corpo de cada um de nós e molda, adestra. Em ambos uma

recusa que é uma marca de resistência, ainda que essa resistência possa conduzir à morte.

Portanto, um outro corpo que não o disciplinado pode existir, contudo é sempre um

risco que nos levaria ao limite de nós mesmos. E a resistência talvez não seja nada mais do

que levar aos limites as possibilidades de configuração de outros corpos, de outros modos de

vida, isto é, novas formas de subjetividades.

efetivada, a partir do corpo utópico, mostra que Foucault já havia

estudado, antes da década de 1970, o corpo. À primeira vista corpo-lugar, corpo

entanto, como se mostrou, corpo-utópico, e ponto a partir do qual deriva a(s) utopia(s)

outro lado, vimos que o corpo também foi compreendido pelo filósofo francês enquanto

objeto e alvo de poder, poder disciplinar: na perspectiva de Foucault desde

corpo é o lugar onde se exerce um tipo de poder com o objetivo de fabricar o indivíduo

normal, o qual é, ou deve ser, politicamente dócil e economicamente útil. Por fim, diante da

necessidade de se avançar sobre a maquinaria disciplinar e fabricar outro corpo, pensou

um corpo inútil e indócil, contradisciplinar, mas autodisciplinado. Talvez também para tal

ataque às disciplinas e fabricação de um outro corpo (isto é, uma outra subjetividade), seja

importante a potência utópica do corpo: isto é, talvez contra o poder-

criadora, esta fábrica do possível.

ISSN 2176-9249

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somos. É certo que isso talvez pareça um exagero, na medida em que o mundo há vários

séculos se torna maior e menor ao mesmo tempo, isto é, as distâncias se apagam cada vez

o as diferenças. Mas é provável que ainda possam existir muitos tipos de

corpos indisciplinados, até mesmo entre nós. Vejamos dois exemplos da literatura moderna

usados por Pelbart, o corpo magro do jejuador (Kafka, “Um artista da fome”), e o corpo

pensemos na fragilidade desses corpos, próximos do inumano, em posturas que tangenciam a morte, e que no entanto enceram uma estranha obstinação, uma recusa

os o signo de uma resistência. Aí se afirma algo essencial do próprio mundo. Nesses seres somos confrontados a uma surdez que é uma audição, uma cegueira que é uma vidência, um torpor que é uma

páthos, uma fragilidade que é indício de uma vitalidade superior (PELBART, 2003, p. 43-44).

Em ambos, o jejuador e Bartleby, imagens de corpos frágeis, mas que atestam uma

recusa inabalável, recusa do quê? Poderíamos dizer que é uma recusa ao sistema de coerção

sciplina, que toma para si o corpo de cada um de nós e molda, adestra. Em ambos uma

recusa que é uma marca de resistência, ainda que essa resistência possa conduzir à morte.

Portanto, um outro corpo que não o disciplinado pode existir, contudo é sempre um risco, um

E a resistência talvez não seja nada mais do

que levar aos limites as possibilidades de configuração de outros corpos, de outros modos de

, a partir do corpo utópico, mostra que Foucault já havia

lugar, corpo-limite. No

riva a(s) utopia(s). Por

outro lado, vimos que o corpo também foi compreendido pelo filósofo francês enquanto

perspectiva de Foucault desde o século XVII o

objetivo de fabricar o indivíduo

normal, o qual é, ou deve ser, politicamente dócil e economicamente útil. Por fim, diante da

necessidade de se avançar sobre a maquinaria disciplinar e fabricar outro corpo, pensou-se em

ciplinar, mas autodisciplinado. Talvez também para tal

ataque às disciplinas e fabricação de um outro corpo (isto é, uma outra subjetividade), seja

-que-enquadra deva-se

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