DORE Soares, R. Marx, Gramsci e a Sociedade Civil 1997

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    DORE Soares, R. Marx, Gramsci e a sociedade civil. Caminhos . Belo Horizonte: , v.14, p.32 -39, 1997.

    MAR X, GRAMSCI E A SOCIEDADE CIVIL

    Rosemary Dore Soares (UFMG)Resumo

    O conceito gramsciano de sociedade civil uma das mais importantes contribuies para compreendero Estado contemporneo. Foi a partir dele que se desenvolveu um novo estudo sobre a fora dadimenso cultural nos processos de mudana e/ou manuteno da sociedade. Existe uma polmica emtorno das fontes tericas que inspiraram Gramsci na formulao do conceito de sociedade civil: seHegel ou Marx. Neste artigo procura-se mostrar que Gramsci parte das reflexes de Marx e focaliza-se,especialmente, como as anlises deste ltimo sobre a vida poltica francesa, na segunda metade dosculo XIX, captam in nuce o desenvolvimento da sociedade civil.

    Abstract

    Marx, Gramsci and the civil society

    Gramscis concept of civil society is the most important contribution to understanding thecontemporary State. This concept allows the development of a new study, focusing on the force of thecultural dimension in the process of changing or maintaining the actual society. There is a controversyaround the source theories that inspired Gramsci in the formulation of his ideas concerning civilsociety: Hegel or Marx. This paper tries to sustain the argument that Gramsci analysed Hegels conceptof civil society enlightened by the reflections of Marx. He concentrates, especially, on how the Marxistanalyses, regarding French political life in the second half of the 19 Th. century, captures in nuce thedevelopment of civil society.

    Introduo

    Uma das contribuies mais importantes das obras de Gramsci foi a dedesenvolver uma nova teoria para a sociedade civil. Em suas notas, o autor indicaa existncia de um vnculo entre o seu conceito de sociedade civil e o de Hegel,entendido como hegemonia poltica e cultural de um grupo social sobre a inteirasociedade, como contedo tico do Estado... (GRAMSCI, 1977, p. 703).

    Esse enunciado tem produzido muita polmica, investigando-se se Gramsciteria haurido seu conceito de sociedade civil de Hegel ou de Marx.

    Neste ensaio, procura-se, primeiramente, apresentar algumas posies arespeito dos nexos entre o conceito de sociedade civil de Gramsci, de Hegel e deMarx. Sustentando-se a tese de que Gramsci analisa o conceito de Hegel luz das

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    reflexes de Marx, examina-se, em seguida, as contribuies deste ltimo para odesenvolvimento da idia gramsciana de sociedade civil.

    Por que Hegel e no Marx?

    A referncia de Gramsci a Hegel, ao elaborar seu conceito de sociedadecivil, leva o pensador italiano Norberto Bobbio a dizer que Gramsci deriva o seuconceito prprio de sociedade civil no de Marx, mas declaradamente de Hegel... (BOBBIO, 1982, p. 34).

    Segundo Bobbio, quando Gramsci representa a sociedade civil e no oEstado como o momento ativo e positivo do desenvolvimento histrico ele sedistingue de Hegel e se identifica com Marx (BOBBIO, 1982, p. 33). Contudo,

    prossegue o autor, enquanto Marx localiza a sociedade civil na estrutura, Gramscia compreende como um momento superestrutural. A conseqncia dessaformulao, para Bobbio, se manifesta no seguinte entendimento sobre o desapa-recimento do Estado:

    ... poder-se-ia dizer que, na teoria de Marx e Engels, acolhida e divulgada por

    Lenin, o movimento que leva extino do Estado fundamentalmente estrutural

    (superao dos antagonismos de classe at chegar sua supresso), enquanto em

    Gramsci principalmente superestrutural (ampliao da sociedade civil at sua

    universalizao) (BOBBIO, 1982, p. 50).

    Com base nessa interpretao, Bobbio parece compreender o pensamentode Gramsci como idealista, j que este entenderia a transformao socialunicamente como resultado de um movimento superestrutural. Para resolver oimpasse, derivado dessa proposio que ope as reflexes de Gramsci e Marx eatribui ao primeiro uma viso idealista, Bobbio diz que o conceito de sociedadecivil de Gramsci um dos dois termos de duas antteses diferentes e entre siarticuladas, apenas artificialmente superpostas: 1 a) a anttese estrutura/super-estrutura e 2 a) a anttese hegemonia/ditadura (sociedade civil/sociedade poltica),no interior da superestrutura.

    Desse modo, prossegue Bobbio, quando Gramsci fala em absoro dasociedade civil pela sociedade poltica para exprimir o fim do Estado, ele se referea um movimento que ocorre somente no interior da superestrutura mas que - em ltima instncia - condicionado pela modificao da estrutura: tratar-se-ia, naspalavras do autor, de uma absoro da sociedade poltica na sociedade civil mas,

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    ao mesmo tempo, transformao da estrutura econmica dialeticamente ligada transformao da sociedade civil (BOBBIO, 1982, p. 52).

    Bobbio faz essa explanao para desfazer a imagem de idealista que deu teoria de Gramsci, mostrando que este concebe a economia como determinante,

    em ltima instncia, da superestrutura, esfera na qual ele situa a sociedade civil.Mesmo assim, o autor mantm a idia de que o conceito de sociedade civil deGramsci vem de Hegel.

    Contestando a formulao de Bobbio, Carlos Nelson Coutinho o chama deinconseqente. Acusa-o de querer distinguir o conceito de sociedade civil deGramsci daquele de Marx e acabar admitindo que, tambm na viso gramsciana, asociedade civil tem a mesma funo - em ltima instncia determinante - quelhe atribuda por Marx. Continuando sua crtica, Coutinho apresenta sua prpriaposio e diz que o conceito de sociedade civil de Gramsci refere-se ao problemado Estado e no ao vnculo recproco entre estrutura e superestrutura, tal comosugere Bobbio (COUTINHO, 1981, p. 88).

    Nessa crtica a Bobbio, Coutinho desconsidera o conceito de blocohistrico - relao estrutura e superestrutura - que est na base da conceituaogramsciana da sociedade civil 1. Foi justamente para mostrar essa relao queGramsci se dedicou ao estudo da identidade e distino entre conceito e realidade2. Ao seu modo, Bobbio procura apreender a complexidade do conceito de blocohistrico quando diz que, em Gramsci, a sociedade civil momento constitutivo

    de dois movimentos diversos, do movimento que vai da estrutura superestruturae do que se processa na prpria superestrutura (BOBBIO, 1982, p. 52-3).

    Entretanto, mesmo levando em conta as relaes implcitas no conceito de bloco histrico, Bobbio deixa de registrar que nele h a indicao de um terceiro movimento: aquele que volta da superestrutura para a estrutura,reagindo sobre ela, para preserv-la ou modific-la. Trata-se da concepomarxiana segundo a qual quando as idias assumem a fora grantica das crenas

    1 O conceito de bloco histrico engloba a noo de sociedade civil na medida em que foi elaboradopara apreender a dinmica das relaes de poder e da constituio do Estado num movimentohistrico.2 Para fundamentar sua crtica s formulaes dualistas sobre os vnculos entre estrutura esuperestrutura, que podem levar a uma leitura positivista (quando enfatiza a estrutura) ou idealista(quando enfatiza a superestrutura) da realidade social e cultural, Gramsci se dedica ao estudo dadialtica em Marx, mostrando que, no processo histrico, h uma identidade entre conceito erealidade. Seu objetivo o de acentuar a importncia que Marx conferia s ideologias no processohistrico. Isso contrariava a idia muito divulgada no movimento operrio de que as ideologias, paraMarx, no passavam de iluso, aparncia.

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    populares, convertem-se em poder material... Esse o problema para o qualGramsci chama a ateno quando retoma seus estudos sobre Marx: no movimentohistrico, se as idias so abraadas pelas massas elas podem se converter emrealidade.

    Mas no se pode concordar que o conceito de sociedade civil de Gramsciesteja mais prximo do de Hegel do que daquele de Marx, como diz Bobbio esugere Coutinho. Este ltimo, por exemplo, afirma que Marx no pode captar adimenso essencial das relaes de poder numa sociedade capitalista avanadaporque no seu tempo ainda no existiam os grandes sindicatos englobandomilhes de pessoas, os partidos polticos operrios e populares legais e de massa,os parlamentos eleitos por sufrgio universal direto e secreto, os jornais pro-letrios de imensa tiragem, etc. (COUTINHO, 1981, p. 90).

    J Hegel, prossegue Coutinho, pode entender a questo da trama privada do Estado porque introduziu na esfera da sociedade civil as corporaes, que pode-riam ser vistas como formas primitivas dos modernos sindicatos (COUTINHO,1981, p. 91).

    Diante disso, perguntamos: por que Hegel, que conheceu um Estado aindamenos desenvolvido do que aquele em que viveram os fundadores da filosofia dapraxis , teria captado novas determinaes do fenmeno estatal que teriamescapado a Marx?

    Coutinho parte da premissa de que o conceito de sociedade civil de Gramsci

    o meio privilegiado atravs do qual o pensador italiano enriquece a teoriamarxista do Estado (COUTINHO, 1981, p. 88). Como se explicaria esse fato se,para ampliar a conceituao de Marx, Gramsci vai recorrer a Hegel e no ao pr-prio Marx?

    Coutinho no esclarece como Gramsci realiza, atravs da mediao deHegel, a ampliao da teoria marxiana do Estado. Alis, o tipo de tratamento queele d ao problema deixa a impresso de que Gramsci discute a noo de socie-dade civil em Hegel passando por cima de Marx, ou seja, buscando naquele oque este no foi capaz de observar.

    Na verdade, porm, o que aconteceu foi justamente o contrrio: foram asprprias determinaes do fenmeno estatal, apreendidas por Marx, que levaramGramsci at Hegel.

    Nesse sentido, Coutinho aponta para uma observao de ValentinoGerratana - por sinal muito esclarecedora - segundo a qual, nos exerccios de

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    traduo feitos no crcere, Gramsci verte a expresso burgerliche Gesellschaft deMarx (retirada de Hegel) no como sociedade civil e sim como sociedadeburguesa. Este fato apresentado como um afastamento consciente de Gramscida terminologia marxiana.

    A indicao de Gerratana parece vlida sim. No para mostrar um afasta-mento de Gramsci em relao a Marx, como deduz Coutinho, mas, ao contrrio,para mostrar uma aproximao consciente do primeiro em relao ao segundo:Gramsci estava procurando explicar o que teria permitido a Hegel - no campofilosfico - estabelecer a identidade entre sociedade civil e Estado. Somente conce-bendo a sociedade civil como sociedade burguesa, isto , o projeto civilizatrioburgus como universalizante , dir Gramsci, que Hegel conseguia fazer essaidentificao conceitual. E essa crtica a Hegel Gramsci vai buscar exatamente emMarx, que denuncia ser impossvel burguesia tornar aquela identidade conceitualuma identidade histrica sem que isso viesse a acarretar a destruio do Estado.

    Marx: a referncia crtica para o con ceito de sociedade civil de Gramsci

    O ponto de partida de Gramsci o questionamento de formulaes decunho economicista sobre o Estado e a revoluo socialista, predominantes nomovimento operrio. A idia do Estado como comit da burguesia e a estratgiada revoluo proletria como derrubada violenta do domnio burgus tornavam-

    se cada vez mais problemticas diante das mudanas por que passava a Europa noincio deste sculo. O refluxo do movimento operrio e a ascenso de regimes au-toritrios, como o fascismo, colocavam a necessidade de repensar a teoria e aprtica do socialismo. Com esse objetivo, Gramsci retoma o pensamento de Marx,querendo identificar as possibilidades de avanar dialeticamente suas teorias,tornando-as capazes de interpretar o desenvolvimento do capitalismo.

    Quando, no Manifesto do partido comunista (1848), Marx e Engels afirmamque o Estado burgus era uma organizao classista, expressando o poder daclasse dominante e seria derrubado por uma revoluo violenta, eles seinspiravam na experincia da Revoluo Francesa. Como movimento querepresentou enormes rupturas em todas as esferas da vida econmica, social,poltica e cultural, ela era tomada como paradigma de uma nova virada histrica.

    Gramsci nota, entretanto, que as anlises de Marx tomam um novo cursoquando ele reflete sobre a vida poltica francesa, na segunda metade do sculo

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    passado. Elas avanavam na direo de mostrar in nuce o processo detransformao pelo qual passava o Estado, apontando para o problema daconstituio da sociedade civil.

    As anlises de Marx sobre as relaes de poder na Frana j vinham sendo

    retomadas por Gramsci em seu programa de investigaes para desenvolver oconceito de hegemonia. Dentre os diversos acontecimentos histricos que se doentre o final do sculo XIX e incio do sculo XX, Gramsci destaca o golpe deEstado de 2 de dezembro de 1851 de Napoleo Bonaparte (1808-1873), analisadopor Marx na sua obra clssica 18 Brumrio (1851-52).

    Trata-se de fatos polticos que marcaram o processo de consolidao doregime republicano na Frana e abrangem desde a primeira experinciaparlamentar, firmada no sufrgio universal, quando a luta para implantar a IIRepblica - fevereiro de 1848 a dezembro de 1851 - foi sufocada pelo golpe deEstado de Bonaparte, at o momento em que, depois de instaurada a III Repblica(1870), sucedem duas importantes tentativas de aplicar golpes de Estado na

    jovem Repblica, mas que acabam fracassando: o movimento boulangista 3 e o caso Dreyfus 4.

    Na sua anlise sobre o golpe de Estado de Napoleo III, Marx mostra que a Repblica parlamentar foi a culminncia de um processo iniciado com a Revo-luo de Fevereiro de 1848. O regime poltico nascido dessa Revoluo foi a

    Repblica social 5, mas esta foi afogada em sangue, em junho de 1848. Todavia,

    ela criou condies para o aparecimento da Repblica democrtica da pequena-

    3 Boulanger foi ministro da guerra entre 1886 e 1887, quando encabeou um movimento nacionalistana Frana. Alimentou-o com o lema de uma guerra revanchista contra a Alemanha, em face das perdasterritoriais (Alscia e Lorena) e das humilhaes que a Frana teria sofrido depois da guerra franco-prussiana de 1870. Mas seus contatos secretos com os monarquistas foram descobertos em 1889 eBoulanger fugiu para a Blgica, onde se suicidou.4 Alfred Dreyfus (1859-1935), oficial do Estado Maior francs, foi acusado, em 1894, de espionagem emfavor da Alemanha. Tratava-se de um pretexto para justificar a conspirao golpista de forasantidemocrticas. Dreyfus era judeu e sua suposta traio atiaria o sentimento nacionalista dosfranceses, abalado com a derrota da ltima guerra com a Prssia, em 1870. Percebendo que era aprpria Repblica francesa que estava em perigo, as foras progressistas se mobilizaram econseguiram a reabertura do processo. O caso Dreyfus adquiriu um carter poltico evidente, sus-citando um vasto movimento de opinio pblica que frustrou a tentativa golpista, vencendo as forasrepublicanas. Dreyfus foi considerado inocente e, em 1906, readmitido pelo exrcito.5 Repblica social foi a interpretao que o proletariado deu Repblica surgida dos movimentossociais ocorridos entre 24 de fevereiro de 1848 (queda de Luiz Felipe de Orlans) e 4 de maio domesmo ano (data da instalao da Assemblia Constituinte). A Repblica social, segundo Marx,indicava o contedo mais geral da revoluo moderna, contedo esse que estava na mais singularcontradio com tudo que, com o material disponvel, com o grau de educao atingido pelas massas,dadas as circunstncias e condies existentes, podia ser imediatamente realizado na prtica (MARX,197_, p. 208).

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    burguesia a qual, por sua vez, tambm foi derrotada em junho de 1849. No en-tanto, foi dessa derrota que surgiu a Repblica parlamentar, a forma de governoque, historicamente, a ao do proletariado, desencadeada a partir da Revoluode Fevereiro, foi capaz de gerar.

    Se os trabalhadores ainda no tinham adquirido foras suficientes paraderrotar a burguesia nas lutas de 1848 e impor a Repblica social, a burguesia,por sua vez, no podia aniquilar os operrios. Assim, foi obrigada a lhes fazerconcesses, como a Repblica parlamentar que, instituindo o sufrgio universal,tornou-se um perigo constante para ela.

    Examinando a relao de fora resultante das lutas de classes entre 1848 e49, Marx afirma que os operrios devem se organizar e conquistar a adeso dapequena-burguesia rural e urbana no sentido de consolidar a Repblica parlamen-tar. Para ele, os trabalhadores no poderiam crescer e se organizar num Estadoditatorial, que controla toda a massa informe da sociedade civil, como era o Estadono republicano. Procurando fundamentar sua proposta, analisa cuidadosamente aforma poltica de dominao que a Repblica parlamentar. quando toca emaspectos fundamentais da contraditria relao de foras na sociedade civil que,naquele momento, apenas se estava ampliando.

    O desenvolvimento e a consolidao do poder econmico da burguesia, noentender de Marx, aplastou as foras aristocrtico-feudais e tambm modificou arelao Estado-sociedade civil. As diferentes fraes da burguesia francesa, por

    exemplo, encontraram na Repblica parlamentar a forma de governo maisdesenvolvida, aquela que efetivamente possibilitava a coligao dos seusinteresses particularistas e permitia-lhe governar como classe , isto , converterseus interesses privados em interesses pblicos. Mesmo defendendo a restauraoda monarquia, as fraes da burguesia foram obrigadas a sustentar a Repblicacomo a forma de governo que lhes permitia o exerccio do poder, a defesa dosseus interesses coligados.

    O partido da ordem 6 foi forado pelos prprios acontecimentos histricosdas lutas de classe a se reconhecer como tal, isto , como a coligao de fraes

    da burguesia que se intitulavam monrquicas mas que so obrigadas a sereconhecer como republicanas . Ou seja, so os prprios fatos histricos,

    6 Segundo Marx, o partido da ordem estava constitudo por trs fraes da classe dominantefrancesa: as duas coroas rivais, legitimistas (grandes latifundirios que dominaram durante a Restau-rao) e orleanistas (aristocratas das finanas e grandes industriais), e a Montanha (pequenaburguesia).

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    produzidos pelas lutas sociais, que obrigam as fraes da burguesia a se identifi-carem com a forma republicana de governo, a mais completa para o exerccio deseus interesses comuns de classe. E isto ocorre na medida em que o movimentooperrio se desvincula da pequena burguesia e luta contra a burguesia, e no mais

    ao seu lado, como ocorrera durante as jornadas de junho de 1848. Aidentificao de um inimigo comum , por parte das fraes burguesas que se viamcomo monrquicas, faz com que elas sejam obrigadas a unir duas coroas rivaisnum mesmo partido, isto , faz com que elas sejam obrigadas a reconhecer queessa forma poltica era a nica que possibilitava a dominao comum de ambas,mesmo sendo rivais.

    Essa anlise de Marx mostra que a burguesia no uma inteligncia a-histrica, capaz de j conhecer antecipadamente seus prprios instrumentospolticos de dominao. Ao contrrio: ela enfrenta o conflito com outras classessociais para poder identificar-se politicamente. o que Marx verifica quandoanalisa as disputas as principais fraes monrquicas da classe dominantefrancesa, que compunham o partido da ordem:

    Obrigadas - pela sua oposio ao proletariado revolucionrio e s classes de

    transio que se iam agrupando cada vez mais em torno deste - a apelar para sua

    fora unificada e a conservar a organizao desta fora unificada, cada uma das

    duas fraes do partido da ordem tinha que exaltar - diante dos apetites de restau-

    rao e de supremacia da outra - a dominao comum, isto , a forma republicana

    de dominao burguesa . Assim vemos esses monrquicos, que a princpio seacreditavam numa restaurao de invectivas morais contra a Repblica, que no

    podiam deixar de concordar entre si e que adiam a restaurao por tempo indefinido.

    A partilha do domnio conjunto fortalecia cada uma das duas fraes e as tornava

    mais incapazes e mais contrrias submisso de uma outra, isto ,

    restaurao da monarquia (MARX, 197_, p. 154, grifo nosso).

    A forma de governo parlamentar, prossegue Marx, exigia que o poder legis-lativo - na figura da Assemblia Nacional - controlasse o poder executivo (Estado-governo). Todo o peso e a influncia do parlamento dependeria dodesenvolvimento de uma forma moderna de centralizao, onde fosse simplificadaa administrao do Estado e reduzido o corpo de oficiais do exrcito ao mnimopossvel, deixando a sociedade civil e a opinio pblica criarem rgos prprios,independentes do poder governamental (Ibid , p. 235, grifo nosso).

    Na forma estatal desenvolvida para derrocar o feudalismo, assinala Marx,existia um modelo inferior de centralizao, onde o Estado enfeixa, controla,

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    regula, superintende e mantm sob tutela a sociedade civil, desde suas maisamplas manifestaes de vida at suas vibraes mais insignificantes, desde suasformas mais gerais de comportamento at a vida privada dos indivduos... ( Ibid .,p. 234). Trata-se de uma extraordinria centralizao, correspondente massa

    social desamparada e sem forma, que s encontra paralelo na dependnciadesamparada, no carter caoticamente informe do prprio corpo social ( Ibid ., p.234).

    O regime parlamentar visto por Marx como um sistema que possibilita ummaior movimento da sociedade civil, dando-lhe proeminncia sobre o poderexecutivo, atravs da criao de organismos prprios da sociedade eindependentes do poder governamental. Para ele, tal sistema cria condies paraque sejam formadas instncias de mediao entre o poder da classe dominante e odas outras classes sociais. Ele compara o parlamentarismo ao self-government (autogoverno): regime que transforma cada interesse e cada instituio social emidias gerais, envolvendo a opinio pblica, seja na imprensa ou nos sales etabernas, os quais suplementam os debates dos oradores na tribuna (Cf. Ibid ., p.237-8):

    O regime parlamentar vive do debate; como pode proibir os debates? Cada

    interesse, cada instituio social, transformado aqui em idias gerais , debatido

    como idias; como pode qualquer interesse, qualquer instituio, afirmar-se acima

    do pensamento e impor-se como artigo de f? (MARX, 197_:238, grifo nosso).

    O regime parlamentar foi considerado por Marx como a forma poltica maiscompleta de dominao burguesa. Ele o via, entretanto, como seu regime dodesassossego. Apelando para a opinio pblica e possibilitando a sua manifesta-o, ele deixava que as decises ficassem nas mos das maiorias. Nesse sentido,abria espaos para que o proletariado se organizasse e conduzisse a sua revoluodentro do prprio revolucionamento da forma estatal de domnio burgus, con-substanciada na Repblica parlamentar.

    No regime parlamentar, os diferentes interesses sociais so discutidos e

    elevados categoria de lei, de uma vontade geral. A legislao elaborada pelaclasse dominante, na forma parlamentar de governo, no determinada apenaspela fora dos interesses exclusivistas da burguesia, mas leva em conta a pressodas demais classes da sociedade, desde que estas possam movimentar-se. Assim,para Marx, a lei que a classe dominante formula, no sistema parlamentar, no apenas sua prpria lei, mas incorpora presses das outras classes sociais, incor-

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    pora outras reivindicaes que conseguem, desse modo, transformar-se em vontade geral e impor-se prpria classe burguesa. Marx diz que, no Parlamento a nao tornou lei a sua vontade geral, isto , tornou sua vontadegeral a lei da classe dominante (MARX, 197_, p. 275, grifo nosso).

    Quando a burguesia alcana essa forma superior de domnio, em sua puraexpresso poltica ( Ibid ., p. 237), o antagonismo das outras classes pode semanifestar em sua forma pura e assumir o aspecto perigoso que converte todaluta contra o poder do Estado em uma luta contra o capital ( Ibid ., p. 237). porisso, assinala o autor, que o regime parlamentar traz tribulaes e perigos ( Ibid ,p. 265).

    Se a entrada das massas no cenrio poltico converte o parlamentarismonum regime do desassossego para a burguesia, esse mesmo regime o nicoem que essa classe social conquista a dominao poltica: permite a coligao dosdiferentes interesses particularistas das diversas faces da burguesia e possibilitao seu domnio comum de classe. Mas isto, acrescenta Marx, depende do fato deque ela prpria, enquanto classe, consiga dirimir seus conflitos de interesses in-ternos e se apresente como poder pblico , como poder poltico.

    No final dos anos quarenta do sculo passado, a burguesia francesa aindano havia organizado completamente o seu domnio de classe para poder exercero regime do desassossego. Diante das suas dissenses internas, ela ficavadividida entre diferentes faces monarquistas, chegando a considerar que a luta

    pela manuteno dos seus interesses gerais - do seu poder poltico - era umaperturbao dos seus negcios privados, particularistas.

    No tendo preparo para exercer o seu domnio de classe, a burguesia noconsegue deixar que a sociedade civil se organize, constituindo seus rgosprprios e independentes do poder governamental. Ao contrrio, diz Marx, elaproduz uma rigorosa legislao que, solapando as fundaes sociais do seu poder,leva-a a se defrontar com os seus antagonistas diretamente , isto , sem qualquermediao dos organismos da sociedade civil ( Ibid , p. 225-6).

    Como regime do desassossego, a Repblica parlamentar cria condiespara que as prprias armas forjadas pela burguesia, para derrubar o feudalismo,se voltem contra ela mesma. Sua civilizao v-se ameaada pelos prprios meiosde cultura que criou: a liberdade de imprensa, a liberdade de comrcio, aliberdade dos clubes, a instituio escolar laica, a proteo individual, enfim,registra Marx, todas as chamadas liberdades burguesas e rgos do progresso (Ibid , p. 237). A forma republicano-parlamentar, ento, passa a ser condenada

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    como socialista, ao lado de todas as conquistas liberais da burguesia, resultantesdo seu confronto com a aristocracia feudal:

    Se em cada vibrao de vida na sociedade, ela [a burguesia] via a tranqilidade

    ameaada, como podia aspirar a manter frente da sociedade um regime de desassossego , seu prprio regime, o regime parlamentar, esse regime que,

    segundo a expresso de seus porta-vozes, vive em luta e pela luta? (MARX, 197_,

    p. 237, grifo nosso).

    Desse modo, observa Marx, a burguesia promove condies para o golpe deBonaparte. Na sua luta contra o povo, ela vai cedendo as prerrogativas do poderparlamentar ao poder executivo at que as medidas que restringem osmovimentos da sociedade civil, imobilizando-a, atingem a prpria intelectualidadeburguesa, evidenciando sua fraqueza poltica. A discusso sobre as relaes entreo Parlamento e o Executivo no deixam de aflorar, mediatamente, as relaesentre sociedade civil e sociedade poltica.

    Os intelectuais da burguesia comeam a se distanciar dos interesses daclasse que representam ao se deixarem levar por discusses monarquistas,fazendo com que as prprias faces monrquicas deixem de reconhec-los - noparlamento ou na imprensa - como organizadores do seu poder poltico.Atemorizados pelo fantasma vermelho, esses intelectuais permitem a adoo demedidas polticas que paralisam os movimentos da sociedade civil e vo

    fortalecendo o executivo (Estado-governo) at que eles prprios so por elasatingidos e, conseqentemente, debilitados. Finalmente, complementa Marx, aburguesia reprime todos os movimentos da sua sociedade pelo poder do Estado(Ibid , p. 274, grifo nosso). Seu objetivo o de preservar o seu poder social anteas manifestaes polticas dos seus antagonistas, que haviam dado novo contedos idias liberais:

    Assim, denunciando como socialista tudo o que anteriormente exaltara como

    liberal, a burguesia reconhece que seu prprio interesse lhe ordena subtrair-se

    aos perigos do self-government ; que, a fim de restaurar a calma no pas, preciso

    antes de tudo restabelecer a calma no seu parlamento burgus; que a fim de

    preservar intacto o seu poder social, seu poder poltico deve ser destroado ; que o

    burgus particular s pode continuar a explorar as outras classes e a desfrutar

    pacatamente a propriedade, a famlia, a religio e a ordem sob a condio de que

    a sua classe seja condenada, juntamente com as outras, mesma nulidade

    poltica ; que, a fim de salvar sua bolsa, deve abrir mo da coroa e que a espada

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    que a deve salvaguardar fatalmente tambm uma espada de Dmocles

    suspensa sobre sua cabea (MARX, 197_, p. 238, grifo nosso).

    A burguesia francesa foi obrigada a fortalecer o Estado-governo, o poder

    governamental, para se defender da luta do proletariado: (MARX, 197_, p. 276).Por sua fraqueza poltica, prossegue o autor, a burguesia tambm reprimiu oavano da conscincia dos camponeses, mantendo-os na estupidez, porque temiaque eles se tornassem revolucionrios ( Ibid , p. 279). Assim, os camponeses foramforados a manter sua simpatia por Bonaparte quem, para eles, no significavaseno um programa econmico - a pequena propriedade. No entanto, esse progra-ma j se tornara conservador.

    O Estado burocrtico-militar centralizado do I Imprio expressava ainda ointeresse dos camponeses, os quais viam na ptria a defesa e a manuteno da

    pequena propriedade. J o Estado centralizado do II Imprio exprime aincapacidade poltica de domnio da burguesia, opondo-se aos interesses docampesinato seja porque as idias sobre a pequena propriedade caducaram, sejaporque a pequena propriedade e o seu campons arruinavam-se progressivamenteem face da explorao capitalista.

    Marx diz que o golpe de Napoleo foi necessrio para acabar com as ilusesdos camponeses, os quais eram forados, pela prpria burguesia, a alimentar suassimpatias pelas idias napolenicas. Forados porque a burguesia, incapaz de serpoliticamente governo, em 1850, reprimia todos os avanos da conscincia cam-ponesa.

    Analisando as condies que levaram ditadura bonapartista, Marx mostracomo a tendncia da burguesia em acentuar o intervencionismo estatal mutila asociedade civil e aniquila as condies vitais de todo o poder parlamentar ( Ibid ,p. 235). Ela condena no somente o seu prprio poder poltico nulidade, comotambm o poder poltico das outras classes sociais. O executivo (Estado-governo)torna-se to robustecido que o golpe de Napoleo a culminncia de todo um pro-cesso gestado pela incompetncia da burguesia em exercer o seu poder comoclasse, de converter os seus interesses privados em interesses pblicos:

    A burguesia fez a apoteose da espada ; a espada domina. Destruiu a imprensa

    revolucionria; sua prpria imprensa foi destruda . Colocou as reunies populares

    sob a vigilncia da polcia; seus sales esto sob a vigilncia da polcia . Dissolveu

    a Guarda Nacional democrtica; sua prpria Guarda Nacional foi dissolvida . Imps

    o estado de stio; o estado de stio foi-lhe imposto. Substituiu os jris por

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    comisses militares; seus jris so substitudos por comisses militares. Submeteu

    a educao pblica ao domnio dos padres; os padres submetem-na sua edu-

    cao. Desterrou pessoas sem julgamento; est sendo desterrada sem julgamento.

    Reprimiu todos os movimentos da sociedade atravs do poder do Estado; todos os

    movimentos de sua sociedade so reprimidos pelo poder do Estado (MARX, 197_,p. 273-4, grifo nosso).

    Bonaparte, como autoridade do poder executivo que se tornou um poderindependente da sociedade civil, tem como misso salvaguardar a ordemburguesa. A fora dessa ordem, observa Marx, est na classe mdia que perde opoder poltico para o poder executivo, cedendo-o a Bonaparte. Este, por sua vez, a autoridade de um poder independente da sociedade civil na medida em que aclasse mdia perde sua capacidade de ser politicamente governo.

    O poder executivo torna-se essa autoridade independente com a quebrado poder legislativo. Por isso, Napoleo Bonaparte declara-se contra o poderpoltico e literrio da classe de quem retirou o poder poltico ao quebr-lo. Todavia,esse poder poltico devolvido classe mdia quando o poder executivo protege oseu poder material e defende a ordem burguesa.

    A anlise de Marx sobre a experincia parlamentar francesa, vendo-a comoforma de governo que permite o domnio completo da classe burguesa, mostra,portanto, que a partir de 1848 comea a se desenhar uma nova forma derelacionamento entre a sociedade poltica e a sociedade civil. Surge uma nova

    forma de Estado que: exige a ampliao das instituies da sociedade civil, com o reforo

    do parlamento;

    tendo um parlamento forte capaz de administrar politicamente aluta de classes e permitir s demais classes se manifestarem atravsdo sufrgio universal;

    tendo a burguesia superado os conflitos entre os seus interessesparticularistas pode conquistar o domnio de classe, convertendo

    seus interesses em interesses gerais e, assim, submeter as rei-vindicaes das demais classes da sociedade sua direo poltica;

    que reduzindo o poder do Estado-governo alarga o campo de luta nasociedade civil: nas tribunas, bares, cafs, clubes, imprensa,educao pblica;

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    faz concesses aos operrios, mas estas se tornam um perigoconstante para a burguesia e, portanto, ela se prope a acabar comeles, mas no consegue realizar esse objetivo.

    Refletindo sobre a perda de posio do partido da ordem na garantia doregime parlamentar, Marx examina a sociedade civil como o espao de criao dergos independentes do poder governamental (independente, portanto, do Estadono sentido restrito, isto , do Estado em que predomina a sociedade poltica). Paraele, o prprio carter informe da sociedade civil, o seu aspecto catico, de-sorganizado, que explicaria um Estado centralizador, dominando todas as esferasda sociedade civil, at mesmo a vida privada dos indivduos.

    Com essa abordagem, Marx esclarece o contedo do conceito de Estadofora, explicitado posteriormente por Gramsci, segundo o qual o Estado tudo e

    a sociedade civil um corpo social catico e informe. A anlise de Marx sobre arelao entre Estado e sociedade civil o leva a elaborar a proposta de que o parla-mento, na figura da Assemblia Nacional, deveria deter o controle sobre o poderexecutivo (Estado-governo) e, assim, simplificar o aparato militar-burocrtico parapermitir que a sociedade civil e a opinio pblica alargassem suas esferas de atua-o, criando seus prprios rgos, independentes do poder governamental.

    Ao fazer essa proposta, em que reivindica a organizao da sociedade civil,Marx no pensava naquele consentimento ativo, no estilo hegeliano, que oEstado pede sociedade civil, conforme Gramsci procura ressaltar? No pensava

    que os intelectuais do grupo dominante (o partido da ordem na AssembliaNacional) deveriam buscar o consenso dos governados na sociedade civil,deixando-a organizar-se livremente, em lugar de contribuir para o reforamentodo Estado-governo?

    Alm disso, Marx percebe que se a represso atingira tanto a insurreiodos proletrios, em junho de 1848, como a rebelio pequeno-burguesa, em estiloparlamentar, em junho de 1849, era necessrio Repblica Parlamentar - nascidadessas lutas sangrentas - reforar a sociedade civil e limitar o Estado-governo,seja para que as fraes burguesas dominantes exercessem o seu domnio poltico,seja para que os proletrios pudessem se organizar. Nessa tese de que a livremovimentao da sociedade civil permite que a burguesia exera o seu poder eque o proletariado tambm possa se organizar como classe est embutida aquelaperspectiva que Marx aponta em Luta de classes na Frana de 1848 a 1850(1850): atravs da prpria consolidao do poder da burguesia industrial que se

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    vo alargando as possibilidades de organizao do operariado (Cf. MARX, 197_, p.119).

    Para que a burguesia francesa alcanasse uma forma superior de domnio ou preparasse as condies para isso foi necessrio condenar nulidade poltica

    no s a sua classe, como tambm todas as outras que lhe eram antagnicas e,assim, impedir tambm a expresso poltica desse antagonismo ao fechar asociedade civil e paralisar todos os seus movimentos.

    Ao indicar essas questes, a anlise de Marx aponta, indubitavelmente,para o processo de ampliao do Estado, isto , para a hegemonia burguesa, quesomente seria conquistada quando ela mesma fosse capaz de perceber que o seudomnio como classe , como interesse comum , superava os interessesparticularistas e imediatistas das diferentes faces que compunham a burguesia.Enquanto as fraes da burguesia no realizavam a unidade dos seus interessesespecficos, elas eram foradas a ceder o seu poder poltico ao Estado-governo(momento da fora, da ditadura), fechando a sociedade civil (lei eleitoral, lei doensino, lei da imprensa) e, assim, sobrepondo a sociedade poltica sociedadecivil.

    Se, por um lado, ao destruir as instituies da sociedade civil, a burguesiano pode derrotar os operrios definitivamente, por outro, estes ainda no tinhamforas para derrot-la. Marx chega concluso de que era necessrio que osoperrios se organizassem para conquistar, para sua prpria proposta poltica, a

    adeso da pequena-burguesia rural e urbana, pois a fora da revoluo operriaestava condicionada ao seu carter nacional e europeu.

    Esse projeto revolucionrio dependeria da conquista do poder poltico peloproletariado que, depois disso, tornar-se-ia capacitado a apresentar o seuinteresse como o interesse geral, coisa a que se via obrigada qualquer classesocial que aspirasse implantar sua dominao (MARX e ENGELS, 1974, p. 35).

    justamente para essa questo que Marx se volta quando cai a ditadurabonapartista, durante a guerra franco-prussiana. Nesse momento, os operriostomam o poder da capital francesa, pretendendo fundar uma nova ordem social.Diante disso, Marx recomenda aos trabalhadores parisienses que no sigam omodelo revolucionrio jacobino - o ataque frontal ao Estado - mas procuremconsolidar a Repblica para poderem se organizar como classe e prepararem suarevoluo. Mas os combatentes da Comuna de Paris tentam colocar em prtica afrmula da revoluo permanente e so derrotados.

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    Refletindo sobre esse fato histrico, Marx reconhece que ele haviainaugurado uma nova etapa na luta de classes. A partir da, ele procura ampliarsua proposta revolucionria, concebida por volta de 1848. Quando escreve aCrtica ao programa de Gotha , em 1875, admite que, entre a tomada do poder po-

    ltico pelo operariado e a instaurao de uma nova sociedade, necessrio umperodo de transio . Nessa fase, as ideologias burguesas sobre a propriedadeprivada devem ser superadas, dando lugar s relaes sociais de produo embases socialistas.

    Gramsci e a sociedade civil

    Desenvolvendo as anlises de Marx sobre o Estado, Gramsci chega ao

    conceito de sociedade civil, que atribui tambm a Hegel. E por que Gramsci fazessa afirmao?

    Pode-se dizer que as associaes da vida civil, conhecidas por Hegel, eram embries do que, na sua forma mais madura, se corporificaram no que hojeconhecemos como sociedade civil. Entretanto, isso no suficiente paracompreender os motivos que levaram o pensador italiano a comparar o seuconceito de sociedade civil com o de Hegel.

    Nos seus estudos sobre o conceito hegeliano do Estado, Gramsci se fixa nomomento em que Hegel discute a relao pedaggica, educativa, necessria no

    sentido de equilibrar dois aspectos inerentes a qualquer relao de poder: a fora e o consenso .

    Como diz Gramsci, Hegel era um filsofo que interpretava, no planointelectual, as aspiraes democrticas da jovem burguesia. Hegel acreditava quea fora era um elemento necessrio para as conscincias romperem com o velhomodo de vida aristocrtico-feudal, ao qual ainda estavam escravizadas, econquistarem a liberdade. Mas a fora no bastava. Era tambm imprescindvel aaceitao livre das novas formas de vida, o que no se obteria de formaespontnea e sim atravs da educao organizada permanentemente .

    Ao tratar dessa face educadora do Estado, do seu momento tico , dizGramsci, Hegel tocava a questo da hegemonia: a busca do consentimento a umadada forma de governo, mediante a persuaso.

    verdade que o Estado conhecido por Hegel era muito pouco desenvolvidoe as instituies polticas ainda estavam imbricadas nas instituies econmicas.

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    No entanto, as transformaes econmicas, sociais e polticas decorrentes dasrevolues democrtico-burguesas aprofundavam a distino entre a vida civil e avida poltica. Hegel demonstrava ter apreendido teoricamente esse processo nasua conceituao sobre o Estado. Ao mesmo tempo, porm, ele queria propor a

    identidade conceitual entre sociedade civil e sociedade poltica no Estado. Para ele,o projeto social da burguesia tinha um carter civilizatrio universalizante. Porisso, enfatizava o Estado tico, o educador dos indivduos para que estes acei-tassem novas normas de convivncia que lhes propiciariam alar a condio deburgueses, a condio de Estado.

    Marx, contudo, mostra que a burguesia no tinha condies de assumir umprojeto social de carter universalizante, pois seus interesses de classe eramexcludentes e seu Estado se afirmava como um Estado de classe (MARX, 1983).

    Ao estudar a identidade entre sociedade civil e sociedade poltica, propostapor Hegel, Marx esclarece que, se ela fosse levada s ltimas conseqncias,ambas as sociedades desapareceriam. Em outras palavras, o Estado desapareceria.Marx no pensa a identidade entre a vida civil e a vida poltica de modo abstrato,como o faz Hegel. Ele reflete sobre a realizao histrica dessa identidade, o queimplicaria a politizao da vida civil, tornando desnecessria a existncia emseparado da sociedade poltica, tornando desnecessrio, portanto, o Estado.

    Marx viveu num momento histrico em que se ampliaram as diferenasentre a sociedade civil e a sociedade poltica. Estudando esse processo, aponta-o

    como um fenmeno recente na histria social, surgido com o desenvolvimento dasrelaes de produo capitalistas. A distino entre economia e poltica no vistacomo se tais instncias estivessem abstradas, destacadas e independentes umada outra. Elas estavam ganhando sua especificidade prpria, mas continuavam searticulando organicamente no movimento histrico.

    poca de Marx, a sociedade poltica se sobrepunha sociedade civil,ainda catica e limitada s lutas de natureza eminentemente corporativas, ligadasaos conflitos econmicos nascidos da produo capitalista. A predominncia dasociedade poltica, da coero, exprime o Estado fora, conceito que Marx e

    Engels formularam ao analisar as relaes de foras em presena no perodo hist-rico em que viveram.

    Gramsci complementa o conceito de Estado fora, ao considerar asmodificaes ocorridas na sociedade capitalista, no ltimo quartel do sculo XIX.Ele mostra que o Estado se desenvolvera e no poderia mais ser compreendidosomente como sociedade poltica. Uma nova instncia de domnio estatal era

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    manifestada pela sociedade civil. Sua especificidade a hegemonia, o momento tico do Estado, na concepo de Hegel. Dessa forma, Gramsci elabora o con-ceito de Estado como sociedade poltica + sociedade civil, fora + hegemonia.

    Com a discusso do Estado tico, o momento educador de uma nova fora

    social que pretende transformar a sociedade, Gramsci fixou a especificidade dasociedade civil. Seu objetivo foi o de desenvolver a doutrina da hegemonia. Eleidentifica a presena desse conceito nas reflexes de um filsofo que no via atomada do poder pela burguesia somente como exigncia imediata para destruir ovelho (alis, Hegel repudiava o Terror jacobino), mas como processo paraconstruir uma nova forma de vida, que possibilitaria a todos a condio dedirigentes.

    Ao denunciar que a identidade entre a vida civil e a vida poltica no Estados se realizaria caso estivesse fundada num projeto social universalizante o quelevaria ao fim do Estado Marx explicita que o Estado tico de Hegel nopoderia ser concretizado pela burguesia. Retomando essas teses de Marx numoutro contexto histrico, Gramsci apresenta a perspectiva de que somente umgrupo social, com um projeto efetivamente universalizante, pode desenvolverhistoricamente o Estado tico. Trata-se do debate sobre a frmula revolucionriapoliticamente correta para o contexto do Estado sociedade poltica + sociedadecivil, a hegemonia civil.

    Gramsci desenvolve suas reflexes sobre a hegemonia civil luz da

    anlise sobre as mudanas na correlao de foras sociais, ocorridas na passagemdo Estado fora ao Estado hegemonia. Designa as lutas sociais existentes no

    Estado fora de guerra de movimento e as que se desenvolvem no Estadohegemonia de guerra de posio . Ele mostra que, nas novas condies da luta declasses, a frmula da revoluo permanente, nascida no contexto do Estadofora, perdera a sua eficcia poltica.

    A frmula da revoluo permanente, elaborada por Marx e Engels emtorno de 1848, inspirava-se na experincia jacobina da Revoluo Francesa. Elaindicava que a estratgia revolucionria da classe operria, para se apropriar do

    poder poltico, consistia na derrubada violenta da burguesia, atravs de umconfronto direto com o Estado.

    Essa frmula revolucionria, para Gramsci, aplicava-se ao momento em quea participao poltica das massas era escassa, a ao do proletariadodesenvolvida basicamente por vanguardas combativas, que atuavam naclandestinidade (GRAMSCI, 1977, p. 1566). As novas determinaes histricas,

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    surgidas a partir de 1870, diferenciavam completamente as formas de domnioestatal. No Estado em que a sociedade civil se organiza como uma esfera prpria,a frmula revolucionria para a luta poltica conceituada por Gramsci como a da

    hegemonia civil: implica o envolvimento de grandes massas na resoluo dos

    seus problemas, atravs da participao no complexo de associaes da vida civilque se expandem na estrutura de massas das democracias modernas. Essasassociaes, os aparelhos privados de hegemonia, passam a constituir verdadei-ras trincheiras de combate pela obteno de posies de direo e governo dasociedade.

    No seu estudo sobre a vida poltica francesa, Marx identifica Repblicaparlamentar como o locus no qual a burguesia consegue, ao mesmo tempo,exercer o seu domnio de classe e permitir que as demais classes da sociedade semanifestem politicamente. Sendo um governo que vive do debate, permitindo smaiorias participar das decises polticas, ele se converte num verdadeiro regimede desassossego para a burguesia. Ao solicitar a participao das massas, ele criacondies para que os operrios se organizem e influenciem a direo poltica dasociedade. Mas somente nesse regime possvel burguesia exercer o seudomnio poltico como classe. Somente ele lhe oferece possibilidades de superar osinteresses mais imediatistas, ligados s suas diferentes faces, e identificar seusobjetivos comuns de classe, apresentando-os como interesse geral, comointeresse pblico, como Estado.

    Nos anos quarenta e cinqenta do sculo XIX, a burguesia francesa aindano tinha conseguido superar os conflitos que a dividiam internamente em vriasfaces monrquicas (legitimistas, orleanistas...) Assim, ela no podia apresentaros seus interesses de classe como interesses do Estado. Estava politicamente des-preparada para dirigir o governo com a participao popular. Por isso, ela nopermite a organizao poltica dos seus antagonistas, nem mesmo de seus pr-prios intelectuais. Em vez de fortalecer o parlamento, a burguesia refora oexecutivo e cria condies para o golpe de Estado de Bonaparte.

    As reflexes de Marx indicam como a dominncia do executivo (Estado

    fora) mantm a sociedade civil catica, informe, sem instncias de mediaoentre ela e o Estado. J num regime no qual o parlamento forte, no s aburguesia consegue ser politicamente governo como tambm possibilita que osoperrios se organizem e, assim, se constituam como classe e lutem contra asforas dominantes para assumir o controle poltico do Estado.

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    justamente para essa questo que Marx se volta quando cai a ditadurabonapartista, durante a guerra franco-prussiana. Nesse momento, os operriostomam o poder da capital francesa, pretendendo fundar uma nova ordem social.Diante disso, Marx recomenda aos trabalhadores parisienses que no sigam o

    modelo revolucionrio jacobino o ataque frontal ao Estado mas procuremconsolidar a Repblica para poderem se organizar como classe e prepararem suarevoluo. Mas os combatentes da Comuna de Paris tentam colocar em prtica afrmula da revoluo permanente e so derrotados.

    Refletindo sobre esse fato histrico, Marx reconhece que ele haviainaugurado uma nova etapa na luta de classes. A partir da, ele amplia suaproposta revolucionria, admitindo que, entre a tomada do poder poltico pelooperariado e a instaurao de uma nova sociedade, necessrio um perodo detransio .

    Partindo das reflexes de Marx e procurando desenvolv-las, Gramsci avaliade modo decisivo a Comuna de Paris: ela marca a reconverso ttico-estratgicado movimento operrio, assinalando a passagem da guerra de movimento para aguerra de posio e a superao da frmula da revoluo permanente pelafrmula da hegemonia civil.

    Essa modificao ttico-estratgica no foi, entretanto, compreendida pelomovimento operrio internacional, que continuou defendendo o ataque frontal aoEstado, concebido como Estado fora.

    A idia de que um grupo de vanguarda destri o aparato do Estado,apropria-se do poder poltico e, atravs da ditadura do proletariado, constri umasociedade socialista entra em crise no curso da prpria Revoluo Russa. Hoje, ela apenas um registro histrico do passado, do momento em que se lutava por umparaso distante, o novo den do proletariado, cada vez mais longnquo diantedas sucessivas derrotas da frmula da revoluo permanente.

    A queda dos muros no Leste europeu a prova mais contundente daformulao terica de Gramsci. Ela indica sua profunda intuio em captar omovimento da histria numa poca em que as contradies da frmula da revo-luo permanente ainda no estavam explicitadas. Atualmente, as crises dassociedades comunistas desnudaram aquilo que o pensador italiano genialmenteapreendeu como tendncia histrica. Porm, preciso reconhecer que a frmulada hegemonia civil foi derrotada no interior do movimento operrio. Estecontinuou a defender a teoria da revoluo permanente e, desse modo, a

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    respaldar posies atrasadas e estratgias de luta incompatveis com a idia dehegemonia.

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