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7/23/2019 dossi Lupe Cotrim
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7/23/2019 dossi Lupe Cotrim
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A poeta Lupe Cotrim119
Dossi Lupe Cotrim
Lupe Cotrim, 40 anos depois
Quarenta anos depois de sua morte, a professora e poeta Lupe Cotrim homenageada neste exemplar da revistaARScom um dossi especial. Umdos nomes de destaque da poesia brasileira da dcada de 1960, Lupe integrou aequipe de professores-fundadores desta Escola de Comunicaes, lecionandoEsttica e Pensamento Filosfico. Sua atuao notvel diante dos desafios
da recm-criada unidade da USP e, ao mesmo tempo, da conjuntura polticaadversa por que passava o pas, levou os estudantes a darem o seu nome aoCentro Acadmico da escola aps sua morte prematura, aos 36 anos, em1970. A sua condio de escritora, poeta, professora formada em filosofia lhepermitiu enfrentar, melhor que ningum, aqueles desafios, especialmente naagitao de 1968, lembrou o professor Ismail Xavier, em seminrio realizado,em maro de 2010, no Instituto de Estudos Brasileiros, depositrio do acervoda professora-poeta. Ela foi uma liderana decisiva naquela conjuntura, eseu curso representou a experincia mais densa, do ponto de vista intelectual
e poltico, daquele ano.O dossi que se segue traz textos resultantes do seminriorealizado no IEB-USP, alm de fotografias e uma seleo de poemas daautora, que deixou sete livros de refinada poesia lrica, o ltimo deles,Poemas ao outro, triplamente premiado.
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ARSAno 7 N 15120
O dplice
Ser poeta meu resduode tristezaao no ser triste.
A dor que deveras sente a que sinto.E o que vemos a maisnas coisas simplesos subterrneos cavadosnas doces superfcies nosso modo de uniro solto e o que resiste.
Viver como vivo.O tempo e seu assaltono nos caberfora desse pactosonoro e terrvel;a morte o que no falo.
Da verdade sabemos
a umidade na carnee o dorso embaado.Em nossa gulatudo se avizinhana imagem que deguletemesmo os ossos da fuga.
Cmplices,o poeta e eunos salvamos do crime.E do outro que somosainda por dizerdevoramos a fome.
[Do livro Poemas ao outro, 1970]
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Dossi Lupe Cotrim Lupe Cotrim, 40 anos depois121
Memria barroca
A Carlos Drummond de Andrade preciso fazer um poema sobre a Bahia...Mas eu nunca fui l.
Alguma poesia
Uma cola negra escorredas caladas, e o mar escureceno pigmento do rosto.Uma fratura na pedra; e mais outra.Esttua que se ergueou entranha que se mostra.O saveiro furta s guasa sumria riqueza dos peixese no farol se acendea histria ameaada; nem tudo serresduo e paisagem. A couraaurbana acintura a nova cidadecinza e domesticada.O visvel de hoje, que se descobreentre a poeira douradah de fechar-se: em escrutniosde marfim e tartarugaem barras de memriabarroca e inapelvel.
O ouro, o entalhe,a torre, a nave; o fortepontiagudo da indignaopassada, presente macio,ombro erguido contra o maramortecido de altares.
A areia grossa, a onda oleosa
que se apruma por ladeiras lentasnos passos de quem redizos caminhos de volta- cada pedregulho j outrora.
Entre corredores de redesa beleza se aconchega
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ARSAno 7 N 15122
madura e esplndida:no umbral dos solares ela quem nos valtiva e derradeira.Soerguidos pela brisaimergimos nos meandros do mar
e na paisagem da magia:mas rasga-se entre as mosa misria sem nvoa- ela que nos penetra.
II.Homens cercados de guaspor todos os lados:
perfis Alagados.Numa vida em que o futurono o primeiro rumo,l em Alagados.Uma criana no detritoinventa seu edifciol em Alagadose o corpo insiste sobre o lixouma sentena passada.
Confins Alagados.
O rdio noticia o atol em Alagados.Para homens sem enxadal de Alagados.O silncio o silnciol em Alagados.Uma criana no detritoinventa seu edifciol em Alagadosque sustenta casa a casaenfins Alagados.
Uma rvore de natall em Alagadosaponta Cristo espera
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Dossi Lupe Cotrim Lupe Cotrim, 40 anos depois123
- atento, Alagados.
Uma mulher varre o lixol em Alagadosmorando sobre os detritosl de Alagados.
O homem ator do homeml em Alagadosrepresentando a cidadesenfins Alagados.
Tudo um deserto de guasl em Alagados,consumindo seus naufrgios.
Ai, Alagados.
III.Cada pedregulho j outrora...............................................
A beleza se aconchegamadura e esplndidano umbral dos solares, ela quem nos v
altiva e derradeira.
Seduzidos pela brisamergulhamos na poeira douradae nos azuis incontveis:mas rompe-se entre os olhosuma misria sem trgua- essa a nossa treva.
Salvador, 1968
[Do stimo livro, Poemas ao outro, 1970]
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ARSAno 7 N 15124
margem da poesia
Rilke estava enganado:um poeta um poetae vive sem fazer versos.Por outras razes se morre
e as foras de viverso mais cegas, so mais geisque a direo de morrer.
Maiakovski se matoupodendo fazer poesiae pagando seus impostos.Como? Onde? Para quem?
Aqui, ali, pouco importa,em tudo a mentira sobra;morreu na boca de um poemao pulso farto de versos.
Outros tambm se calamna fmbria solta das slabastodo o lirismo nas moscorpo exposto a faca e balana altivez de perfilpor onde olha a poesia,
sozinha, sua prpria vspera.
Se morre por outros rumosaqum e alm do dizere do poeta a sinano viver s de palavramas do cho, da cerca, da guaonde germina em silncioo que desabrocha a fala.
Versos se podem calar;h coisas que no se calamporque caladas, venenopior que o ao da espada.Matando o irmo por dentrodobrando o porte a verdadeesgar de consentimento.
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Dossi Lupe Cotrim Lupe Cotrim, 40 anos depois125
O vivo antes do verso.Urgente abrir seus olhose as cortinas lacradas.O verso, sim, mas depoisdas razes de no morrer.E assim fazendo, dizer.
Se vive com fome e sedecom amor estilhaadoanalfabeto, amarrado,com chumbo dentro do ventresem sexo, luz, alvorada,um homem vive de poucoresiste s vezes de nada.
Das desrazes, irrazes
porque se venha a viverh um poeta sem versosque poeta a valere sobrevive. De gulatalvez de usura,confiana em quem ignora,no cego, no surdo-mudo.
Rilke estava enganado.
Um poeta suicidaanunciou vento adentro- o romantismo acabou.O que estava por detrsl nos fundos da poesia que mata. E o matou.
Um pano em volta do rostomuitos espreitam, se calam.Mas alm de ultraje e mito
numa resistncia inteiraum poeta ainda esperano calcanhar de seu grito.
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ARSAno 7 N 15126
Faz seus versos, e sem faz-lospermaneceria vivo.
[Do stimo livro, Poemas ao outro, 1970]
Monlogo I
Hei de inventar amor, vida e atenta.Amor de ser a outro que demaiso amor que em coisas hoje se alimenta.
A manh cerrada de momentosque hbeis mos inventam em seu provento;
inventar o que o ntimo no fala,curvando-se presso de outros inventos.Hei de inventar amor num desafios mais concretas frases, aos dias teis,amor de ser a outro que demaister um mundo por dentro desprovido.[...]
Dilogo I
Ser transparente quase um suicdio,um transbordar de siperdido, ir a outro de nsque nos retm, apagadoo sentido.[...]
[Do sexto livro, Inventos, 1967]
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Dossi Lupe Cotrim Lupe Cotrim, 40 anos depois127
Joo, fragmentos
I.O que nosso, Joo,entre o teu e o meuo que separa em posse
a nossa solido?No sei. No seio que era de mimno que te encontrei.Hesito entre o inscritoe o que me vem s mos:tenho pouco do perto.
Antes creiono que ainda terei
porque desperto.
Vs o mundo, Joo,como quem no sabeou enxerga em vo. um ver qualquer,o teu, sem detalhe ou magia,e devo a teu olharo segredo ondulado
onde o mundo principia.
II.H pases mordidose uma lngua de metalastuta e imprevisveldilacerando o homemem sua prpria criana.O que faremos, Joo?[...]Enquanto penso, existescom fomes divergentes.Franzimos as sobrancelhaspara o que alguns fazemde nossa bandeira.
Apesar, Joo:
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ARSAno 7 N 15128
III.Enquanto, Joo,alegria eu queroapesar da guerra.Para ns e em voltamedula de resistncia
em nossa presena.
Ladeando a fome,ladeando a mortede Biafra s vizinhanasconsumir alegriade manter-se vivoapesar e contra isso.
Se o gesto escritoe perduras analfabeto,se o po fartoe teu estmago descalose alguns vo luano esplendor da tcnicae prossegue a misriaem sua chaga satlite,alegria, Joo.
Por um outro dianecessitamos fazer partedo que nele principia.[...]
Alegria pela manhque contra hoje vai chegar,sub-versiva, sub-vertida sub-metida.
Alegria de ns, em nosso intento:alegria como vivauma pessoa viva.
[Do stimo livro, Poemas ao outro, 1970]
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Dossi Lupe Cotrim Lupe Cotrim, 40 anos depois129
Paisagem de uma aula de Filosoa
Porque a pedraest fora do tempoe eu por dentro;porque a terra se desata,
vegetal,e a mim faltaesse flego verde,em tnue movimento;porque entre raiz e folhao animal salta,elstico, e desconheoliberdade to alta;porque mineral e vegetal
uma floresta segredoaberto ao animale em mim se enlaapelos cips do medo- sei-me de outra espcie.Em que sou fraco. E antesde tudo breve.
Mas nesta extenso to plena
que mais compreendo.[...]E so rochas de leesmars de outonofolhas alando-se no arrojodos pssaros, rpteisem curvas de diamante,montanhas cncavas, murmurando,florestas em ondas, sobre as guasas distncias so formas- corpo de estrela, impulso de plancie,a morte apenas uma flor
vermelha, que passa no vento[...]e em tudo estou presente, simultneo,o horizonte a meus ps,como um riacho doce.
7/23/2019 dossi Lupe Cotrim
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ARSAno 7 N 15130
Olhando dentro de mim,de dentro da natureza,eu a refao e invento a beleza.
[Do quinto livro, O poeta e o mundo, 1964]
ltima paisagem
Quando eu morrer,se morrer,quero um dia de sol,denso, cintilante,escorrendo-me pelo corpo
seus dedos quentes.E quero o vento,um largo vento dos espaos,que me respire e me arrebateno seu flego,por outros continentes.E quero a gua,
violenta, fria, palpitante,possuindo-me a alma
a transbordar dos poros.
Se nenhum amor me resguardarem seu abraoa dar-me sensaode que possuo e pertenoquero pegar a vidapalmo a palmo,trao a trao,num dia esfuziante de azulcom o mar na boca e nos braos.
Quando eu morrer,se morrer,eu que renaso a cada momento,criando ntimos laospor toda natureza,
7/23/2019 dossi Lupe Cotrim
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Dossi Lupe Cotrim Lupe Cotrim, 40 anos depois131
eu que perduro no eternoda intensidade,quero morrer assim:os olhos na distnciado entendimentoe o corpo penetrando na beleza,
passo a passo.Meu fim transformado em luzdentro de mim.
[Do quinto livro, O poeta e o mundo, 1964]