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UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES PÓS-GRADUAÇÃO “LATO SENSU” AVM FACULDADE INTEGRADA VIOLÊNCIA INTRA-FAMILIAR: UMA QUESTÃO CULTURAL? Por: Sônia Regina Jeronymo de Assumpção Orientadora Professora Ana Abreu Rio de Janeiro 2013 DOCUMENTO PROTEGIDO PELA LEI DE DIREITO AUTORAL

DOCUMENTO PROTEGIDO PELA LEI DE DIREITO AUTORAL · 6 METODOLOGIA O presente trabalho visa verificar se o contexto cultural do qual viemos, que determinavam as relações de poder

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UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES

PÓS-GRADUAÇÃO “LATO SENSU”

AVM FACULDADE INTEGRADA

VIOLÊNCIA INTRA-FAMILIAR: UMA QUESTÃO CULTURAL?

Por: Sônia Regina Jeronymo de Assumpção

Orientadora

Professora Ana Abreu

Rio de Janeiro

2013

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UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES

PÓS-GRADUAÇÃO “LATO SENSU”

AVM FACULDADE INTEGRADA

VIOLÊNCIA INTRA-FAMILIAR: UMA QUESTÃO CULTURAL?

Apresentação de monografia à AVM Faculdade Integrada

como requisito parcial para obtenção do grau de

especialista em Psicologia Jurídica.

Por: Sônia Regina Jeronymo de Assumpção

Rio de Janeiro

2013

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a todos os meus familiares,

professores e amigos que me auxiliaram nessa

construção do saber entendendo minhas

dificuldades e ausências.

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DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho a todos aqueles que

viveram ou (con)vivem com a violência

doméstica, esperando que as páginas a seguir

possa auxiliar de alguma forma, e ao querido

Inácio, médico e amigo que me ensinou que

“mais importante que o trabalho é o trabalho

com amor”.

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RESUMO

O presente trabalho se destina aos estudantes e aos profissionais da psicologia que

tem interesse pelo tema violência doméstica ou intra-familiar. Tem-se por objetivo

identificar e analisar a relação entre o contexto histórico do poder familiar, com suas

dominações e subjugações, e a violência doméstica nos dias atuais assim como

verificar a hipótese de que a naturalização e banalização desta ao longo do tempo

influencia no comportamento atual dos sujeitos. Para tal propósito é utilizado não só

pesquisas bibliográficas, como também o resultado de um processo de observação,

realizada ao longo de 8 anos de trabalho voluntário em locais onde a violência

familiar se fazia presente de forma banalizada. Através dessa interligação, levantar-

se-á questionamentos e reflexões baseados em autores tais como Philippe Ariès,

Eduardo P. Brandão, Kátia Lenz C. de Oliveira, Foucault, dentre outros para discutir

o assunto em pauta, na tentativa de averiguar se a violência no âmbito familiar

também se dá por conta de costumes sociais, de crenças, de mitos que tiveram por

base uma cultura onde era permitido e incentivado o controle e subjugação dos mais

“fracos” e “invisíveis” dentro da família.

PALAVRAS CHAVE: Violência intra-familiar, Cultura, Subjetividade

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METODOLOGIA

O presente trabalho visa verificar se o contexto cultural do qual viemos,

que determinavam as relações de poder familiar, podem ter influenciado na violência

intra-familiar ainda presente na contemporaneidade.

Para se buscar uma resposta ao problema faz-se necessário a utilização

de uma metodologia. Como metodologia, o estudo será desenvolvido através de

uma interligação de pesquisa bibliográfica, de natureza exploratória, para

contextualizar a violência doméstica, identificar os tipos e as formas como as quais

se apresentavam e se apresentam, com o resultado de uma observação

participativa que foi realizada ao longo de 8 anos de trabalho voluntário em locais

onde a violência era banalizada e até mesmo, em alguns casos, incentivada devido

a crenças que foram inculcadas e fortalecidas através das gerações.

Desta forma, poder-se-á analisar o assunto levantando questionamentos,

reflexões embasadas em conceitos e teorias de autores tais como Philippe Ariès,

Eduardo P. Brandão, Kátia Lenz C. de Oliveira, Foucault, dentre outros para discutir-

se o assunto em pauta.

Quanto à forma de abordagem, trata-se de uma pesquisa qualitativa que

visa ir além do que se apresenta, procurando começar a levantar um pedaço do véu

que pode estar ocultando uma realidade um tanto quanto perversa.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 08

CAPÍTULO I

UM (RE)CORTE DA HISTÓRIA 10

CAPÍTULO II

VIOLÊNCIA INTRA-FAMILIAR E/OU DOMÉSTICA E SEUS TIPOS 19

CAPÍTULO III

CULTURA: PASSADO PRESENTE 27

CONCLUSÃO 36

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA 39

ÍNDICE 43

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INTRODUÇÃO

Na sociedade contemporânea, tem-se a oportunidade de observar um

número crescente de casos de violência intra-familiar.

O assunto, que tem sido veiculado com frequência através dos aparelhos

midiáticos, tem despertado interesse tornando-se um dispositivo para análise e por

que não dizer, conforme o próprio governo afirma e vários autores ressaltam, uma

questão de saúde publica.

Dentro das discussões que envolvem o tema, um número considerável de

pessoas costuma se indignar e julgar a situação tendendo a patologizar os(as)

agressores(as). Porém, não se pode deixar de observar que os fenômenos que

ocorreram ao longo da história da família e a cultura do nosso povo produziram

subjetividades, modos de pensar e agir que além de originados por um sistema

social, foram transmitidos, naturalizados e banalizados pela sociedade.

Portanto, as atitudes violentas que se fazem presentes nos lares de hoje,

podem ter em sua essência outras origens ou motivos que não uma patologia

propriamente dita, posto que a violência no âmbito familiar também se dá por conta

de costumes sociais, de crenças que tiveram por base uma cultura onde era

permitido e incentivado “lavar a honra com sangue”, subjugar os mais “fracos” e

“invisíveis” dentro da família como o eram a mulher e a criança.

Diante dessa situação, fica evidente a necessidade de um estudo de

caráter reflexivo sobre os fatos citados tendo por:

1) objetivo geral: analisar a relação entre o contexto histórico do poder

familiar, com suas dominações e subjugações, e a violência doméstica nos dias

atuais e,

2) objetivo específico: identificar a presença da naturalização da violência

doméstica no contexto histórico demonstrando que a naturalização e banalização

desta ao longo do tempo influencia, através de seus vários atravessamentos, no

comportamento atual dos sujeitos e na sua relação com o(s) outro(s) dentro do lar a

partir do momento em que estes também são constituídos e/ou formados por forças

históricas.

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Sendo assim, o trabalho se limitará a abordar as violentas relações de

poder que se fizeram presentes nas instituições familiares ao longo do tempo

permeando as relações familiares, os vários tipos de violências doméstica, as

crenças e mitos que permanecem presentes nos dias atuais para que se possa

identificar, analisar e discutir um discurso produzido que de certa forma ainda

habilita e até mesmo chancela essas relações.

A metodologia utilizada é a pesquisa bibliográfica, associada ao resultado

de uma observação participativa realizada ao longo de 8 (oito) anos de trabalho

voluntário em locais onde a violência era banalizada e até mesmo, em alguns casos,

incentivada devido a crenças que foram inculcadas e fortalecidas através das

gerações.

Acredita-se que tal contribuição, a partir do momento que abre novas

possibilidades de questionamentos, torne possível uma reflexão a respeito deste

fenômeno na atualidade e a construção de novos comportamentos e pensamentos

sem necessidade de rótulos e dos métodos punitivos e coercitivos para a construção

de famílias onde a convivência seja mais saudável. Onde não haja mais seres

humanos colocados na posição de vítima e/ou de algoz.

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CAPÍTULO I

UM (RE)CORTE NA HISTÓRIA

Para dar início ao tema violência doméstica, optou-se aqui por fazer um

retorno na história da humanidade, desde o período da pré-história, devido ao fato

de que os indivíduos são construídos e/ou atravessados em sua subjetividade

também por forças históricas. Olhando para o passado, onde os homens detinham o

poder através do uso da força, talvez se possa compreender melhor certos

comportamentos do presente. Até porque, conforme coloca Alves (2011), “os índices

e as modalidades de crimes classificados como violência doméstica, ... apontam

para uma sociedade machista que ainda pratica atos semelhantes ao da pré-

história.”

Análises osteológicas voltadas exclusivamente para a questão da violência vem demonstrando que ela não surge no contexto cultural somente a partir da ruptura social e econômica causada pelo contato estressante com os colonizadores europeus... Marcas inequívocas de golpes confirmam a ocorrência de episódios de agressão física desde a época dos australopitecos, há mais de um milhão de anos ... (LESSA, 2004, p.280)

Entretanto, como se manter vivo num ambiente primitivo e hostil sem a

agressividade, sem o tão conhecido instinto de sobrevivência, sem ser um ser que

poder-se-ia considerar na atualidade como violento? Era preciso usar a força para

se defender dos animais, para caçar, etc. Era preciso matar para (sobre)viver.

Freud (2006) em “O mal estar da civilização”, se refere à agressividade

como um impulso inato do homem que parece pertencer ao instinto de auto-

preservação e cita que “o impulso da crueldade surge do instinto de domínio

independente da sexualidade”∗.

O elemento de verdade por trás disso tudo, elemento que as pessoas estão dispostas a repudiar, é que os homens não são

∗ De acordo com a informação contida em FREUD (2006) na edição do ano de 1915 a frase sobre o instinto de o domínio ser independente da sexualidade foi omitida.

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criaturas gentis que desejam ser amadas e que, no máximo, podem defender-se quando atacadas; pelo contrário, são criaturas entre cujos dotes instintivos deve-se levar em conta uma poderosa quota de agressividade... A existência da inclinação para a agressão, que podemos detectar em nós mesmos e supor com justiça que ela esta presente nos outros, constitui o fator que perturba o nosso relacionamento com o nosso próximo ... Em conseqüência dessa mutua hostilidade primária dos seres humanos, a sociedade se vê permanentemente ameaçada de desintegração. (FREUD, 2006, p.116-117)

Roger Dadoun (1998) fala do "homo violens" e coloca que este é fruto da

violência presente desde sua gênese.

Batista (1999) explica que Dadoun “propõe a definição de “homo violens”,

porque considera a violência característica primordial, essencial, constitutiva do ser

do homem”.

Cabe ressaltar que não está se trabalhando aqui com a definição de

homem como gênero, mas sim como espécie humana, pois não tem como se

afirmar que na pré-história as mulheres se atinham a “cuidar” do que poderíamos

chamar hoje de família e do lar. Elas também precisavam usar da agressividade

para sobreviver.

Grossi (1998) alerta para o fato de que dependendo da época e da

cultura, os papéis que deveriam ser exercidos pelos homens e pelas mulheres

mudam, levando um ou outro gênero a ser mais agressivo ou violento, não sendo

possível pensá-los sem observar a questão sócio-histórica.

... uma antropóloga norte-americana, Margareth Mead, mostrou que, numa mesma ilha da Nova Guiné, três tribos – os Arapesh, os Mundugumor e os Tchambuli – atribuíam papéis muito diferentes para homens e mulheres. Agressividade e passividade, por exemplo, comportamentos que, em nossa cultura ocidental, estão fortemente associados, respectivamente, a homens e a mulheres quase como uma determinação biológica, entre estas tribos lhes eram associados de outra forma. Num destes grupos, homens e mulheres eram cordiais e dóceis; no outro ambos eram agressivos e violentos; e no terceiro as mulheres eram aguerridas, enquanto os homens eram mais passivos e caseiros. (GROSSI, 1998, p.6-7)

Observa-se então que a agressividade é trazida como fazendo parte do

ser humano independente do gênero, nesse caso, pode-se dizer, que o fenômeno o

qual foi denominado como violência, conforme esclarece Fernandez (2010), “pode

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ser caracterizada como uma das mais antigas manifestações sociais, não raro, um

aspecto crescente no campo coletivo e individual” .

Silva (2010) comenta que em nossa sociedade a violência utilizada contra

a mulher faz parte de um sistema sócio histórico que por tê-las colocado em uma

posição inferior na escala de perfeição metafísica, acabou por produzir relações

assimétricas entre homens e mulheres.

A discussão acerca das desigualdades entre homens e mulheres, como sabemos, não é recente, muito pelo contrário: dos gregos antigos até bem pouco tempo atrás, acreditávamos que a mulher era um ser inferior na escala metafísica que dividia os seres humanos (SILVA, 2010)

Segundo Ariès (1981), no século XVII havia o monopólio de um sexo: o

masculino.

Na idade média, de acordo com este mesmo autor, os sentimentos de

família, assim como da infância, ainda não existiam e a formação da família tinha

um objetivo específico, que a principio não era o vínculo por amor, mas sim por

interesses vários.

Essa família antiga tinha por missão – sentida por todos – a conservação dos bens, a prática comum de um oficio, a ajuda mútua quotidiana num mundo em que um homem, e mais ainda uma mulher isolados não podiam sobreviver, e ainda nos casos de crise, a proteção da honra e das vidas. Ela não tinha função afetiva (ÁRIÈS, 1981, p. X)

Uma boa parte dos casamentos eram “arranjados” pelos pais, através de

acordos, sem o conhecimento ou consentimento da jovem que era prometida, e

muitas vezes entregue a homens rudes e bem mais velhos, ainda em idade precoce,

conforme costume da época. Afinal, era uma vergonha tanto para a família quanto

para a moça que esta “ficasse para titia”, ou seja, era melhor passar por certas

situações e até mesmo por “estupros∗” freqüentes na própria cama do que não ter

um marido.

∗ A Lei Nº 12.015, de 7 de agosto de 2009, em seu Art. 213 define como estupro constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso.

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No Brasil colônia e no Brasil império, a família girava em torno do Pátrio

Poder∗. Portanto, as mulheres, assim como seus filhos, não tinham vez e nem voz.

Dentro dessas formações familiares, elas já tinham um papel pré-definido

e esperado: a mulher cabia ser a dona de casa, a “procriadora” e às vezes∗ a

cuidadora da prole. Elas eram reprimidas, oprimidas e muitas vezes consideradas

apenas como objeto de uso pessoal e adorno, mas mesmo assim a crença presente

era de que se “é ruim com ele, pior é ficar sem ele” e ser descriminada por todos.

Às mulheres, sempre foi reservado um lugar de menor destaque, seus direitos e seus deveres estavam sempre voltados para a criação dos filhos e os cuidados do lar, portanto, para a vida privada, e, durante o século das luzes, quem julgasse se apossar da igualdade estabelecida pela Revolução Francesa para galgar espaços na vida pública teria como destino a morte certa na guilhotina. Muitas mulheres que tentaram reivindicar seus direitos de cidadania tiveram esse destino. (SILVA, 2010)

Ariès (1981) informa que em sua grande maioria, elas não sabiam ler e

escrever, mas lhes era ensinado o ofício de costurar, bordar, tocar um instrumento,

cozinhar, etc. Era preciso instruir desde bem cedo as meninas de forma correta, dar-

lhes “virtudes” afim de que se tornassem uma boa mãe de família e o mais

importante: que soubessem se colocar em seus devidos lugares.

Aprendiam ou eram “adestradas” o suficiente para fazer seus pais, futuros

maridos ou “proprietários” (ao qual deveriam ser submissas) felizes e tinham “a

vantagem de procurar voluntariamente agradar, em vez de ser obrigada, como uma

escrava a se submeter a coerção” (FOUCAULT, 1988, p.142). Se não o fizessem

corriam o risco de serem agredidas fisicamente e/ou psicologicamente ou ainda

descartadas com o uso da violência em atitudes que poderíamos mesmo denominar

como perversas, posto que o prazer de humilhar estava presente.

∗ O Pátrio Poder vem do direito romano fundado no poder familiar. Baseado neste poder o pai tem direito absoluto sobre os filhos. ∗ Foi colocado “as vezes” porque muitas dessas mulheres entregavam suas crianças as amas de leite para que estas cuidassem delas até que atingissem uma idade, em torno dos 7 anos, em que pudessem ser entregues a um tutor ou instrutor que se responsabilizaria pela sua instrução conforme informa Áries (1981).

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Quantas jovens mulheres foram obrigadas por seus pais a se casarem ou

foram expulsas de casa∗?

Quantas foram enviadas para conventos ou para locais onde teriam de se

prostituir para sobreviverem por terem entregue a seus parceiros o que era

considerado seu bem mais precioso, a virgindade, sendo ainda solteiras?

A violência e o castigo físico ocorriam com freqüência dentro dos lares,

sendo atitudes banalizadas e até mesmo incentivadas∗. Entendiam que desta forma

se impunha o respeito. Não compreendiam, e até hoje algumas pessoas não

compreendem, que respeito não se impõe e sim se conquista através do modo de

agir e que ao invés de serem admirados pelos seus, eram na realidade temidos e

odiados.

O homem da casa estivesse ele na posição de pai ou de marido, era a

“autoridade” que detinha o poder de vida e de morte sobre aqueles que estavam sob

sua guarda.

Foucault (1997) comenta que ao pater familia romano ou ao pai de família

era concedido e permitido o direito de vida e morte sobre os seus filhos e escravos.

Ele poderia retirar a vida a partir do momento em que a havia concebido e/ou

concedido.

Em Áries (1981) encontrou-se também a informação de que até o fim do

século XVII havia o que se chamava de infanticídio tolerado. Mesmo este sendo

considerado um crime, “era praticado em segredo, correntemente, talvez, camuflado

sob a forma de acidente: as crianças morriam asfixiadas ... Não se fazia nada para

salvá-las ou conservá-las.”

O fato de ajudar a natureza a fazer desaparecer criaturas tão pouco dotadas de um ser suficiente não era confessado, mas tampouco era considerado com vergonha. Fazia parte das coisas moralmente

∗ Até em torno das décadas de 60, 70 a mulher solteira que tinha um filho não era bem vista pela sociedade vigente e muitas delas eram “postas para fora de casa” para não envergonhar a família de origem. Seus filhos, crianças inocentes, eram reconhecidos e chamados de bastardos porque foram gerados fora do casamento. Ninguém se preocupava com os traumas e com as conseqüências que atitudes desse tipo poderiam causar tanto na mãe quanto na criança. ∗ Existem pessoas que ainda acreditam que pancada, um reforço punitivo, pode resolver qualquer problema ou “endireitar” uma pessoa.

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neutras, condenadas pela ética da Igreja e do Estado, mas praticado em segredo ... (ÁRIÈS, 1981, p. XV)

Pode-se até fazer um paralelo com o que Foucault (1997) cita quando se

refere ao poder de um soberano, ao direito de um governante, de um rei que por

sua posição podia confiscar objetos, corpos, e até mesmo a vida.

O chefe da família também era de certa forma um soberano, um rei, só

que do lar e pobre daquele que o contrariasse. Tornava-se um inimigo que deveria

ser vigiado, subjugado, controlado e muitas vezes punido com brutalidade ou morto

para servir de exemplo.

O adultério∗, que implicava na manutenção de uma fidelidade conjugal de

forma que nenhum dos conjugues mantivessem relações sexuais com outra pessoa

que não aquela com a qual foi realizado o acordo nupcial, era condenado pela Igreja

Católica, e até mesmo pelo Código Penal. Porém este era comumente praticado

pelos homens.

Até o final do século XVIII, três grandes códigos explícitos ... regiam as práticas sexuais: o direito canônico, a pastoral cristã, e a Lei civil. Eles fixavam, cada qual a sua maneira, a linha divisória entre o lícito e o ilícito. Todos estavam centrados nas relações matrimoniais: o dever conjugal, a capacidade de desempenhá-lo, a forma pela qual era cumprido, as exigências e as violências que o acompanhavam ...(FOUCAULT,1997, p. 38)

Como a “mulher de casa“, a dama do lar deveria ser respeitada, o

adultério acabava sendo um “pecado” tolerado e justificado sendo redimido através

de orações. Foucault (1988) comenta que a esposa, considerada mulher séria, a

guardiã da família não tinha o direito de ter ou de expressar sua sexualidade. A

relação sexual entre os conjugues visava a procriação para prover a descendência

legítima que só poderia ser obtida com sua própria esposa.

No final do libelo Contra Nera, atribuído a Demóstenes, o autor formula uma espécie de aforismo que permaneceu célebre: “As cortesãs, nós a temos para o prazer; as concubinas, para os

∗ No Decreto Lei No 2.848, de 7 de dezembro de 1940, no Título VII Dos crimes contra a família, no Capítulo I dos crimes contra o casamento, constava no Art. 240 o adultério como crime até o ano de 2005 quando foi revogado pela Lei No 11.106 (BRASIL, 1940).

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cuidados de todo o dia; as esposas, para ter uma descendência legítima e uma fiel guardiã do lar” (FOUCAULT, 1988, p. 129)

O prazer e o gozo só eram permitidos aos homens e as chamadas

mulheres de vida fácil (que de fácil não tinha e não tem nada) dentro de locais

específicos como o eram os bordéis∗ e os prostíbulos.

... as palavras, os gestos, então autorizados em surdina, trocam-se nesses lugares a preço alto. Somente ai o sexo selvagem teria direito a alguma das formas do real, mas bem insularizadas, e a tipos de discurso clandestinos, circunscritos, codificados. Fora desses lugares, o puritanismo moderno teria imposto seu tríplice decreto de interdição, inexistência e mutismo. (FOUCAULT, 1997, p. 10)

A mulher casada que por ventura mantive-se ou fosse suspeita de manter

uma relação extraconjugal, de praticar adultério corria o risco de ser espancada,

expulsa, abandonada ou assassinada. De acordo com os escritos de Foucault

(1997) “romper as leis do casamento ou procurar prazeres estranhos, mereciam de

qualquer modo condenação”.

... as mulheres enquanto esposas, são de fato circunscritas por seu status jurídico e social” o que significa que não era aceitável juridicamente e moralmente que estas tivessem relações extraconjugais. A sua atividade sexual deve se situar no interior da relação conjugal e seu marido deve ser o parceiro exclusivo. Elas se encontram sobre seu poder; é a ele que devem dar filhos que serão seus herdeiros e cidadãos. Em caso de adultério, as sanções tomadas são de ordem privada como também pública... a lei quer que as mulheres experimentem um temor bem forte para que permaneçam honestas ... (FOUCAULT, 1988, p. 131)

Acreditavam que essa condenação era necessária para “lavar a honra”.

Quantas mulheres casadas não foram mortas em nome da honra?

Os crimes conhecidos como passionais, onde se “lavava” a honra com

sangue, matando o(s) “culpado(s)” de um crime contra os costumes, não eram

incomuns e atitudes desse tipo eram entendidas pela sociedade como “sinal de

hombridade”, uma forma de manter a dignidade “limpando” o nome da família.

∗ A palavra bordel, no Dicionário Aurélio (FERREIRA, 1986), é definida como antro de devassidão, locais para encontros amorosos com mulheres que faziam sexo em troca de dinheiro e de outros favores.

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... ser casado significa aqui, antes de mais nada, ser o chefe de família, ter uma autoridade, exercer um poder que tem na ‘casa” seu lugar de aplicação ... porque exerce o poder e porque deve dar provas de domínio de si na prática desse poder... Ter somente relação com o esposo é para a mulher uma conseqüência do fato de que ela esta sob seu poder. (FOUCAULT, 1988, p. 135)

Em nome do amor vidas foram retiradas e “em nome desse mesmo amor

é que o homicida passional se permite agredir, denegrir, manchar e matar a vítima,

objeto de sua paixão.” (PEGO, 2007, p.10)

Mesmo sendo um crime perante a Lei brasileira os autores acabavam

livres até porque além de usarem como desculpa a “legitima defesa da honra” ainda

alegavam como circunstancia atenuante terem cometido o crime por motivo de

relevante valor social ou moral ou sob a influencia de violenta emoção provocada

por ato injusto da vítima conforme consta no Art. 65 da Lei No 2.848, de 7 de

dezembro de 1940, do Código Penal cuja Redação foi dada pela Lei nº 7.209, de

11.7.1984. (BRASIL, 1940).

A primeira evolução da lei penal brasileira no tocante ao assunto, após a promulgação do Código Penal de 1890, ocorreu em 1940, trazendo a punibilidade ao crime passional que, até então, era considerado como excludente de ilicitude. A punição passou a ser aplicada ao delito classificado como homicídio privilegiado pela violenta emoção, porém, por questões culturais, essa norma era meramente teórica, pois, na prática, os defensores dos homicidas passionais criaram a tese da “legítima defesa da honra”, não prevista na legislação, mas aceita pelos Tribunais do Júri, na sua grande maioria, composto por homens que achavam “natural” o comportamento do homicida passional que, traído, lavava a sua honra com sangue e, em nome dessa honra, era sumariamente absolvido. (PEGO,2007, p.6)

Aqui no Brasil têm-se casos famosos de violência doméstica e crimes

passionais envolvendo tanto mulheres como homens como autores. Pode-se citar

como exemplos o da Fera da Penha, o de Lindomar Castilho, o de Doca Street∗,

dentre tantos outros divulgados pela mídia.

∗ Cabe ressaltar que o fato destas ou de qualquer outra pessoa terem cometido um crime uma vez na vida, não significa que tornará a fazê-lo ou que são portadores de alguma patologia. Se já cumpriram sua pena, eles têm o direito de recomeçar a vida.

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“Matei por amor.” A frase saiu, dramática, da boca do paulista Raul Fernandes do Amaral Street, o Doca Street, e foi dita à imprensa. Horas depois de um julgamento e sob aplausos, Doca caminhou sem culpa pelo chão de um tribunal de Cabo Frio (RJ), em 1979. Fora absolvido do assassinato da namorada Ângela Diniz, com três tiros no rosto e um na nuca. Dois anos depois, a promotoria recorreu e o slogan “quem ama não mata”, repetido à exaustão por militantes feministas que acompanhavam o segundo julgamento, foi decisivo para a vitória contra a impunidade. Em decisão histórica, transmitida pela tevê, Doca foi para a cadeia. Desde então, os crimes passionais passaram a ser julgados com um olhar menos machista. Em seu primeiro julgamento, Doca alegou “legítima defesa da honra”, por sentir-se traído pela companheira. Como ele, até meados do século passado, criminosos foram absolvidos baseando-se nesse argumento, pelo qual o homem podia ser perdoado por executar a mulher adúltera. (LOPES, 2002, Capa)

Em todos eles havia sentimentos em comum como o ciúme, a raiva, o

sentimento de posse. O orgulho ferido, o desejo de vingança acabou levando a um

desequilíbrio psíquico e automaticamente a um comportamento agressivo. A “fera”

adormecida foi despertada.

Luiza Nagib Eluf (2002, p. 111) o crime passional é decorrente de uma paixão embasada no ódio, na possessividade, no ciúme desprezível, na vingança, no sentimento de frustração aliado à prepotência, na mistura de desejo sexual frustrado com rancor. Para a autora, o delito passional é de natureza psicológica, uma vez que a paixão desvairada transforma a mente humana. (ELUF, 2002, p. 111 apud PEGO, 2007)

Segundo Parodi (2010), o tempo passou, houve mudanças na lei no que

se refere à violência e em 7 de agosto de 2006 foi decretada a Lei Nº 11.340, mais

conhecida como a Lei Maria da Penha que veio para “coibir e prevenir a violência

doméstica e familiar contra a mulher”, mas até a atualidade essas violências intra-

familiares ainda continuam acontecendo. Isso significa que há uma grande

possibilidade da herança cultural com todas as suas crenças, valores, credos, mitos,

conceitos e pré-conceitos que foram sendo inculcados nos indivíduos, ainda estejam

atravessando-os até os dias atuais e, automaticamente, essa pode, por vezes, estar

ainda influenciando fortemente nos relacionamentos com o próximo, seja em que

âmbito for, ou seja, no individual ou no coletivo onde também se inclui o familiar.

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CAPÍTULO II

VIOLÊNCIA INTRA-FAMILIAR E/OU DOMÉSTICA

E SEUS TIPOS

Para falar sobre a violência intra-familiar será importante começar

definindo-a para que haja uma compreensão do que ela é, das várias formas sob as

quais se apresenta e de como ocorre sua prática.

De acordo com o Dicionário da língua portuguesa (FERREIRA, 1986), a

violência é entendida como “a qualidade do que é violento; ação de empregar força

física ou intimidação moral; fúria; constrangimento físico ou moral exercido sobre

alguém, para obrigá-lo a submeter-se à vontade de outrem; coação.”

A Organização Mundial de Saúde (OMS) define violência como “uso

intencional da força física ou do poder, real ou em ameaça, contra si próprio, contra

outra pessoa, ou contra um grupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha grande

possibilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico, deficiência de

desenvolvimento ou privação.” (BRASIL, 2002)

Pode-se pensar então que a violência é a forma que uma pessoa colérica

encontra para impor seu poder e controle sobre o outro, descarregar angústias e

frustrações com as quais não sabe lidar.

A violência intrafamiliar expressa dinâmicas de poder/afeto, nas quais estão presentes relações de subordinação-dominação. Nessas relações – home/mulher, pais/filhos, diferentes gerações, entre outras – as pessoas estão em posições opostas, desempenhando papéis rígidos e criando uma dinâmica própria, diferente em cada grupo familiar. (BRASIL, 2002, p. 16)

Quando esta violência se dá no âmbito da família ou do lar ela pode ser

nomeada de intra-familiar ou de violência doméstica. Segundo o Conselho Nacional

de Justiça (CNJ) a violência doméstica ocorre dentro de casa ou “em uma relação

de familiaridade, afetividade ou coabitação”. Já a violência intra-familiar “acontece

nas relações entre os membros da comunidade familiar, formada por vínculos de

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parentesco natural ou civil, por afinidade (por exemplo, o primo ou tio do marido) ou

afetividade (amigo ou amiga que more na mesma casa)”.

Portanto, a diferença entre estes dois tipos de nomeação se dá pelo fato

de que na violência doméstica outra pessoa que não faz parte da parentela, da

família∗, mas que conviva dentro do mesmo espaço∗, pode vivenciá-la, como os

“empregados (as), pessoas que convivem esporadicamente, agregados” (BRASIL,

2002).

O fato é que seja violência doméstica ou na intra-familiar, o sexo

masculino costuma com freqüência aparecer como o responsável ou autor da

violência praticada.

Quando se fala de violência intrafamiliar, deve-se considerar qualquer tipo de relação de abuso praticado no contexto privado da família contra qualquer um de seus membros. As estatísticas são eloquantes ao assinalar o homem adulto como autor mais freqüente dos abusos físicos e/ou sexuais sobre meninas e mulheres. No entanto, o abuso físico e a própria negligencia às crianças são, muitas vezes cometidas pelas mães, e no caso dos idosos, por seus cuidadores. (BRASIL, 2002, p.10)

Entretanto, apesar do número de mulheres e crianças vítimas da violência

intra-familiar serem consideravelmente elevados, não se pode afirmar que os

homens, os idosos e os portadores de deficiência também não a sofram com certa

frequencia.

O próprio Ministério da Saúde, afirma que “a violência intra-familiar é um

problema social de grande dimensão que afeta toda a sociedade” e dentro dela

estão incluídos as mulheres, crianças, adolescentes, idosos, homens e portadores

de deficiência. (BRASIL, 2002). Talvez, os números relativos a estes últimos casos

não apareçam em grande número nas estatísticas por três motivos:

1) no caso do idoso: é comum que o abuso ou a violência só venha a

público quando alguém, talvez por pena, acaba fazendo a denuncia. Não são muitos

os idosos que procuram os órgãos responsáveis para registrar esse tipo de

∗ É preciso comentar aqui que atualmente as famílias têm outras configurações além da tradicional como, por exemplo, as monoparentais, as reconstruídas, as mosaicas, a extensiva e as homoafetivas. ∗ A violência intra-familiar pode ocorrer dentro ou fora do espaço doméstico.

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ocorrência e isso pode se dar por vários motivos e dentre eles pode-se citar aqui, a

impossibilidade de se locomover, o medo da situação piorar e até mesmo por

acreditar que ninguém vai se convencer da veracidade de seu discurso devido sua

idade avançada.

2) no caso do homem: este pode ter vergonha de se apresentar numa

delegacia para dar queixa de sua mulher e ter que contar que esta sendo que

agredido por ela. Numa sociedade machista como a que se vive no Brasil, um

homem ter esta atitude o levaria a ser rotulado com o que a sociedade entende por

“fraco”, sem “hombridade”. Ele também corre o risco ser mandado de volta para

casa e ouvir de alguns profissionais que “deveria ser mais homem e dar uma surra

na sua mulher para que ela aprendesse quem manda no ‘galinheiro’” conforme

contou um jovem senhor que passou por esta situação e se sentiu bastante

constrangido em retornar para pedir auxilio. Segundo ele era “melhor continuar

apanhando da esposa do que ser ridicularizado novamente” por querer que a justiça

desse uma solução para o problema sem ele precisar revidar com outra agressão.

3) No caso do deficiente físico, geralmente as vítimas são crianças e

adolescentes que não sabem como se defender.

Quando se fala de pessoas portadoras de deficiência, o contexto da violência intrafamiliar assume características e dimensões distintas e variadas... Essas diferenças são na maioria das vezes escondidas, disfarçadas ou negadas... A desinformação sobre o potencial e sobre as habilidades do portador de deficiência leva à piedade, omissão, repulsa. Com freqüência, os pais sentem-se culpados ou castigados por terem um filho com deficiência. Este contexto favorece o processo de violência no meio familiar. (BRASIL, 2002, p.9)

Todas essas situações supracitadas levam a perceber e a ter a certeza

de que a violência intra-familiar não escolhe sexo, raça, etnia, religião, classe social

ou idade. Qualquer um pode se deparar com ela direta ou indiretamente,

independente de ser um embrião, menino, menina, homem, mulher, idoso, rico ou

pobre, católico ou protestante, negro, branco, etc.

Outra questão importante a ser mencionada é que quando pensa-se na

violência doméstica e/ou intra-familiar é comum que as pessoas pensem em

agressão física, porém ela pode se fazer presente de várias maneiras como por

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exemplo na forma de abuso, de agressões psicológicas, morais, sexuais e até

mesmo patrimoniais conforme será mais detalhado a seguir.

Em geral, os casos de violência no Brasil são registrados em situações policiais, tratando-se, portanto, de casos de violência explícita, facilmente constatada. Porém existem casos de violência psicológica, difíceis de serem percebidos e diagnosticados, tanto no nível institucional quanto pelo agressor ou pela própria vítima. A constante desmoralização do outro, por exemplo, é uma dessas formas. Os efeitos morais da desqualificação sistemática de uma pessoa, principalmente nas relações familiares, representa uma forma perversa e cotidiana de abuso cujo efeito é tão mais pernicioso que qualquer outro, já que pode promover distúrbios graves de conduta na vítima. (BRASIL, 2002, p.10).

2.1 Tipos de violência

De acordo com a Lei Nº 11.340, de 7 de agosto de 2006, mais conhecida

publicamente como Lei Maria da Penha, que gera mecanismos de “coibir e prevenir

a violência doméstica e familiar contra a mulher”, é considerado violência intra-

familiar ou doméstica “qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause

morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial”.

Temos, portanto tipos específicos de violência que mesmo estando

definidos numa Lei criada para a proteção da mulher, nada impede que estas

também a pratiquem, se colocando na posição de algoz.

1) Violência Física∗ : se dá quando ocorreu ou ocorre um ataque ou uma

agressão com tapas, pancadas, empurrões, etc.

Ela pode ou não deixar marcas, mas mesmo que não dê para percebê-las

ou que as marcas externas sejam pequeninas, deve-se tomar muito cuidado antes

de afirmar que não houve uma agressão, pois além do abandono ser considerado

uma violência física (BRASIL, 2002), alguns “agressores” podem bater em regiões do

corpo onde as pessoas não costumam prestar atenção ou que fiquem escondidas

de olhares curiosos sob as roupas.

∗ O Ministério da Saúde (BRASIL, 2002), também considera como violência física arrancar as roupas, obrigar uma pessoa a ingerir substancias (drogas, medicações ou alimentos), abandonar em local desconhecido e danos a integridade física que sejam decorrentes de negligencia e/ou omissão.

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Um pequeno hematoma, um machucado, por menor que seja, e a

utilização de excesso de roupas para cobrir o corpo pode esconder uma grande e

triste história como a vivência em trabalho junto a comunidades acabou

demonstrando ao longo do tempo.

2) Violência Psicológica: segundo o Ministério da Saúde (BRASIL, 2002),

pode ser definida como “toda ação ou omissão que causa ou visa causar dano à

auto-estima, à identidade ou desenvolvimento da pessoa”.

No decorrer de toda a história familiar, existem conflitos e tensões que podem ser manifestos ou latentes. A maneira de lidar com tais situações pode se basear em modelos autoritários e intolerantes, nos quais predomina o relacionamento de opressão e silenciamento dos mais dependentes, em geral, as crianças. (DUARTE, 2011, p.99)

Diferente da violência física, a psicológica, por conta de poder passar

mais despercebida, pode acabar ocorrendo várias vezes ao dia e em qualquer local

sem que as pessoas em volta se dêem conta do que está acontecendo. Neste tipo

de violência encontramos as agressões verbais, ofensas, ameaças, xingamentos –

que podem ser sussurrados ao ouvido ao invés de serem aos gritos – os

constrangimentos∗, etc.

De acordo com o Ministério da Saúde (BRASIL, 2002), isolar, ignorar,

aterrorizar, corromper, denegrir, caluniar, difamar, cobrar excessivamente,

chantagem emocional, punir exageradamente ou ter comportamentos histéricos

também são formas de praticar a violência psicológica.

Existem outras situações que também podem ser entendidas como

violência psicológica tais como:

a) ficar fazendo comparações desnecessárias envolvendo

relacionamentos;

b) fazer comentários depreciativos sobre o corpo e/ou a capacidade do

o outro para provocar, como por exemplo, maridos que fazem piadas grosseiras

sobre o corpo da mulher comparando-as com mulheres mais jovens; homens que

vivem depreciando a comida preparada por suas esposas ou as mulheres que

insatisfeitas com seus parceiros passam a colocar defeito em tudo que eles façam e

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a criticá-los e/ou ridicularizá-los em público. A intenção dessas acusações não

poderia ser a de fazer com que o outro se sinta diminuído?

A violência psicológica∗ não tem como característica deixar cicatrizes

externas como hematomas, cortes, etc, mas, em compensação, suas “marcas”

podem levar muito tempo para desaparecerem e até mesmo serem internalizadas

tão profundamente a ponto de trazerem sérias consequências. Sentimentos

constantes de medo, revolta e ódio, podem se cristalizar na individualidade do ser e

passar a causar não só problemas psíquicos e/ou mentais como também orgânicos

como, por exemplo, doenças psicossomáticas.

Também não dá para negar que há pessoas, sejam mulheres, crianças,

idosos, etc. que passam tantos anos sofrendo de violência psicológica ou emocional

dentro do lar, que num momento de desespero, algumas delas, por não

conseguirem ver “uma luz no fim do túnel”, encontrar uma saída da situação, podem

acabar praticando atos tais como assassinato ou suicídio para se verem livres de

tanto sofrimento.

É interessante citar aqui que a violência psicológica normalmente acaba

levando a prática da violência física (violência costuma gerar violência) e que a

manipulação utilizada por quem pratica a violência psicológica pode ser tão bem

preparada ou articulada que a vítima pode:

a) muitas vezes não perceber que está sendo “violentada(o)”

psiquicamente por desconhecimento, por acreditar que atitudes como essas são

“normais” e comuns dentro de uma relação;

b) em alguns casos, acreditar que é realmente culpada(o) da situação e

que se modificar o seu comportamento “tudo vai ser diferente”;

c) após tanta pressão, ser levada(o) a reagir na frente de outras pessoas

para reafirmar o discurso que é proferido a seu respeito. Dessa maneira o(a)

agressor(a) se coloca na posição de vítima podendo dizer: “tá vendo o que eu

passo?” ou “vê o que fulana(o) faz comigo?”

∗ A frequência com que se pode “agredir” as pessoas com palavras sem ao menos se dar conta do que se está a fazer é muito maior do que se possa imaginar. ∗ O Ministério da Saúde (BRASIL, 2002) também considera violência psicológica negar carinho, negligencia, críticas ao desempenho sexual, exploração dentre outras situações.

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Quem não conhece a situação e presencia uma cena dessa vai pensar o

que?

As pessoas tendem a mostrar ou demonstrar apenas o que querem ou o

que desejam que os outros vejam. Segundo Jung (1986), são tantas as “personas∗”

e “máscaras” que são utilizadas, seja intencionalmente para se apresentar ou como

mecanismo de defesa para se defender do mundo que pode ser difícil perceber o

que ou quem está por detrás delas.

Talvez por isso, seja mais interessante observar e ouvir do que comentar

ou tomar partido em determinadas situações, pois nem tudo que parece é, e nem

sempre o que a pessoa demonstra e/ou conta é verdadeiro∗.

4) Violência Sexual: ela se faz presente quando a pessoa é constrangida

a:

presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos; (BRASIL, 2006)

Cabe ressaltar que é difícil e doloroso para quem sofre esse

constrangimento, denunciar o fato. Além da pessoa vivenciar, em seu psiquismo

novamente a situação, quando na realidade o que deseja é esquecê-la por

completo, se vê exposta perante a família e a sociedade, sendo por vezes alvo de

comentários maldosos vindo de pessoas as quais poder-se-ia chamar aqui de

“ignorantes”, não pelas suas atitudes, mas sim pela falta de conhecimento. Sendo assim, acredita-se que não se pode ou pelo menos não se deve

obrigar ninguém a reagir ou a denunciar uma violência, seja ela qual for, mas que é

necessário alertar para o fato de que se não houver uma atitude para pará-la, esta

poderá tornar a se repetir. 5) Violência Patrimonial: ocorre quando há um comportamento que

“configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos,

∗ Persona é um dos conceitos trazidos por Carl G. Jung e este se refere à utilização de uma falsa “aparência” que a pessoa utiliza para se apresentar aos outros.

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instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos

econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades”. (BRASIL,

2006).

Neste caso, pode-se trazer como exemplos a destruição de roupas no

momento de raiva; o não contribuir para o pagamento das despesas que mantém a

sobrevivência da família; se apropriar de proventos ou dos recursos financeiros

dentre outras atitudes.

6) Violência Moral: se dá quando há a prática de “calúnia, difamação ou

injúria” (BRASIL, 2006). Em alguns casos a disputa de poder, as mágoas,

frustrações, angústias, a vontade de machucar, de afetar o outro de maneira

profunda, podem ser tão fortes que a pessoa pode se utilizar deste artifício sem

pensar nas consequências de tal ato.

Como exemplo pode-se citar a Síndrome de Alienação Parental (SAP)∗

onde, segundo Valente (2007), um dos conjugues promove uma campanha

difamatória para denegrir, se utilizando do(s) filho(s) ou da prole para atingir o

parceiro(a).

Enfim, todos os tipos de violência citados acabam sendo atitudes

perversas que de acordo com Vignoles (1991), “não provém de uma perturbação

psiquiátrica (tal como os loucos) e sim de uma fria racionalidade, combinada a uma

incapacidade de considerar os outros como seres humanos”.

∗ Existem pessoas manipuladoras e/ou perversas que “promovem” situações com a intenção de se vingar, de ridicularizar, de humilhar o outro. ∗ Segundo Valente (2207), Richard Gardner foi um psiquiatra norte americano, que na década de 80 definiu o que se ele denominou de Síndrome de Alienação Parental (SAP). Para ele a SAP é um distúrbio que ocorre principalmente em crianças e adolescentes cujos pais, estejam envolvidos em situação de litígio, disputando a guarda da prole. De acordo com Gardner, um dos pais ou responsáveis, chamado de alienador, realiza uma “lavagem cerebral”, uma implantação de falsa memória para que a criança ou adolescente tenha uma imagem distorcida e/ou destruída do outro genitor de forma a não aceitá-lo mais, afastando-o assim do convívio familiar.

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CAPÍTULO III

CULTURA: PASSADO PRESENTE

Neste capítulo abordar-se-á a violência intra-familiar fazendo um paralelo

com a questão cultural e com o resultado de um processo de observação, realizada

ao longo de 8 anos de trabalho voluntário junto a comunidades onde a violência

familiar se fazia presente de forma banalizada.

A idéia é que se possa, através dessa interligação, levantar

questionamentos e reflexões sobre a violência doméstica presente no passado com

a que se apresenta nos dias atuais, sendo analisado e questionando mitos que

ainda hoje são ofertados como verdade, por conta de sua construção histórica, visto

que o surgimento e a propagação de certas verdades tinham e ainda tem por detrás

interesses políticos e sociais.

Como já foi citado ao longo do trabalho, o ser humano tem a sua

subjetividade constituída e atravessada por forças históricas. O que significa que em

seu discurso e em suas atitudes no presente, mesmo que não perceba ou que não

seja esta sua intenção, pode reafirmar e fortalecer normas e crenças que foram

construídas no passado e introduzidas na sua história de vida.

Para Foucault (1999), é sempre necessário um processo para manutenção das normas; mais que um reforço (um modo de funcionamento que viabiliza uma estratégia), há um “enforço” da lei – exercícios de poderes que tornam possível a emergência e a manutenção de determinada regra. Ou seja, a biopolítica é exercida através de normatizações, que não são simplesmente documentos promulgados, mas toda a produção de uma verdade em torno daquelas normas. (BICALHO, CASSAL & GARCIA, 2011)

Com toda essa bagagem cultural adquirida, inculcada em si, o ser

humano vai pela vida, pautado em seus valores pessoais, influenciando, conduzindo

idéias, pensamentos e atitudes em várias circunstâncias e de várias maneiras.

Querem ver?

Apesar das várias mudanças que ocorreram ao longo do tempo, em plena

contemporaneidade, mesmo não estando mais num regime patriarcal, ainda se vê a

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presença de preconceitos com relação aos novos e diferentes modos de vida que

tiveram origem a partir da revolução feminina, das conquistas alcançadas pela

mulher.

“Não fiz a guerra como mulher, fiz a guerra como um bravo!”, declarou Marie-Henriette Xaintrailles em carta ao imperador Napoleão Bonaparte (1769-1821). Indignada por lhe recusarem pensão de ex-combatente do Exército “porque era mulher”, ela lembrou que, quando fez sete campanhas do Reno como ajudante de campo, o que importava era o cumprimento do dever, e não o sexo de quem o desempenhava. (MORIN, 2010)

Se antigamente a função do homem era a de ser o provedor, o chefe de

família e a mulher deveria ser a procriadora e cuidadora, hoje já se pode observar

que há casais onde esses papéis ou funções não estão mais “enquadradinhos”,

“encaixados” dentro do padrão de normas ditados anteriormente. A mulher adentrou

o mercado de trabalho, assumindo responsabilidades fora do lar, mas ainda

prevalecem alguns preconceitos e mitos tais como: “lugar de mulher é em casa

cuidando dos filhos” ou “nada como um tanque cheio de roupa para retirar a

barriga!”. Essas falas remetem ao que Santos (In: BRANDÃO & GONÇALVES,

2011) chama de “sucessivas estratégias discursivas∗, para destacar e manter

valores”

“... é bom para a dona-de-casa amassar a farinha, sacudir e arrumar as roupas ou as cobertas. E desse jeito se forma e se conserva a beleza do corpo, a posição de domínio tem a sua versão física que é a beleza” (FOUCAULT, 1988, p. 142)

Quanto aos homens, ainda hoje não é totalmente aceito, visto com “bons

olhos” por parte da sociedade, os homens que cuidam da casa e dos filhos

enquanto a mulher trabalha fora, sendo a provedora do lar.

O comportamento destes homens não se enquadra nas normas

determinadas pela nossa cultura. Eles a transgrediram e por isso podem ser

estigmatizados, descriminados devido terem atitudes consideradas como diferentes,

∗ Santos, In Brandão e Gonçalves (2011, p.51) dá como exemplo destas estratégias frases como: “Deus ajuda quem cedo madruga”, “Brasileiro é honesto e alegre”, etc. São formas de fazer com que as pessoas interiorizem o que é ofertado a elas como verdades.

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anormais. Para alguns eles são e serão sempre os “vagabundos” de antigamente,

aqueles que “não querem trabalhar” ou que “não deram certo”, que “não

conseguiram ser alguém na vida e vivem à custa das mulheres”.

Ora, se na questão do trabalho e do cuidar ainda está fortemente

enraizado na sociedade certas crenças e valores geradas por uma cultura machista,

pode-se pensar que com relação à violência doméstica a situação não é tão

diferente. Até porque:

1) a violência é tida como “um mecanismo de poder e controle

construído a partir de condicionantes da cultura” (OLIVEIRA, 2004);

2) a violência doméstica “amplia-se e reatualiza-se na proporção direta

em que o poder masculino é ameaçado” (OLIVEIRA, 2004);

3) pode-se perceber que mesmo sendo comum ouvir as pessoas

dizerem que não gostam da violência, da relação de domínio que havia

anteriormente no âmbito doméstico, sem se dar conta, algumas delas

continuam reproduzindo e normalizando comportamentos violentos;

Exatamente como no passado, ainda se vê, incentiva-se e valoriza-se o

comportamento agressivo, principalmente no sexo masculino, acreditando que “filho

homem para ser homem de verdade, tem que ser macho, corajoso e forte”, “mandar

na casa” e para isso, precisa ser agressivo e brigão. Afinal, “homem que é homem

tem que se impor!”

Aparentemente relacionam hombridade e masculinidade a músculos e ao

ato de falar alto e grosso. Entendem que “um homem insultar uma mulher não é tão

grave, assim como pancada de amor não dói”. (OLIVEIRA, BARSTED & PAIVA,

1984, p. 17 apud OLIVEIRA, 2004).

Será mesmo que pancada realmente não dói? O que pensa a este

respeito quem já apanhou ou apanha dentro de casa?

(...) o insulto e agressão verbal é a (agressão) mais comum e, de tal maneira generalizada, tornou-se para o senso comum coisa corriqueira, face a qual a justiça se entedia, a polícia não registra, os próprios interessados se desinteressam. ‘Um homem insultar uma mulher não é tão grave, assim como pancada de amor não dói’. Mas o homicídio de amor mata e esse é o ponto de chegada de um caminho que começa com berros, palavrões e pontapés”. (OLIVEIRA, BARSTED & PAIVA, 1984, p. 17 apud OLIVEIRA, 2004, p. 34-35)

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A própria cultura atual através das músicas, que estão se tornando cada

vez mais populares entre os jovens e os adultos dentro de uma classe social menos

favorecida, vem incentivando a crença de que é legal, que dá status, mandar,

controlar, comandar a(o) parceira(o), dar uns tapas, serem chamados por apelidos –

que de carinhosos não tem nada –, nomes de raças de animais, etc.

Partimos do pressuposto de que a mídia é atualmente um dos mais importantes equipamentos sociais no sentido de produzir esquemas dominantes de significação e interpretação do mundo e que os meios de comunicação, portanto, “falam pelos e para os indivíduos”. Esse equipamento não apenas nos indica o que pensar, o que sentir, como agir, mas principalmente nos orienta sobre o que pensar, sobre o que sentir. (COIMBRA, 2001, p. 29-30)

Será que este tipo de mídia não naturaliza a violência?

Este discurso produzido de certa forma não habilita e até mesmo

chancela relações violentas?

As atitudes encorajadas pelas letras das músicas não poderia estar

favorecendo a permanência de um comportamento machista com a presença da

violência doméstica dentro dos lares?

Não há a possibilidade de que quanto mais cantarem essas músicas,

mais podem estar reafirmando e interiorizando um comportamento primitivo e bruto

que foi pré determinado como esperado para essa parte da população pelo

higienismo?

Posteriormente, este mesmo ser humano, justamente por ser considerado

primitivo e bruto não pode ser rotulado, segregado pela sociedade que o

considerará como um “elemento perigoso”, com atitudes suspeitas e tendência à

prática de violência doméstica?

Na linguagem policial, a expressão ‘atitude suspeita’ não foi nunca usada para indicar que o jovem estivesse fazendo algo suspeito, mas para indicar que ele era considerado automaticamente suspeito pelos sinais de sua identificação com um determinado grupo social. (BARATTA, 1998:12, apud SANTOS In: BRANDÃO & GONÇALVES, 2011, p. 55)

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Esse capitalismo perverso com o qual se vive não pode estar

incentivando pessoas a reproduzirem atitudes as quais, os indivíduos e a própria

sociedade poderão se arrepender mais tarde?

É necessário que as pessoas utilizassem mais o senso crítico sobre o que

lhes é dito. Muitas situações poderiam ser evitadas através da análise dos

discursos, de uma reflexão.

Com relação à traição, exatamente como no período em que “se lavava a

honra com sangue”, ainda é esperado que a vítima de uma traição, seja homem ou

mulher, reaja a “ofensa” para manter a sua dignidade perante a família e os

conhecidos. Por conta do orgulho ferido, da vergonha (que tem por base suas

crenças e valores) e da influência de alguns “amigos” que gostam de opinar na vida

alheia∗ dando conselhos pautados no que acreditam, cobrando um comportamento

e uma atitude, geralmente agressiva, em relação a um fato com o qual não

concordam e não aceitam.

Por várias vezes foi observado que esses “conselhos” surgiam na forma:

a) de uma inserção de dúvida: “abra o olho que você está sendo

traído(a)! Você acha que toda essa atenção é a troco de nada? Te liga meu, tem

coisa aí!”

b) de “sugestões” para solução do problema: “pelo sim, pelo não, vá

atrás dela(e) e arrebenta! Manda ver e mostra do que você é capaz! Só assim vai

aprender a te respeitar!” ou “é melhor você eliminar o mal pela raiz do que esperar

que aconteça algo para tomar uma iniciativa! ou ainda “traição é traição, não tem

perdão. Se não tiver uma “lição” vai repetir! Resolva logo essa situação!”

c) da valorização da pessoa: “tá pensando o que? Teus amigos terão

orgulho de você!” ou “todo mundo vai te respeitar!”

d) tentar incutir a certeza de impunidade: “bate mesmo porque ninguém

vai fazer nada. Você é que é a vítima!” ou “ninguém vai fazer nada porque no seu

lugar fariam a mesma coisa!”

∗ Aparentemente pode parecer fácil falar ou opinar quando se está de fora de uma situação, já que o(a) autor(a) da(s) idéia(s), a princípio, não sofrerá diretamente as consequências da ação sugerida. Entretanto, imaginem como pode ficar o estado psíquico de uma pessoa que diz para a amiga: “esse homem não vale nada! Se fosse comigo jogava água fervendo no ouvido dele enquanto estivesse dormindo!” e, a amiga resolve agir de acordo com o conselho ou sugestão recebida?

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“Pequenas” sugestões pautadas em crenças pessoais podem levar a

grandes e graves situações, pois nem sempre a pessoa está propensa a usar a

razão e o senso crítico sobre o que ouve.

Algumas pessoas ainda acreditam que, para não ficar mal aos olhos dos

outros, precisam ter uma reação imediata porque, embora hoje seja contra a lei

agredir “em nome da honra” ou matar alegando que foi “por amor”, se o conjugue

que descobriu uma traição do(a) parceiro(a) não tiver a reação (que normalmente é

violenta, podendo ser física ou verbal) esperada por parte da sociedade, com quem

o(a) traiu e/ou com o(a) amante deste(a), poderá ser considerado(a) por esta

mesma parcela de pessoas como um(a) “perfeito(a) idiota”, um(a) “fraco”(a).

O fato é que, como as pessoas não gostam de serem percebidas e

rotuladas com adjetivos pejorativos e, que “toda ação acaba gerando uma reação”,

o(a) agressor(a) poderá sofrer, de uma forma ou de outra, consequências sérias

pelos seus atos. O que talvez pudesse ser evitado se este tivesse parado para

refletir ao invés de se deixar levar pelos seus desejos, crenças e emoções.

É com o desejo que o sujeito está comprometido, e é pela sua enunciação que ele deve tornar-se responsável. Assim sendo, o esforço ético do sujeito será o de responder por aquilo que faz e diz, e pelo desejo que habita em sua fala e ação. Não se trata, evidentemente de se fazer tudo o que se quer, de dar livre curso a todos os caprichos e todas as vontades... o sujeito deve responder por este desejo que ele não domina e que, no entanto, traça o seu destino: é no desejo que reside a sua verdade, e ele pagará um preço por dizê-la. (GONDAR, 1999, p.40)

No que diz respeito à educação de uma criança e/ou adolescente, apesar

de já ser considerado crime a agressão a uma pessoa considerada pela lei como

menor de idade∗ (podendo levar inclusive a perda ou a suspensão do poder

familiar), certos sujeitos ainda entendem que é necessário o uso de força e

persistem em usá-la para “educar” uma criança arteira ou rebelde.

∗ Desde 1990, a partir da Lei Nº 8.069, que dispõe sobre a proteção integral á criança e ao adolescente, o Estatuto da Criança e do Adolescente determina que os mesmos tenham direito a liberdade, ao respeito (que consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral) e a dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas Leis (BRASIL,1990)

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Entendem e reafirmam através de seus discursos que antigamente era

assim e as crianças eram muito mais educadas do que hoje e “ninguém morreu por

levar uns tapas”. Ainda crêem que: “criança só aprende apanhando muito!”; “criança

que não apanha acaba virando um delinquente!”; “conversar com quem já está no

vício não resolve! Tem que ser na paulada para aprender!”

Os aparelhos midiáticos trazem diariamente notícias de pais ou

responsáveis que espancam crianças para tentar controlá-las, esperando

colocarem-nas do jeito que desejam. Agem como se elas fossem um mero objeto

cuja peça defeituosa pode ser consertada, mas ao mesmo tempo reproduzem em

suas falas a crença, trazida pelas “estratégias discursivas”, de que “pau que nasce

torto nunca se endireita”. Novamente vê-se o passado, onde os pais tinham o direito

de vida e de morte sobre os que se encontravam sob sua guarda, permeando, vivo

e atuante no presente.

Arantes (In: BRANDÃO & GONÇALVES, 2011) comenta, em outro

contexto, mas que é pertinente com o assunto em pauta, que desde o Brasil colônia

os castigos aplicados as crianças não eram muito diferentes dos aplicados aos

adultos.

Ao contrário do que possam pensar, educação não está atrelada à

agressão. O uso da força não impõe respeito e muito menos “conserta” pessoas,

pelo contrário, impor medo pode fazer com que não só as crianças ou os jovens,

mas também os adultos percam totalmente o respeito por quem age dessa maneira.

A educação não deve passar por gritos e tapas, aliás, os tapas podem, muito

facilmente, se transformarem em surras. Basta que para isso, a pessoa que está a

bater, esteja angustiada devido a problemas acumulados. Será uma forma, talvez

inconsciente, de descarregar a ira ou a raiva retida (como uma catarse) associada

ao desejo de dominar, de docilizar, como já dizia Foucault, os corpos e os desejos

de sujeitos∗ que se encontram subjugados e sujeitados, mas que possuem direitos.

Direito a vida, ao respeito, à saúde e à dignidade. (BRASIL, 1990)

∗ Cirino (2007) explica que para Foucault “há dois sentidos para a palavra 'sujeito': sujeito submetido ao outro pelo controle e dependência e sujeito fixado à sua própria identidade pela consciência ou conhecimento de si. Nos dois casos, a palavra sugere uma forma de poder que subjuga e sujeita.” (FOUCAULT, 1994 (1982), p. 227).

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Violência gera violência. Um dia a pessoa agredida, seja ela criança ou

adulto, cansa e até para se defender passa a reagir. São relações de poderes.

Bicalho, Cassal e Garcia (2011) comentam que para Foucault não há

relações de poder sem resistência e que esta tem como efeito a mudança nas

relações de poder.

Oliveira (2004) traz em seus escritos um depoimento que não diz respeito

a crianças, mas que é bem interessante à nível de reflexão sobre a reação de

resistência na violência intra-familiar.

(...) Aí eu falei para ele: “você vai embora, não quero você mais morando na minha casa”. Quando eu falei assim, ele pegou, foi, catou o cabo de vassoura, a vassoura que tava..., e eu tava do lado de cá da mesa e ele do lado de lá, ele pegou e veio, mandou com tudo, mandou no meu braço. Aí eu abaixei, pus o braço, acertou o braço né? Aí, como o braço doeu! Eu abaixei a mão e ele acertou na cabeça, foi onde eu peguei e fui e falei para ele: “cê num, num vai me bater nunca mais, se você me bater vai ter o troco”. Aí tinha umas garrafas de refrigerante assim em cima da mesa, aí eu catei a garrafa e... abri a cabeça. Sabe? Aí ele desmaiou lá no chão. (...) E eu peguei e falei para ele: “de hoje em diante vai ser assim, se você vier para cima de mim eu vou revidar, aí quem tiver a garganta maior vai engolir o outro”. (OLIVEIRA, 2004, p.5)

Morgado (2011) cita que Almeida (2007:25) fala na “possibilidade da

desmistificação do caráter sacrossanto família” revelando que “a família pode ser

uma instituição violenta a despeito dos laços de afeto que, frequentemente,

alicerçam-na, e que a esfera privada não está isenta de regulação do poder

público”. (MORGADO, 2011, p.255)

Neste contexto de violência intra-familiar, os profissionais da psicologia

podem acabar sendo convocados pelo poder público como técnicos de um saber-

fazer, o que pode torná-los como cita Gondar (1999), uma “’policia da família’,

como denuncia Jacques Donzelot, ou ‘técnico de controle’ como aponta Gilles

Deleuze” culpabilizando, punindo e patologizando pessoas e relações de afeto que

tiveram suas subjetividades atravessadas e pautadas pela cultura com seus mitos

e crenças.

Em diversas situações, a demanda institucional é a de que um psicólogo possa ocupar a função de um técnico, apresentado-se

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como detentor de um saber-fazer. Neste caso, caberia a ele eliminar ao máximo os elementos de atrito e os nódulos dos discursos; sua tarefa seria a de transformar uma superfície rugosa numa superfície lisa, a fim de que a engrenagem pudesse funcionar a contento. (GONDAR, 1999, p.35)

O que leva a pensar no fortalecimento da judicialização da vida privada por

conta também da cultura. Mas isto é assunto para outro trabalho.

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CONCLUSÃO

Conforme o citado no início do trabalho, o objetivo deste era o de analisar

a relação entre o contexto histórico do poder familiar com a violência doméstica

presente nos dias atuais afim de verificar a hipótese destas situações, poderem

estar ocorrendo também devido a presença de mitos e crenças que foram sendo

fortalecidos ao longo do tempo levando a uma naturalização e banalização da

violência intra-familiar

Para tal, no desenvolvimento do trabalho, foram trazidos fatos históricos,

perspectivas teóricas, questionamentos e reflexões para problematizar a situação a

fim de se chegar uma conclusão.

Através da análise do estudo pode-se confirmar a hipótese de que a

cultura, com todos os seus atravessamentos incluindo os dispositivos midiáticos,

influencia no comportamento atual do indivíduo a partir do momento em que este

também é constituído por forças históricas e que, através dos discursos, mitos,

crenças e valores são propagados e revalidados.

Outro ponto importante a ser abordado na finalização deste trabalho, é o

lugar que se coloca o psicólogo que é convocado a intervir nas questões pertinentes

a violência doméstica. Até porque, conforme já foi dito, nesse contexto o psicólogo,

enquanto perito também pode ser convocado a assumir o seu lugar de técnico,

detentor de um poder que poderá usar o seu saber e técnicas disciplinares, para

“detectar e consertar” sujeitos, como se estes fossem meros objetos. Sob a

justificativa de intervenção terapêutica, pode-se infantilizar, culpabilizar, segregar e

punir com a intenção de transformar sujeitos em corpos docilizados como já dizia

Foucalt.

Mia Couto (2011) cita que “sem darmos conta, fomos convertidos em

soldados de um exército sem nome, e como militares sem farda deixamos de

questionar. Deixamos de fazer perguntas e de discutir razões”.

Adentra-se então num campo delicado que é o da ética. Uma ética que

vai além do que orienta o código profissional.

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entende-se que o Código de Ética não garante a prática do Psicólogo, que está além, atravessada pelos múltiplos agenciamentos do sujeito. As condutas constitucionais e legalmente garantidas são, em diversas situações concretas, rasgadas e vilipendiadas. Uma prática da Psicologia compromissada com condutas éticas, no sentido de práticas implicadas, pode produzir outras alternativas que não envolvam a criminalização e a tentativa de adequação de modos de existência. (BICALHO, MEZA, ROSSOTTI & PEREZ, 2010, p.194)

É necessário a ética consigo mesmo e com o próximo, por isso torna-se

necessário o tempo todo a análise das implicações. Os profissionais não devem

perder de vista que são e estão lidando com questões culturais, com sujeitos, com

subjetividades, afetação e desejos.

como interventores dos espaços subjetivos, devemos colocar em análise as produções de nossos discursos e também os motivos pelos quais elegemos esses e não outros dentre os diversos possíveis. A questão passa a ser: Quais mundos engendro quando entro em contato com o outro? Como capturo o outro antecipadamente com meu “olhar”? E como esse conjunto de elementos afeta meus posicionamentos, minha forma de existir, também atravessada por uma série de outras questões de variadas ordens? (BICALHO, MEZA, ROSSOTTI & PEREZ, 2010, p.192)

Mediante essa situação não seria mais interessante, ético e produtivo

para todos, se ao invés de diagnosticar, patologizar, rotular (só faltando medicalizar)

e até mesmo “autorizar” – através de um laudo psicológico – a punição os

profissionais da psicologia tentassem entender os atravessamentos que estão

permeando os conflitos familiares, produzindo angústia para levar os envolvidos a

pensarem em outras várias possibilidades de (con)viverem?

O povo “psi” precisa se desfazer de seus aventais brancos, a começar por aqueles invisíveis que carregam na cabeça em sua linguagem e em suas maneiras de ser. Do contrário, nossas teorizações e nossas práticas acabam por nos conduzir a um ressecamento e a um dogmatismo insuportáveis, a um empobrecimento de nossas intervenções e, certamente, à estereotipia que nos torna impermeáveis à alteridade singular de nossos clientes. (BARROS, 199, p. 126)

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De acordo com P. Bicalho et al. (2010), os profissionais da psicologia

compromissados com um trabalho ético, podem e devem gerar novas alternativas

possibilitando a invenção de novos processos.

Dando as famílias a possibilidade de ter um novo olhar para as relações

parentais, os psicólogos farão a diferença colaborando para que estas relações

possam se dar de formas mais saudáveis, sem violências e agressões.

os psicólogos não precisam (e não devem) ocupar o lugar de ortopedistas sociais. Pelo contrário, podem colocar em análise condutas naturalizadas e ressignificar a diferença, tomada como negativa, no sentido de possibilitar a invenção de novos processos de experimentar o mundo e as relações, em permanente transformação. (BICALHO, MEZA, ROSSOTTI & PEREZ, 2010, p.194)

Enfim, o assunto é extenso e ainda se tem muito trabalho pela frente,

mas já pode-se começar a produzir rupturas em certos dispositivos, desmistificar,

desnaturalizar mitos e crenças contribuindo para evitar situações de violência

doméstica e tantas outras que trazem em seu cerne um “engessamento” provocado

pela cultura. Quem sabe assim consegue-se transformar não só as relações

familiares, mas também os poderes que a permeiam e que acabam dentro do

judiciário. Afinal, conforme cita Brandão (2011):

“Pensar a psicologia jurídica é incidir estrategicamente nos jogos de

poder que operam nos interstícios das alianças entre o Direito e a Psicologia.”

(BRANDÃO, 2011, p.133).

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ÍNDICE

FOLHA DE ROSTO 2

AGRADECIMENTO 3

DEDICATÓRIA 4

RESUMO 5

METODOLOGIA 6

SUMÁRIO 7

INTRODUÇÃO 8

CAPÍTULO I

UM (RE)CORTE DA HISTÓRIA 10

CAPÍTULO II

VIOLÊNCIA-INTRAFAMILIAR E/OU DOMÉSTICA E SEUS TIPOS 19

CAPÍTULO III

CULTURA: PASSADO PRESENTE 27

CONCLUSÃO 36

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA 39

ÍNDICE 43