Do Tipo Penal - JoseCirilo

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DO TIPO PENAL

www.lumenjuris.com.br EDITORESJoo de Almeida Joo Luiz da Silva AlmeidaCONSELHO EDITORIAL Alexandre Freitas Cmara Amilton Bueno de Carvalho Cezar Roberto Bitencourt Cesar Flores Cristiano Chaves de Farias Carlos Eduardo Adriano Japiass Fauzi Hassan Choukr Firly Nascimento Filho Francisco de Assis M. Tavares Geraldo L. M. Prado Gustavo Snchal de Goffredo J. M. Leoni Lopes de Oliveira Jos dos Santos Carvalho Filho Lcio Antnio Chamon Junior Manoel Messias Peixinho Marcellus Polastri Lima Marcos Juruena Villela Souto Nelson Rosenvald Paulo de Bessa Antunes Paulo Rangel Rafael Barretto Ricardo Mximo Gomes Ferraz Salo de Carvalho Victor Gameiro Drummond Trsis Nametala Sarlo Jorge CONSELHO CONSULTIVO lvaro Mayrink da Costa Antonio Carlos Martins Soares Augusto Zimmermann Aurlio Wander Bastos Elida Sguin Flvia Lages de Castro Flvio Alves Martins Gisele Cittadino Humberto Dalla Bernardina de Pinho Joo Theotonio Mendes de Almeida Jr. Jos Fernando de Castro Farias Jos Ribas Vieira Luiz Ferlizardo Barroso Marcello Ciotola Omar Gama Ben Kauss Sergio Demoro Hamilton

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JOS CIRILO DE VARGAS

DO TIPO PENAL2a edio

EDITORA LUMEN JURIS Rio de Janeiro 2007

Copyright 2007 by Jos Cirilo de Vargas

PRODUO EDITORIAL Livraria e Editora Lumen Juris Ltda.

A LIVRARIA E EDITORA LUMEN JURIS LTDA. no se responsabiliza pelas opinies emitidas nesta obra.

proibida a reproduo total ou parcial, por qualquer meio ou processo, inclusive quanto s caractersticas grficas e/ou editoriais. A violao de direitos autorais constitui crime (Cdigo Penal, art. 184 e , e Lei no 10.695, de 1o/07/2003), sujeitando-se busca e apreenso e indenizaes diversas (Lei no 9.610/98).

Todos os direitos desta edio reservados Livraria e Editora Lumen Juris Ltda.

Impresso no Brasil Printed in Brazil

Para Cirilo Augusto e Mirinha.

AGRADECIMENTOS Ao Sr. Prof. Jair Leonardo Lopes, o primeiro e talvez nico verdadeiro dogmata penal de Minas. Seja na quietude da judicatura ou no alarido da demanda, seja em texto para o Aluno, vez por outra deixa escapar, em linguagem sbria e contida, o fruto maduro de sua reflexo serena, compromissada apenas com a unidade sistemtica do Direito posto. Entre muitos exemplos, devo a ele o sentido da perseverana. Com reconhecimento, agradeo a acadmica Aimara Dias Leite, amiga da Faculdade de Direito, pela atualizao legislativa do texto.

Sumrio

Captulo 1 O Objeto da Tutela Penal ............................. 1.1. Bem Jurdico, Interesse e Valor .................................. Captulo 2 O Tipo Penal................................................... 2.1. Tipo e Tipicidade: conceito e evoluo...................... 2.2. Elementos Especiais do Tipo...................................... 2.2.1. Elementos Subjetivos ........................................ 2.2.2. Elementos Normativos ...................................... 2.3. A Funo do Tipo ......................................................... Captulo 3 Anlise do Tipo.............................................. 3.1. A Ao ........................................................................... 3.1.1. A Omisso........................................................... 3.1.2. O Verbo................................................................ 3.2. O Resultado: crimes sem resultado ........................... 3.3. O Nexo causal............................................................... 3.4. O Sujeito ativo .............................................................. 3.5. O Sujeito Passivo .......................................................... 3.6. O Objeto Material......................................................... 3.7. Instrumento ou Meio de Execuo............................. 3.8. Modos de Execuo ..................................................... 3.9. O Lugar.......................................................................... 3.10. O Tempo....................................................................... Captulo 4 Classificao dos Tipos ................................ 4.1. Quanto sua Estrutura ............................................... 4.2. Quanto Ao .............................................................. 4.3. Quanto ao Bem Jurdico Tutelado .............................. 4.4. Quanto Unidade ou Pluralidade de Bens Tutelados .

1 1 19 19 32 32 45 47 67 68 73 80 84 95 101 112 117 130 133 136 138 145 145 146 148 150ix

4.5. Quanto Forma de Ao............................................. 4.6. Quanto a seu Contedo............................................... Captulo 5 Ausncia de Tipicidade ................................ 5.1. No Crime Putativo ........................................................ 5.2. Nos Casos de Crime Impossvel................................. 5.3. Na Falta de Certos Elementos Constitutivos do Tipo. 5.3.1. Ao..................................................................... 5.3.2. Objeto Material................................................... 5.3.3. Elementos Normativos ...................................... 5.3.4. Elementos Subjetivos ........................................ 5.3.5. Sujeito Ativo........................................................ 5.3.6. Sujeito Passivo.................................................... 5.3.7. Circunstncia de Tempo ou de Lugar.............. 5.3.8. Modos de Execuo ........................................... 5.3.9. Meio ou Instrumento ......................................... 5.4. Princpio da Adequao Social ................................... 5.5. Princpio da Insignificncia......................................... 5.6. Risco Permitido............................................................. 5.7. Algumas Situaes de Erro......................................... Concluso............................................................................. Referncias Bibliogrficas.................................................

151 151 153 153 153 154 154 155 155 156 157 157 158 158 159 159 160 161 163 165 167

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Captulo 1 O Objeto da Tutela Penal

Em determinado momento histrico, a conscincia coletiva de um povo emite juzos de valor, posteriormente reconhecidos pelo Estado; essa valorao cria os chamados bens jurdicos. E tais so a vida, o patrimnio, a boa fama, a liberdade individual, etc. Do bem jurdico que parte a norma penal que, segundo Bruno, a norma do Direito em que se manifesta a vontade do Estado na definio dos fatos punveis e cominao das sanes. (Direito Penal, I. Rio, Forense, 1967, p. 181) Na norma penal propriamente dita, ou norma incriminadora, cuja sede a Parte Especial, est o tipo, que contm a matria de proibio, ou de comando; ou seja, aquele descreve uma conduta humana que ofende ou pe em perigo um bem jurdico. Dessa forma, o bem jurdico representa o ponto de partida na elaborao e na interpretao dos tipos penais. Os conceitos de bem jurdico e tipo penal acham-se de tal maneira entrelaados, que no se pode prescindir da idia do primeiro, ao se examinar o segundo. Ensina Grispigni que il bene giuridico la ragion desere della fattispecie legale, lo spirito che la fa vivere. (Diritto penale italiano, tomo secondo. Milano, Giuffr, 1950, p. 140.)

1.1. Bem Jurdico, Interesse e ValorBem tudo aquilo que possui utilidade ou vantajoso para a pessoa ou para coletividade: a casa onde moramos,1

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os nossos livros, o nome do cidado, a condio de filho ou de pai, o direito integridade fsica e moral, etc. Nem todos os bens, contudo, so bens jurdicos: nesta categoria inscrevemos apenas o que est amparado pela ordem jurdica. So bens jurdicos, antes de tudo, os bens de natureza patrimonial. Nesse sentido, tudo o que se pode integrar ao nosso patrimnio um bem e, como tal, recebe a tutela do Direito. Mas no so somente os bens patrimoniais que se erigiram em bem jurdico. A ordem jurdica envolve, ainda, outros bens inestimveis do ponto de vista econmico, ou insusceptveis de se traduzirem por um valor pecunirio. Assim, no recebendo, embora, valorao financeira, so objeto da tutela jurdica e, mais precisamente, da tutela penal: a vida, a honra, a liberdade individual, etc. O sculo XVIII propiciou considervel desenvolvimento das idias penais, em que se assentaram os precedentes da construo cientfica e moderna de nossa Disciplina. Parece datar dessa poca as preliminares da delimitao do conceito de bem jurdico, que haveria de ser o centro do sistema penal em razo da ilicitude, a primeira das caractersticas da conduta punvel. Nesse tempo, pela influncia liberal de pensadores como Rousseau e Montesquieu, s se reconhecia fundamentada a pena quando houvesse uma prvia leso jurdica. Como j referido, o momento histrico fundamental na escolha dos bens que se tornaro objeto da proteo penal. Ao lado desse momento histrico, a ideologia: nosso Cdigo, ao erigir em bem jurdico a honestidade sexual, os bons costumes e o pudor, refletiu o carter fascista de sua poca. A ideologia imperante em 1940 levou a que se considerasse fundamento de certos delitos questes puramente morais, o que atualmente no se ajusta aos parmetros legislativos de pases como a2

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Alemanha e a Espanha, tidos em alta conta em matria penal, no incio do terceiro milnio. Mais que o histrico e o ideolgico o princpio da ultima ratio. S se deve recorrer ao Direito penal quando falharem os outros setores do ordenamento jurdico. A interveno penal violenta por natureza. A violncia estatal, que essa interveno representa, s deve ser manejada em ltima instncia. A gravidade da ao penal inviabiliza sua aplicao sistemtica. Somente a violao de bens de considervel importncia justifica um processo criminal. Do contrrio, o Estado se converter numa entidade policialesca. A questo do valor to complexa que Hessen chega a dizer: O conceito de valor no pode rigorosamente definir-se. Pertence ao nmero daqueles conceitos supremos, como os de ser, existncia, etc., que no admitem definio. Tudo o que pode fazer-se a respeito deles simplesmente tentar uma classificao ou mostrao do seu contedo. (Filosofia dos valores. Trad. de Cabral de Moncada. Coimbra, Armnio Amado, 1967, p. 37. No mesmo sentido, Machado Pauprio: Em geral, no encontramos uma definio de valor, mesmo nas obras dos maiores autores na matria. O valor mostrado, no definido. Muitos at, como o notvel filsofo J. de Finance, professor da Universidade de Paris, insistem em que o conceito no seria definvel Introduo axiolgica ao Direito. Rio, Forense, 1977, p. 13 Gustav Radbruch observa que entre os dados da experincia, no meio da matria informe das nossas vivncias, realidade a valor aparecem-nos caoticamente baralhados e confundidos. Temos vivncias de homens e coisas carregados ou saturados duma idia de valor ou de desvalor (valores3

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positivos e negativos) que lhes associamos, e todavia no nos lembramos de que esse valor ou desvalor dependem de ns, provm de ns, e no das prprias coisas ou dos prprios homens em si mesmos Filosofia do Direito, 1. Trad de Cabral de Moncada. Coimbra, Armnio Amado, 1961, p. 44). Afirma Welzel que es misin del derecho penal amparar los valores elementales de la vida de la comunidad (Derecho penal, parte general. Trad de Fontn Balestra. Buenos Aires, Depalma, 1956, p. 1). O valor tutelado por uma norma um valor jurdico, na medida em que entra em contato com o mundo do Direito. Mas isso no quer dizer que fora dessa relao ele no tenha tambm um significado: antes de ser um valor jurdico um valor social. O mundo em que o Direito se move no o mundo da natureza bruta, governado apenas pela lei da causalidade; ao contrrio, o Direito est relacionado diretamente com o desconcertante espetculo da vida (imagem de Nelson Hungria), com o mundo social, todo ele impregnado de exigncias morais, religiosas e econmicas, s quais a ordem jurdica pode, em dado momento, estender sua tutela. Quando o Legislador descreve uma conduta delituosa, como matar algum, j emitiu um juzo de valor, isto , no caso, j valorou positivamente a vida humana, antes da elaborao do tipo. Ao mesmo tempo valorou negativamente a conduta violadora do preceito no matar, quando estabelece a correspondente pena a que fica sujeito o agente. A afirmao vlida para a ocasio em que este trabalho foi escrito, na segunda metade do sculo XX. Se voltarmos um pouco no tempo, veremos que a principal contribuio prestada teoria do tipo deu-se numa poca (fins do sculo XIX e princpios do seguinte) em que o delito era visto apenas como ao, antijuridicidade e culpabilidade.4

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O conceito de tipo e tipicidade surgiu por ltimo na teoria da conduta punvel. At ento, e mesmo depois da construo de Beling, a valorao, negativa ou positiva, era feita exclusivamente no setor da antijuridicidade. Nessa primeira fase evolutiva, posteriormente chamada clssica, eram completamente separados os aspectos objetivo e subjetivo do delito. O objetivo compreendia a tipicidade e a antijuridicidade; o subjetivo dizia respeito culpabilidade. O tipo era valorativamente neutro, isto , no continha nenhum juzo de valor. Da Beling dizer que todos los delito-tipos son, en consecuencia, de carcter puramente descriptivo; en ellos no se expresa an la valoracin jurdica calificante de lo antijurdico (tipo de ilicitud) (La doctrina del delito-tipo. Trad. arg. de S. Soler. Buenos Aires, Depalma, 1944, III, p. 16. Esse trabalho, anterior obra mais conhecida, de 1906, fundamental no estudo de nosso tema). S na fase seguinte da teoria do delito, conhecida por neo-clssica ou neo-kantiana (em razo de autores como Stammler e Lask, adeptos da filosofia kantiana), que se introduziram modificaes, entre as quais, e de maior relevo, a considerao de elementos subjetivos e normativos no tipo, identificados, sobretudo, por M.E. Mayer, Mezger e Hegler. Fizemos tais digresses, aparentemente sem sentido, para dizer que o Direito penal, como sistema de tutela de bens jurdicos , essencialmente, valorativo. Qual critrio teria presidido elaborao dos tipos penais seno o da valorao? No se compreenderia a existncia de um catlogo de condutas na Parte Especial que no fossem proibidas ou impostas, sob ameaa de pena. impensvel destacar no Cdigo condutas penalmente irrelevantes. Se a vida, o patrimnio e a honra no tivessem sido objeto de valorao a priori pelo Legislador, no existiriam5

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no Cdigo Penal os tipos que descrevem o homicdio, o furto e a injria. Essa a tcnica de proteo penal. Ensina Miguel Reale: O direito tutela determinados valores, que reputa positivos, e impede determinados atos, considerados negativos de valores: at certo ponto, poder-se-ia dizer que o direito existe porque h possibilidade de serem violados os valores que a sociedade reconhece como essenciais convivncia (Filosofia do Direito, I. SP Saraiva, 1978, p. 189). , bvio que o Direito no tutela seno aquilo que j foi objeto de valorao; em outras palavras, a valorao precede a tutela. E, com Maurach, dizemos que o injusto anterior ao injusto tipificado (Tratado de derecho penal, I. Trad. de Juan Crdoba Roda. Barcelona, Ariel, 1962, p. 249. Falamos injusto por fidelidade traduo de Crdoba Roda, que usava os termos injusto, ilicitude e antijuridicidade indistintamente, como, ainda hoje, distinguidos Autores o fazem. No mesmo Tratado, Maurach acrescenta: Antes de que la norma prohba uma conduta, debe haberla reconocido como um desvalor p. 155. Da, resulta: quem desvalora, j valorou, porque o sentimento de dignidade ou de utilidade anterior sensao de indignidade ou de inutilidade. S quem conhece o valor pode avaliar o desvalor). Diz Groppali que qualquer norma pressupe sempre um critrio de valorao, na medida em que qualifica e impe uma ao ou omisso. O momento valorativo preceder logicamente o momento imperativo (Introduo ao estudo do Direito. Trad. de Manuel de Alarco. Coimbra, Coimbra Editora, 1978, p. 39). Doutrinariamente, existe controvrsia sobre se o bem jurdico um valor ou se um interesse tutelado.6

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Escrevendo sobre o direito subjetivo, Groppali ensina: Entendemos por interesse o desejo, a exigncia de um bem que se considera til, isto , apto para satisfazer uma necessidade. O interesse implica uma relao entre uma necessidade psicolgica ou espiritual do homem e o meio ou bem que se julga apto para satisfaz-la. Por isso, o interesse depende sempre de uma apreciao subjetiva, de uma valorao de nexo, entre a necessidade e o bem que se julga apto a satisfao, e traduz-se, em ltima anlise, num juzo de valor, como observou Binding. (Ob. cit., p. 124 e 132. Dizemos ns que o termo pode ser empregado como sinnimo de convenincia, de proveito, de ganho, de vantagem, de benefcio, de relevncia, etc. Por isso, no afronta linguagem jurdica a indagao: conveniente, ou benfico, ou relevante, ou proveitoso colocar tal ou qual valor sob a proteo penal? A obra de von Jhering, que, por sua vez, influenciou a v. Liszt, levou a uma doutrina que fundamenta o conceito de Direito na noo do interesse. evidente que todo Estado tem interesse na observncia das normas penais por ele estabelecidas. E tanto assim que sustenta, ao mesmo tempo, a pretenso de manter inalterados os bens aos quais deferiu sua tutela. Como adiante se ver, pela palavra de Fragoso, no se pode confundir interesse com o objeto sobre o qual recai. So mltiplas as dimenses conceituais de interesse. No exame do conceito de bem jurdico, como objeto da proteo penal, consideramos como tal todo objeto e toda relao que possam contribuir para o bem-estar fsico e espiritual do ser humano. Assim, nos precavemos contra possvel mal-entendido lingstico. Para ns, tudo o que denominamos bem s merece esse nome enquanto e na7

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medida em que haja o dado de sua relevncia para o bemestar da pessoa. Se, como exemplo, tendo em mos o precioso livro Antijuridicidade concreta e, ao mesmo tempo, estando faminto h vrios dias, permuto o livro por um simples sanduche, fao-o pelo interesse em saciar a fome. Passada esta, a monografia do prof. Miguel Reale Jnior volta a ter sua costumeira relevncia. Esse conceito de bem jurdico exige a possibilidade de aplicao s finalidades de certa e determinada pessoa, conferindo ao mesmo um contedo diferenciador. Todo interesse denota a existncia de uma relao entre um bem e um sujeito, atravs da qual um objeto ou um estado chegam a constituir um bem para certo indivduo (empregamos a palavra indivduo sem qualquer conotao pejorativa). Nada obstante as consideraes supra, no descrevemos o conceito de interesse, posto que no se concretizou nem mesmo a integral e indiscutvel essncia do conceito de bem. E, com o reconhecimento de tal noo fragmentria de interesse, havemos de admitir que bem pouco se conseguiu avanar em benefcio da sistemtica jurdica. Com base em tais postulados, haveremos de ter em conta que, assim como o conceito de bem destitudo de contedo quando privado de sua conexo ao sentimento humano, o mesmo acontece com a idia de interesse. Em sntese, no existem mais interesses do que as exigncias do ser humano. Sobre a base de exigncias derivadas de sua prpria natureza, o bem e o interesse se condicionam de maneira recproca. No h nenhum bem que no seja objeto idneo de um interesse humano. Interesses e bens se apresentam, em certo sentido, quase como conceitos simultneos, desde quando so unidos existncia de uma pessoa. Historicamente precedem ao Direito e ao Estado. E, por ser anteriores ao Legislador, este no os cria nem os altera em sua essncia.8

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O objeto de proteo de qualquer tipo se acha integrado por um interesse estimado positivamente pela lei: o interesse a que permanea proibida a ao que poderia resultar lesiva ou perigosa para determinado bem. A esse respeito, no se perca de vista que todo interesse se refere a duas coisas distintas: a um determinado bem e a um eventual acontecimento subjetivo referido ao mesmo. O que dissemos at aqui sobre interessebem jurdico pode ser alvo de crticas e contestaes, mas o inevitvel. De outro lado, considerar o bem jurdico-penal como o interesse protegido tem sido reputado inexato, porque nem todo objeto de garantia legal tipificada constitui um interesse. Deixando de lado certos escrpulos, e evitando uma configurao formalista pura, no haveria inconveniente afirmar que o bem jurdico o interesse legalmente protegido mediante a descrio de um tipo de delito, porque assim se confere ao interesse um significado abrangente de todos os bens e valores objetos de garantia penal. O Direito, no aspecto subjetivo, a consagrao da vontade individual, enquanto se encaminha para um objeto determinado. Esse objeto determinado um bem, como tal; mas, se referido ao sujeito que o deseja, um interesse (Del Vecchio. Lies de Filosofia do Direito, II. Coimbra, Armnio Amado, 1972, p. 187 et seq.). Von Jhering identificava bem jurdico com interesse e direito subjetivo, o que evidentemente imprprio, porque o direito subjetivo deve ser entendido como a faculdade que se atribui ao homem de buscar e obter do Estado a tutela de um interesse (a informao de que v. Jhering identificava bem jurdico com interesse e direito subjetivo vem de Bruno - Direito penal, cit., v. I, p. 18). Para von Liszt, a idia do bem jurdico mais ampla do que a do direito subjetivo. Mas, em todo caso, no se compadece com o uso da lngua falar em direito a vida, a liberdade, honra, etc., como, por exemplo, o faz R. Lnig (Tratado de9

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direito penal alemo. Trad. bras. de Jos Hygino Duarte Pereira. Rio de Janeiro: F. Briguiet, 1889, v. 1, p. 94, nota 1). A nota do tradutor Jos Hygino, lanada nessa edio, refora a afirmativa de von Liszt: o conceito de bem jurdico bem mais abrangente que o de direito subjetivo, porque, muitas vezes, a ordem jurdica protege interesses sem, em contrapartida, conferir direitos a determinadas pessoas. Segundo Jimnez de Asa, muito antiga a teoria, segundo a qual o delito a violao dos direitos subjetivos, remontando-se a Feuerbach. Gregori confirma que o mais conhecido defensor desta tese Feuerbach, em sua obra Lehrbuch des Gemeinem in Deustschland gltigen peinlichen Rechts, Giessen., I ed., par. 9 (Saggio sull aggetto giuridico del reato. Padova: Cedam, 1978, p. 10, n. 4. O Tratado de Feuerbach foi vertido ao espanhol por Zaffaroni e Irma Hagemeier, e publicado em Buenos Aires por Hammurabi, em 1989). Nuvolone acha que o objeto jurdico da infrao penal o interesse juridicamente relevante, que qualifica a relao com a entidade (coisa ou pessoa) que constitui o objeto material da infrao penal (O sistema do direito penal. Trad. de Ada Pellegrini Grinover e notas de Ren Ariel Dotti. So Paulo: Revista do Tribunais, 1981, vol 1, p. 251). No mesmo sentido, Manzini: Objeto jurdico (objetividad jurdica) del delito es aquel particular bien-inters que el hecho incriminado lesiona o expone a peligro, y en proteccin del cual interviene Ia tutela penal (Tratado de derecho penal. Trad. de Santiago Sentis Melendo e notas de Direito argentino de Ricardo Nuez e Ernesto Gavier. Buenos Aires: Ediar. 1948, p. 16). Von Jhering, como visto, influenciou largamente a Von Listz, que escreveu: Todo derecho existe para el hombre. Tiene por objeto la defensa de los intereses de la vida humana10

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(Lebensisteressen). El Derecho es, por su naturaleza, la proteccin de los intereses; la idea de fin da fuerza generadora al Derecho. (Tratado de Derecho penal, I. Trad de Jimnez de Asa. Madrid, Editorial Reus, s/d, p. 6. Quem afirma a influncia de Jhering sobre Liszt Asa, in Tratado, III, cit., p. 8). Fragoso observa que bem no o interesse protegido. Objeto da tutela o bem, no o interesse, mas nada impede que a este se refira o intrprete, pois se trata to-somente de um aspecto subjetivo ou de um juzo de valor sobre o bem como tal. Inaceitvel o conceito objetivo de interesse, pois este denota sempre uma atitude mental. No possvel afirmar que existe um interesse, sem um juzo ou uma opinio sobre a capacidade ou idoneidade do bem para satisfazer uma necessidade (Lies, PG, 1980, p. 271). Segundo o Min. Toledo, bem, em um sentido muito amplo, tudo o que se nos apresenta como digno, til, necessrio, valioso... bens jurdicos so valores tico-sociais que o direito seleciona, com o objetivo de assegurar a paz social, e coloca sob sua proteo para que no sejam expostos a perigo de ataque ou a leses efetivas (Princpios, 1982, p. 15-16). V. Liszt dizia que a vida, e no o Direito, que cria o interesse. Este, afirmava, surge das relaes dos indivduos entre si, e dos indivduos para com o Estado e a sociedade, ou vice-versa. Onde h vida, h fora que tende a manifestar-se, afeioar-se e desenvolver-se livremente (Tratado, I, trad. brasileira, p. 95). Ningum pode negar que toda atividade humana dominada pelo princpio do interesse. Assim, o homem s se movimenta, de maneira espontnea, para aplacar uma necessidade, surgida de acontecimentos da vida. Bettiol sustenta uma posio inteiramente oposta de v. Liszt, com referncia afirmao deste ltimo de11

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que o Direito tem por objeto a defesa de interesses da vida humana. O antigo professor de Pdua, tomando como exemplo o crime de vilipndio da religio, constata o artifcio, segundo ele, que existe na considerao de que o objeto da tutela seja o interesse do Estado ao respeito pela religio dominante. Diz, textualmente: Houve uma grave deformao da realidade quando, no lugar do valor se pretendeu colocar o interesse como objeto da tutela, abrindo assim o caminho a uma concepo que aproxima o direito penal, defensor dos mais altos valores ticos da coletividade, do direito comercial, em que esto, verdadeiramente, em jogo interesses particulares e materialistas (Direito penal, I, trad port. de Fernando de Miranda. Coimbra, Coimbra Editora, 1970, p. 141. Tambm do professor italiano a afirmao de que os bens ou valores que o Direito penal tutela, ainda que sejam bens ou valores que possam ter reflexos utilitarsticos, so, na sua essncia, valores ticos, na medida em que, fora da tica, no compreensvel um direito que, como o nosso, pretenda ser garantia e tutela dos postulados morais fundamentais sobre os quais assenta a sociedade... precisamente por essa razo que ns falamos, a propsito do bem jurdico, de valores e no de interesses, porque o valor um termo mais apropriado para exprimir a natureza tica do contedo das normas penais, ao passo que o interesse um termo que exprime uma relao. No ponto de chegada, mas trmite para o ponto de chegada (op cit., p. 326-327). Por bem jurdico Antolisei entende aquele quid que a norma, sob ameaa da pena, visa a tutelar contra possveis12

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agresses. Afiana, contudo, que a teoria do bem jurdico, possuindo embora um inegvel fundamento de verdade, tem sua importncia no pouco exagerada na doutrina (op. cit., p. 136-139. Nesse passo, dissentimos do professor italiano. Em nossa Disciplina impossvel prescindir da idia de bem jurdico, como bem destaca Jescheck: El Derecho penal tiene encomendada la misin de proteger bienes jurdicos. En toda norma jurdica penal subyacen juicios de valor positivos sobre bienes vitales imprescindibles para la convivencia humana en Sociedad que son, por tanto, merecedores de proteccin a travs del poder coactivo del Estado representado por la pena pblica Tratado de Derecho penal, parte general I. Trad. e adies de Direito espanhol por Mir Puig e Muoz Conde. Barcelona, Bosch, 1981, p. 9-10Bettiol tambm anota: Se j vimos que o mtodo para estudar o crime e a pena deve ser um mtodo de lgica concreta, no poderemos nunca esquecer a incluso da noo de bem jurdico na de crime, que mais ampla: s assim o crime enquadrado na realidade social, s assim se d ao crime um contedo e um significado, s assim podem confluir no crime as concepes tico-sociais dominantes (ob. cit., p. 321). Os bens jurdicos so hierarquizados. Se ao homicdio cominada pena mais grave que a prevista para o furto, porque, para o Legislador, a vida encontra-se em plano mais alto do que o patrimnio. O reconhecimento da hierarquia dos bens depende no somente da estrutura da sociedade, como tambm das variadas tendncias de cada poca, como lembram Fragoso: evidente que os interesses que o direito tutela correspondem sempre s exigncias da cultura de determinada poca e de determinado povo (PG, 4a ed, p. 2) e Bettiol: O bem jurdico anda intimamente ligado s concepes tico-polticas dominantes e adquire, portanto, um13

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significado diferente e um contedo diverso, medida que mudam o tempo e o ambiente (ob cit., p. 324). Assim, a decadncia valorativa de um bem, reconhecido at determinada poca como merecedor de proteo, constitui a razo mais importante para a derrogao das normas penais pelo direito consuetudinrio. O cometimento de adultrio transformou-se em fato to comum e corriqueiro no Brasil de hoje que de longa data j se achava derrogado, pelo costume, o art. 240 do Cdigo Penal. A qualidade de bem jurdico de um conjunto de interesses tem uma vigncia valorativa tanto maior quanto se encontre mais prxima dos chamados direitos naturais, do indivduo e da sociedade. Por isso que o valor da vida, da liberdade, da honra, da propriedade e da integridade corporal tem sido reconhecido por quase todos os ordenamentos jurdicos do mundo civilizado, de maneira mais ou menos duradoura (temos de notar, contudo, que na Alemanha do nacionalsocialismo o valor da liberdade foi decaindo aos poucos, at ser substitudo em definitivo pela nova ordem poltica, tomada depois por modelo na Espanha e em Portugal, at pocas recentes). Ainda que existam alguns, como von Jhering e Binding, defensores da idia de que unicamente a coletividade pode ser titular de um bem jurdico, achamos perfeitamente possvel distinguir entre bens do particular e bens da sociedade, incluindo-se entre os primeiros a vida, a integridade corporal, a honra, a liberdade pessoal, etc., e entre os segundos a famlia, a paz pblica, a f pblica, etc. Ao lado de ambos, Fragoso avaliava que a tutela jurdica que o direito penal exerce refere-se sempre a interesses da coletividade, mesmo quando se trata de bens, cuja ofensa primariamente atinge o indivduo (vida, patrimnio, honra, etc) (PG, p. 2. Tambm assim Hungria: O indivduo s tem direitos como membro da comunho social. Alm14

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disso, cumpre acentuar que o Direito penal no protege interesses jurdicos do indivduo (ainda quando constituem direitos subjetivos) porque sejam tais, mas somente per accidens, isto , somente quando e enquanto coincide a sua proteo com a do interesse social (Comentrios, V, 1979, p. 9). E, ainda, Manzini: El objeto jurdico del delito es siempre y necesariamente un interess pblico, porque, tambin cuando la tutela penal se dirige a intereses individuales, stos son protegidos como intereses colectivos asumidos por el Estado, sin que a los indivduos ls sea atribudo poder algun jurdico-penal de querer y de obrar para la satisfaccin de sus intereses particulares ob. cit., p. 18 alm de Bettiol: A pena uma providncia que, dada a sua natureza tico-retributiva, no pode ser posta em contato com um interesse meramente privado e individual, mas, sim, com interesses pblicos, quer dizer, com aqueles valores de que, num dado momento, o Estado assumiu a tutela. o Estado, portanto, que tomado em considerao, quando se trata de interesses penalmente tutelados: o Estado, mesmo quando a norma penal tutela interesses individuais ou sociais que no paream ter no Estado o seu imediato e direto titular ob. cit., p. 330). No desse ngulo que vemos as coisas, repetimos. precisamente de maneira inversa. O ser humano, individualmente considerado, precede ao corpo social a que pertence. S por injunes ligadas sobrevivncia e possibilidades de expanso que historicamente aderiu a certo grupo. Adeso imposta apenas por necessidade. Sua individualidade sempre foi dotada de interesses, bens, direitos e aspiraes. A mera transposio a uma entidade politicamente organizada de modo algum implica a abdicao daquilo que j se achava incorporado a seu acervo pessoal. O que era de seu, no muda e muito menos se perde: conserva-se.15

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Da, nossa adeso ao ponto de vista de Anbal Bruno: O homem que o objeto final da proteo jurdica, e os prprios bens protegidos no sentido da coletividade o so porque satisfazem exigncias da natureza do homem, que s na vida em grupo atinge a sua plenitude e alcana os seus fins (I, p. 25). Da exemplificao de bens jurdicos (vida, integridade fsica, patrimnio, etc.), feita atrs, pode advir confuso entre bem jurdico (ou objeto da proteo) e objeto material; este a pessoa, ou a coisa, sobre a qual recai a ao do sujeito ativo. No se pode confundir objetividade jurdica com objetividade material, por muitas razes: para a interpretao do tipo, para a verificao da ocorrncia de justificativas penais, para o exerccio da ao penal, etc., o Direito no atende ao objeto da ao (objeto material), mas ao bem jurdico, ou objeto da proteo. Hans Welzel teve justo prestgio e exerceu larga influncia sobre o pensamento jurdico penal moderno. Assim se manifesta quanto ao valor e ao bem jurdico: Para la mayora de los delitos, ciertamente, es esencial la lesin o amenaza de un bien jurdico, pero solamente como elemento que forma parte de la accin antijurdica personal, nunca en el sentido de que la lesin del bien jurdico (el disvalor del resultado) tiene en el derecho penal importancia solamente dentro de una accin antijurdica-personal (dentro del disvalor de accin). El disvalor personal de accin es el disvalor genrico de todos los delitos penales (ob. cit., p. 70. Apesar de atribuir maior relevncia ao desvalor da ao, a doutrina finalista, de que Welzel foi o expoente, nunca deixou de reconhecer importncia ao resultado de leso ou perigo de leso ao bem jurdico haja vista os delitos de perigo e os de resultado.16

Do Tipo Penal

Para ele, o desvalor do resultado (bem jurdico) pode faltar, sem que se elimine o desvalor da ao, como no caso da tentativa inidnea. Perderamos nosso rumo e o trabalho faltaria a seu objetivo se abrssemos uma discusso a respeito). Sobre valor, interesse e bem, assim se manifesta Eduardo Correia: Descreve o Legislador aquelas expresses da vida humana que em seu critrio encarnam a negao dos valores jurdicos-criminais, que violam, portanto, os bens ou interesses jurdico-criminais. Como valores jurdico-criminais, so, com efeito, ao mesmo tempo, interesses-bens jurdico-criminais. Na verdade, a classificao como criminais de certos valores s pode entender-se na medida em que estes correspondam a fins a que o Estado reconhece interesse especfico, na medida em que, portanto, dada a relao quae inter est Estado e valores jurdico-criminais, eles so para o Estado interesses. Enquanto, porm, tem valor para o direito criminal, enquanto so susceptveis de satisfazer aquela necessidade do Estado que conduziu a sua tutela jurdico-criminal, eles so bens no sentido de bens de Direito, Gter des Rechts, ou bens s enquanto assim se encaram, as expresses valores, interesses e bens so coincidentes. (Direito criminal, I, em colaborao com Figueiredo Dias. Coimbra, Almedina, 1971, p. 275) O entendimento de Groppali o mesmo: Os conceitos de bem, de interesse e de valor esto ligados entre si por laos de interdependncia, aparecendo quase como um nico conceito substan17

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cialmente equivalente, que muda apenas conforme o ponto de vista sob que e examinado, pois que, como, justamente observa Jellineck, aquilo que objetivamente considerado aparece como um bem, subjetivamente torna-se um interesse, e o valor no mais do que o resultado da apreciao da utilidade do bem relativamente ao interesse e necessidade (ob. cit., p. 163. Diz Bettiol que, para Groppali, bem, interesse e valor servem para representar um s conceito. In Direito penal, I, trad port cit, p. 145).

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Captulo 2 O Tipo Penal

2.1. Tipo e Tipicidade: conceito e evoluoComo se sabe, o crime no qualquer negao de valores, mas a negao de determinados valores, quais sejam, os valores jurdico-criminais. Essa negao de valores o injusto, a ilicitude, a antijuridicidade (estamos encampando aqui o entendimento de certos Autores espanhis quanto coincidncia de injusto, ilicitude e antijuridicidade). Tal constatao enseja o problema de saber em qual fonte se ir buscar o conhecimento de que tal ou qual conduta humana significa uma negao dos valores jurdico-criminais. Em decorrncia da teoria da separao de poderes ou funes, refoge da alada do juiz a determinao da ilicitude fora dos casos concretos que lhe so levados. A emisso de um juzo acerca da negao de valores, por um juiz, s pode ser feita no exerccio de suas funes judicantes. Fora disso, implicaria o desaparecimento da Parte Especial dos cdigos penais, por intil, e se confundiriam, numa s pessoa, as figuras do Legislador e do Julgador. Por isso que existe a necessidade de a ordem jurdica, vigente em determinado momento histrico, formular, da maneira mais exata possvel, os seus juzos de valor, tarefa que, evidentemente, no pode estar afeta atividade judicial. A soluo do problema foi encontrada pelos juristas e pela tcnica legislativa com o recurso ao tipo penal, que , segundo Fragoso, o modelo legal do comportamento proibido, compreendendo o conjunto das caractersticas objeti19

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vas e subjetivas do fato punvel, ou, ainda, a descrio legal de um fato que a lei probe (Lies, PG, 1980, p. 156. Dizia o Min. Toledo que o Legislador, por meio da elaborao do tipo, seleciona valorativamente, entre a imensa variedade de formas possveis de comportamento humano, aquelas condutas que reputa relevantes para o direito penal, ou porque se apresentam aptas a causar leso a bens jurdicos, ou porque se revelam tica e socialmente reprovveis. Com isso transforma espcies ou classes de conduta, assim selecionadas, em tipos de delito, segundo as exigncias do princpio nullum crimen sine lege (O erro no direito penal. So Paulo: Saraiva. 1977. p. 45). No Direito Penal contemporneo, no basta que o comportamento do agente seja uma negao de valores de maneira reprovvel, para que, automaticamente, seja imposta a pena; necessrio tambm que a ao seja tpica, isto , que retrace na realidade da vida a definio da norma penal (Bruno, I, p. 341. Maurach observa que la tipificacin de las particulares formas de injusto en las figuras legales tiene una significacin que excede, con mucho, al derecho penal, una significacin nica desde el punto de vista de los principios jurdicos. El moderno Derecho penal constitucional es derecho penal vinculado al tipo: el tipo representa, por un lado, la limitacin del poder punitivo del Estado (funcin de garanta) y, por otro, la base del delito (funcin fundamentadora) ob cit, p. 265). Essa certeza de que s existir a pena quando o comportamento se ajustar, primeiramente e de modo preciso, a uma descrio legal de injusto que d segurana e estabilidade a ordem jurdica (j dissemos no ser pacfica em Doutrina a distino entre injusto e ilicitude. comum entre escritores espanhis o termo injusto tipificado, no sentido de afirmar que alguma coisa contrria ao Direito foi objeto de tipificao. Em outras palavras, consideram que o injusto constitudo pelos desvalores prprios da20

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tipicidade e da antijuridicidade. Em suma, pelo desvalor da ao e pelo desvalor do resultado. Jescheck, por exemplo, faz a distino nesses termos: Antijuridicidad es la contradiccin de la accin con una norma jurdica. Injusto es la propia accin valorada antijuridicamente ... el concepto de injusto se entiende tambin en el sentido de antijuridicidad material Tratado, I, 1981, p. 315, texto e nota 4). Resulta claro que o tipo s descreve conduta ilcita, no importando se do ponto de vista formal ou material. Alis, discute-se em Doutrina se correto fazer-se a distino entre uma e outra ilicitude. Para ns, carece de qualquer sentido, pois a lei no descreve uma conduta lcita, o que seria de todo inconseqente. Assim, a confirmao de que o tipo foi realizado carrega consigo uma valorao da conduta do agente, no sentido de haverem sido lesados valores protegidos penalmente. Veremos, adiante, que muitos Autores consideram provisria essa valorao negativa. O enquadramento ou ajustamento da ao humana ilcita descrio abstrata feita pela lei a tipicidade, sem a qual, num sistema jurdico fundado no princpio da anterioridade da lei, no se pode falar em existncia de crime. A Parte Especial do Cdigo Penal , basicamente, o rol dessas descries, ou tipos penais, constituindo-se a fonte onde se buscar saber se uma dada conduta significa, ou no, em princpio, uma negao de valores jurdico-penais. Dizemos em princpio porque o comportamento, segundo considervel parte da Doutrina, pode ajustar-se descrio legal, ou modelo, mas estar amparado por uma causa de justificao, ficando elidida a antijuridicidade (e a tipicidade, segundo supomos). Adiante, no item sobre a funo do tipo, voltaremos ao assunto. A investigao sobre a existncia, ou no, de uma justificativa, aps constatada a tipicidade, apenas um mtodo de trabalho. Na realidade, uma ao no pode ser antijurdi21

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ca e, depois, tornar-se jurdica, em face da justificativa. No caso, a ilicitude seria apenas aparente, se tal fosse possvel. Segundo a teoria dos elementos negativos do tipo, concorrendo uma justificativa, no h falar em adequao tpica. No pretendemos, por ora, entrar no mrito dessa teoria. Em outro trabalho (Introduo ao estudo dos crimes em espcie) discorremos sobre o tema, fixando nossa posio a respeito. Mais adiante daremos uma rpida viso do assunto. At a reforma de 1984, a palavra tipo no era usada pela lei penal brasileira; constitui traduo livre do vocbulo Tatbestand, empregado no texto do art. 59 do Cdigo Penal alemo de 1871, e provindo da expresso latina corpus delicti. No pacifica na Doutrina a traduo dessa palavra alem. Segundo Luiz Luisi, em tradues francesas do cdigo penal alemo de 1871, a locuo gesetzliche Tatbestand aparece como elments lgaux. Na verso espanhola do mencionado cdigo alemo, feita em 1945 por M. Finzi e R. Nunez, a locuo referida traduzida como contenido legal Del hecho (O tipo legal e a teoria da ao finalista. Porto Alegre, A Nao, s/d, p. 9, nota 1). O prof. Soler traduz por delito-tipo (La doctrina Del delito-tipo. Buenos Aires, Depalma, 1944). Asa prefere tipicidade (Tratado, III, p. 655-657). Na Itlia, Antolisei fala em modello astratto del reato (Manuale, I, p. 153), enquanto Grispigni se refere a fattispecie legale, modelo ou tipo (tomo secondo, p. 125). Entre ns, a expresso tipo tem uso generalizado, conforme se v nas obras de Hungria, de Bruno, de Fragoso, de Costa e Silva, de Cunha Luna e de Toledo. Se bem que a etimologia tenha valor apenas relativo, dela nos devemos valer. Tatbestand composto do substantivo Tat (fato) e do verbo bestehen, isto , consistir em, compor-se de, ser constitudo por. Poderia ser assim uma traduo: em que consiste o fato, ou, tomando o sentido do revogado art. 59 do CP alemo: aquilo em que consiste o delito. Nessa22

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ligeira monografia sobre o tipo e a tipicidade, no podemos ignorar o modo como nossos melhores criminalistas (alm de reconhecidos conhecedores do idioma alemo) empregaram a palavra: foi como tipo. Portanto, no mais voltaremos ao assunto. Sobre a evoluo do conceito de tipo, valemo-nos de Jimnez de Asa: Al irse constituyendo como doctrina independiente, el Tatbestand es la suma de todos los caracteres o elementos del delito, en su contenido de accin. As se dijo: Tatbestand als Inbegriff der Verbrechenmerkmale (Tatbestand como conjunto de las caraciersticas del delito). Esta fu la manera cmo se concibi el Tatbestand antes de Beling. (Tratado, III, p. 658.) O ano de 1906 marca o aparecimento da obra fundamental Die Lehre vom Verbrechen (A Doutrina do Crime), de von Beling, que passou a ver o tipo no mais como o conjunto das caractersticas exigidas para a aplicao da pena e demais conseqncias penais. Maurach esclarece que, segundo von Beling, el tipo est integrado no por el delito como totalidad, sino tan slo por una parte del mismo, a saber por la tipificacin conforme a una imagen rectora de determinados procesos de injustos, llevada a cabo por el Legislador. Esta tipificacin est libre de momenlos de antijuridicidad, describe el procest objetivo, y permanece, por lo tanto, libre hasra tal punto tambin de momentos subjetivos, que un tipo psquico seria una contradictio in adjecto. Todo lo subjetivo pertenece, para Beling, a la culpabilidad: seria un extravio metodolgico el que se quisiera introducir lo interno proveniente del alma del autor, en el tipo (ob. cit., p. 271).23

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Eduardo Correia anota que, para Beling, o tipo deveria considerar-se valorativamente neutro: a ao seria tpica sempre que, formalmente, se pudesse subsumir em uma das descries de conformao externa da conduta punvel, independentemente da formulao de qualquer juzo de valor; este s viria a ter lugar quando se analisasse a concordncia ou oposio entre o comportamento externoobjetivo do agente e as exigncias impostas pela ordem jurdica, isto , precisamente, quando se analisasse a licitude ou ilicitude daquele comportamento (Direito criminal, cit., p. 280-281). Francisco de Assis Toledo esclarece que, na construo originria de Beling (1906), o tipo tinha uma significao puramente formal, meramente seletiva, no implicando, ainda, um juzo de valor sobre o comportamento que apresentasse suas caractersticas. Modernamente, porm, procura-se atribuir ao tipo, alm desse sentido formal, um sentido material. Assim, a conduta, para ser crime, precisa ser tpica, precisa ajustar-se formalmente a um tipo legal de delito (nullum crimen sine lege). No obstante, no se pode falar ainda em tipicidade, sem que a conduta seja, a um s tempo, materialmente lesiva a bens jurdicos, ou tica e socialmente reprovvel [...] O tipo no pode, pois, no momento atual ser concebido apenas como um Leitbild, uma descrio desprovida de qualquer valorao; algo mais, ou seja, um tipo de injusto (O erro..., cit., p. 46-47) Soler adota o mesmo ponto de vista de Beling, dizendo: El externo encuadramiento de una accin a su figura no s ms que el primer paso dado en el sentido de esa valoracin. Pero siendo la figura delictiva ordinariamente tan solo una descripcin, es necesario en cada caso verificar si el hecho examinado, adems de cumplir ese requisito de adecuacin externa, constituye una violacin del derecho entendido en su totalidad, como organismo unitario. (Derecho penal argertino. Buenos Aires: Tipografica Argentina, 1973, t. I, p. 301).24

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Nossa discordncia bsica relacionada teoria original de Beling quanto alegada ausncia de valorao no tipo. Zu Dohna afirma que o delito ao antijurdica e culpvel, e que as leis penais determinam quais aes antijurdicas e culpveis so punveis. Textualmente, diz: El hecho de que una accin sea subsumible en un tipo legal es, por tanto, una peculiaridad formal, que puede sery ha sido elevada a una caracterstica conceptual general (La estructura de ia teora del delito. Trad. arg. de Fontn Balestra. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1958, p. 16-17). Se, para Zu Dohna, a antijuridicidade e a culpabilidade precedem a descrio, segue-se que quando o tipo foi elaborado, o Legislador j havia dado valor a algo, objeto jurdico do crime (ou objeto da proteo). Invocamos, tambm, a autoridade de Mezger, para quem la decisin respecto a si una determinada conducta cae en la esfera del Derecho punitivo resulta de la Consideracin de que, como fundamento de la exigencia penal del Estado, no es suficiente cualquier accin antijurdica, sino que es preciso una antijuridicidad especial tipificada, tpica. E ainda: Para nosotros el todo el peso de la valoracin jurdico-penal e que dicho tipo es el propio portador de la desvaloracin jurdico-penal que el injusto supone (Tratado de derecho penal. Trad. esp. de Jos Arturo Rodriguez Muoz. Madrid: Revista de de Derecho Privado, 1955, t. 1, p. 364-367). Jimnez Huerta anota: No obstante los esfuerzos que realiza Beling en defensa de sus trincheras jurdicas, no puede convencernos de que todos los elementos del tipo delictivo son puramente descriptivos. En primer trmino, la pureza descriptiva del tipo de delito aparece desvirtuada si se tiene en cuenta que el propio tipo ya contiene la valoracin jurdica calificante de lo antijurdico (Derecho penal mexicano. Mxico: Porra, 1972. t. I, p. 45). No mesmo sentido, Eduardo Correia: O tipo legal deixa de ser mera descrio objetiva e valorativamente neutra, de um comporta25

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mento proibido, para se tornar no portador da valorao jurdico-criminal que o juzo de ilicitude exprime (op. cit., p. 281). Bettiol observa que devemos admitir, com Delitala e com outros, que o momento imperativo , logicamente, precedido por um momento valorativo, no sentido de que a norma impe uma obrigao de se abster ou de realizar uma certa ao, porque o Legislador avaliou a conformidade ou desconformidade dessa ao com as necessidades de tutela do direito penal (Direito penal, cit., p. 180-181). Afirma Engisch: Os comandos e proibies do Direito tm as suas razes nas chamadas normas da valorao, eles fundamentam-se - dito de forma mais simples - em valoraes, em aprovaes e desaprovaes (Introduo ao pensamento jurdico. Trad. port. de J. Baptista Machado. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1977, p. 35). Engisch traz Mezger colao: O Direito como norma valoradora um necessrio pressuposto lgico do Direito como norma determinativa. [...] Pois quem pretende determinar algum a fazer algo tem de previamente conhecer aquilo a que o quer determinar: ele tem de valorar aquele algo num determinado sentido positivo. Um prius lgico do Direito como norma de determinao sempre o Direito como norma de valorao (Ob. et loc. cit.). Ao tratar de ao humana como objeto do juzo de valor e, mais especificamente, sobre a gnese da norma, Armin Kaufmann escreve: Estes juzos de valor que, na opinio de Binding, constatam a insuportabilidade jurdica ou a imprescindibilidade jurdica, ou, mais precisamente, valoraes negativas ou positivas dos atos constituem, sem dvida, o nico motivo da pretenso jurdica que d origem a atuao do Legislador e encontram sua expresso na norma e na lei penal (Teoria da norma jurdica. Apresentao de Richard Paul Netto. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976, p. 104-105). Ensina Toledo: O tipo no serve apenas para identificar as condutas criminosas, mas26

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se presta igualmente para discriminar os fatos atpicos; todavia, ao faz-lo, no exclui a possvel ilicitude desses mesmos fatos que podem configurar algum ilcito no penal (exemplo: o dano culposo). O fato atpico pode, pois, ser antijurdico; no pode, todavia, ser um injusto penal (isso releva a precedncia da ilicitude) (Princpios..., cit., p. 182). A lio de Reale Jnior: Como j vimos, d significado ao tipo o valor cuja positividade ele impe e cujo respeito exige, pela omisso da conduta que em todos os seus elementos descrita e sujeita a uma sano... O tipo tem um contedo valorativo, como modelo de ao, por esse contedo prprio da natureza da ao, no podendo estar ausente do tipo, que um paradigma generalizador do concreto (Antijuricidade concreta. So Paulo: Jos Bushatsky, 1974, p. 47). Para Sauer, o tipo no est isento de valor; ele mesmo um valor (apud Jimnez de Asa, op. cit., p.1.019). Em seu trabalho de Direito penal mais considerado (Allgemeine Strafrechtslehre, cuja 3a edio foi publicada em Berlin por Walter de Gruyter, em 1955), Sauer dedica nada menos que quatro pargrafos (13, 14, 15 e 16), densos e longos, ao complexo problema da valorao, da ilicitude, do tipo e da tipicidade. Diverge, em alto nvel cientfico e filosfico, da construo de Beling, quanto neutralidade valorativa do tipo; de fato, em nossa pesquisa, no encontramos quem, nesse aspecto, aderisse a Beling. Em face do exposto no pargrafo anterior, conclumos que a antijuridicidade, que contm sempre um juzo de valor, precede o tipo, seguindo-se que este no pode ser desprovido de valor, como pretendeu Beling, sem razo, a nosso ver. O correto dizer, com Mezger, que o tipo o verdadeiro portador da desvalorao (ou valorao negativa) que o injusto penal supe.27

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Na evoluo do conceito de tipo, a Doutrina distingue trs fases: a) na primeira, o tipo puramente descritivo; b) na segunda, tem carter indicirio da antijuridicidade; c) na terceira, a razo de ser da antijuridicidade (tipo de injusto e elementos negativos do tipo). A propsito, escreve Cunha Luna: No primeiro momento, concebida como descrio pura, sendo os fatos tpicos conhecidos independentemente de juzos de valor (Beling, La doctrina del delito-tipo, estudo de trinta pginas). No segundo momento, mantm relaes com a injuricidade da qual a ratio cognoscendi: a tipicidade indcio da injuridicidade, comportando-se uma com outra assim como a fumaa e o fogo (M. E. Mayer, Der Allgemeine Teil des Deustchen Strafretchs, passim). No terceiro momento, passa a existir em funo da injuridicidade, desta representando o ratio essendi (Mezger, 1955) (Estrutura jurdica do crime. Recife: Universidade Federal de Pernambuco. 1970, p. 58). Diz Mario Folchi que foi de Max Ernst Mayer la ms constructiva de las crticas hechas a Beling - expuesta en su tratado de derecho penal -, pues no neg en ella el gran valor de la tipicidad, haciendo posible que la doctrina del tipo legal alcanzare el fecundo desarrollo que por ltimo ha logrado. Adelantemos que Mayer considera a la tipicidad como una mera descripcin, al igual que Beling, pero atribuyndole un valor indiciario con relacin a la antijuridicidad; o sea, que la primera es el fundamento de mayor importancia para conocer la segunda, y dice que actan de28

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igual manera que el humo y el fuego (La importancia da la tipicidad en derecho penal. Buenos Aires: Depalma. 1960, p. 31). Toledo ensina: A antijuridicidade [...], ao descriminar um fato, exclui a sua ilicitude para todo o direito, inclusive, portanto, para o direito penal. Um fato lcito no pode ser um injusto tpico penal (exemplo: o homicdio cometido em legtima defesa). Nessa acepo, o tipo mais do que mero portador de um indcio da antijuridicidade: com efeito, uma viso esquemtica do injusto que, em concreto, pode ficar excludo pela incidncia de uma norma permissiva ou causa de justificao (Princpios, cit.. p. 182). Assiste razo ao falecido professor de Braslia: a realizao do tipo no pode ser considerada um simples sinal ou indicao de que o agente obrou antijuridicamente. De nosso lado, fazemos uma inverso: a conduta tpica , via de regra, antijurdica. E isso porque seria absurdo descrever uma conduta que no fosse contrria ordem jurdica. O tipo s descreve o proibido. No faria sentido um tipo penal descrevendo uma conduta lcita. O que ocorre, na realidade, quando se realiza um tipo, um comportamento ilcito que, apenas por exceo, deixa de representar um contraste com a ordem jurdica, em face de um tipo permissivo. Assim, a tipicidade no pode ser apenas um indcio da antijuridicidade. Em 1930, Beling retoma o assunto, com sua breve monografia Die Lehre vom Tatbestand, escrita para a coletnea em homenagem a Reinhard v. Frank, e traduzida por Soler como La doctrina del delito-tipo. Nesse trabalho, Beling reconhece e agradece as objees feitas sua doutrina do tipo, de 1906, mas considera que apesar da abundante bibliografia crtica, esta no estabeleceu qual parte de sua teoria tem que corrigir-se. No novo ensaio, o professor introduz o Deliktstypus, ou tipo de delito, em oposio ao Tatbestand, ou delitotipo, substitudo pelo termo Leitbild, ou imagem regula29

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dora, figura reitora, etc; rejeita a existncia de elementos normativos e subjetivos do tipo, nesses termos: De inmediato se advierte que es imposible concebir, con Sauer y Mezger, los delito-tipos como tipos de ilicitud aquela doctrina se base en una concepcin confusamente unificante de los delito-tipo y los tipos de ilicitud. Por fim, sugere: Creo que para el lenguaje de la ciencia la expresin, usada por m, por primera vez en este ensayo, Leitbild legal (esquema legal), puede encontrar aceptacin. En l se destaca precisamente lo que es esencial al concepto: la naturaleza meramente regulativa del delito-tipo. No he podido encontrar una expresin mejor (La doctrina del delito-tipo. cit. p. 14-15, 25). Hungria, em seus Comentrios (v. I, t. II, p. 21, nota 17), cita Beling e atribui a este uma definio de tipicidade, sem indicar a fonte. Na bibliografia, que antecede o texto, o Ministro refere trs obras de Beling: A Doutrina do Crime, A Doutrina do Delito-Tipo e Esquema de Direito Penal. Afianamos que tal definio no se encontra nas duas ltimas obras mencionadas. Na monografia de 1930 (Die Lehre vom Tatbestand), Beling considera o termo Tatbestandsmssigkeit a adequao de um fato ao delito-tipo (p. 3), enquanto, no Esquema (Grundzge), diz textualmente: Redcese el actual Derecho penal a un catlogo de tipos delictivos. La antijuridicidad y la culpabilidad subsisten como notas conceptuales de la accin punible, pero concurre con ellas, como caracterstica externa, la Tipicidad (adecuacin al catlogo) (p. 37).30

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Vai da que, para Beling, tanto faz falar Tatbestandsmssigkeit quanto Typizitt, pois, para ele, designam a mesma coisa. Jimnez Huerta diz que o vocbulo tipicidade significa smbolo representativo de uma cosa figurada o figura principal de alguma cosa a la que suministra fisonoma propria (La tipicidad. Mxico: Porra, 1955, p. 11). Continuamos dizendo que tipicidade a adequao do comportamento ilcito ao tipo, ou descrio legal do injusto. O tipo penal, como qualquer outro instituto jurdico, poderia perfeitamente continuar servindo Cincia sem perder sua singeleza, como a descrio de uma conduta relevante para o Direito Penal. Em vez disso, tornou-se objeto de frmulas e construes cerebrinas, dificultando a compreenso da Cincia to claramente ensinada por Mezger e Anbal Bruno, entre outros. Anota Eduardo Correia: Ao conceito de Tatbestand em sentido especfico, por sua vez, dado agora por Beling o papel de ponto de apoio ou referencial (Leitbild) dos momentos da ilicitude e da culpa que constituem um certo tipo de delito (Grundzge, 1930, p. 25 e 29). A construo, inteiramente artificiosa, no encontrou, porm, qualquer projeo na cincia do direito criminal. (A teoria do concurso em direito criminal. Coimbra: Almedina, 1963, p. 90. Reale Jnior, referindo-se 11a edio do Esquema, de 1930, diz: Quanto ao que mais nos importa, ou seja, s relaes entre tipicidade e antijuridicidade, Beling continua fiel sua nova concepo, sustentando que o delito-tipo, a imagem reitora, tem to-somente carter descritivo, desprovido de contedo valorativo, no constituindo um indcio de antijuridicidade (op. cit., p. 34).31

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A teoria do tipo passa, assim, por trs fases: a) tipo valorativamente neutro, do modo como Beling o concebeu em 1906; b) o tipo funciona como indcio do ilcito; fase tambm chamada de regra-exceo; c) a tipicidade a ratio essendi da ilicitude, que se desdobra em duas alternativas, e tem Mezger e Sauer como seus principais Autores.

2.2. Elementos Especiais do Tipo2.2.1. Elementos SubjetivosO tipo, na concepo original de Beling, a descrio mais objetiva possvel de condutas penalmente relevantes, como matar algum. Contudo, no art. 157, so encontradas expresses coisa mvel alheia e para si ou para outrem, que retiram a simplicidade da formula descritiva. No primeiro caso, os elementos so nitidamente objetivos e podem ser apreendidos pela simples capacidade de conhecer, sem ser preciso utilizar nenhum recurso de julgamento, como diz Bruno (I, p. 331). Tais elementos so encontrados em maior nmero, pois deles que se vale a lei para descrever as condutas proibidas. So referncias a pessoas, ao modo de agir, a coisas, e, pelo fato de poderem ser captadas pelo sentido como Bruno acentua acima -, so consideradas elementos puros da tipicidade. Para certo entendimento doutrinrio, essas referncias objetivas no coincidem com a antijuridicidade, que, sendo tambm elemento objetivo do delito, supe um juzo de valor que resulta da contradio entre a conduta e a ordem jurdica (ilicitude formal); essa mesma conduta, ocasionando leso ou perigo a um bem tutelado, representa a ilicitude material. Ao lado dos elementos objetivos so encontrados os chamados elementos subjetivos.32

Do Tipo Penal

Referindo-se ao conceito jurdico-penal de ao, diz Maurach: En sus consecuencias, las tentativas de, en parte caracterizar, y en parte limitar, el suceso puramente objetivo del injusto por elementos subjetivos afectaron, sin clara separacin, tanto a la cuestin del injusto como a la del tipo. En este sentido se pronuncia Nagler, que exigi para certas causas de justificacin la presencia de elementos subjetivos. Asimismo Hegler demostr que con el tipo de Beling resultaba imposible compreender los tipos de tendencia interna transcendente; de modo semejante se pronuncia M.E. Mayer (ob cit p. 191). De um modo geral, fala-se na existncia de elementos subjetivos do tipo, distintos do dolo e da culpa, quando se identifica um especial fim de agir, ou quando o agente realiza o tipo com certa e determinada inteno. Isso acontece naqueles casos em que no suficiente, na descrio da conduta ilcita, a simples considerao da dimenso externa da mesma (como no delito tipo de homicdio), mas necessrio levar em conta, tambm, uma efetiva tendncia subjetiva ou atitude psicolgica especial do agente. Daniela de Freitas Marques comps o mais completo, a nosso ver, trabalho sobre o tema, entre ns. Diz ela: Os elementos subjetivos do injusto so os componentes do campo psquico-espiritual do agente que dizem respeito s especiais tendncias, propsitos, intenes (fim especial de agir), condicionando ou fundamentando o juzo de ilicitude do comportamento (Elementos subjetivos do injusto. B. Horizonte, Del Rey, 2001, p. 151). Seriam especiais momentos anmicos a conferir transcendncia jurdico-penal atuao do sujeito ativo,33

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cuja comprovao exigida caso a caso, para se ter o tipo por realizado. Welzel esclarece: La sustracin de una cosa ajena es una actividad dirigida hacia un fin y dominada por el dolo; su sentido tico-social es, sin embargo, absolutamenie distinto, si se realiza con el objeto de un uso transitorio o com el propsito de apropiacin: solamente en el ltimo caso existe el disvalor tico-social especial del hurto (ob. cit., p. 83. O exemplo no de Welzel. originrio de Hegler, em trabalho publicado em 1914, como salienta Mezger no Tratado, I, p. 347). As hipteses se acumulam: o mestre-escola, ao repreender o aluno, tanto pode faz-lo com intuito pedaggico, quanto com inteno de o humilhar ou vingar-se de seu pai; o mdico, ao fazer um exame ginecolgico, pode agir com fim teraputico ou com inteno libidinosa (exemplos mencionados por Bruno). Segundo Jescheck, el descubrimiento de los elementos subjetivos del injusto se remonta a Fischer, el que primero demostr para el Derecho Civil, en especial en relacin a determinadas causas de justificaccin, que a menudo no es suceso objetivo en cuanto tal lo que se prohbe, sino que se prohbe o se permite segn la actitud interna con que el autor comete el hecho. Sobre fenmenos similares en Derecho penal ya habian llamado la atencin Nagler y Graf Zu Dohna. Poco despus, Hegler y M.E. Mayer consiguieron casi simultneamente la ordenacin sistemtica de estos casos. Aunque ambos todava vean la antijuridicidad material unicamente en la danosidad social del hecho, ya advirtieron que a menudo contribuyen a determinarla los fines perseguidos pro el autor. De forma parecida, Sauer mostro que los elementos subjetivos del injusto34

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caracterizan a menudo el tipo de delito. El pleno desarrollo de la teora de los elementos subjetivos del injusto se debe a Mezger... los partidarios de la sistemtica moderna ven en su existencia una confirmacin del concepto personal de injusto (ob. cit., p. 435). No tranqila em Doutrina a admisso de tais elementos no tipo. A comear pelo prprio Beling, que nos dois trabalhos mais importantes publicados depois de 1906 (a 11a edio do Esquema e a 1a edio de Die Lehre vom Tatbestand, na coletnea em homenagem a Frank, ambos em 1930), rechaa de pronto a nova teoria. Examinando atentamente o significado desses elementos, percebemos que so reveladores de uma vontade mais determinada prtica do delito. Comparemos o homicdio simples com aquele praticado para assegurar a impunidade de outro crime: a segunda situao revela um maior grau de censura na conduta do agente. Quem simplesmente priva algum de sua liberdade, mediante seqestro (art. 148 do CP), atua com menos reprovabilidade do que o seqestrador que visa a extorquir dinheiro como preo do resgate. Por isso que os mesmos so colocados sistematicamente na culpabilidade, na condio de dolo especfico, como o faz Battaglini (Direito penal, I. Trad. de Paulo Jos da Costa Jnior et al. So Paulo, Saraiva, 1973, pp 184 e 290). No mesmo sentido, Ferrando Mantovani (Diritto penale, parte generale. Padova,Cedam, 1992, p. 332). Na Argentina, Ricardo Nez (Manual, PG, 1999, p. 140) os tem como dolo especfico, enquanto que Soler os v abarcados pela valorao objetiva, isto , no setor da antijuridicidade, mas sempre influindo na culpabilidade (ob. cit., II, 1973, pp. 150-151). Como se sabe, James Goldschmidt foi um dos principais tericos da concepo normativa da culpabilidade. Em seu denso trabalho Normativer Schuldbegriff, publicado35

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em 1930 na coletnea em homenagem a Frank, dedica praticamente todo o ltimo item, o terceiro, questo dos elementos subjetivos, sobretudo no referente sistematizao dos mesmos feita por Mezger. Mencionamos, a seguir, algumas passagens do artigo de Goldschmidt: mesmo que as pretendidas caractersticas subjetivas do injusto constituam caractersticas especiais do tipo (como a inteno impudica, o egosmo ou a cobia como mveis da comisso, a profissionalidade ou a habitualidade da comisso, a maldade ou a malcia), elas so caractersticas especiais da culpabilidade (como o so o motivo de necessidade nos 248 a et 264a, como a reflexo no 211 do CP o , sentimento desonroso no 20 do CP). Todas contm exigncias especiais postas como situao de motivao, cuja prtica tem significado, seja para fundamentar, seja para agravar, seja para atenuar a pena; como j assinalara Frank, assim como na tentativa, o dolo de execuo, a que no corresponde nada objetivo, no deixa de ser culpabilidade; tampouco deixa de o ser a inteno, nos delitos de inteno; em todos os casos tratados, as caractersticas especiais da culpabilidade esto tipificadas legalmente; segundo Beling, no tipo s pode haver caractersticas objetivas. (Esse) pensamento aparece claro em Mezger, para quem o tipo somente antijuridicidade tipificada. Desse modo, Mezger chega a apontar muito corretamente as caractersticas tpicas da culpabilidade como elementos subjetivos do tipo, com o que, todavia, quer dizer, como M.E.Mayer, caractersticas subjetivas da antijuridicidade. Mas se se reconhece que o tipo no outra coisa seno o conjunto dos pressupostos da punibilidade, composto das caractersticas de antijuridicidade e caractersticas de culpabilidade, ento desaparecem todas as anomalias; se as leis penais geralmente no tm considerado a inteno correspondente ao tipo como o grau mais grave da culpabilidade, isto , no sentido de uma motivao pela represen36

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tao do tipo, sem embargo a tm erigido em uma especial caracterstica da culpabilidade correspondente ao tipo; Frank tem razo ao reivindicar a finalidade do agente, no sentido de motivo, como elemento da culpabilidade. Sempre que o motivo do agente, em qualquer das formas consideradas acima, se funde em caracterstica da culpabilidade correspondente ao tipo, evidente sua funo como fator constitutivo, agravante ou atenuante da culpabilidade... decisivo para sua fora como agravante ou atenuante da culpabilidade o grau de sua reprovabilidade, escusabilidade ou respeitabilidade tico-social (Festgabe fr Frank, Band I, Tbingen, 1930. Reimpresso em Aalen, por Scientia Verlag, 1969, pp. 428-468, traduo nossa). Parece no ser necessrio acrescentar nada, para afirmar o repdio do prof. Goldschmidt a essa doutrina. Zaffaroni, em sua Teoria do delito, menciona inmeros outros Autores alinhados a Goldschmidt. Voltando ao exemplo do homicdio. No h quem deixe de reconhecer mais reprovabilidade na conduta de quem mata por motivo torpe. Ao revs, a censura menor, quando se mata por motivo de relevante valor moral. Nesse ponto, a segura observao da professora Daniela: Os motivos, integrantes do tipo-de-ilcito, so elementos prprios da culpabilidade (ob cit p. 150). Em trabalho publicado em 1997 (Instituies, tomo I), escrevemos que certas motivaes so consideradas elementos subjetivos do tipo, o que nos fez incidir na crtica leal e franca de Daniela (p. 83 de sua valiosa investigao). A reprimenda procede, porque deveramos ter feito a distino entre os dois fundamentais juzos (da ilicitude e da culpabilidade) e afirmar, como ela afirma longamente no segundo captulo de seu trabalho, que, no plano das idias, o motivo precede a finalidade (p. 90). A ns, infelizmente, nos escaparam, e nos escapam, a argcia e a fineza intelectual de Daniela. Nem mesmo o venervel Cunha Luna foi poupado ao crivo severo da jovem37

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pensadora, no especfico tema da inteno. Redarguindo ao professor do Recife, por posio sua expressada no estudo Estrutura jurdica do crime (SP Saraiva, 1993, p. 120), ela , disparou: os elementos subjetivos do tipo so elementos integrantes do fato valorado, negativamente, como ilcito; logo: elementos do tipo-de-ilcito, porque o tipo expressa valorao, um trecho da prpria vida (nota 13, p. 87). Na pesquisa feita h mais de duas dcadas, arrolamos os motivos como elementos subjetivos. Por razes j expostas, e em adeso ao ponto de vista da professora, retiramos os motivos do rol adiante mencionado. Ainda bem que nosso ponto de vista acerca da gestao do tipo no vai de encontro ao pensamento de Daniela, expresso no item 1.3 de sua investigao, e tampouco duvidamos de que o ceticismo de Pascal, quanto historicidade das regras jurdicas, paira como uma bruma nos domnios da cincia do Direito (p.25). J na primeira edio desta monografia afirmvamos a precedncia da valorao e dizamos que o injusto anterior ao injusto tipificado. De todo modo, o estudo de Daniela alguma coisa que surge e fica aflorando como repentino e imenso bloco de granito nessa planura de lugares-comuns em que, nesse tempo, se encontra nossa literatura jurdico-penal. E, no feito de gua benta e sacristia, s lamentamos uma coisa: o grande trabalho no saiu de nossa pena. Sauer no v qualquer significado prtico nessa doutrina, chegando a dizer que lhe foi atribuda uma indevida importncia. Tudo no passa, segundo ele, de uma separao entre objetividade e subjetividade. Da considerar que tais elementos, localizados no tipo, mas sendo caractersticas da ilicitude (o que, segundo pensamos, no se pode contestar com xito), tambm o so da culpabilidade. Refere ele o delito de furto; a inteno de apropriar-se da coisa, pertence, relativamente apropriao, evidentemente, ao tipo, como unrecht (termo que poderia ser traduzi38

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do por injusto) objetivamente tipificado. Todavia, faz parte tambm da culpabilidade, na medida em que no suficiente um dolo qualquer de apropriao, sendo necessria uma intenso que ultrapassa o dolo, e se encontra direcionada utilizao da coisa. clara a distino entre a ilicitude e a culpabilidade, o objetivo e o subjetivo juzo negativo de valor quanto danosidade social ou ilegalidade e o juzo negativo de natureza subjetiva quanto vontade culposa do agente. Apesar disso, continua argumentando, ilicitude e culpabilidade no se distinguem quanto ao objeto, pois a vontade e a ao se interpenetram (em detalhes, o 14, III, do trabalho por ltimo mencionado). No incio de sua carreira de penalista, Heleno Fragoso no era adepto da teoria da ao finalista. Talvez em razo disso que tenha escrito em sua dissertao de livredocncia: No h elementos subjetivos no tipo. A admisso de elementos subjetivos no tipo compromete irremediavelmente o sistema, pois o tipo um esquema a que deve ajustar-se a face subjetiva do crime. Se se inclusse no tipo elementos subjetivos, a face subjetiva do crime deveria referir-se a si mesma, o que me parece insustentvel (Conduta punvel. So Pulo, Bushatsky, 1961, p. 201-202). J em fase posterior, na edio de 1980 de suas Lies, dizia identificar diversas espcies de elementos subjetivos do tipo (PG, n. 152). Hoje em dia o que prevalece uma concepo objetivasubjetiva de ilicitude. No ensinamento de Bettiol, se a antijuridicidade pode e deve na grande maioria dos casos ser determinada objetivamente, em alguns casos o juzo da ilicitude condicionado pela presena de elementos finalsticos de carter subjetivo que so decisivos para estabelecer tambm o carter culpvel da conduta....quando se fala de elementos subjetivos da antijuridicidade no se pretende dizer com a doutrina predominante que o juzo de antijuridicidade deva necessariamente incluir o da culpabilidade ou39

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vice-versa, mas que pelo juzo de ilicitude necessrio tomar em considerao um fator ou um elemento que realiza normalmente a sua funo no mbito do juzo de culpabilidade (tomo I da edio brasileira, cit., p 374-375). Em nosso Direito podem ser apontados diversos tipos em que se acham presentes elementos subjetivos: a inteno de ter a coisa para si ou para outrem, no tipo de furto; o fim de obter vantagem, na extorso mediante seqestro; o fim libidinoso, no rapto violento ou mediante seqestro, etc. Embora tenham sido Hegler e M.E. Mayer, respectivamente, em 1914 e 1915, os que levantaram a questo de o tipo penal no ter, sempre e exclusivamente, carter objetivo, foi Mezger o grande formulador da teoria em apreo, com seu trabalho Elementos subjetivos do ilcito, de 1923. O assunto era por ele estudado no setor da antijuridicidade (pargrafo 20 do volume I, do Tratado, sob o ttulo Os elementos subjetivos do injusto), dizendo que normalmente as referncias anmicas subjetivas do agente, o conhecimento de infringncia ordem jurdica e a inteno de atuar antijuridicamente pertencem, pelo menos normalmente, teoria da culpabilidade. Mas ressaltava em seguida: Pero sera errneo querer afIrmar este principio sin excepcin alguna, y referir en consecuencia todo lo objetivo ao injusto y todo o subjetivo e la culpabilidad, concibiendo al primeiro slo objetivamente y slo subjetivamente a la segunda (p. 347). Tomando por base o Direito Penal ento vigente em seu Pas, dividia em trs grupos os tipos de delito com elementos subjetivos: a) os crimes de inteno na forma dos chamados delitos cortados em dois atos, nos quais o ato querido pelo agente como meio subjetivo de uma

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ao posterior do mesmo sujeito. Ex.: o tipo do art. 146 do Cdigo alemo (fabricao de moeda falsa e adulterao de moeda); b) os delitos de tendncia, ou seja, naqueles em que a conduta aparece como realizao de uma tendncia subjetiva. Ex.: a ao impudica do art. 176, com sua tendncia sexual, ou o art. 260, com sua tendncia de lucro, ou com a inclinao que constitui a base da mesma tendncia (os arts. 176 e 260 se referiam, respectivamente, libidinagem grave e receptao profissional); c) os delitos, nos quais a ao aparece como expresso anmica do agente. Ex.: o juramento de convico do art. 153 do Cdigo Penal, em referncia ao art. 459 do Cdigo de Processo Civil (o ento art. 153 do CP alemo previa o delito de depoimento falso sem juramento. Estamos empregando a palavra artigo em vez de pargrafo, para evitar mal entendido em nossa linguagem jurdica). No segundo grupo Mezger inclua os delitos com resultado cortado (expresso de Binding), nos quais, segundo Fragoso, o resultado natural da ao no exigido pela lei para a consumao do delito, embora deva constituir o fim de agir (Hungria-Fragoso, v. I, tomo II, 1978, p. 548). Goldschmidt rechaava esse grupo de delitos, no dizer de Mezger. Em trabalho publicado na Revista Forense, Heleno Fragoso refere uma outra categoria ainda controvertida, esclarecendo: So os casos em que encontramos na lei as aes praticadas por motivos egosticos, por cobia, por instinto sanguinrio, por motivo torpe, etc (Elementos subjetivos do tipo, RF n. 256, p. 34). Afirma Mezger que em seu trabalho Vom Sinn der Strafrechtlichen Tatbestand, publicado em 1926 na colet41

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nea em homenagem a Traeger, inclui tambm no primeiro grupo os delitos de resultado cortado. Mas diz que Hegler adverte com acerto que tais delitos devem ser includos no segundo grupo, por ser mais correto (Tratado, p. 357, nota 8). Observe-se que os delitos de resultado cortado so delitos de inteno e, mesmo assim, Mezger, adotando a posio de Hegler, os inclui no segundo grupo (delitos de tendncia). Referindo-se aos delitos de resultado cortado, leciona Jescheck: En ellos la produccin del resultado no se incluye en el tipo, sino que basta la intencin del autor dirigida al resultado (op. cit., p. 361). Existem partidrios de uma teoria geral da Parte Especial do Cdigo penal, entre os quais contam-se, por exemplo, Anbal Bruno, Euclides Custdio da Silveira e Juan Del Rosal. Particularmente no estimamos vivel tal desiderato, como deixamos consignado na quarta capa da primeira edio desta monografia. Se algum, porm, se dispuser a trabalhar na difcil tarefa, pensamos que as referncias subjetivas, aqui tratadas como elementos do tipo, ou do injusto, poderiam ser estudadas na sistematizao dos elementos constitutivos dos tipos em espcie. So crimes de resultado cortado o envenenamento, previsto no art. 229 do revogado cdigo penal alemo, e o crime de perigo de contgio de molstia grave (art. 131 do Cdigo brasileiro), em que o agente tem o fim de transmitir a molstia a outrem. Na categoria dos tipos cortados em dois atos, nos quais, segundo Fragoso, a ao que corresponde ao tipo e consuma o crime praticada com a inteno de praticar o agente uma ao posterior (v. I, tomo II, p. 549), temos, no direito brasileiro, um exemplo esclarecedor: formar nova cdula, com fragmentos de cdulas verdadeiras, com o objetivo de restitu-la circulao (art. 290). No volume referente aos arts. 121 a 160, de suas Lies, Fragoso ora fala em elementos subjetivos do tipo42

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(p. 155) ora repete a expresso e coloca entre parnteses dolo especfico (p. 275). Ele diz que as denominaes dolo genrico e dolo especfico so imprprias (Lies...- Parte geral, 1976. p. 191). Neste trabalho, ao tratar da culpabilidade, no faz qualquer aluso ao assunto, deixando a seus leitores a indagao: por que imprpria a denominao dolo especfico? Tambm Celso Delmanto (Cdigo Penal anotado. So Paulo: Saraiva, I ed., 1980), ao indicar o tipo subjetivo do crime de perigo de contgio de molstia grave, fala em elemento subjetivo do tipo que o especial fim de agir... o dolo especifico, na corrente tradicional (p. 131). Por corrente tradicional, tem-se entendido a teoria causal da ao, o que nos faz dizer: Autores italianos da novssima gerao de penalistas, alm do consagrado Ferrando Mantovani, usam de modo corrente a expresso, sem incidir em qualquer reparo por parte de seus tambm modernos colegas europeus. Como j acentuamos, Beling jamais aceitou que pudesse o delito-tipo conter elementos subjetivos. O mximo que concedeu foi a existncia, na ao, de uma fase externa (objetiva) e de uma interna (subjetiva). Diz ele: Los elernentos externos caracterizan el tipo de ilicitud de cada caso y los internos las particularidades de la culpabilidad que deben concurrir para redondear el tipo de ilicitud como tipo de delito (Esquema, p. 42). Repudiando o termo elementos subjetivos, assevera que es tarea de los juristas buscar una expresin verbal para sustituir a esa inadecuada palabra compuesta, expresin que designe corretamente al esquema regulador comm para la faz objeliva y subjetiva (Esquema, p. 43).43

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Segundo Fragoso, o propsito de ofender, nos crimes contra a honra, elemento subjetivo do tipo (PG, 549. No mesmo sentido, entre outros, Delmanto e Asa). O Legislador ptrio introduziu elementos subjetivos em diversos tipos. Assim: art. 131: com o fim de; 134: para ocultar desonra prpria; 155, 156 e 157: para si ou para outrem; 158: com o intuito; 159: com o fim; 161, caput: para apropriar-se; 161, 1o, II: para o fim de; 171, caput: para si ou para outrem; 171, 2o, V: com o intuito; 173 e 174: em proveito prprio ou alheio; 180, caput: que sabe ser; 184, 1o: com o intuito de; 184, 2o: com o intuito de; 202: com o intuito ou com o mesmo fim; 206: com o fim de; 207: com o fim de; 219: para fim libidinoso; 227, 3o: com o fim de; 228, 3o: com o fim de; 231, 3o: com o fim de; 234: para fim de; 235, 1o: conhecendo essa circunstncia; 237: conhecendo a existncia do impedimento; 245, 1o: para obter lucro; 245, 2o: com o fito de; 247, IV: para exercitar a comiserao pblica; 250, 1o, I: com o intuito de; 261, 2o: com o intuito de; 270, 1o: para o fim de; 273, 1o, 278: para vender; 282, pargrafo nico: com o fim de; 288: para o fim de; 289, 2o: depois de conhecer a falsidade; 290: para o fim de; 293, 2o: com o fim de; 296, 1o, II: em proveito prprio ou alheio; 299: com o fim de; 301, 2o: com o fim de; 302, pargrafo nico: com o fim de; 303, pargrafo nico: para fins de; 305: em benefcio prprio ou de outrem; 307: para obter vantagem ou para causar dano; 308: para que dele se utilize; 309: para entrar ou permanecer; 309, pargrafo nico: para promover-lhe a entrada; 312: em proveito prprio ou alheio; 312, 1o: em proveito prprio ou alheio; 316: para si ou para outrem; 316, 1o: que sabe indevido; 317: para si ou para outrem; 319: para satisfazer interesse ou sentimento pessoal; 332: para si ou para outrem; 333: para determinlo a praticar: 334, 1o, c e d: em proveito prprio ou alheio, que sabe ser, que sabe serem; 339: de que o sabe inocente; 340: que sabe no se ter verificado; 324: depois de saber44

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oficialmente; 342, 1o: com o fim de; 343: para fazer; 343, pargrafo nico: com o fim de; 344: com o fim de; 345: para satisfazer pretenso; 347: com o fim de; 349: destinado a tornar seguro; 353: a fim de.

2.2.2. Elementos NormativosVimos que o Cdigo, de modo geral, limita-se a descrever objetivamente o modelo de comportamento representativo de um desvalor jurdico-penal. Mas nem sempre possvel encerrar em esquemas puramente objetivos a estrutura de uma conduta humana, motivo por que necessrio, s vezes, introduzir no tipo elementos para cuja interpretao se exige uma posio valorativa. Tais so os chamados elementos normativos, como, sem justa causa, funcionrio, documento, coisa mvel, cheque, duplicata, mulher honesta, dignidade, decoro, empregados na elaborao de diversos tipos. Eduardo Correia anota que, primeiro Mayer, e depois Mezger, Zimmerl e Grnhut foram sucessivamente acentuando a necessidade de distinguir no Tatbestand elementos descritivos e normativos. Sendo, pois, o Tatbestand embora descritivo, -o de juzos de valor; ao juiz caber uma simples funo cognitiva, mas de conceitos teleolgicos (A teoria do concurso cit., p. 89. Claus Roxin observa que la gran transformacin surge de los elementos normativos del tipo. Ellos hacen vacilar por primera vez la teora de la neutralidad valorativa del tipo penal, in Teora del tipo penal, tipos abiertos y elementos del deber jurdico. Trad de Enrique Bacigalupo. Buenos Aires, Depalma, 1979, p. 61. Erik Wolf afirmava que no fundo todos os elementos do tipo tm carter normativo, pois todos so conceitos jurdicos e, portanto, conceitos valorativos teleologicamen45

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te edificados, in Strafrechtliche Schuldlehre, v. 1, p. 79, nota 7, referido por Mezger, Tratado, I, cit., p. 388, no 20). Bettiol ensina: Os elementos normativos so aqueles elementos que postulam, para poder existir, uma valorao especial por parte do juiz; fora da valorao especfica, eles no existem como elementos de facto, que possam ser tomados em considerao para os fins de determinao dos elementos caractersticos de uma fatispcie. (ob. cit., II, p. 74). Tern Lomas (Derecho penal, cit., p. 322-323) anota que so distinguveis trs classes de elementos valorativos: a) os que expressam uma necessidade estimativa, como o perigo de vida, nas leses corporais graves; b) os que requerem uma valorao jurdica, como o conceito de coisa mvel, no crime de furto, ou a condio de funcionrio pblico, no delito de peculato; c) os que requerem uma valorao cultural, como o conceito de mulher honesta, no crime de rapto violento ou mediante fraude. Embora obstinado em dizer que todos os tipos so de carter puramente descritivo, Beling admitia que o Legislador, para caracterizar uma conduta, puede tomar toda clase de elementos: el comportamiento corporal mismo, la situacin vital de la cual aqul proviene, aquella en la que ha incido y aquella que ha acarreado. Por eso no puede imperdirsele que se sirva de las relaciones jurdicas de la conducta para la construccin de los tipos (cosa ajena, 46

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242, CP; cosa propria, 113, etc) (La doctrina del delito-tipo, cit., p. 17). Mesmo importando em enfraquecimento da garantia do princpio nullum crimen sine lege, fato concreto a presena de elementos normativos no tipo. Deles ainda fala Bettiol: Isto quer dizer que, em princpio, os elementos normativos do facto correspondem a uma concepo autoritria do direito penal; ou melhor, a uma concepo que v sem apreenses um aumento dos poderes discricionrios do juiz, a que corresponde um perigo para as liberdades individuais. (Direito penal, II, cit., ed. port., p. 77. Rosa Maria Cardoso da Cunha de opinio que os elementos normativos do tipo, dentre outras circunstncias que aponta, refutam por completo as funes sistemticas e de garantia acreditadas regra da legalidade in O carter retrico do princpio da legalidade. Porto Alegre: Sntese, 1979, p. 72).

2.3. A Funo do TipoA garantia uma das funes que a generalidade da doutrina atribui ao tipo (Dentre outros: Maurach, op. cit., p. 265; Bruno, I, p. 333; Sauer, Derecho penal, PG, trad de Juan del Rosal e de Jos Cerezo. Bacelona, Bosch, 1956, p. 114; Baumann, Derecho Penal Conceptos fundamentales y sistema. Trad de Conrado Finzi. Buenos Aires, Depalma, 1973, p. 57; Correia, Eduardo, Direito criminal, cit., p. 276; Tern Lomas, ob. cit., p. 309; Fragoso, Lies... cit., p. 159 e Conduta punvel, p. 131; Fontn Balestra, Derecho penal, PG. Buenos Aires, Abeledo-Perrot, 1975, p. 228; Jimnez de Asa, Tratado..., cit., v. III, p. 677; Reyes, La tipicidad. Bogot, Universidad Externado de Colombia, 1979, p. 29; Soler,47

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Derecho penal argentino, cit., v. II, p. 147; Beling, La doctrina del delito-tipo, cit., p. 5; Roxin, op. cit., p. 169; Wessels, Direito penal, PG. Trad de Juarez Tavares. Porto Alegre, Fabris, 1976, p. 30). Se o tipo descreve o comportamento proibido, e se o art. 1o do Cdigo Penal estabelece que no h crime sem lei anterior que o defina, segue-se que ao lado dos tipos penais e fora deles no existe nenhuma conduta punvel: a sua primeira e principal funo, a de garantia, que os sistemas penais democrticos e contemporneos asseguram ao cidado. Como corolrio do princpio nullum crimen sine lege, resulta a exigncia de que o Legislador, na elaborao dos tipos, formule, o mais exato possvel, a conduta incriminada. inconcebvel, por exemplo, a redao de um tipo assim: Lesar bem jurdico alheio, e a respectiva cominao de pena. Se certo que em muitos casos o Legislador no pode prescindir dos elementos normativos, no menos correto que o emprego excessivo deles enfraquece a garantia individual, como j consignamos. Outra conseqncia decorrente do princpio da reserva legal a proibio da analogia: proibindo-a, a ordem jurdica impe ao juiz apego estrito ao tipo, vedando-se a aplicao analgica in malam partem. Em outras palavras, no se ajustando o comportamento ao tipo, no pode o juiz valer-se de uma outra descrio, parecida ou semelhante conduta do agente. O referido princpio contm ainda uma disposio sobre a validez da lei penal no tempo, quando se probe ao Legislador a criao de um direito penal retroativo, para piorar a situao do agente, e ao juiz, sua aplicao. Bruno, ensinando sobre a importncia do tipo, diz:48

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A sua funo no se esgota na descrio das condies elementares do fato