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1 Rio de Janeiro, 26 de março de 2018. Ofício Conjunto DPU/DPRJ nº. 01/2018 Dos Defensores Públicos da União integrantes do Grupo de Trabalho DPU Mais Rio Av. Presidente Vargas, nº. 62, Centro, Rio de Janeiro, RJ, tel.: 2460-5000, CEP 20.091-060 e Dos Defensores Públicos em exercício no Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos e no Núcleo Contra a Desigualdade Racial da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro - Rua México, n°. 11, 15° andar, Centro, Rio de Janeiro, RJ, CEP 20.031-040, tels.: (21) 2332-6345 / (21) 2332-6344, endereço eletrônico [email protected] Ao Exmo. Sr Walter Souza Braga Netto, General do Exército e Interventor Federal Centro Integrado de Comando e Controle (CICC) - R. Carmo Neto, s/n - Cidade Nova, Rio de Janeiro - RJ, 20210-051 URGENTE Excelentíssimo Senhor Interventor Federal, ao tempo em que o cumprimentamos, servimo-nos do presente para, com fundamento nas atribuições previstas no art. 134, caput, da CRFB/88 (com redação dada pela EC nº. 80/14), bem assim no art. 4º, incisos VI, VII, XI e XVIII, da Lei Complementar nº. 80/94, e com espeque na prerrogativa disposta no art. 128, inciso X, da Lei Complementar nº. 80/94 e no art. 8º da Lei nº. 7.347/85, apresentar os seguintes requerimentos e solicitar informações a respeito da atuação das forças de segurança pública no Estado do Rio de Janeiro, durante a vigência do Decreto Presidencial nº. 9.288/2018. I. PANORAMA RECENTE DOS IMPACTOS DA POLÍTICA DE SEGURANÇA PÚBLICA SOBRE OS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO ESTADO DO RJ Em sua história recente, o Estado do Rio de Janeiro tem assistido a uma escalada da letalidade policial. Em quatro anos, o número de mortos pela polícia quase triplicou e, no ano de 2017, o número de homicídios decorrentes de intervenção policial atingiu a maior taxa dos últimos nove anos: 1.124 pessoas, no total, foram mortas pela polícia no ano passado segundo dados do ISP 1 (Instituto de Segurança Pública). Já em janeiro de 2018, tem-se um panorama ainda mais sombrio: o número de homicídios decorrentes de intervenção policial cresceu 57,1% no último mês de janeiro (154 pessoas mortas), se comparado com janeiro de 2017 (98 mortes) 1 https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2018/01/18/rio-fecha-2017-com-maior- taxa-de-mortes-violentas-dos-ultimos-oito-anos.htm

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Rio de Janeiro, 26 de março de 2018.

Ofício Conjunto DPU/DPRJ nº. 01/2018 Dos Defensores Públicos da União integrantes do Grupo de Trabalho DPU Mais Rio – Av. Presidente Vargas, nº. 62, Centro, Rio de Janeiro, RJ, tel.: 2460-5000, CEP 20.091-060 e Dos Defensores Públicos em exercício no Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos e no Núcleo Contra a Desigualdade Racial da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro - Rua México, n°. 11, 15° andar, Centro, Rio de Janeiro, RJ, CEP 20.031-040, tels.: (21) 2332-6345 / (21) 2332-6344, endereço eletrônico [email protected] Ao Exmo. Sr Walter Souza Braga Netto, General do Exército e Interventor Federal – Centro Integrado de Comando e Controle (CICC) - R. Carmo Neto, s/n - Cidade Nova, Rio de Janeiro - RJ, 20210-051 URGENTE

Excelentíssimo Senhor Interventor Federal, ao tempo em que o cumprimentamos, servimo-nos do presente para, com

fundamento nas atribuições previstas no art. 134, caput, da CRFB/88 (com redação dada pela EC nº. 80/14), bem assim no art. 4º, incisos VI, VII, XI e XVIII, da Lei Complementar nº. 80/94, e com espeque na prerrogativa disposta no art. 128, inciso X, da Lei Complementar nº. 80/94 e no art. 8º da Lei nº. 7.347/85, apresentar os seguintes requerimentos e solicitar informações a respeito da atuação das forças de segurança pública no Estado do Rio de Janeiro, durante a vigência do Decreto Presidencial nº. 9.288/2018. I. PANORAMA RECENTE DOS IMPACTOS DA POLÍTICA DE SEGURANÇA PÚBLICA SOBRE OS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO ESTADO DO RJ

Em sua história recente, o Estado do Rio de Janeiro tem assistido a uma

escalada da letalidade policial. Em quatro anos, o número de mortos pela polícia quase triplicou e, no ano de 2017, o número de homicídios decorrentes de intervenção policial atingiu a maior taxa dos últimos nove anos: 1.124 pessoas, no total, foram mortas pela polícia no ano passado segundo dados do ISP1 (Instituto de Segurança Pública).

Já em janeiro de 2018, tem-se um panorama ainda mais sombrio: o

número de homicídios decorrentes de intervenção policial cresceu 57,1% no último mês de janeiro (154 pessoas mortas), se comparado com janeiro de 2017 (98 mortes)

1 https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2018/01/18/rio-fecha-2017-com-maior-

taxa-de-mortes-violentas-dos-ultimos-oito-anos.htm

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– dados do ISP2. Por outro lado, os índices de produtividade policial, como a apreensão de armas, apreensão de drogas e cumprimento de mandados de prisão, analisando-se os mesmos períodos, tiveram um aumento apenas de 5.6, 5.2 e 5%, respectivamente.

O intervalo de 01/01/2018 a 31/01/2018, considerada a série histórica do

ISP para o indicador “homicídios decorrentes de intervenção policial”, registra a maior taxa dos últimos 15 anos. E, se consideradas todas as 649 mortes violentas registradas no Estado neste período, o número de mortes provocadas pela polícia fluminense representa 24% do total3.

Além dos inaceitáveis indicadores de letalidade policial, chocaram a

sociedade fluminense nos últimos anos os dramáticos casos de vítimas de “balas perdidas” (pessoas atingidas por disparo de arma de fogo de autoria desconhecida, sem que tivessem sido alvo do atirador).

Aqui a ausência de dados oficiais é um obstáculo para maiores reflexões

sobre o perfil sociodemográfico das vítimas de “balas perdidas”, o que motivou inclusive a propositura do Projeto de Lei Estadual nº. 1.168/2015, que cria um sistema de registros estatísticos destinado a estes casos.

No entanto, a ausência de um sistema de dados oficiais não minimiza a

gravidade das tragédias que vieram a público e comoveram o Rio de Janeiro nos últimos anos: segundo levantamento da ONG Rio de Paz, somente em 2017 sete crianças morreram nestas circunstâncias4. Alguns atingidos enquanto brincavam no interior de suas próprias casas, outros dentro do espaço da escola, em lanchonetes etc. e até mesmo um feto atingido no ventre de sua mãe, após o projétil perfurar o quadril da gestante e atingir os pulmões e a coluna do filho, que faleceu em decorrência dos ferimentos (a Sra. Claudineia dos Santos, grávida de nove meses, encontrava-se na Favela do Lixão, na Baixada Fluminense, e quando retornava para sua casa depois de fazer compras, foi colhida em meio a um confronto armado entre policiais e criminosos5). Meninos e meninas indefesos, atingidos de forma covarde e brutal no contexto de confrontos armados durante ações policiais.

Levantamento do jornal “EXTRA”, com base em registros de ocorrência da

Polícia Civil classificados como “vítima de bala perdida”, revelou que, entre janeiro e julho de 2017, 632 pessoas foram feridas por “balas perdidas” no Estado do Rio de Janeiro – uma média de mais de três ocorrências por dia, uma a cada sete horas –, tendo pelo menos 67 dos casos resultado em óbito.

2 https://odia.ig.com.br/rio-de-janeiro/2018/02/5518005-homicidio-por-oposicao-a-intervencao-

policial-cresceu-57-1--aponta-isp.html 3 https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2018/02/28/rio-tem-maior-numero-de-

mortos-pela-policia-em-15-anos.htm 4 https://noticias.r7.com/rio-de-janeiro/sete-criancas-morreram-por-bala-perdida-no-rj-em-

2017-05092017 5 https://oglobo.globo.com/rio/morre-bebe-arthur-baleado-dentro-da-barriga-da-mae-21648573

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Não por acaso as regiões mais atingidas, segundo o “EXTRA”, foram algumas das áreas mais pobres do Estado do Rio de Janeiro, como a Zona Norte e Zona Oeste, na capital, e a baixada fluminense, que lidera o número de registros.

Mesmo que com apoio em notificações informais levantadas pela imprensa

e pela sociedade civil organizada, é possível ter a dramática dimensão do impacto da política atual de segurança pública no direito à vida de pessoas inocentes, não envolvidas nos confrontos armados com os agentes estatais, especialmente em espaços periféricos, tais como as favelas, ocupadas majoritariamente pela pessoas negras e migrantes, integrantes das classes sociais mais desfavorecidas.

Por fim, a proporção de pessoas que morreram em supostos confrontos

com a polícia, um dos indicadores mais apontados pelos especialistas como alerta para situações de abuso da força letal, permite confirmar o trágico cenário em que se encontra a política de segurança fluminense, ao privilegiar o confronto e a abordagem bélica, admitindo como simples “danos colaterais” as mortes de milhares de pessoas anualmente durante as intervenções armadas do Estado.

De fato, a relação entre mortos pela polícia e policiais mortos no Rio

de Janeiro também reforça o cenário de excesso no emprego da força letal, como verdadeira diretriz da política de segurança adotada no Estado. Em 2017, a cada policial militar morto em serviço, outras 36 pessoas morreram em supostos confrontos com a polícia, o que expressa o elevadíssimo grau de discricionariedade entregue à base da cadeia de comando das forças de segurança, que tem verdadeiramente a decisão final sobre matar ou deixar viver no cotidiano dos espaços periféricos objeto das suas ações armadas6.

Em vista deste cenário de graves e sistemáticas violações do direito à

vida e à integridade física dos cidadãos e cidadãs fluminenses (art. 5º, CRFB/88; art. 1º, c/c arts. 4 e 5 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos), bem como de outros danos perversos aos direitos fundamentais inscritos na Constituição da República de 1988 e na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Decreto nº. 678/1992), tais como: i) o direito à inviolabilidade domiciliar (artigo 5º, inciso XI , CRFB/88; artigos 243, 244 e 245 do Código de Processo Penal e artigo 1º c/c 11.2 e 21 da CADH); ii) o direito à inviolabilidade das comunicações telefônicas (art. 5º, XII, CRFB/88; art. 1º, c/c 11.2 da CADH); iii) a liberdade de locomoção ou direito de circulação (art. 5º, caput, CRFB/88 e art. 22 da CADH); iv) o direito à proteção contra discriminação racial e socioeconômica (art. 3º, inciso IV, CRFB/88; art. 1º c/c art. 24 da CADH); v) o direito à responsabilização dos agentes estatais e à adequada reparação dos danos sofridos em caso de desrespeito às garantias constitucionais e convencionais (art. 2º, c/c art. 25, CADH); vi) o direito à liberdade de informação (art. 13), mostram-se extremamente preocupantes as medidas que

6 https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2018/01/19/abuso-de-forca-letal-rj-tem-

36-mortos-para-cada-policial-assassinado-no-estado.htm

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vêm sendo anunciadas e adotadas pela União Federal no contexto da intervenção decretada desde fevereiro de 2018 (Decreto Presidencial nº. 9.288/2018), bem como durante as ações das Forças Armadas no RJ, lastreadas no Decreto Presidencial de Garantia da Lei e da Ordem (Decreto Presidencial de 28 de julho de 2017, modificado pelo Decreto Presidencial de 29 de dezembro de 2017).

Recentes declarações públicas do Senhor General Eduardo Villas Bôas,

Comandante do Exército Brasileiro, noticiadas na imprensa nacional, defendem ainda maior discricionariedade aos militares para realizar disparos de arma de fogo:

“O comandante do Exército, Eduardo Villas Bôas, disse que é ‘fundamental’ uma mudança nas regras de enfrentamento armado que permitiria um militar alvejar um homem portando arma em ruas no Rio de Janeiro, durante o período da intervenção federal no estado.”7

Por outro lado, o então Ministro da Defesa e atual Ministro da Segurança Pública Raul Jungmann, afirmou que, dentre as medidas da intervenção estarão os pedidos de decretação de buscas domiciliares coletivas, medidas absolutamente divorciadas dos parâmetros legais, constitucionais e convencionais de proteção dos direitos humanos (como aprofundaremos a seguir):

“Jungmann anunciou que o governo federal ia ingressar com petição na Justiça Estadual do Rio de Janeiro, para que se possa ter ‘mandados coletivos de busca, apreensão e captura’, como uma possível medida extra por conta da intervenção.”8

Outro fato que gera grande preocupação é a adoção de procedimentos de abordagem generalizada ou revista generalizada de certos segmentos populacionais ou grupos sociais, recentemente verificada durante operação das Forças Armadas na Vila Kennedy, na qual se observou também desrespeito à liberdade de imprensa:

“Nas abordagens aos moradores das favelas, os militares enviavam RG e foto das pessoas por um aplicativo para um setor de inteligência, que avaliava eventual existência da anotação criminal. Após flagrar esse ‘fichamento’ das pessoas, a reportagem da Folha chegou a ser impedida de continuar no local e foi encaminhada por homens do Exército a uma distância de 300 metros.”9

Em razão de tal conjuntura, a Defensoria Pública da União e a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, em conjunto com as instituições e organizações

7 https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2018/02/comandante-do-exercito-defende-mudanca-

em-regras-de-enfrentamento-no-rio.shtml 8 http://brasil.estadao.com.br/noticias/rio-de-janeiro,ministerio-da-defesa-esclarece-que-

mandados-coletivos-serao-restritos-a-busca-e-apreensao,70002195596 9 https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2018/02/moradores-deixam-comunidades-apos-

serem-fotografados-em-acao-do-exercito.shtml

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da sociedade civil abaixo assinadas, vêm a Vossa Excelência requerer sejam tomadas as seguintes providências e prestadas as seguintes informações, com a máxima urgência.

II. QUANTO ÀS VIOLAÇÕES AO DOMICÍLIO

O aspecto das violações domiciliares constitui historicamente um dos pontos mais sensíveis na interação entre as forças de segurança estatais e as populações ocupantes dos espaços periféricos dos grandes centros urbanos brasileiros.

A Constituição brasileira determina, em seu art. 5º, inciso XI, que “a casa é

asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem o consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”.

Por outro lado, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos

consagra, na mesma esteira, no artigo 17.1 que “ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou ilegais em sua vida privada, em sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais às suas honra e reputação”.

Já a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, com redação similar,

estatui no artigo 11.2 que “ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, em sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação”.

Entretanto, é notório que as garantias acima referidas nos espaços

urbanos periféricos objetos de frequentes intervenções armadas do Estado não gozam do mesmo grau de normatividade vigente em outras áreas da cidade do Rio de Janeiro.

Apenas para citar um levantamento mais recente, no Boletim “Direito à

Segurança Pública na Maré”10, produzido pela organização da sociedade civil “Redes da Maré”, apurou-se que em 2017, o crime de invasão de domicílio foi a ocorrência mais frequente dentre os atendimentos prestados à população da região (28% das ocorrências), uma tendência igualmente registrada no ano de 2016.

A violação indiscriminada e arbitrária de domicílios até mesmo no período

noturno – com relatos inclusive de furtos praticados pelos agentes estatais no interior das residências – foi uma das motivações que levaram até a Defensoria Pública as organizações “Redes da Maré”, “Luta pela Paz”, bem como os presidentes de associações de moradores de três das favelas do Complexo de Favelas da Maré

10 Disponível na íntegra em: http://redesdamare.org.br/wp-

content/uploads/2018/02/BoletimSegPublica_02_2017.pdf, acesso aos 12/03/2018, às

18h06min.

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(Nova Holanda, Parque Maré e Rubem Vaz) em meados de 2016 e provocaram o ajuizamento da ação civil pública de autos nº. 0215700-68.2016.8.19.0001, que tramita na 6ª Vara de Fazenda Pública da Comarca da Capital.

Nestes autos, o juízo de primeiro grau deferiu medida liminar atualmente

em vigor (vide documento anexo 01), confirmada inclusive pelo Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (agravo de instrumento nº. 0044201-82.2017.8.19.0000 – vide documento anexo 02), para determinar que:

“seja divulgado aos agentes de segurança que os mandados judiciais de prisão e de busca e apreensão por parte de policiais militares e civis devem ser cumpridos durante o dia, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, em total observância do que estabelece a Constituição da República de 1988, sempre devendo ser lavrado o respectivo auto circunstanciado da diligência, na forma do Código de Processo Penal”. (TJRJ, 6ª Vara de Fazenda Pública, Juíza de direito Ana Cecília Argueso Gomes de Almeida, decisão prolatada em 27/06/2017). Em circunstâncias semelhantes, em novembro de 2016, em meio às ações

policiais levadas a cabo na Favela Cidade de Deus, a Defensoria Pública impetrou ordem de habeas corpus no Tribunal de Justiça do RJ, contra ato emanado de juízo de primeira instância no qual se decretou a busca domiciliar não individualizada, que abrangia um largo perímetro da comunidade, sem especificar as pessoas ou residências atingidas, tudo em franca violação à inviolabilidade do domicílio.

Na ocasião, o teratológico “mandado coletivo de busca e apreensão”

acabou por produzir seus perversos efeitos, com a invasão de um sem número de residências de diversos cidadãos e cidadãs, que não eram alvos da investigação criminal, nem apresentavam qualquer fundada suspeita de conduta contrária à lei que justificasse a restrição a seus direitos fundamentais.

Posteriormente, com o julgamento da ação constitucional de habeas

corpus (autos nº. 0061167-57.2016.8.19.0000 – documento anexo 03), a Quinta Câmara Criminal do TJRJ, por unanimidade, pronunciou a ilegalidade da decisão concessiva do mandado coletivo e reconheceu a nulidade medida, assim como das provas porventura obtidas por meio da diligencia, nos moldes do art. 573, §1º, do Código de Processo Penal.

Assim discorreu o Desembargador Relator no voto condutor:

“(...) sabe-se que o ingresso forçado no domicílio possui caráter

excepcional, já que importa restrição a direitos fundamentais, em especial o direito à intimidade e à inviolabilidade de domicílio – garantia assegurada em todas as Constituições pátrias –, sendo admitido apenas diante das

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situações excepcionais previstas no próprio dispositivo que o proíbe, a saber, o inciso XI do art. 5º da Lei Maior.

Nessa perspectiva, considerando a relevância dos direitos fundamentais em comento, o legislador constituinte impôs, exceto nas hipóteses de flagrante delito, desastre ou oferecimento de socorro, a cláusula da primazia judiciária, exigindo autorização judicial para o ingresso forçado na casa – cujo conceito remete ao disposto do art. 150, §4º, do Código Penal.

Tal autorização, no entanto, não é conferida ao alvedrio do magistrado, mas encontra seus requisitos e parâmetros expressos, previamente estabelecidos pelo legislador através da norma do artigo 240 e seguintes do Código de Processo Penal, assim como o respectivo mandado − cujos elementos essenciais encontram-se devidamente elencados no art. 243 do mesmo diploma legal – que materializa e delimita a ordem judicial que será, nos termos previamente delineados pela autoridade judicial, apenas executada pela autoridade policial.

(...) a decisão judicial que defere a busca domiciliar, meio destinado à obtenção de provas que implica na restrição de direitos fundamentais, pressupõe a presença dos requisitos elencados no art. 240 do Código de Processo Penal – quais sejam, as fundadas razões que autorizam a busca no domicílio de determinada pessoa, bem como sua adequação ao cumprimento das finalidades previstas no rol do § 1º do art. 240 do Código de Processo Penal –, devendo o respectivo mandado de busca, necessariamente, estar revestido da forma prescrita no art. 243 do Código de Processo Penal – consignando expressamente a casa em que se dará a busca e o titular dos direitos fundamentais objeto de constrição, ou seja, os moradores – não podendo a excepcional invasão à vida privada, realizada, inclusive, mediante o emprego de força, (art. 245, §3º, do Código de Processo Penal) se apartar do sistema legal que a delimita e condiciona.

(...) a busca domiciliar não pode constituir uma autorização genérica para que se reúna, mediante a inobservância autorizada das normas legais supramencionadas, as fundadas razões que deveriam justificá-la, sob pena de subversão total de sua lógica e, ainda, de delegação à autoridade policial não apenas da executoriedade do ato, mas da própria delimitação de seu objeto – a casa −, dos cidadãos que terão os seus direitos fundamentais suprimidos e, em termos gerais, do alcance da medida.

Nesse particular, não se pode olvidar que a autorização judicial para busca domiciliar constitui uma justificação prévia da atuação policial, conferindo-lhe, para consecução das finalidades elencadas no rol do §1º do art. 240 do diploma processual penal, o manto do estrito cumprimento do dever legal ao executor da medida, afastando a eventual antijuridicidade de condutas ao menos em tese aptas a configuração de crimes como a violação de domicílio (art. 150 do Código Penal) e o abuso de poder (art. 3º da Lei 4.898/65) − que ostentam sujeitos passivos e bens

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jurídicos tutelados determinados −, cuja legalidade encontra-se sujeita ao controle judicial.

Portanto, considerando que os direitos fundamentais objeto de constrição são individuais, deve estar justificada a sua mitigação, de igual modo, de forma individualizada, até mesmo para que se assegure o exercício do contraditório pelos sujeitos que sofrerão os efeitos da medida constritiva.

Em linhas gerais: a decisão carente de delimitação do objeto passível de busca domiciliar − a casa, e não o bairro, ruas ou região −, bem como de seu sujeito, ou seja, do respetivo morador que suportará os efeitos da medida constritiva, e o respectivo mandado de busca domiciliar coletivo e generalizado, desprovido desses elementos, em desacordo com o disposto no art. 243 do Código de Processo Penal, não possui respaldo legal, estando revestido, portanto, de ilegalidade que não pode ser chancelada pelo Poder Judiciário, sob pena de inversão ao disposto no ordenamento jurídico vigente, inclusive de normas internacionais de proteção à pessoa humana, e, por conseguinte, violação frontal ao Estado Democrático de Direito”. Grifamos. (TJRJ, Quinta Câmara Criminal, HC 0061167-57.2015.8.19.0000, Relator Desembargador Paulo de Oliveira Lanzellotti Baldez, Julgado em 08/02/2017). Outro caso emblemático recente de violação de domicílio por agentes das

forças de segurança foi a utilização de residências particulares na localidade “Largo do Samba”, situada no interior do Complexo de Favelas do Alemão, como bases militares improvisadas por Policiais Militares da Unidade de Polícia Pacificadora Nova Brasília.

As ocupações de residências privadas se deram em meio às operações

policiais da Unidade de Polícia Pacificadora Nova Brasília, destinadas a instalar uma torre blindada na área conhecida como “Largo do Samba” que, segundo a polícia, seria um ponto estratégico para o confronto com traficantes, por oferecer uma visão privilegiada da favela.

As denúncias trazidas pela população conduziram ao ajuizamento de uma

ação de natureza coletiva pela Defensoria Pública, com o fito de impor judicialmente a desocupação das casas transformadas em bases militares e a fim de proibir a repetição da prática arbitrária. Nos autos da ação civil pública nº. 0098888-06.2017.8.19.0001, o juízo da 15ª Vara de Fazenda Pública determinou a imediata desocupação das residências, nos seguintes termos:

“(...) o atuar do Comando Militar não poderá, ainda que em nome do

grave quadro aqui desenhado, praticar violações de direitos humanos em operações policiais, notadamente com invasão e ocupação das casas de civis para utilização como base militar, representando além de ofensa à proteção constitucional do domicílio e da posse afronta ao direito à vida, à integridade física e à segurança.

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Os elementos dos autos evidenciam a probabilidade do direito invocado, estando absolutamente presente o risco de dano iminente, observado que em ultima instância se está aqui a tratar do maior direito constitucionalmente protegido, o direito à vida.

Pelo exposto, DEFIRO DE FORMA PARCIAL e LIMINARMENTE a tutela de urgência para o seguinte fim: (i) determinar, por meio do Comando Geral da PMERJ e da Secretaria de Estado de Segurança, aos Policiais Militares em atuação na Unidade de Polícia Pacificadora Nova Brasília a imediata desocupação de imóveis privados no Complexo do Alemão, bem como se abstenham de turbar ou esbulhar a posse privada sob o pretexto da utilização dos imóveis para operações militares no contexto do combate à criminalidade naquele Complexo. (ii) determinar publicação em Boletim Interno da PMERJ quanto a presente decisão, de forma a dar conhecimento a todos os membros da Corporação da ilicitude da prática de utilização de imóveis particulares como base militar no referido Complexo.” (TJRJ, 15ª Vara de Fazenda Pública, Juíza de Direito Roseli Nalin, decisão prolatada em 27/04/2017). Portanto, uma das mais graves questões envolvidas nas práticas das

forças de segurança no Estado do Rio de Janeiro, que demanda medidas urgentes e firmes, é o sistemático desrespeito ao direito fundamental à inviolabilidade de domicílio nas favelas e outros territórios periféricos.

Nesse sentido, requer a Defensoria Pública sejam adotadas as seguintes providências, no intuito de dar cumprimento às disposições legais, constitucionais e convencionais que regulam as restrições à inviolabilidade do domicílio:

i) nos termos da decisão judicial prolatada pela 6ª Vara de Fazenda Pública da Comarca da Capital nos autos nº. 0215700-68.2016.8.19.0001, atualmente em vigor, confirmada pelo Egrégio Tribunal de Justiça, e ainda pendente de cumprimento por parte do Estado do Rio de Janeiro, seja divulgado aos agentes de segurança que os mandados judiciais de prisão e de busca e apreensão por parte de policiais militares e civis devem ser cumpridos durante o dia, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, em total observância do que estabelece a Constituição da República de 1988, sempre devendo ser lavrado o respectivo auto circunstanciado da diligência, na forma do Código de Processo Penal”; ii) à luz do entendimento firmado pelo Egrégio Tribunal de Justiça no habeas corpus nº. 0061167-57.2016.8.19.0000, seja respeitada a natureza pessoal e individual da garantia da inviolabilidade do domicílio, assim como das restrições legais admitidas, tal como a medida de busca e apreensão domiciliar, que deverá observar de forma estrita as formalidades e procedimentos dispostos nos arts. 240 e seguintes do Código de Processo Penal.

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III. QUANTO AOS PROTOCOLOS PARA USO DA FORÇA LETAL

Desde 1949 o Brasil é signatário das Convenções de Genebra e seus protocolos adicionais11, incorporado ao ordenamento pelo Decreto n. 849/1993, e, embora não se esteja em conflito internacional armado, certo é que essas convenção compõem o conjunto de documentos internacionais sobre direitos humanos ao qual o Brasil obrigou-se a cumprir. A similaridade na atuação das Forças Armadas em conflitos armados internacionais e nas operações realizadas no Estado do Rio de Janeiro autorizam o uso por analogia desses normas, especialmente quando se considera o artigo 3° das Convenções de Genebra que as estende aos conflitos armados ocorrentes dentro dos territórios das partes signatárias.

Além disso, se o ato de guerra é uma situação extremada, cercada de

cuidados em favor das pessoas que podem sofrer suas consequências, com mais razão ainda se deve entender pelo cumprimento das mesmas regras de cuidados em situações de normalidade institucional de atuação de forças de natureza policial.

Nesse sentido, de acordo com os arts. 50 e 51 dos Protocolos da

Convenção, a população civil gozará de “proteção geral contra os perigos provindos de operações militares”, sendo vedados quaisquer atos que não tenham objetivo estrito e exclusivo de atingir alvo militar.

Traduzindo essa ideia para o contexto social e urbano do Estado do Rio de

Janeiro, isso significa dizer que a população civil ou seus bens não pode ser objeto de medidas das a serem executadas pelas Forças Armadas no contexto da intervenção.

Excepciona-se, por norma, essa vedação apenas quando a população civil

tomar parte efetiva e incontestavelmente em conflito com as Forças Armadas. Vale deixar clara essa regra: a população civil, ou seja, não participante de conflitos não pode ser alvo de atos por parte das Forças Armadas até que efetivamente pratiquem crime ou atentem contra o pessoal militar.

Cuida-se de norma internacionalmente regulamentadora de direitos

humanos, concretizada no ordenamento pelo art. 1°, III, da CRFB, cuja violação dessa representa uma violência injustificada contra pessoas não participantes de conflito e enseja a responsabilização do agente e do Estado perante cortes nacionais e/ou internacionais por violações de direitos humanos.

Mais, ainda quando for necessário o uso de violência, é obrigatório que

medidas de proteção à população civil sejam preventivamente adotadas e que meios menos gravosos de danos coletivos sejam adotados.

11 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D0849.htm

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Essa exigência, aliás, decorre do princípio da proporcionalidade, previsto no art. 5°, LIV, da CRFB.

As diretrizes da Convenção de Genebra são reforçadas em um documento

da ONU adotado no 8° Congresso das Nações Unidas para Prevenção de Crime e Tratamento de Ofensores denominado “Princípios básicos no uso de violência e armas por policiais”12.

Em verdade, é seguro afirmar que esse documento contém diretrizes

claras e precisas sobre os limitações de atuação de forças de natureza policial e/ou armada, os quais entendemos que devem ser seguidas tanto pelas Polícias como pelas Forças Armadas em sua atuação, seja durante a intervenção ou não.

São diretrizes desse documento, que a Defensoria Pública espera serem

observadas pela autoridade interventora:

a) O uso de violência e armas deve ser objeto de regulamentação, observadas as questões éticas envolvidas;

b) Devem ser adotadas armas não letais para uso em ocasiões apropriadas, de modo a reduzir os riscos de lesões ou mortes;

c) As forças policiais devem ser equipadas com equipamentos de autodefesa, como roupas a prova de balas;

d) Devem ser adotadas, sempre que possível, soluções não violentas antes de se recorrer ao uso da violência ou de armas. O uso de violência ou armas pode ser usado quando os meios anteriores não puderem alcançar o resultado pretendido;

e) Armas de fogo não devem ser disparadas contra pessoas, salvo para legítima defesa pessoal ou de terceiros, e estritamente para proteger a vida que estiver em risco;

f) O uso de violência ou arma deve ser precedido de advertência, sempre que possível;

g) Quando for necessário o uso de violência ou arma, deve ser assegurado o respeito e a preservação da vida humana, de modo a causar o mínimo de dano;

h) Caso sejam provocadas lesões ou morte, deve ser assegurado cuidados médicos, comunicação aos parentes e ao superior hierárquico.

IV. FALTA DE ELEMENTOS DE IDENTIFICAÇÃO PESSOAL DOS MEMBROS DAS FORÇAS ARMADAS DURANTE AS OPERAÇÕES

Outro fato que gera grande preocupação dos mecanismos de proteção dos

direitos humanos é a recorrência de agentes estatais que atuam sem identificação

12 http://www.ohchr.org/EN/ProfessionalInterest/Pages/UseOfForceAndFirearms.aspx

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durante ações das forças de segurança no Rio de Janeiro, com os rostos e nomes cobertos, desprovidos de qualquer identificação funcional.

Esta prática, que praticamente garante ao funcionário do Estado a

impossibilidade de seu reconhecimento, permite a ocorrência de graves violações dos direitos humanos.

Vivemos num Estado Democrático de Direito, em que um dos seus

objetivos é a promoção do bem de todos (art. 3º, IV, da CRFB) e tem como fundamento a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CRFB), além de preconizar a não submissão a tortura ou tratamento desumano ou degradante (art.5º, III, da CRFB), bem como a inviolabilidade da intimidade, honra e da vida privada (art.5º, X, da CRFB), assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.

Além disso, a Constituição da República prevê que é assegurado a todos o

acesso à informação (art.5º, XIV, da CRFB), sendo que o preso tem direito à identificação dos responsáveis por sua prisão ou por seu interrogatório policial (art.5º, LXIV, da CRFB).

Não se pode esquecer que os direitos e garantias expressos na

Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte (art.5º, § 2º, da CF).

Nesse sentido, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu

artigo 8°, prevê que toda a pessoa tem direito a recurso efetivo para as jurisdições nacionais competentes contra os atos que violem os direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição ou pela lei.

A preocupação com o tema é tamanha que o artigo 3º do Pacto

Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, destaca claramente que os Estados-partes se comprometem a garantir que toda pessoa, cujos direitos e liberdades reconhecidos no presente Pacto tenham sido violados, possa de um recurso efetivo, mesmo que a violência tenha sido perpetrada por pessoas que agiam no exercício de funções oficiais.

Assim, para que seja possível pleitear a reparação pelos danos causados

em razão das violações de direitos humanos perpetradas durante a intervenção federal e eventual responsabilização dos agentes que atuaram com abuso de autoridade, é preciso que seja disponibilizado ao cidadão a identificação dos funcionários públicos.

Ressalta-se que a reparação dos violadores de direitos humanos é uma

vertente do Estado Democrático de Direito, que ganhou força com a ocorrência da Justiça de Transição, que é justamente a passagem de um regime autoritário anterior

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para um regime democrático, compreendendo diversas práticas administrativas e judiciais que visam restaurar a ordem democrática, como por exemplo, responsabilizar o Estado pelos abusos cometidos.

Para a ONU, justiça de transição é o conjunto de mecanismos usados para

tratar o legado histórico da violência dos regimes autoritários. Em seus elementos centrais estão a verdade e a memória, através do conhecimento dos fatos e do resgate da história.

Na verdade, o desenvolvimento humano só existe de fato quando abrange

também o reconhecimento dos direitos das pessoas, surgindo uma obrigação moral de apoiar a criação de mecanismos e processos que promovam a justiça e a reconciliação.

É através desse prisma que os ideais de um mundo mais justo e pacífico

devem ser concretizados. Justiça, paz e democracia não são objetivos que se excluem. Ao contrário, são imperativos que se reforçam.

Ou seja, resta claro que, num regime democrático de Direito, é necessário

que haja a punição dos agentes responsáveis pelas violações de diretos humanos, ideia que se mantém e deve ser fortalecida.

Inclusive, no âmbito internacional, a Corte Interamericana de Direitos Humanos já afirmou que o dever de investigar e punir é uma norma de jus cogens13: As “garantias de não-repetição” consistem em uma das formas de reparação por violação de direitos humanos utilizadas para que se assegure que os Estados julgados por sua jurisdição não tornem a violar direitos humanos previstos na Convenção Americana de Direitos Humanos.

Dentro dessas garantias de não-repetição, insere-se o dever de investigar

e punir, conforme o qual o Estado condenado pela jurisdição da Corte IDH é sentenciado a investigar e punir os autores das violações de direitos humanos14.

Desse modo, evita-se tanto a reincidência da conduta violadora de direitos

humanos quanto a própria impunidade dos responsáveis. Vejamos a lição de André de Carvalho Ramos sobre o tema: “Diante da

gravidade das condutas de violações de direitos humanos, pode ser fixado o dever do Estado em investigar e punir os responsáveis pelas violações, de modo a evitar a

13 O dever de investigar e punir foi utilizado pela primeira vez no caso Velásquez Rodriguez vs.

Honduras, primeiro caso julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos desde o início

de seus trabalhos no ano de 1988.

14 O dever de investigar e punir foi utilizado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos na sentença proferida contra o Estado brasileiro no caso Gomes Lund e outros vs. Brasil. O tribunal interamericano ordenou que o Brasil investigasse os fatos e punisse os responsáveis pelas violações de direitos humanos na região do Araguaia.

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impunidade e prevenir a ocorrência de novas violações. Tal objetivo de prevenção da ocorrência de novas violações insere o chamado “dever de investigar, processar e punir” como forma de garantia de não repetição15”.

Nessa linha, a Corte IDH reiterou o caráter de norma de jus cogens do

dever de investigar e punir, ressaltando o caráter cogente e imperativo dessa norma para a comunidade internacional como um todo.

Com o intuito de elucidar qualquer dúvida sobre o conceito de norma de

jus cogens, André de Carvalho Ramos explica o que são essas normas imperativas: “No Direito Internacional, a norma imperativa em sentido estrito (também denominada norma cogente ou norma de jus cogens) é aquela que contém valores considerados essenciais para a comunidade internacional como um todo, e que, por isso, possui superioridade normativa no choque com outras normas de Direito Internacional. Assim, pertencer ao jus cogens não significa ser considerado norma obrigatória, pois todas as normas internacionais o são: significa que, além de obrigatória, a norma cogente não pode ser alterada pela vontade de um Estado16”.

Além da necessidade de punição, o direito à verdade e o acesso à informação também devem estar presentes num regime Democrático. Por isso, a constituição Federal assegurou a todos o acesso à informação (art.5º, XIV, da CRFB).

O direito à informação consiste no direito individual ou coletivo de

fornecer, veicular e receber informações sobre fatos ou condutas em geral. Há, então, a dupla dimensão do direito à informação: a dimensão de (i) fornecer informação e a de (ii) recebê-la. Todos têm o direito de se informar livremente a partir de diversas fontes.

A lei nº 12.527/2011, que regulamenta o art.5º, XIV, da CRFB, afirma em

seu art.3º, inciso II, o direito fundamental de acesso à informação e a divulgação de informações de interesse público, independentemente de solicitações.

No art. 5º, garante que é dever do Estado garantir o direito de acesso à

informação, que será franqueada, mediante procedimentos objetivos e ágeis, de forma transparente, clara e em linguagem de fácil compreensão.

Já em seu art. 7º, inciso V, assegura que o acesso à informação

compreende, entre outros, os direitos de obter informação sobre atividades exercidas pelos órgãos e entidades, inclusive as relativas à sua política, organização e serviços.

15 RAMOS, André de Carvalho. Responsabilidade Internacional por Violação de Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 291-292. 16 28 RAMOS, André de Carvalho. Teoria Geral dos Direitos Humanos na Ordem Internacional. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p.152-153.

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Assim, informações de interesse público, produzidas no exercício de função pública devem ser divulgadas. Note-se que a regra na Constituição Federal é a publicidade dos atos, sendo o sigilo a exceção.

Trata-se de um conflito: privacidade da identidade dos militares de um

lado, e de outro a liberdade de informação e garantia de direitos fundamentais. Nesse sopesamento de valores, o segundo prepondera, em um juízo de proporcionalidade, inclusive para não incidir em futura restrição ao direito de pleno acesso à justiça (art.5º, XXXV, da CRFB).

Ou seja, não há dúvidas que a população tem direito à informação da

identificação dos militares em qualquer abordagem realizada, por se tratar de informação de interesse público, uma vez questão atuando como agentes públicos lato sensu, e devem ser responsabilizados por eventuais abusos e ilícitos cometidos, inclusive, visando inibir a prática de tortura.

Com o advento da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948,

reconheceu-se, formalmente, a proibição da tortura pelos estados membros da Organização das Nações Unidas. No art. 5º deste documento estabeleceu-se que “ninguém será submetido a tortura, nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes”.

A Constituição da República de 1988 ratificou esse dispositivo, ao replicar

a proibição da tortura no inciso III, de seu art. 5º. Não é por outro motivo que o Estado Brasileiro, ao longo dos anos, vem se comprometendo, internacionalmente, com o combate e prevenção à tortura, ao emprestar validade às regras internacionais acerca do tema, a saber: (i) Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, ratificada pelo Decreto nº 98.386, de 9 de dezembro de 1989; (ii) Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes das Nações Unidas, ratificada pelo Decreto nº 40, de 15 de fevereiro de 1991 e (iii) Protocolo Facultativo à Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, ratificado pelo Decreto nº 6.085, de 19 de abril de 2007.

Esses antecedentes, inclusive, representam o sentido e a razão para o

advento da Lei nº 12.847, de 2 de agosto de 2013, a qual criou o Sistema Nacional de Combate à Tortura, visando consolidar no Brasil a formação de uma rede de atores em nível nacional e local, aptos a facilitar a articulação de ações para a prevenção e o combate à tortura, por intermédio do intercâmbio de boas práticas, organização de medidas para a implementação das recomendações feitas no âmbito do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, além da aplicação do controle e participação social, por meio de um Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura.

Assim, visando o cumprimento desses Tratados Internacionais, e o

combate à impunidade dos agentes, a fim de se adotar uma postura redutora de danos

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durante a intervenção federal, impõe-se a necessidade de identificação dos mesmos, ainda que por signo numérico ou semelhante, que permita proteger o agente público de eventuais represálias em caso de ser reconhecido, mas ao mesmo tempo garanta a sua identificação por mecanismos internos das corporações em eventual caso de processo de responsabilização por abusos de autoridade. IV. DAS REVISTAS E ABORDAGENS GENERALIZADAS/FILTRAGEM RACIAL

Outro aspecto preocupante da atuação das forças de segurança no Estado

do Rio de Janeiro é o racismo institucional inerente às suas abordagens/estratégias de intervenção, que acaba por afetar de maneira desproporcional o grupo vulnerável constituído pelas pessoas negras/migrantes que ocupam os espaços geográficos mais precários da cidade: as favelas.

E recentemente, já no contexto da intervenção federal, percebe-se a

manutenção desta forma viciada de atuar das agências de segurança, tal como se deu no caso da Vila Kenedy, em que moradores de toda a comunidade foram submetidos a revistas e abordagens e inclusive tiveram seus rostos fotografados, sem qualquer distinção entre as pessoas que infringem a lei e devem ser objeto da ação do Estado e aqueles cidadãos e cidadãs que não oferecem qualquer ameaça à lei ou à segurança pública.

Pelo contrário, tem-se um modo de atuar que visa a preservação da ordem (entendida como expressão da força do Estado) e oferecer proteção contra o crime e a violência social apenas a alguns estratos privilegiados da população, o que implica em demarcar o espaço geográfico da favela como “território inimigo” e os corpos dos seus habitantes como “descartáveis”, levantando-se assim o véu da legalidade democrática para estes segmentos populacionais cuja desproteção é encarada como “dano colateral”, previsível.

O estudo “Retrato das desigualdades de gênero e raça”17, produzido pela

instituição governamental Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada e publicado no ano de 2011, revela que 66% dos domicílios situados em adensamentos subnormais no Brasil são chefiados por uma pessoa negra, enquanto apenas 33,9% possuem chefia branca. Os dados indicam ainda que o percentual de domicílios em adensamentos subnormais vem diminuindo para os chefes de família brancos e vem aumentando em especial para aqueles domicílios que são chefiados por mulheres negras, o que indica a crescente vulnerabilidade nas condições de habitação das famílias chefiadas por mulheres negras. Entenda-se aqui por “assentamento subnormal” as favelas e conjuntos assemelhados de unidades habitacionais dispostas, em geral, de forma desordenada e densa, e carente de serviços públicos essenciais.

17 IPEA, Instituto de Pesquisa Economica Aplicada. Retrato das desigualdades de gênero e raça. 4ª

edição, Brasília: Ipea, 2011, p. 31. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/retrato/pdf/revista.pdf, acesso

em 02/08/2017, às 18h38min.

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Na mesma toada, o “O Mapa da Violência 2016”18, pesquisa produzida pelo sociólogo Julio Waiselfisz, Coordenador da Área de Estudos Sobre Violência da FLACSO – Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais –, sobre os homicídios provocados por armas de fogo no Brasil, demonstra a existência de um verdadeiro extermínio da juventude negra brasileira, sob os auspícios do Estado. É assustadora a proporção de violência contra negros se comparada à população branca: entre 2003 e 2014, o estudo aponta que o número de homicídios por arma de fogo no seio da população branca diminuiu na 26,1%. Todavia, no mesmo período aumentou 46,9% na população negra. Em 2014, pode-se afirmar que morrem, proporcionalmente, 158,9% mais negros do que brancos no país.

Outrossim, de acordo com recente publicação da organização Human

Rights Watch, intitulada “O Bom Policial Tem Medo”19 , nos últimos 10 anos as Polícias do Estado do Rio de Janeiro mataram mais de 8.000 (oito) mil pessoas. Enquanto cerca de metade da população do Rio de Janeiro é negra, os negros somam mais de três quartos das pessoas mortas pela polícia em 2015.

Os números não deixam dúvidas de que a desigualdade na proteção do

direito à vida e de outros direitos humanos fundamentais da população negra que está inserida nas favelas do Rio de Janeiro decorre de uma política de segurança eivada de racismo institucional.

Nos espaços predominantemente negros e precarizados da cidade, a

naturalização da violência praticada pelas agências estatais de segurança sob o pretexto de combater o “inimigo público” (tráfico de drogas) aponta a forte marca do racismo institucional que, apesar de não se fazer presente no discurso formal das autoridades estatais, se materializa em cada uma das decisões cotidianas que sujeitam as favelas e os corpos negros a um regime de desproteção legal absoluta.

A hedionda prática do “racial profiling” já fora denunciada em relatório

desta própria Comissão emitido duas décadas atrás20 sobre a situação de direitos humanos no Brasil e, mais recentemente, no “Relatório sobre a situação de pessoas afrodescendentes nas Américas”, produzido em 201121, que identificou a dupla vitimização da população afrodescendente nas Américas, já que o grupo tem sido excluído da proteção das forças de segurança do Estado e, ao mesmo tempo, tem

18 WAISELFISZ, J. J. Mapa da violência 2016. Homicídios por arma de fogo no Brasil. Disponível em:

http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2016/Mapa2016_armas_web.pdf, acesso em 02/08/2017, às

18h38min. 19 ACEBES, C. M. O bom policial tem medo, HUMAN RIGHTS WATCH, 2016. Disponível em:

https://www.hrw.org/pt/report/2016/07/07/291589, acesso em 02/08/2017, às 19h03min. 20 CIDH, “Relatório sobre a situação de direitos humanos no Brasil” (disponível em português), 29 de

setembro de 1997. 21 CIDH, La situación de las personas afrodescendientes en las Américas, 2011,

http://www.acnur.org/t3/fileadmin/Documentos/BDL/2012/8311.pdf, p. 58.

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sido alvo de violência e práticas desproporcionais de uso da força (inclusive letal) e da corrupção policial, cometidas com total impunidade.

Nos territórios em que vigora o regime de subcidadania, observa-se na

prática a larga utilização de estereótipos racistas, inclusive para estabelecer um maior grau de permissividade em relação às arbitrariedades dos efetivos policiais, o que tem contribuído para acentuar a situação de desigualdade racial a que está submetida a população negra do Rio de Janeiro.

No contexto em análise, o racismo institucional das organizações

estatais que zelam pela segurança pública no Rio de Janeiro pode ser traduzido como a falha coletiva de tais agências em prover a adequada proteção da vida e da cidadania da população majoritariamente negra que habita as áreas periféricas do Estado.

É crucial enxergar a política de segurança do Estado sob a perspectiva dos

conflitos raciais subjacentes à diretriz de “guerra às drogas” que se desenvolve na cidade do Rio de Janeiro. Somente uma mirada atenta à questão racial traz à tona a flagrante discriminação na tutela do direito à vida segundo um critério de cor da pele. E não é demais lembrar que as Nações Unidas, em recente relatório produzido pelo Grupo de Trabalho sobre Afrodescendentes em visita ao Brasil realizada no ano de 2013, denunciou a persistência do racismo institucional e estrutural sofrido pelos negros brasileiros, especialmente em decorrência do uso da força pela polícia e agências de segurança em geral. Digno de nota o item F do Relatório, que cuida das múltiplas discriminações:

“75. One of the biggest concerns is violence perpetrated by the police and security forces against young Afro-Brazilian males. Such complaints are not new with the United Black Movement denouncing cases of violence, torture and death from 1978. The infamous Candelaria massacre of eight young people in the streets of Rio de Janeiro in 1993, which raised national and international outrage, is another example of such violence against AfroBrazilian young people. Twenty years after these events, arbitrary violence and killings of young black people remains concerns. 76. According to a Ministry of Health report based on the System of Mortality Information (SIM) in 2006, every 48 hours three people were killed by the police in Brazil, amounting to 46 deaths per month or 560 per year. According to Soares (2003), the police force (including civil, military and federal) is one of the only institutions that did not undergo institutional reform at the end of the dictatorship and the adoption of the new constitution in 1988. Consequently, the institution continues to be characterised by a lack of respect for human rights. 77. The police is responsible for maintaining public security as asserted in the Federal Constitution, yet institutional racism, discrimination and a culture of violence lead to practices of racial profiling, over-policing, blackmail, torture, extortion and

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humiliation particularly against AfroBrazilians. The use of force and violence for crime control and public security has become accepted by society at large because it is perpetrated against a sector of society whose lives are not considered as valuable. The Group views this as the fabrication of an internal enemy which justifies the use of military tactics to control criminal behaviour and reduce public and private liberties”22.

Cabe apontar ainda, dentre as conclusões dirigidas ao Estado Brasileiro

no parágrafo 108 do Relatório, a expressa recomendação no sentido de que: sejam promovidas políticas de prevenção da violência contra membros vulneráveis da sociedade, particularmente afrobrasileiros e outros grupos marginalizados (item d); o estabelecimento de níveis de controle da polícia militar, cuja independência tem tido sérias consequências para os jovens afrodescendentes no Brasil (item g); o questionamento da legitimidade das mortes ditas em legítima defesa provocadas pela polícia (item h); a ampliação dos treinamentos e sensibilização das polícias para modificar a cultura de violência estabelecida sob o pretexto da segurança pública (item i).

É crucial, portanto que a intervenção federal tenha em conta o

necessário enfrentamento do racismo institucional nas forças de segurança brasileiras, por meio de medidas que envolvam, necessariamente:

i) a elaboração e implementação de protocolos de abordagem destinados a reduzir a discricionariedade dos agentes estatais e evitar a utilização de estereótipos raciais na atuação das forças de segurança; ii) o oferecimento de treinamentos permanentes destinados às forças de segurança, em especial aos efetivos responsáveis pela atuação em favelas, direcionados a modificar a prática de etiquetamento do jovem negro como suspeito preferencial, bem como a incutir nos profissionais o papel de protetores dos direitos humanos; iii) a planificação de ações afirmativas orientadas a reduzir as desigualdades raciais nos índices de letalidade e vitimização das polícias.

V. QUANTO ÀS VIOLAÇÕES DO SIGILO DAS COMUNICAÇÕES TELEFÔNICAS E DE DADOS

É prática, hoje usual, a devassa de dados em aparelhos de telefonia celular, sem mandado de busca, em prisões em flagrante. Tal procedimento viola o

22http://www.ohchr.org/EN/HRBodies/HRC/RegularSessions/Session27/Documents/A.HRC.27.68

.Add.1_AUV.doc

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direito à intimidade, como já foi abordado pelo Superior tribunal de Justiça no RHC 051531. A busca de dados e provas em equipamentos de telefonia celular, possibilita violação de um sem número de direitos e garantias individuais e geram a nulidade da prova obtida ilicitamente. A questão chegou ao STF com repercussão geral já reconhecida no Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 1042075. Na prática há uma devassa generalizada em aparelhos de telefonia celular de pessoas, presas ou não, por responsáveis pelo policiamento ostensivo e essas buscas sem mandado judicial além de anularem eventual processo judicial, podem constituir crime de abuso de autoridade.

A proteção ao material contido em aparelhos de celular tem nítida

natureza constitucional e diz respeito à inviolabilidade do sigilo das comunicações telefônicas (artigo 5ª, inciso XII, da Constituição da República) e à impossibilidade de utilização, no processo, de provas supostamente obtidas por meio ilícito. Essas garantias constitucionais mantêm estreito vínculo entre si e regulam e limitam a obtenção, a produção e a valoração das provas destinadas ao Estado, o que, no caso, será decisivo para se determinar a legitimidade da atuação da autoridade policial no papel de proceder à coleta de elementos e informações. O conteúdo de um celular revela não só informações íntimas do seu dono, mas também dos interlocutores menos e mais constantes. Além disso, o celular não deve ser compreendido como mero receptáculo de dados pessoais, mas também como uma tecnologia que efetivamente altera as formas de ser na sociedade, relacionando-se de maneira próxima com a personalidade, devendo a personalidade ser compreendida como objeto de proteção da intimidade.

Importante lembrar que os direitos e garantias fundamentais devem ter

interpretação ampla, visto serem normas benéficas e vivemos no estado democrático de direito. A ausência de uma cláusula de reserva na Constituição de modo algum autoriza que, independentemente da apreciação judicial seja autorizado o acesso aos dados armazenados em aparelhos de telefonia celular.

Atualmente, o celular deixou de ser apenas um telefone, permitindo,

diante do avanço tecnológico, o acesso de múltiplas funções, incluindo, no caso, a verificação da correspondência eletrônica, de mensagens e de outros aplicativos que possibilitam a comunicação por meio de troca de dados de forma similar à telefonia convencional. Nesta seara, a violação do sigilo de dados, de correspondência entre outros é algo que viola a intimidade e justamente por isso submetida à imprescindibilidade da jurisdição.

A existência de determinados aplicativos instalados em um aparelho

celular revela nitidamente a personalidade do seu dono e não raro afeta o íntimo da pessoa, que vê ali seu porto seguro em relação a questões íntimas como a sua orientação sexual, seus gostos que eventualmente não quer serem revelados e por aí segue.

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A capacidade de armazenamento de telefones celulares tem várias consequências interrelacionadas com a privacidade. Primeiramente, um telefone celular reúne em um lugar muitos tipos distintos de informações - um endereço, uma nota, uma receita, um extrato bancário, um vídeo - que revelam muito mais em combinação do que qualquer registro isolado, que em conjunto retratam a vida da pessoa, inclusive os lugares que frequenta, seus registros e toda a sua intimidade.

Deste modo, é essencial que a intervenção federal não admita como prática das forças de segurança em atuação no Estado do Rio de Janeiro a ilícita devassa de dados, como das conversas do Whatsapp, contatos, acesso aos aplicativos, fotos etc. constantes de aparelho de telefonia celular apreendido durante prisões em flagrantes ou buscas pessoais, porquanto violado o sigilo de dados sem a imprescindível autorização judicial. VI. DA TRANSPARÊNCIA E PRESTAÇÃO DE CONTAS

A convocação das Forças Armadas para tarefas de segurança e até mesmo em unidades prisionais tem sido frequente. Entre 2010 e 2017, foram realizadas 29 ações de GLO no Brasil, inclusive um período de 15 meses de ocupação militar no conjunto de favelas da Maré23 (abril/2014 a junho/2015) e para proteção de prédios do Governo Federal quando dos protestos em Brasília, em 24/05/17, contra a reforma da legislação trabalhista.

A utilização, cada vez mais frequente, das Forças Armadas em funções

de segurança tem sido criticada por significar um reforço do modelo de segurança militarizado, típico de regimes autoritários, que priorizam a proteção de determinados territórios de classes sociais abastadas, de um lado, e isolamento e repressão violenta em territórios populares, por outro lado. Com efeito, há um afastamento do modelo de segurança cidadã, paradigma em regimes democráticos, que têm como centralidade a proteção de direitos humanos. Nos últimos 25 anos, as operações das Forças Armadas no Rio de Janeiro não tiveram efeito esperado na redução de criminalidade, segundo levantamento feito pela imprensa com base na série histórica do ISP24. Os militares foram convocados para a Conferência Eco92, ocupação do Complexo do Alemão (dezembro/2010 a junho/2012), nos Jogos Pan-Americanos em 2007, na Copa do Mundo 2014, nas Olimpíadas 2016, entre outras ocasiões, e em alguns casos os indicadores criminais até pioraram, demonstrando que tal medida não produz efeitos nem mesmo de curto alcance e menos ainda de médio ou longo prazo.

23 A Maré é oficialmente um bairro da cidade do Rio de Janeiro, contando com 142 mil habitantes e um

abrange as seguintes comunidades: Praia de Ramos, Parque Roquete Pinto, Parque União, Parque Rubens

Vaz, Nova Holanda, Parque Maré, Conjunto Nova Maré, Baixa do Sapateiro, Morro do Timbau, Bento

Ribeiro Dantas, Vila dos Pinheiros, Conjunto Pinheiros, Conjunto Novo Pinheiro, Salsa & Merengue,

Vila do João e Conjunto Esperança. 24 https://extra.globo.com/casos-de-policia/operacoes-das-forcas-armadas-no-rio-nos-ultimos-25-anos-

nao-reduziram-criminalidade-21653825.html?versao=amp

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No caso da Maré, as Formas Armadas permaneceram entre 1° de abril de 201425 a 30 de junho de 2015. Nesse período de 1 ano e três meses de ocupação militar, o custo foi de R$ 600 milhões, valor equivalente ao dobro dos gastos de programas sociais da Prefeitura Municipal nos seis anos anteriores26. Na atual GLO no Rio de Janeiro, os gastos serão de R$ 1,5 milhão por dia para manutenção dos militares nas ruas. Considerando que a previsão de duração da operação é de até 31 de dezembro de 2017, serão, pelo menos, R$ 225 milhões de despesas. Convém recordar que os servidores públicos estaduais, incluindo aí os policiais, estão com salários e gratificações atrasadas e diversos serviços públicos estão em situação de extrema precariedade, principalmente os de saúde, e a Universidade do Estado do Rio de Janeiro está em greve por falta de pagamentos.

Nesse sentido, o próprio Comandante do Exército, General Eduardo

Villas Bôas, em audiência pública no Senado Federal, afirmou que o uso das Forças Armadas em atividades de segurança pública através dos decretos de GLO desagrada os próprios militares. O General declarou com relação à experiência na Maré que: “Lá [na favela da Maré] ficamos 14 meses. No dia em que saímos, uma semana depois, tudo havia voltado ao que era antes. Temos que realmente repensar esse modelo de emprego, porque ele é desgastante, perigoso e inócuo” 27.

Por outro lado, relevante conquista trazida pela Constituição de 1988 a

respeito do controle das atividades e decisões adotadas pela a administração pública diz respeito aos princípios da legalidade e a publicidade (art. 37, caput). Diante de seu caráter genérico abrangente, essa norma constitucional espraia seus efeitos para toda ação estatal. Em função disso, no ano de 2012, foi promulgada a Lei federal n˚. 12.527 (conhecida como Lei de Acesso à Informação), que em seu artigo 3° determina elenca dentre suas diretrizes: a publicidade como preceito geral e do sigilo como exceção; a divulgação de informações de interesse público; o fomento ao desenvolvimento da cultura da transparência na administração pública e o desenvolvimento do controle social dos atos dos agentes e autoridades públicas.

O art. 21, caput, do referido diploma legal é expresso ao proibir a negativa

de acesso à informação necessária à tutela judicial ou administrativa de direitos fundamentais. O parágrafo único do dispositivo legal ainda enfatiza que: “As informações ou documentos que versem sobre condutas que impliquem violação dos direitos humanos praticada por agentes públicos ou a mando de autoridades públicas não poderão ser objeto de restrição de acesso.”.

25 Triste coincidência da data com o cinquentenário do golpe militar que instaurou o regime ditatorial no

Brasil (1964-85). 26 http://brasil.estadao.com.br/blogs/estadao-rio/na-mare-ocupacao-militar-custou-o-dobro-dos-gastos-

sociais-nos-ultimos-seis-anos/ 27 http://g1.globo.com/politica/noticia/comandante-do-exercito-diz-que-uso-de-militares-na-seguranca-

publica-e-perigoso.ghtml

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Em razão da tal conjuntura de excepcionalidade institucional e de graves índices de violência social e criminalidade e, ante o princípio constitucional da publicidade que rege a administração pública (art. 37, caput, CRFB/88), é de rigor que a intervenção federal fortaleça os mecanismos da transparência e prestação de contas na gestão da política de segurança pública do Estado apresente relatórios públicos que minudenciem:

i) os gastos públicos mobilizados desde sua decretação; ii) dados detalhados sobre as operações das forças de segurança realizadas desde o decreto de intervenção, que contenham informações sobre: o ordenador, o comandante e o objetivo da operação policial/militar, as pessoas mortas (policiais/militares ou não) e detidas no decorrer da operação (ainda que não se conheça a autoria), adolescentes e materiais apreendidos, buscas domiciliares realizadas, consumo individualizado de munição por parte dos policiais/militares e relação do armamento, das viaturas utilizadas, e de todos os policiais/militares participantes e outras informações pertinentes ao controle externo da atividade policial/militar e à proteção de direitos humanos.

VII. ACCOUNTABILITY OU RESPONSIVIDADE: MECANISMOS EXISTENTES NA LEGISLAÇÃO ESTADUAL

Como resultado da tolerância de superiores hierárquicos e órgãos de

controle (interno e externo) e/ou fragilidade dos mecanismos de transparência, prestação de contas e responsividade (accountability), as força de segurança brasileiras são historicamente marcadas pelos padrões de uso excessivo da força letal e por outros abusos de autoridade praticados de forma reiterada e sistemática, sobretudo contra populações vulneráveis, como os habitantes de favelas.

De acordo com o Manual de accountability, supervisão e integridade da

polícia produzido pelo Escritório da Organização das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (UNODC), os mecanismos de controle devem ser um “conglomerado de processos”, operar antes, durante e depois de operações policiais, bem como devem ser internos e externos, preventivos e responsivos.

Nessa toada, já existe uma gama de mecanismos úteis previstos na legislação vigente capazes de propiciar maior controle das atividades policiais e proteção aos direitos humanos, que motivaram inclusive que a Defensoria Pública ajuizasse ação civil pública contra o Estado do Rio de Janeiro (autos n˚. 0215700-68.2016.8.19.0001) para forçar sua implementação pela administração.

Desse modo, serve-se a Defensoria Pública do presente requerimento

para exortar sejam efetivadas pela intervenção federal as legislações estaduais que

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visam assegurar maior responsividade dos abusos praticados por funcionários do Estado em atuações de segurança pública.

O primeiro destes mecanismos está disposto na Lei Estadual n˚. 5.588/2009, que prevê a obrigatoriedade de instalação de câmeras de vídeo e áudio nas viaturas das forças de segurança.

Entretanto, há quase 7 anos no Estado do Rio de Janeiro não se obteve

resposta quanto ao cumprimento efetivo e integral da referida legislação no que concerne às viaturas bélicas blindadas (popularmente conhecidas como “caveirões”) –os ofícios expedidos pela Defensoria Pública indagando sobre a presença não foram respondidos.

Cumpre esclarecer que a utilização desse sistema de monitoração já se

provou essencial na elucidação de crimes em muitas ocasiões. Outros casos também contaram com a imprescindível colaboração das imagens e sons das viaturas para a investigação.

Logo, relevantíssimo o cumprimento dessa normativa de modo a permitir

que haja maior controle social sobre a atuação cotidiana dos agentes de segurança e também eventual responsabilização por abusos cometidos no exercício da função, eventos que se revestem da mais alta gravidade considerando que o Estado detém o monopólio da força e deve ser o primeiro responsável pela aplicação das leis.

Por fim, mas não de menor importância, o monitoramento traz benefícios ao próprio policial/militar, que diante de eventuais acusações infundadas de abuso, pode recorrer aos dados coletados para demonstrar como os fatos efetivamente ocorreram. Ou seja, não há qualquer ponto negativo para os agentes que cumprem a lei e seus deveres funcionais –assim, somente aqueles que atuam de maneira desvirtuada defendem as sombras à transparência.

Outro instrumento de incremento da responsividade das polícias consiste

na na Lei Estadual n° 5.443/2009, destinada a promover maior controle e fiscalização das atividades policiais com vistas à proteção de direitos humanos por meio da implantação do sistema GPS (Global Position System) nas viaturas automotivas que vierem a ser adquiridas para servir as áreas de Segurança, Saúde e Defesa Civil.

De acordo com seu art. 2°, preceitua-se que nas viaturas já adquiridas,

gradativamente deverá ser implementado o sistema de localização por satélite. Por fim, a legislação estadual dispõe ainda sobre a presença de

ambulâncias em operações policiais que envolvam possível confronto armado, não só como forma de garantir o socorro médico a feridos, mas também com o objetivo de preservar cenas de homicídios e garantir o acautelamento de provas. A Lei estadual

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nº. 7.385/2016 evidencia a preocupação do legislador com os altos números de homicídios no bojo de operações em comunidades. Em busca de mitigar o que se convencionou chamar de “efeitos colaterais” da atuação policial, o próprio Poder Legislativo estadual previu a possibilidade de que o Executivo determine a presença obrigatória de ambulâncias em operações policiais previamente planejadas, com possíveis confrontos armados.

Outro fator que motiva esta norma é o enfrentamento da ocorrência

frequente de remoção dos corpos e condução dos cadáveres ao hospital a pretexto de prestar socorro, quando, na verdade, o objetivo é desfazer a cena do crime, dificultar a investigação e responsabilização por execuções extrajudiciais, obstruindo a justiça.

Assim, determinou a Lei nº. 7.385/16 a presença obrigatória de

ambulâncias em todas as operações realizadas com efetivo superior a cinco policiais, seja operação isolada das polícias civil ou militar, ou ainda das Forças Armadas, seja operação conjunta das corporações, devendo o Estado garantir ainda a comunicação do Hospital Estadual ou Municipal mais próximo, a fim de que a unidade fique de sobreaviso para receber vítimas de possível confronto, nos termos do art. 4º. Tal prática se alinha, ainda, à realidade das atividades militares que contam sempre com um destacamento de saúde. Os mesmos profissionais militares que atendem os militares devem, por evidente, atender também à população civil porventura ferida em operações.

Assim, na esteira da decisão judicial liminar atualmente em vigor na

ação civil pública de autos n˚. 0215700-68.2016.8.19.0001 (que tramita na 6a Vara de Fazenda Pública da Comarca da Capital do RJ), é necessário que a intervenção federal observe a obrigação do Estado do Rio de Janeiro de implementar imediatamente as Leis estaduais acima citadas, a fim de garantir a instalação de sistemas de GPS, câmeras de áudio e vídeo nas viaturas das forças de segurança estaduais, bem como a obrigação de providenciar a presença de ambulâncias nas operações policiais. VIII. DAS PRISÕES POR DESACATO

Usualmente, a imputação do crime de desacato vem sendo utilizada, de forma recorrente, como forma de silenciar a discordância das pessoas contra decisões e atos provocados por agentes estatais (inclusive de segurança), quando estes mesmos agentes cometem excessos e abusos no exercício do próprio poder estatal. Funciona a figura típica do desacato como forma de silenciar a indignação dos particulares como uma forma de coerção pelo correto cumprimento da lei.

Tendo em vista que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos já

estabeleceu que as leis que criam o crime de desacato são incompatíveis com a Convenção Americana sobre os Direitos Humanos, qualquer cerceamento da

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liberdade pessoal baseada em leis daquela natureza fere o artigo 7º, inciso 2, da Convenção, que estabelece:

“Ninguém pode ser privado de sua liberdade física, salvo pelas causas e nas condições previamente fixadas pelas constituições políticas dos Estados Partes ou pelas leis de acordo com elas promulgadas.” Tal artigo da Convenção deve ser interpretado tendo em conta o que

dispõe o artigo 29, especialmente na alínea “a”, ou seja, que nenhuma disposição da Convenção pode ser interpretada no sentido de “permitir a qualquer dos Estados Partes, grupo ou pessoa, suprimir o gozo e exercício dos direitos e liberdades reconhecidos na Convenção ou limitá-los em maior medida do que a nela prevista”.

Portanto, se alguma norma de direito interno colide com as previsões da

Convenção Americana sobre os Direitos Humanos para restringir a eficácia e o gozo dos direitos e liberdade nela estabelecidos, a interpretação a ser dada é no sentido da prevalência da norma do tratado e não a da legislação interna.

Desde o marco da Opinião Consultiva nº. 5, de 13 de novembro de

1985, a Corte Interamericana de Direitos Humanos vem entendendo que a consagração do princípio “pro homine” indica que na hermenêutica das normas, internas e internacionais, prevalece o princípio de interpretação extensiva dos direitos humanos e restritiva de suas limitações.

Assim, ao se contemplar o artigo 331 do Código Penal brasileiro em

conjunto com o artigo 13 da Convenção Americana sobre os Direitos Humanos deve prevalecer este último, que mais bem ampara o direito à liberdade pessoal. Desta maneira, a intervenção federal deve observar os estandes internacionais de proteção dos direitos humanos e adotar a proteção da liberdade pessoal, em detrimento da figura típica do art. 331 do Código Penal ou do art. 299 do Código Penal Militar. IX. PROVIDÊNCIAS PARA REDUÇÃO DE DANOS

Finalmente, o quadro de absoluta gravidade que a segurança pública no

Estado do Rio de Janeiro apresenta, inclusive sob a perspectiva do uso abusivo da força letal, ausência de transparência e prestação de contas, permissividade das instâncias oficiais diante de condutas abusivas dos agentes de segurança etc., faz-se necessário que a intervenção federal adote medidas destinadas a implementar uma política de segurança cidadã no Estado.

Podemos encontrar importantes referências no relatório publicado pela

Comissão Interamericana de Direitos Humanos no ano de 2009, que teve por objetivo interpretar as obrigações negativas e positivas dos Estados membros da OEA com respeito a direitos humanos vinculados à segurança cidadã, particularmente aos

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direitos das vítimas da criminalidade frente ao Estado e as ações violentas dos atores estatais e não‐ estatais (organizados e não‐ organizados).

De forma muito adequada à realidade brasileira, inclusive à das Favelas

cariocas, a Comissão diagnosticou que as políticas de segurança pública historicamente desenvolvidas nas Américas têm-se caracterizado pela desvinculação dos parâmetros internacionais em matéria de Direitos Humanos e, em muitos casos, tem-se apelado para o uso da força de maneira ilegal e arbitrária em nome da prevenção e controle do crime e da violência. No citado documento, fica claro que os Estados Americanos só podem prover adequadamente um nível mínimo de segurança a todos se incorporarem uma política de segurança cidadã, que opere dentro do pleno respeito aos direitos humanos.

No mesmo sentido, a Declaração de San Salvador sobre Segurança

Cidadã nas Américas, adotada pela Assembleia Geral da OEA em 2011, estabelece diretrizes para transformação do conceito de segurança nas Américas, passando necessariamente pelo respeito integral aos direitos humanos. Nessa perspectiva, não é admissível a adoção da lógica da “guerra” ou de “estado similar à guerra” Estado do Rio de Janeiro, uma vez que esta tergiversação se presta unicamente ao tratamento de todos os favelados como “inimigos” ou “adversários” do interesse público e lhes sujeita ao status discriminatório de total desproteção da vida, integridade e outros direitos essenciais à condição humana. Extraem-se da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos e de balizas já vigentes no ordenamento jurídico interno alguns nortes fundamentais que devem guiar o dever da gestão da segurança pública de engendrar um plano de redução de danos para proteção das populações vulneráveis das favelas, que têm sido as mais afetadas pelo atual quadro de agudização das taxas de homicídios e de criminalidade em geral. O primeiro pilar fundamental em que deve estar ancorada qualquer intervenção policial em situações de paz é o princípio da humanidade, formulado pela Corte Interamericana a partir dos Princípios Básicos da ONU e do Código de Conduta da ONU nos seus julgados.

O conteúdo do citado princípio constitui justamente o dever dos agentes

do Estado de distinguir entre pessoas que, por suas ações, constituem uma ameaça iminente de morte ou lesão grave e aquelas que não representam tal ameaça e utilizar a força somente contra as primeiras. A este se soma o dever especial do Estado, inscrito no art. 19 da Convenção Americana de Direitos Humanos, bem assim no art. 227 da CRFB/88 e na Lei nº. 8.069/90, de especial proteção das crianças e adolescentes contra abusos e maus tratos de seus agentes; bem como o dever de proteção especial das mulheres contra ilícitos praticados pelos agentes estatais, decorrente do artigo 7 da Convenção de Belém do Pará; e ainda de outros grupos vulneráveis, como os negros e as pessoas LGBT (art. 3º, IV, e art. 5º, caput, CRFB/88 e art. 24 CADH).

Destarte, a Defensoria Pública, na esteira da obrigação imposta ao Estado do Rio de Janeiro na decisão judicial prolatada no bojo da já mencionada ação civil pública de autos n˚. 0215700-68.2016.8.19.0001 (6a Vara de Fazenda Pública da

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Comarca da Capital do RJ), exorta a intervenção federal a elaborar e implementar, por meio de instrumentos que garantam a participação democrática, um plano de redução de danos destinado a regular as ações das forças de segurança nos territórios de favelas da cidade do Rio de Janeiro e minimizar os riscos à população que habita estas áreas, com especial atenção para grupos vulneráveis (crianças, adolescentes, mulheres, negros e idosos) e áreas escolares. Plano este cujas diretrizes deverão enfocar a proteção da pessoa humana e traduzir uma política pública de segurança cidadã, com atenção especialmente para a proteção dos direitos à vida, à integridade física, à liberdade pessoal, à honra e à dignidade, às garantias processuais e ao uso pacífico dos bens, à educação, à saúde e ao trabalho de todos os cidadãos e cidadãs que habitam os territórios de favelas.

X. CONCLUSÃO

Diante de todo o acima exposto, espera a Defensoria Pública sejam observados pelo Exmo. Sr. Interventor Federal os pedidos acima detalhados, no intuito de garantir a governabilidade democrática da política de segurança pública no Estado do Rio de Janeiro e a primazia da dignidade da pessoa humana sobre qualquer diretriz ou estratégia das forças de segurança.

Colocamo-nos à disposição para quaisquer esclarecimentos e requeremos

seja apresentada resposta escrita aos pontos suscitados na presente postulação, com a máxima urgência possível.

Rio de Janeiro, 26 de março de 2018.