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A HISTÓRIA DA ECONOMIA BRASILEIRA Brasil cafezais nasce Dos um novo REALIZAÇÃO APOIO PATROCÍNIO

Dos Cafezais Nasce um Novo Brasil

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Page 1: Dos Cafezais Nasce um Novo Brasil

A H I S T Ó R I A D A E C O N O M I A B R A S I L E I R A

Brasilcafezais

nasceDos

um novo

REALIZAÇÃOAPOIOPATROCÍNIO

Page 2: Dos Cafezais Nasce um Novo Brasil

PROJETO CULTURAL: QUATTRO PROJETOS

REALIZAÇÃO: QUATTRO PROJETOS

RIMOLI ASSOCIADOS

COORDENAÇÃO EXECUTIVA: FLAVIO ENNINGER

COORDENAÇÃO EDITORIAL: RICARDO BUENO

CONSULTORIA: HISTORIADOR VOLTAIRE SCHILLING

EDIÇÃO: RICARDO BUENO – ALMA DA PALAVRA

TEXTOS: RICARDO BUENO E VOLTAIRE SCHLLING (O CAFÉ E O ILUMINISMO)

REVISÃO: FERNANDA PACHECO – ALMA DA PALAVRA

PROJETO GRÁFICO E DIREÇÃO DE ARTE: LUCIANE TRINDADE

IMPRESSÃO: GRÁFICA E EDITORA PALLOTTI

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação ( CIP )

Bibliotecária Responsável: Denise Pazetto CRB-10/1216 – (51)30297042

B928h Bueno, Ricardo.

A história da economia brasileira e sua inflência na cultura e na sociedade / Ricardo Bueno. – 1. ed. – Porto Alegre : Quattro Projetos, 2011–.

2 v. 128p : ils. col. ; 20 x 30 cm.

Conteúdo: v. 1. Dos cafezais nasce um novo Brasil – v. 2.Seiva amazônica tipo exportação alimenta cultura regional.

ISBN 978-85-64393-02-8

1. Economia - Brasil. 2. Ciclo do café. I. Título. II. Dos cafezais nasce um novoBrasil. III. Seiva amazônica tipo exportação alimenta cultura regional.

CDU CDU 398(816.5)

REALIZAÇÃOAPOIOPATROCÍNIO

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A Case New Holland, fabricante de máquinas agrícolas e de construções,tem grande orgulho de participar há mais de 60 anos da história do desenvolvi-mento deste imenso território que é a nação brasileira. O que no passado eramotivo de receio, por vezes até de questionamentos, hoje se comprovou ser mo-tivo de grande destaque no panorama global. O antigo “mito” de celeiro de mundose provou realidade. E realidade exemplar, pois o Brasil é hoje o maior produtorde diversos gêneros alimentícios de primeira necessidade para consumo humanoe animal, com índices de produtividade, tecnologias de primeira linha. Acima detudo, é capaz de fazê-lo e ainda expandir-se, sem aumentar desmatamentos ecom técnicas de preservação de ponta.

Mas, como se fosse pouco, sob os nossos pés ainda repousam os maioresaquíferos do mundo, um bem valioso que abençoa ainda mais esta nação. Aliadoa tudo isso, a cada dia se abrem novos caminhos e se constroem melhorias signi-ficativas na infraestrutura, tornando realidade um sistema produtivo equilibradoentre a agricultura e a indústria, capaz de promover um cenário econômico, so-cial e ambiental referencial para o século XXI.

Quando, há mais de 500 anos, Pero Vaz de Caminha relatou o que via evislumbrou um futuro próspero para o novo território, ao escrever na primeiracarta “nesta terra, em se plantando tudo dá”, certamente não imaginava a di-mensão real de suas sábias palavras.

Por isso, além de participar ativamente do processo de desenvolvimento susten-tável do Brasil, acreditamos que uma outra parcela de retribuição que devemos ao“país do futuro e à terra em que tudo dá” são os projetos sociais e culturais que promo-vemos, valorizando de forma responsável a Lei Federal de Incentivo à Cultura.

Como no caso dessa coleção sobre a história da economia brasileira e suainfluência na cultura e na sociedade, este ano com o lançamento do livro e daexposição sobre o café – Dos cafezais nasce um novo Brasil –, retratando a histó-ria e a importância da cafeicultura no cenário econômico-social da nação brasi-leira. Um projeto que está levando ao público de todas as camadas sociais e faixasetárias, de forma gratuita, tanto pela distribuição do livro, quanto pela visitaçãoà exposição, um contato direto com a história do país.

Estes são alguns dos motivos pelos quais a Case New Holland sente orgulhode participar do processo de construção não apenas desta nação, mas do futurodo nosso planeta.

Boa leitura!

Do Brasil mitoao Brasil real

VALENTINO RIZZIOLIPRESIDENTE DA CASE NEW HOLLANDE VICE-PRESIDENTE EXECUTIVODA FIAT PARA A AMÉRICA LATINA

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sumário

origenscafé:as

iluminismoo café e o

café no Brasilo ciclo do

e na culturao café nas artes

introdução 14 obras consultadas 126

18 26 50 100

os cafés do Brasil 120

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Certos hábitos estão tão arraigados em nossodia a dia que dificilmente conseguimos odistanciamento necessário para perceber sua ver-dadeira dimensão sociológica e cultural. Tomar umcafezinho após as refeições, por exemplo. Ou ser-vir um café para o visitante que chega, quem sabepara os clientes com os quais se negocia. Quantaspessoas sabem que a planta que dá origem a estahoje popularíssima bebida foi descoberta provavel-mente em meados do século XIV, início do XV, ouseja, há pouquíssimo tempo, em relação à históriada humanidade?

Quantos brasileiros têm a exata noção de que o singelo cafezinhode todo dia faz parte de um ritual, assim como no Japão e na Ingla-terra se preserva o costume do chá? Quantos de nós temos a percep-ção de que o hábito de consumir esta infusão de cor escura há nãomuito espalhou-se mundo afora, e que desde o início do século XXquem mais abastece o planeta são os grãos plantados e colhidos emterritório verde-amarelo, há algum tempo o maior produtor mundi-al, tendo chegado, no alvorecer do século XX, a ser responsável pornada menos que 75% de tudo o que se produzia na época? Mascomo foi mesmo que chegamos a este importante posto na economiacafeeira global? Onde tudo começou, por que percalços passamos,que influências esta atividade deixou na nossa sociedade e na nossacultura, a partir dos homens e mulheres que a transformaram emesteio de transformações econômicas impactantes?

Há tantas e tão ricas perspectivas a partir das quais se pode perce-ber e tentar compreender este fenômeno chamado café que editarum livro sobre o assunto necessariamente significa encarar o comple-xo desafio da síntese. No volume que agora chega às suas mãos, comoparte da série que pretende recontar a história da economia brasileirae sua influência na cultura e na sociedade, nossa pretensão foi a derecontar os principais aspectos que dizem respeito à introdução doainda não terminou

POR RICARDO BUENO

uma história que

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introdução

NEGROS, ITALIANOS, ESPANHÓIS

E JAPONESES FORAM ALGUNS DOS

BRAÇOS QUE FIZERAM NASCER,

DOS CAFEZAIS, UM NOVO BRASIL

cultivo do café no Brasil, a partir da qual se desencadeou um cicloeconômico de poderosa influência na história do país. Como não pode-ria deixar de ser, buscamos, complementarmente, situar o leitor, apre-sentando informações sucintas sobre a origem do grão e, de forma umpouco mais alentada, no delicioso texto do professor e historiadorVoltaire Schilling, relembrar como foi que os iluministas encontraramna bebida o combustível para suas geniais produções, ao mesmo tempoem que as coffee-houses iam tomando o lugar das tavernas como pontode encontro das inteligências europeias da época. Por sua vez, o agrô-nomo e pesquisador Celso Luis Rodrigues Vegro, do Instituto de Eco-nomia Agrícola, atendendo convite da Associação Brasileira da In-dústria do Café (Abic), parceira institucional deste projeto, apresenta,ao final do livro, um artigo em que se propõe a situar o atual momentodo que ele chama de "Os Cafés do Brasil" e suas perspectivas futuras.

O recheio desta história tangencia o século XVII, quando umcerto sargento-mor de sobrenome Palheta traz para o Brasil os pri-meiros grãos e as mudas que dariam origem à nossa produção, tran-sita por todo o século XIX, primeiramente no período colonial, de-pois no primeiro e segundo reinados e, mais ao final, com a procla-mação da República, chegando ao século XX, que em sua primeirametade assistiu a uma explosão produtiva sem precedentes, segui-da da crise devastadora causada justamente pela superprodução,que desencadeou um desequilíbrio no mercado mundial e a quedavertiginosa dos preços, levando uns tantos produtores à ruína.

Como força motriz da lavoura que veio a substituir a produção depedras preciosas, então em decadência, e a exemplo do que já severificara no cultivo extensivo da cana-de-açúcar, foi a mão-de-obraescrava quem primeiro labutou de sol a sol nos imensos cafezais doVale do Paraíba, seja em território fluminense, seja já em terras daentão província de São Paulo. Com o movimento global contrário àmanutenção do trabalho escravo, ao qual o Brasil lenta e tardiamen-te aderiu, ocorreu aos grandes fazendeiros paulistas a possibilidadede substituírem a força de trabalho dos negros cativos pela do imi-grante europeu remunerado, em especial os italianos do Norte, queem seu país enfrentavam dificuldades para conseguir emprego. Foicom sua chegada, simultânea à vinda de outros tantos milhares deportugueses, espanhóis e japoneses, que dos cafezais nasceu um novoBrasil. Uma história que ainda não terminou. Boa leitura.

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as origenscafé

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Em toda e qualquer publicação que se dedi-que a contar a história do café, o capítulo inicial,sobre as origens da bebida, é o que carrega maisincertezas. A começar pelo fato de que mapear adescoberta da planta é uma das tarefas, enquan-to tentar localizar no tempo o momento em quese descobriu a infusão, nos moldes como é co-nhecida hoje, é bem outra. Em meio a documen-tos e depoimentos tecnicamente questionáveis,do ponto de vista do registro histórico, ainda háas lendas em profusão que foram passadas de ge-ração em geração, ao longo dos séculos.

O italiano Pietro Della Valle, por exemplo, nascido em Romaem 11 de abril de 1586, enviou uma carta ao amigo Mario Schipano,médico e humanista, na qual defendia a tese de que a poção mis-turada por Helena na bebida servida a Telêmaco, no palácio deMenelau, era café. De outra parte, nos idos de 1700, um certoPaschius imprimiu em Leipzig um tratado em que supunha esta-rem, entre os presentes dados por Abigail a David, cinco medidasde café, mesmo presente que teria sido dado por Boaz a Ruth, emoutra passagem bíblica.

A mais famosa lenda, entretanto, teria sido divulgada porBanésio, escritor do século XVII, segundo a qual um pastor árabeou etíope, possivelmente de nome Caldi, estranhou o comporta-mento de algumas cabras de seu rebanho. Em determinadas situa-ções, os animais pareciam estar agitados demais, inclusive no perío-do da noite. Teria o pastor pedido ajuda a um amigo monge, de ummosteiro próximo, no sentido de auxiliá-lo a diagnosticar o porquêda agitação dos animais. Depois de um breve período de observa-ção, veio o surpreendente veredito: as cabras se agitavam após aingestão dos frutos ou das folhas de um arbusto, característico dasmontanhas da Abissínia, ao norte da Etiópia, na África.

A propósito da Abissínia, há também outra pequena confusão.Como havia por lá uma província chamada Kaffa, onde os cafeei-ros eram encontrados em estado selvagem, muito se especulou quea palavra café teria tido ali sua origem. Em verdade, café vem doárabe qahwah, qahua, cahwe ou qahwa (mesma palavra para vi-nho), todas originárias do turco kaveh, kahvet.

O fato é que, de início, por volta do século XV, o café eraconsumido apenas em cerimônias religiosas ou indicado por médi-cos. Era usado para tratar uma grande variedade de problemas,como pedras nos rins, gota, varíola, sarampo e tosse. O botânicoProsper Albinus, em um tratado de finais do século XVII, sobreremédios e plantas do Egito, afirma: “É um excelente remédio contraa cessação dos fluxos das mulheres, e elas fazem muitas vezes usodele quando o seu fluxo não é tão rápido quanto desejariam”. Étambém de Alpinus a descrição de como se preparava o café, en-

A LENDA DAS CABRAS DE CALDI

(ABAIXO) E EMPREGADA TURCA

SERVINDO CAFÉ (AO LADO)

NO SÉCULO XV, O CAFÉ ERA

UTILIZADO EM CERIMÔNIAS

RELIGIOSAS OU INDICADO

POR MÉDICOS COMO CURA

DE DIVERSAS DOENÇAS

2120

café: as origens

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tão: “A decocção, fazem-na de duas maneiras: uma com a pele ouo exterior do referido grão, e outra com a própria substância dogrão. A que é feita com a pele tem maior poder do que a outra.(...) O grão é colocado em um instrumento de ferro, firmementefechado com a tampa; por este instrumento introduzem um espetopor meio do qual o voltam no fogo, até que fique bem torrado;depois do que, tendo-o amassado até ficar um pó muito fino, sepode fazer uso dele, proporcionalmente ao número de pessoas queo vão beber: a terça parte de uma colher para cada pessoa, e deite-a num copo de água a ferver, juntando também um pouco de açú-car. E depois de ter fervido um pouco, deve deitá-lo em pires deporcelana ou de qualquer outro tipo e deixar bebê-lo aos poucos, omais quente que se possa suportar.”

Da Etiópia, via comerciantes ou mercadores de escravos, a plan-ta teria chegado à Arábia, e, depois, à Europa. Não sem antespassar por Meca, na Arábia Saudita, a cidade de onde partemtodos os caminhos e que é considerada a mais sagrada do mundoentre os muçulmanos.

Além de sua posição estratégica, pois ali chegavam inúmerascaravanas, das mais diferentes regiões da civilização de então, Mecaproporcionava ao café um prestígio incomum, já que Maomé proi-biu os islâmicos de ingerirem qualquer bebida de álcool. Comoaponta Jane Pettigrew, “à medida que o café tornou-se cada vezmais popular, salas especiais nas casas dos mais abastados foramreservadas para se tomar café, e casas de café começaram a apare-cer nas cidades. A primeira teria sido aberta em Meca, e emboraoriginalmente fossem lugares de reuniões religiosas, esses amplossaguões, onde os clientes se sentavam em esteiras de palha oucolchões sobre o chão, rapidamente tornaram-se centros de músi-ca, dança, jogos de xadrez, gamão, conversas em locais em que sefaziam negócios”.

Na condição de centro espiritual do mundo muçulmano, aspráticas sociais e culturais de Meca costumavam ser rapidamenteassimiladas em outras paragens. Foi assim que, em pouco tempo, oato de beber café fixou-se em grande parte da Arábia, espalhan-do-se não apenas para o Ocidente, mas também para o Egito (acidade do Cairo teria posteriormente relevante papel no comérciodo grão) e Síria. E há ainda quem defenda que o hábito do caféenraizou-se na Pérsia ainda antes de chegar à Arábia. Dizia-seque os guerreiros persas, quando expulsaram os etíopes, frustrandosua tentativa de se instalar no Iêmen, não deixaram de apreciar asbagas de café que cresciam nas árvores plantadas pelos inimigos.Desde muito cedo, a maioria das cidades persas abrigava cafeteriaselegantes e espaçosas, situadas nas melhores zonas urbanas.

Já na Turquia, as primeiras duas cafeterias teriam surgido porvolta de 1554, quando um casal sírio montou estabelecimentosfinamente decorados, antecipando-se em oferecer um produto que

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EM POUCO TEMPO,

O ATO DE BEBER

CAFÉ FIXOU-SE

EM GRANDE PARTE

DA ARÁBIA,

ESPALHANDO-SE

PARA O OCIDENTE,

EGITO E SÍRIA

café: as origens

AO LADO, BEDUÍNO

PREPARA O CAFÉ

SEGUNDO

MÉTODOS

TRADICIONAIS

DOS ÁRABES

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rapidamente cairia nas graças do povo. A propósito, viajantes eu-ropeus se declararam surpresos com a quantidade de café sorvidadiariamente em Constantinopla. Em residências de famílias abas-tadas, havia inclusive um funcionário com a tarefa exclusiva depreparar e servir o café. Havia todo um cerimonial a ser cumprido,e não raro o café era servido em tabuleiros de prata ou de madeirapintada. Se nos lares mais simples tornou-se um hábito oferecercafé às visitas, sendo considerado má-educação recusá-lo, tam-bém nos banquetes formais oferecia-se café aos convidados logoque chegavam, e mesmo durante o desenrolar das festas, que emalgumas situações chegavam a durar oito horas.

Se há quem defenda a tese de que os cafés vienenses foram osprimeiros dignos de nota na Europa (confira texto a seguir, assinadopelo historiador Voltaire Schilling), o fato é que Veneza, na Itália,também cumpriu papel relevante nesta trajetória, uma vez que em1600 teria ali desembarcado o primeiro carregamento comercialdo então chamado “vinho da Arábia”. O café logo passou a seropção no cardápio de bebidas oferecidas nas ruas pelos limonáji(vendedores de limonada que comercializavam também suco delaranja, chocolate e infusões de ervas), e não tardou a conquistaro paladar dos italianos e viajantes. Há quem atribua ao Café Florian,inaugurado em 1720, a condição de mais famosa cafeteria da Eu-ropa. Já o Café Grecco, em Roma, terminou por ser ponto de en-contro da nata da música erudita da época, recebendo visitas re-gulares de Mendelssohn, Rosetti, Liszt e Toscanini.

O comércio com os venezianos foi, durante quase um século,atividade estratégica para mercadores árabes, que vigiavam dia enoite suas plantações de café, além de ferverem ou secar os grãoscolhidos, tentando assim impedi-los de germinar. Buscavam ga-rantir a exclusividade do cultivo da planta e do consequente abas-tecimento da Europa, cada vez mais sequiosa pela bebida. Até fi-nal do século XVII, os árabes tiveram sucesso, mas então os holan-deses, maiores comerciantes do globo, com seus navios mercantes,resolveram que era hora de acabar com o monopólio. E então con-seguiram que um dos seus roubasse uma muda de café em Mochae, com orientação de botânicos, levasse a planta intacta para soloeuropeu.

Em paralelo, os holandeses desenvolviam tentativas de culti-vo da planta em Java, e por volta de 1690 há registros de queestavam sendo bem-sucedidos em Sumatra, Timor e Bali. Em1706, finalmente chega a Amsterdã a primeira remessa de cafécultivado pelos holandeses em Java. Solenemente, um cafeeirofoi plantado no Jardim Botânico da capital holandesa. Amsterdãiniciava, assim, sua trajetória como centro comercial do café,inclusive para o Novo Mundo. Foi o dr. James Douglas, cientistado século XVIII, quem batizou o jardim de Amsterdã como “oberço universal do café”.

FOI JAMES DOUGLAS QUEM BATIZOU O JARDIM DE

AMSTERDÃ COMO “O BERÇO UNIVERSAL DO CAFÉ”

KAFFE-KANTATEA cantata é um gênero de compo-sição musical vocal e instrumen-tal, estruturado em árias, coros,recitativos e árias de câmara comoduetos, trios etc. Johann SebastianBach, por volta de 1732-1734,compôs uma cantata muito espi-rituosa, baseada em um texto satí-rico do poeta alemão ChristianFriedrich Henrici (Pseudônimo:Picander [1700-1764]), chamadaSchweigt stille, plaudert nicht (Si-lêncio! Não conversa!), conheci-da por Kaffe-Kantate ou Cantatado café (BWV211).A cantata fala da discussão entre pai(Schlendrian) e filha (Liesgen) so-bre o consumo do café. O pai quer atodo custo que a filha deixe de to-mar café, oferecendo-lhe em trocatodo o tipo de propostas para queela possa deixar de tomá-lo. Esta,porém, tudo recusa, à exceção deum marido, mas como ela mesmadiz, tem que ser um marido que lhepermita tomar café! A ária mais in-teressante da cantata é "Ei, wieSchmeckt der Coffee süße", na qualLiesgen expressa seu gosto por café:

Ei! wie schmeckt der Coffee süße,(Ah! Quão doce é o gosto do café,)

Lieblicher als tausend Küsse,(Mais amado que mil beijos,)

Milder als Muskatenwein.(Mais suave que vinho moscatel.)

Coffee, Coffee muss ich haben,(Café, eu tenho que ter café,)

Und wenn jemand mich will laben,(E se alguém quiser me dar algumdeleite,)

Ach, so schenkt mir Coffee ein!(Ah!, Apenas me dê café!)

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café: as origens

ACIMA, THE COFFEE BOILER, CAFETERIA VIENENSE DE 1840

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iluminismoo café e o

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Nenhum outro grão colhido pelo homem nestesúltimos séculos provocou tamanho impacto na inte-ligência da Humanidade. Mal sendo ingerido, depoisde devidamente torrado, o café sorvido produz, deimediato, uma ativação do cérebro. Excita-o a traba-lhar, a refletir e a divagar, também. Os fatores que ocompõem, como a xantina e a cafeína, têm o com-promisso de não deixar ninguém ser vencido pelosono, e até o cansaço físico ele, por vezes, consegueimpedir, ativando o coração com maior impulso. His-toricamente, observa-se que sua infusão se tornou abebida favorita dos filósofos, dos escritores e dos poe-tas, da gente criativa e pensante em geral, sendo ocombustível fundamental para a eclosão da Revolu-ção Iluminista que emergiu a partir do século XVIII.

A ORIGEM DOS CAFÉS EUROPEUSAinda que fartamente distribuídos pelo Oriente Médio, denomi-

nados pelos persas como Qahveh Khaneh, os cafés europeus que co-meçam a ser abertos no século XVII pouco têm em comum com eles.Fosse em Istambul (onde o primeiro café, denominado Kiva Kan, foiaberto em 1474), em Damasco, em Jerusalém, em Riad ou no Cairo,eles se estendiam da porta para a rua, onde os clientes, sentados ao arlivre, escutavam o som da cornetinha mizmar e da flauta nay, ou joga-vam em um tabuleiro seus passatempos, gamão ou xadrez, enquanto osorviam. Visando entretê-los, havia nos cafés otomanos a presença deum meddah, contador de histórias que, eventualmente, era interrom-pido por um dervixe amante dos sermões.

Todavia as autoridades religiosas de Meca, sempre atentas aos peri-gos do livre pensar, decidiram, entre 1512 e 1526, fechar os cafés, por-que eram espaços perigosos e, portanto, um desafio à ortodoxia religiosada capital do Islã. Coube ao sultão de Istambul fazê-las retroceder.

A quase inexistência de chuva permitia que tudo ocorresse emcéu aberto, bem ao contrário do ambiente europeu, onde, desde oinício, trataram-se os cafés como uma espécie de templo do lazer esaudável retiro do corre-corre das grandes cidades. Somente erapossível colocar mesas e cadeiras na parte da calçada em semanasmuito limitadas, devido ao rigor do frio. Os cafés eram, portanto,um local onde se poderia ficar por horas e horas sem ser perturbado

AO LADO,

VENDEDOR

AMBULANTE DE

CAFÉ PELAS RUAS

DE ISTAMBUL

29

o café e o Iluminismo

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JAN SOBIESKI, VITORIOSO, ENVIOU ENTÃO UMA CARTA AO

PAPA, ANUNCIANDO: “CHEGUEI, VI, E DEUS VENCEU!!!”

CARICATURA DE CAFETERIA EM VIENA, DE ANDREAS GEIGER (1837)

por ninguém, desde que se solicitasse, ao sentar, uma taça de café,que era servida com um copo de água.

O CERCO DE VIENAO café tornou-se moda na Europa entre 1670 e 1690, e curiosa-

mente foi uma invasão dos turco-otomanos que finalmente o consa-grou. Viena, capital do Sacro Império Romano-Germano, encontra-va-se sitiada por um enorme exército comandado pelo grão-vizir KaraMustafá Pachá (supremo ministro e comandante militar do impériootomano). A Hungria já havia capitulado em 1660-63, e agora era avez de a Áustria sentir o peso da potência do Sultão Mehmet VI e doseu belicoso grão-vizir.

No alto verão de 1683, o imperador Leopoldo I, assustado, aban-donou sua capital e refugiou-se em Passau, com medo dos 90 milsoldados que os turcos mobilizaram contra ele, sendo que prima-damente 10 mil eram os temidos tártaros.

Por detrás das espessas muralhas da capital, quem ficou no coman-do da defesa foi o conde Ernst Rudiger Von Starhemberg, que tinha asua disposição apenas 16 mil homens, mais o apoio da milícia de cida-dãos e de cerca de 700 estudantes. Bem pouca gente para enfrentar umdos maiores poderios da Europa e da Ásia Menor daqueles tempos.

Naquelas circunstâncias dramáticas, com a possibilidade de umacidadela cristã capitular frente ao inimigo muçulmano, o papaInocêncio IV lançou um apelo aos príncipes europeus, para que acor-ressem a salvar Viena e a dinastia Habsburgo que a governava, vistoque se tratava de uma “Guerra Santa”.

Grande parte alegou que estava com problemas internos, ne-gando qualquer apoio. Todavia, esta não foi a posição do rei daPolônia, Jan III Sobievski, que passou a comandar uma força decoalizão na qual contava com bávaros, francônios, suábios e saxões,além, naturalmente, da sua poderosa cavalaria dos Hussardos.

O cerco que começara em 15 de julho de 1683 estava prestes aalcançar a vitória no começo de setembro, quando o exército dos cris-tãos, descendo dos altos de Kahlenberg, nas cercanias de Viena, namadrugada do dia 12 de setembro de 1683, desbaratou completamenteo exército otomano, matando 10 mil deles e pondo Kara Mustafá emfuga. Jan Sobievski, vitorioso, enviou então uma carta ao papa, anunci-ando: “Cheguei, vi, e Deus venceu!!!”. A Europa suspirou aliviada.

O grande botim para os cristãos foi ter encontrado o acampa-mento turco praticamente intacto. E no meio daquela parafernáliade tapetes, pratarias, roupas de seda, divãs, espadas e mosquetesabandonados às pressas, um tanto esquecidos por todos encontra-vam-se 50 sacos de grãos de café.

O PRIMEIRO CAFÉ DE VIENADas tantas histórias que corriam a respeito do verdadeiro funda-

dor do primeiro café vienense, uma delas faz menção a um tal GeorgeFranz Koltschitzky (falecido em 1694), intérprete do rei Jan que te-

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NO MEIO DA

PARAFERNÁLIA DE

TAPETES, PRATARIAS,

ROUPAS DE SEDA,

DIVÃS, ESPADAS

E MOSQUETES

ABANDONADOS ÀS

PRESSAS, UM TANTO

ESQUECIDOS

POR TODOS

ENCONTRAVAM-SE

50 SACOS DE

GRÃOS DE CAFÉ

o café e o Iluminismo

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ria percebido o valor daqueles sacos encontrados, a respeito dos quaisninguém sabia o que fazer. Também são mencionados Isaak de Lucae o grego Johannes Diodato. Consta que os otomanos, além do con-sumo pessoal, davam os grãos de café aos seus camelos, para deixá-los mais dispostos e ativos. Seja como for, ele tornou-se uma dádivada última cruzada do Ocidente contra o Islã.

Koltschitzky logo aprendeu como lidar com o produto e abriuuma Kaffeehaus, naquele mesmo ano da fuga otomana – ela teriasido inaugurada em 12 de setembro de 1683 –, e imediatamenteteve sucesso. Para atenuar a amargura da bebida, passou a servi-lacom generosas doses de creme chantilly (o costume de adoçá-locom açúcar somente surgiu mais tarde, na França). Mal sabia eleque seu estabelecimento estava dando início a uma verdadeirarevolução dos costumes.

Não demorou muito para que a capital dos austríacos ficasseconhecida pela quantidade e qualidade dos seus cafés, que serviama bebida e ofertavam uma variada confeitaria (tortas, bolos e docesdas mais diversas procedências), atraindo uma clientela diversificada,majoritariamente de pessoas envolvidas com a cultura e com as ar-tes (escritores, artistas, cantores de ópera, maestros e compositores,empresários das artes, celebridades da sociedade, sem esquecermosos poetas e os jornalistas de todos os quadrantes). Durante muitotempo, mulheres não foram admitidas.

CENTRO DE LEITURASFaz parte da lenda dos primeiros cafés vienenses a história de

que coube a um desconhecido fazer do café um ponto de leitura.Tinha ele o hábito de levar um jornal e deixá-lo sobre a mesa, depoisde pagar a conta. Com o tempo, os demais fregueses, acreditandoser uma cortesia da casa, passaram a exigir os diários para lê-losantes de seguir para a vida. Outro efeito do gesto foi atrair genteatrás de notícias do mundo político ou para ler de perto a críticateatral e musical, muito ativa a partir do século XVIII. Como erainevitável, graças à busca por cultura dos frequentadores, muitoscafés passaram a oferecer seu espaço para seções literárias, nas quaisjovens escritores e poetas podiam apresentar-se.

Os escritores Stefan Zweig, Theodor Herzl (fundador do sionis-mo), o inventor Siegfried Marcus (precursor da fabricação do auto-móvel, em 1883), os ficcionistas Franz Kafka, Herman Broch e ArthurSchnitzer, este o favorito de Sigmund Freud, faziam e refaziam seustextos nos cafés da cidade, onde também estavam presentes os pinto-res modernistas Egon Schiele e Gustav Klimt. Os arquitetos AdolfLoos e Otto Wagner (urbanista que reformou Viena no século XIX)eram assíduos daqueles pequenos mundos, onde quem valia a penaconhecer quase sempre aparecia. Entre eles, o famoso dramaturgo esatírico Karl Krauss, que redigia grande parte dos artigos da sua revis-ta Die Fackel (A Tocha) em uma das mesas do seu café favorito.

Se nos começos do século XIX a cidade dispunha de 150

CONSTA QUE OS OTOMANOS DAVAM GRÃOS DE CAFÉ AOS

SEUS CAMELOS, PARA DEIXÁ-LOS MAIS DISPOSTOS E ATIVOS

O CAFÉ SPERL, EM VIENA, EM FOTOGRAFIA DE 1910

MUITOS CAFÉS

PASSARAM

A OFERECER ESPAÇO

PARA SEÇÕES

LITERÁRIAS,

NAS QUAIS JOVENS

ESCRITORES E POETAS

APRESENTAVAM-SE

o café e o Iluminismo

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DA TAVERNA AO CAFÉAinda que não desconhecessem a existência do café, os in-

gleses do tempo de Shakespeare eram assíduos frequentadoresdas tavernas de Londres. A maioria delas estavam espalhadaspelas margens do porto, tendo todas nomes de animais: Cabeçade Leão, da Águia, do Falcão, da Raposa etc. Estima-se queisto se devia ao fato delas serem espelho das antigas tavernasteutônicas ou saxãs, originalmente frequentadas por caçadoresou pescadores, que se reuniam depois da labuta para alegrar avida com canecos de cerveja e vinho ou tragos de aquavita (água-viva, bebida escandinava de altíssimo teor alcoólico equiva-lente à vodka dos russos). Os mais variados espécimes de caça,servidos em largas travessas de madeira, eram então oferecidoscomo acompanhamento.

O bardo imortalizou a taverna Cabeça de Javali (Boar’s HeadTavern), local preferido pelo bufão sir John Falstaff, que por umbom tempo privou da amizade do príncipe Hal, o qual, mais tarde,quando ascendeu ao trono da Inglaterra como Henrique V, o ig-

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cafeterias, em 1900 saltaram para 600 as Kaffeehäuser, proporcionan-do uma excelente qualidade de vida aos súditos da monarquiaHabsburgo. Era um espaço extraordinário de convívio aberto ao pú-blico e que se tornara um abelheiro de ideias, uma “usina de so-nhos”, onde também se forjavam partituras musicais para ópera eoperetas (como os regentes Strauss, pai e filho, imortalizados pelasvalsas, e claro, o grande Gustav Mahler), livros, quadros e novascenografias teatrais, fazendo de Viena um dos principais núcleos dacultura ocidental, uma espécie de Paris da Europa central.

Um excelente testemunho da ambientação e da vida culturalproduzida nos cafés dos anos 20 e 30 se encontra nos livros autobio-gráficos de Elias Canetti: A língua absolvida (Die gerettete Zunge, 1977);Uma luz em meu ouvido (Die Fackel im Ohr, 1980) e O jogo dos olhos(Das Augenspiel, 1985). Era comum, escreveu o Prêmio Nobel de1981, que um mecenas enviasse um mensageiro para, discretamen-te, entregar a um poeta, cujo talento prometia, uma certa importân-cia em dinheiro para ele se desafogar dos desconfortos cotidianos emelhor poder entregar-se às musas.

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AINDA QUE NÃO

DESCONHECESSEM A

EXISTÊNCIA DO CAFÉ,

OS INGLESES DO

TEMPO DE

SHAKESPEARE ERAM

ASSÍDUOS DAS

TAVERNAS

ACIMA, À

ESQUERDA,

CAFETERIA

INGLESA DO

SÉCULO XVII. À

DIREITA, A

CAFETERIA OFFEYS,

DE LONDRES

o café e o Iluminismo

Page 16: Dos Cafezais Nasce um Novo Brasil

norou. Amante da garrafa e da vida boêmia, Falstaff, um glutãogorducho e bem-humorado, era o típico frequentador de tavernas,as quais também acolhiam punguistas, pecadoras profissionais eladrões de ocasião, o que não dava boa fama para aquele tipo deestabelecimento.

Brigas eram comuns: altercações e desaforos terminavamcom facas entrando em ação em meio à intensa fumaceira doscachimbos dos marinheiros e de velhos lobos do mar. Era umlugar perigoso. Tanto assim que um conhecido autor teatral epoeta, o jovem Christopher Marlowe, amigo e rival deShakespeare, terminou sendo assassinado aos 29 anos em umataverna das docas de Depford, em maio de 1593, sendo que opróprio Shakespeare morreu na sua cidadezinha natal –Stratford-upon-Avon –, em março de 1616, provavelmente de-vido ao excessivo abuso de bebida forte, segundo alguns histo-riadores. Sobre a sua tumba, na Holy Trinity Church, o epitáfiodizia: “abençoe o homem que preservar estas pedras/amaldiçoeaquele que tentar tocar nos meus ossos”.

Victor Hugo, por sua vez, registrou no seu Nossa Senhora deParis (Notre-Dame de Paris, 1831), romance histórico que sepassa na capital da França medieval, uma viva impressão sobreuma taverna da época, a Pomo de Eva, na qual “[ela] cheia deluzes flamejava como uma forja nas sombras: ouvia-se o barulhodos copos, das comezainas, das pragas, das questões, que saíapelos vidros partidos (...) ouviam-se gargalhadas sonoras”. Ed-gar Allan Poe, por sua vez, frequentador assíduo da Court-houseTavern, em Richmond, na Virginia, usava-lhe o endereço comoreferência para receber algum socorro financeiro do amigo JohnAllan (correspondência de 1827), e também fez das tavernas ocentro tenebroso de uma série de contos.

TAVERNAS E ESTALAGENSAs tavernas, ao tempo que foram entendidas como as

antepassadas dos atuais pubs ingleses, tinham grande afinidadecom as estalagens. Construídas nas principais vias das cidades gran-des europeias, elas também proliferavam pelo interior do país. Aindaque, em geral, fossem abrigo de comerciantes e mercadores via-jantes, isto não evitava que a violência eclodisse a qualquer mo-mento.

Alexandre Dumas, bem no início da sua célebre novela Os trêsmosqueteiros (Les Trois Mousquetaires, 1844-46), fez uma perfeitadescrição do ambiente onde se dá o desentendimento do jovemespadachim d’Artagnan com um dos mosqueteiros do cardealRichelieu, com quem mais tarde duelou. O clima da estalagemera praticamente o mesmo da taverna. Com a fartura de bebida eos ânimos exaltados, era inevitável que grossa pancadaria e o cho-car dos floretes contribuísse para o encerramento de uma noitada.

COM A FARTURA DE

BEBIDA E OS ÂNIMOS

EXALTADOS, ERAM

INEVITÁVEIS GROSSAS

PANCADARIAS

E O CHOCAR

DOS FLORETES

AO LADO,

ILUSTRAÇÃO DE

CAFETERIA ALEMÃ

DE 1880

RESERVADA

APENAS A

MULHERES

o café e o Iluminismo

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Page 17: Dos Cafezais Nasce um Novo Brasil

O CAFÉ E A SABEDORIANão sem razão o primeiro café a ser fundado na Inglaterra, por

um tal de Jacob, em 1650 ou 1652, batizado como O Anjo, instalou-se em Oxford, nas vizinhanças da célebre universidade. A data co-incide com o governo dos puritanos de Oliver Cromwell (1648-1658),que eram profundamente hostis à existência de tavernas – centrosde beberagens e de devassidão, para eles –, assim como de teatros eoutros locais de divertimentos tidos por licenciosos. Os devotos doditador não tinham nenhum senso de humor.

O café de Oxford logo tratou de atrair os acadêmicos e estudan-tes em busca de um espaço livre para as discussões (as universidadesda época não deixavam muita margem para manifestações dos alu-nos, nem para transgressões dos acadêmicos). Aproveitando-se dasituação favorável à difusão dos cafés, pois os puritanos considera-vam-nas como espaço dos “virtuosos”, várias coffee-houses foram aber-tas em Londres, acolhendo basicamente o mesmo tipo de públicomais culto e informado, contando ainda com a presença de políticose negociantes da City.

Os partidos ingleses, Whigs e Tory, como ocorreu na França naépoca da Revolução de 1789, elegeram cada um o seu café preferidopara seus acertos informais, o mesmo ocorrendo com os letrados,poetas e artistas em geral. Esta função, de serem “centros depolitização”, é que levou Honoré de Balzac a dizer mais tarde que“o balcão do café é o parlamento do povo”. Exatamente por serviremcomo uma área de livre circulação das ideias e das ideologias, ogoverno de Carlos II (reinou de 1660 a 1685) decidiu fechar algu-mas das coffee-houses, em 1675, por entender que abrigavam “pen-samentos subversivos”, senão que “seminários da sedição”. Houveforte reação contra isto, obrigando a monarquia a recuar. Desdeentão, seus frequentadores passaram a considerá-las como funda-mentais na conquista das “liberdades inglesas”.

Mas a abertura das coffee-houses não significou que se limitas-sem a ser um abrigo da inteligência. Modificou igualmente a es-trutura dos centros urbanos, fazendo com que uma série de outrasedificações importantes surgissem próximas a elas. Sedes de parti-dos e de clubes masculinos, a famosa Lloyd, a empresa de segurosde projeção mundial, e até a bolsa de valores da City, de Londres,assim como a de Nova York, estabeleceram-se nos arredores doscafés. Também serviram, segundo demonstrou Lawrence Klein,como um dos primeiros núcleos de civilidade fora da vida na Cor-te, ao tempo em que atraíram, com sua configuração interna (umasala para correspondência, outra para reuniões, um espaço paraescritório e a cafeteria propriamente dita), os pequenos comerci-antes, que lá podiam tranquilamente dar encaminhamento aosseus contratos e negócios sem ter que despender dinheiro em alu-guéis ou compra de escritório.

AS COFFEE-HOUSES FORAM UM DOS PRIMEIROS

NÚCLEOS DE CIVILIDADE FORA DA VIDA NA CORTE,

ATRAINDO OS PEQUENOS COMERCIANTES

ACIMA, ILUSTRAÇÃO DE AUTOR DESCONHECIDO, DATADA DE 1668, RETRATANDO CAFETERIA INGLESA

BALZAC (ACIMA) DIZIA QUE

“O BALCÃO DO CAFÉ É O

PARLAMENTO DO POVO”

o café e o Iluminismo

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Page 18: Dos Cafezais Nasce um Novo Brasil

O CAFÉ E A RAZÃO CLÁSSICAInteressa observar que estudos preliminares sobre os efeitos do

café já haviam sido feitos pelo notável filósofo e cientista inglês sirFrancis Bacon (falecido em 1626), que decidiu alertar o público, emum ensaio intitulado Historia Vitae et Mortis, de 1620, para os perigosdo seu consumo, ainda que tivesse méritos para a reativação cerebral.Mesmo assim, graças a um criado turco vindo de Smyrna, chamadoPasqua Rosee, que fundou seu estabelecimento também no ano de1652, em Londres (batizado como Cabeça de Turco), as cafeteriascomeçaram a multiplicar-se notavelmente a partir daquela data, emfunção de outro fenômeno: a emergência do Movimento Racionalista.

Se consideramos sir Francis Bacon como um dos precursores domoderno racionalismo, o século XVII – denominado como O Sé-culo da Razão Clássica – conheceu ainda outros gigantes do pen-samento, como Descartes, Baruch Spinoza, Gottfried Leibniz e IsaacNewton (que simplesmente revolucionou a concepção do Cosmo).

A marcada origem turca dos cafés de Londres ensejou que inú-meras coffee-houses abertas mantivessem denominação que clara-mente as identificava com a região do Levante. Além de haver 57Cabeças de Turco, outras se chamavam Jerusalém Coffee-house,Divã Oriental, Cabeça do Sultão, Sultanesa, Soliman coffee-house,Morat, o grande, e assim por diante.

DE BACCO A APOLOA taverna estava umbilicalmente ligada ao álcool e ao

empanturramento, era a morada de Bacco. Por conseguinte, não ser-via para duelos de inteligência, bem ao contrário das coffee-houses,refúgio do luminoso Apolo. E assim foi que a Razão finalmente trans-formou-as em sua morada definitiva. Devido à sua sobriedade, elaschegaram a ser apelidadas na Inglaterra de "universidades de umcentavo" (penny universities), porque, frequentando-as, era possível seobter muito conhecimento ao conviver com a elite pensante, ler einteirar-se das novidades da época, e tudo pagando-se apenas o valorde uma porção mínima de café. Esta função, de serem "centros depolitização", é que levou Jonathan Swift a se convencer de que "asinformações que os poderosos possuem não são mais verdadeiras outrazem mais luzes do que as discussões políticas de um café".

Deste modo, gradativamente as tavernas entraram em decadên-cia, sendo superadas por um novo espaço de sociabilidade, muitomais civilizado e refinado, aberto pelos cafés, tornando muitos delessímbolos de uma sociedade requintada. As enormes mesas rústicas eos bancos coletivos das tavernas, onde a bebida era servida emcanecos de latão ou estanho, deram lugar aos cafés decorados comcuidadoso bom gosto. Móveis Thonart, especialmente em Viena,toalhas de mesa limpas, copos de cristal ou de vidro trabalhado,taças de porcelana resistente, eram comuns de serem encontradosnas Kaffeehaus de Munique, de Frankfurt ou de Nice.

ORIGEM TURCA DOS CAFÉS DE LONDRES LEVOU À ESCOLHA

DE NOMES QUE REMETIAM À REGIÃO DO LEVANTE

ACIMA, GRAVURA DE CAFETERIA TURCA DO INÍCIO DO SÉCULO XIX

o café e o Iluminismo

4140

AS

FORAM APELIDADAS

DE “UNIVERSIDADES

DE UM CENTAVO”,

POIS NELAS SE PODIA

OBTER MUITO

CONHECIMENTO

AO CUSTO DE UM

SIMPLES CAFÉ

COFFEE-HOUSES

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suspeito, possível de engendrar um espírito crítico, senão que a pró-pria sedição. Hoje, a Alemanha é o terceiro maior mercado consumi-dor de café, onde 150 litros de café são bebidos per capita e cerca de500 mil toneladas de grãos de café verde são processadas.

O COMBUSTÍVEL DO ILUMINISMO“Sapere aude”, ouse saber, respondeu o filósofo alemão E. Kant, ele

também um admirador inveterado dos efeitos da cafeína, a um amigo quelhe perguntara: o que, afinal, era o Iluminismo? Em um pequeno textoque rapidamente foi traduzido e logo circulou no meio culto ocidental, opensador conclamou a todos que pensassem com sua própria cabeça. Quedeixassem de agir apenas cumprindo as ordens dos sacerdotes e dos mo-narcas e colocassem o cérebro a funcionar por si. O que importava era aliberdade de pensamento. Segundo suas próprias palavras:

“Esclarecimento (Aufklärung) é a saída do homem de sua menoridade,da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso deseu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o próprioculpado dessa menoridade se a causa dela não se encontra na falta de entendi-mento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem adireção de outrem. Sapere aude! Tem coragem de fazer uso de teu próprioentendimento, tal é o lema do esclarecimento”. (Was ist Aufklärung?, 1783).

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Na Alemanha, país de compositores, coube ao romântico RobertSchumann, autor de incontáveis lieder (peças de piano e canção) tor-nar célebre o Zum Arabischer coffe baum, ou simplesmente Coffe Baum(árvore do café), fundado em 1720, em Leipzig, capital da Saxônia.Que igualmente contou com a presença de outras celebridades, taiscomo o rei Augusto, o Forte, Johann S. Bach, Gotthold E. Lessing, J.F.Goethe, E.T.A. Hoffmann, Franz Liszt e Richard Wagner. Em Berlim,a primeira Kaffeehaus teve suas portas abertas em 1721. Todavia, o reida Prússia Frederico II, o Grande, ordenou, ainda que fosse um mo-narca esclarecido, que seus vassalos dela se afastassem.

Ele não estava disposto a que os alemães trocassem a cerveja porum produto importado de tão longe. Mas com o tempo, e mais ain-da com os bons proveitos tributários que advinham do monopólio doarábico, ele voltou atrás. Desde então, como em outras capitaiseuropeias, os cafés berlinenses se transformaram em “centros de co-municação”, onde as pessoas de todas as camadas sociais e gruposocupacionais discutiam ao redor de uma chávena de café quente asquestões políticas, econômicas e culturais do momento.

O fato de que beber café fazia com que os súditos deixassem deacordar envoltos em uma nuvem de torpor e inércia, e logo ficassemdespertos e atentos, com a mente afiada, assustou diversos outros prín-cipes alemães, que o entenderam como um tipo de licor altamente

42

ACIMA, À

ESQUERDA, TÍPICO

CAFÉ ALEMÃO

EM CARICATURA

DO SÉCULO XIX.

À DIREITA,

KARLSPLATZ,

EM VIENA

O FATO DE QUE BEBER

CAFÉ FAZIA COM QUE

OS SÚDITOS FICASSEM

DESPERTOS E

ATENTOS, COM A

MENTE AFIADA,

ASSUSTOU DIVERSOS

PRÍNCIPES ALEMÃES

o café e o Iluminismo

4342

Page 20: Dos Cafezais Nasce um Novo Brasil

Nenhuma outra fonte de estímulo superou o café naqueles anosem que a Razão passou a ser hegemônica, tornando-se, assim, omais recorrente instrumento da vitória da Ilustração contra o Des-potismo e a Superstição. Em suas Confissões, Jean-Jacques Rousseaucomentou: "Voltaire tem a reputação de beber 40 taças de café pordia para permanecer desperto, para pensar e pensar, pensar a manei-ra de lutar contra os tiranos e os imbecis".

E, como não poderia deixar de ser, fez sucesso de imediato nacapital da inteligência europeia: Paris. Lá, o precioso líquido chega-ra vindo de Marselha, o grande porto francês no Mediterrâneo e,desde 1661, o principal importador dos grãos vindos do Egito. A suasede principal tornou-se o Café Le Procope (nome derivado do seuproprietário, o siciliano Francisco Procópio, que o fundou em 1686),até hoje estabelecido na Rue de l’Ancienne Comédie, 13, no bairrode Saint Germain-des-Prés.

Além dele, como sítio que abrigava a vanguarda intelectual,existiam o Café de la Régence (no Palais Royal, aberto em 1718) e oCafé Gradot (hoje desaparecido). A história do Procope se identifi-ca por sua íntima associação com o Iluminismo, pois foi frequentadopor Voltaire, pelo naturalista Buffon, pelo escritor e filósofo Jean-Jacques Rousseau, pelo matemático D´Alembert e por DennisDiderot, o pai da Enciclopédia (edição iniciada em 1750). Tambémacolheu os líderes jacobinos George Danton e Paul Marat nos dra-máticos acontecimentos que sacudiram a capital nos momentos tor-mentosos da Revolução de 1789.

Foi ainda no Procope que Benjamin Franklin, então embaixadorda jovem república americana, redigiu a minuta do pacto Franco-Americano de apoio do governo de Luis XVI aos revolucionários de1776. Consta que Thomas Jefferson, quando foi sua vez de ser repre-sentante diplomático na França, por ocasião da Revolução, teriafeito o esboço das Dez Primeiras Emendas à constituição americananuma das mesas do Procope, consagrando-o como um dos templosinformais da Razão.

O TESTEMUNHO DE DIDEROTAlém de Voltaire, Denis Diderot também era freguês assíduo

dos cafés da Cidade Luz. Eis aqui um testemunho dele sobre o seucostume de aparecer no café, depois de flanar pelas ruas da capital:

“Fizesse bom ou mau tempo, era meu hábito sair às cinco da tarde paraum passeio até o Palais-Royal. Eu ia sempre só (...) entretendo-me comigomesmo com a política, o amor, o gosto ou a filosofia. Abandonava meuespírito a toda libertinagem. Deixava-me levar pela primeira ideia sábia oulouca que se me apresentasse. (...) Meus pensamentos são minha distração.Se o tempo estava muito frio eu me refugiava no Café de La Régence. Lá eume entretinha a ver jogarem xadrez. Paris é o centro do mundo, e o Café dela Régence é o sítio de Paris onde se joga o melhor deste jogo.”

AO LADO,

VENDEDORA DE

CAFÉ EM PARIS,

GRAVURA DE M.

ENGELBRECHT, DE

MEADOS DE 1735

NENHUMA OUTRA

FONTE DE ESTÍMULO

SUPEROU O CAFÉ

QUANDO A RAZÃO

PASSOU A SER

HEGEMÔNICA.

TORNOU-SE, ASSIM,

O MAIS RECORRENTE

INSTRUMENTO

DA VITÓRIA DA

ILUSTRAÇÃO CONTRA

O DESPOTISMO

E A SUPERSTIÇÃO

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o café e o Iluminismo

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Interessante também foi a história de Emilie, a marquesa deChâtelet, nascida em 1706 e amante de Voltaire. Mulher extre-mamente inteligente e culta, a moça desde muito cedo – paraespanto e preocupação da família – se decidira pela ciência e pelaaprendizagem de línguas (dos 12 aos 20 anos dominou o latim e ogrego, além do italiano e do alemão). Era conhecida por estudarde oito a 12 horas por dia, além de ser admiradora da filosofianatural de Newton.

Faminta por conhecimento, contratou as boas cabeças da ci-dade que estavam dispostas a ensiná-la sobre o que dissesse res-peito às novidades da química, da matemática, da física ou dabotânica. Entre seus mestres estava o filósofo e matemático PierreLouis de Maupertuis, membro da Academia de Ciências, um habituédo Café Gradot. Como aqueles estabelecimentos eram interditosàs mulheres, Emile, antecipando deste modo, com um século deantecedência, a romancista George Sand (nascida Lucile AuroreDupan), não teve receio em se vestir como homem para poderestar junto com o mestre e participar de suas discussões com osdemais pensadores e cientistas que lá se faziam presentes. Voltairedisse dela que "era um grande homem que havia nascido mulher!".

Quem, entretanto, usou e abusou da negra bebida foi o roman-cista Honoré de Balzac: obcecado em retratar a sociedade do seutempo, tratou de recorrer a doses impressionantes dela. Ele mesmosaía pela cidade para comprar, em vários bairros diferentes, os grãosnecessários para abastecê-lo. Testemunhos amigos disseram que apoção preparada pessoalmente por ele parecia tão consistente quan-to um caldo escuríssimo ou uma sopa. Prestava-se como um infalí-vel energético, fundamental para ele poder trabalhar de maneiraininterrupta, de 10 a 14 horas por dia, na sua extensa obra A comé-dia humana (La comédie humaine), 26 volumes perfazendo mais de10 mil páginas, que publicou entre 1829 e as vésperas da sua mor-te, em 1850.

Escritor infatigável, Balzac deixou um ensaio sobre os moder-nos excitantes: a aquavita, ou álcool em forma de licor, o açúcar, ochá, o café e o tabaco (in Traité des excitants modernes, 1838). Nes-te texto, ele inspirou-se em um famoso livro do epicurista francêsJ.A. Brillant-Savarin, autor do Fisiologia do gosto (Physiologie dugout), editado em Paris em 1825. O escritor foi considerado comoum dos fundadores do ensaio gastronômico, onde se encontramsuas preciosas observações sobre o arábico.

Mesmo alertando para os perigos da sua ingestão excessiva,Balzac enfatiza que a função maior daquela bebida é excitar odespertar dos espíritos (ainda que, disse ele, não faça efeito emgente aborrecida que, mesmo o sorvendo, continua aborrecida!).O café, escreveu, "põe o sangue em movimento, faz despertar osespíritos motores, excitação que precipita a digestão, afasta o sonoe permite por um longo tempo o exercício das funções cerebrais."Ele alcança a massa cinzenta "por meio de irradiações imperceptí-

A MARQUESA DE CHÂTELET VESTIU-SE DE HOMEM PARA

PODER ESTAR COM SEU MESTRE NO CAFÉ GRADOT

ACIMA, O CAFÉ DE FLORE, EM PARIS, QUE DESDE 1933 PREMIA O MELHOR ROMANCISTA DO ANO

BALZAC ESCREVEU: “O

CAFÉ PÕE O SANGUE

EM MOVIMENTO, FAZ

DESPERTAR OS

ESPÍRITOS MOTORES,

EXCITAÇÃO QUE

PRECIPITA A

DIGESTÃO, AFASTA O

SONO E PERMITE POR

UM LONGO TEMPO O

EXERCÍCIO DAS

FUNÇÕES CEREBRAIS."

o café e o Iluminismo

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veis e que escapam a qualquer análise (...) podemos supor que umfluido nervoso é o condutor da eletricidade que libera esta subs-tância que ela encontra e põe em ação dentro de nós." (Traité, pág.11). O compositor Giacomo Rossini confessou-lhe que doses decafé tomadas com certa regularidade permitiam que ele compu-sesse uma ópera em apenas 15 ou 20 dias.

O CAFÉ PARISIENSE NO SÉCULO XXQuem de modo mais radical assumiu a tradição dos iluministas

em sua fidelidade aos cafés foi a geração dos escritores existencialistasde Paris do após-1945. Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir tor-naram célebres os cafés de Flore, Le Deux Magots e Clos de Lilas. Ofamoso casal, invariavelmente, deixava as horas correrem escreven-do e trocando ideias naqueles estabelecimentos, onde ainda podi-am se encontrar com o romancista Albert Camus, o jazzista BorisVian, a novelista Françoise Sagan e o poeta Paul Eluard.

Simone, por sua vez, deixou uma notável descrição do que oscafés representavam na vida do seu grupo no seu volumoso OsMandarins (Les Mandarins, 1954), livro que lhe proporcionou o PrêmioGoncourt.

Ernest Hemingway, bem antes, na década de 1920, então jo-

ACIMA, À

ESQUERDA, O

LENDÁRIO LE

PROCOPE. À

DIREITA, LE DEUX

MAGOTS, UM DOS

PREFERIDOS DE

SARTRE E SIMONE

AINDA HOJE OS

CAFÉS FRANCESES

DÃO MOSTRAS DE

SUA LIGAÇÃO QUASE

QUE UNIVERSAL

COM AS LETRAS E

COM A INTELIGÊNCIA

vem fenômeno das letras norte-americanas, morando na capitalfrancesa com poucos recursos, confessou, no seu delicioso depoi-mento intitulado Paris é uma festa (A moveable feast, publicadopostumamente, em 1964), que gastando apenas uns trocos era pos-sível passar as tardes preenchendo a lápis seus inúmeros cadernoscom anotações que viriam a se transformar nas novelas que, tem-pos depois, circulariam com sucesso pelo mundo.

Era fácil, desde o século XIX, encontrar nos cafés celebridadesdo mundo das letras e das artes, tais como o pintor Ingres, o escri-tor norte-americano Henry James, que optara por viver na Europa,o poeta e ensaísta Chateaubriand, o fabuloso Picasso, o poetaApollinaire e os revolucionários russos exilados Lenin e Trotsky,sempre vistos disputando partidas de xadrez. Como também a pro-tetora dos escritores americanos que viviam na capital francesa, afamosa Gertrude Stein.

Ainda hoje, muitos deles procuram atrair a freguesia culta pro-porcionando encontros literários ou espaços para declamações depoemas, sendo que o Café de Flore chegou a instituir, desde 1933,um prêmio ao melhor romancista do ano. Não há melhor indicadorda estreita ligação quase que universal dos cafés com as letras ecom a inteligência.

o café e o Iluminismo

4948

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café no Brasilo ciclo do

50

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Não são poucas as singularidades que caracte-rizam o ciclo da cultura do café em terras brasilei-ras. A começar por sua perenidade ao longo dotempo. A rubiácea, como é chamado o grão emdiversos livros de história e economia, chegou aoBrasil em pleno período colonial, ainda no séculoXVII; foi contemporânea da passagem da famíliareal portuguesa pelo país; assistiu à declaração deindependência da colônia em relação à matriz; cru-zou os reinados de Pedro I e Pedro II; vivenciou astransformações geradas pela abolição da escrava-tura e, finalmente, a partir da instalação do regi-me republicano (tudo no século XIX), ganhou novofôlego, em especial no que diz respeito ao poder daclasse dominante paulista, que a partir de entãopassou a ostentar ainda maior grau de autonomia– até chegar a crise dos anos 30, já no século XX.Anos depois, a cultura retomou seu vigor, e hoje oBrasil busca, além da condição de maior produtormundial, também o posto de maior consumidor.

O café, talvez como nenhuma outra cultura na história do país,influenciou e foi influenciado por fatores sociológicos e culturais. Umdos mais significativos diz respeito à atração de imigrantes europeus,em substituição à mão-de-obra escrava nas lavouras, visto que osnegros, ao longo de todo o século XIX, acompanharam o movimentolento e gradual em direção à liberdade formal, até que chegasse aabolição definitiva, em 1888. Como recurso alternativo, os fazendeirose governantes paulistas desenvolveram programas para atrair cente-nas de milhares de imigrantes, a maioria vinda do Norte da Itália, osquais desembarcaram no porto de Santos em busca de uma nova vida.E ainda que nem tudo tenha sido flores, com muitos deles retornandopara seu país de origem, uma significativa parcela se estabeleceu parasempre em território brasileiro, colaborando na explosão produtiva do

O ciclo do café no Brasil

NA PÁGINA AO LADO,

ILUSTRAÇÃO COM

NOME CIENTÍFICO DO

CAFÉ (COFFEA ARABICA),

QUE PERTENCE À

FAMÍLIA DAS RUBIÁCEAS

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Page 25: Dos Cafezais Nasce um Novo Brasil

SEDUZINDO OU NÃO A MULHER DO GOVERNADOR GERAL, FOI

PALHETA QUEM APRESENTOU O CAFÉ AO BRASIL EM 1727

ACIMA, A VISÃO DE H. CAVALLEIRO SOBRE O MOMENTO EM QUE PALHETA RECEBIA SUA MISSÃO À GUIANA

HÁ REGISTROS DE QUE

O SARMENTO-MOR

RECEBEU ORDEM

EXPRESSADE

TENTAR TRAZER DE

CAIENA GRÃOS E

MUDAS DA RUBIÁCEA

oeste paulista, e em paralelo absorvendo a cultura do país, ao mesmotempo em que a influenciavam, transformando-a e condicionando-apara sempre, geração após geração.

O começo da saga brasileira daquele que viria a ser conheci-do como “ouro verde” remonta a 1727, momento associado a umnome, em particular, mas também a algum mistério, lenda oufantasia. O consenso está no fato de que o sargento-mor Francis-co de Melo Palheta, baseado em Belém, no Pará, foi convocadopara uma missão diplomática na Guiana Francesa, então conhe-cida como Caiena. O Tratado de Utrecht, após uma série deconflitos fronteiriços, havia sido assinado em 1713, obrigando aFrança a reconhecer a soberania portuguesa sobre aquele terri-tório. Quem cuidava dos interesses franceses na região era oGovernador Geral Claude D'Orvilliers, que em 1723 proibira seuscompatriotas de cruzarem a fronteira e pisarem em solo brasilei-ro. A visita de Palheta tinha como objetivo oficial justamentefiscalizar se o tratado estava sendo cumprido. Até aí, nenhumadúvida. A forma como Palheta teria dado conta de alcançar ou-tros objetivos, não declarados, é que suscita alguma dúvida. Háregistros de que ele recebeu como missão adicional (ou seria aprincipal?) trazer para o Brasil mudas ou sementes de café. Mascomo teria procedido para alcançar tal intento?

Conforme apuraram Bruno Bortoloto do Carmo e Pietro MarchesiniAmorim, assistentes de pesquisa do Museu do Café, em Santos, aversão romanceada da história dá conta que, durante um passeio emCaiena, Madame D'Orvilliers, mulher do Governador Geral, seduzidapelos encantos de Palheta, teria sorrateiramente colocado no bolso dosargento-mor brasileiro algumas sementes de café. Tal possibilidadeaté poderia fazer sentido, considerando que há documentos dandoconta que as instruções do oficial seriam as seguintes:

Se acaso entrar em quintal ou jardim ou roça aonde houvercafé, com pretexto de provar alguma fruta, verá se pode esconderalgum par de grãos com todo o disfarce e com toda a cautela.

Esta versão romanceada foi publicada em 1868 por Camilo Caste-lo Branco, sendo intitulada Memórias de frei João de São José Queirós,bispo do Grão-Pará. O livro narra as visitas pastorais do frei pelo inte-rior de sua diocese. Em uma das passagens, contava o frei que Palheta,o governador e sua mulher saíram a passeio e, generosamente, MadameD'Orvilliers teria colocado no bolso da casaca do oficial brasileirouma mão cheia de sementes de café – e tudo sob as vistas do marido.Considerando que o relato do frei é de 36 anos depois da efetivaentrada do cafeeiro no Pará, deduz-se que ele se baseou na históriacontada (ou inventada) pelos velhos agricultores da região.

O "porém" a ser colocado nesta hipótese reside no fato de que, atéaonde se sabe, em seu retorno ao Brasil Palheta teria pedido que lhefossem concedidos 100 casais de escravos e mais 50 indígenas de al-

O ciclo do café no Brasil

5554

Page 26: Dos Cafezais Nasce um Novo Brasil

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deias vizinhas, de forma a que pudessem cuidar da lavoura de "mil epoucos pés de café e três mil de cacau". Teria dito ainda o sargento-mor que haviam sido trazidas de Caiena

mil e tantas frutas que entregou aos oficiais do senado (verea-dores da câmara municipal) para que o repartissem com os mora-dores, como também cinco plantas, de que já hoje há muito noEstado. (Francisco de Melo Palheta, 1727)

Como se deduz, algumas poucas sementes furtivamente coloca-das no bolso de Palheta não poderiam ter dado origem às primeiraslavouras de café do Brasil. O mito, entretanto, perpetuou-se ao longodo tempo. Mas em 1927, Basílio de Magalhães esclareceria:

A intervenção, lendária ou real, dessa mulher, no caso daintroducção do café em nossas plagas, [...] seria tão somente ummotivo poético. Palheta adquiriu em Cayena cinco pés de cafeeiro

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e muito maior porção de sementes do que as que a tradição attribueá fidalga mão dadivosa de Mme. Claude D'Orvilliers. Como, po-rém, não se exalçaria a tradição, se a aformosentasse um gestofeminino! [...]

A PRIMEIRA FASETendo ou não havido jogos de sedução, o ano de 1727 marca a

entrada do café no país. Já em 1731 há registros da entrada na alfân-dega de Lisboa de café brasileiro cultivado no Maranhão. Somentepor volta de 1760, em razão das enormes distâncias e precários meiosde transporte de então, o café teria chegado ao Rio de Janeiro, e daípara sua entrada na história da economia e da cultura do país, foi umpasso. Inicialmente também utilizado como planta de quintal pelosfrades barbadinhos, que tinham o costume de usá-lo como ornamen-tação nas janelas, quem primeiramente produziu café em escala co-mercial teria sido o holandês João Hoppmann, em uma chácara doarraial de Mata-Porcos (onde hoje fica o bairro do Estácio). Dali, o

LISBOA REGISTRA

EM 1771 A CHEGADA

DE CAFÉ BRASILEIRO

CULTIVADO

NO MARANHÃO

ACIMA, O ARTISTA

PLÁSTICO

H. CAVALLEIRO

IMAGINA O MOMENTO

EM QUE PALHETA TERIA

RECEBIDO OS GRÃOS E,

DEPOIS, PLANTANDO A

PRIMEIRA MUDA

O ciclo do café no Brasil

Page 27: Dos Cafezais Nasce um Novo Brasil

café teria vivenciado sua expansão, inicialmente em pequenos sítiosem Botafogo, Urca, Tijuca, Andaraí e Jacarepaguá.

Por volta de 1790 há registros de que os cafeeiros teriam chegadoum pouco mais longe, mais exatamente à localidade de Areias, distri-to da Vila de Lorena, e em seguida a Resende, etapa que marcaria oinício de sua trajetória ao longo da margem do rio Paraíba do Sul. Aregião, mais comumente conhecida como Vale do Paraíba, cobre enor-mes porções do norte e oeste do Rio de Janeiro, do sul de Minas eestende-se ainda mais a sudoeste, chegando a São Paulo. À época,tudo mata fechada.

A produção em terras fluminenses, de início, era modesta. Es-tima-se que em 1800 tenham sido produzidas pouco mais de 55 milarrobas do precioso grão. Mas alguns fatores externos viriam a con-tribuir para que o mercado internacional se abrisse e a culturatomasse impulso em território brasileiro. A partir de 1791, com arevolta da população negra no Haiti, em paralelo à abolição daescravatura nas Antilhas e nas colônias francesas, a produçãomundial de café passaria por drástica redução, uma vez que eramestes os principais núcleos da lavoura cafeeira. Em paralelo, ocor-ria na Europa um impressionante aumento do consumo da bebida.No Brasil, a chegada da família real em 1808, que veio acompa-nhada de um séquito estimado em 15 mil pessoas, traria mudançasprofundas na economia interna do país, com o florescimento denovas atividades de comércio para atender demandas até entãoinexistentes. O país ainda passava por um período de estagnaçãoeconômica, em razão do encerramento do ciclo do ouro. Havia,portanto, alguma disponibilidade de recursos, a mão-de-obra es-crava aí incluída, e o desejo dos capitalistas de encontrarem umanova alternativa para seus investimentos. Por essa época, inicia-selenta e gradualmente a migração de antigos exploradores das mi-nas, em direção ao Vale do Paraíba e norte de São Paulo.

Consta que o Príncipe Regente Dom João VI teria incentivadoo plantio de café, tendo inclusive mandado trazer de Moçambiquesementes, que então germinavam em estufas. Nobres portugueses,franceses exilados, partidários de Napoleão e até mesmo o bispo doRio de Janeiro aderem ao cultivo da planta. Na época, chega aopaís um experimentado cafeicultor francês, que tivera plantaçõesem Santo Domingo e em Cuba. François Lecesne adquire terrasna Gávea e ali instala a Fazenda São Luís, passando a ser um nomede referência no que diz respeito às melhores técnicas de cultivodo grão em terras fluminenses. Em 1808, a produção brasileira játeria ultrapassado as 80 mil arrobas.

Estava, assim, se iniciando o primeiro momento da lavouracafeeira no Brasil, que seria marcado pela repetição do modeloprodutivo da cana-de-açúcar: cultura extensiva, mantida com tra-balho escravo, tendo a fazenda como unidade produtiva de refe-rência. A necessidade de muitos braços para dar conta das lavou-ras de café faria aportar em território fluminense um volume con-

LAVOURA CAFEEIRA

REPETE, DE INÍCIO,

MODELO DA CANA:

CULTURA EXTENSIVA,

MÃO-DE-OBRA

ESCRAVA E A FAZENDA

COMO UNIDADE

PRODUTIVA

NA PÁGINA AO

LADO, OBRA DE

FREDERICO BRIGGS,

INTITULADA

CARREGADORES

DE CAFÉ, DE 1845

59

O ciclo do café no Brasil

Page 28: Dos Cafezais Nasce um Novo Brasil

ção e de uma indústria". E complementa: "O complexo cafeeiropassa a incluir uma pequena componente que tem como fulcro apresença de um trabalho que conjuga ao braço a capacidade deconsumo".

Bem antes disso ocorrer, a província do Rio de Janeiro seria aprincipal protagonista do mercado do café no Brasil. Com vistas aatender ao crescente mercado europeu, o escoamento da produçãodo Vale do Paraíba se dava estrategicamente pelo porto da capital.Tratava-se de uma tarefa árdua, com o transporte sendo feito deforma lenta e penosa, em razão das distâncias e dos terrenos aciden-tados do vale, a serem percorridos em lombos de burros e mulas.Quem conduzia as tropas eram tropeiros escravos ou um guia, cha-mado arreador, que percorriam várias vezes por ano os caminhosque iam do Vale do Paraíba à capital. Como aponta Boris Fausto,"embora o hábito de consumir café se generalizasse no Brasil, o mer-cado interno era insuficiente para absorver uma produção em largaescala. O destino dos negócios cafeeiros dependia, e ainda hojedepende, do mercado externo". Foi a classe média, cada vez mais

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siderável de escravos, tanto via intensificação do tráfico quantopela mobilidade interna, já que o ciclo do ouro havia se encerradoe havia mão-de-obra escrava ociosa em Minas Gerais e no Nor-deste. As crescentes pressões da Europa pela extinção do tráfico,entretanto, colocariam em risco a sobrevivência das lavouras doRio de Janeiro a médio prazo, ameaça que mais tarde viria a seconfirmar, com a proibição definitiva da importação de escravos,em 1850, e efetivamente com a Abolição da Escravatura, em 1888.

Em sua fase paulista, já próximo do final do século XIX, a cul-tura do café encontraria uma alternativa em relação a este dilemaenfrentado pelos grandes proprietários de terras do Rio de Janeiro:a força de trabalho escrava seria substituída pelo braço do imi-grante europeu, em atividade remunerada. Estabeleceria-se, as-sim, uma diferença fundamental. Nas palavras de Paula Beigelmann,"enquanto na economia açucareira o cultivo da cana e o fabricodo açúcar constituem praticamente a atividade essencial única, aeconomia cafeeira, no auge da expansão, dá nascimento a um com-plexo no qual se inserem rudimentos de uma cultura de alimenta-

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PRODUÇÃO DO INÍCIO

DO SÉCULO XIX TINHA

COMO FOCO PRINCIPAL

O MERCADO EXTERNO

ACIMA, A OBRA

COMBOIO DE CAFÉ,

DE AUTORIA DE

DEBRET (1835)

O ciclo do café no Brasil

Page 29: Dos Cafezais Nasce um Novo Brasil

numerosa, nos Estados Unidos e na Europa, quem sustentou duran-te anos a fama que até hoje o café brasileiro possui.

Se por um lado a produtividade alcançada pelo grão nas terrasdo Sudeste brasileiro surpreendia, de outro as técnicas de cultivodo café eram bastante rudimentares, a tal ponto que enxada efoice eram considerados os artefatos essenciais para os cuidadosna lavoura. Em decorrência, à medida em que as terras viam re-duzidas sua capacidade produtiva, pela erosão ou exaustão, a la-voura extensiva levava à expansão das fronteiras, com a derruba-da de novas florestas – inclusive a da Tijuca, no Rio de Janeiro,que perdeu sua cobertura natural, a qual recuperaria só bem maistarde, a partir de 1853, com a desapropriação de fazendas, planta-ções, sítios e chácaras. Foi em decorrência desse movimentoexpansionista, rumo ao sudoeste do Rio de Janeiro, que o caféchegou a São Paulo, primeiramente na porção paulista do Vale doParaíba, passando por Guaratinguetá, São José dos Campos eTaubaté, e em seguida à região do planalto, por volta de 1850,mais especificamente Campinas, Jundiaí e Mogi-Mirim, onde ogrão encontraria condições topográficas bastante privilegiadas - eentão se consolidaria definitivamente como "ouro verde".

De comum em ambas as províncias, registre-se o fato de que, àépoca, a posse de terras, do ponto de vista formal, era assunto dosmais complexos, uma vez que as grandes extensões, herança do mo-delo de doação de capitanias e sesmarias, seguidamente provoca-vam rixas em razão de apropriações ilegais. Nas palavras de BorisFausto, prevalecia a lei do mais forte: "O mais forte era quem reuniacondições para manter-se na terra, desalojar posseiros destituídosde recursos, contratar bons advogados, influenciar juízes e legalizarassim a posse de terras". É de 1850 a Lei de Terras, primeiro instru-mento legal no sentido de estabelecer a compra como único meiolegítimo de ocupação das chamadas terras devolutas. Mas a falta deaparelhamento administrativo adequado à fiscalização não logrouimpedir o avanço das ocupações de fato.

Apesar das técnicas rudimentares, é preciso dizer que os in-vestimentos para se estruturar uma fazenda eram significativos,pois incluíam a derrubada da mata, o preparo da terra, o plantio,as instalações e a compra de escravos. Como alerta Boris Fausto,"se o cafeeiro é uma planta perene – ou seja, o plantio não precisaser renovado a curto prazo –, de outra parte as primeiras colheitassó ocorrem após quatro anos". Segundo o historiador, ao que tudoindica, os recursos para se implantar uma fazenda se originavam,principalmente, da poupança obtida com a grande expansão docomércio, após a vinda de Dom João VI para o Brasil. "Posterior-mente, foram os lucros obtidos com a própria cafeicultura e oscapitais liberados pela extinção do tráfico que se tornaram fontede investimento", explica Fausto.

Ao tempo em que as lavouras de café se espalham em territó-rio paulista, a porção fluminense do Vale do Paraíba segue sua

O ciclo do café no Brasil

APESAR DAS TÉCNICAS RUDIMENTARES, ESTRUTURAR

UMA FAZENDA EXIGIA INVESTIMENTOS CONSIDERÁVEIS

NA PÁGINA

AO LADO, A

COLHEITA DO CAFÉ

NO INÍCIO DO

SÉCULO XIX,

NA VISÃO DE

LAURENT DEROY

6362

Page 30: Dos Cafezais Nasce um Novo Brasil

trajetória vertiginosa de crescimento. Se no decênio 1821-1930 ocafé representava 18,4% dos oito principais produtos de exporta-ção no Brasil (juntamente com açúcar, cacau, erva-mate, fumo,algodão, borracha e couros/peles), na década seguinte estepercentual subiria para 43,8%. No decênio 1851-1960, com a pro-dução no Rio de Janeiro atingindo seu ápice, o café passaria arepresentar 48,8% do perfil exportador do país, chegando ao seuponto máximo no século XIX entre 1891 e 1900, com 64,5%. Não éà toa que surgiu a expressão "o Brasil é o vale."

Dizer que a produção do Rio de Janeiro atingiu seu ponto máxi-mo por volta de 1860, iniciando a partir daí sua decadência, podedar a ideia de que o processo de depauperamento das lavouras econsequente empobrecimento dos fazendeiros fluminenses foi re-pentino e imediato, o que não corresponde à verdade. Rio de Janei-ro e São Paulo, e em escala menor Minas Gerais e Espírito Santo,estiveram lado a lado, durante muitas décadas, compartilhando ariqueza gerada pelo café, ainda que a província fluminense lenta egradualmente tenha perdido espaço para a emergente São Paulo.Até porque, ainda que a incidência de pragas, a exaustão das terrase a iminente abolição da escravatura de fato tenham contribuídopara a diminuição da produtividade, surgem, a partir da segundametade do século XIX, diversas máquinas e equipamentos que, alémde permitirem a dispensa de parte da mão-de-obra escrava, facilita-vam o beneficiamento do café. Brunidores, ventiladores,despolpadores e os famosos engenhos Lidgerwood invadiram o mer-cado brasileiro após 1862, e contribuíram para que o Rio conseguis-se se manter com alguma dignidade no mercado do café.

Também nessa época foram realizadas grandes exposições, naci-onais e mesmo internacionais, uma delas na Argentina, em 1882.Nestas últimas, o Brasil se fez representar por produtos extrativistasda Amazônia, mas principalmente com a produção da agriculturade larga escala. Em 1876, por exemplo, o centenário da Indepen-dência dos Estados Unidos foi festejado com uma grande exposiçãona Filadélfia. Nada menos que 1.140 expositores brasileiros se fize-ram presentes, e por lá também esteve o imperador Dom Pedro II,que festejou a conquista de dois diplomas especiais: um para o cafée outro para as essências florestais. Além disso, outros 34 prêmiosforam conferidos aos expositores de café brasileiros, dos quais dezeram do Rio de Janeiro, dez de São Paulo, cinco de Minas Gerais,três de Santa Catarina e um do Paraná. É curioso constatar quetambém na exposição internacional de Amsterdã, em 1883, mesmocom as lavouras fluminenses estando a caminho da extinção, foramalguns municípios do Rio de Janeiro os melhor sucedidos na avalia-ção de amostras. Todas as medalhas de ouro foram conferidas a fa-zendeiros do Vale do Paraíba fluminense, enquanto das 11 medalhasde prata, seis ficaram com produtores do Rio de Janeiro, que ganha-ram, ainda, oito das 15 de bronze. Paraíba do Sul, Vassouras e Juizde Fora foram os municípios que mais se destacaram.

O ciclo do café no Brasil

LAVOURA

FLUMINENSE, MESMO

DEPOIS DE INICIADA

SUA DECADÊNCIA,

SEGUIU RECEBENDO

PREMIAÇÕES

NAS EXPOSIÇÕES

INTERNACIONAIS

NA PÁGINA AO

LADO, CASCATA DA

TIJUCA, DE LOUIS-

JULES-FRÉDÉRIC

(1835). FLORESTA

SERIA DEVASTADA

6564

Page 31: Dos Cafezais Nasce um Novo Brasil

6766

AUMENTO DA

DEMANDA OBRIGOU

FAZENDAS A

ADOTAREM A

ESPECIALIZAÇÃO E

DIVISÃO DO TRABALHONO ALTO, À ESQUERDA,

VISÃO DA PRECURSORA

FAZENDA PAU D’ALHO.

À DIREITA, CASA DE

MÁQUINAS DA FAZENDA

RESTAURAÇÃO

O ciclo do café no Brasil

AS FAZENDASEm meio à abundância de recursos, as antigas e modestas sedes

das primeiras fazendas do início do século XIX aos poucos vão sendosuperadas, e surgem residências notáveis, com dez, 12 ou até maisjanelas na fachada, muitas delas assobradadas, embasadas em pedra,de solidíssima taipa e pau-a-pique. A partir de 1830, quando o cafétoma a dianteira como principal produto na pauta de exportações doBrasil, estes estabelecimentos se transformam em centros quase autô-nomos de produção. Surge, assim, a especialização como ferramentagerencial dos núcleos produtivos. A força de trabalho passa a ser divi-dida em tarefas, como derrubada das matas, destocamento, preparoda terra, cuidado com os viveiros, plantio das mudas e colheita. Umoutro grupo se dedicava às operações de lavagem, despolpamento,brunimento, catação, secagem nos terreiros, ensacamento earmazenamento em tulhas.

Segundo o arquiteto e historiador Luís Saia, a Fazenda Pau d'Alho,em São José do Barreiro, no alto Vale do Paraíba, teria sido o primeiroestabelecimento agrícola da Capitania de São Paulo especialmente

montado para atender as necessidades e programas de uma fazenda decafé. Todas as atividades da fazenda, cercada por um muro de alvena-ria de pedra, voltavam-se diretamente para os terreiros, e apenas asede era isolada por jardim e pátios. A senzala havia sido construída noponto mais alto, em posição dominante. Na comprida tulha alpendrada,à direita do terreiro, eram executadas as tarefas de seleção earmazenamento. Em sua extremidade, um telheiro abrigava os equipa-mentos destinados ao beneficiamento, como uma bateria de pilões,acionada por roda d'água. À esquerda do terreiro localizava-se a resi-dência do capataz ou administrador, e no mesmo alinhamento haviamoutros compartimentos de trabalho onde possivelmente se localizavamengenhos de serrar, tendas de ferreiro, oficinas e olarias. Nesta fazendateria se hospedado o Príncipe D. Pedro, em sua viagem a São Paulo, em1822, ano em que seria declarada a Independência do Brasil. Adqui-rida pelo Instituto Brasileiro do Café em 1970, a fazenda foi inteira-mente restaurada pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Ar-tístico Nacional), e nela se pretendia instalar o Museu Nacional doCafé, projeto que não se concretizou.

Page 32: Dos Cafezais Nasce um Novo Brasil

69

A complexidade das tarefas transformou o braço escravo em es-teio destas organizações econômicas, que chegaram a reunir 350, 400e até 600 cativos, como aconteceu nas fazendas Senhora do Carmo eFortaleza, do Visconde de Guaratinguetá; do Resgate, do ComendadorManuel de Aguiar Valim; Boa Vista, do seu sogro, o ComendadorLuciano José de Almeida, em Bananal, e na própria Fazenda Paud'Alho, em São José do Barreiro, da família Ferreira de Sousa Airosa.Vem daí a expressão “O Brasil é o café, e o café é o negro”.

A jornada de trabalho de um escravo começava antes de clarearo dia, por volta de 4 ou 5 da manhã. Às 10h, o sino da fazenda anun-ciava o almoço, constituído basicamente de feijão, angu e farinha demandioca. Às vezes, um pedaço de abóbora ou inhame, e raramenteum pedaço de carne-seca ou toucinho. Às 13h, novo intervalo para ocafé, adoçado com rapadura, ou uma dose de cachaça, nos dias chu-vosos; finalmente, às 16h, jantava-se o que havia sobrado do almoço.

A concessão de títulos de nobreza a fazendeiros, em parale-lo, representava o reconhecimento de sua importância do pon-to de vista social. Desta forma, eles passavam a figurar ao ladode políticos, financistas, banqueiros, comerciantes e, em menorescala, médicos, professores e escritores, membros do corpo di-plomático, oficiais do Exército e da Marinha. Alfredo Taunay,um dos mais destacados historiadores do café, calcula que nosudeste brasileiro se poderiam contar até 300 titulares entre onobiliário imperial, o que corresponderia a cerca de 30% danobreza formada pela Coroa, incluindo-se aí lavradores, comis-sários e banqueiros de fazendeiros.

O primeiro título de nobreza concedido a um fazendeiro paulistado café teria sido concedido em 1846 ao sargento-mor ManuelMarcondes de Oliveira e Melo, o Barão de Pindamonhangaba. Co-mandante da Guarda de Honra de D. Pedro que acompanhou o prín-cipe em 1822, por ocasião da proclamação da Independência, o barãofoi grande fazendeiro do café em na Fazenda Mombaça, em socieda-de com seu irmão, o monsenhor Inácio Marcondes de Oliveira Cabral.Cerca de 90 fazendeiros paulistas de café foram distinguidos com títu-los nobiliárquicos entre 1846 e 1889.

A respeito da vida nas fazendas, Maria Paes de Barros, filha deum cafeicultor de meados do século XIX, descreveu os costumesda época, sob o ponto de vista dos fazendeiros, em um livro chama-do No tempo de dantes. Segundo a autora, as famílias passavam oano na cidade, mas no inverno, na época das colheitas, desloca-vam-se para as fazendas, carregando remédios, açúcar, farinha,esteiras, roupas e chapéus. Os jovens iam a cavalo, e as senhoras,de banguê. As crianças levavam uma vida mais solta, apesar decontinuarem com aulas de francês com mademoiselle. A autoraconta que foi trabalhoso convencer o pai a comprar tapetes para afazenda, pois ele achava desnecessário.

As famílias ficavam nas fazendas até que se acabasse o plantio eo alinhamento do café. Enquanto isso, comiam feijão e milho plan-

68

NA PÁGINA AO LADO,

FAZENDAS EM BANANAL,

GUARATINGUETÁ E

PINDAMONHANGABA, NA

VISÃO DE DEBRET

O ciclo do café no Brasil

CERCA DE 90

FAZENDEIROS

PAULISTAS DE CAFÉ

FORAM DISTINGUIDOS

COM TÍTULOS

NOBILIÁRQUICOS

ENTRE 1846 E 1889

Page 33: Dos Cafezais Nasce um Novo Brasil

tados no local, carne de porco salgada e bebiam o café torrado esocado no pilão pelas escravas. Como os fazendeiros possuíam maisde um estabelecimento, a família se deslocava de uma para outrafazenda. Na região de Campinas, antigas fazendas ainda hoje con-servam sinais de sua glória passada. Os pesados sobrados de entãotinham pouca mobília, grandes mesas de madeira, serviços de por-celana europeia, da Companhia das Índias, objetos de prata, corti-nas com tecidos caros, lustres de cristal da Boêmia e chão de largastábuas de madeira.

QUE PAÍS ERA AQUELEAntes de entrarmos na análise mais profunda dos dois fatores que

foram determinantes na explosão da produção cafeeira paulista, nasegunda metade do século XIX – o surgimento das ferrovias e a subs-tituição da mão-de-obra escrava pelo braço do imigrante europeu –,é interessante apresentar uma breve radiografia do Brasil à época doprimeiro e segundo reinados. Do ponto de vista da população, os 4,6milhões de habitantes registrados em 1819 passaram a 9,93 milhõesem 1872 e para 14,33 milhões em 1890. Em 1872, Minas Gerais conti-nuava a ser a província mais povoada, com aproximadamente 2,1 mi-lhões de habitantes, seguida da Bahia, com 1,38 milhão. Os mulatosrepresentavam 42% da população, os brancos ficavam com 38% e osnegros, 20%. Ainda no censo de 1872, apurou-se que somente 16,85%da população entre 6 e 15 anos frequentava escolas. Havia apenas 12mil alunos matriculados em colégios secundários, mas em contrapartidaestima-se que 8 mil pessoas tinham educação superior, o que denota oabismo entre a elite letrada e a massa de analfabetos ou com educa-ção rudimentar.

À época da chegada da família real, surgiram escolas de medicinae engenharia na Bahia e no Rio de Janeiro, onde Dom João VI seestabeleceu. "Mas do ponto de vista da formação da elite, o passomais importante foi a fundação da Faculdade de Direito de São Paulo(1827) e de Olinda/Recife (1828). Delas saíram os bacharéis que,como magistrados e advogados, formaram o núcleo dos quadros polí-ticos do Império", assegura Bóris Fausto.

Cabe acrescentar, ainda, que o Rio de Janeiro, com 522 mil habi-tantes em 1890, era o único grande centro urbano. Ali ficava o núcleodos divertimentos, bem como dos investimentos em transportes, ilu-minação, embelezamento da cidade. A seguir, vinham Salvador, Re-cife, Belém e só então São Paulo, com modestos 65 mil habitantes.São Paulo, entretanto, viria a crescer a taxas geométricas anuais de3%, entre 1872 e 1886, e de 8%, entre 1886 e 1890.

Voltando-se a 1828, Maria Luiza Marcílio, citada por MárioJorge Pires, explica por que São Paulo, impossibilitada à época detornar-se um centro de agricultura de exportação, acabou por trans-formar-se em local de depósito para as mercadorias da Europa e,ao mesmo tempo, entreposto de passagem para os produtos do in-terior da província: "Sua excepcional posição geográfica foi-lhe

NA PÁGINA AO

LADO, MULHER

PILANDO CAFÉ,

DE JOSÉ WASTH

RODRIGUES

(REVISTA ILUSTRAÇÃO

BRASILEIRA, 1927)

O ciclo do café no Brasil

EM CAMPINAS, ANTIGAS FAZENDAS AINDA CONSERVAM

SINAIS DOS SEUS TEMPOS DE GLÓRIA NO PASSADO

O RIO DE JANEIRO,

COM 522 MIL

HABITANTES EM 1890,

ERA O NÚCLEO DOS

DIVERTIMENTOS, BEM

COMO DOS MAIORES

INVESTIMENTOS

7170

Page 34: Dos Cafezais Nasce um Novo Brasil

vantajosa. Pela cidade transitavam as grandes tropas, que dos ter-ritórios do Viamão e de Curitiba dirigiam-se para os mercados doRio de Janeiro e zonas mineiras, das Gerais. A produção de açúcardas vilas do interior da Capitania (particularmente de Itu, PortoFeliz, Campinas e Piracicaba) passava pela Capital rumo ao portode Santos. No sentido inverso, as mercadorias provenientes dePortugal e de outras partes da Europa chegavam a São Paulo porintermédio do Rio ou de Santos: elas eram destinadas, ora à pró-pria cidade, ora à provisão do interior". Mário Jorge Pires acres-centa que, segundo a mesma autora, "esse foi o motivo pelo qualacabou desenvolvendo-se na cidade uma classe de mercadores,por vezes até poderosa, e assim nasceu o espírito de empresa entreos habitantes de São Paulo."

Curioso apontar também que em 1809, segundo Alcântara Ma-chado, não havia nomenclatura nas ruas e numeração dos prédiosda cidade. Foi nesse ano que, de ordem do Ouvidor Geral e com opropósito de facilitar o lançamento da décima urbana, a Câmaramandou numerar os prédios e inscrever nos logradouros públicos

os nomes por que eram conhecidos. Aparentemente a ordem nãofoi cumprida, pois em 1846, segundo aponta novamente Mário Jor-ge Pires, o Marechal Lima e Silva "recomendou numerar todas ascasas e intitular-lhes as ruas, consoante a prática adotada em to-das as cidades civilizadas."

É nesse momento histórico, ou seja, a segunda metade do sécu-lo XIX, em que o Rio de Janeiro ainda segue pontificando comomais importante núcleo urbano do país, que começam a surgir asferrovias, as quais transformariam completamente o cenário urba-no e econômico do Centro-Sul. A sobrevida do Vale do Paraíbacomo centro produtor e exportador de café, por exemplo, se deveem grande parte à inauguração, em 1858, da primeira estrada deferro do país. A Sociedade de Estradas de Ferro Pedro II, que dariaorigem à atual Central do Brasil, ligava as fazendas do Vale doParaíba, do sudeste de Minas Gerais e do norte de São Paulo aoporto do Rio de Janeiro. Como aponta Mário Jorge Pires, "as cida-des formadas à margem do rio Paraíba sempre estiveram mais vin-culadas ao Rio de Janeiro do que a São Paulo, e isto vale não só

7372

SURGIMENTO

DAS FERROVIAS

TRANSFORMOU

COMPLETAMENTE

OS CENÁRIOS

URBANOS DO PAÍS

ACIMA, A FAZENDA

PARAÍBA DO SUL,

EM TRABALHO DE

H. CLERGET (1861)

O ciclo do café no Brasil

Page 35: Dos Cafezais Nasce um Novo Brasil

O ciclo do café no Brasil

7574

para Vassouras, Pati do Alferes, Barra do Piraí, em terras fluminenses,como também para Bananal, Areias, Lorena e tantas outras, já emterritório paulista e próximas à capital".

Com a inauguração da ferrovia, primeiramente ligando Barra doPiraí ao Rio, o vínculo destas localidades com a Corte tornou-se ain-da mais estreito. O escoamento da produção das cidades paulistas,que era feito quase que exclusivamente pelos portos do litoral norteda província, e só depois chegando à então capital do país, para daliseguir para a Europa, tornou-se ainda mais intenso graças à ferrovia.Com uma mudança importante, do ponto de vista cultural e social:como o preço de uma passagem de trem era insignificante e a viagem,bastante rápida, os fazendeiros do Vale do Paraíba, sediados tanto emterritório fluminense quanto paulista, começaram a passar férias noRio, fazendo lá suas compras, indo à ópera e comprando ou mesmomandando construir residências particulares na sede da Corte.

Fenômeno semelhante se daria em São Paulo, a partir da cons-trução da São Paulo Railway, em 1866. A estrada de ferro ligavaSantos à capital paulista, e foi resultado de investimento de capi-tal inglês. Já no ano seguinte, a extensão da ligação da capital atéJundiaí fomentaria a concentração das atividades urbanas em SãoPaulo. Como para os ingleses não havia interesse em prolongar aferrovia além daquele ponto, coube a fazendeiros e capitalistasfinanciarem novos trechos. Estava nascendo, assim, a CompanhiaPaulista, que em 11de agosto de 1872 inaugurava o trecho ligandoJundiaí a Campinas, numa extensão de 45 quilômetros. Os barõesde Itapetininga, de Limeira, de Piracicaba, de Cascalho, de Tietê,de Atibaia, de Souza Queiroz, de São João do Rio Claro, deAntonina e de Itatiba, ao lado dos viscondes de Vergueiro e deIndaiatuba, mais Martinho Prado, Luiz Antonio de Souza Barros,os irmãos Souza Aranha, Antonio Pompeu de Camargo, Florianode Camargo Penteado, entre outros, são nomes que surgem nasreuniões preliminares de fundação da empresa.

A febre de escoamento da produção cafeeira por via férreatoma conta, por essa época, de toda a província. Em 1873, é inau-gurada a ferrovia Ituana, ligando Itu a Jundiaí, tendo à frente,entre outros, os fazendeiros José Elias Pacheco Jordão e o CondeParnaíba (Antonio de Queiroz Telles); em 1875, é a vez daSorocabana e da Mojiana, a primeira ligando São Paulo a Sorocabae a segunda entre Campinas e Mogi-Mirim, por iniciativa das fa-mílias Souza Aranha e Queiroz Telles. Em paralelo, uma interes-sante malha rodoviária servia como apoio para que a produçãochegasse mais celeremente até o porto de Santos, que vai suplan-tando o do Rio de Janeiro ao longo do tempo.

Como bem explicita Mário Jorge Pires, em sua obra Sobrados ebarões da velha São Paulo, "a ferrovia ampliou o comércio de outrosbens e, principalmente, reduziu a distância da capital até a fazen-da. Antes, as comunicações eram tão precárias que se tornavadifícil para um mesmo proprietário supervisionar duas ou mais la-

AS FERROVIAS DIMINUÍRAM AS DISTÂNCIAS EM RELAÇÃO À

CAPITAL E INCENTIVARAM O COMÉRCIO DE OUTROS BENS

ACIMA, DUAS VISÕES DE

CARLOS LINDE SOBRE A

ESTRADA DE FERRO D.

PEDRO II. NA PÁGINA AO

LADO, UMA VISTA GERAL

DA IMPERIAL CIDADE DE

SÃO PAULO, EM 1870

Page 36: Dos Cafezais Nasce um Novo Brasil

vouras um pouco distantes entre si. Isso obrigava os fazendeiros aresidirem grande parte do tempo nas próprias terras ou nos gran-des sobrados construídos nas cidades".

Por essa época, como aponta Thomas H. Holloway no impres-cindível estudo Imigrantes para o café, "o telégrafo, que acompa-nhou as ferrovias, permitiu que a elite de fazendeiros e comercian-tes se comunicasse rapidamente, vencendo as distâncias que se-paravam a fronteira do café, a Capital e o porto de Santos. Jornaislocais e conversas ao pé-de-ouvido, da venda da roça ao JockeyClub, serviam para estender a rede de comunicação. Mudançasno preço do café, a abertura de uma nova linha ferroviária, umcontrato do governo estadual para subsidiar mais imigrantes, osdanos da geada na zona da Alta Sorocabana, a escassez de mão-de-obra da Mogiana, a chegada de um navio de imigrantes – tudose tornava parte de um corpo comum de conhecimentos no planal-to ocidental."

Ademais, a estrada de ferro revolucionou o transporte e ex-pandiu grandemente a área de fácil acesso à costa. "O oeste deSão Paulo, antes uma selvagem área de fronteira cruzada pelosbandeirantes, parcamente povoada por índios e lavradores brasi-leiros, que produziam alimentos, gado e algum açúcar, tornou-se ocentro dinâmico da lavoura cafeeira do Brasil. Do ponto de vistada escala de produção, a era do Vale do Paraíba empalidece, emcomparação com o desenvolvimento no oeste de São Paulo nasdécadas subsequentes."

O estabelecimento da ligação direta entre São Paulo e Rio deJaneiro, concluído em 1877, traria impactos que ultrapassariam asquestões produtivas. É importante ressaltar que a possibilidade decontar com transporte e escoamento mais ágil das safras contri-buía na melhoria da qualidade do café exportado, com aconsequente valorização dos preços. Acontece que, no plano dacultura e da sociedade, passa a haver uma mais rápida circulaçãode livros, jornais e revistas editados, até então privilégio quaseque exclusivo de quem morava na Corte. Aqueles que se dedica-vam às artes e aos espetáculos agora podiam deslocar-se em rápi-das viagens de apenas 15 horas entre Rio e São Paulo, onde podi-am encontrar novos públicos. Para se ter uma ideia do impactocultural que a ligação férrea proporcionou, apenas de 1877 a 1888a cidade de Pindamonhangaba, então com pouco mais de 15 milhabitantes, recebeu a visita de uma companhia lírica italiana, umacompanhia espanhola de zarzuelas, uma companhia inglesa de pan-

O ciclo do café no Brasil

AQUELES QUE SE DEDICAVAM ÀS ARTES PODIAM DESLOCAR-SE EM VIAGENS DE APENAS 15 HORAS ENTRE RIO E SÃO PAULO

MAPA DO RIO E DE SÃO PAULO MOSTRA O TRAÇADO DA FERROVIA LIGANDO OS DOIS ESTADOS, ENTÃO PROVÍNCIAS

7776

Page 37: Dos Cafezais Nasce um Novo Brasil

ABOLIÇÃO IMINENTE

DA ESCRAVATURA

OBRIGOU

FAZENDEIROS DE SÃO

PAULO A BUSCAREM

ALTERNATIVA

DE MÃO-DE-0BRA

ACIMA, DUAS VISÕES

DA FAZENDA IBICABA. À

ESQUERDA, DESENHO

LITOGRAFADO. À

DIREITA, QUADRO DE

HENRIQUE MANZO

O ciclo do café no Brasil

tomimas, com 80 crianças, um circo e quatro companhias profissi-onais de teatro declamado, fato notável para a época e para umapequena localidade como aquela.

A ERA PAULISTA E OS IMIGRANTESDo ponto de vista da produtividade das lavouras paulistas,

Holloway enfatiza que as condições naturais do oeste de São Pauloeram (e ainda são) excelentes para o café. Uma camada de lava diábase,que um dia cobriu grande parte da área, se decompôs num solo poro-so, rico em ferro e potássio, de que a planta do café precisa. Em algu-mas áreas de maior concentração, tal solo adquire uma aparênciapurpurina. Essa é a terra roxa, pela qual São Paulo se tornou famosoentre as regiões cafeeiras do mundo. "Apenas cerca de 2% do planal-to, no entanto, são cobertos pela verdadeira terra roxa. Uma áreamuito maior tem solos vermelhos, chamados massapê e salmourão,quase tão bons quanto a terra roxa. (...) Mesmo nos solos menos fér-teis o clima é favorável ao café".

Foi na região da Alta Mogiana, a propósito, que surgiram as mais

extensas e produtivas fazendas de café do mundo. Em Campinas, asculturas estendiam-se em largas superfícies uniformes, cobrindo apaisagem a perder de vista e formando os famosos "mares de café". Porser uma região plana, a cultura cafeeira sofria menos com o esgota-mento do solo. Na zona de Ribeirão Preto, Francisco Schmidt, quechegou ao Brasil em 1858 com nove anos de idade e trabalhou comocolono, chegou a possuir 50 fazendas. Sua fortuna só seria fortementeabalada no século XX, com a crise mundial de 1929. Do extremo-oeste paulista, o café chegaria posteriormente também ao Paraná.

Ferrovias implantadas e terras produtivas à parte, acontece que aescravidão no Brasil estava com os dias contados. A partir de 1850,havia sido proibido o tráfico de escravos da África, e desde 1871 osfilhos de cativos nascidos no Brasil eram considerados libertos (Lei doVentre Livre). Com a iminente alteração nas relações de poder entresenhores e escravos, o que poderiam fazer os fazendeiros para segui-rem prósperos e abastados, imaginando-se que perderiam quase quede sopetão a enorme força de trabalho necessária para manter produ-tivas suas lavouras, a exemplo do que já acontecia no Rio de Janeiro?

Page 38: Dos Cafezais Nasce um Novo Brasil

Pois os paulistas encontraram uma solução que não apenas facilitoua transição do período da escravatura para o da sociedade livre, comotambém tornou possível uma tremenda expansão da lavoura cafeeiranas décadas seguintes. A imigração em massa de trabalhadores vin-dos especialmente do Norte da Itália para a fronteira ocidental deSão Paulo era esta saída, possibilidade que não era viável para osfazendeiros fluminenses, por falta de recursos.

O precursor nas experiências com mão-de-obra imigrante haviasido o senador Nicolau Vergueiro, proprietário da Fazenda Ibicaba,em Limeira. Foi ele quem, por volta de 1840, contratou, em regimede parceria, imigrantes portugueses, alemães, suíços e de outras na-cionalidades, para trabalhar em suas terras. Poderia ter sido o iníciobem-sucedido da imigração dirigida para São Paulo, mas nem tudodeu certo. Dívidas resultantes das despesas de viagem, de comprasde gêneros adquiridos no armazém da fazenda, mediante o paga-mento de juros, o custo do transporte do café em lombo de burro,bem como a desorganização, a falta de planejamento e o comporta-mento autoritário do proprietário nas relações com os colonos, moti-varam muitas denúncias de uma relação desigual, provocando re-volta e indignação na Europa, ao ponto de alguns países terem deci-dido proibir a imigração para o Brasil.

Apesar desta tentativa frustrada, outras iniciativas mais consis-tentes de fomento à imigração foram surgindo, e isso ainda antes doanúncio oficial do fim da escravidão. Em agosto de 1871, surgiu emSão Paulo a Associação Auxiliadora da Colonização e Imigração.Leis provinciais autorizarvam um apoio financeiro de até 900 contosde réis para apoiar ações que visassem a atrair imigrantes. Já em1881, a Assembleia Provincial organizou uma comissão para planejara instalação de uma hospedaria para receber os imigrantes. O pré-dio, adquirido no bairro do Bom Retiro, apesar de ter sido remodela-do em 1883, tinha capacidade para apenas 500 pessoas e estava loca-lizado em ponto distante das ferrovias. Dois anos depois, foi liberadanova verba, desta feita de 100 contos de réis, para a construção da-quela que viria a ser a Hospedaria de Imigrantes, inaugurada em1888, com capacidade para abrigar 4 mil imigrantes e localizada emum ponto privilegiado: a junção das estradas de ferro que penetra-vam na cidade de São Paulo, vindas do Rio de Janeiro e de Santos.

Como desde o início da década de 1880 já havia críticas à ma-neira como os imigrantes eram tratados no Brasil, inclusive com aedição de uma circular assinada pelo governo italiano descrevendoSão Paulo como "terreno inóspito e insalubre", em 1886 foi criada aSociedade Promotora da Imigração, cujo sucesso se deve em grandemedida a Martinho Prado Júnior, seu primeiro presidente. Senhor deescravos, fazendeiro de café, com simpatias políticas republicanas erepresentante da zona da Mogiana, que se encontrava em francaexpansão e, portanto, estava muito necessitada de mão-de-obra, PradoJúnior foi figura-chave na transição para o trabalho livre assalariado.

Uma das primeiras iniciativas para reverter a imagem ruim do

O ciclo do café no Brasil

A EXPERIÊNCIA FRUSTRADA DE VERGUEIRO NÃO IMPEDIU

QUE SURGISSEM OUTROS MODELOS DE RELACIONAMENTO

NA PÁGINA AO LADO,

FOTO DA HOSPEDARIA

DE IMIGRANTES,

COM 4 MIL VAGAS E

LOCALIZADA EM PONTO

ESTRATÉGICO

8180

Page 39: Dos Cafezais Nasce um Novo Brasil

Brasil na Europa foi a edição de um folheto de 60 páginas, com capacolorida e brilhante, tendo no miolo um grande mapa desdobrável deSão Paulo. Foram impressas nada menos que 80 mil cópias, nas versõesem português, italiano e alemão. Além de afirmar que em São Paulo"a maneira de vestir, mobiliar as casas e alimentar-se" estava em con-sonância com os costumes europeus, o material arrolava as facilidadesque estariam à disposição dos imigrantes, como transporte do Rio deJaneiro ou de Santos até São Paulo, comida para até oito dias e aloja-mento na hospedaria recém-inaugurada, incluindo tratamento médi-co gratuito e transporte ferroviário também inteiramente custeadoaté o destino final dos viajantes, no interior da província.

Como aponta Holloway, as entradas anuais de imigrantes eramem média inferiores a 6 mil no período entre 1882 e 1886. Com asmedidas anunciadas, chegaram mais de 32 mil deles em 1887, núme-ro que pulou para quase 92 mil em 1888. Era apenas o começo: "De1889 ao início do século seguinte, chegaram quase 750 mil estrangei-ros a São Paulo, dos quais 80% subsidiados. Da abolição à depressãode 1929, entraram perto de 2,25 milhões de imigrantes na província,que em 1886 contava com uma população de 1,25 milhão de habitan-tes", aponta Holloway.

Nem tudo correu às mil maravilhas na hospedaria, como, aliás,seria de se imaginar, diante de tal volume de viajantes recém-chega-dos. A desorganização imperava, e não foram poucos os casos de óbi-

O ciclo do café no Brasil

DA ABOLIÇÃO À DEPRESSÃO DE 1929, MAIS DE 2

MILHÕES DE IMIGRANTES DESEMBARCARAM NO BRASIL

ABAIXO, TRANSPORTE

DE SACAS DE CAFÉ NO

PORTO DE SANTOS. NA

PÁGINA AO LADO,

IMIGRANTES EM FRENTE

À HOSPEDARIA

Page 40: Dos Cafezais Nasce um Novo Brasil

tos, em especial de crianças, devido às más condições de higiene dolocal. Ainda assim a hospedaria cumpriu relevante papel.

Diante do excelente retorno da propaganda feita na Europa,tecendo loas às condições de vida e perspectivas de trabalho noBrasil – que encontrou acolhida em especial na Itália, país quepassava por uma forte crise de emprego no final dos século XIX –,surgiu um dilema: como os fazendeiros poderiam ter certeza deque os imigrantes que aportavam em Santos ou no Rio de Janeiroefetivamente seriam produtivos nas lavouras? De que forma pode-riam assegurar-se, por exemplo, que entre os viajantes não haveriacidadãos oriundos de zonas urbanas, em busca de melhores condi-ções de vida em relação ao que se passava na Europa, de economiadeprimida? Na prática, não havia de fato como comprovar se adeclarada profissão de agricultor correspondia à realidade. Foi as-sim que se decidiu estabelecer alguns critérios, a partir do atendi-mento dos quais seriam garantidos aos estrangeiros os subsídiosfinanceiros prometidos: todos aqueles que pretendessem vir para oBrasil sob contrato de trabalho deveriam fazer parte de unidadesfamiliares cuidadosamente definidas. Só eram admitidos, portan-to, casais com menos de 45 anos sem filhos; casais com filhos oupupilos, com ao menos um homem em idade ativa por família, eviúvos ou viúvas com filhos ou pupilos, com pelo menos um homemem idade ativa por família. Entre os dependentes da família quepodiam ser incluídos na passagem subsidiada estavam pais, avós,irmãos solteiros e cunhados e sobrinhos órfãos do chefe da família.

Uma vez instalados nas fazendas paulistas, haviam alguns ou-

O ciclo do café no Brasil

SUBSÍDIOS PARA

IMIGRANTES QUE

BUSCAVAM OS

CONTRATOS DE

TRABALHO ERAM

RESTRITOS ÀQUELES

QUE FAZIAM PARTE DE

UNIDADES FAMILIARES

ACIMA, IMIGRANTES TRABALHAM NA COLHEITA. NA PÁGINA AO LADO,

O TRABALHO DE SEPARAÇÃO DOS GRÃOS EM FAZENDA

84

Page 41: Dos Cafezais Nasce um Novo Brasil

O ciclo do café no Brasil

NA PÁGINA AO

LADO, VISÃO DO

TERREIRO DE UMA

FAZENDA DE CAFÉ

DO INÍCIO DO

SÉCULO XX

A CHAMADA

CLÁUSULA DE CULTIVO

DE ALIMENTOS ERA

UM INCENTIVO PARA

QUE MAIS E MAIS

FAZENDAS SURGISSEM

tros pontos sensíveis a serem atacados para que a relação de par-ceria prosperasse. Como salienta Holloway, "a renda monetária dotrabalhador dependia da produtividade dos pés de café sob seuscuidados, mas também dos preços do café no mercado. Embora oscontratos previssem que os parceiros dividiriam igualmente as even-tuais perdas na lavoura, na prática apenas em condições muitoseveras o dono da terra perdia parte do seu investimento. O par-ceiro agricultor, bem ao contrário, por mais que se empenhasse,dificilmente conseguia exceder o nível da subsistência, e logo caíaem débito com os proprietários das terras. Para os recém-chegadositalianos, uma geada violenta ou eventual baixa de preços no mer-cado cafeeiro não significavam apenas lucros menores ou perda deinvestimento: eram de fato uma ameaça a seu meio de vida".

Portanto, para que a política de atração de imigrantes efetiva-mente desse resultados, de pronto os proprietários das fazendas perce-beram que a lógica de relacionamento com aquela mão-de-obra es-trangeira teria de ser completamente distinta do modelo escravocrata.Em lugar de coerção, era preciso investir em uma política de incenti-vos adequados. Foi assim que uma reivindicação bastante comumentre os colonos terminou por ser atendida – e ao mesmo tempo esti-mulou que as fronteiras do café se expandissem continuamente. Comomencionado anteriormente, os ganhos decorrentes da dedicação ex-clusiva dos colonos ao café eram instáveis, pois eles estavam perigosa-mente sujeitos às variações de mercado, oscilações de preço, de climaetc. Em compensação, se lhes fosse dado o direito de plantar milho efeijão entre as fileiras de pés de café, poderiam assegurar ao menossua subsistência e, quem sabe, algum excedente. Além disso, comoum cafeeiro em geral precisa de quatro anos até a primeira safra,momento a partir do qual o pé de café passa efetivamente a competirpelos nutrientes da terra, de tempos em tempos os imigrantes se dispu-nham, e em alguns casos até mesmo exigiam, mudar de terras, demaneira a que fosse possível reiniciar o ciclo em outras fazendas queviessem a ser adquiridas pelos grandes proprietários, onde poderiammanter novas lavouras de subsistência em meio aos cafezais.

A chamada cláusula de cultivo de alimentos, assim, operavacomo incentivo para que os fazendeiros implantassem novos esta-belecimentos, a fim de seguirem atraindo e mantendo uma forçade trabalho que, mesmo sendo abundante – mais e mais imigran-tes seguiam chegando a Santos –, era, de outra parte, móvel. Ostrabalhadores do café já instalados no Brasil conheciam a reputa-ção individual dos fazendeiros, sabendo distinguir aqueles que efe-tivamente cumpriam sua palavra dos que ainda se apegavam aomodelo de coerção do tempo da escravatura, e, assim, não tinhampudores em romper os contratos, caso as condições de trabalhonão fossem as mais adequadas, buscando outros parceiros.

Se de um lado o crescimento da economia cafeeira era visível atémesmo ao observador mais casual, menos óbvia foi uma mudança qua-litativa resultado da experiência imigratória no oeste paulista. Como

86

Page 42: Dos Cafezais Nasce um Novo Brasil

O ciclo do café no Brasil

MULHERES PENEIRAM O CAFÉ JUNTO AOS CAFEEIROS

ESTRUTURA SOCIAL RURAL APRESENTAVA CRESCENTE NÚMERO

DE SÍTIOS PEQUENOS E MÉDIOS AO LADO DAS FAZENDAS

descreve Holloway, "ao lado dos brasileiros proprietários de grandesfazendas, a estrutura social rural apresentava um crescente númerode sítios pequenos e médios, adquiridos por imigrantes de primeirageração". Alguns estrangeiros residentes, bem-sucedidos no comér-cio ou na indústria, adquiriram propriedades rurais, mas também muitosdos imigrantes que se tornaram proprietários de fazendolas operadaspelo trabalho começaram provavelmente como colonos do café". Nas-cia, assim, diferentemente do modelo baseado na mão-de-obra escra-va, o embrião de um mercado consumidor cuja renda significaria ofomento de toda a economia da província. Em paralelo ao nascimentodesta classe de pequenos e médios proprietários, uma boa parte dosimigrantes optou por se dirigir para os núcleos urbanos.

PARA ALÉM DOS ITALIANOS NAS LAVOURASO senso comum costuma associar o fluxo imigratório do final do

século XIX e início do século XX aos italianos, o que não deixa decorresponder aos fatos, pois estes se constituíram no maior grupo deuma única nacionalidade. As estatísticas apontam, entretanto, queentre 1887 e 1930, os italianos representaram menos da metade detodos os imigrantes, ainda que fossem o grupo preponderante – eleseram 46% de todos os imigrantes (percentual fortemente influencia-do pelo período 1887-1900, quando chegaram a corresponder a 73%do total). Se contabilizado apenas o período 1900-1930, é possível ve-rificar que a distribuição das nacionalidades foi mais diversificada.Os italianos eram 26% do total, enquanto os portugueses eram 23% eos espanhóis, 22%. As outras nacionalidades alcançaram 28%. Naúltima categoria, o mais importante grupo foi o de japoneses, quecomeçaram chegando em pequeno número, em 1908, e se transfor-maram em uma corrente contínua, depois de 1917. Entre 1911 e 1930,cerca de 96 mil japoneses imigraram para São Paulo, juntando-se aportugueses, espanhóis e italianos no trabalho nas fazendas de café.

Outro grupo com papel relevante foi o dos sírios-libaneses, queentre 1911 e 1920 chegaram em número de 18 mil a São Paulo. Al-guns deles sem dúvida trabalharam nas lavouras, mas os sírios erammais comumente identificados com o comércio itinerante de miude-zas. Forneciam boa parte dos utensílios domésticos e outras mercado-rias que os trabalhadores das fazendas consumiam.

A contribuição de imigrantes de diversas nacionalidades, queteve como resultado o enriquecimento dos fazendeiros paulistas,se deu também de forma marcante nos núcleos urbanos, em espe-cial na capital. Sobretudo a partir da proclamação da República,em 1889, São Paulo valeu-se da autonomia adquirida a partir dosconceitos de federação. Assim, a "europeização" da elite paulista,que já se verificava mesmo antes da inauguração das vias férreasligando a capital a Santos ou ao Rio de Janeiro, intensificou-se. Apaisagem urbana passa a sofrer as influências de imigrantes arqui-tetos, mestres de obras (os capomastri), artífices qualificados devárias nacionalidades, que afluíram para a cidade.

A CONTRIBUIÇÃO DOS

IMIGRANTES NO

ENRIQUECIMENTO DOS

FAZENDEIROS

PAULISTAS SE DEU

TAMBÉM DE FORMA

MARCANTE NOS

NÚCLEOS URBANOS

8988

Page 43: Dos Cafezais Nasce um Novo Brasil

A MORADIA PASSOU

A REPRESENTAR O

SÍMBOLO PELO QUAL

OS FAZENDEIROS

EXPRESSAVAM SUA

INCONTESTÁVEL

POSIÇÃO DE ELITE

ECONÔMICA E SOCIAL

ACIMA, À ESQUERDA,

RESIDÊNCIA DE

MARTINHO PRADO JR

EM SÃO PAULO.

À DIREITA, O PALÁCIO

DE VERIDIANA

SILVA PRADO

O ciclo do café no Brasil

No que tange aos grandes fazendeiros, há registros de que boaparte deles costumava passar o inverno na Capital com suas famílias,dispendendo grandes somas naquela que era o centro da vida espiri-tual, social e comercial do estado. Lenta e gradualmente, as famíliasricas começam a dedicar mais tempo a São Paulo, em especial filhos enetos dos primeiros barões do café. Com sua presença, a cidade ganhaares mais sofisticados. Como atesta Mário Jorge Pires, "entre os novoshábitos estava o de empregar extensa criadagem estrangeira:governantas alemãs e francesas, pajens, mordomos, criados para dife-rentes e específicas funções. O requintado costume europeu de pas-sear a cavalo tinha seus mais frequentes apreciadores em São Pauloentre os netos e bisnetos do Barão de Iguape que, segundo consta,saíam pela Avenida Higienópolis, subiam a Consolação ou a AvenidaAngélica, para daí atingirem a Paulista." E acrescenta Pires: "Essegrupo de Higienópolis introduziu, por meio de seu prestígio social,várias novidades na cidade, como o ciclismo, o futebol, o automobilis-mo (...) e os esportes aéreos. Antonio Prado Jr. e os filhos do CondeÁlvares Penteado, Silvio e Armando, tinham um apartamento perto

de Saint-Cloud para praticar esportes aéreos, efetuando vários voosem balões e aeroplanos.

É no final do século XIX que nasce a moda de morar com re-quinte. Foi o caso de Veridiana Silva Prado, filha do Barão de Iguape,cuja família morava em uma casa de taipa do século XVIII, encosta-da à igreja da Consolação. Pois em 1884 Veridiana manda construirum enorme palácio em Higienópolis. "A moradia passou a represen-tar, de forma saliente, o símbolo pelo qual os fazendeiros expressa-vam sua incontestável posição de elite econômica, social e, pelaadoção do novo estilo de vida, também cultural", atesta Pires. Ecomplementa: "Alemães, franceses, italianos e demais imigrantesde outras nacionalidades edificaram residências com bases nos maisvariados estilos. (...) São Paulo tornou-se cosmopolita não apenasporque nela vivia grande quantidade de imigrantes de várias naci-onalidades, mas porque a aparência da cidade também tornou-seeclética, dada a variedade arquitetônica que ocorreu, principal-mente, no final do período do café.".

Ainda segundo Mário Jorge Pires, não há dúvida de que muitos

9190

Page 44: Dos Cafezais Nasce um Novo Brasil

O ciclo do café no Brasil

9392

OS IMIGRANTES

TIVERAM PAPEL

DECISIVO TAMBÉM

NAS EMPRESAS

MANUFATUREIRAS DA

CAPITAL. EM 1893, EM

70% DELAS HAVIA

ESTRANGEIROS

ACIMA, À ESQUERDA, A

RECÉM-INAUGURADA

AVENIDA PAULISTA.

À DIREITA,

COMENDADOR LUCIANO

JOSÉ DE ALMEIDA E

MARIA JOAQUINA DE

ALMEIDA, EM

RETRATOS DE 1849

descendentes de fazendeiros mudaram-se para bairros como CamposElíseos e Higienópolis, assim como para a Avenida Paulista, mas oautor argumenta que as três regiões estavam longe de ser um redutoexclusivo dos fazendeiros do café. Especificamente no caso da Aveni-da Paulista, inaugurada em 8 de dezembro de 1891, Pires asseveraque, desde o início, a avenida manteve a tendência de tornar-se umreduto, não de fazendeiros, mas de todo e qualquer imigrante enri-quecido. "Apesar de nela residir em 1903 o então rei do café, Francis-co Schmidt, considerado, em certa época, o maior produtor de cafédo universo, segundo Afonso de Taunay, a avenida abrigou, sobretu-do, as fortunas de estrangeiros e seus descendentes, saídas da indús-tria, do alto comércio e da prestação de serviços".

Também a respeito dos imigrantes que preferiram os núcleos urba-nos, atesta Bóris Fausto que "tiveram papel fundamental nas empresasmanufatureiras da capital, nas quais, em 1893, 70% de seus integran-tes eram estrangeiros. Na indústria do Rio de Janeiro, a porcentagemera menor, mas, mesmo assim, muito expressiva: 39% em 1890". Aindasegundo Fausto, "o caminho do imigrante para a condição de indus-

trial teve variantes. Alguns partiram quase do nada, beneficiando-sedas oportunidades abertas pelo capitalismo em formação em São Pau-lo e no Rio Grande do Sul. Outros vislumbraram oportunidades naindústria, por serem importadores. Essa atividade facilitava contatospara importar maquinaria e era uma fonte de conhecimento sobreonde se encontravam as possibilidades de investimento mais lucrati-vo. Os dois maiores industriais italianos de São Paulo – Matarazzo eCrespi – começaram como importadores."

A CRISE DA SUPERPRODUÇÃOA explosão da produção do café nos inícios do século XX era

inevitável, e foi decorrência da incidência de diversos fatores eco-nômicos e sociais: os grandes proprietários estavam capitalizados eportanto não havia por que deixarem de investir na aquisição denovas terras; o volume de imigrantes que escolhiam o Brasil paratrabalhar seguia crescente, garantindo-se, assim, mão-de-obraabundante; o oeste paulista, onde o café encontrou excepcionalcondição geográfica e climática, seguia oferecendo áreas ainda

Page 45: Dos Cafezais Nasce um Novo Brasil

O ciclo do café no Brasil

COM AS MEDIDAS ARTIFICIAIS DE PROTEÇÃO, A PRODUÇÃO

EXPORTÁVEL DE CAFÉ VIVENCIOU NOVA EXPLOSÃO

NA PÁGINA AO

LADO, IMAGEM DO

PREGÃO DOS

NEGÓCIOS NA

BOLSA DE SANTOS

9594

não exploradas. Com isso, a produção brasileira, que havia puladode 3,7 milhões de sacas de 60 quilos, em 1880-81, para 5,5 milhões,em 1890-91, alcançaria nada menos que 16,3 milhões, em 1901-02. Nas palavras de Celso Furtado, "as condições excepcionais queoferecia o Brasil para essa cultura valeram aos empresários brasi-leiros a oportunidade de controlar três quartas partes da ofertamundial desse produto. Essa circunstância é que possibilitou a ma-nipulação da oferta mundial de café".

Mas como seria possível alcançar-se a valorização dos preços,diante de tão abundante oferta? Furtado acrescenta: "Os empre-sários brasileiros logo perceberam que (...) tudo de que necessita-vam eram recursos financeiros para reter parte da produção forado mercado, isto é, para contrair artificialmente a oferta. (...) Aideia de retirar do mercado parte desses estoques amadurece cedono espírito dos dirigentes dos estados cafeeiros, cujo poder políticoe financeiro fora amplamente acrescido pela descentralização re-publicana." É neste contexto que surge o famoso Convênio deTaubaté, celebrado em fevereiro de 1906, quando se definem asbases da política de "valorização" do produto. Sinteticamente, oconvênio previa que o governo compraria os excedentes da produ-ção, e que o financiamento dessas compras se faria com emprésti-mos estrangeiros. O serviço destes empréstimos seria coberto comum novo imposto cobrado em ouro sobre cada saca de café expor-tada. Por fim, o documento previa que, a fim de solucionar o pro-blema a longo prazo, os governos dos estados produtores deveriamdesencorajar a expansão das plantações.

Como em um primeiro momento os preços do café voltaram apatamares atraentes, e considerando que não havia melhor opçãode investimento, os capitalistas brasileiros seguiram aportando re-cursos na produção de café. E assim criou-se um círculo vicioso.Com as medidas artificiais de proteção que se sucederam, a pro-dução exportável de café vivenciou nova explosão. Entre 1925 e1929, ano da crise mundial, o crescimento foi de quase 100%: au-mentou de 15,761 milhões de sacas para 28.942 milhões. Uma fes-ta que duraria pouco, mas ainda assim geraria muita riqueza.

Em meio ao conturbado período, surgiu em Santos, desde fi-nais do século XIX o maior porto exportador de café do país, aBolsa Oficial de Café. O projeto se iniciou em 1914. A Bolsa co-meçou a operar efetivamente a partir de 28 de abril de 1917, inicial-mente em salão alugado no centro da cidade. O expediente en-volvia aspectos ligados à organização e centralização de operaçõescomerciais, informações e registros de negociações realizadas pe-los corretores de café no mercado e serviço de classificação doproduto. O período de funcionamento na parte térrea do edifíciosituado na esquina das ruas XV de Novembro e Santo Antônio(atual Rua do Comércio) foi de poucos anos. Apenas o suficientepara a conclusão das obras da grandiosa sede própria da Bolsa,inaugurada pelo Governo do Estado de São Paulo em 1922.

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O ciclo do café no Brasil

9796

COM GETÚLIO NO

PODER, TENDÊNCIA À

CENTRALIZAÇÃO DAS

DECISÕES ENCERRA

PERÍODO DE

AUTONOMIA REGIONAL

ACIMA, À ESQUERDA,

VISUAL

CONTEMPORÂNEO DA

BOLSA DE SANTOS.

AO LADO, A CAFETERIA,

CUJA QUALIDADE É

RECONHECIDA PELA ABIC

A construção revela a arquitetura típica do ecletismo que ca-racterizou as mais importantes obras do período. Cúpulas de cobre,grandes figuras escultóricas, vitrais, mosaicos de mármore e robus-tas colunatas de granito são expressões de riqueza e prosperidadedo ciclo cafeeiro no país e, ao mesmo tempo, representam amaterialidade do desejo de converter o edifício da Bolsa no "Palá-cio do Porto de Santos".

Nos dias atuais, a imponência arquitetônica da edificação semantém. Apesar do adensamento urbano ocorrido na região nasúltimas décadas, a Bolsa segue sendo o edifício mais suntuoso eemblemático da Baixada Santista. A elevada torre do relógio,com mais de 40 metros de altura, se impõe, à frente do porto,como importante referência paisagística e temporal da cidade. Oedifício passou por restauração, concluída em 1998, a qual tor-nou o prédio um efetivo monumento histórico. Dentro de umaconcepção moderna e versátil, o local passou a oferecer instala-ções adequadas inclusive para o funcionamento do Museu doCafé e de uma cafeteria. No dia 12 de março de 2009, o Palácio

da Bolsa Oficial de Café foi oficialmente tombado pelo Institutodo Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Com fluxodiário de 600 pessoas e venda de aproximadamente 450 xícarasde café por dia, a Cafeteria do Museu é premiada pela Associa-ção Brasileira da Indústria de Café (Abic) com o status Premium,dentro do programa Circulo do Café de Qualidade, deabrangência nacional.

Com a revolução de 30 e a chegada ao poder de Getúlio Vargas,de início à frente de um governo provisório, mais tarde na condi-ção de ditador, o Brasil passa a se debater entre a continuidade dopoder regional e a tendência à centralização das decisões. Apoia-do pelos tenentes, Getúlio assume o Poder Executivo e também oLegislativo, ao dissolver ainda em 1930 o Congresso Nacional, oslegislativos estaduais e municipais. Todos os antigos governadores,com exceção do de Minas, foram demitidos, e em seus lugaresforam nomeados interventores federais.

No que se refere a São Paulo, em maio de 1931 o controle dapolítica do café passa do Instituto do Café do Estado de São Paulo

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O ciclo do café no Brasil

98

para o Conselho Nacional do Café (CNC), órgão que acabou sendoextinto em 1933 e substituído pelo Departamento Nacional do Café,que, este sim, significou a efetiva federalização da política cafeeira.Antes disso, ainda em 1931, um decreto estabeleceu que o governofederal compraria todos os estoques existentes no país em 30 de ju-nho de 1931, ao preço mínimo de 60 mil-réis. Uma parcela do pro-duto seria destruída fisicamente, a exemplo do que já havia sidofeito na Argentina, com a uva, e na Austrália, com rebanhos decarneiros. Além de lavouras inteiras terem sido abandonadas e mi-lhares de pés de cafeeiros arrancados do solo, o café também foiqueimado e jogado ao mar. Como ressalta Bóris Fausto, "o esquemabrasileiro teve longa duração, embora alguns de seus aspectos te-nham sido alterados no correr dos anos. A destruição do café sóterminou em julho de 1944. Em 13 anos, foram eliminados 78,2 mi-lhões de sacas, ou seja, uma quantidade equivalente ao consumomundial de três anos".

Atualmente o Brasil é o maior produtor mundial de café, sendoresponsável por 30% do mercado internacional, volume equivalenteà soma da produção dos outros seis maiores países produtores. É tam-bém o segundo mercado consumidor, atrás somente dos Estados Uni-dos. As áreas cafeeiras estão concentradas no Centro-Sul do país,onde se destacam quatro estados produtores: Minas Gerais, São Paulo,Espírito Santo e Paraná. A região Nordeste também tem plantaçõesna Bahia, e da região Norte pode-se destacar Rondônia. A produ-ção de café arábica se concentra em São Paulo, Minas Gerais, Paraná,Bahia e parte do Espírito Santo, enquanto o café robusta é plantadoprincipalmente no Espírito Santo e em Rondônia.

PRODUÇÃO DE CAFÉ

ARÁBICA SE

CONCENTRA NO

CENTRO-SUL DO PAÍS,

ENQUANTO O CAFÉ

ROBUSTA É CULTIVADO

NO ESPÍRITO SANTO

E EM RONDÔNIA

À ESQUERDA, GRÃOS

COLHIDOS EM MINAS

GERAIS. À DIREITA,

GRAVURA DE 1932

RETRATA CAFÉ SENDO

JOGADO AO MAR

Page 48: Dos Cafezais Nasce um Novo Brasil

artes ena cultura

100

o café nas

Page 49: Dos Cafezais Nasce um Novo Brasil

o café nas artes e na cultura

Tendo o café brasileiro ultrapassado os séculosXVIII, XIX, XX e chegado ao século XXI em plenovigor, com altos e baixos, do ponto de vista econô-mico, mas sempre perfazendo uma trajetória plenade histórias reais ou fantasiosas, adornada por per-sonagens e tipos os mais interessantes, é de se admi-rar que o grão e tudo o que envolve seu cultivo ecomercialização não tenham gerado uma conside-rável produção artística, em especial na literatura.Podem-se contar nos dedos os romances que de al-guma forma têm o ambiente das lavouras de cafécomo pano de fundo. Mesmo nas artes plásticas,não são muitos os nomes de destaque que se dedi-caram a pintar o café e seu universo, com exceção,obviamente, de Cândido Portinari, o maior pintorbrasileiro em todos os tempos.

Pois entre os artistas plásticos que foram atraídos para o Brasile suas belezas tropicais no século XIX (excetuados os naturalistas,obviamente), um dos que deixou maior quantidade de obras rela-cionadas ao café foi Antonio Ferrigno. Italiano da região de Salermo,chegou a São Paulo em 1893, com 30 anos de idade. Pintor feito ejá reconhecido em sua terra-natal, Ferrigno veio à procura de no-vos temas e paisagens. Depois de pintar algumas obras sobre a ci-dade de São Paulo, o italiano recebeu uma encomenda de ManoelErnesto da Conceição para pintar a Fazenda Bom Jardim. O qua-dro acabou indo para Paris, onde Conceição mantinha uma loja deexportação de café. Antes de cruzar o Atlântico, a obra integrouuma mostra com outros trabalhos que retratavam vistas de cafe-zais, colheitas e o panorama de uma colônia.

Atualmente, há seis obras de Ferrigno no Museu do Ipiranga,representando a Fazenda Santa Gertrudes e todas as fases do tra-tamento do café. Os colonos, provavelmente italianos, são retrata-dos nos mais diversos ambientes, de forma didática, de maneiraque observando-se as obras tem-se uma exata noção de como secultivava o café, o tipo de terreno e a disposição das plantas.

No Rio de Janeiro, o alemão George Grimm foi um dos maioresexpoentes em pintura de paisagem. Convidado a lecionar na Aca-demia de Belas Artes, inovou, levando seus alunos para pintar ao

ABAIXO, IMAGEM

DO QUADRO

O LAVADOURO,

DE ANTONIO FERRIGNO

Page 50: Dos Cafezais Nasce um Novo Brasil

ar livre, o que terminou por resultar em seu afastamento da insti-tuição. Grimm era encantado pelas paisagens brasileiras, que re-produzia com grande fidelidade e realismo. Depois que deixou aacademia, mudou-se para Minas, retornando mais tarde à regiãocafeeira fluminense, na região de Valença, Bemposta e São Josédo Rio Preto. Realizou diversas telas das fazendas com seus cafe-zais, sedes enormes e amplos terreiros.

Entre os brasileiros, José Wasth Rodrigues faz parte do time depintores documentaristas do começo do século XX. Ao retornarde estudos em Paris, dedicou-se a pintar paisagens realistas dointerior brasileiro, trabalhando com os contrastes de luz e sombra,cores vivas, especialmente nos verdes e na terra roxa.

Já Manabu Mabe, o premiadíssimo pintor japonês que se na-turalizou brasileiro em 1960, é um exemplo típico de como osjaponeses se integraram à cultura brasileira, via lavoura do café,ainda que esta temática não tenha sido diretamente responsávelpor sua consagração. Mabe nasceu em 1924, na localidade deTakara, na vila e atual cidade de Shiranui. Quando completou10 anos, seu pai, Soichi Mabe, em companhia da mulher, Haru, edos cinco filhos (Mabe era o primogênito), viajou para o Brasil.A família inicialmente se instalou em Birigui, interior de SãoPaulo, mas logo depois mudou-se para Guararapes, e dois anosmais tarde, em 1939, para Lins.

"O que nos esperava era um serviço novo e desconhecido. Mashavia uma missão a cumprir. Nós, imigrantes, buscávamos no Bra-sil um mundo novo", escreve Manabu em sua autobiografia. As

GEORGE GRIMM

INOVOU AO LEVAR

SEUS ALUNOS PARA

PINTAR AO AR LIVRE.

ACABOU TENDO QUE

SAIR DA ESCOLA

DE BELAS ARTES

ACIMA, TELA DE CLOVIS GRACIANO (1954). AO LADO, A FAZENDA

SANT'ANNA DO CALÇADO, PINTADA PELO ALEMÃO GEORGE GRIMM, PINTOR DE PAISAGENS

o café nas artes e na cultura

COLHEDORES DE CAFÉ,

Page 51: Dos Cafezais Nasce um Novo Brasil

plantações de café fizeram parte das paisagens que o garoto admi-rava e gostava de retratar. "Desde criança sempre gostei de dese-nhar, e trouxe para o Brasil os crayons que usava na escola primáriado Japão. (...) Voltei a desenhar novamente. Isto era possível ape-nas nas horas de folga do serviço de cafeicultura, como nos dias dechuva ou aos domingos".

Manabu relembra que foi apenas em 1945 que teve sua primei-ra experiência com tinta a óleo. "Naquele ano, uma intensa geadaarruinou toda a plantação de café, e fomos forçados a descansar.Vi uma caixa de tinta em uma livraria da cidade e não resisti àvontade de experimentar", recorda o artista. A partir de 1956,Manabu produz seus primeiros trabalhos não-figurativos, ao mes-mo tempo em que a administração do cafezal, que havia compradoem 1948, exigia-lhe demasiada atenção. Decide, então, vender asterras e mudar-se para São Paulo, onde daria início a uma carreiraconsagradora.

Foi um quadro pintado ainda na época da fazenda que abriu-lhe as portas dos mais importantes salões de exposições da época:Natureza morta com moinho de café, de 1951. Sobre o trabalho,Mabe escreveu: "A cidade de Lins fica a 400 km a nordeste de SãoPaulo, e a minha fazenda de café ficava a 30 km da cidade. Esta éa obra que levei à exposição nacional no Rio de Janeiro e foi sele-cionada. Naquela época, o meu desejo era expor em três exposi-ções por ano: o Salão Nacional de Arte Moderna do Rio de Janei-ro, o Salão Paulista de Arte Moderna e a Exposição da Colônia, osdois últimos em São Paulo". Em 1955, com 31 anos, Manabu pintasua primeira obra abstrata, e a partir de então sua carreira decola.

Anos mais tarde, na década de 1970, Manubu relata a ale-gria de passar seu aniversário em família, e recorda seus temposna lavoura de café. "No dia 14 de setembro toda família se reú-ne. É meu aniversário. Esta data me enche de prazer e evocarecordações sobre a minha vida. Aqui, no hemisfério sul, inva-riavelmente chove. Quando isso ocorria, nos tempos do cafezal,não se trabalhava, e eu podia pintar à vontade. Assim, a chuvadeu origem ao pintor Manabu Mabe. Com certeza, é uma dádi-va ser agraciado por ela no dia do meu aniversário, como sem-pre acontece. (...) Não me ocorre a lembrança de ter comemo-rado um aniversário sequer quando trabalhava na lavoura decafé". Manabu Mabe faleceu em 1997, e atualmente sua famíliadirige o Instituto Manabu Mabe.

O HOMEM QUE DIZIA TER NASCIDO EM UM PÉ DE CAFÉO mais genial de todos os pintores brasileiros teve sua vida

intimamente ligada ao café. Filho de imigrantes italianos, Cândi-do Portinari nasceu e viveu em meio às lavouras e cafezais, noinício do século XX. Paisagens e tipos humanos que compunhamestes cenários condicionaram para sempre sua vida e sua obra.

O texto da professora Angela Ancora da Luz, da Universidade

QUANDO CHOVIA, NÃO ERA POSSÍVEL TRABALHAR NO

CAFEZAL. E MANABU MABE APROVEITAVA PARA PINTAR

ACIMA, NATUREZA MORTA COM MOINHO DE CAFÉ (1951), QUE ABRIU AS PORTAS DOS GRANDES SALÕES PARA MABE

107106

NO ALTO, DESENHO

SOBRE CAFÉ, OBRA

DE MANABU MABE

REALIZADA EM 1950

o café nas artes e na cultura

Page 52: Dos Cafezais Nasce um Novo Brasil

108

A VIDA RURAL ERA A

GRANDE MOTIVAÇÃO

DE PORTINARI. ERA

COMO SE OS PÉS DE

CAFÉ E OS HOMENS

BROTASSEM DO CHÃO,

COMO IRMÃOS

ACIMA, CENA RURAL (1954). AO LADO, DETALHE DA OBRA CAFÉ, PREMIADA NA

EXPOSIÇÃO INTERNACIONAL DO INSTITUTO CARNEGIE, PITTSBURGH, EM 1935

Federal do Rio de Janeiro, faz uma síntese bastante interessantede como o café esteve presente na vida de Portinari.

"Foi na fazenda de café onde nasceu que Portinari (1903-1962) viuos tipos que constituíram sua rica fábula dos retirantes, tão caracterís-tica de sua obra. Na propriedade, localizada em Brodósqui, no interiorde São Paulo, estavam as imagens que povoaram sua infância, marcadapela presença da lavoura do café – os nordestinos maltrapilhos e fa-mintos e os leprosos que pediam esmolas. Os retirantes que entravamna cidade ficavam acampados, à espera de dias melhores, de trabalhona lavoura e de alguma comida. Candinho, apelido carinhoso do pin-tor, gostava de visitá-los, apesar da recomendação materna de não seaproximar daquele acampamento. Ali, viu um enterro na rede, obser-vou as crianças pançudas e sentiu o drama da seca.

Quando a crise econômica mundial atingiu a economia do café, emfins de 1929, Portinari já havia se dado conta de quanto o produto eraimportante para o país. A vida rural era sua grande motivação. Elesentia o gosto da terra dentro dele, como chegou a afirmar. Era comose os pés de café e os homens brotassem do chão, nascendo comoirmãos. O Brasil de Portinari surge do solo pelos braços dos lavradores.

No desenho Cena Rural, de 1954, ele faz uma síntese dos ele-mentos que povoam sua alma e lhe dão o sentido de vida. Com traçorápido e preciso, Portinari constrói os tipos encontrados ao longo desua produção: a nordestina com o filho no colo e a trouxa na cabeça

o café nas artes e na cultura

Page 53: Dos Cafezais Nasce um Novo Brasil

110

– que também está em Retirantes –, o cavalo e o carneiro, presentesem muitas outras, e o espantalho, que o acompanhou desde cedo. Àdireita, há sacos de café empilhados, tendo ao lado o esboço de umafigura agachada, e ao fundo, a perder de vista, toda a plantação.Todo o desenho apresenta fragmentos de outros trabalhos do artista.Portinari destaca aqueles que lavram, a mulher que peneira o grão eo homem que levanta ou repousa a saca de café. O realismo expres-sivo do pintor põe em evidência o homem e a terra. Nas três figurascentrais, percebe-se uma atitude de reverência diante do solo de ondevem a riqueza.

Do ponto de vista da regra de composição, ele se mantém fiel àtradição, mas na forma se projeta como artista moderno, comoexpressionista. Ele seguia as regras de composição clássica de acordocom o espaço perspectivado, mas a forma era trabalhada fora dasproporções exatas, com distorções expressivas, como um artista mo-derno. Apesar da visão crua da realidade social, ele alcança o homemalém da aparência física. Procura sua interioridade, a expressão dasfiguras que se unem à terra através de pés nodosos, planos e tortura-dos, mostrando tendões e ossos sob a pele. As mãos que seguram aenxada e a peneira são extremidades reveladoras do interior da almahumana.

De igual modo, observamos que ele mantém as mesmas preocupa-ções do lavrador com a terra na tela Café, premiada na exposição

ACIMA, OBRA DE PORTINARI COM A TEMÁTICA DO CAFÉ, REALIZADA

EM 1960 E PINTADA SOB ENCOMENDA DO BANCO DE BOSTON

111

NO ALTO, OBRA EXECUTADA PARA A EQUITATIVA DOS ESTADOS UNIDOS

DO BRASIL (1951). ACIMA, UM CLÁSSICO: TERREIRO DE CAFÉ, DE 1959

APESAR DA VISÃO

CRUA DA REALIDADE

SOCIAL, PORTINARI

ALCANÇA O

HOMEM ALÉM DA

APARÊNCIA FÍSICA

o café nas artes e na cultura

Page 54: Dos Cafezais Nasce um Novo Brasil

113112

internacional do Instituto Carnegie de Pittsburgh, Estados Unidos, em1935. Esta é uma pintura que lembra as composições renascentistasdos teóricos da perspectiva no século XV, quando estes iniciaram oprocesso de construção do espaço em três dimensões. A linha do hori-zonte foi elevada acima do limite do quadro. Homens e pés de café sealinham ao longo da composição ocupando este espaço. A paisagemintegra todos os elementos da tela, contrapondo o verde do cafezal auma variada gama de cores terrosas, marcando a fase marrom dePortinari.

É o café que pontua os cromatismos, ou seja, o colorido é ditadopela cor do café: mais claros, quase pardos, para os corpos dos traba-lhadores; mais acentuados e luminosos nas sacas do grão; com tomvermelho, mais quente, para os pés dos lavradores e para a terra. Nes-te particular, a cor revela a identidade do artista que afirmava ter vindo‘da terra vermelha e do cafezal’. As figuras parecem esculturas, robus-tas, congeladas na ação do trabalho, com mãos e pés enormes e pelerugosa. Os rostos desaparecem sob o peso das sacas, poucos revelamseus traços individuais. Sob o olhar do capataz de gesto militar, os ho-mens trabalham. A colona sentada, que nos faz lembrar as sibilas queMichelangelo pintou no teto da Capela Sistina, repousa brevemente,enquanto a riqueza da terra circula pelos braços dos lavradores e pelaimaginação de Portinari.

Esta visão social do artista traz a afirmação racial dos negros e

SUAS CONVICÇÕES

POLÍTICAS,

REFORÇADAS PELOS

IDEAIS DO LÍDER

COMUNISTA LUIZ

CARLOS PRESTES,

ESTÃO IMPLÍCITAS NA

FORÇA DO TRABALHO

COLETIVO COMO

INSTRUMENTO

TRANSFORMADOR

mestiços, seus tipos preferidos, na construção dos trabalhadores rurais.Suas convicções políticas, reforçadas pelos ideais do líder comunistaLuiz Carlos Prestes (1898-1990), estão implícitas na força do trabalhocoletivo como instrumento transformador do mundo. Portinari sonhavacom a reforma agrária anunciada por Prestes e chegou a pertencer aoPartido Comunista.

Os problemas sociais estão evidentes também em Terreiro de Café,obra de 1959. Na tela, os homens espalham o café para a secagem dosgrãos, cuidando para que sua distribuição seja uniforme e cobrindo aterra na área determinada, destacando a importância do trabalho cole-tivo. Há também uma grande superfície quase negra, que se recorta dovermelho, uma referência ao colorido do solo. As casas, preenchendoalguns espaços no lado direito do quadro, são meros detalhes na com-posição. A evidência está no fundo verde da plantação, que faz o con-traste simultâneo com o vermelho da terra, dirigindo nosso olhar paraaquele ponto em que é possível captar a extensa área que se perde nohorizonte. No primeiro plano da composição, vários homens e mulhe-res estão executando atividades diversas com as cabeças cobertas porchapéus de palha, panos ou trouxas.

Portinari trabalha com a pincelada solta nesta obra, eliminando alinha, dando autonomia à cor na construção da imagem. O artistautiliza o branco para iluminar os braços do trabalhador em primeiroplano, ao centro, bem como muitos outros detalhes, como a bandeira,

NO ALTO, DA ESQUERDA

PARA A DIREITA: PINTURA

A ÓLEO DE 1940; O

LAVRADOR DE CAFÉ

(1934); COLHEITA

DE CAFÉ (1960);

PENEIRANDO CAFÉ (1957)

o café nas artes e na cultura

Page 55: Dos Cafezais Nasce um Novo Brasil

cujo mastro em diagonal acentua a ação do braço humano. É um bran-co brilhante que dispara a luz nos corpos.

Filho de um casal de imigrantes italianos, Portinari fez apenas ocurso primário. Ainda jovem, veio para Rio de Janeiro estudar na Es-cola Nacional de Belas Artes, onde iniciou seu aprendizado no final de1918. No entanto, muito mais do que o ensino formal, o que marcoumesmo as telas do artista foram as lembranças da infância, que jamaisse apagariam de sua memória.

Já no fim da vida, abreviada pelo contato com o chumbo das tintasque usava, Portinari escreveu, em um pequeno poema:

Minha memória já não alcança /aqueles cafezais. Começa /no passado. Antes há lembranças entrelaçadas /e sonhos. Mesmo se prolongando /até lá, vejo esfumaçado.

Os poemas foram publicados em 1964, dois anos após a morte dopintor. Ele os via esfumaçados, em meio às lembranças. Em outro mo-mento, fez uma análise de sua vida dizendo que nascera num pé de cafée reafirmou que devia ter vindo por engano, pois o material usado em suafabricação provavelmente se destinava a folhas de árvore e água. A terraavermelhada em que correu e jogou bola se misturou, com o tempo, àpoeira levantada pelos pés dos nordestinos que abandonavam a seca echegavam até Brodósqui."

O CAFÉ E A CULTURA POPULARO café e o ambiente das lavouras têm servido como tema para

duas iniciativas sociais que utilizam o artesanato e a cultura popu-lar como ferramenta de inclusão social, uma delas localizada emSão Paulo (Café Igaraí) e outra, no Rio de Janeiro (Toque de Mão).

Distrito do município de Mococa, na região norte de São Pau-lo, Igaraí tem uma população estimada em apenas 2.500 pessoas naárea urbana (e talvez outras mil nas fazendas em torno). É nestapacata localidade que funciona a modesta, mas organizada sala deuma instituição dedicada ao artesanato. Batizada Café Igaraí, aassociação congrega mulheres que se dedicam ao crochê, ao bor-dado e à pintura em porcelana para retratar uma histórica ativida-de econômica da região, explícita em seu nome: o cultivo do café.

Igaraí fica bem na divisa com Minas Gerais, na região quedurante algumas décadas, mais exatamente entre 1898 e 1930, foiprotagonista da famosa política do café com leite, que estabeleceuum revezamento entre políticos paulistas, plantadores de café, emineiros, produtores de leite, no comando dos rumos do país. Se oeixo da produção de café tipo exportação atualmente se deslocoupara o norte de Minas e até para Goiás, ficou a tradição em Igaraí,onde muitas fazendas seguem recebendo visitantes, em programa-

114

NA PÁGINA AO LADO,

MESA COMPLETA DE

CAFÉ DA MANHÃ,

PRODUZIDA PELAS

ARTESÃS DE IGARAÍ

o café nas artes e na cultura

Page 56: Dos Cafezais Nasce um Novo Brasil

117116

ções do tipo turismo rural em um roteiro batizado, é claro, "Cafécom Leite". Parte do público que adquire os produtos artesanaisda associação Café Igaraí está justamente neste nicho.

Um aspecto que foi bastante estudado no planejamento do pro-jeto foi a paleta de cores. Durante a florada do café, entre setem-bro e outubro, as plantações ficam brancas como a neve. Depois,os tons mudam para amarelo ou vermelho, dependendo da varie-dade. Há ainda os tons do terreiro utilizado para secagem dos grãos,e, ainda, as cores da terra propriamente dita. Para o tingimentodos tecidos, a técnica utilizada é japonesa, e inclui sutilezas comoadicionar leite de soja nos panos de algodão, pois a proteína ajudana absorção do pigmento. O consultor do Sebrae (Serviço Brasi-leiro de Apoio à Micro e Pequenas Empresas), Renato Imbroisi, foiquem sugeriu que, aos trabalhos em bordado e crochê, se agregas-se a pintura em porcelana, de forma a que se pudesse montar umamesa de café da manhã completa, da louça à toalha e descansa-pratos, passando pelos guardanapos, todos com motivos da região.

Maria Aparecida Arcas Costalonga, a Cida, 64 anos, morou e

NO TINGIMENTO DOS

TECIDOS, A TÉCNICA

UTILIZADA É

JAPONESA, E INCLUI

SUTILEZAS COMO

ADICIONAR LEITE

DE SOJA NOS PANOS

DE ALGODÃOACIMA, O BORDADO COM TEMAS DA FAZENDA, DE IGARAÍ. NO ALTO,

PORTINARI COMO INSPIRAÇÃO PARA AS ARTESÃS DO RIO DE JANEIRO

o café nas artes e na cultura

Page 57: Dos Cafezais Nasce um Novo Brasil

118

trabalhou em fazendas a vida toda. Viúva, tem 10 filhos e 18 netos."Apenas três não ajudei a criar", ela faz questão de enfatizar. Tro-cou a rotina de carpir, plantar, colher e descascar o café pelo bor-dado e, basicamente, crochê, que já dominava. Mineira deGuaxupé, quando voltou a morar em Igaraí dedicou-se ao vagonite,um tipo de ponto do bordado.

É comum encontrarmos entre as pessoas que se dedicam a umaatividade artística uma personalidade pincelada com traços de ou-sadia, irreverência e até mesmo alguma petulância. Quase todo ar-tista gosta de romper barreiras, ultrapassar limites, derrubar con-venções. Eunice da Ressurreição Matos, 59 anos, moradora do bair-ro Santa Teresa, no Rio de Janeiro, talvez até não se considere umaartista, mas seu trabalho como artesã assim a qualifica. Pois Eunicenão tem o menor pudor em afirmar: "O nosso Abaporu ficou até maisbonito que o original; tem mais cores, mais volume". Ela se referenada mais, nada menos, que à tela pintada por Tarsila do Amaralem 1928 e que hoje é considerada a obra de arte brasileira maisimportante e mais valiosa em todos os tempos (foi adquirida por umcolecionador argentino por US$ 1,5 milhão). Acontece que o qua-dro foi "recriado" por Eunice e suas colegas do projeto Toque deMão, iniciativa cujo embrião remonta aos anos 2000 e desde entãovem oportunizando a um grupo de mulheres em situação de altavulnerabilidade social expressar seus dotes artísticos através da pin-tura, do bordado e da costura.

Realizar releituras das obras de grandes pintores brasileiros,em especial em bolsas e almofadas, é uma das preferências dasartesãs. Di Cavalcanti e Candido Portinari, além da já citada Tarsilado Amaral, são alguns deles. Em novembro de 2010, por exemplo,as artesãs estavam às voltas com a produção coletiva de uma enor-me tela inspirada no quadro Café, de Portinari (citada anteriormen-te). Os grãos da planta que aparecem na imagem, por exemplo,estavam sendo feitos em rococó. Entre os produtos em exposiçãopara venda, havia uma almofada inspirada no quadro O mestiço,também de Portinari.

REALIZAR RELEITURAS DE GRANDES PINTORES

É UMA DAS PREFERÊNCIAS DAS ARTESÃS DO RJ

NA PÁGINA AO LADO, RELEITURA DE O MESTIÇO, EM ALMOFADA DO

PROJETO TOQUE DE MÃO: PORTINARI INSPIRANDO A CULTURA POPULAR

o café nas artes e na cultura

Page 58: Dos Cafezais Nasce um Novo Brasil

O momento dos

POR CELSO LUIS RODRIGUES VEGRO

Cafés do Brasil

121

Brasil, país do futuro. Este é o título do livropublicado em 1941 pelo prolífico escritor austría-co Stefan Zweig, que se radicou em Petrópolis, noRio de Janeiro, para se afastar do genocídio da Se-gunda Guerra Mundial. A expressão acabou setornando mundialmente célebre. Sob essa crença,algumas gerações de brasileiros foram acalentadas.Porém, décadas se passaram, e esse futuro promis-sor teimava em não chegar. A imagem do giganteadormecido em “berço esplêndido” parecia ser maisapropriada para a nação.

Havia, entretanto, um segmento da economia que exibia en-tusiasmo ímpar. No agronegócio, os Cafés do Brasil, mesmo sob ospercalços decorrentes da extinção do Instituto Brasileiro do Café(IBC) e do continuado ciclo de cotações insuficientes para cobriros custos com a atividade, vivenciavam período sem igual em sualonga história de presença no país. Seus protagonistas jamais esti-veram apáticos ou sonolentos; ao contrário, mantiveram-se ativosna busca de alternativas que tornassem o segmento ainda maisvibrante.

A escalada das cotações iniciada em meados de 2010 veio tra-zer a consagração aos agentes desse negócio. Os cafeicultores pas-saram a receber “preço justo” pelo esforço de seu trabalho; os in-dustriais decidiram apostar ainda mais na qualidade do produto epor em prática inovações que o segmento demandava, apoiando-se em novas tecnologias; os exportadores se viram diante da possi-bilidade concreta de fecharem mais e mais negócios com clientesávidos por um produto de qualidade; por fim, os apreciadores pu-deram ser surpreendidos pelo grau de excelência dos Cafés do Brasil.

O promissor cenário que ora se instaura não é obra do acaso.O longo ciclo de preços baixos praticados para o café verde foimuito bem aproveitado pelos cafeicultores, industriais e exporta-dores, que se empenharam, ainda mais, em incrementar a produti-vidade e a qualidade do seu produto ou serviço. A introdução datecnologia de descascamento do café e a redescoberta do BourbonAmarelo, verdadeiras maravilhas brasileiras, trouxeram nova re-putação ao produto, conquista na qual poucos acreditavam. Essesfenômenos, combinados, conferiram enorme tenacidade aos Cafés

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o momento dosCafés do Brasil

CONCURSOS REGIONAIS, ESTADUAIS E NACIONAL, ESTE ORGANIZADO

PELA ABIC, APRESENTAM CAFÉS COM QUALIDADES INCOMPARÁVEIS

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do Brasil, pois o segmento passou a exibir competitividade em pre-ços e qualidade difícil de ser suplantada por qualquer outro concor-rente. Recentemente, o Brasil passou a deter quase a metade dasexportações mundiais de arábica.

A escalada das cotações proporcionará o necessário sanea-mento financeiro dos cafeicultores ainda endividados. Com arecapitalização já se processando, pode-se imaginar um cenário emque a busca por tecnologias se intensificará, trazendo novos ganhosde produtividade e qualidade. Tais esforços se tornam ainda maiseficazes dentro de esquemas cooperativos como o implantado pelaAssociação Brasileira da Indústria do Café (Abic), que oferece ágiode preços nas aquisições de café verde dos cafeicultores já formal-mente certificados.

Esse otimismo com relação ao agronegócio Cafés do Brasilreflete, em parte, sua estrutura de governança. No âmbito do Con-selho Deliberativo de Política Cafeeira (CDPC), foram criados pro-gramas e ações públicas bem-sucedidas, como a de pesquisa e a demarketing específico para o café. Não há país concorrente capaz deombrear a excelência científica da produção brasileira. Novas varie-dades e métodos de manejo da lavoura, irrigação e mecanização sãotendências irrevogáveis na cafeicultura brasileira. Também não hánenhum outro lugar no mundo onde ocorram tantos e tão variadosencontros de cafeicultores, locais em que muitas dessas tecnologiassão compartilhadas com seus principais interessados e usuários. Nocapítulo do marketing, depois de carregar a pecha de produto infe-rior, o café brasileiro recupera seu prestígio, voltando a compor par-cela expressiva do blend médio internacional. O respaldo concedi-do pelo CDPC aos gestores das políticas públicas naoperacionalização dessas ações foi precioso. Nas duas edições emque o governo ofereceu ao mercado as opções públicas, o resultadofoi altamente positivo, tanto para os cafeicultores aderentes comopara o Tesouro Público que, por meio dessa ação estratégica,rentabilizou as existências financeiras do Funcafé.

A excepcionalidade do momento atual se confirma com osresultados dos certames internacionais de qualidade do café. Aorigem brasileira surpreende a maior parte dos provadores, e oslotes oferecidos nesses torneios conquistam posições de desta-que no ranking dos melhores cafés. Nos concursos regionais, es-taduais e nacional, o último deles realizado pela Abic, os caféstêm apresentado qualidades incomparáveis, sendo acirrada a dis-puta em leilão pelos lotes oferecidos aos torrefadores neles inte-ressados.

NA PÁGINA AO LADO: PLANTAÇÃO DO CAFÉ TIPO ROBUSTA

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O Brasil se prepara para amealhar o posto de maior mercadoconsumidor de café do globo. Tal título se somará aos de maiorprodutor e maior exportador. Essa nova conquista será fruto delongo trabalho e investimento desenvolvido pela liderança dostorrefadores, que não se furtaram em assumir, privadamente, des-de 1989, o programa de controle da pureza do café, até então capi-taneado pelo IBC. Em 2010, foi superada a barreira dos 5 kg percapita/ano por habitante, faltando pouquíssimas gramas per capitapara suplantar os estadunidenses na liderança mundial do consu-mo da bebida. O país caminha para se tornar a mais completaplataforma em negócios envolvendo o café!

O aceite da Bolsa de Nova Iorque em certificar cafés brasi-leiros lavados e descascados abrirá ainda mais o campo para negó-cios, refortalecendo a imagem de excelência do produto verde eamarelo. Oferecendo alternativa ao produto tradicional aostorrefadores internacionais, os Cafés do Brasil reassumem sua maislegítima identidade.

A agenda visando a aprimorar o segmento não se esgotou. Ca-recemos de mecanismos que protejam os cafeicultores dos riscosclimáticos, e ainda há que se encontrar uma fórmula para assegu-rar a continuidade da importantíssima indústria da solubilização.Por sua vez, os industriais da torrefação precisam estruturar seusnegócios valendo-se de transações intermediadas por bolsa de va-lores, oferecendo liquidez ao mercado de títulos financeiros (es-pecialmente no de opções) e, por meio dessa iniciativa, preservan-do-se das naturais oscilações de preços.

O agronegócio Cafés do Brasil jamais esteve adormecido,embalado em berço esplêndido. O êxito das ações envolvendo par-cerias público-privadas, combinado com a produção de conheci-mentos e tecnologias situadas na fronteira do conhecimento exis-tente e com a sagacidade dos agentes econômicos que atuam nes-se segmento, constitui o alicerce da pujança atual. No agronegócioCafés do Brasil, o futuro promissor sempre foi algo palpável e inve-jável, tanto aqui como por parte de nossos concorrentes.

A grandeza dos Cafés do Brasil permite que se viva o futuroem pleno presente!

CELSO LUIS RODRIGUES VEGRO, ENGENHEIRO AGRÔNOMO,

PESQUISADOR DO INSTITUTO DE ECONOMIA AGRÍCOLA (IEA)

o momento dosCafés do Brasil

NO AGRONEGÓCIO DOS CAFÉS DO BRASIL, O FUTURO PROMISSOR

SEMPRE FOI ALGO PALPÁVEL E INVEJÁVEL

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INSTITUTO AGRONÔMICO DE CAMPINAS