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Do livro como experiência à vida como experimentação Uma experiência é sempre uma ficção; é algo que nós mesmos fabricamos, que não existe antes e que não existirá depois Peter Pal Pélbart Em uma entrevista de 1980, Foucault diz que seus livros são para ele experiências no sentido pleno da palavra, já que deles ele próprio saiu transformado. Uma experiência, portanto, poderia ser definida a partir desse crivo: trata-se de uma transformação do sujeito. Um livro concebido como uma experiência é algo que transforma aquele que o escreve e aquilo que ele pensa, antes mesmo de transformar aquilo de que trata. Foucault confessa que os autores que mais o marcaram não foram os grandes construtores de sistema, mas sim aqueles que lhe permitiram escapar precisamente dessa formação universitária, isto é, aqueles para quem a escrita era uma experiência de autotransformação, tais como Nietzsche, Bataille, Blanchot. Ora, o que esses autores deram a Foucault de tão essencial, mesmo sendo marginais no que se costuma entender por história da filosofia? Precisamente uma concepção de experiência como uma metamorfose, uma transformação na relação com as coisas, com os outros, consigo mesmo, com a verdade. Foi o que ocorreu no estudo dos grandes objetos pesquisados por Foucault, como a loucura, a delinquência, a sexualidade – todos os livros escritos a respeito resultaram em uma transformação profunda na relação que o autor, o leitor, enfim, o próprio tempo de Foucault se viu impelido a ter com esses domínios. Em que, contudo, a noção de experiência evocada por Foucault difere daquela formulada pela fenomenologia? Se a experiência do fenomenólogo consiste em pousar um olhar reflexivo sobre um objeto qualquer do vivido, sobre o cotidiano em sua forma transitória, para dele extrair as significações, a experiência à qual Foucault se refere, ao contrário, trata não de atingir um objeto do vivido, mas um ponto da vida que seja o mais próximo do invivível. Não a vida vivida, mas o invivível da vida. Não a experiência possível, mas a experiência impossível. Não a experiência trivial, mas aquela em que a vida atinge o máximo de intensidade, abolindo-se. Não a experiência cotidiana, mas a experiência-limite. A fenomenologia trata de apreender a significação da experiência cotidiana para reencontrar,

Do Livro Como Experiência à Vida Como Experimentação

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Do livro como experiência à vida como experimentaçãoUma experiência é sempre uma ficção; é algo que nós mesmos fabricamos, que

não existe antes e que não existirá depoisPeter Pal PélbartEm uma entrevista de 1980, Foucault diz que seus livros são para ele

experiências no sentido pleno da palavra, já que deles ele próprio saiu transformado. Uma experiência, portanto, poderia ser definida a partir desse crivo: trata-se de uma transformação do sujeito. Um livro concebido como uma experiência é algo que transforma aquele que o escreve e aquilo que ele pensa, antes mesmo de transformar aquilo de que trata. Foucault confessa que os autores que mais o marcaram não foram os grandes construtores de sistema, mas sim aqueles que lhe permitiram escapar precisamente dessa formação universitária, isto é, aqueles para quem a escrita era uma experiência de autotransformação, tais como Nietzsche, Bataille, Blanchot. Ora, o que esses autores deram a Foucault de tão essencial, mesmo sendo marginais no que se costuma entender por história da filosofia? Precisamente uma concepção de experiência como uma metamorfose, uma transformação na relação com as coisas, com os outros, consigo mesmo, com a verdade. Foi o que ocorreu no estudo dos grandes objetos pesquisados por Foucault, como a loucura, a delinquência, a sexualidade – todos os livros escritos a respeito resultaram em uma transformação profunda na relação que o autor, o leitor, enfim, o próprio tempo de Foucault se viu impelido a ter com esses domínios.

Em que, contudo, a noção de experiência evocada por Foucault difere daquela formulada pela fenomenologia? Se a experiência do fenomenólogo consiste em pousar um olhar reflexivo sobre um objeto qualquer do vivido, sobre o cotidiano em sua forma transitória, para dele extrair as significações, a experiência à qual Foucault se refere, ao contrário, trata não de atingir um objeto do vivido, mas um ponto da vida que seja o mais próximo do invivível. Não a vida vivida, mas o invivível da vida. Não a experiência possível, mas a experiência impossível. Não a experiência trivial, mas aquela em que a vida atinge o máximo de intensidade, abolindo-se. Não a experiência cotidiana, mas a experiência-limite. A fenomenologia trata de apreender a significação da experiência cotidiana para reencontrar, através dela, o sujeito fundador dessa experiência e de suas significações, na sua função transcendental. A experiência tal como Foucault a entende, em contrapartida, na linhagem dos autores mencionados, não remete a um sujeito fundador, mas desbanca o sujeito e sua fundação, lançando-o à própria dissolução. Em suma, a experiência-limite é um empreendimento de dessubjetivação. Eis o que terá sido decisivo para Foucault na leitura de Nietzsche, Bataille e Blanchot: a experiência que vai ao seu limite, a experimentação que em seu curso prescinde do sujeito ou o abole. É o que permite a Foucault dizer que seus livros, por mais eruditos que tenham sido, foram sempre concebidos como experiências diretas, visando arrancá-lo de si mesmo, impedi-lo de continuar a ser si mesmo.

Claro que nos deparamos aqui com uma concepção particular de experiência, já que ela, no geral, é remetida precisamente a um sujeito que a vive, passiva ou ativamente. Mas a pergunta de Foucault vai a contrapelo dessa suposição: “Não haveria experiências ao longo das quais o sujeito não fosse dado, nas suas relações constitutivas, naquilo que ele tem de idêntico a si mesmo? Não haveria experiências nas quais o sujeito possa se dissociar, quebrar a relação consigo mesmo, perder sua identidade?” Através de termos como dissociação, dissolução, diluição e perda da identidade, Foucault contesta o estatuto mesmo do sujeito, seja o sujeito psicológico, seja o sujeito do conhecimento, seja o sujeito transcendental.

A experiência (im)pessoal

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Em um sentido muito prosaico, Foucault diz em outro momento desta mesma entrevista, que cada livro seu nasceu de uma “experiência pessoal”, uma “experiência direta”. No caso da loucura, eis sua observação: “Eu tenho uma relação pessoal, complexa com a loucura e com a instituição psiquiátrica.” Uma passada de olhos em qualquer biografia sua ou mesmo nas notas biográficas publicadas em Ditos e Escritos e insuspeitas de qualquer ambição sensacionalista, a observação se esclarece imediatamente: trata-se das crises pelas quais passou o filósofo naÉcole Normale: acessos de raiva, tentativas de suicídio, até mesmo uma visita a um psiquiatra, levado por seu pai. Num outro plano, seu interesse pelo tema foi incessante, como o atesta seu trajeto acadêmico: formação paralela em psicologia, estágio no hospital psiquiátrico, tradução do texto Rêve et existence e a frequentação pessoal de Binswanger por ocasião desta tradução, para não falar de todos os postos de trabalho em que foi incumbido da cátedra de psicologia ou psicopatologia, ou mesmo seu interesse pela psicanálise, sua relação ambivalente com Lacan etc. Contudo, se sua experiência pessoal, nesse sentido trivial, foi decisiva, isso nem remotamente significa que ele tenha transposto experiências pessoais para o plano da escrita numa forma autobiográfica: em nenhum texto publicado por ele há qualquer referência autobiográfica desta ordem.

Já temos aqui um pequeno paradoxo: como um livro nasce de uma experiência pessoal, masresulta precisamente na abolição desse mesmo autor que as viveu, conforme o postulado indicado acima, segundo o qual há experiências e experiências de pensamento ou de escrita, que justamente colocam em xeque o autor em sua identidade, até mesmo em sua coerência? Todo o desafio está em conciliar o fato de que um livro parte de uma experiência pessoal, mas não constitui o relato dessa experiência, já que o livro é em si mesmo uma experiência em um sentido mais radical, a saber, uma transformação de si, e não a reprodução da experiência vivida “tal como ela ocorreu” e que estaria na origem dessa escrita, nem sua transposição direta.

O essencial, portanto, não se encontra na série das constatações verdadeiras ou historicamente verificáveis encontráveis em um livro, mas antes na experiência que tal livro permite fazer. Ora, esta experiência, como qualquer experiência, não é nem verdadeira nem falsa. “Uma experiência é sempre uma ficção; é algo que nós mesmos fabricamos, que não existe antes e que não existirá depois.” Daí um dos sentidos possíveis à boutade de jamais ter escrito outra coisa que não ficções. Não se trata de mentiras, de fabulações, de inverdades, mas da fabricação de uma “experiência” que, no entanto, está nas antípodas de qualquer remissão a um “vivido”, “autêntico”, “verdadeiro” ou “real”. Um livro é isto. É precisamente uma produção, uma criação, uma singularidade, um acontecimento, com seus efeitos de realidade, como no caso de História da loucura.

ExperimentaçãoEm alguns textos laterais, Foucault permite-se dizer não propriamente “o que ele

pensa”, mas “o que seria possível pensar”. Por exemplo, ao responder a uma pergunta sobre a função da teoria como caixa de ferramentas, como instrumento, inclusive de luta, mais do que como sistema, na entrevista intitulada “Poderes e estratégias”, e ao contar que respondeu às questões feitas por escrito também por escrito, mas como que num jorro primeiro, sem revisá-los, não por confiar na virtude da espontaneidade, mas para nelas deixar aparecer o caráter problemático, voluntariamente incerto, ele acrescenta: “O que eu disse aqui não é ‘o que eu penso’, mas com frequência é aquilo que eu me pergunto se não poderia ser pensado.” Talvez tenhamos aí algo extensível a vários textos dos Dits et écrits. Serão eles expressão do que Foucault pensa, ou uma experimentação daquilo que poderia ser pensado, naquele limite entre o pensável e o impensável? Não, portanto, expressão de um eu, nem sequer a formulação de uma

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perspectiva consolidada, mas uma experimentação do que pode o pensamento, para parafrasear um autor conhecido.

Ao comentar a influência de Bataille e de Blanchot e, através deles, de Nietzsche, ele explica o que eles representaram para ele.

“A experiência da guerra nos tinha demonstrado a necessidade e a urgência de uma sociedade radicalmente diferente daquela em que vivíamos. Essa sociedade que tinha permitido o nazismo, que se curvara diante dele, e que havia passado em bloco para o lado de De Gaulle. Diante de tudo isso, uma grande parte da juventude francesa tinha tido uma reação de repugnância total. Desejávamos um mundo e uma sociedade não somente diferentes [...] desejávamos ser completamente outros num mundo completamente outro. Tanto o hegelianismo que nos era proposto na universidade com seu modelo de inteligibilidade contínua da história [...] quanto [...] a fenomenologia e o existencialismo, que mantinham o primado do sujeito e seu valor fundamental [...] não tinham condições de nos satisfazer. Ao passo que, em contrapartida, o tema nietzschiano da descontinuidade, do além do homem que seria totalmente diferente em relação ao homem, depois em Bataille, o tema das experiências-limite pelas quais o sujeito sai de si mesmo, se decompõe como sujeito, nos limites de sua própria impossibilidade, tinha um valor essencial. Foi para mim uma espécie de saída entre o hegelianismo e a identidade filosófica do sujeito.”

Vale aqui ressaltar o deslocamento ocorrido desde os anos 1960. De uma ontologia da linguagem passou-se para uma ontologia crítica do presente, onde a dissolução do sujeito era menos tributária da aventura literária (ali onde a linguagem aparece, o homem desaparece, como ele dizia na época) do que remetida a um jogo de forças, no qual se reinventa a relação entre sujeito e experiência. Como diz a sequência: “Numa filosofia como a de Sartre, o sujeito dá sentido ao mundo. Este ponto não era colocado em questão. O sujeito atribui as significações. A questão era: pode-se dizer que o sujeito seja a única forma de existência possível?” Como se, nesse momento, Foucault se perguntasse, fazendo eco a uma questão que estava posta desde o início de sua trajetória, mas de outro modo, se não seria possível dissociar a noção de experiência da noção de sujeito.

Uma das respostas vem muito mais tarde, no derradeiro curso dado por Foucault antes de sua morte, publicado sob o título de A coragem da verdade.

Cuidar da alma ou cuidar da vidaAo final desse curso, Foucault toma o exemplo do cinismo para mostrar como,

para tornar-se a verdadeira vida, segundo os preceitos que os cínicos professam, numa espécie de jocosa transvaloração de todos os valores, a vida deve ser uma vida radicalmente outra, em ruptura total com todos os códigos, leis, instituições, hábitos, inclusive dos próprios filósofos. A vida de verdade é uma vida outra, e deve também, na sua manifestação pública, agressiva, escandalosa até, transformar o mundo, chamar por um mundo outro. Não é, pois, a questão do outro mundo, segundo o modelo socrático, mas do mundo outro – não da outra vida, mas da vida outra.

Se a filosofia é uma forma de experiência, supondo-se que as formas históricas de experiência produzem diferentes modalidades de subjetivação, de relação a si ou de modificação de si, cabe a ela “produzir”, por assim dizer, a subjetivação que lhe corresponde. Pode-se perguntar, pois, retomando esse fio que puxamos desde o início, se em Foucault uma transformação de si não equivale, por vezes, a um abandono de si. Ou, em outros termos, se certas modalidades desubjetivação por ele detectadas ou evocadas através da noção de experiência não implicariam diferentes graus de dessubjetivação – e em que medida essa lógica não poderia ser estendida a um domínio coletivo. Ao jornalista que lhe pergunta quem é ela, a ativista do Movimento

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Passe Livre responde: “Anota aí: eu sou Ninguém”, com a malícia de Odisseus, mostrando como certa dessubjetivação é uma condição para a política hoje – Agamben o dizia na esteira de Foucault: os poderes não sabem o que fazer com a “singularidade qualquer”, com aqueles que mal têm um nome ou um rosto: quem são eles, quem eles representam? E como enfrentamos poderes o risco de que qualquer um possa virar um insurgente?

Peter Pal Pélbarté professor titular da PUC/SP. Autor de, entre outros, O avesso do niilismo. Cartografias do esgotamento. São Paulo: N-1 Edições, 2013.