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Dossiê Lupe Cotrim - scielo.br · “Paisagem de uma aula de Filosofia” ... 130 ARS Ano 7 Nº 15 Olhando dentro de mim, de dentro da natureza, eu a refaço – e invento a beleza

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A poeta Lupe Cotrim119

Dossiê Lupe Cotrim

Lupe Cotrim, 40 anos depois

Quarenta anos depois de sua morte, a professora e poeta Lupe Cotrim é homenageada neste exemplar da revista ARS com um dossiê especial. Um dos nomes de destaque da poesia brasileira da década de 1960, Lupe integrou a equipe de professores-fundadores desta Escola de Comunicações, lecionando Estética e Pensamento Filosófico. Sua atuação notável diante dos desafios da recém-criada unidade da USP e, ao mesmo tempo, da conjuntura política adversa por que passava o país, levou os estudantes a darem o seu nome ao Centro Acadêmico da escola após sua morte prematura, aos 36 anos, em 1970. “A sua condição de escritora, poeta, professora formada em filosofia lhe permitiu enfrentar, melhor que ninguém”, aqueles desafios, especialmente “na agitação de 1968”, lembrou o professor Ismail Xavier, em seminário realizado, em março de 2010, no Instituto de Estudos Brasileiros, depositário do acervo da professora-poeta. “Ela foi uma liderança decisiva naquela conjuntura, e seu curso representou a experiência mais densa, do ponto de vista intelectual e político, daquele ano”.

O dossiê que se segue traz textos resultantes do seminário realizado no IEB-USP, além de fotografias e uma seleção de poemas da autora, que deixou sete livros de refinada poesia lírica, o último deles, Poemas ao outro, triplamente premiado.

ARS Ano 7 Nº 15 120

“O dúplice”

Ser poetaé meu resíduode tristezaao não ser triste.

A dor que deveras senteé a que sinto.E o que vemos a maisnas coisas simplesos subterrâneos cavadosnas doces superfíciesé nosso modo de uniro solto e o que resiste.

Viverá como vivo.O tempo e seu assaltonão nos caberáfora desse pacto sonoro e terrível;a morte é o que não falo.

Da verdade sabemosa umidade na carnee o dorso embaçado.Em nossa gulatudo se avizinhana imagem que deguletemesmo os ossos da fuga.

Cúmplices, o poeta e eunos salvamos do crime.E do outro que somosainda por dizerdevoramos a fome.

[Do livro Poemas ao outro, 1970]

Dossiê Lupe Cotrim Lupe Cotrim, 40 anos depois121

“Memória barroca”

A Carlos Drummond de Andrade“É preciso fazer um poema sobre a Bahia...Mas eu nunca fui lá.”Alguma poesia

Uma cola negra escorredas calçadas, e o mar escureceno pigmento do rosto.Uma fratura na pedra; e mais outra.Estátua que se ergueou entranha que se mostra.O saveiro furta às águasa sumária riqueza dos peixese no farol se acendea história ameaçada; nem tudo seráresíduo e paisagem. A couraçaurbana acintura a nova cidadecinza e domesticada.O visível de hoje, que se descobreentre a poeira douradahá de fechar-se: em escrutíniosde marfim e tartarugaem barras de memóriabarroca e inapelável.

O ouro, o entalhe,a torre, a nave; o fortepontiagudo da indignaçãopassada, presente maciço,ombro erguido contra o maramortecido de altares.

A areia grossa, a onda oleosaque se apruma por ladeiras lentasnos passos de quem redizos caminhos de volta- cada pedregulho já é outrora.

Entre corredores de redesa beleza se aconchega

ARS Ano 7 Nº 15 122

madura e esplêndida:no umbral dos solaresé ela quem nos vêaltiva e derradeira.Soerguidos pela brisaimergimos nos meandros do mare na paisagem da magia:mas rasga-se entre as mãosa miséria sem névoa- é ela que nos penetra.

II.Homens cercados de águaspor todos os lados:perfis Alagados.Numa vida em que o futuronão é o primeiro rumo,lá em Alagados.Uma criança no detritoinventa seu edifíciolá em Alagadose o corpo insiste sobre o lixouma sentença passada.Confins Alagados.

O rádio noticia o atolá em Alagados.Para homens sem enxadalá de Alagados.O silêncio é o silênciolá em Alagados.Uma criança no detritoinventa seu edifíciolá em Alagadosque sustenta casa a casaenfins Alagados.

Uma árvore de natallá em Alagadosaponta Cristo à espera

Dossiê Lupe Cotrim Lupe Cotrim, 40 anos depois123

- atento, Alagados.

Uma mulher varre o lixolá em Alagadosmorando sobre os detritoslá de Alagados.O homem é ator do homemlá em Alagadosrepresentando a cidadesenfins Alagados.

Tudo é um deserto de águaslá em Alagados,consumindo seus naufrágios.Ai, Alagados.

III.Cada pedregulho já é outrora...............................................A beleza se aconchegamadura e esplêndidano umbral dos solares,é ela quem nos vêaltiva e derradeira.

Seduzidos pela brisamergulhamos na poeira douradae nos azuis incontáveis:mas rompe-se entre os olhosuma miséria sem trégua- essa é a nossa treva.

Salvador, 1968

[Do sétimo livro, Poemas ao outro, 1970]

ARS Ano 7 Nº 15 124

“À margem da poesia”

Rilke estava enganado:um poeta é um poetae vive sem fazer versos.Por outras razões se morree as forças de viversão mais cegas, são mais ágeisque a direção de morrer.

Maiakovski se matoupodendo fazer poesiae pagando seus impostos.Como? Onde? Para quem?Aqui, ali, pouco importa,em tudo a mentira sobra;morreu na boca de um poemao pulso farto de versos.

Outros também se calamna fímbria solta das sílabastodo o lirismo nas mãoscorpo exposto a faca e balana altivez de perfilpor onde olha a poesia,sozinha, sua própria véspera.

Se morre por outros rumosaquém e além do dizere do poeta é a sinanão viver só de palavramas do chão, da cerca, da águaonde germina em silêncioo que desabrocha a fala.

Versos se podem calar;há coisas que não se calamporque caladas, venenopior que o aço da espada.Matando o irmão por dentrodobrando o porte – a verdade esgar de consentimento.

Dossiê Lupe Cotrim Lupe Cotrim, 40 anos depois125

O vivo é antes do verso.Urgente é abrir seus olhose as cortinas lacradas.O verso, sim, mas depoisdas razões de não morrer.E assim fazendo, dizer.

Se vive com fome e sedecom amor estilhaçadoanalfabeto, amarrado,com chumbo dentro do ventresem sexo, luz, alvorada,um homem vive de poucoresiste às vezes de nada.

Das desrazões, irrazõesporque se venha a viverhá um poeta sem versosque é poeta a valere sobrevive. De gulatalvez de usura,confiança em quem ignora,no cego, no surdo-mudo.

Rilke estava enganado.Um poeta suicida anunciou vento adentro- o romantismo acabou.O que estava por detráslá nos fundos da poesiaé que mata. E o matou.

Um pano em volta do rostomuitos espreitam, se calam.Mas além de ultraje e mitonuma resistência inteiraum poeta ainda esperano calcanhar de seu grito.

ARS Ano 7 Nº 15 126

Faz seus versos, e sem fazê-lospermaneceria vivo.

[Do sétimo livro, Poemas ao outro, 1970]

“Monólogo I”

Hei de inventar amor, ávida e atenta.Amor de ser a outro que é demaiso amor que em coisas hoje se alimenta.A manhã é cerrada de momentosque hábeis mãos inventam em seu provento;inventar o que o íntimo não fala,curvando-se à pressão de outros inventos.Hei de inventar amor num desafioàs mais concretas frases, aos dias úteis,amor de ser a outro que é demaister um mundo por dentro desprovido.[...]

“Diálogo I”

Ser transparenteé quase um suicídio,um transbordar de siperdido, ir a outro de nósque nos retém, apagadoo sentido.[...]

[Do sexto livro, Inventos, 1967]

Dossiê Lupe Cotrim Lupe Cotrim, 40 anos depois127

“João, fragmentos”

I.O que é nosso, João,entre o teu e o meuo que separa em possea nossa solidão?Não sei. Não seio que era de mimno que te encontrei.Hesito entre o inscritoe o que me vem às mãos:tenho pouco do perto.Antes creio no que ainda tereiporque desperto.

Vês o mundo, João,como quem não sabeou enxerga em vão.É um ver qualquer,o teu, sem detalhe ou magia,e devo a teu olharo segredo onduladoonde o mundo principia.

II.Há países mordidose uma língua de metalastuta e imprevisíveldilacerando o homemem sua própria criança.O que faremos, João?[...]Enquanto penso, existescom fomes divergentes.Franzimos as sobrancelhaspara o que alguns fazemde nossa bandeira.Apesar, João:

ARS Ano 7 Nº 15 128

III.Enquanto, João,alegria eu queroapesar da guerra.Para nós e em voltamedula de resistênciaem nossa presença.

Ladeando a fome,ladeando a mortede Biafra às vizinhançasconsumir alegriade manter-se vivoapesar e contra isso.

Se o gesto é escritoe perduras analfabeto,se o pão é fartoe teu estômago descalçose alguns vão à luano esplendor da técnicae prossegue a misériaem sua chaga satélite,alegria, João.Por um outro dianecessitamos fazer partedo que nele principia.[...]

Alegria pela manhãque contra hoje vai chegar,sub-versiva, sub-vertida sub-metida.Alegria de nós, em nosso intento:alegria como é vivauma pessoa viva.

[Do sétimo livro, Poemas ao outro, 1970]

Dossiê Lupe Cotrim Lupe Cotrim, 40 anos depois129

“Paisagem de uma aula de Filosofia”

Porque a pedraestá fora do tempoe eu por dentro;porque a terra se desata,vegetal,e a mim faltaesse fôlego verde,em tênue movimento;porque entre raiz e folhao animal salta,elástico, e desconheçoliberdade tão alta;porque mineral e vegetaluma floresta é segredoaberto ao animale em mim se enlaçapelos cipós do medo- sei-me de outra espécie.Em que sou fraco. E antesde tudo – breve.

Mas nesta extensão tão plenaé que mais compreendo. [...]E são rochas de leõesmarés de outonofolhas alçando-se no arrojodos pássaros, répteisem curvas de diamante,montanhas côncavas, murmurando,florestas em ondas, sobre as águasas distâncias são formas- corpo de estrela, impulso de planície,a morte é apenas uma florvermelha, que passa no vento[...]e em tudo estou presente, simultâneo,o horizonte a meus pés,como um riacho doce.

ARS Ano 7 Nº 15 130

Olhando dentro de mim,de dentro da natureza,eu a refaço – e invento a beleza.

[Do quinto livro, O poeta e o mundo, 1964]

“Última paisagem”

Quando eu morrer,se morrer,quero um dia de sol,denso, cintilante,escorrendo-me pelo corposeus dedos quentes.E quero o vento,um largo vento dos espaços,que me respire e me arrebateno seu fôlego,por outros continentes.E quero a água,violenta, fria, palpitante,possuindo-me a almaa transbordar dos poros.

Se nenhum amor me resguardarem seu abraçoa dar-me sensaçãode que possuo e pertençoquero pegar a vidapalmo a palmo,traço a traço,num dia esfuziante de azulcom o mar na boca e nos braços.

Quando eu morrer,se morrer,eu que renasço a cada momento,criando íntimos laçospor toda natureza,

Dossiê Lupe Cotrim Lupe Cotrim, 40 anos depois131

eu que perduro no eternoda intensidade,quero morrer assim:os olhos na distância do entendimentoe o corpo penetrando na beleza,passo a passo.Meu fim transformado em luzdentro de mim.

[Do quinto livro, O poeta e o mundo, 1964]