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Título: O HOMEM QUE MORREU DUAS VEZES Autor: Douglas Kennedy Dados da Edição: Selecções do livro Título original: The Big Picture Género: romance. Digitalização:... Correcção: Dores Cunha. Numeração de página: rodapé. Estado da obra: corrigida. Nota da correctora: os restantes títulos que compõem este volume não serão objecto de digitalização ou correcção da minha parte. Os volumes da série Selecções do Livro são publicados com intervalos de dois a três meses entre si. Cada volume inclui quatro excelentes obras de autores contemporâneos. Qualquer leitor interessado neste serviço pode contactar-nos pelo telefone (01) 381 00 81, pelo e-mail [email protected], ou escrever para: Selecções do Reader's Digest, Remessa Livre 11 038,1032 Lisboa Codex O Homem que Morreu Duas Vezes Título original: The Big Picture Copyright (c) Douglas Kennedy, 1997 Ilustração das pp, 6-7: Pete Turner/The Image Bank Fotografia do autor: Sigrid Estrada Tradução: Maria do Rosário Pernas. Revisão: Selecções do Reader's Digest O Regresso a Casa Título original: Homecoming Copyright (c) Bar-Nan Creations, 1997 Fotografia das pp. 146-147: Robert Milazzo Fotografia da autora: Jan Press Tradução: João Carlos Silva. Revisão: Selecções do Reader's Digest Víbora Branca Título original: White Viper Copyright (c) Terence Strong, 1996 Ilustrações das pp. 262-263: (c) Bruce Coleman/Hans Reinhard, Images Colour: Library e Telegraph Colour Library Tradução: Maria Helena Fernandes. Revisão: Selecções do Reader's Digest A Rainha dos Elefantes Título original: Queen of the Elephants Fotografia das pp. 448-449: Mark Shand/Aditya Patankar Copyright (c) Mark Shand, 1995 Tradução: Madalena Teixeira Bastos. Revisão: Selecções do Reader's Digest O homem que morreu duas vezes ERAm 4 da manhã, eu já não dormia há várias semanas e o bebé estava novamente a chorar. Não fora o bebé que me acordara, pois há horas que eu estava de olhos abertos quando ele desatou a berrar. Mas andava tão abalado por

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Título: O HOMEM QUE MORREU DUAS VEZES Autor: Douglas Kennedy Dados da Edição: Selecções do livro Título original: The Big Picture Género: romance. Digitalização:... Correcção: Dores Cunha. Numeração de página: rodapé. Estado da obra: corrigida. Nota da correctora: os restantes títulos que compõe m este volume não serão objecto de digitalização ou correcção da minh a parte. Os volumes da série Selecções do Livro são publicad os com intervalos de dois a três meses entre si. Cada volume inclui quatro excelentes obras de autores contempor âneos. Qualquer leitor interessado neste serviço pode cont actar-nos pelo telefone (01) 381 00 81, pelo e-mail [email protected], ou escrever para: Selecções do Reader's Digest, Remessa Livre 11 038,1032 Lisboa Codex O Homem que Morreu Duas Vezes Título original: The Big Picture Copyright (c) Douglas Kennedy, 1997 Ilustração das pp, 6-7: Pete Turner/The Image Bank Fotografia do autor: Sigrid Estrada Tradução: Maria do Rosário Pernas. Revisão: Selecções do Reader's Digest O Regresso a Casa Título original: Homecoming Copyright (c) Bar-Nan Creations, 1997 Fotografia das pp. 146-147: Robert Milazzo Fotografia da autora: Jan Press Tradução: João Carlos Silva. Revisão: Selecções do Reader's Digest Víbora Branca Título original: White Viper Copyright (c) Terence Strong, 1996 Ilustrações das pp. 262-263: (c) Bruce Coleman/Hans Reinhard, Images Colour: Library e Telegraph Colour Library Tradução: Maria Helena Fernandes. Revisão: Selecções do Reader's Digest A Rainha dos Elefantes Título original: Queen of the Elephants Fotografia das pp. 448-449: Mark Shand/Aditya Patan kar Copyright (c) Mark Shand, 1995 Tradução: Madalena Teixeira Bastos. Revisão: Selecções do Reader's Digest O homem que morreu duas vezes ERAm 4 da manhã, eu já não dormia há várias semanas e o bebé estava novamente a chorar. Não fora o bebé que me acordara, pois há horas que eu estava de olhos abertos quando ele desatou a berrar. Mas anda va tão abalado por

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falta de descanso que nem consegui levantar-me da c ama. Deixei-me ficar deitado, hirto, enquanto Josh exerc itava os seus pulmões de cinco meses com mais força do que nunca. A certa altura, os seus gritos repetitivos espicaça ram Beth, a minha mulher, deixando-a num estado de semivigília. Dando -me uma cotovelada, ela dirigiu-me a palavra pela primeira vez em dois dias. - Trata tu dele. - Depois, voltou-se para o outro l ado e tapou a cabeça com a almofada. Eu obedeci-lhe com movimentos mecânicos. Sentei-me e pus os pés no chão. Estendi o braço para o roupão às riscas qu e estava na cadeira ao lado da cama. Dirigi-me para a porta e abri-a. O me u dia começara - embora, na realidade, nunca tivesse chegado ao fim. O quarto das crianças era em frente ao nosso. Ao co ntrário do nosso outro filho -,Adam, de quatro anos, que começara às oito semanas a dormir a noite inteira -, Josh tinha graves problem as de insônias. Recusava dormir mais de duas horas de cada vez. Pas sadas vinte semanas da sua tenra vida, Beth e eu ainda estávamo s para ter uma noite de sono ininterrupto. Nos últimos tempos, eu andava a tentar convencer-me a mim próprio de que a exaustão era a principal fon te da falta de harmonia entre nós - uma falta de harmonia que s e tornara extremamente desagradável há duas noites atrás, qua ndo Beth exalara algum do veneno acumulado dizendo que eu andava completamente absor vido pela minha própria pessoa. Como é natural, eu contra-ataquei c hamando-lhe uma megera suburbana. Quarenta e oito horas após essa troca de palavras, ela continuava sem falar comigo. Assim, não eram apenas os gritos do b ebé Josh que me mantinham acordado de noite, mas muitas outras cois as. Como aquela casa, por exemplo, que eu passara a odiar. Não que a casa tivesse algo de odioso, pelo contrário, era o tipo de casa suburban a americana clássica que muitos cidadãos teriam orgulho em possuir - doi s pisos, estilo colonial, persianas verde-escuras, quatro qu artos, cozinha com zona de refeições, sala comum no rés-do-chão e gara gem separada para dois automóveis. Preço pedido: 485 000 dólares. Mas este recanto do Connecticut estava afectado pela recessão, pelo que nós a conse guíramos por 413 000

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dólares em 1991. Nessa altura, vários colegas da so ciedade de advogados onde eu trabalho disseram-me que fora uma «verdadei ra pechincha». Contudo, ao assinar o contrato, eu não conseguira d eixar de pensar que nós somos os arquitectos do nosso próprio encarcera mento. Como todos os quartos da casa, o de Josh é de estil o americano colonial. Ele dorme num berço de mogno de 1782. Mud amos-lhe as fraldas em cima de uma cómoda de pinho de uma antiga estala gem de Iorque, no Maine. Quando for maiorzinho, poderá sentar-se numa minúscula cadeira de balouço que outrora serviu de assento ao pequeno Nathaniel Hawthorne. Como estou tão bem informado acerca da mobília do q uarto do meu filho? Através de Beth, claro. Dois anos após a nos sa mudança para cá, vindos da cidade, ela desfez-se de todo o mobiliári o funcional que tínhamos adquirido em tempos e anunciou: «Vamos mudar para o estilo colonial.» Para Beth isto não significava comprar u ns cadeirões de orelhas forrados de couro. Pelo contrário, tudo na nossa no va casa passaria a ser cem por cento federalista garantido. Durante meses, Beth lançou-se numa busca desenfreada de exemplares autênticos - esquadrinhando todos os antiquários desde aqui até New London. Qua ndo a casa ficou completamente mobilada, foi um êxito. Embora Beth n unca tenha dito nada, eu percebi que, no íntimo, ela desprezava aqu ilo que tinha criado, apercebendo-se de que fora apenas uma manobra de di versão destinada a desviar-lhe a atenção de certas verdades incómodas. Tal como eu, também ela passara a odiar aquela casa e tudo o que ela implicava. Quando cheguei junto do berço, Josh parecia que ti nha enlouquecido. Procurei com todo o cuidado a chupeta, que ele tinh a atirado para o chão. Quando a encontrei, esterilizei-a com uma lambedela , e depois meti-lha de novo na boca com toda a rapidez. Peguei-lhe ao c olo e encostei-o ao meu ombro. Quando já íamos a meio das escadas, ele voltou a cuspir a 10 chupeta e recomeçou a berraria. Quando viu o biberã o de leite junto ao microondas, na cozinha, infligiu-me sérios danos no s ouvidos durante os

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vinte segundos que demorou a aquecer. Adam fora um bebé de revista, o tipo de sedutor amo roso que costumamos ver em anúncios de fraldas. Mas Josh é u m pequeno rufia, com uma cabeça de tamanho desmesurado, um nariz de pugi lista e a disposição de um touro na arena. Tenho-lhe amor, co mo é natural, mas, por enquanto, não tenho bem a certeza de gostar del e. Obviamente, tenho uma teoria sobre a razão pela qual ele chora tanto: est á a reagir à inimizade entre os pais. Os miúdos pressentem estas coisas. A dam também está muito consciente de que os pais não têm andado bem um com o outro. Sempre que Beth e eu temos uma discussão violenta, os seus grandes olhos cinzentos suplicam-nos que voltemos a gostar um do outro. Toca-me profundamente ver a preocupação dele ; além disso, faz-me voltar aos tempos em que eu era da idade de Adam e também assi stia, impotente, aos desentendimentos que opunham os meus pais. Mal Josh me viu retirar o biberão aquecido do micro ondas, começou a agitar as mãos até eu o apontar na sua direcção. Depois, puxei uma cadeira da cozinha e sentei-me, apertando -o contra mim enquanto ele devorava o leite. Tinha pelo menos cinco minuto s de sossego à minha frente até ele terminar o biberão. Por isso, estendi a minha mão livre, carreguei no comando para ligar a pequena te levisão pousada no balcão e sintonizei a CNN. Quando o ecrã ganhou vida, vi qualquer coisa que me fez estremecer. Qualquer coisa não, alguém. o nome era Kate Brymer - a melhor correspondente de guerra da CNN. Estava com um camu flado de bom corte e um colete à prova de bala e fazia a sua reportage m de um hospital de Sarajevo atingido por bombardeamentos. Reparei que o cabelo castanho, relativamente curto, estava bem penteado para algué m que se encontrava numa zona de guerra. Recordei, mais uma vez, que el a sempre se preocupara com o cabelo. Quando vivíamos juntos, na faculdade, costumava escová-lo a toda a hora. Mesmo nessa altura, ela já sabia que o seu aspecto físico seria uma arma necessária na s ua busca de prestígio. Lembro-me de a ver deitada na cama certa tarde chuv osa de domingo, passando os olhos por um livro da correspo ndente de guerra Marlia Gellhorn. «Ainda um dia hei-de escrever umas memóri as como estas», comentara ela, segura do seu futuro profissional. D epois, pegou numa colecção de fotografias tiradas num campo de batalh a pelo grande Robert Capa e acrescentou: «E tu serás este tipo.» Mas Kate

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estava enganada acerca de mim. Eu nunca sequer me a proximei de uma zona de guerra, e sei agora que nunca o faria. 11 De repente, Josh atirou o biberão pelos ares. Passa dos poucos segundos, o jogo dos gritos recomeçou. Voltei a enc ostá-lo ao meu ombro, abri a porta ao lado do frigorífico e desci cinco degrau s até à cave, que se tinha transformado no meu refúgio. A área não é grande - cerca de cinco metros por trê s e meio -, e tem duas pequenas divisões além da zona principal, mas consegui utilizar o espaço de forma inteligente. Ta mbém é o único recanto da casa que Beth não decorou à maneira de Martha Washington. Ao descer a escada, deparamos imediatamente com a minha zona de exercíc io - um Nor dicTrack, um StairMaster e um conjunto de halteres. Tento fazer uma sessão de quarenta minutos de exercício todas as ma nhãs, para me manter em forma, com um peso constante de oitent a e cinco quilos. O meu médico diz que é esse o peso ideal para um não-fuma dor de trinta e oito anos e um metro e oitenta de altura. Mas talvez a v erdadeira razão da minha boa forma seja o facto de sempre que me apetece dar cabeçadas na parede desço até aqui e despejo a minha raiva a faz er halteres. Ou então mergulho no único lugar onde me sinto real mente satisfeito - a minha câmara-escura. Costumava ser a casa das roupas, mas uma das primeiras coisas que fizemos depois de nos muda rmos foi transferir as máquinas de lavar e secar para uma despensa à sa ída da cozinha. A seguir, foi a vez de o carpinteiro e o c analizador deitarem mãos à obra. Todos os armários e instalações fixos foram arranca dos e instalado um par de lava-louças profissional de aço inoxidável. As paredes receberam uma nova camada de reboco e foram pintadas de cinze nto-claro; finalmente, um elegante e sofisticado conjunto de a rmários foi embutido numa das paredes. Para terminar, eu larguei 2300 dó lares para satisfazer uma verdadeira paixão - a mais recente porta girató ria à prova de luz, um cilindro dentro de outro cilindro, com a garanti a de criar o perfeito ambiente de uma câmara-escura. Seguindo o conselho de um repórter fotográfico que conheço na revista Newsweek, também investi em equipamento de reprodução topo de gama: um ampliador Beseler 45nix, um secador de pel ículas

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Kinder mann e um tabuleiro KÔdak mecanizado. Eu só uso pro dutos químicos de laboratório de qualidade extra da marca Iffiord,- s ó imprimo em papel de brometo Galleria. Além disso, tal como a maioria do s fotógrafos sérios, dou a minha preferência a duas películas a preto e branco de qualidade superior: Kodak Tri-X e Iffiord HP4. Do lado oposto a esta zona de trabalho, tenho um co fre que vai do chão ao tecto, fechado com dois cadeados anti-roubo . Quando se tem uma colecção de máquinas fotográficas avaliada em 4 5 000 dólares, ninguém pode dar-se ao luxo de arriscar-se a ser roubado. 12 Comecei a coleccionar máquinas fotográficas em 1962 . Tinha seis anos e fui visitar os meus avós maternos a Fort Lau derdale. Peguei numa velha Brownie que alguém deixara em cima de um a mesa de canto, olhei através da objectiva e fiquei cativado . Era uma forma completamente nova de ver as coisas. Mas o qu e mais agradou à minha sensibilidade infantil foi a descoberta de que podi a esconder-me atrás da lente. Depois, durante o resto da nossa estada - na qual os meus pais discutiram, os meus avós discutiram, e depois cada casal acabava por fazer as pazes - passei grande parte do tempo com e ssa Brownie encostada à cara. O meu pai não achou graça nenhuma . Certa noite, à mesa do jantar, quando eu tentava comer um cocktail de camarão, ao mesmo tempo que segurava a Brownie ao nível dos olh os, tirou-me a máquina das mãos. O meu avô achou que o genro estav a a ser indevidamente duro e acorreu em minha defesa. «Deix a o miúdo divertir-se. Aposto que ele vai ser fotógrafo quando crescer.» «Só se quiser morrer à fome», disse o meu pai, com um vestígio de superioridade de cursista de Yale na voz. Foi esse o primeiro dos muitos confrontos que eu vi ria a ter com o meu pai a propósito da fotografia. Contudo, no aero porto, no fim daquela breve mas excitante visita a Fort Laude rdale, o meu avô entregou-me a Brownie. Ainda hoje a tenho. Está gua rdada no meu cofre, ao lado da minha primeira Instamatic (Natal de 1967), da minha primeira Nikon (fim do liceu), da minha primeira Leica (lice nciatura, 1978 - um presente da minha mãe seis meses antes de uma em bolia a ter levado aos cinquenta e um anos). Uma das paredes da cave está coberta por uma série escolhida a

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dedo das minhas paisagens - vistas bastante triston has, estilo Ansel Adams, do litoral do Connecticut. Outra parede só t em retratos - Beth e os miúdos numa variedade de poses, utilizando ape nas a luz ambiente e uma grande abertura, a fim de lhes conferir um to m granuloso e natural. Finalmente, a última parede representa a quilo a que eu chamo a minha fase Diane Arbus: um homem sem pernas e com uma venda num olho mendigando em frente ao Bloomingdale, um bêbad o retirando um big mac semicomido de um contentor de lixo. Adam ad ora a minha colecção de mórbidos urbanos. De cada vez que me vi sita aqui em baixo enquanto eu estou a trabalhar, trepa para o sofá ci nzento do estúdio, por baixo dos ditos, aponta para o bêbado, dá uma risad a de prazer e exclama: «Homem mau! Homem mau! » É o tipo de crí tico que me agrada. E o bebé Josh? Não repara em nada, só chora. Não havia dúvida de que a choradeira ia em grande n aquela manhã. Desde que eu o trouxera para baixo, ainda não abran dara. Talvez o problema 13 fosse a fralda. Deitei-o no sofá, abri as molas no fundo do pijama e espreitei para dentro da fralda. Estava toda suja . Lá voltei escada acima até ao quarto. Depositei Jos h sobre a protecção de plástico que reveste o topo da cómoda de pinho e voltei a abrir as molas do pijama. Quando terminei (depois de um esfo rço considerável), puxei para trás a parte inferior do pijama, descolei as fitas adesivas da fralda e fiquei a olhar, estarrecido, para uma f ralda vinda do inferno. Voltei costas ao bebé por um instante para pegar nu ma mão-cheia de toalhitas de limpeza que se encontravam no parapeit o da janela. Durante os três segundos em que a minha mão esteve afastada do peito dele, aconteceu o impensável: Josh saiu da pr otecção de plástico. Quando me virei, ele estava prestes a rebolar da có moda abaixo. Dei um berro e precipitei-me para ele no preciso moment o em que caía borda fora. Atirei-me para debaixo dele, baten do com a cabeça na cómoda quando ele aterrou em cima de mim. Josh desatou aos gritos de susto. Nesse momento, a porta do quarto escancarou-se, e B eth avançou para mim, vociferando: - Eu disse-te para nunca o largares! - E arrancou-m e Josh. Enquanto ela lhe pegava, a fralda caiu-me em pleno estômago. Não me importei com o facto de o meu roupão ter ficado cheio de

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cocó, pois o que me preocupava era a voz implacavelmente repro vadora de Beth: - Nunca ouves nada, pois não? - Foi um acidente - disse eu. - Ele não se magoou. - Mas eu estou farta de te dizer ... - Pronto, pronto. Eu não... - Não tens razão! - Como queiras. - Levantei-me. Ao fazê-lo, a fralda escorregou de cima de mim para o chão e com um «plof aterrou n o tapete com a parte suja para baixo - um tapete de 1775, tecido à mão, que pertencera a uma hospedaria onde John Adams pernoit ara certa vez. - Fantástico - murmurou Beth com uma voz que traduz ia cansaço. - É mesmo fantástico. - Desculpa, Beth. - Desaparece, Ben. Vai mas é tomar um duche. Eu tra to disto... Como de costume. Bati rapidamente em retirada, mas, ao entrar no cor redor vi Adam à porta do quarto, abraçado ao seu peluche preferido - um coala - e de olhos muito abertos. Ajoelhei-me e beijei-lhe a cab eça loura, dizendo: Já passou tudo. Volta para a cama. Ele apontou para o meu roupão salpicado e franziu o nariz quando o cheiro o atingiu em cheio. 14 - Nojo, nojo! Consegui esboçar um sorriso pálido. - É verdade, sou mesmo um nojo. Quando desci ao piso de baixo já de duche tomado e pronto para ir trabalhar, Beth estava na cozinha a dar o pequeno-a lmoço a Josh e Adam Usava umas calças muito justas e sweatshirt preta q ue não disfarçava a sua recém-recuperada elegância. Beth nunca fora rec honchuda, mas quando a conheci, há sete anos, era do tipo atlétic o: uma loura exuberante e de constituição robusta que se i nteressava por futebol e apreciava cerveja. Também tinha um riso extremamente travesso . Agora, aos trinta e cinco anos, adquirira uma magreza de praticante d e aeróbia. As suas maçãs do rosto estavam fortemente acentuadas, não t inha cintura e o cabelo, em tempos comprido, era usado m uito curto, naquele estilo arrapazado e chique tão apreciado pelas actr izes francesas. Eu continuava a achá-la atraente, e ainda muitas cabeças se viravam à sua passagem, mas a maior parte do tempo a sua efervescência fora sub stituída

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por uma espécie de tédio. Pousei-lhe a mão no ombro e tentei dar-lhe um beijo na cabeça, mas assim que lhe toquei, ela retraiu-se e sacudiu-me. Por isso, despedi-me dos meus dois filhos com um beijo e peguei na pasta . - Pode ser que tenha uma reunião às cinco e meia - disse-lhe eu. - Não faz mal. Esta noite a Fiona fica cá até tarde - retorquiu Beth, referindo-se à empregada irlandesa que tomava conta de Adam e Josh. Abri a porta das traseiras. - Até logo - despedi-me. Beth não respondeu. Tenho uma caminhada de sete minutos até ao comboio. Enquanto puxava para cima a gola da gabardina Burberry para me proteger do frio de Outubro, lembrei-me da conversa fiada do funcionári o da imobiliária que nos vendeu a casa: «Não estão apenas a comprar uma óptima casa, estão também a comprar um excelente trajecto até à cidade .» A nossa rua chama-se Constitution Crescent. Tem vin te e quatro casas - onze de estilo colonial, sete de estilo Cap e Cod, quatro tipo rancho com vários níveis e duas casas de tijol o vermelho de estilo clássico. Cada casa tem dois mil metros de terreno relvado à frente e um carreiro para o carro. O automóvel preferido da zona é a car rinha Volvo. Também há alguns desportivos: um Porsche 911, propriedade de Chuck Bailey, director criativo de uma grande agência de publicid ade; um MG bastante amolgado que pertence a um fotógrafo local não muit o bom, Gary Summers, e um Mazda Miata parado no meu lugar de estacionamento, ao lado da Volvo que Beth utiliza. Ao fundo da Constitution Crescent ergue-se uma igre ja episcopal de 15 madeira. Virei à esquerda, junto à igreja, chegando assim à artéria central de New Croydon, a Adams Avenue. Virando à direita nest a avenida, atravessei um parque de estacionamento e subi as es cadas da ponte que faz a ligação entre as linhas de caminho de ferro. O comboio das 6.47 devia chegar dentro de três minutos. Estuguei o passo em direcção à plataforma sul. Já estava cheia de fatos escuros. D evíamos ser uns oitenta à espera daquele expresso da madrugada. Ao comprar o New York Times e a Vanity Fair na taba caria da estação, senti uma gota de ácido atingir-me no estômago. Pis quei os olhos. Novo

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fluxo de bílis queimando-me os intestinos. Quando o comboio entrou na estação, arrastei-me para uma das carruagens quase dobrado ao meio. Caindo no primeiro assento disponível, desencantei um frasco de Maalox na pasta e bebi um terço de um único trag o. Durante os cinco minutos que o comboio levou a percorrer ruido samente o caminho até à paragem seguinte - Riverside -, a agonia acalmou. Primeiro Riverside, depois Cos Cob, em seguida Gree nwich, seguindo-se Port Chester, Rye, Harrison ' Mamaronec k, Larchmont, New Rochelle, Pelham, Mourit Vernon, Rua Cento e Vinte e Cinco e, finalmente, a Grand Central Station. A minha litani a matinal. Semelhante àquela que o meu falecido pai cantara durante trint a e cinco anos. A única diferença é que eu viajo na linha nor te do metro, ao passo que ele utilizava a antiga linha do rio Hudson. Também ele tinha um invejável trajecto até à cidade . A sua empresa de corretagem era no cruzamento da Madison com a Qu arenta e Oito, a dez minutos a pé da Grand Central. Uma vez, quando eu tinha onze anos, acompanhei-o até à cidade. No escritório, mostraram -me a zona dos executivos, onde ele tinha um de quatro gabinet es. Era um mundo luxuoso, cheio de grandes secretárias e cadeirões de couro b em estofados. Tal como o India Club, onde ele me levou a almoçar. Era no bairro financeiro, perto da Bolsa de Valores. A atmosfera fazia lembrar Boston no antigo estilo ianque - grande quantidade de paredes apaineladas a madeira. A sala de jantar tinha uma abóbada alta de aspecto formal. Os criados usavam libré branca engomada, e à nossa volta só se viam fatos de risca fina e óculos de aros de tartaruga: era a Wall Stre et a almoçar. - Um dia serás membro deste clube - declarou o meu pai. Lembro-me de ter pensado que ter um grande gabinete e comer todos os dias no India Club devia ser o auge da idade adu lta. Oito anos depois, jurei nunca mais voltar a pôr os pés no India Club. Corria o Verão de 75; eu tinha acabado o primeiro a no da Faculdade de Bowdoin e arranjara um trabalho de férias como empr egado de balcão numa loja de máquinas fotográficas. O meu pai ficar a estupefacto por eu ter recusado a sua oferta de «aprender a trabalhar com títulos», servindo de moço-de-recados no piso da Bolsa. Convidou-me pa ra almoçar. Mal me sentei à mesa, disse-me que, se eu não aceit asse o trabalho

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que ele me estava a oferecer, podia esquecer o regr esso a Bowdoin no Outono, pois ele não me pagaria as despesas. Rendi-me, e durante os três verões que se seguiram fiz o que o meu pai me exigia, trabalhando para a empresa dele como moço-de-recados no piso da Bolsa. Porque fraquejei? Porque, quando se é criado e educ ado num reino selecto da Costa Leste (externato particular em Oss ining, Nova Iorque quatro anos em Andover, ingresso numa faculdade de elite como Bowdoin, na Nova Inglaterra), não se vai deitar tud o pela janela fora para vender máquinas Nikon. A menos que se queira ser co nsiderado um falhado completo - alguém a quem se oferecem tod as as oportunidades, mas mesmo assim não consegue vencer. Vencer. O mais americano de todos os verbos. Para o meu pai significava apenas uma coisa: fazer muito dinheiro, o dinheiro que se pode ganhar quase imediatamente trepando a «escada» empresarial ou enterrando-nos numa das profissões mais seguras. Po rém, embora eu tivesse feito os preliminares de Direito sugeridos pelo meu pai, sempre dissera a mim próprio que, quando terminasse a faculdade e já não estivesse economicamente dependente dele, me despedia do mund o vencedor dele com um beijo. - Não o deixes intimidar-te - repetia-me sempre Kat e Brymer. Kate Brymer. Quando o comboio saiu da Estação de Ha rrison, dei comigo a folhear as páginas lustrosas da Vanity Fai r. E lá estava ela, posando diante de um campo de morte na Bósnia. Vestia, como sempre, um camuflado muito elegante e fitava a máquina foto gráfica com o seu já previsível aspecto de Mãe-Coragem-Vestida-po r-Armani. O título era o seguinte: NA VERDADEIRA LINHA DE FOGO: KATE B RYMER, DA CNN, LEVA À BóSNIA A SUA EXTREMA ELEGÂNCIA. Sinto inveja de Kate. Sempre senti. Sobretudo depoi s de termos saído de Bowdoin, no Verão de 78, e nos termos mudado par a Paris. Embora o meu pai me recusasse o seu apoio enquanto eu tentav a estabelecer-me naquela cidade como fotógrafo, Kate tinha uma conta bancária considerável que nos permitiu alugar um apartamento tipo estúdio no Bairro de Marais. Passadas duas semanas da nossa chegada à ci dade, ela já tinha arranjado emprego, trabalhando como uma espécie de moça-de-recados na Newsweek. Três meses depois, foi contratada como assistente

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de produção 17 dos estúdios da CBS News em Paris. Ao fim de oito semanas, chegou a casa e anun ciou que ia viver com o patrão, o director local dos estúdios da CBS. Na manhã seguinte, fez a s malas e foi-se embora. Passados dois meses, também me fui embora. Não tinh a dinheiro para continuar a viver em Paris. Estava sem cheta e não conseguira arranjar emprego. As fotografias não estão más, mas não são nada de e special - disse-me o editor fotográfico do International Hera ld Tribune depois de eu lhe ter mostrado o meu portfólio. De regresso a Nova Iorque, todos os editores fotogr áficos que contactei me disseram o mesmo. As minhas fotografia s «não eram más», mas isso não me levaria longe na Big Apple. Foi um período terrível. Ainda estonteado pela form a brusca como Kate me mandara às malvas, acabei por ir parar ao m inúsculo apartamento, em Morningside Heights, de um amigo qu e estava a acabar a licenciatura na Colúmbia. Enquanto procurava dese speradamente iniciar-me de algum modo no jogo da fotografia, gan hava o meu sustento como empregado de balcão na Willougbby's Cameras, na Rua Trinta e Dois Oeste. Depois, a minha mãe morreu e fui invadido pe lo pânico. Eu era um fracassado total. Não havia esperança para mim. Abrir revistas tais como a GQ, a Esquire e a Roffing Stone só confirmav a ainda mais a minha posição de fracassado, pois as suas pá ginas estavam cheias de tipos da minha idade que já eram figuras de grande sucess o. Comecei então a convencer-me de que nunca conseguiria sobreviver co mo fotógrafo e que acabaria fossilizado atrás do balcão da Willoughby' s - como empregado de meia-idade com caspa em estado termina l. O pânico, como é óbvio, tem o seu próprio momento d e loucura. Uma vez apanhados por ele, rendemo-nos ao melodrama tismo. A situação é desesperada. Não Há Saída. É urgente enc ontrar uma solução imediatamente. E acabamos por tomar decisõe s erradas que alteram tudo. Decisões que mais tarde acabamos por odiar. Ao olhar para trás, para esses poucos meses angusti ados a meio caminho entre os meus vinte e trinta anos, costumo interrogar-me: «Porque não tive mais confiança nas minhas aptidões fotográ ficas?» Mas quando se foi educado na ética do êxito, pensa-se que, se não se consegue ascender à velocidade supostamente merecid a, é porque se está no

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caminho errado. Fui uma vítima de tal engano. Quatro meses depois de ter começado a trabalhar na Willoughby's, o meu pai fez-me uma visita-surpresa perto da hora do almoço. Mal me viu com o uniforme de vendedor (casaco azul de fraca qu alidade com 18 o nome da loja bordado), teve de se conter muito pa ra não mostrar o seu desdém. - Veio cá para comprar uma máquina? - perguntei-lhe . Vim cá para te pagar o almoço - retorquiu ele. Refugiámo-nos num pequeno café no cruzamento entre a Sexta Avenida e a Rua Trinta e Dois. - Não vamos ao India Club, pai? Ou o meu casaco ia deixá-lo embaraçado? - Sempre o mesmo engraçadinho - comentou ele. - Então, o meu casaco deixa-o mesmo embaraçado ... - Tu não gostas nada de mim, pois não? - foi a resp osta. - Talvez porque o pai nunca tenha gostado particula rmente de mim. - Não digas disparates, tu és o meu único filho. - Mas sou uma desilusão. Uma desilusão profissional . - Se te sentes feliz a fazer o que fazes, então eu sinto-me feliz por ti. Olhei para ele, desconfiado: - Não está a falar a sério - comentei. Ele deu uma gargalhada forçada. - Tens razão, não estou a falar a sério. Acho que e stás a perder o teu tempo, mas ainda só tens vinte e três anos. Se é is so que queres, não direi nem mais uma palavra para te contrariar. - Silêncio . Pedimos o que queríamos comer. - Mas digo-te uma coisa. Hás-de ac ordar um dia e lamentar o facto de não ter dinheiro. Se tive res um curso de Direito como suporte, podes viver como quiseres e depois utiliza r os tempos livres para te dedicares à fotografia. Dinheiro significa liberdade, Ben. Se decidires retomar os estudos, licenciares-t e ou tirares um MBA, eu pago-te. Durante pelo menos um mês recusei-me a pôr a hipóte se de aceitar aquele negócio faustiano. Acabara de ver rejeitadas quatro candidaturas a jornais de vários géneros. Certa tar de de domingo, um homem alto e magro na casa dos sessenta entrou, com ar desorientado, na Willoughby's e pediu meia dúzia de rolos Tri-X. Entregou-me o seu cartão Amex, e eu li o nome: RICHARD AVEDON. - O senhor é Richard Avedon? - perguntei num tom de masiado atónito. - Talvez - disse ele, um pouco enfastiado. - Richard Avedon ... - disse eu, fazendo passar o c artão de crédito na máquina. - Eu sou o maior fã das suas fotografia s de vadios do

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Texas. é um trabalho formidável. Tenho andado a tir ar uma série de fotografias na Times Square. Vadios, prost itutas, baixo nível em geral. E também estou a tentar seguir o seu lema «o rosto é a paisagem», separando sujeito e paisagem. Mas o que eu lhe ia perguntar e ra ... 19 Avedon interrompeu o meu monólogo maníaco. - Isso já está, não? Senti-me como se tivesse levado um murro na cara. - Desculpe - balbuciei, e entreguei-lhe o talão do cartão de crédito. Ele fez uma rubrica, pegou nos filmes e saiu, abana ndo a cabeça na direcção da loura de pernas altas e magras que espe rava por ele num balcão ao lado. - O que é que ele estava para ali a dizer? - ouvi-a perguntar-lhe. - Era simplesmente um tonto sem futuro - replicou A vedon. Passados poucos dias, inscrevi-me num curso de revi sões para LSAT (exame de admissão a Direito). Para minha gran de surpresa, tive uma pontuação elevada - 695! Suficientemente elevad a para ser aceite em três das melhores Faculdades de Direito do país: Nova Iorque, Berkeley e Virgínia. Rejubilei. Finalmente, sentia- me um vencedor, a espécie de pessoa que supostamente devi a ser. Além disso, autoconvenci-me de que tinha feito a escolha acerta da. Sobretudo porque, pela primeira vez na vida, conseguira fazer o meu p ai feliz. Tão feliz que, depois de eu lhe ter dito que decidira enveredar por Direito na UNIversidade nesse mesmo Outono, ele me mandou um cheque de 5000 dólares aco mpanhado de um cartão que dizia para «me divertir um bocado antes de mergulhar a sério nos estudos». Assim, deixei o meu emprego na Willoughby's e fiz-m e à estrada. Deambulei pelo Noroeste do Pacífico durante um mês num Toyota bastante decrépito, com uma máquina fotográfica no banco ao meu lado. Depois, no fim desse indolente filme de viagem de V erão, acelerei até Nova Iorque, vendi o carro, pus a máquina fotográfi ca numa prateleira e comecei a estudar Direito. No ano seguinte a ter passado o exame da Ordem - e quando já estava numa posição confortável numa importante emp resa da Wall Street -, o meu pai morreu. Extensa obstrução das c oronárias depois de um almoço de arromba no India Club. Dinheiro significa liberdade, Ben. Claro que sim, p ai. Até nos

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vermos prisioneiros do trabalho, dando connosco a cantar u ma litania matinal como se segue: Riverside, Cos Cob, Greenwich, Port Chester, Rye, Harrison, Mamaroneck, Larchmont, New Rochelle, Pelh am, Mount Vernon ... - Rua Vinte e Três. Próxima paragem, Grand Central. A voz do condutor fez-me despertar com um sobressal to. Dormira durante todo o percurso através dos subúrbios, e du rante uns momentos nebulosos não tive a certeza de onde me encontrava. Ou como fora parar 20 ali. Cercado por fatos. De fato vestido. Isto não p ode estar certo. Eu devo ter cometido um grande erro. Sou o homem errado no comboio errado. EsTAvAm nove comprimidos em cima da secretária do meu gabinete. Um zantac para a acidez gástrica, dua s cápsulas de ginseng para me darem energia natural, dois comp rimidos de dexedrina para obter energia química, um valium contra o stress e três comprimidos de betacaroteno para desintoxicação do organismo. - É a dose maciça de betacaroteno que mais me impre ssiona - exclamou Estelle, observando a minha ração farmacêu tica matinal. - Mantém-me limpo e purificado - repliquei, metendo os comprimidos na boca e engolindo-os de um trago com Maalox. - Agora, suponho que vai querer o seu café da manhã ? - inquiriu ela. - Sim, se faz favor. E o processo Berkowitz enquant o faz o café. - Já está em cima da sua secretária. Veja o artigo 5, alínea A, do testamento. Houve uma violação da lei das pen sões vitalícias, porque a herança ainda continua indivisa. Ergui o olhar para Estelle e sorri: - Você é que devia estar sentada a esta secretária. - Não quero vir a tomar Maalox ao pequeno-almoço - respondeu ela, abrindo a porta que dava para o seu gabinete d e secretária. - Mais alguma coisa, Mr. Bradford? - A minha mulher ... ligue para ela, se faz favor. Olhou de relance para o relógio. Eu conseguia adivi nhar-lhe os pensamentos e o que diria às colegas à hora do almo ço: «Telefona para a mulher quinze minutos depois de chegar ao escritóri o, e já é a oitava vez em duas semanas.» Contudo, como secretária jurí dica consumada que realmente é, Estelle limitou-se a comentar: - Passo-lhe a chamada mal ela atender. Estelle. Quarenta e sete anos de idade, divorciada, robusta como um

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Buick. Entrara para a empresa há vinte e cinco anos , e agora poderia estar à cabeça deste departamento, já que ninguém na Lawr ence, Cameron and Thomas sabe mais do que ela sobre direito suces sório. Tem uma 21 mente de computador; uma vez processado o mais obsc uro fragmento de informação, consegue lembrar-se dele ao fim de vári os anos. E será, provavelmente, a maior especialista do Mundo em pensões vitalícias - uma especialidade que só faz sentido para um advoga do de T & H. T & H: testamentos e heranças. Nós somos os tipos q ue estamos presentes para lhe recordar que, infelizmente, você não pode levar nada para o caixão. Assim, tendo em vista a sua partida inevi tável, ajudamo-lo a planear como desembolsar o seu património temporal acumulado. Como é óbvio, a Lawrence, Cameron and Thomas não o repre senta se a sua liquidez não ultrapassar os dois milhões de dól ares. Nós, os T & H, somos uma pequena secção da sociedade: um sócio principal (Jack Mayle), um sócio mais novo (moi), três associados e cinco secr etárias. E como T & H é considerado um ramo indubitavelmente desprezível do Direito, estamos encafuados nas traseiras da sede da empresa , com apenas um gabinete de canto reservado para nós. Os escritórios da Lawrence, Cameron and Thomas estã o situados nos pisos dezoito e dezanove do número 120 da Broadway, na Baixa de Manhattan. O edifício é um daqueles testemunhos rib ombantes do capitalismo em expansão dos anos 20, o arranha-céus equivalente a um órgão Wurlitzer. As pessoas da empresa consideram uma grande coisa t er um gabinete de canto. Estes só são atribuídos a sócios efectivo s, mas como só há oito gabinetes de canto, os advogados principais passam anos atormentados até finalmente terem um. Eu, pessoalmente, não me p reocupo por causa da situação do meu gabinete (nono piso, uma vista b onita sobre a Ponte de Brooklyn, ao lado da suite de canto ocupada por Jack Mayle). E, como é óbvio, também não me preocupo por causa do d inheiro que me atiram para as mãos - cerca de 315 000 dólares por ano (consoante as comissões). De facto, não posso queixar-me de nada que tenha a

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ver com a Lawrence, Cameron and Thomas. A não ser do trabal ho. O trabalho atormenta-me imenso porque me aborrece - aborrece-m e terrivelmente. Claro, eu sabia que T & H era o lugar mais enfadonh o do Mundo quando ingressei na empresa, em Setembro de 1983, m as estávamos em meados dos anos 80 e a Wall Street era o sítio em q ue interessava estar. Assim sendo, desenvolvi um plano-mestre. Ficaria al i cinco anos, no máximo, economizaria o mais possível e dep ois, enquanto ainda tivesse trinta e poucos anos, dedicaria todo o meu tempo à fotografia. Afinal de contas, a América pululava de advogados-romancistas famosos. Porque não havia eu de ser o primeiro advogado-fotógrafo f amoso? Como todos os novos associados da Lawrence, Cameron and Thomas, passei algum tempo em cada um dos departamentos de peso da empresa, 22 - contencioso, direito comercial e fiscal -, mas descobri que estavam todos apinhados de tipos que s e deliciavam a exterminar a oposição e a apunhalar-se mutuamente. Como é óbvi o, esta raça domina grande parte da vida empresarial americana. Foi-lhes incutida uma filosofia tipo jogar-para-ganhar e adora utilizar a linguagem futebolística. «Aqui queremos que você jogue como um defesa duro ... Nes te departamento, não gostamos de fintas de meio campo, só nos intere ssam os golos.» Ao fim de vários meses de opressivas metáforas futebol ísticas, apercebi-me de que para sobreviver ao dramatismo mortal de um d epartamento jurídico sexy tínhamos de aderir à respectiva crenç a digladeatória de que negócio é guerra. Como eu só olhava para o d ireito como meio pelo qual podia subsidiar a minha futura carreira fotogr áfica, decidi procurar um cantinho sossegado. Então, quando conhe ci Jack Mayle, percebi que encontrara o meu mentor, o meu rabi. - Se você é um daqueles apaches da escola preparató ria que desejam coleccionar escalpes, não tenho nada para s i aqui - informou-me ele durante a nossa primeira entrevista. - Não há l ouros em T & H. Aqui é a Cidade da Penumbra, capisce? O nosso lema é deixar as coronárias para os gentios. - Mas, Dr. Mayle - retorqui -, eu sou um gentio. Entrelaçou os dedos com manchas biliosas e fez esta lar os nós. - Já reparei - replicou ele com um toque de ironia rabínica na voz. - Mas, pelo menos, você é um gentio sossegado.

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Jack Mayle comprava fatos feitos por medida na Dunh ill. O seu belo cabelo grisalho estava sempre impecavelmente cobert o de brilhantina e penteado para trás. Parecia um galã minúsculo que c onsiderava o vestir bem como a melhor defesa contra a sua baixa estatur a, e a verdade é que ele era o único sócio principal judeu de uma empres a profundamente reaccionária. Creio que uma das razões pelas quais Jack me contratou foi por ter pressentido (e aprovado) o meu estatuto mar ginal. Ele próprio se tinha dedicado durante algum tempo à pintura abstra cta em Greenwich Village antes de ceder à pressão familiar e ganhar uma bolsa de estudo para tirar Direito em Brooklyn. Por isso, o ver-me pôr de parte as minhas ambições fotográficas para entrar no jogo empresari al deve ter desencadeado nele um certo instinto protector, porq ue, passadas duas semanas da minha entrada em T & H, deu a saber que, ao fim de vinte e quatro anos na Lawrence, Cameron, tinha finalmente encontr ado o seu sucessor. - Se você jogar bem as suas cartadas, daqui a cinco anos faço-o sócio júnior - anunciou-me ele. Uma nova oferta faustiana balançava à minha frente. Sócio? Com a idade precoce de trinta e três anos? Aquilo impre ssionaria o meu pai. 23 Claro que T & H não era exactamente um trabalho mui to interessante, mas eu começava a convencer-me de que as minúcias d o trabalho jurídico convinham à minha natureza. Quer dizer, se eu adorava os incriveis pormenores técnicos ligados à impressão fotográfica , de certeza que poderia vir a apreciar a arte pormenori zada da redacção de testamentos ... Não podia? O telefone tocou na minha secretária. Carreguei no botão ATENDImENTO e fui alvejado com a voz nasalada de Es telle. - A sua esposa não atende, Dr. Bradford. E o Dr. Ma yle perguntou se podia dar-lhe um minuto. - Diga-lhe que vou ter com ele daqui a um quarto de hora. Estou só a terminar uns ajustamentos no documento Berkowitz. Tais ajustamentos levaram apenas cinco minutos. Dep ois, peguei no telefone, carreguei no primeiro botão de números me morizados e consegui a ligação para minha casa. Alguém atendeu. - Hola? Quién es? - perguntou Perdita, a nossa gove rnanta guatemalteca. - Hola, Perdita - respondi. - Dónde está seflora Br adford?

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- Ha salido. Para todo el día. - Te ha dado un número de teléfÔno dónde está? - No, senor. - Y los ninhos? - Han salido con Fiona. Fora todo o dia. Sem deixar número de telefone para contacto. E os miúdos tinham saído com a ama. Mordi o lábio. Era o terceiro dia seguido que, às 9 da manhã, Beth já estava fora de casa. Sei-o porque em todas essas manhãs eu tentara contactá-la do escritório n a esperança de obter, de algum modo, um cessar-fogo entre nós. Abri a minha agenda telefónica e liguei o número de Wendy Waggoner, uma autora de livros de culinária local e a única mulher que eu conhecia que, aos quarenta anos ainda usava kilts com grandes alfinetes de-ama. Beth jogava ténis com Wendy uma manhã por s emana. Talvez fosse esta manhã. - Residencia de Waggoner. - Outra empregada latino- americana. - Wendy está? - perguntei, subitamente cansado de c hamadas bilingues para o Connecticut. - Hoje, a Senora Waggoner está na cidade. Mensagem? - Não, gracias. Pousei o auscultador. Não havia necessidade de Wend y ficar a interrogar-se por que razão eu lhe telefonaria numa manhã de semana à procura da minha mulher. 24 Outra vez Estelle pelo intercomunicador: - O Dr. Mayle queria saber ... - Já vou a caminho - repliquei. O gabinete de Jack era ao lado do meu. Bati e entre i. Ele estava sentado na sua imensa cadeira de couro, pare cendo mais diminuto do que o habitual. Esboçou um sorriso cansado, sem alegria, de que eu não gostei. - Senta-te, Ben - ordenou-me. Obedeci-lhe e ele fit ou-me com um olhar perscrutador. - Está tudo bem a nível domésti co? - Está, Jack, está tudo bem. - Mentiroso. - É assim tão óbvio? - Estás com péssimo aspecto, Ben. - Não é nada que vinte horas seguidas de sono não c urassem. Mas o senhor ... parece que acabou de passar duas s emanas em Palme Springs. - Não pareço nada - replicou ele. - Desculpe - supliquei, surpreendido com o tom irri tado dele. Fitou com um olhar vazio o mata-borrão da secretári a durante aquilo que me pareceram vários minutos. Finalmente, falou. - Estou a morrer, Ben. MAIS TARDE, de volta ao meu gabinete, sentei-me à s ecretária e pus a cabeça entre as mãos. Jack, o meu mentor, o meu pai adoptivo.

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Estou a morrer, Ben. Cancro no estômago, sem possibilidades de operação. Ele sabia há duas semanas, mas não tinha contado a ninguém, nem sequer à mulher. - Eles dão-me oito meses, um ano, no máximo - confe ssou-me. Queria que a notícia se mantivesse secreta na empre sa. - Não vou sujeitar-me a quimioterapia. Se é terminal, é t erminal. Portanto, vou tomar os analgésicos que me derem e continuo a vir ao escrit ório até ... - Foi-se abaixo, cerrou os lábios e olhou pela janela para a parada frenética de peões na Wall Street; toda a gente parecia ter um o bjectivo, toda a gente preocupada em chegar a qualquer lado. - Sabes o que mais me custa nisto tudo? - perguntou ele baixinho. - É aperceber -me de que não tenho possibilidades futuras de mudar, de explo rar outras opções, nem sequer de sonhar com outra vida, porque a estrada chegou ao fim. - Depois, voltou-se para mim e, fitando-me a direit o nos olhos, exclamou: - Vais ser tu o novo sócio, Ben. Estremeci. Foi um movimento involuntário, mas Jack apercebeu-se. Não disse nada. Ele sabia. Sabia exactamente o que aquilo significava para mim. Meio milhão de dólares por ano, no mínimo , grande prestígio a nível empresarial ... e a morte da minha outra vi da. Essa vida ainda por 25 realizar atrás de uma objectiva. Uma vida que - tal como a distante passagem de Jack por umas águas-furtadas d e Greenwich Village - se torna o objecto dos nossos sonhos. Ali sentado à minha secretária, senti-me subitament e estonteado e trémulo. Precisava de falar com Beth. Peguei no tel efone. Este tremia na minha mão enquanto eu carregava no botão da memória e ligava para casa. Tocou quatro vezes. Depois, ouvi a minha voz no gravador: - Olá. Ligou para casa de Ben e Beth Bradford. Não podemos atender de momento ... Ben e Beth Bradford. Eu sempre lhe dissera que, se viéssemos a casar-nos, ela ficaria com o nome de solteira. - Eu vou viver contigo para sempre - dissera ela ce rta noite de Janeiro de 1988 enquanto esvaziávamos uma segunda g arrafa de vinho no Odeon -, mas nunca havemos de casar. - Mas se casássemos ... - Então, eu ficava com o teu nome. - Isso parece muito antiquado para ti - repliquei. - Ná - exclamou Beth -, estou só a ser prática. Bet h Bradfford

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ficava muito melhor numa sobrecapa do que Beth Schn itzler. 1988. Vivíamos juntos apenas há meses num apartamen to tipo sótão no SoHo. Éramos artistas-em-perspectiva. Pelo menos era essa a alcunha que Beth nos dava. Havia sempre um tom zombeteiro n a sua voz quando ela usava aquela designação, mas estávamos ambos co nvencidos de que seria apenas uma questão de um ou dois anos até con seguirmos libertar-nos da escravidão de um ordenado. E todas as manhãs durante a semana, antes de se dirigir para o trabalho como as sistente do editor de ficção da revista Cosmopolitan, Beth levantava-se às 6 e t rabalhava no romance que ela esperava vir a grangear-lhe fama no meio li terário. Recusou-se a deixar-mo ler, até que finalmente, certo sábado do mês de Março de 89, me passou para as mãos o manuscrito de 438 páginas, exclamando: - Chama-se O Parque Infantil da Ambição. Escrito num estilo que podia ser descrito como liri smo de rapariga sensível, tinha como personagem central uma jovem d esajeitada do condado de Westchester que tentava lidar com o f acto da morte iminente da mãe, com cancro da mama. Quando a mãe acaba por mor rer, a rapariga muda-se para a Grande Cidade, decidida a tornar-se uma Grande Pintora. Arranja emprego no departamento de arte de uma revi sta luxuosa, apaixona-se por um dermatologista, acaband o por dar consigo dividida entre as tentações da vida doméstica e a voz interior» da sua musa. Era a edição melhorada e aumentada da vida de Beth - com alguns pormenores a mais ou a menos. 26 Nos cinco meses que se seguiram, vinte e duas edito ras rejeitaram O Parque Infantil da Ambição. Nesse Outono, Beth descobriu que estava grávida. A ideia da paternidade - e todas as responsabilidad es daí decorrentes - aterrava-me. Mas eu queria Beth deses peradamente e convenci-me a mim próprio de que um filho,viria ligar-nos para sempre. Beth manifestava todo o tipo de receios acerca de s e transformar num fac-símile da sua própria mãe, que fora uma grande figura de rela ções públicas numa das grandes empresas nova-iorquinas até ao casament o e ao nascimento de Beth. Depois, tivera de mudar-se para os subúrbi os, ao que se seguira uma vida de reuniões da associação de pais e manhãs no café.

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Acalmei os receios de Beth. Continuaríamos a viver na cidade. Ela continuaria a trabalhar. Contrataríamos uma pessoa para tratar da criança. Garanti-lhe que a nossa vida continuari a a ser tal como antes. - Isso nunca acontece - retorquira Beth. - Mas pode acontecer, vai acontecer. E depois de ca sarmos Puxei-a para mim e beijei-a apaixonadamente. Então, ela pegou-me no rosto entre as mãos e fitou- me com olhar perscrutador. - Lá se vai a nossa fantasia de artistas-em-perspec tiva. - Havemos de lá chegar. - Talvez, mas se eu alguma vez sugerir que nos mude mos para os subúrbios, dá-me um tiro. Não lhe recordei aquele comentário treze meses depo is, quando ela me telefonou para o escritório certa tarde em estad o de choque. - Tens de vir já para casa - gritou ela, completame nte em pânico. O meu coração parou de bater. Adam tinha apenas qua tro meses: Morte súbita, meningite ... - Diz lá - pedi eu finalmente. - Vomitado - soluçou Beth. - Ele está coberto de vo mitado. O vomitado em questão era de um sem-abrigo que acam pava num beco em frente ao nosso apartamento. Beth, que naqu ele dia chegara cedo a casa, vinda da revista Cosmo, ia a sair para dar um passeio com Adam. De súbito, o tipo atravessara-se-lhe no camin ho. - Dá um dólar a este pobre, há? Só um pequeno ... Mas não terminou a frase, pois de súbito ficou verd e e vomitou o almoço para cima de Adam. Nesse fim-de-semana, su geri que fôssemos à procura de casa no Connecticut. - Não acredito que estamos a fazer isto - disse Bet h depois de eu ter feito uma oferta pela casa na Constitution C rescent. - Nem eu. Mas ouve, continuamos os dois a vir todos os dias para a 27 cidade, certo? E New Croydon é um sítio óptimo para crianças. Afinal, como tu própria disseste, não queres criar o teu fi lho em Calcutá. - Eu sei aquilo que disse. Conheço todos os argumen tos. - Olha, se não aguentarmos, mudamo-nos outra vez pa ra a cidade. - Nunca mais havemos de mudar-nos - retorquiu ela s ombriamente. A Casa de Campo, o romance seguinte de Beth, foi co meçado alguns meses depois de nos termos instalado em New Croydon . A minha situação de sócio júnior chegara ao seu termo, e ch eio de generosidade arrogante cometi um erro estúpido, mas bem-intencionado: convenci Beth a

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desistir do emprego e a dedicar-se à escrita a temp o inteiro. Beth levou quase dois anos a terminar A Casa de Cam po. Quando a última carta de rejeição chegou, ela estava grávida de Josh, e, sentindo-se cada vez mais enredada pela rotina doméstica, começ ou a afastar-se de mim. Também deixou de escrever e voltou a sua atenç ão para o mobiliário de estilo colonial americano. Josh nasce u; recusava-se a dormir; Beth recusava-se a fazer amor comigo e também a conversa r sobre as razões que a levavam a isso. Não parava de comprar bricabraque do século xviii; eu não parava de comprar equipamento para a câmara-escura; ambos evitávamos constatar o facto d e o nosso casamento ter chegado a um beco sem saída. Mas conhecíamos a razão: Beth acusa va-me de eu a ter transformado na sua própria mãe - uma mulher talent osa e independente que lentamente se ia atrofiando numa p ovoação suburbana. PUS BRUSCAMENTE de lado as minhas reflexões sobre o estado do meu casamento e olhei de relance para o relógio. Hora d o almoço. Decidi sair do escritório e distrair-me indo de táxi até à Rua Trinta e Três Oeste e entrando na loja Upton Cameras, que ve nde o último grito de equipamento fotográfico de alta qualidade. Ted, o gerente, saudou-me com um sorriso. Ted era s empre super -simpático comigo porque, durante os últimos dois a nos, eu já gastara cerca de 20 000 dólares na sua loja. - Bem, cá está ela, Mr. Bradfford - disse ele. «Ela» era a nova máquina fotográfica profissional C anon EOS-IN topo de gama. Precisamente o tipo de máquina que us am os repórteres de maior sucesso. Eu não tinha grande necessidade daqu ela máquina, mas mesmo assim não deixava de querê-la. Afinal de cont as, continuo a ser um artista-em-perspectiva, embora seja um que se po de dar ao luxo de dar 2499 dólares, mais IVA, por um brinquedo japonê s. Ted mandou retirar a máquina da embalagem para eu a ver num balcão expositor. 28 - Experimente o obturador - recomendou-me ele. Premi o botão preto. Era como puxar o gatilho de um a metralhadora - ouvia-se um estrondoso rá-tá-tá-tá e nquanto o mecanismo do motor entrava em funcionamento. - Acha que devia pensar em adquirir um flash autozo om adequado a esta beleza? - Tem graça - comentou Ted. - Eu mandei vir um prec isamente para o caso de o senhor falar nisso.

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- Telepatia. Quanto me custará tudo? - Soma ao todo trezentos e trinta e quatro dólares, mas eu faço-lhe o desconto de vinte por cento para profissionais. - Negócio fechado - repliquei eu. O desconto de vinte por cento para profissionais. T ed era um vendedor astuto. Nos três anos desde que eu descobr ira a Upton Cameras, nunca me perguntara de que é que eu vivia. Em vez disso, tratava-me como profissional. Contudo, eu interrogava-me se ele não veria em mim um ricaço caprichoso que comprava todas as máqu inas de preço exorbitante que lhe apetecesse. - Com o IVA, são dois mil novecentos e quarenta e s ete dólares - anunciou Ted enquanto a máquina de cartão de créd ito era accionada, emitindo um talão. - Óptimo - respondi, assinando na linha a tracejado . Entretanto, Ted retirava da embalagem um tenba vent ure pak - o melhor saco para máquinas fotográficas do Mundo, se dermos crédito aos anúncios publicitários. Embrulhou-o juntamente com a minha nova máquina e respectivos acessórios. - Hmm ..., eu não comprei esse saco - comentei. - Digamos que é por conta da casa. - Obrigado, Ted. - Obrigado eu, como sempre, Mr. Bradford. E já sabe que estamos sempre ao seu dispor para o que for preciso. Estamos sempre ao seu dispor para o que for preciso . Terapia de retalhista. Mas ao dirigir-me para leste pela Ru a Trinta e Três, eu não sentia aquela lufada terapêutica. Sobretudo quando vi Wendy Waggoner caminhar na minha direcção. Hoje, não vinh a de kilt. Em vez disso, vinha vestida «para matar» com um fato preto Armani. O ca belo louro estava elegantemente apanhado, e ela vinha acompanhada por um tipo à moda, altíssimo, com óculos ovais de marca e rabo-de-cava lo grisalho. Wendy cumprimentou-me com dois beijos no ar. - Olá, Ben, deixa-me apresentar-te Jordan Longfello w, o meu editor. Ben é meu vizinho em New Croydon. Um fotógr afo que, por acaso, 29 também é jurista. Você também publica obras de advo gados, não é verdade, Jordan? Jordan deixou entrever o brilho dos seus dentes. - Alguns dos meus melhores autores são advogados - retorquiu Jordan. - Você também escreve, Ben? - Ele escreve testamentos - replicou Wendy. Apeteceu-me estrangulá-la. Em vez disso, esbocei um sorriso amarelo. Jordan olhou para o relógio. - Tenho de fugir a correr, Ben - comentou Wendy. - Tenho uma grande reunião editorial a propósito do meu novo li vro. Tu e a

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Beth vão a casa dos Hartleys no sábado? No táxi, de regresso ao escritório, senti vontade d e desatar aos murros à janela. Grande reunião editorial a pro pósito do meu novo livro. «E o Pulitzer vai para Wendy Waggoner pela sua obra: « 365 Maneiras de Fazer Rolo de Carne.» Ridículo. Acalmei-me finalmente por volta das 5 da tarde, qua ndo, ao fim de três horas atarefadas a analisar um fundo de heranç a, Estelle deu sinal. - Chamada da sua mulher na linha dois, Dr. Bradford . O meu sistema nervoso foi subitamente percorrido po r uma onda de adrenalina. Tenta parecer afável, descontraído e be m-disposto. Ora viva! - disse eu. Apanhei-te em má altura? - perguntou Beth com uma v oz surpreendentemente simpática. - De maneira nenhuma. - Era só para dizer ... que os miúdos e eu fomos co nvidados para jantar em casa de Jane Seagrave. Não há problema. Eu estava a pensar em trabalhar at é tarde, talvez só apanhe o comboio das sete e quarenta e oito. - Deixo-te qualquer coisa pronta para o jantar se q uiseres. Espera aí, estamos a falar civilizadamente. - Uma cerveja basta - repliquei. Beth Bradfford deu uma gargalhada. A coisa prometia . - O dia tem-te corrido bem? - perguntou Beth. Era a primeira vez em várias semanas que ela me dir igia uma frase agradável. Decidi não dizer nada acerca de Jack May le. - Razoável. E a ti? O que é que tens feito? - Pouca coisa. Tive uma almoçarada com Wendy em Gre enwich. - Wendy Waggoner? - A própria e única - retorquiu Beth com uma risada . Tentei parecer calmo. - E como estava Wendy? 30 AO CHEGAR a casa nessa noite, fui saudado com um be ijo e uma oferta de um martim muito seco, que aceitei. Beth m ostrou-se extremamente solícita quando lhe contei o que se passava com Jac k. Falou de um sofá que tinha acabado de descobrir que em tempos adorna ra o escritório de Ralph Waldo Emerson. Tudo naquele serão era o civis mo personificado. O civismo era tanto, de facto, que eu nem fiz pergu ntas acerca do tal «almoço» com Wendy Waggoner. Fomos para a cama. Uma noite de sono ininterrupto ( milagre dos milagres)! Beijou-me de manhã ao levantar. Nova con versa civilizada acerca do muesli e da manga. Calma lembr ança do nosso programa de

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fim-de-semana: , - Quero ir ao Gap Kids em Greenwich. A festa dos Ha rtleys começa às sete ... Há uma promoção de salmão fresco da Nov a Escócia no DeMarco's. Achei que combinava bem com um fantástic o vinho branco da Nova Zelândia que descobri há pouco. Um beijo na boca quando eu saí de casa. Eu devia sentir-me aliviado. Era uma maravilha que ao fim de vários meses de gelo doméstico este estivesse a derreter. Mas, mas, mas ... Eu sabia que aquela súbita reviravolta não era propria mente uma conversão paulina. Eu sabia ... - Tens alguma coisa combinada para hoje? - pergunte i antes de sair de casa. Durante uma fracção de segundo, Beth desviou os olh os. Foi então que tive a certeza. - Pode ser que vá até ao Celeiro Colonial - respond eu ela, mencionando um antiquário em Westport. - Steve tem o tal sofá do escritório de Emerson de que eu te falei. Há muita gente inter essada nele, por isso só podem reservar-mo até ao fim do dia. - Quanto custa? - inquiri. Beth desviou de novo o olhar. - Mil quatrocentos e cinquenta. - Compra - disse eu. - Querido - exclamou Beth com voz doce. - Tu és bom demais. Sou tão bom, de facto, que mal cheguei ao escritóri o liguei para as informações e obtive o número do Celeiro Co lonial. Contudo, ouvi uma gravação que me pedia para voltar a ligar depois da s 10. Passou uma hora, durante a qual tentei concentrar-me no trabal ho - especificamente, objecções apresentadas pela entead a descontente de um corretor imPortantão da Bolsa, que tivera um enfart e ao jogar squash no Atlético Clube de Nova Iorque. Finalmente, eram horas de voltar a ligar para Westp ort. 31 - Celeiro Colonial, bom dia. Daqui fala Steve. Baixei a voz uma ou duas oitavas e disse: - Bom dia. Talvez me possa ajudar: ando à procura d e um sofá para o meu escritório. Qualquer coisa de meados do sécul o XIX, de preferência americano. - Bem, o senhor está com sorte. Tenho um sofá fabul oso. Fabrico artesanal, Boston, 1853. Pertenceu em tempos a Ralp h Waldo Emerson. - Ralph Waldo Emerson - repeti. - Isso é impression ante. Qual

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seria o preço? - Dois mil e duzentos, mas devo avisá-lo de que uma das minhas melhores clientes mostrou interesse em comprá-lo. Por mil quatrocentos e qualquer coisa, tinha ela di to. Qual dos dois estará a mentir? - Quer dizer então que o sofá já está reservado? - inquiri. - Bem ... não propriamente. Mas a senhora está muit o interessada. - Por isso, se eu não passar hoje por aí, ele pode desaparecer? Fez-se uma pausa. - Não creio que ela venha hoje. Ela disse-me que o mais cedo que poderia voltar seria na próxima quarta-feira. Bingo! - Vou pensar nisso - repliquei, e pousei o ausculta dor. Tens alguma coisa combinada para hoje? Uma mentira levanta suspeitas. Duas mentiras comprovam-nas. E havia apenas uma coi sa que ela podia estar a esconder-me, apenas uma actividade qu e podia torná-la de novo subitamente cordial em relação à minha pessoa. Mas quem? Quem seria o filho da mãe? O meu cérebro arrancou a toda a velocidade, percorrendo todos os nossos amig os e conhecidos. O culpado devia ser alguém que não vinha para a cidad e todos os dias, estando por isso disponível para ver Beth dur ante as horas de trabalho. Outra passagem mental a grande velocidade por todos os tipos conhecidos da nossa área de residência que trabalha vam em casa. Bill Purcell, um escritor freelance fora do vulgar? Impo ssível. Era um excêntrico de luxo, com uma mulher terrível que o tratava como se ele fosse um cãozinho com a trela curta. Gary Summers, o pret enso fotógrafo, que vivia perto de nós na Constitution Crescent? De cab elo comprido e hirsuto, barba rala e um sorriso afectad o tão cheio de auto-satisfação que seria capaz de iluminar o Alasca. Beth desprezava-o . É melhor riscá-lo da lista. Eram estes os dois únicos trabalhadores por conta p rópria de que eu conseguia lembrar-me. Talvez fosse alguém que ela t ivesse encontrado numa loja da zona? Steve, do Celeiro Colonial? Tony , o vendedor de peixe? 32 Quem seria? Beth estaria provavelmente com ele naqu ele preciso momento. Decidi sair do escritório. Peguei na pasta e no sob retudo e avancei para a porta. Estelle ergueu o olhar, surpreendida. - Sinto-me esquisito - expliquei. - Se calhar, é um problema

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de intestinos ou coisa do gênero. Decidi acabar por ho je. O comboio das 12.46 que partia da Grand Central est ava vazio. O mesmo se passava com o cais da Estação de New Croyd on. Desci rapidamente a Adams Avenue, sentindo-me curiosament e deslocado. De facto, à 1.30 de um dia de semana era difícil encontrar na s ruas da cidade um homem de idade compreendida entre os vinte e cinco e os cinquenta anos. Quando dobrei a esquina para entrar na Constitution Crescent, ouvia o meu coração a martelar-me no peito. E se ela esti vesse em casa com o tal tipo? Na nossa cama ... Cheguei à porta de casa e introduzi silenciosamente a chave na fechadura. Aberta a porta, entrei com passinhos de lã, despi o casaco, sentei-me num pequeno banquinho para os pés estilo Providence, 1768, que pertencera a uma hospedaria e descalcei os meus pes ados sapatos negros. Depois, segurando-os numa das mãos, subi as escadas e percorri o corredor sem fazer barulho, com os olhos fixos na porta do nosso quarto, situado na extremidade. Quando lá che guei, a minha mão tremia ao agarrar o puxador. Escancarei a porta. Nada. Nada a não ser a nossa cama, muito bem feita, com a sua manta de retalhos de estilo colonial de execução pe rfeita. Sentei-me na beira da cama, tentando acalmar-me. Não sentia alívio. On de estaria Beth? Em casa dele, claro. Mas onde é que ele vivia? Como se tinham conhecido? Que estariam a fazer naquele preciso momento? Senti -me invadido pelo medo. Um medo impotente. Eu sabia que não podia faz er nada a não ser esperar pelo regresso de Beth. Ela encontrou-me na cave a fazer exercício no Nordi cTrack. - Que fazes em casa? - perguntou ela, espantada por me ver ali tão cedo. Sentia-me doente, por isso vim para casa - respondi , arquejante. Doente? Então, porque estás a fazer exercício? Ao chegar ao comboio já me sentia melhor. Então, di z-me cá ... já te decidiste? - A fazer o quê? - Beth parecia alarmada. - A comprar o sofá de Emerson. - Ai, isso. - O alívio era tangível. - Decidi que e ra demasiado caro, mas comprei o salmão da Nova Escócia no DeMar co's. E uma garrafa

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33 daquele fabuloso Sauvignon branco da Nova Zelândia de que te falei, Cloudy Bay, é assim que se chama. - Onde é que ouviste falar dele? - Ouvi Herb, da loja de bebidas, gabá-lo Muitíssimo . Fez-se um silêncio comprometido que foi quebrado pe lo barulho da porta de entrada a abrir e de Adam a gritar para Fi ona: - Vou ver a Rua Sésamo! - Olá, matulão! - gritei lá para cima. - Pai! - respondeu Adam, gritando também com uma vo z transbordante de excitação infantil. Enquanto se precipitava escada abaixo, acocorei-me, deixando-o atirar-se para os meus braç os. - Trouxeste-me um presente? - perguntou ele. Beth e eu trocámos um sorriso divertido. Adam andav a sempre a tentar negociar presentes. - Trouxe-te a minha pessoa - repliquei. - Mas presentes não? Desatei a rir. Talvez te traga um amanhã. - Eu quero um presente já - choramingou Adam. - Que tal irmos já ao McDonald's? Beth não gostou da brincadeira. - Não, Ben, ele já come demasiadas porcarias. Quem me dera que tu pensasses antes ... - Deixa lá - repliquei num tom de voz subitamente s eco. Beth esteve quase a contra-atacar, mas arrependeu-s e. - Faz o que quiseres; como sempre, aliás. - E avanç ou escada acima. - Vamos ao McDonald's? - perguntei de novo a Adam. - Quero batatas fritas - disse ele com um sorriso. Fomos na Volvo. No caminho, Adam começou a cantar, e eu não consegui deixar de sorrir com a desafinação da sua voz de quatro anos. No McDonald's, Adam portou-se às mil maravilhas, co ncentrando toda a sua atenção na tarefa de comer os seus Chick en McNuggets e batatas fritas, mas fitando-me de vez e m quando com um grande sorriso a dizer «Delicioso», a nova palavra da sema na. Na Talley's Toys, deixei-o escolher duas carruagens para o comboio eléctrico. Em seguida, parámos na Daddy's Toy Shop, a loja de bebidas e vinhos finos de New Croydon. Herb, o velhote calvo que estava à frente da loja desde o tempo de Eisenhower, encontrava-se atrás do balcão. - Como está, Dr. Bradford? - interessou-se ele. - É sexta-feira, Herb. Já pode calcular como devo e star. 34 - Sim, estou a perceber. Em que posso ser-lhe útil? - Queria uma garrafa de Bombay Sapphire. Um litro. Herb virou-se, pegou numa garrafa de gin de preço e xorbitante e pousou-a à minha frente. - Mais alguma coisa? - Que me diz a uma garrafa de Sauvignon branco Clou dy Bay? - Cloudy quê?

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- Cloudy Bay, um vinho da Nova Zelândia. Têm-me dit o maravilhas dele. Você tem-no à venda, não tem? - Lamento, Dr. Bradford. Nunca ouvi falar de tal. M as se me der um minuto, posso falar para o meu fornecedor. Pegou no telefone, e eu aproveitei para fazer um jo go com Adam. - quantas garrafas de vinho Gallo consegues contar? - até Herb terminar a sua chamada. - Cloudy Bay existe à venda nos Estados Unidos - di sse ele mas só por encomenda especial. Se quiser comprá-lo, terá de pagar por ele. Custa dezoito dólares e noventa e nove a garra fa. - Vou pensar nisso - foi a minha resposta. Ao chegar a casa, Beth ficou surpreendida por me ve r entrar com a garrafa de Bombay Sapphire. - Nós já cá tínhamos gin - exclamou ela. - Sim, Gilbeys, mas o que eu quero é um bom martini . - Compraste ao Herb? - perguntou ela, tentando pare cer indiferente. Apeteceu-me dizer «Comprei, e descobri que ele nunc a teve Cloudy Bay em armazém», mas optei pela mentira. - Nada disso, comprei-o na loja itinerante, na Post Road. Vi o olhar de Beth dirigir-se para o saco de compra s que Adam tinha bem apertado nas mãos: Talley's Toys. Situado perto da loja de Herb. Grande imbecil, Bradford, és mesmo imbecil. Agora, ela já sabia que eu mentira. Mas não disse nada; estaria provavelmente a interrogar-se se eu sabia que ela também estava a mentir. - Acho que também me apetece um martini - concluiu Beth. Bebemos um, deitámos as crianças e depois bebemos o segundo. Perfeita novocaína mental. Tão perfeita que na verd ade, passámos outro serão bastante divertido. O salmão era de primeira qualidade. Quanto ao Cloudy Bay ... bem, era sublime. A qualid ade era tão transcendente que por algum tempo deixei de estar obcecado com o poss ível fornecedor de Beth, fazendo-a rir em vez disso. Eu gostava de a v er rir, gostava de a ver apreciar de novo a minha companhia. E esperava que isso fosse sinal de que talvez nada estivesse a acontecer - de que eu e stava a deixar que as 35 minhas paranóias da meia-idade inventassem fantasia s acerca de outro tipo, um tipo (diga-se de passagem) com um gosto ex celente para vinhos esotéricos. Cobri a mão de Beth com a minha. - Isto é agradável - comentei.

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Senti-a ficar hirta. - Sim, é agradável - retorquiu. - Devíamos repetir com maior frequência. - Embebedar-nos, queres tu dizer? - Darmo-nos bem, quero eu dizer. Beth afastou a mão. - Não estragues ... - Não estou a tentar estragar nada. Só que há já ta ntos meses que não estávamos bem um com o outro. - Mas agora estamos - retorquiu ela. - Sim, agora, esta noite, depois de uma grande quan tidade de álcool. - Tu não queres estar bem comigo. Queres discutir, não é? - Claro que não ... - Então pára, esquece! - Tu não compreendes o que estou a tentar dizer-te. - Ben, porque é que não te calas e me deixas ... - Tu não me mandas calar. - Basta; vou-me deitar. - Então vai-te deitar - escarneci eu. - Vai-te embo ra, é mesmo o teu estilo ... - Mas não consegui acabar a frase, p ois ela saiu batendo com a porta da sala de jantar. Com que então estáva mos num cessar fogo, há? NA MANHÃ seguinte, Beth não me dirigiu palavra. Com o era sábado, dedicou-se à mais americana de todas as actividades: foi às compras. Levou Adam e Josh até à Gap Kids, enquanto eu ficava em casa sorvendo Maalox para ajudar a acalmar a cascata de ácido que inundava as paredes do meu estômago. 36 Depois do almoço, quando Beth e os miúdos chegaram a casa, ela continuava sem me falar. Tentei pedir desculpa. Silêncio. Silêncio quando an unciei que, já que Adam estava a ver, radiante, O Livro da Selva pela trigésima segunda vez, ia esgueirar-me para a minha câmara-escura dur ante uma ou duas horas. Liguei o ampliador, meti um negativo no devido supo rte, acendi a luz de segurança e comecei a premir com o dedo o botão electrónico de auto focagem. Lentamente, delineou-se uma imagem: um hom em corpulento de meia-idade - com triplo queixo e fato amarrotado - saindo as portas da Bolsa de Valores de Nova Iorque, de ol hos esbugalhados e temerosos. Tirei esta fotografia há umas semanas. Saindo à soc apa do escritório certo dia ao princípio da tarde, levando a minha Ni kon na pasta, esperei

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uma ou duas horas à entrada de uma porta da Wall St reet, gastando quatro rolos de Tri-X enquanto observava a s entradas e saídas de corretores e de pessoal da Bolsa. As cento e quarenta e quatro e xposições conseguiram render três ou quatro fotografias inter essantes - isto, para mim, não era mau, pois sou terrivelmente selectivo acerca do material que me dou ao trabalho de revelar. Além disso, desde o momento em que pendurei os negativos a secar, eu sabia que aquela imagem de an siedade tumefacta da meia-idade acertara em cheio no alvo, transcendendo uma mera composição inteligente e esbarrando, acidentalmente , com o reino da incómoda verdade. É isso que a fotografia tem: as melhores fotografia s são sempre tiradas por acaso. A ocorrência inesperada é tudo em fotografia. Podemos passar várias horas à espera do momento certo. Em ú ltima instância, porém, nunca obtemos aquilo por que ansi amos, descobrindo, pelo contrário, que alguns instantâneos obtidos de impro viso têm uma espontaneidade que falta às nossas tentativas,de co mposição consumada. Regra número um da arte: nunca se consegue apanhar o momento certo; limitamo-nos a esbarrar com ele, e esperamos que o nosso dedo esteja nesse momento sobre o botão do obturador. Cortei parte do fundo a fim de tornar mais nítida a imagem daquele corretor maltratado pelo mundo que saía, cambaleant e, pelos portais da Bolsa de Valores. Depois, fazendo deslizar para den tro da moldura uma folha de oito por dez de papel de brometo Galleria, apaguei a lâmpada de ampliação, premi o botão de auto-impressão e fiq uei a olhar enquanto a imagem brilhava durante três segundos. Luz vermel ha. Um mergulho de sessenta segundos no revelador, depois fixador e , finalmente, regresso à luz fluorescente normal. Precisamente no momento em que eu retirava 37 o papel deste banho químico final e o suspendia par a secar, ouvi baterem à porta. - A baby-sitter chegou - anunciou Beth. - Vou já - retorqui. Bill e Ruth Hartley viviam a menos de dois quilómet ros de nossa casa. A casa era estilo Cape Cod, com uma grande qu antidade de

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brinquedos e diversões para crianças no relvado. Eu achava todos aqueles baloiços e escorregas um pouco macabros, po is o único filho do casal, Theo, tinha a síndroma de Down, passando por isso a maior parte do ano numa escola especial em regime de internato perto d e New Haven. Bill era corretor da Bolsa numa pequena empresa de corre tagem na Wall Street. Ruth era uma relações públicas bem-sucedída . Ganhavam bom dinheiro, tinham uma casa simpática, um barco à vel a de nove metros fundeado a pouca distância e a aparência agradável de casal muito unido, sem nenhum deles restringir o estilo de vida do out ro. Quando ocorreu a tragédia chamada Theo, conseguiram manter-se unidos. Eu invejava-os. Ao contrário de Beth e eu, eles tinham conseguido aceitar as suas limitações. Em vez de co nsiderarem a vida nos subúrbios como um compromisso terrível, aceitav am as cartas que lhes tinham sido dadas. No decorrer do processo, tinham descobe rto qualquer coisa que nos escapava a ambos - um certo grau de satisfa ção. Contudo, eu não invejava o pneu de gordura à volta da cintura de Bill nem o seu gosto para escolher camisolas. Quando nos cumprimentou à porta, usava uma de gola alta verde-escura decorada com pequenos pinguins. - Quem te deu isso? Algum esquimó? Ruth meteu a cabeça pela porta e disse: - Fui eu. Beth lançou-me um olhar exasperado, murmurou «malcr iado» entre dentes e avançou para a sala de estar, já apinhada de gente. - A coisa está complicada na frente doméstica? - pe rguntou Bill. Ele era a coisa mais parecida com um amigo que eu t inha. - Nem me fales. - Whisky duplo então? Tenho um Macallan de vinte e cinco anos com o teu nome gravado. Bill já se preparava para me conduzir para a cozinh a quando a campainha tocou, e ele voltou atrás para abrir a po rta. Dei meia volta sobre mim próprio. De pé, no limiar da porta, estava Gary Summers, o nosso vizinho e pretenso fotógrafo. Tinha o cabelo comprido, de um louro-baço, preso num rabo-de-caval o. A barba por fazer tinha ainda pior aspecto do que de costum e. Finalmente, o seu sorriso 38 arrogante parecia um ecrã de setenta milímetros. Ma s o que me irritava mais era a indumentária. Era tão citadi na. Camisa de linho preto, calças largas da mesma cor, suspensórios de cabedal negros. Vestimenta -padrão operacional para a Baixa de Manhattan, mas demasiado

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chamativa entre os habitantes suburbanos mais cláss icos de New Croydon. Mas no fundo a única razão por que Gary vivia entre nós era por nunca ter conseguido singrar na Baixa. Eu sabia que ele tinha tentado estabelecer-se como fotógrafo em Nova Iorque, mas q ue nunca chegara a lado nenhum. Então, depois da morte dos pais retira ra-se para a casa de família, em New Croydon, passando a viver da modesta herança que lhe fora deixada. Contudo, embora fosse considerado por quase toda a gente como uma espécie de falhado, continuava a falar com gran de soberba - referíndo-se a trabalhos iminentes para revistas que nunca chegavam a concretizar-se, dizendo sempre que era a penas uma questão de tempo até se mudar para LA; olhando sempre para nós, os tipos convencionais, e para as nossas mulheres, espernéficas de nariz arrebitad o, com um desdém altivo. Eu abominava-o. - Trouxe-lhe um pequeno número especial - a Bill - uma caixa de presente rectangular. Bill abre-a parecendo ficar inpressionado. - Bem, assim pode ficar - declarou ele. - Sirva-se de uma bebida. Gary dirigíu-me um aceno de cabeça untuoso e partiu em busca do bar. Quando já estava fora do alcance das nossas vo zes, Bill sussurrou: - Ele pode ser um grande pretensioso, mas em matéri a de vinhos está bem informado. Já ouviste falar nesta «pomada» ? - e passou-me a garrafa para a mão: Clotidy Bay, Sauvignon branco, 1993. - Sim - retorqui - já ouvi falar. DO RESTO da festa ficou-me apenas uma imagem confus a. De certeza que o litro de whisky Macallan de vinte e cinco ano s de Bill foi parcialmente responsável por isso. Raramente es teve longe de mim durante todo o serão. E quando eu chamei «rolo de carne» a Wendy Waggoner, já mais de meia garrafa chocalhava liVvremente na minh a corrente sanguínea. Por qualquer razão curiosa, Wendy não gostou do epí teto. O marido, Lewis, também se sentiu afrontado. Felizmente, cons egui evitar o gancho esquerdo que ele lançou na minha direcção. Infelizmente, porém, o mesmo atingiu o maxilar de Peggy Wertheimer, a mulh er mais gravemente neurótica de New Croydon. Graças a Deus, a pancada não lhe partiu nem deslocou nada, mas pôs termo à festa . Peggy desatou aos berros, histérica. Wendy gritou com Lewis por este ferver e m tão pouca água.

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39 Lewis gritou comigo por tê-lo provocado intencional mente. Beth disparou para casa sem mim. E Gary Summers voltou-s e para mim com ar presumido e disse: - Lembre-me de o convidar da próxima vez que dois a migos meus, um sérvio e outro croata, me vierem visitar. Gary. Impossível. Inacreditável. Beth detestava-o. Odiava a arrogância e a vaidade dele. Comprei o salmão da No va Escócia e uma garrafa daquelefabuloso Sauvignon branco da Nova Zelândia. Sauvignon branco Cloudy Bay, 1993, para ser mais preciso. Ape nas uma coincidência, certo? Então, porque teria Beth mentido acerca do l ocal onde comprara a garrafa? Embora eu tivesse passado a maior parte da festa a emborcar copo atrás de copo de whisky, conseguira manter Beth sob vigilância. Durante as duas primeiras horas, ela ignorara Gary de forma estudada, e eu começara a pensar: «Deixa-te de paranóias.» De pois, olhei na direcção dela quando estava nas escadas a conversar com Chuck Bai ley, o tipo da publicidade que tem um Porsche. Ao esgueirar-se junto deles, a caminho da casa de banho do segundo piso, Gary conseguiu pousa r a mão nos dedos de Beth. Um rubor tingiu as maçãs do rosto dela, um sorriso sonhador perpassou-lhe pelos lábios e eu senti-me como se tr ês mísseis Pershing tivessem acabado de me atingir no estômago. Foi pou co depois que me senti inspirado a chamar «rolo de carne» a Wendy Wa ggoner. «A culpa foi de Madame Beth Bovary e daquele canalh a», apetecera-me gritar. Mas fui restringido por um mín imo de contenção jurídica, e evitei o tipo de cena triste, tipo jaccuse, que ter ia posto os habitantes de New Croydon a dar à língua durante meses. Em vez di sso, apertei a mão a Gary quando ma estendeu e acenei educadamente a c abeça quando ele disse: - Apareça quando quiser para conversarmos sobre máq uinas fotográficas. - Conversar sobre afrontas. Mal Gary se despediu, cambaleei para a porta, decid ido a ir para casa e a confrontar Beth. - Ben. - Era Ruth, a interceptar-me o caminho. - Ruthie, Ruthie. - As minhas palavras saíam entara meladas. Eu ... Eu estou ... - Bêbado - disse ela baixinho. não estás em condiçõ es de ir para casa. -Mas ... mas ... Eu tenho de Tentei encostar-me à parede, procurando apoio, e escorregu ei para o chão.

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A próxima coisa de que tive consciência foi que era manhã, e o interior da minha cabeça era a minha própria Nagasa ki particular. Bateram à 40 porta, e Bill avançou em passo de valsa com um copo com sumo de laranja. - Room service - exclamou ele, exuberante. - Que horas são? - resmunguei. - Meio-dia. - Meio-dia! Tenho de telefonar a Beth. - Ruth já telefonou, está tudo bem. Beth vai levar os miúdos para Darien, para casa da irmã dela, Lucy. Que tal irmos passar uma tarde na baía? Tenho de ligar a Beth para casa da Lucy. Não te incomodes. A coisa está assim tão má? - O tom alarmado da minh a voz era tangível. - Vocês vão conseguir ultrapassá-la, mas não pelo t elefone e também não esta tarde. Por isso, toca a ir para o d uche. Quero zarpar daqui a uma hora. Estávamos a caminho do barco dali a quarenta e cinc o minutos, num dia de Outono extraordinário no Long Island Sotind, com um vento constante e revigorante. O barco de BilI, cha mado Blue Chip, era uma verdadeira beleza. Casco de fibra de vidro bran co, convés de madeira, uma cabina com dois beliches e uma casa de banho pequena. A cozinha completa incluía um frigorífico pequeno e um fogãoz inho a gás ligado por meio de tubos de borracha a uma garrafa de campismo. Tam bém tinha motor, caso se quisesse navegar sem vela, e guardados num pequeno armário, perto da casa de banho, havia dois jerry cans cheio s de gasóleo. Bill não queria correr o risco de ficar sem combustível. O B lue Chip dispunha ainda de quase todos os dispositivos de navegação m odernos e convencionais imagináveis. - Que tal irmos para leste até à ilha ShefField? - perguntou Bill. - É uma viagem fácil de duas horas. - E, além disso, também fica ao largo da costa de D arien. - Se queres ir arranjar sarilhos com a tua mulher, podes nadar até à praia. - Está bem, calo-me já. - Já estás a aprender qualquer coisa. Mal a vela foi içada, Bill soltou a amarração. Em s eguida, caçou a vela grande, que, com um silvo agradável apanhou o vento e fez rodar o barco bruscamente para bombordo. Bill girou a roda do leme e o

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Blue Chip assentou num rumo certo. Rapidamente, saímos d o porto de New Croydon. - Vou virar de bordo! - avisou Bill. 41 Eu baixei-me quando a retranca passou para estibord o, e, com a vela afinada, nova refrega de vento empurrou-nos para le ste. - Vem para o leme - gritou Bill para se sobrepor ao barulho do vento. Mal agarrei a roda, o vento aumentou cinco nós, imp elindo-nos para leste, em direcção ao largo. - Para onde tencionas ir? - gritou Bill - Para a Europa - retorqui-lhe também aos gritos. Fitei o sol lustroso de Outono de olhos semicerrado s, com o vento a aumentar de intensidade nas minhas costas. Depois, durante uns escassos minutos gloriosos, a minha cabeça esvaziou-se de pe nsamentos. Eu estava em regata, deixando tudo para trás, e nad a nem ninguém conseguiria apanhar-me. Durante quase uma hora, Bill e eu não trocámos uma palavra. Eu sabia que ele estava a pensar o mesmo que eu: «Porq uê parar? Porque não atravessar o Atlântico de lés a lés? Porque não fug ir disto tudo?» Todos nós ansiamos por novas latitudes na vida, enquanto, simultaneamente, nos vamos enterrando cada vez mais fundo na armadil ha doméstica. Podemos sonhar com liberdade, mas acumulamos o mais que podemos para nos mantermos sobrecarregados e arreigados a u m único lugar. E somos nós os únicos culpados, porque, embora todos tenhamos devaneios sobre o tema da fuga, continuamos a achar a noção de responsabilidade irresistível. A carreira, a causa, os nossos dependentes, a dívida - tudo isso nos prende à terra, fornecendo-nos uma se gurança necessária, uma razão para nos levantarmos de manhã. Limita-nos as possibilidades de escolha e, portanto, dá-nos certezas. E apesar d e quase todos os homens que eu conheço praguejarem contra o beco sem saída do fardo doméstico, todos o abraçamos desesperadamente . - Apetecia-te seguir em frente, não é? - perguntou Bill quando ancorámos ao largo da ilha de Sheffield. - Se me apetecia? Claro. Se seria capaz? encolhi os ombros. - Não! - Porque não? - Podemos sempre tentar fugir, mas nunca podemos es conder-nos - retorqui. - Mas tu queres mesmo fugir?

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- A todo o instante. Tu não? - Nunca ninguém está completamente satisfeito com a sua situação, Ben. Mas alguns de nós aceitam um pouco melhor as r espectivas circunstâncias. Abri uma cerveja e volvi o olhar para a costa arbor izada do Connecticut. 42 - Tens alguma ideia de até que ponto os T & H conse guem ser estupidificantes? - Tu podes não estar a fazer exactamente aquilo que desejarias fazer, Ben. Mas vou dizer-te uma coisa, rapaz. A vi da está aqui. E se tu continuares a odiar o sítio onde estás, vais acabar por perder tudo. E acredita, depois de o perderes, quererás desesperad amente reavê-lo. É assim que funciona. Tomei outro longo gole de cerveja e depois pergunte i: - Achas que Beth já decidiu que chegámos a um ponto sem retorno? - Com dois miúdos e sem carreira pessoal? Acredita- me: ela não é assim tão autodestruidora. «Então, que anda ela a fazer com Gary?», apeteceu-m e gritar. Mas não queria parecer paranóico e, além disso, temia a verdade. Em vez de gritar, disse simplesmente: - Vou ver se consigo conversar com ela. - Entretanto, tenta também conversar contigo própri o. Ergui os olhos para o céu e gracejei: - Obrigado, pai. - Está bem, fim da homilia - concluiu Bill. - Leva- nos para casa. Chegámos a New Croydon ao cair da noite. Eu levei o barco de regresso a bom porto sem recorrer às modernas tecno logias de Bill. - Impressionante! - exclamou ele quando entrávamos na doca. - A velha formação de Bowdoin? Ele sabia que eu tinha passado três anos na equipa de vela da minha faculdade. - Nunca mais nos larga. Bill levou-me a casa. Estava escuro. Olhei para o r elógio: 7 da tarde. Não havia razões para alarme. Por enquanto. - Aguenta firme - encorajou-me ele, estendendo-me a mão. Era muito estranho entrar numa casa vazia. Eu teria apreciado aquela interrupção do ruído doméstico se não tivesse repar ado na luz a piscar no nosso gravador de chamadas. Carreguei no botão. - Ben, sou eu. Decidi ficar aqui com as crianças du rante os próximos dias. Agradecia que não tentasses contacta r-me. Vou consultar um advogado. Acho que deverias fazer o mesmo. - Clique . Sentei-me lentamente no sofá e fechei os olhos. Des ta vez, ela estava

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mesmo a falar a sério. Peguei no telefone e marquei o número da minha cunhada. Ela atendeu: - Ben, a Beth não quer ... 43 - Preciso de falar com ela. Clique. Carreguei no botão de rechamada. Desta vez, foi Phil, o meu lacónico cunhado contabilista, quem atendeu: - Não é a altura mais apropriada, Ben. - Phil, tu não compreendes. ... - Compreendo, sim. - Estou a ponto de perder a minha família, Phil. - Sim, foi o que Beth disse. Quando ela voltar, eu digo-lhe que ... - A Beth saiu? - Sim, saiu de casa há cerca de uma hora. Disse que ia visitar a Wendy qualquer coisa ... Pousei o auscultador, saí porta fora, saltei para d entro do meu Miata e arranquei em direcção à Constitution Crescent. Eu sabia o que ia fazer: lançar-me pelo relvado da frente da casa de Gary a toda a velocidade, rebentar a porta de entrada com o meu M iata e entrar com ele na sala de estar. Mas uma vozinha sussurrou-me dentro da cabeça: «Prudência.» Abrandei, depois percorri as ruas secundárias até d eparar com a nossa Volvo estacionada na rua paralela à Constitution Cr escent. Boa jogada, Beth. Deixar a Volvo ao lado da casa de Gary poderi a levantar suspeitas em mais do que uma pessoa. Fiz marcha atrás até à Constitution Crescent. Desli gando os faróis, enfiei o Miata no carreiro de acesso à minha casa e desliguei o motor. Depois, dirigindo-me ao pátio das traseiras, abri a porta que dava para a cave. Uma vez lá dentro, peguei na minha nova Canon , num rolo de Tri -X, numa teleobjectiva e num tripé e depois precipi tei-me escada acima até ao quarto de Adam, que dava para a Constitution Crescent. As cortinas estavam abertas, as luzes, apagadas. Mo ntei o tripé, onde coloquei a Canon, carreguei a película e acoplei a teleobjecti va. Puxando uma cadeira até à janela, sentei-me, espreitei pelo visor, apontando à porta de Gary, do outro lado da rua, e fiquei à espera. Passou uma hora. Depois, pouco passava das 8.30, a porta abriu-se. Gary espreitou cá para fora, olhou para um lado e p ara o outro da rua e

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fez um aceno de cabeça para trás de si. Beth aparec eu no limiar da porta. Gary puxou-a para si e beijou-a de forma apaixonada . Estremeci, afastando o olho do visor, enquanto o me u dedo premia o disparador. O motor zumbiu ao longo das trinta e se is exposições. Quando encostei de novo o rosto à máquina, o beijo estava a chegar ao fim. Parecendo nervosa, Beth olhou na direcção da nossa casa. Não vendo nada a não ser as luzes por detrás dos cortinados corridos da nossa sala de estar, voltou-se de novo para Gary. Um último beijo, apaixonado, na boc a. Depois, de cabeça baixa, precipitou-se para a escuridão da noite. 44 Eu já estava de pé. Corri escada abaixo, pronto a precipitar-me para o outro lado da rua e a apanhá-la antes de ela chegar à Volvo. Em vez disso, deixei-me cair no sofá da sala. Aquele beijo. Tão c aloroso, tão sério. Que via Beth naquele canalha? Contudo, eu sabia que, se agora me precipitasse para ela e armasse uma cena, ela utili zaria o facto de eu andar a espiá-la como mais uma prova de que o no sso casamento era uma farsa. Nós atravessaríamos a fronteira do sem retorno - e nunca voltaríamos a encontrar o nosso caminho. Comecei a andar de um lado para o outro na sala. O meu cérebro era invadido por imagens: um juiz, no processo de divór cio, concedia a Beth a guarda plena dos dois rapazes, a casa e três quar tos dos meus rendimentos. Adam e Josh iam adquirindo o mesm o sorriso afectado de superioridade de Gary. Gary. De súbito, dei comigo em piloto automático, a travessando a rua em direcção à porta de casa dele. Eu não sabia o qu e ia dizer-lhe, mas lá estava eu, no patamar, a tocar à campainha. Beth nã o teria saído há mais de cinco minutos, portanto, ao abrir a porta, Gary empalideceu com o choque. - Ben ... Só consegui articular uma palavra: - Máquinas ... - O quê? - Máquinas fotográficas. Você disse para eu aparece r se quisesse conversar sobre máquinas fotográficas. Percebi que ele me perscrutava, tentando perceber s e a minha chegada à sua porta seria ou não apenas pura coinci dência. - Sim, creio que o disse. Mas ... - Hesitou, e eu q uase

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conseguia ouvi-lo interrogar-se: «Serei capaz de me desembrul har desta?» O sorriso afectado que lhe perpassou pelo rosto den unciou a sua resposta. Fez um grande gesto teatral com a mão direita. - Entrez , cavalheiro. Avancei. Embora a casa de Gary fosse do estilo Cape Cod, transpor o limiar da porta fazia-nos sair da Nova Inglaterra e entrar num ambiente tipo imitação barata de intelectual a viver num bai rro antigo. As paredes tinham sido «flageladas» com uma tonalidade cinzent o-azulada. As alcatifas haviam sido arrancadas, e as tábuas do soalho, pintadas de preto. Quatro focos luminosos minúsculos estavam suspensos do tecto. A única peça de mobiliário era um comprido sofá de couro pr eto. - Tem que se lhe diga - exclamei. - Quem foi o seu decorador, Robert MappIethorpe? - Muito espirituoso. Na realidade, fui eu próprio o autor de tudo isto. Bebe alguma coisa? 45 Fez-me sinal para que o seguisse até à cozinha. Tal como a sala, esta parecia ainda por acabar. Durante um momento, tive pena de Gary pela sua tentativa desesperada de criar uma réplica do e stilo intelectual nos subúrbios. Mas a minha empatia desvaneceu-se quando vi dois copos de vinho em cima de um balcão, um deles sujo do bâton cor-de-rosa de Beth. Acenando com a cabeça na direcção dos copos, conseg ui sussurrar a custo: - Teve visitas? Ele esforçou-se com dificuldade por disfarçar um so rriso. - Sim, podemos chamar-lhe assim. - Abriu o frigoríf ico e retirou uma garrafa de vinho branco Sauvignon Cloudy Bay. - Já alguma vez provou esta «pomada»? - inquiriu. - Beth levou uma vez uma garrafa para casa. Outro sorrisinho enquanto desrrolhava a garrafa. - A sua mulher tem bom gosto. - Pegou na garrafa e em dois copos. - A câmara-escura é por aqui. Conduziu-me até à cave por um estreito lanço de esc adas. Era um espaço escuro atulhado de coisas. Uma parede est ava ocupada por electrodomésticos - uma máquina de lavar, outra de secar roupa e uma grande arca congeladora. A outra ostentava o equipamento d e impressão: um velho ampliador KÔdak, tabuleiros amo lgados para os químicos e cordas de roupa das quais pendiam várias dezenas de fotografi as. - Comparado com o seu arsenal, isto é terceiro-mund ista -

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comentou Gary, acendendo a luz fluorescente do tect o. - Não me recordo de alguma vez lhe ter mostrado a m inha câmara -escura, Gary. Ele virou-se, parecendo muito ocupado a retirar alg umas fotografias da corda da roupa. - Simples conjectura, Sr. Doutor. - Conjectura sobre quê? - Que você tem uma câmara-escura fantástica, com eq uipamento também fantástico. - Mas você nunca a viu. Ou já viu? - Não. Nunca a vi. Mentiroso. Beth deve tê-lo levado em visita guiada à minha cave. - Então, porque é que você presume, automaticamente ... - Porque um tipo fantástico da Wall Street como voc ê pode dar-se ao luxo de comprar o melhor, e por isso é provável que tenha do melhor. - Deixou cair uma pilha de fotografias nas minhas m ãos. - Tome lá. Diga-me o que pensa deste material. 46 Dei uma vista de olhos à meia dúzia de fotografias, todas elas retratos soturnos e monocromáticos de diversos indivíduos do s estratos sociais mais baixos. - Impressionante - comentei. - Arbus encontra-se co m Avedon. - Está a dizer que são copiados? - Copiados, não, estudados. Demasiado autoconscient es e sofisticados. Não revelam um espectador suficientem ente passivo. - O fotógrafo nunca pode ser um espectador passivo. - Quem diz isso? - perguntei. - Cartier-Bresson. - É seu amigo? - Estive com ele uma ou duas vezes. - E suponho que ele lhe terá dito pessoalmente «Gar ry, o fotógrafo nunca deve ser um espectador passivo». - Ele escreveu isso. - Estendendo o braço para a pr ateleira situada atrás de si, Gary pegou num livro de Cartier-Bresso n, folheou algumas páginas e depois leu em voz alta: - «O fotógrafo nã o pode ser um espectador passivo; ele só pode ser realmente lú cido se for apanhado pelo acontecimento.» - E essa, hemm - exclamei. - Ele autografou-lhe ess e livro? Gary ignorou o sarcasmo e continuou a ler. Somos confrontados com dois momentos de selecção, e , assim, de possível desapontamento: o primeiro, e mais grave, é quando a realidade está à nossa frente, fitando-nos através da objecti va; o segundo é quando todas as películas foram reveladas e impressas e te mos de rejeitar o menos conseguido. É então, já demasiado tarde, que vemos

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exactamente sob que aspecto falhámos. Gary ergueu o olhar para mim, com o rosto corado de azedume. - Isto diz-lhe alguma coisa, Sr. Doutor? - inquiriu Gary. - Não é que você conheça de algum modo o fracasso, sobretud o no que respeita a fotografia. E o seu ano desperdiçado em Paris. E o seu trabalho esforçado atrás do balcão na Willoughby's, e ... Ouvi o meu próprio sussurro: - Como é possível ... O sorriso afectado assumiu um ar épico, triunfante: - Adivinhe! Fitei o pavimento forrado de linóleo. Finalmente, m urmurei entre-dentes: - Há quanto tempo? 47 Quer dizer, a Beth e eu? Há umas duas semanas. E é ... Ele deu uma gargalhada ruidosa. - Amor? É isso que ela lhe chama. Outro murro no estômago. - E você? - Eu? - retorquiu ele com vivacidade. - Bem, para m im está a ser divertido, está a ser muito divertido. - Cale-se. - Não, não, não. Cale-se você e ouça-me bem. Ela am a-me a mim, mas a si odeia-o. - Ela não ... - Claro que odeia. Odeia-o há muito tempo. Odeia o seu trabalho. Odeia a vida dela nesta terra. Mas o que ela mais o deia é a sua autocompaixão. A forma como você se mostra tão apanhado numa armadilha, ao mesmo tempo que recusa sempre aceitar que foi você que não conseguiu singrar como fotógrafo. ... - E você singrou, seu bandalho? - Pelo menos, continuo a tentar. Você é apenas uma nódoa de um funcionário que nem sequer consegue ... Foi nessa altura que o ataquei. E atingi ... com a garrafa de Cloudy Bay. Peguei-lhe pelo gargalo, girei-a com toda a fo rça e acertei-lhe na têmpora. A garrafa partiu-se ao meio, e eu fiquei c om o gargalo estilhaçado na mão. Gary desequilibrou-se p ara o lado e, ao cair, eu ataquei-o de novo, e, de súbito, o estilhaço de vidro estava espetado na nuca dele. Passou-se tudo em menos de cinco segundos - e eu fi quei ensopado em sangue. Quando consegui limpar o sangue do rosto, vi Gary c ambaleando à volta da câmara-escura, com a garrafa espetada na n uca. Voltou-se para

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mim com o rosto transformado numa máscara lívida de estupefacção. Os seus lábios formaram duas palavras: - O que ... - Depois, ele caiu para a frente, com a cara dentro de um tabuleiro de líquido de revelação. O tabuleiro v irou-se e ele bateu com a cabeça no chão. Silêncio. As minhas pernas cederam. Caí bruscamente sobre o linóleo. Senti um eco curioso reverberar entre os m eus ouvidos. O tempo parecia ter-se dilatado, distendido. Eu senti a a boca seca. Tão seca que passei a língua pelos lábios. Senti o gost o daquele líquido doce e viscoso escorrer pelo rosto abaixo. Era um sabor que me dizia que a vida, como eu a conhecia, não voltaria a ser a mesma. Perscrutei Gary com todo o cuidado. O sangue ainda lhe corria da ferida, 48 misturado com o líquido de revelação e formando um charco por baixo dos seus braços abertos. Não dava sinal de vi da. Poucos segundos antes, eu era um americano modelo: um trabalhador economicamente produtivo, pai de família, com uma hipoteca, detentor de cartão de crédito dourado, no escalão máximo de rendimentos. Num momento, um cidadão perfeito, e no momento segu inte, ... Um assassino? Eu? A minha camisola Shetland cor de camelo estava ench arcada, tingida de carmesim. O mesmo se passava com as minhas calça s de caqui e os meus docksiders. E embora eu me encontrasse em prof undíssimo estado de choque - e embora ainda não conseguisse compreen der com exactidão o que se tinha passado e fitasse com incr edulidade o corpo de Gary, cada vez mais hirto -, uma estranha lucidez começou a florescer por entre a sensação de trauma e medo que me inundava. E nesses momentos de nitidez absoluta, um cenário de horrores futuros começou a desenrolar-se na minha cabeça. Iriam buscar-me ao escritório. Seriam dois: inspect ores de homicídios da Esquadra da Polícia de Stainford. «Be njamin Thomas Bradford», diria o chui número um, enquanto o número dois me a lgemava as mãos atrás das costas, «você está preso pelo homicídio d e Gary Summers ... » Seria conduzido para fora do escritório. Estelle fi caria lavada em lágrimas, Jack, à beira de uma apoplexia, ainda conseguiria gritar «Ben, não lhes digas nada enquanto Harris Fislier não che gar lá»;

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Harris era na Wall Street o principal advogado de defesa de crime s não praticados por marginais. Chegado a Stanford, tirar-me-iam as impressões digi tais e procederiam ao meu registo. Por fim, Harris chegari a. «A situação está má, Sr. Doutor», diria ele mal os dois inspectores saíssem da sala. «Até que ponto?», articularia eu. «Ao que parece, e ncontraram impressões digitais suas por toda a parte em casa de Mr. Summers. Ningu ém sabe do seu paradeiro no momento do homicídio, a sua mulher declarou que ela e Mr. Summers andavam, envolvidos um com o outro e há a t riste prova daquelas fotografias que o senhor tirou a ambos enq uanto se beijavam. É pena que se tenha esquecido da máquina fotográfica montada junto à janela. Foi a primeira coisa que a Polícia encontrou quando fizeram a busca em sua casa.» Deixando pender a cab eça, eu perguntaria: «Há possibilidades de negociação?» «Homicídio de primei ro grau ... diria ele «Dezoito a vinte e cinco anos.» Vinte e cinco anos? Não posso ser condenado a vinte e cinco anos. Pensa. Pensa numa maneira de te livrares disto. És jurista, afinal de Contas. 49 DAR com a casa de banho da cave foi a minha primeir a jogada de sorte. Estava escondida ao lado do congel ador - um cubículo sujo, com chuveiro, atulhado de latas de tinta semi vazias, frascos de aguarrás e outros restos de produtos de decoração d oméstica. Não me importei com a barafunda. Um chuveiro na cave queri a dizer que eu não teria de subir as escadas com as minhas roupas empa padas de sangue a deixar manchas ricas em ADN pela casa toda. Despi-m e e meti a roupa dentro de um saco de plástico preto que encontrei n o meio dos produtos de limpeza. Em seguida, enfiei-me debaixo do chuvei ro, onde permaneci durante mais de dez minutos. Tinha muito que lavar. A única toalha existente na casa de banho parecia t er sido roubada num motel qualquer. Depois de a enrolar como uma to ga improvisada, subi as escadas em demanda do quarto de Gary, que e ncontrei nas traseiras do segundo piso. Descobri o que procu rava junto à cama. Duas peças de cor preta, parte de cima e de baixo. Gary tinha mais ou menos a minha altura e a mesma constituição esgalgada, o que significava que a sua

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roupa praticamente me servia. O mesmo acontecia com o par de ténis Nike pretos. Olhei para o relógio: 21.30. Tinham passado cerca d e quarenta minutos desde que ... Sentei-me na cama, estonteado, com a minha adrenali na esgotada. Ter-me-ia alguém visto tocar à campainha de Gary e entrar em casa dele? Se assim fosse, estava frito. Calma, mui ta calma. Não armes à Dostoievsky. Este não é o momento mais apro priado para sentir culpa, remorso, angústia existencial - a menos que queiras realmente ser apanhado. Esquece o crime. Pensa nele como ... um simples problema. Os problemas podem ser resolvidos. Dá um passo de cada vez. Álibi? Telefonaste duas vezes para Darien por volta das 7 da tarde. E depois? Tens de prestar contas por duas horas. Pode s dizer que estiveste a ver televisão. Muito bem, Dr. Bradford, lembra-se do que estava Murphy Brown afazer nessa noite?... Ah, eu estava a ver a CNN... Qual 50 foi a notícia principal? Esquece a televisão. També m podia dizer que tinha estado a ler, mas como provar que e stivera sempre em casa? A conta do telefone revelará as tais chamadas para casa dos meus cunhados. Mas depois disso ... ? Tenho de ligar já para Beth e ob ter assim um registo que mostre que eu estava em casa por volta da hora do h omicídio. Não me ilibaria completamente, mas podia dar azo a alguma dúvida razoável. Mas antes de me precipitar para casa precisava de e liminar todas as provas em casa de Gary. Com a toalha do motel na mã o, desci silenciosamente as escadas até à cozinha. Estava es curo, por isso corri as persianas e acendi as luzes. Por baixo do lava-loiça encontre i um par de luvas de borracha, um trapo e uma lata de aerossol para limp ar o pó. Calçando as luvas, pulverizei todas as superfícies que encontre i, para o caso de ter tocado nelas inadvertidamente. Depois, regressei à cave. Enquanto descia as escadas, vi o rosto de Gary. Met ade do rosto, a outra metade estava encostada ao linóleo. Um dos ol hos estava fixo em mim com uma expressão vítrea de reprovação. Reparei que o fluxo de sangue tinha cessado. Começa pelo mais importante. A garrafa. Aproximei-me do corpo, preparando-me psicologicamen te para a tarefa que me esperava. Acocorando-me, agarrei no gargalo e puxei com força. A garrafa soltou-se da nuca de Gary com um gorgolej ar forte e

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repugnante. Pegando-lhe nos dois braços, arrastei-o para fora d o pequeno charco carmesim que rodeava o corpo. Sangue e líquido de r evelação deixaram um rasto no linóleo enquanto eu puxava. Depois, vol tei-o de barriga para cima. Apalpando-lhe os bolsos, encontrei as chaves e a carteira. Meti-as no bolso. Quando me levantei, as minhas costas emba teram na arca frigorífica. Era um modelo grande, já antigo. Abri-o; provisões de solteirão: duas pizas, quatro caixas de gelados e nada mais. Perfeito. A minha segunda jogada de sorte. Meti as provisões no saco de plástico preto. Depois, sentei Gary e encostei-o à arca. Ao dobrar- me, inspirei bem fundo e puxei-o de encontro a mim, enf iando os meus braços por baixo dos dele. Depois de o pôr de pé, soltei-o, empurrando-o para trás. O seu crânio aterrou no centro da arca. Utilizando as pernas dele como leme, manobrei o corpo, conduzindo-lhe a cabeça par a um dos cantos do compartimento. Em seguida, dobrei-lhe as pernas sob re o corpo e carreguei com força para fechar a arca. Podia deixá-lo ali até de cidir o que havia de fazer com ele. Já eram quase 10 horas. Peguei numa esfregona da ca sa de banho, deitei os restos de um frasco de detergente num bal de e pus-me a esfregar o chão. Passados vinte minutos, tanto o sangue como o líquido de revelação tinham desaparecido. Dobrei a esfregona ao meio e atirei-a para dentro do saco de plástico. Seguiu-se o balde, junt amente com o tabuleiro 51 das fotografias e a garrafa estilhaçada de Cloudy B ay. Trabalhei rapidamente, mas com todo o cuidado. Não podia correr riscos. Duas lavagens ao lava-loiça e ao chuveiro da cave. Limpe za completa de todas as superfícies da cave e de tudo em que tocar a no quarto de Gary. Finalmente, chegou a altura de me ir embora. Uma espreitadela rápida, entreabrindo a porta. A Co nstitution Crescent estava envolta em silêncio. Voltei a meter a cabeça dentro de casa, icei o saco e esgueirei-me para a rua. O meu primei ro instinto foi correr, mas o advogado que havia em mim aconselhou-me a man ter a calma. Não corras. Caminha. Nem penses em olhar para trás. Atravessei rapidamente a rua, esperando a todo o mo mento ouvir «Ei, tu aí! Pára!», o que seria o princípio do fim. Mas apenas ouvi o barulho dos meus próprios passos a passarem da rua alcatroada para o acesso de gravilha ao lado de minha casa enq uanto me

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dirigia para a porta das traseiras. Procurando no bolso da camisola as m inhas chaves, encontrei as de Gary. Faltavam-me as minhas . Caí imediatamente de joelhos e vasculhei o saco de plástico até encontrar as minha s calças de caqui. Deitei a mão aos bolsos. Nada de chaves. Todas as r oupas ensanguentadas começaram a cair. Nada de chaves. Fo i então que vislumbrei um buraco no fundo do saco. Voltei a encher rapidamente o saco e deixei-o junto à porta da minha cave. Depois, voltei a fazer o mesmo percurso de ol hos no chão. Não tive de andar muito. Só até à beira da rua, onde as chav es estavam caídas a uns centímetros da borda do passeio. Ao estender o braço para as apanhar, senti um alívio enorme, até ouvir uma v oz: - Há algum problema? Levantei os olhos. Era Chuck Bailey, o homem da pub licidade, equipado para fazerjogging, com uma lanterna a pilh as presa a cada braço. - Chuck - disse eu, tentando aparentar calma. - Dei xei cair as chaves. Continuou a marcar passo sem sair do lugar. - Está com vontade de morrer? Eu estava enervadíssimo. - Não compreen ... - Essa roupa, Ben, esses sapatos ... tudo preto. Fi ca praticamente invisível. Se vem um carro de repente, está frito. Está disfarçado de Zorro ou quê? Consegui soltar uma gargalhada. - Exactamente como Gary - continuou ele. - Faz semp rejogging à noite vestido assim. Parece o homem invisível. - Olhou para os meus pés. - Até usa os mesmos Nike. 52 - Que tal vão os negócios? - inquiri, tentando muda r de assunto. - É um longo ataque de pânico. Acabei de perder o c ontrato com a Frosty Whip. - Olhou para o relógio. - Tenho de ir. Os Knicks jogam contra os Clippers, em LA. Compre umas luzes se vai continuar a fazer jogging no escuro. Você é pai de família. E eu que o diga. Gargalhada solidária da parte de Chuck Bailey. - Tem-me constado, sim. Vi-o atravessar a rua no mesmo passo saltitante. Ti nha-me saído bem, mais do que bem. E, Mr Bailey, o senhor viu o Dr Br adford de ténis pretos, da marca Nike, do mesmo tipo que Mr S ummers usava habitualmente? - deixe-me esclarecer este ponto - a ntes dessa noite nunca tinha visto o Dr Bradford de ténis Nike pretos? Nota mental: amanhã, vai comprar um par de ténis Ni ke pretos, e

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agora vai tirar aquela máquina fotográfica da janel a. Dirigi-me à porta das traseiras, rodei a chave na f echadura, peguei no saco de plástico e esgueirei-me para dentro de casa . Deixando o saco perto do meu equipamento de ginástica, corri escada acima, tirei rapidamente a máquina e o tripé do quarto e r egressei à cave. Abrindo a parte de trás da Canon, retirei o rolo, expondo à luz as trinta e seis fotografias. tendo destruído aquelas provas e sepultando-as para sempre no saco, dirigi-me ao telefone e liguei para Darien. Foi Phi l quem atendeu. - Chama-a ao telefone - ordenei. Ele desligou. Quando voltei a ligar, ouvi o gravado r. Deixei então uma mensagem: - Beth, sou eu. Estou preocupado, muito preocupado. Acho que devíamos tentar conversar, ver se podemos ... De repente, ouvi a voz dela na linha: - Não há nada sobre que conversar - replicou com ca lma. - Decidi ficar aqui com os miúdos durante esta semana. Também telefonei a Fiona e informei-a de que tem uma semana de folga. gostava que arranjasses algum sítio para onde ires quando regre ssarmos no próximo domingo. - A casa não é só tua ... - Há duas formas de resolvermos a questão, Ben, de comum acordo ou litigiosa. O telefone tremeu-me na mão. - Os filhos também são meus - comentei. - E eu não vou privar-te deles. Se quiseres vir cá alguma noite desta semana para os ver, seria um gesto simpático. Mas n ão voltes a ligar para cá hoje. Nós não te atendemos - e desligou. 53 Voltei a pousar o auscultador no descanso e entrela cei os dedos atrás da cabeça. Fiquei naquela posição encolhida durante o que me pareceu ser uma hora, recordando uma e outra vez o momento em que estendera a mão para a garrafa. Vamos, acaba com isso. Pega na mangueira do jardim, numa garrafa de whisky e num frasco de calmantes. Depois, vai at é a algum local retirado, introduz a mangueira no tubo de esc ape, fá-la passar através da janela, liga a ignição e rende-te ao ine vitável. Morres sem sentir nada. Concorda que nunca serias capaz de viver com este s entimento de culpa. Cada hora do dia seria ensombrada pelo me do: Hoje é que vão descobrir ... Hoje é que vêm buscar-me ... Hoje será a última vez que vês os teus filhos. De qualquer modo, vais acabar por perd er tudo. Põe já termo a essa agonia.

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Levantei-me, e as minhas pernas cederam. Caí de nov o no sofá, chorando descontroladamente. Chorava pelos meus fil hos. E por mim. Não só era culpado de homicídio, mas também de ódio con tra mim próprio - um desprezo que me fizera desprezar a vida que eu c onstruíra para mim. E agora, na hora ou no par de horas de existência q ue me restavam, seria testemunha da mais cruel das ironias - o facto de q uerer conservar, de forma tão desesperada, aquilo de que em tempos dese jara tanto fugir. Se eu acreditasse num ser supremo - num Faz-Tudo celes tial -, teria caído de joelhos e implorado: «Devolve-me tud o aquilo que antes me parecia tão sufocante. Devolve-me o trabalho de escravo, as brigas conjugais, as noites sem sono. Devolve-me os meus filhos. Juro que nunca mais penso que a vida está noutro lugar. Só te peço uma nova oportunidade.» Levantei-me novamente e cambaleei pela casa fora. P eguei numa garrafa de whisky antes de me precipitar escada aci ma. Na casa de banho, engoli doze comprimidos de valium de uma só vez com o máximo de whisky que consegui emborcar. Mas a sobredosagem de álcool deu-me a volta ao estômago, e vomitei de súbito, convulsivam ente. Lembro-me de pouca coisa, além de me ter arrastado completamente vestido para o duche e de abrir a água. Meti a cara debaixo do chuveiro, eliminando assim o sabor venenoso de um suicídio fr ustrado. Despi a roupa, deixando-a no chuveiro. Sem sequer m e limpar com uma toalha, deixei-me cair da casa de banho para de ntro da cama. Depois, acordei, na segunda-feira de manhã, com o t elefone a tocar. Atendi com um grunhido. - Dr. Bradford? - Estelle. Os meus olhos tentaram t ocar o relógio da mesinha-de-cabeceira: 10.47. - Está lá, Dr. Brad ford? - A voz dela transbordava de preocupação. - Doente, estou doente. 54 - Nota-se, Dr. Bradford. Parece estar a morrer. - Uma simples intoxicação alimentar. Uma sopa enlat ada estragada. - Pode ser gastrenterite ou hepatite. Já telefonou ao médico? - O pior já passou, Estelle. Só preciso de passar u m dia na cama. Anule todas as minhas marcações. Diga ao Jack . Eu telefono mais tarde. Agora, vou dormir mais um pouco. Pousei o auscultador. Passei uma hora a olhar para o tecto, amaldiçoando o meu aparelho digestivo por me ter tr aído. Se tivesse

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um estômago simpático e calmo, estaria morto e feli z àquela hora. Desatei a chorar e dei um murro na mesinha-de-cabec eira, ligando inadvertidamente o comando da televisão, e o aparelho tomou vida. O ecrã mostrava um televangelista com um fato de po liéster. - E depois - vociferava o reverendo -, Jesus disse a Nicodemos: «Ninguém pode ver o reino de Deus se não nascer de novo.» Quando se nasce de novo, é como se alguém nos desse uma segun da oportunidade. Aprende-se a andar de novo, a falar de novo; é-se u ma pessoa nova. É como se tivéssemos matado a nossa vida antiga e reg ressássemos com uma segunda oportunidade. Renascemos como homens no vos ... Sentei-me de um salto. As minhas lágrimas desvanece ram-se e uma onda de calma desceu sobre mim. Depois, dei comigo a pensar: «Sim, tenho de morrer. Não há outra saída. Mas, dep ois de morrer, porque não hei-de viver de novo? Porque não hei-de ter essa se gunda oportunidade? Porque não hei-de nascer de novo?» Quanto mais pensava naquilo, mais claramente me ape rcebia de que não precisava de Jesus para renascer. Apenas precis ava de planear tudo com muito cuidado. «PENSA que estás a passear na Lua», repetia eu para comigo. «Dá um passo lento e calculado de cada vez e não arrisques nada.» Assim, só regressei a casa de Gary depois do anoite cer daquela segunda-feira. Antes de sair de minha casa, tranquei o saco de plástico das provas na minha câmara-escura, enfiei uma pequena lanterna no bolso e calcei um par de luvas cirúrgicas (costumo comprá-las em grande quan tidade para utilização enquanto manejo substâncias químicas par a fotografia). Em seguida, certificando-me de que a costa estava completamente livre, atravessei a rua em passinhos de lã até à casa de Gary. Uma vez lá dentro, abri caminho até um quarto dispo nível que Gary utilizava como escritório no piso superior. As pers ianas estavam fechadas. Acendi um candeeiro de secretária . Era o caos. Roupa suja espalhada por toda a parte, papéis pelo chão, a sec retária e a agenda electrónica cobertas de pó. Remexi as facturas e extractos banc ários. As contas 55 Amex e MasterCard tinham vencido havia muito. A Com panhia Telefónica emitira um aviso final relativo a 484,70 dólares. Quando verifiquei o

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extracto de conta do Chemical Bank, havia um saldo de apenas 620 dólares na conta à ordem. Porém, a julgar pelas quantias e datas dos depósitos anteriores, Gary devia receber uma pr estação trimestral de 6900 dólares no dia seguinte. Abri a agenda electrónica, liguei-a e abri caminho até aos respectivos ficheiros. Havia um chamado CORPROF. Continha umas três dúzias de CORrespondências PRofissionais, cartas a oferecer o s seus serviços a quase todas as revistas de Nova Iorque. A última, datada de há seis dias, era dirigida a Jules Rossen, editor fotográfico de uma nova revista de viagens chamada Destinations. Caro Jules Gostei imenso de vê-lo na semana passada. Adoro a i deia de um ensaio fotográfico que cubra a fronteira Califórnia -Baixa Califórnia. Os honorários por si mencionados - 1000 dólares, incluindo despesas - são consideravelmente mais baixos do que aqueles que ha bitualmente recebo. Mas imagino que, como nova publicação que é , a revista Destinations ainda não disponha dos recursos necess ários para igualar honorários pagos por revistas já estabelecidas. Alé m disso, como fiquei muito bem impressionado com a edição experimental que me mostrou, aceito de boa vontade os termos oferecidos. Neste momento, tenho um pequeno espaço em branco na agenda, por isso posso dirigir-me para oeste mal receba luz ver de da sua parte. Os honorários por si mencionados são consideravelme nte mais baixos do que aqueles que habitualmente recebo. De quem? Do jornaleco local de New Croydon? Saí do CORPROF, passando para o ficheiro chamadO B. 15-9-94 B: Impossível segunda-feira. Terça, hora do almoço? Espero o teu telefonema. G. 21-9-94 B: Se deixo outro destes bilhetes na minha caixa de correio, vou começar a pensar que sou um personagem de um ma u romance de espionagem. Amanhã às duas está bem. G. 56 24-9-94 B: De partida para Boston em trabalho. Não te preoc upes - eu não telefono, embora pense que estás a ser um pouco par anóica acerca dos meus telefonemas. Ele não está aí durante o dia, e, se a ama atender, posso sempre dizer que sou o canalizador. Vou ter saudades tuas. G. 5-10-94 B: Tenho pensado no que disseste ontem. Não te preo cupes - ele

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anda demasiado absorvido para suspeitar de qualquer coisa. E quando finalmente lhe deres ordem de marcha, podemo s continuar na clandestinidade durante algum tempo. Isso acalma a tua consciência burguesa? G. 27-10-94 B: óptimas notícias. Contrato à vista para a Baixa Califórnia. Posso ter de partir de repente para oeste. Sim, fui convi dado para a tal coisa dos Harfleys no sábado. Se ficares incomodada por me te res ali na presença do teu maridinho, também não morro se não for. Pode mos combinar calmamente na sexta-feira. G. Ela ama-me a mim, mas a si odeia-o. Eu não tinha ac reditado naquela altura, mas depois de ler os ficheiros B, s enti que Gary tinha dito a verdade. Se Beth estava tão impression ada com ele, acharia estranho se ele desaparecesse sem dizer nada. Gary teria de ser cha mado para fora dali e depois decidir ficar afastado para sempre. E depois de domingo - quando Beth regressasse a casa com os miúdos -, e u teria de estar morto. Estava no início da última semana da minha vida. DURANTE O meu primeiro ano na Lawrence, Cameron and Thomas, um dos sócios juniores da divisão de fusões e aquis ições foi preso por ter falsificado a assinatura de um dos sócios principai s, que estava de férias, num contrato urgente. - Estúpido - dissera Jack Mayle. - Ele já devia sab er que, quando se quer falsificar uma assinatura, se deve copiá-la de pernas para o ar.É o truque mais antigo do manual dos falsificadores. Bom conselho, Jack. Retirando o cartão Amais da car teira de Gary, virei a assinatura ao contrário, peguei num bloco e numa caneta Bic e dePois comecei a treinar-me a copiar a assinatura dele. Após cerca de dez tentativas, atingira um grau de perfeição razoável. Em seguida, regressei 57 à agenda electrónica e abri o ficheiro chamado cApi TAL, ficando assim a conhecer as disposições bancárias de Gary. Em seguida, voltando-me para um arquivo cinzento si tuado perto da secretária, encontrei um verdadeiro filão de ouro: uma pasta de cartolina parda, bastante suja, que continha a certidão de na scimento, o cartão da Segurança Social, a hipoteca da casa, o t estamento e todos os documentos relativos ao fundo de que ele era benefi ciário. Novamente

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boas notícias. A casa estava completamente paga, e Gary era o seu único proprietário. Era ainda o único beneficiário do fun do, que rendia habitualmente uma quantia anual de 27 600 dólares, transferidos d e três em três meses para a sua conta à ordem no Chemical Bank. O fundo tinha apenas uma cláusula que estabelecia que o capital inicial era inalterável. O testamento de Gary também era muito claro. Ele nunca casara e era filho único. Em caso de morte, os seus bens deviam ser deixados ao Bard College, sua alma mater, sob a condição de ser criada uma ca deira universitária de Fotografia - incrível! - com o nome dele. Não co nsegui evitar uma gargalhada. A vaidade daquele tipo não tinha limite s. Professor de Fotografia Gary Sunimers! Durante as horas seguintes, fui organizando os docu mentos de Gary. Às 5 da manhã tinha conseguido dar um pouco de orde m ao escritório, mas não podia arriscar-me a continuar, pois dentro em breve os madrugadores da Constitution Crescent estariam na r ua para o seujogging matinal. Pegando no bloco em que pratica ra a assinatura do defunto, dei uma rápida volta pela casa, apagando todas as luzes . Depois, voltei a sair discretamente e atravessei a rua. Já dentro de minha casa, o bloco e as luvas cirúrgi cas foram juntar-se às outras provas escondidas no saco de plástico pre to. Engoli três grandes comprimidos de dexedrina com um longo gole de Maalox, em seguida tomei um duche, fiz a barba e vesti-me para ir trabalhar. De caminho, levei uma roupa suja para a casa das ro upas e, depois de ter posto a máquina de lavar a funcionar, atirei o saco das provas para dentro do minúsculo porta-bagagem do Miata. Às terç as-feiras de manhã eu costumava fazer sempre uma visita ao centro de r eciclagem, por isso também encafuei três sacos com garrafas vazias, lat as e jornais no assento ao meu lado. New Croydon pagava impostos demasiado elevados para permitir uma lixeira dentro dos seus limites municipais. Os seus bons cidadãos utilizavam a lixeira de Stanford, situada uns quinz e quilómetros para norte, junto à estrada. O Sol despontava quando lá cheguei. Senti-me aliviado ao ver cinco automóveis à minha f rente à espera de que

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os portões abrissem às 6.30, pois não queria ser o primeiro ro sto com que os empregados 58 da lixeira deparassem ao nascer do dia. Só tive de esperar cinco minutos até um tipo de fato-macaco levantar as barr icadas e nos acenar para entrarmos. Depois de atirar os sacos de materi al reciclável para os respectivos contentores, conduzi o meu carro até à zona reservada a lixo doméstico. - Alguma coisa inflamável? - perguntou o empregado que se encontrava junto ao contentor. Abanei a cabeça e passei por um terrível momento de nervosismo, pois, por vezes, eles também examinavam os sacos. M as devia ser cedo demais para começarem a inspeccionar lixo, porque o homem pegou no saco e atirou-o para um contentor transbordante com os detritos da noite anterior. Fiz o caminho de regresso a New Croydon em quinze m inutos, deixei o carro na estação e apanhei o comboio das 7.02 par a a cidade. Estava no meu gabinete por volta das 8.30. Estelle chegaria à s 9. Dirigi-me à secretária, puxei a gaveta de baixo e r etirei uma pasta de arquivo que continha o meu próprio testamento. Como é natural, eu próprio o redigira - um documento hermético, dei xando todos os meus bens a Beth e aos miúdos. Ela ficaria bem depois da minha morte. Tudo incluído, poderia contar receber cerca de 1,4 milhõ es de dólares, o suficiente para manter os três com um re lativo conforto segundo os parâmetros de New Croydon. Também verifiquei cuidadosamente as minhas apólices de seguros. Cobriam todos os tipos de morte possível (excepto m orte em zona de guerra), por isso não havia hipóteses de a companhi a de seguros se furtar ao pagamento. Voltando a fechar os documentos na secretária, proc urei uma folha de papel de carta, peguei numa caneta e escrevi um rec ado para Estelle dizendo que ainda não me sentia bem e que, a conselho do médico, ficaria a descansar nos próximos dias, mas que a contactari a de vez em quando para o caso de vir a aparecer algum assunto urgente . Dobrei a folha e meti-a num envelope onde escrevi ESTELLE; d epois, deixei-o num sítio bem

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visível na parte da frente da minha secretária. Em seguida, peguei no casaco e na pasta e saí rapidamente do es critório. Mandei parar um táxi e disse ao motorista que me le vasse até à Columbia University, meu velho refúgio durante o pe ríodo de seis meses de divagação que se seguira à minha estada em Paris . Levámos vinte minutos a chegar ao cruzamento da Broadway co m a Rua Cento e Dezasseis. Saí, percorri a pé três quarteirões para sul e entrei numa velha livraria comprida que naquela época remo ta eu costumava frequentar. Abri caminho até às prateleiras rotuladas ALTERNATI VA & 59 anarquisTA. Ao fim de alguns minutos de busca, desc obri aquilo que procurava: O Livro de Receitas do Anarquista, que continha tudo o que era necessário saber para fabricar explosivos caseiros. Percorri r apidamente um capitulo intitulado «Explosivos e armadilhas», a té que descobri a receita que pretendia e a copiei para um pequeno bloco de notas . Em seguida, repus o livro na prateleira e prossegui a minha busca até encontrar uma brochura intitulada Lista de Postas-Restantes d os Estados Unidos e Canadá. Segundo o anúncio feito pelo editor na contracapa, o livro fornecia «uma listagem de mais de 700 postas-restantes e reencami nhamento postal, com indicações sobre a sua utilização». Sob o títul o «Califórnia, Bay Area», encontrei o número de telefone de um serviço em Berkeley e inscrevi-o no meu bloco de notas. A minha próxima paragem era um banco, de onde levan tei 500 dólares de uma máquina M13, e entreguei uma nota de 10 dólares a um caixa a troco de um rolo de quarenta moedas de vinte e ci nco cêntimos. Procurei uma cabina telefónica, marquei o número de Berkeley e depositei 5,25 dólares por três minutos quando a te lefonista mo pediu. Ao fim de três toques, atendeu um tipo com uma voz mais do que lacónica. - Estação. De Correios. Alternativa. De Berkeley. S im? - Olá - disse eu. - São vocês que providenciam postas-restantes? - Sim. Somos. Esses. Mesmos. - Era como escutar xar ope a ser vertido. - Como funciona? - Vinte dólares por mês. Duração mínima, seis meses . Pagamento adiantado. O senhor dá-me já o seu nome. Quando tiv er um novo endereço, telefone-nos. Depois, nós reencaminhamos todo o seu correio. Para si. - Vocês nunca revelam esse novo endereço a ninguém, pois não? - Não. Nós somos a Estação de Correios Alternativa. Mantemos.

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Segredo. - Quero que o serviço comece amanhã. - Tem de nos enviar. o dinheiro. Via Western Union. - Deu-me o número respectivo da Western Union e o endereço de Berkeley para o qual o correio ia ser reencaminhado. Em seguida, pe rguntou:- Tem algum nome? - Gary Summers - retorqui. - OK, Gary. Envie-me o dinheiro. Nós cuidaremos. Do resto. Até breve, cavalheiro - e desligou. Interroguei-me sobre quantas células cerebrais ele teria perdido durante a década de 60. O tipo falara tão d evagar que eu gastara quase todas as minhas moedas, mas ainda tinha suficientes para ligar para as informações, 60 vindo a descobrir que havia uma agência da Western Union numa farmácia situada no cruzamento da Rua Cinquent a e Um com a Segunda Avenida. Perfeito. Saltei para dentro de um táxi, entrei na farmácia e enviei 240 dólares para a Esta ção de Correios Alternativa de Berkeley, acompanhados de uma nota sóbria: «Pagamen to de 12 meses. Gary Summers.» Cumprida esta tarefa, segui a pé até à Grand Centra l e apanhei o comboio da 1.46 de regresso a New Croydon. Ao che gar à estação, meti-me no carro, conduzi os quinze quilómetros que me sepa ravam de Stanford e dirigi-me à grande Estação de Correios Central da Baixa. Preenchi um cartão de mudança de residência, indicando que, a p artir do dia seguinte, Gary Summers, residente no 44 da Constitution Cresc ent, New Croydon, no Connecticut, gostaria que o seu correio fosse re encaminhado para 10025-48 Telegraph Avenue, Berkeley, Califórnia. Re tirando rapidamente a carteira de Gary do meu bolso, voltei o seu cartão Amex ao contrário, depois inverti o impresso postal e co piei a rubrica na linha da ASSINATuRA. Escrevi «Correios de New Croyd on» na parte da frente do cartão pré-pago de mudança de residência e depoi s meti-o na caixa do correio. Passei os quinze minutos seguintes às voltas em Sta nford até encontrar um grande parque de estacionamento de vár ios pisos na Broad Street. Segundo uma tabuleta no exterior, estava ab erto vinte e quatro horas por dia. Oferecia preços semanais a longo prazo. Tinha mil lugares. Era um serviço de baixo custo, sem vigilância por m eio de

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vídeo - não era o tipo de parque, calculei eu, onde alguém repa rasse muito em automóveis deixados durante vários dias. Segui até ao Stainford Town Center MalI, estacionei o Miata no oitavo piso da garagem e meti no parquímetro moedas suficientes para cobrir o estacionamento de um dia, o máximo permitido.- De sci a pé a Atlantic Street até à estação de caminho de ferro e tive de esperar quinze minutos pelo comboio local que seguia para sul. Entrei nele , e passados seis minutos estava de regresso a New Croy don. Eram 4.15. Se alguém me visse caminhar até casa, pensaria simplesmente que eu tin ha saído cedo do trabalho. Não havia mensagens no gravador de chamadas. Nem co rreio de interesse. Despi o fato e vesti-me para a saída seguinte. A indumentária padrão que Gary utilizava para andar p or ali eram Levi's, camisa de ganga, casaco de cabedal, boné de basebol preto. Eu tinha fac-símiles razoáveis de todas essas peças de vestuário no meu armário (t odos fazemos compras nos mesmos sítios). Vesti-me e depo is esperei quarenta minutos que Começasse a escurecer. A manobra seguinte ia ser co mplicada. 61 Pouco depois das 5, esgueirei-me pela porta das tra seiras, tendo em conta o facto de que a maior parte dos meus vizinho s que utilizavam o comboio nunca chegavam a casa antes das 6. Calcular a bem. Não havia por perto quaisquer pais de família vindos da estaç ão. Puxei a pala do boné para baixo até quase me chegar ao nariz. Ao at ravessar a rua, aproximei-me do MG de Gary, estacionado no cam inho ao lado de casa, e entrei lá para dentro. O interior era catas trófico. O assento do condutor apresentava um grande rasgão; o chão estava coberto de latas vazias de cerveja, mas senti-me aliviado ao encontrar o impor tantíssimo título do registo de propriedade no porta-luvas. Embora Gary me parecesse um palerma, mantinha o seu automóvel antigo em perfeit as condições por baixo do capô. O motor arrancou logo à primeira. Afastando-me da estação, conduzi a baixa velocidade por várias ruas secundárias, evitando todas as artérias princi pais de New Croydon. Chegando finalmente à 1-95, mantive-me sempre dentr o do limite de velocidade até Stanford, dirigindo-me ao estacio namento que desencantara há horas. Ao entrar, evitei o olhar do funcionário que estend eu a mão

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como uma mola para fora da cabina, entregando-me uma sen ha. Meti-a debaixo da pala contra o sol e procurei um lugar va zio no terceiro piso. Desci pelas escadas e saí por uma porta lateral. Foi uma caminhada rápida e nervosa por ruelas de ma u aspecto e muito escuras até ao Town Center MaIl. Dirigi-me im ediatamente ao cinema multíplex e comprei um bilhete para o fil me seguinte. Tinha quinze minutos de espera, por isso dirigi-me a uma cabina e liguei para Darien. Foi Beth quem atendeu. - Ai! - exclamou ela com o seu tom glacial. - Onde estás? - Em Stanford. No centro comercial. Saí cedo do tra balho e decidi ir ao cinema. Queres vir ter comigo? - Ben ... - Deixa os miúdos com Lucy e Phil; podes aqui estar em dez minutos. - Ben, eu já te disse ... - Tenho estado a pensar que talvez ... - Não, não quero ver-te. Agora, vou desligar, Ben. - Espera um momento. Sábado à tarde vou aí ver os m iúdos. é o mínimo ... - Sábado está bem - retorquiu ela, cortando-me a pa lavra. - Boa noite. Entrei cambaleante no cinema. O filme era do tipo « polícia desesperado que protege mulher em fuga». Não conseg ui concentrar-me na história, 62 pois só via Adam e Josh à minha frente e só consegu ia pensar: «Depois de sábado, nunca mais os vês.» As maiúsculas FIM apareceram no ecrã. As luzes do t ecto, cada vez mais brilhantes, ofuscaram-me. Mas lá fora, no cent ro comercial, o brilho fluorescente era ainda pior. Qu ando ouvi alguém chamar-me, levou algum tempo até eu conseguir focar devidamente Bill e Ruth Hartley. - Olá, senhor Alegria da Festa! - exclamou Ruth, da ndo-me um beijo. - Saída nocturna sem companhia? - perguntou Bill. - Isso mesmo. Pensei que me distrairia a ver um fil me. - O que é que viste? - perguntou Ruth. - Uma porcaria qualquer de acção. E vocês? - Ruth quer obrigar-me a ir ver um filme com preten sões artísticas. Iluminismo cultural - lançou um sorriso a Ruth. - C omo está Beth? - Continua em Darien com os miúdos. - Ai! - prosseguiu Bill. - Está tudo bem? - Hmin, não.

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- Tudo mal então? - Muito mal - repliquei. - Irreparável, julgo eu. - Oh, Ben - compadeceu-se Ruth, pegando-me no braço e apertando-o com força. - Vamos esquecer o filme - decidiu Bill. - Vamos .. . - Não, de verdade ... - Ben - insistiu Ruth -, tu não podes estar sozinho . Vem connosco para casa. - Eu estou bem. A sério. Só preciso de dormir. Não durmo ... - Isso é mais que óbvio - replicou Bili. - Porque é que não ... - Esta noite, não, por favor. Eu estou a aguentar-m e. E depois de oito horas bem dormidas, é provável que ainda me ag uente melhor. - Então, amanhã - desafiou-me Ruth. - Está bem. - Logo a seguir ao trabalho. Prometes? - prosseguiu ela. - Lá estarei - retorqui. - E obrigado. Depois, afastei-me sem me virar para trás. Não quer ia ver as caras preocupadas deles e esperava que não me telefonasse m a altas horas da noite para saber como é que eu estava. Pois eu não ia estar em casa. Conduzi de novo o Miata até New Croydon e cheguei a casa por volta das 9. Há quase um dia que não comia, por iss o obriguei-me a ingerir um prato de ovos mexidos e tostas, seguido de quatr o chávenas de café. Regressei à minha câmara-escura, vesti a roupa de G ary, calcei os ténis Nike e depois enfiei um novo par de luvas cirúrgica s. 63 Passava muito pouco das 10 quando me esgueirei para casa de Gary, depois de ter retirado uma pilha de correio da caix a situada no relvado da frente. Utilizando a lanterna, subi até ao escritór io e dei uma vista de olhos pelo correio. Havia uma carta da revista Dest inations. Caro Gary Detesto dar-lhe más notícias, mas decidi contratar um fotógrafo sediado em San Diego para a cobertura da reportagem sobre a Baixa Califórnia. Desculpe desapontá-lo. Vá-me falando. Sempre ao seu dispor, Jules Rossen Pobre Gary! Tinham-lhe dito que aquele contrato era quase uma certeza, quando afinal sempre haviam tido aquele me rcenário de San Diego na manga. De súbito, vi-me do lado de Gary, assumin do a sua defesa e desejando enviar uma carta a Jules «Judas» Rossen i nformando-o de que ele não merecia um fotógrafo com o meu talento.

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O meu talento? Começava cedo ... Aquela carta de rejeição ajustava-se perfeitamente ao meu plano. Ninguém da revista Destinations andaria à procura d e Gary, tentando saber quando é que ele entregaria as fotog rafias. Ninguém no Mundo quereria saber do seu paradeiro. A não ser Be th. Abri a agenda electrónica, entrei na directoria B, criei um novo documento e e screvi: B: Grandes notícias. Consegui o tal trabalho na Bai xa Califórnia. Querem-me rapidamente na fronteira, por isso vou fa zer-me à estrada ainda esta noite. Estarei por lá duas ou três seman as. Vou sentir muito a tua falta. G. Carreguei na tecla PRINT para imprimir e depois met i a carta dentro de um envelope. Voltei-me em seguida para a pilha de reclamações de dívidas. Gary devia ao todo 2485,73 dólares. Mudando para a direc toria CAPITAL, descobri que ele pagava todas as contas at ravés do banco. Sempre que os credores começavam a ameaçá-lo com uma acção jurídi ca, ele limitava-se a enviar um fax ao Chemical Bank autori zando uma listagem de pagamentos por meio de transferência da sua cont a à ordem. Abrindo um novo documento em CAPITAL, escrevi um co municado sóbrio para o banco informando-os de que deviam pag ar as somas registadas abaixo aos cartões Amex, Visa, MasterCar d, à Companhia dos 64 Telefones e à de Electricidade. Copiei o número de fax do banco de uma carta anterior. Carreguei na tecla PRINT. Fiz mais uma falsificação da assinatura de Gary, ainda mais perf eita do que as anteriores. Meti a carta na máquina de fax e carreguei no botão ENVIAR. Gary Su mmers já não tinha dívidas. Ainda havia mais cartas para escrever. Todos os car tões de crédito e companhias de utilidade pública receberam instruçõe s por meio de fax no sentido de estabelecerem um acordo de facturação directa com o banco de Gary. O Chemical Bank receberia tamb ém cópias dessas cartas. Quaisquer dívidas que ele contraísse de futuro, ser iam automaticamente eliminadas. No que dizia respeito ao pagamento das contas, ele passaria a ser um cidadão modelo. Terminada a correspondência, o meu olhar caiu sobre um documento intitulado Num. Premindo a tecla ENTER, mal queria acreditar na minha

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sorte. NUM referia-se a «números» e continha uma li sta dos números PIN de todos os cartões dele - o que era ainda mais imp ortante, do seu cartão Multibanco. Eu tinha realmente encontrad o um filão de ouro. Agora, ser-me-ia possível levantar dinheiro do fundo de Ga ry em qualquer máquina ATM do país. Terminado o CAPITAL, voltei a minha atenção para o estado caótico daquele escritório e do quarto. Se Gary ia estar fo ra durante algum tempo, de certeza que se teria esforçado um p ouco por lhes dar uma arrumação. Assim, deparando com duas caixas vaz ias dentro de um armário e alguns sacos de plástico pretos para lixo, passei v árias horas a fazer a escolha dos seus papéis. Qualquer coisa q ue tivesse uma importância razoável ia para dentro das caixas. Tud o o resto ia parar aos sacos. Passando para o quarto, dobrei e arrumei as roupas. Em seguida, fiz uma limpeza ligeira na sala antes de regressar ao escri tório em busca da pasta de cartolina parda que continha a certidão de nasci mento de Gary e outros documentos de importância vital. Eram quase 4.30. Fim das horas de expediente, e em breve seria noite. Esgueirando-me rapidamente pela porta das traseiras, deixei dois sacos de lixo nos contentores ao lado da casa e depois meti o recado para Beth dentro da cai xa de correio de Gary. De regresso a casa, os efeitos de uma noite sem dor mir acabaram por fazer-se sentir. Deitei-me, fechei os olhos e só vo ltei a abri-los às 11.08 de quarta-feira de manhã. Depois de um duche, volte i a vestir-me com roupas estilo Gary, meti no bolso a sua certidão de nascimento e parti em direcção à auto-estrada. Passava pouco do meio-dia. Cinco horas de luz natur al. Precisamente o tempo necessário para dar umas voltas essenciais antes de ir jantar aos Hartleys. 65 A primeira volta incluía uma deslocação até à Direc ção de Viação, em Norwalk. Antes de lá chegar, parei numa bomba de gasolina para telefonar. Liguei para as informações, obtive o número da Direcção de Viação do Connecticut e marquei-o. Depois de espera r cinco minutos, consegui falar com uma funcionária educada chamada Judy. Expliquei que tinha perdido a minha carta de condução e não s abia se

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precisava de uma fotografia nova para a segunda via. - Claro que precisa de uma nova fotografia - exclam ou Judy. - Eu sei que isto parece uma coisa de tontos - diss e eu -, mas gostava muito da minha antiga fotografia, e estava a pensar se vocês teriam alguma arquivada. - Nisso não posso ajudá-lo. O estado do Connecticut não guarda registos fotográficos computorizados das cartas de condução. Era isso mesmo que eu queria ouvir. Refugiei-me na casa de banho da estação, puxei da licença de Gary, anotei o núme ro no meu bloco de notas e depois abri a tesoura do meu canivete suíço e transformei a licença em mil pedaços. Fi-la desapar ecer em três tempos. Tinha escolhido a Direcção de Viação de NorwaIk por que nunca estava particularmente apinhada. De facto, a fila à minha frente tinha apenas cinco pessoas. Enquanto esperava, preenchi um impre sso de carta perdida, anotando o número da carta de conduç ão «desaparecida» de Gary. - Tem aí a sua certidão de nascimento e cartão da S egurança Social? - perguntou o imbecil de dentes salientes que se en contrava atrás da secretária. Entreguei-lhos. - Dirija-se ali para o exame aos olhos - disse ele, apontando. Levei dois minutos a identificar as letras no mapa oftálmico. Em seguida, fui encaminhado para uma máquina fotogr áfica. Passados dez minutos, quando alguém chamou «Gary Suminers», levei uns segundos a tomar consciência: sou eu. Aproximei-me do balcão. - Aqui tem, Mr. Summers - disse o funcionário, entr egando-me uma nova carta de condução e contando o dinheiro qu e eu empurrei na direcção dele. - Tente não voltar a perdê-la. Enquanto seguia para norte pela 1-95, agradeci ment almente ao superburocratizado estado do Connecticut por não te r o equipamento informático necessário para manter um r egisto de fotografias das cartas de condução. O resto da tarde foi passado nas compras. Dirigindo -me primeiro a um grande centro comercial em Bridgeport e utilizei o meu próprio cartão ATM para levantar mais 500 dólares d e uma máquina Multibanco. Em seguida, entrei numa loja de produtos para autom óvel e comprei dois recipientes de plástico com gasolina. Depois, segui para norte até New Haven, onde procurei um grande armazém de artigos d esportivos, e dei 195 dólares por um barco de borracha insuflável, um a bomba de pé e um par de remos. Mais um percurso de quarenta minutos até

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Hartford. Consultei as Páginas Amarelas para procur ar uma empresa fornecedora de produtos químicos, onde comprei uma garrafa de ácid o de 1 d1. Encaminhando-me para sul até Waterbury, cheguei a u m centro de jardinagem que vendia pesticidas. Depois, segui ainda mais par a sul até Daribury, onde comprei plástico preto a metro e uma lancheira . Regressei então a Stanford e dirigi-me a um centro comercial dos arre dores. Entrei em três lojas diferentes a fim de comprar camisolas e ténis pretos, uma capa de oleado verde para automóvel, duas mochilas enormes, um rolo de fita adesiva forte, tipo industrial, dois tubos de cartã o de trinta centímetros aproximadamente e dois frascos de vidro com tampas de cortiça. Toda esta grande volta pelo Connecticut constituía uma p recaução de segurança. Fazer tais compras numa única loja - sob retudo tratando-se de uma compra tão volumosa, que incluía produtos químicos inflamáveis e um barco de borracha - poderia ter levantado algumas s uspeitas. Às 7, já estava de volta a New Croydon. Guardei as compras em vários recantos fechados à chave da minha câmara-es cura. Em seguida, fui até casa dos Hartleys. Eles mimaram-me com bom whis ky e bom vinho francês e serviram-me linguado grelhado. Escutaram- me com atenta compreensão enquanto lhes apresentava a edição em f ormato grande da desintegração do meu casamento. Deram-me todos os h abituais conselhos bondosos/práticos sobre aconselhamento ma trimonial, mediação, potencial de reconciliação. Olharam um para o outro quando referi que Beth queria que eu saísse de casa até domingo. - Podes ficar no nosso quarto de hóspedes por algum tempo - ofereceu Ruth. - Não posso aceitar - retorqui. - Tens de aceitar - exclamou Bill. - Não sei que dizer. - Não digas nada - replicou Bill. - Continua a bebe r. Voltou a encher-me o copo. Bebi o vinho lentamente e depois fiz uma pergunta que durante toda a noite aguardara poder f azer. - Estou a pensar tirar folga até ao meio da próxima semana. Será que vos apetece passar um ou dois dias no mar? - Gostávamos muito - replicou Bill -, mas no doming o vamos visitar Theo à escola, em New Haven. Que tal sábado? - Tenho de ir ver Adam e Josh a Darien. - Bem, se quiseres ir sozinho no domingo, emprestam os-te o

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barco 67 de bom grado. Passa lá uma ou duas noites se quiser es. Por aquilo que vi na semana passada, pareceu-me que sabias muito bem o que estavas a fazer. Uns dias fora sozinho talvez te fa çam bem. - Eu não quero que aconteça nada ao Blue Chip. - Tenho-o no seguro. - O seguro é alto - acrescentou Ruth. E desatámos todos a rir. A MINHA LEITURA de cabeceira foi-me fornecida por B ill. Três grandes cartas de navegação da costa do Connec ticut. Analisei-as durante cerca de cinco minutos antes de o sono se a bater sobre mim como uma paulada na cabeça. Quando despertei, ao fi m de nove horas, levei uns instantes a perceber que eram 11 da manhã de quinta-feira e que me encontrava no quarto de hóspedes dos Hartley s, pois na noite anterior sentira-me demasiado abatido para co nduzir até casa. Em cima da mesinha-de-cabeceira tinham-me deixado um bilhete e um molho de chaves. Fomos trabalhar. Faz como se estivesses em tua casa . Anda sempre com estas chaves. A pequena é do Blue Chip, para o caso de quereres dar-lhe uma vista de olhos. Aguenta firme. Com muita amizade, R. & B. Eu não merecia ter amigos como Ruth e Bill. Eram de masiado honestos, demasiado confiantes. E eu ia aproveitar- me da hospitalidade deles de uma forma horrível. Depois de um duche rápido, olhei mais de perto as c artas de Bill. Percorrendo com o dedo a costa recortada do Connect icut, encontrei uma minúscula ponta de terra a leste de New London chamada Hark ness Memorial State Park. Situava-se cento e cinquenta quilómetros a nordeste de New Croydon. Passadas duas horas, eu já lá estava. Hect ares de relvado ondulante, mesas de piquenique e a velha Mansão Harkness, actu almente um 68 museu, que mais parecia uma casa assombrada saída d e um filme de Vincent Price. Havia portões baixos à entrada do parque. Co mo era dia 3 de Novembro, estávamos na época baixa, e eu tinha o pa rque só para mim. Caminhando até à praia, vi alguns barcos de recreio na água e uma faixa límpida e desimpedida de mar que, quinze milhas par a leste, se transformava no oceano Atlântico. Regressando ao Miata, saí do parque e virei à esque rda.

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Quinhentos metros a sul, travei bruscamente em frente de um po rtão de quinta delapidado. Por detrás deste, havia um campo com um grande aglomerado de árvores. A casa de habitação mais próxima - uma cas a de ripas vermelhas - encontrava-se a cerca de quatrocentos m etros. Aquele campo era perfeito para as minhas necessidades. Regressando a New London, cronometrei os quilómetro s até à estação do comboio e depois segui as tabuletas que indicavam a 1-95 e pus-me a caminho de New Croydon. Regressado a casa, nessa noite telefonei ao meu men tor, Jack Mayle, para a sua casa de Scarsdale. A voz dele denotava u m grande abatimento. - Sinto-me um pouco estonteado - confessou. - Deve ser dos comprimidos que o médico me convenceu a tomar. Tu e stás bem? - Ainda me sinto bastante abatido - repliquei. - Bem, então fica em casa. Tenta descansar. É o mel hor que podes fazer. Nunca é demais ter cuidado com as intoxicaçõ es alimentares. Mas olha que eu preciso que estejas de volta na quarta- feira. - Lá estarei - menti. - E obrigado por tudo, Jack. Tem sido extraordinário para mim. Ele notou o tom definitivo na minha voz. - Tens a certeza de que estás bem, Ben? - Apenas cansado. Desliguei. Percebi então que nunca mais voltaríamos a falar. O primeiro adeus. Outros piores estavam para vir. Corrida dissimulada até casa de Gary. Dirigi-me à c ave e abri a arca congeladora. Ele ainda lá estava. Depois, voltei a minha atenção para a câmara-escura. Ao contrário de mim, ele tinha apena s três máquinas fotográficas: uma Rolleiflex, uma Nikkonna t e uma Leica de bolso. Meti-as todas no saco de fotógrafo dele, juntamente com dua s lentes extras e um pequeno tripé. Subi as escadas, levando o saco até ao quarto de Ga ry, onde encontrei um saco de viagem preto dentro do armário; enchi-o com roupas. Peguei ainda no Filofax, no seu estojo da barba e num par de Ray Ban Wayfarers que ele usava sempre. Um último artigo: a agenda el ectrónica, cuja mala de transporte também continha uma impressora Canon portátil. Muito 69 prático. Acomodei a agenda na respectiva mala e peg uei nos sacos. Rápida e nervosa corrida aos tropeções para o outro lado da rua. Já no caminho de acesso a minha casa, os sacos foram guar dados no

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porta-bagagem do Miara. Depois de uma incursão à mi nha câmara-escura, vieram juntar-se-lhes a capa verde de automóvel e a pasta de arquivo com os documentos de Gary. A seguir, foi partir para Stanford. O funcionário d o estacionamento não levantou o olhar da sua revista Sports I11ustra ted quando eu retirei o meu bilhete. Encontrei um lugar a três automóveis d e distância do MG de Gary. A garagem estava vazia de gente, pelo que ninguém me viu transferir tudo do porta-bagagem do Miata para o do MG. Precisando de fazer tempo (não queria chamar a atenção do funcion ário saindo da garagem cinco minutos depois de ter chegado), di rigi-me a um restaurante indiano ali próximo. Passei uma hora a consumir galinha tandoori e algumas cervejas. Ninguém reparou em mim quando, às 11.15, saí da gar agem no Miata. Além disso, havia um novo funcionário de ser viço quando cheguei de novo, agora a pé, às primeiras horas da manhã seguinte, depois de apanhar o comboio local das 6.08, vindo de New C roydon. Era sexta-feira e dava a entender que eu ia começar o f im-de-semana mais cedo, com indumentária própria para um passeio no campo: botas para caminhar e uma pequena mochila às costas. O MG de G ary arrancou logo à primeira volta da chave. Larguei 24 dólares para pa gar o estacionamento e fui bocejando pela 1-95 fora. Passando junto à entrada do Harkness State Park, pr ossegui viagem até ao portão da quinta. Saltei do carro, abri o po rtão de par em par, entrei com o MG, fechei o portão e encaminh ei-me para as árvores. Lenta e silenciosamente, conduzi o MG até ao ponto mais afa stado possível, no meio do maciço de ulmeiros e carvalhos, desliguei o motor, desembrulhei a capa e tapei o automóvel. Em seguida , empilhei folhas soltas sobre a capa. Quando regressei à estrada principal, só co nseguia vislumbrar um montículo de folhas no meio daquela floresta. Retirando da minha mochila um boné de basebol e um par de óculos escuros, empreendi o caminho de oito quilómetros de regresso à Estação de Caminho de Ferro de New London. Só passaram algu ns carros por mim, e ninguém me prestou a mínima atenção. Eu era apenas um maluquinho do ar livre que tinha saído em passeio. Quando entrei no comboio que seguia para sul, escol hi um lugar perto da casa de banho, para o caso de vir a precis ar de me esconder de algum rosto conhecido. Ao regressar a New Croydon, esperava-me uma tarefa arriscada.

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70 Abrindo um armário fechado à chave na minha câmara- escura, retirei do interior os produtos químicos que comprara. Em segu ida, desencantei o meu bloco de notas que continha a receita tirada do Livro de Receitas do Anarquista e lancei mãos à obra. Brincando aos cien tistas loucos, medi doses variadas de cada substância química antes de as misturar. Pegando num dos tubos de cartão de trinta centímetros de co mprimento que tinha comprado, prendi a tampa de plástico da extremidade inferior com fita isoladora. Depois de encher o tubo com o composto q uímico, fechei com fita a extremidade superior e utilizei uma tesoura para abrir um pequeno orifício na tampa de plástico da extremidade superi or. Dois pedaços de fita adesiva foram então colocados sobre essa abert ura. Pegando no segundo tubo, repeti o processo. Depois de terminar, meti os tubos num saco de mão, rasguei a receita e enviei-a esgoto ab aixo. Utilizando um funil minúsculo, enchi em seguida os dois frascos com ácido, selei-os com Blu-tack, uma substância não-in flamável, e depois prendi com fita adesiva uma tampa de cortiça ao lad o de cada frasco. Fui buscar a lancheira e utilizei fita isoladora para p render os frascos às extremidades opostas daquela. Depois de bem presas no lugar, fechei a caixa e, com os nervos à flor da pele, sac udi-a fortemente. Os dois frascos não se mexeram; o ácido não escorreu ... e eu não e xplodi num mar de chamas. Na manhã seguinte, sábado, guardei os frascos a bor do do Blue Chip. Eu tinha telefonado a Bill na noite anterior dizend o-lhe que queria meter as minhas provisões no barco antes de me fazer ao l argo no domingo. Bill prometeu que telefonaria ao capitão do porto - para o caso de ele se admirar ao ver um desconhecido a meter o nariz em b arco alheio. - Que tal? - saudou-me o capitão do porto enquanto atravessava a doca na minha direcção. Tinha à volta de sessenta a nos e um rosto enrugado como granito. - O senhor é o amigo d e Hartley, não é verdade? - Ben Bradford - retorqui, estendendo-lhe a mão. Apertou-ma secamente e depois olhou, admirado, para o saco de mantimentos e a grande mochila que eu já depositara no convés. - Com a quantidade de provisões que leva, parece qu e está a pensar

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em atravessar o Atlântico. - Nunca se sabe - gracejei. Ele reparou noutro grande saco que ainda estava no cais. - O que é que leva aí dentro? - inquiriu. As palmas das minhas mãos começaram a transpirar. Equipamento de mergulho. Não há nada que ver nestas águas, a não ser resíduo s de esgoto comentou ele. - Quer uma mãozinha? 71 Antes de eu poder recusar o favor, pegou numa das e xtremidades do saco. Eu saltei para o cais e peguei na extremidade oposta. - Pesa uma tonelada - disse ele, ajudando-me a içá- lo. - E está frio que nem o Pólo Norte. - Eu guardo as garrafas de oxigénio na garagem, que é fria como uma geleira. Lá conseguimos içar o saco para bordo e pousá-lo cuidadosamente. O capitão continuava a fitá-lo, enquanto eu tentava manter-me calmo. - Mergulhar em Novembro? - estranhou ele. - Antes v ocê do que eu. - Deu um pontapé no saco com o pé esquerdo. Gra ças a Deus, bateu na garrafa de aço, produzindo um bongue abafado. - Parece uma grande garrafa - comentou. - Qual é a autonomia? - Cerca de uma hora. - Parece-me mais que o suficiente. Bem, boa viagem. - Obrigado pela ajuda - despedi-me. Ele assentiu com a cabeça secamente, desceu para o cais e afastou-se. Eu desci até à cabina, caí pesadamente sobre um bel iche e tentei controlar a respiração. Porque estaria o cap itão a ser tão metediço? Suspeitaria de alguma coisa? Ou seria apenas um vel hote intrometido que não tinha mais nada que fazer a não ser meter-s e na minha vida? Decidi optar pelo velhote metediço. Afinal de conta s, ele não tinha razões para desconfiar de mim. E certamente n ão tinha percebido que acabara de me ajudar a trazer para bordo o cadá ver congelado de Gary Summers. Graças a Deus, eu tinha atirado a garrafa de mergulho para o mesmo saco do corpo. Meter Gary dentro do saco dera-me um trabalhão. Por volta da 1 da madrugada - depois de ter terminado a receita do Li vro de Receitas do Anarquista -, eu enfiara o meu Miata de marcha atrá s na garagem de Gary, fechando a porta atrás de mim. Levando o maio r dos sacos comprados na quarta-feira, desci até à cave e pus i mediatamente mãos ao trabalho. Abri o fecho de correr do saco e estendi plástico preto no chão.

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Abri a arca congeladora, consegui puxar Gary para a posição vertical, mas quase fiz uma hérnia discal ao tentar içá-lo pa ra fora. Estava sólido como uma rocha e tão frio que, quando lhe passei os braços à volta da cintura, mal consegui segurá-lo durante uns segundo s. Contudo, após várias tentativas lá o arranquei da arca conge ladora e o pousei sobre o plástico a metro. Vinte minutos depois, tinha o cadáver de Gary dentr o do saco e este no porta-bagagem do meu Miata. Decidi que poria tam bém na mochila o equipamento de mergulho mal regressasse a casa, num a tentativa de disfarçar o seu verdadeiro conteúdo. 72 Saí devagar com o Miata para o caminho de acesso à casa, fechei a garagem de Gary atrás de mim e atravessei a rua com os faróis apagados. Não olhei para trás. Não queria voltar a pôr os olh os naquela casa. Passadas poucas horas, estava na doca de New Croydo n a descarregar o meu equipamento. Depois de me despedir do capitão do porto e de me retirar para a cabina, esperei um bom quarto de hor a antes de voltar ao convés. Puxando o saco para baixo, retirei o equipa mento de mergulho e depois guardei Gary num armário por baixo do belich e situado a bombordo. A segunda mochila, que continha o barco d e borracha insuflável, foi parar ao paiol de combustíveis. Já passava do meio-dia: horas de rumar a Darien. A CASA DE PHIL E Lucy era como retroceder à era Eis enhower, com um alpendre de tijoleira adornado com estreitas col unas brancas. Uma grande bandeira americana pendia de um pau por cima da porta principal. Meti o meu carro no caminho de acesso à casa e deixei-me ficar ali por uns momentos, tentando controlar o meu medo. Em seguida, saí e toquei à campainha. Foi Lucy quem atendeu. - Ben - disse ela numa voz inexpressiva. - Olá, Lucy. - A ansiedade da minha voz era palpáve l. - Ele chegou - gritou ela por cima do ombro. Em seg uida, virando-se para mim, comentou: - É melhor entrares. Mal dei um passo em frente, Adam precipitou-se na m inha direcção, vindo do quarto de brinquedos na cave, e atirou-se para os meus braços. - Pai! Pai! - gritou ele. Agarrei-o e abracei-o com força. - Mãe, o pai chegou - anunciou o miúdo em voz alta. - Pois chegou. - Beth estava no lado oposto da sala , com Josh

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a dormir encostado ao seu ombro. Fez-me um rápido a ceno de cabeça. - Estás bem? - perguntei. - Vai-se andando - respondeu ela calmamente. - Vamos ao McDonald's - gritou Adam. - Vai buscar o teu casaco, matulão! - mandei eu. Ad am partiu a correr e fez-se um silêncio embaraçado. Fui eu que o quebrei. - Josh? não te tem deixado dormir? - Ontem à noite, dormiu cinco horas seguidas. - Isso parece um recorde. Posso ... - Claro - retorquiu ela, passando-me Josh com cuida do. A cabeça do bebé aconchegou-se ao meu pescoço. Emba lei-o para trás e para diante. Adam regressou à sala a correr, arrastando a canadiana 73 castanha atrás de si. Devolvi Josh a Beth com relut ância, sentindo um arrepio percorrer-me o corpo. Adam deu- me a mão. - Podes trazê-lo para casa por volta das cinco? - p erguntou Beth. - Ele foi convidado para uma festa. - Está bem. Posso levar a Volvo? Assim não tenho de mudar a carrinha. - Toma lá - retorquiu ela, entregando-me as chaves. - Às cinco, por favor. Mais tarde, não. No McDonald's, Adam comeu os seus habituais Chicken McNuggets e batatas fritas e brincou com o brinquedinho Disne y que acompanhava a refeição. - Quando é que vamos ao Disney World? - perguntou e le. - Havemos de lá ir um dia - retorqui, procurando no bolso um frasco de comprimidos. Meti dois na boca e engoli-o s com a ajuda da coca-cola. - O pai está a tomar remédios - observou Adam. O pai está a tomar dexedrina. O pai também gostava de ter um valium à mão. Porque esta conversa acerca do Disney World está quase a fazer o pai deixar-se ir abaixo. - Para onde vamos a seguir? - perguntei. - Brinquedos! Compra-me um presente? - Um grande presente. Fomos até Stanford e estacionámos em frente do Baby and Toy Superstore, na Forest Street. Adam irrompeu pela lo ja dentro. Passados momentos, encontrou a secção das bicicleta s e montou-se numa Schwinn vermelha de tamanho diminuto com rodinhas atrás. - Só se usares capacete. Uma empregada da loja meteu-se na conversa: - Temo-los em várias cores. Vermelho, creio eu - respondi. - Fica a condizer co m a bicicleta. Ela regressou momentos depois com uma caixa. - Eu levo-o na cabeça! - anunciou Adam, fazendo uma paragem momentânea enquanto a empregada apertava o capacete . Em seguida, arrancou de novo, pedalando à volta da sec ção das bicicletas. - É um rapazinho encantador - comentou a empregada.

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- É isso mesmo - repliquei. Adam ergueu o olhar por um instante e lançou-me um olhar de deslumbramento. O meu filho, o meu lindo filho. - Sabe que a bicicleta é para montar em casa - expl icou a empregada. - Mas não deve demorar mais de uma hora a montar. O coração caiu-me aos pés. 74 - Não tem uma já montada? Eu hoje não tenho muito t empo para estar com ele. Ela acenou com a cabeça com ar compreensivo, como s e me classificasse como outro dos paizinhos divorciados, tentando mitigar o seu sentimento de culpa com outro presente caro. - Tenho a certeza de que o gerente vai deixá-lo lev ar a que está em exposição - afirmou ela. Antes de sairmos do armazém, Adam também conseguiu que eu lhe comprasse um automóvel do Monstro das Bolachas com telecomando e um quartel de bombeiros Lego. Era tanta coisa que u ma empregada da loja me ajudou a levar tudo para a Volvo. Eram 3.30 . Só me restavam noventa minutos, e do céu, carregado, caía uma chuva miudinha e fria. - Podemos ir ao parque? - perguntou Adam enquanto e u o prendia no assento. Está a chover, matulão. Os parques não são diverti dos com tempo de chuva. - Eu quero andar na minha bicicleta! - Mas não no parque. Ainda apanhas uma constipação ... - Por favor, pai! Eu vou andar na minha bicicleta! E foi assim que acabámos por inaugurar a bicicleta de Adam no piso superior do Stanford Town Center Mall. Era o lugar mais sossegado do complexo - lá em cima havia apenas as duas casas de comida rápida -, por isso Adam pôde andar de bicicl eta para trás e para diante sem demasiados olhares desaprovadores. Primeiro ain da o segui, mas ao fim de vinte minutos no encalço da bicicleta de Ada m senti-me cansado, por isso parei junto a um balcão de um snack-bar a observá-lo. Tentei convencê-lo por duas vezes a deixar a bicicleta des cansar um pouco, tentando seduzi-lo com a oferta de um gelado. Por d uas vezes, ele respondeu: - Eu vou andar na minha bicicleta, pai. A certa altura, lá se sentiu cansado da maratona de ciclismo e aceitou um cone de baunilha. 4.20: restavam-nos apenas quar enta minutos. Mudámos para uma mesa. A mão livre de Adam agarrava com força de

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proprietário o guiador da Schwinn. - Tu és mesmo bom a andar de bicicleta, Adam. - Eu quero andar sem as rodinhas. - Talvez dentro de um ano, mais ou menos, possas ti rá-las. - O pai ensina-me? Mordi o lábio com força. - Ensino, sim, matulão. - Levamos a bicicleta para o Disney World e para o Jardim Zoológico... 75 Enquanto ele cantava a sua doce litania das vezes f uturas em que estaríamos juntos, perdi o combate em que me debatia há horas. - Porque é que está a chorar, pai? Os olhos dele estavam muito abertos de medo. Abrira m-se ainda mais quando os meus soluços se tornaram incontroláveis. Apertei-o contra mim. E mantive-me assim abraçado, como se ele pudes se de algum modo levar-me de volta para a vida que eu estava pr estes a perder. - Pare com isso, pai. Pare. Ficou hirto nos meus braços, aterrado. Mas eu não c onseguia parar, eu tinha perdido tudo. Estava agora em queda livre. - Ei, ei? EU - Senti uma mão apertar-me o ombro. Af rouxei o meu abraço por um momento, e Adam saltou-me dos braços, correndo pelo corredor fora. Ergui o olhar. O gerente do snack-ba r estava junto a mim com uma expressão estranha no rosto. - O senhor est á bem? - Estremeci, desorientado, com a visão nublada pelas lágrimas. - Tenha calma, eu vou chamar um médico. - Não é preciso, não é preciso - consegui articular . - Estou nervoso, só isso. - O seu filho também está. - Adam ... - Levantei-me em pânico, não o vendo. De pois, ouvi-o chorar. Estava de cócoras encostado a uma parede al i próxima. Tentei aproximar-me dele, mas o gerente do snack-ba r, um homem musculoso na casa dos quarenta, deteve-me. - Ele é mesmo seu filho? - indagou. Tentei afastá-lo, mas a mão dele segurou-me pelos c olarinhos e puxou com força. - Pergunto-lhe mais uma vez, amigo. Este miúdo é se u filho? - Claro que é meu ... Debati-me para me soltar, mas ele apertava-me com a r ameaçador. Fui conduzido até Adam, que estava lívido de medo. - Este é o teu pai? - perguntou-lhe o gerente. Adam conseguiu acenar afirmativamente com a cabeça, aterrado. - Tens a certeza? Não tenhas medo, garoto. Adam levantou-se, ficando petrificado por um moment o, e depois atirou-se às minhas pernas a chorar. O gerente acab ou finalmente por largar-me o colarinho. Ajoelhei-me e apertei Ad am nos meus

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braços, sussurrando: - Desculpa, desculpa. - Embalei-o devagarinho até a s lágrimas dele pararem. O trânsito depois das compras estava compacto, e só chegámos a casa de Phil e Lucy às 5.40. 76 No momento em que entrei no caminho de acesso à cas a, Beth saiu porta fora à chuva. - Parabéns. Foste perfeito! - exclamou ela. - O trânsito estava horrível - desculpei-me eu, sai ndo do carro. - Eu disse-te às cinco em ponto. Agora, ele já perd eu a festa - retorquiu Beth, retirando Adam do seu assento. Fi nalmente, viu o arsenal de brinquedos no automóvel. - Estás doido? - Ele queria uma bicicleta, por isso ... - Nem penses, nem penses. Nós não aceitamos. Eu não quero o teu complexo de culpa. Eu não quero nada vindo de ... - Por favor, Beth. Deixa-o ficar ... Ela arrancou-me as chaves da carrinha da mão. - Vai-te embora, está bem? Vai. Virou costas-e correu com Adam, sob a chuva torrenc ial, para dentro de casa. Corri atrás deles, mas ela bateu com a por ta precisamente no momento em que eu alcançava o patamar. A chuva esta va diluviana, mas eu não me importei. Continuei a bater à porta, aos gritos, pedindo para me deixarem entrar. Lá dentro, só havia silêncio. A fastei-me da porta, sentindo-me derrotado. E no momento seguinte vi-a. Olhava-me através de uma janela, parecendo desamparada. Por um breve instante, os nossos olhares fixaram-se mutuamente. Foi um momento de te rrível indecisão. Um momento em que a cortina da inimizade se levanto u, e a única coisa que conseguimos vislumbrar foi a tristeza. Mas depois esse momento chegou ao fim. Ela articulo u duas palavras: - Lamento muito. - Não era um pedido de desculpa, a penas uma declaração de que tudo tinha terminado. Estava tudo acabado, tudo acabado. Era tempo de pôr termo a tudo. NESSA NOITE, saí de casa. Escrevinhei um recado par a Beth e deixei-o em cima da mesa da cozinha. Fui muito claro: Bill emprestou-me o barco para o fim-de-semana. Vol to terça-feira à noite. Ficarei em casa de Bill e de Ruth durante as próximas semanas. Apareço na quarta-feira para ver os miúdos. Amo-vos a todos.

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Tomei um duche e vesti a roupa que iria usar no dia seguinte: calças de caqui, uma camisa com botões no colarinho, uma c amisola grossa, sapatos de vela e um blusão Nautica. Procur ei de novo nos bolsos para me certificar se a carteira e as chaves de Gary estava m separadas das minhas. Estava na hora de partir, de bater com a porta atrá s de mim, de dar o 77 passo final. Olhei fixamente para as fotografias da família presas a um quadro de avisos e recados na parede da cozinha. Di rigi-me a ele e peguei numa fotografia de Josh sentado ao col o de Adam. Sempre gostara imenso dela - e, por um breve instante, decidi que tinha de a levar comigo. Mas para onde eu ia não eram permitid as quaisquer provas do passado, por isso voltei a fixar rapidamente a f otografia no quadro. Bill e Ruth já estavam a dormir quando cheguei a ca sa deles. Tinham deixado uma garrafa de Laphroaig e um copo na mesa-de-cabeceira juntamente com um bilhete: «Reméd io santo para a insónia.» Meti-me entre os lençóis, bebi um copo de um trago e enchi outro. De certeza que Beth ia deixar Adam ficar com a bicicleta, não ia? Mesmo que persistisse na sua teimosia, com certeza que mudava de ideias na t erça-feira. Quando o telefone tocasse em casa e ela ouvisse a notícia. A próxima coisa de que me lembro foi de Bill a aban ar-me. - Levanta-te e rejubila, marinheiro - exclamou ele. - Levantar, levanto-me, mas rejubilar é que não - r esmunguei. Meia garrafa de malte provoca sempre esse efeito. Ruth ainda estava a dormir enquanto Bill e eu fomos no jipe dele até ao porto. - Ouve - disse ele -, tens a certeza de que aguenta s sozinho no mar durante duas noites? Ficamos ambos preocupados. Quer dizer... Não vou atirar-me à água, se é isso que queres dize r. É isso mesmo que quero dizer. Não é o meu estilo. Ainda bem. Eram 8 horas quando chegámos ao porto. O céu estava de um azul profundo. Soprava um vento noroeste cortante. Um di a perfeito para fazer vela. - Bem - despediu-se Bill -, é melhor ir-me embora. Theo espera-nos por volta das dez. Quando chegares, na terça-feira, dá- me uma apitadela que eu venho buscar-te. Além disso, c omo é óbvio, se tiveres problemas utiliza o rádio para me contactar es pelo telemóvel. - Não vai haver problema. Atirei-lhe as chaves do meu carro para o caso de el e vir a precisar de

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retirar o Miata do caminho de acesso a casa dele. D emos um aperto de mão. - Vai com calma - recomendou ele. - Obrigado mais uma vez, meu amigo - repliquei Subi para bordo, dirigi-me ao leme e rodei a chave de ignição. O motor roncou, dando sinal de vida. Bill desamarro u o Blue Chip do cais e atirou o cabo para o convés. Eu engatei à vante, ac elerei e comecei lentamente 78 a sair do porto de New Croydon. Fiz um aceno de cab eça final na direcção de Bill. Ele ergueu lentamente a mão num s ombrio e apreensivo gesto de adeus. Segui a motor durante cerca de meia milha; depois, icei a vela grande e o estame e naveguei para leste ao longo do Long I sland Sourid. Naveguei durante todo o dia. Perto de Old Lyme Shor es, a luz começou a escassear. Quando fundeei, uma milha ao l argo de Harkness State Park, o dia dera lugar à noite. Perscrutando a prai a com os meus binóculos, não vi vestígios de fogueiras de ac ampamentos. Graças a Deus, não era Verão, época em que o parque estaria cheio de v eraneantes. Depois de arriar as velas, fui lá para baixo. Estav a na hora de começar. Sentia um aperto no estômago, mas contr olei-me, pensando: «Vai fazendo tudo passo a passo.» Um. Calcei as luvas cirúrgicas e depois fui buscar o saco que continha o barco de borracha. Depois de o insuflar com a bomba de pé prendi-lhe um cabo, meti os remos no fundo e puxei-o para o convés. Dois. Mudei de roupa, vestindo um fato de treino e ténis pretos. Em seguida, guardei a carteira e as chaves de Gary num dos bolsos de trás. Três. Desembrulhei o corpo de Gary. Ainda estava fr io ao toque. Com uma tesoura forte, cortei as roupas que ele tinha v estidas e meti-as num saco de lixo preto. Equilibrando-o à beira do belic he de bombordo, vesti-o com a roupa que eu próprio acabar a de despir. Em seguida, depois de afastar para trás os cobertores, deitei-o no belich e. Meti-lhe a minha carteira e as chaves de casa no bolso e ent alei os cobertores, cobrindo-o. Parecia estar a dormir tranquilamente. Quatro. Desencantei os dois bidões de gasóleo. Ench arquei com este a cabeça, as mãos e o corpo de Gary. Em seguid a, molhei também as paredes e chão da cabina com o restante gasóleo antes de atirar os dois bidões para dentro do saco de plástico. Cinco. Colei os dois tubos de cartão previamente ch eios às

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anteparas de bombordo e estibordo. Inverti os dois frascos de ácido e introduzi-os de rolha para baixo na extremidade superior de cada tubo. Tinha criado um dispositivo incendiário conhecido por bomba-mami lo. Dentro de umas sete horas - segundo O Livro de Receitas do An arquista -, o ácido teria desfeito a rolha e penetrado naquele composto altamente inflamável de substâncias químicas. O res ultado seriam duas enormes bolas de fogo que rapidamente envolveriam Gary. Seis. Utilizando o GPS do Blue Chip, programei uma viagem para sudeste a uma velocidade de sete milhas náuticas po r hora. O barco atravessaria o Sound em piloto automático, ap roveitando em seguida a baixa-mar para atravessar a Race - uma passagem d e água estreita 79 com fortes correntes de maré a sul da ilha Fishers. Passado esse estreito, deixaria Montauk Point a estibordo e Blac k Island a bombordo, em direcção ao Atlântico. Quando as bombas explodissem , o barco estaria a trinta milhas da costa mais próxima. O fogo devorar ia tudo. Gary seria cremado. A bilha do fogão a gás detonaria. E, como se estari a a meio da noite, passariam pelo menos cinco horas até que os peritos de medicina legal chegassem ao local para inspeccionar quaisque r destroços que ainda restassem. Cinco horas no mar era tempo sufic iente para eliminar as quantidades excessivas de gasóleo utilizadas para d estruir o barco e dispersar as provas. Em suma, pareceria apenas ter havido um ter rível acidente. Sete. Meti o saco de plástico numa das mochilas e s ubi para o convés. Pondo o saco no bote, lancei-o à água, prendendo-o à popa do Blue Chip. Depois, levantei ferro e arrumei-o. Em seguida, lig uei o motor e corri para a popa quando o barco começou a mover-se. Contudo, ao tentar saltar para bordo do bote de bor racha, escorreguei, acabando por cair nas águas gélidas do Sourid. Agarrei-me à borda do barquito, tentando respirar. O Blue Chip começav a a afastar-se. Nado como um louco até à sua popa, desatei rapidamente o nó e voltei a cair nas águas do Somid. Quando o Blue Chip já ia distan te, agarrei-me ao cabo, puxando o bote de borracha para mim e içando- me para bordo. Quase se virou sob o peso do meu corpo. Com as mãos em concha,

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deitei fora a maior quantidade de água enlameada possível, mas ainda ficou bastante no fundo. Pegando nos remos, remei para te rra, tiritando de frio. Levei meia hora a chegar à praia. Assim como tudo o resto que se encontrava dentro da mochila, a minha lanterna e stava encharcada: não acendia. O vento soprava, o meu fato de treino esta va ensopado e eu não tinha luz para ver o caminho desde o parque até à e strada. Esvaziei o barco de borracha, dobrei-o e meti-o na mochila. Em seguida, comecei a andar, com a mochila, pesadíssima, sobre o meu ombro direito. Cheguei a um caminho alcatroado e segui-o através do parque, escuro como breu; o saco ia-se tornando mais pesado a cada passo. Levei vinte minutos a chegar aos portões do parque. Tinham apen as cerca de um metro e vinte de altura. Atirando a mochila à minha frente, saltei o s portões e prossegui a minha lenta caminhada. Os últimos quinhentos metros foram uma verdadeira a gonia, pois o saco tornara-se num torturante peso morto. Aterrou a meus pés quando cheguei ao portão da quinta. Atirei-o para o outro lado, saltei o portão e encaminhei-me para o maciço de árvores. Quando lá c heguei, chocava continuamente com ramos. Mas prossegui, até que, de súbito, embati em qualquer coisa dura. Procurei por entre as folhas e descobri a capa de automóvel. Retirando-a, procurei as chaves no bolso do fato de treino. 80 Abrindo o porta-bagagem do MG, peguei num conjunto de roupa limpa e numa toalha que se encontravam no saco de viagem de Gary e atirei a mochila para junto deste. Abri a porta do assento d o condutor, liguei o motor, pus o aquecimento no máximo e voltei a sair do carro. Enquanto o interior deste aquecia, despi as roupas molhadas. D epois de vestir a nova muda de Gary, saltei para dentro do MG, que já esta va quente. Eu ainda cheirava muito a maresia. Tentei pentear o cabelo com os dedos, mas o meu aspecto final era o de um fugitivo fantasmagórico e encharcado. Se um polícia me mandasse parar, de cer teza que eu não lhe inspiraria confiança. Engatei a marcha atrás com ne rvosismo, mas mal tinha retrocedido uns centímetros, travei d e repente e saltei

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para fora. Tinha-me esquecido da roupa ensopada e da capa. Bri lhante. Nada como deixar um rasto de provas. Embrulhando-os numa gran de bola, atirei-os para junto da mochila no interior do porta-bagagem. Conduzindo sem luzes, dirigi-me muito lentamente por entre as árvores até chegar a campo aberto. Abri e fechei rapidamente o portão da quint a e alcancei a estrada, já com os faróis acesos; ia repetindo para comigo: «Chamo-me Gary Sunimers e sou fotógrafo.» CONDUZI DURANTE toda a noite. Conduzi durante todo o dia. Concentrei-me nos números. Números de estradas : da 95 para a 78, a 76, a 70. Nos arrabaldes de Kansas City, o meu cé rebro cedeu. Visão tripla, uma sensação súbita de náuseas, sobrecarga de dexedrina. Precisava urgentemente de uma cama. Evit ei dois pequenos motéis de estilo familiar e entrei numa estalagem grande e anónima c hamada DaysInn, onde me registei com o nome de G. Summers. A decora ção do quarto deixava um pouco a desejar, mas não me importei. Pe ndurei do lado de fora da porta a placa NÃO INCOMODAR, enfiei-me entr e os lençóis rígidos e gelados e deixei-me morrer. Não me mexi durante doze horas. O relógio digital d e cabeceira indicava 6.07 da manhã. Durante alguns minutos de c onfusão, admirei-me: «Porque é que Josh não está a chorar?» Mas depois a percebi-me da realidade. Bom dia, estás morto. Tactiei em busc a do comando da televisão e cravei o olhar, semidesperto, no noticiário CNN Hea dline News. Uma 81 demissão na Casa Branca. Mais divertimentos na Bósn ia. Nada relativamente a uma explosão a bordo de um pequeno barco ao largo de Mtauk Point. Tomei um duche, mas não fiz a barba; tentaria camuf lar as minhas feições sob uma barba hirsuta. Pus óculos escuros e um boné de basebol. Saí da estalagem e fiz-me à estrada. As horas iam passando. Chegou a noite. Fronteira es tadual do Colorado. E aproximando-se rapidamente atrás de mim , as luzes azuis de um carro-patrulha das auto-estradas. O meu pulso desco ntrolou-se completamente. Tinham encontrado o barco. Intacto. Com o cadáver de Gary e as duas bombas por rebentar. Tinham passado revista à casa de Gary. apercebendo-se da ausência do automóvel e dep ois haviam emitido ordem de busca de um MG com matrícula do Connecticu t. E agora

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polícias do Colorado iam-me prender. As sirenes uiv avam. As luzes do carro-patrulha encheram o meu espelho retrovisor. E u sabia o que ia fazer. Mal estivessem quase a tocar-me no pá ra-choque, viraria bruscamente para a esquerda, passaria por cima da d ivisória da estrada e atravessava-me no caminho de um camião vi ndo em sentido contrário. Mas precisamente quando o carro da Polícia estava muito próximo da minha retaguarda, desviou-se para a esquerda e acelerou e m perseguição de uma carrinha que seguia a cento e cinquenta à hora à minha frente. Apanhei a saída seguinte e entrei no primei ro motel que encontrei. Mas não conseguia dormir, convencido de que era apenas uma questão de tempo até ouvir baterem à minha porta. Estava de regresso à estrada interestadual imediata mente após o nascer do Sol. Cheguei aos arredores de Denver po r volta das 10. Parei num McDonald's e comprei um New York Times. Na segunda secção, no canto inferior da página 4, encontrei a história: ADVOGADO DESAPARECIDO, TEME-SE PELA SUA MORTE EM EXPLOSÃO DE BARCO. Receia-se que Benjamin Bradford, sócio júnior da so ciedade de advogados Lawrence, Cameron and Thomas, da Wall Str eet, tenha morrido na sequência da explosão de um barco à vela, duassete milhas a leste de Montauk Point, LI. «Pelo que sabemos até ao momento , um incêndio envolveu a cabina do veleiro, que ardeu ra pidamente», disse o porta-voz da Polícia Marítima, L. Jeffrey Hart. «Embora não poss amos pôr de parte qualquer outra hipótese, consideramos que se deve t ratar de um acidente.» Li e reli a história, levando algum tempo a apreend ê-la. «Consideramos que deve tratar-se de um acidente.» A minha mente parecia 82 desenfreada. Quando os polícias chegassem à conclus ão de que eu não tinha inimigos homicidas e que, se tivesse tendências sui cidas, teria simplesmente saltado para a água, arquivariam a minha morte sob o título de acidente trágico. Eu ia escapar. E, contu do, não me sentia triunfante, apenas estonteado. O meu passado fora erradicado. Adeus responsabilida des, adeus laços afectivos, adeus vida anterior. Pergunta: qua ndo limpamos uma ardósia, o que é que encontramos por baixo? Res posta: uma ardósia em branco. Resposta alternativa: a liberdade. A vid a sem fardos por que sempre suspirámos. Mas quando nos vemos finalmente confron tados com essa

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liberdade - a tal ardósia em branco -, só se sente medo. Pois a liberdade absoluta, sem quaisquer laços, é como o lhar fixamente para um vazio sem caminhos, um reino sem estrutura. Pus o meu big mac de parte sem lhe tocar e voltei para o carro. Segui em frente. D irecção: parte nenhuma. Durante as semanas que se seguiram, limitei-me a va guear, percorrendo as estradas interestaduais como um navi o fantasma. Foi-se delineando um padrão de comportamento: um di a na estrada, uma noite num motel. Pagar só em dinheiro. Nada de conversas. Ape nas algumas frases: «Encha o depósito ... » «Pode trazer-me um batido c om o cheeseburger?» Nunca ficava mais do que uma noite no mesmo lugar. Nunca saía das estradas interestaduais, pois temia as pequenas pov oações onde as pessoas se poderiam sentir interessadas por um f orasteiro de passagem. Perscrutava diariamente o New York Times. Finalment e, quando estava algures nas proximidades de Provo, no Utah, o Times publicou outra história de Ben Bradford. HOMICíDIO EXCLUíDO COMO CAUSA DA MORTE DE BRADFORD Doze dias após o barco que pilotava se ter incendia do e explodido no Atlântico, os investigadores da Polícia puseram de parte a hipótese de homicídio na morte do advogado Ben Bradford, da Wal l Street. O caso não será objecto de mais investigações. Era esta a notícia que eu ansiava por ler, a sensaç ão de «tudo esclarecido» que dela emanava. Mas continuei a segu ir apenas pelas estradas interestaduais. Todas as viagens têm uma e strutura lógica: partimos e depois regressamos. Mas a minha transfor mara-se numa corrida infindável ao longo de um corredor de cimento armado. Na última terça-feira de Novembro, cheguei a Rock S prings, no Wyorning, uma pequena povoação isolada na estrada 1 -80. Entrei no Holiday Inn, abri a agenda electrónica e redigi uma carta para Beth. 83 2 de Dezembro de 1994 Berkeley, CAB: Saudações da República Popular de Be rkeley. O contrato da Baixa C. não correu tão bem como se esperava. O editor fo tográfico da revista achou o meu trabalho demasiado duro e gráfico. Toda a gente quer amenizar as imagens. Eu sei que não devia escrever-te para casa, mas ach ei preferível falar-te directamente e sem rodeios. Enq uanto estava instalado em

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San Felipe, liguei-me a uma fotógrafa chamada Laura, da Bay Are a. Ela estava de férias, e o que ambos pensávamos era apen as num fim-de-semana com mais qualquer coisa à mistura. A verdade é que eu a cabei por segui-la até Berkeley, onde ela vive. Desculpa acabar tudo desta maneira, mas devemos reconhecer que entre nós foi apenas um devaneio. Ficará sempre uma recordação agradável - são poucas e só de longe em longe! Cuida de ti. G. A carta era um pouco áspera, mas o que eu queria so bretudo era enfurecer Beth de tal maneira que ela nunca mais qu isesse voltar a ter nada a ver com Gary. Satisfeito com o meu trabalho de reda cção, meti uma folha de papel na impressora Canon Bubble-Jet e carreguei no botão PRINT para imprimir. Em seguida, dactilografei o nome e e ndereço de Beth no computador e imprimi um envelope. Dobrei a carta, m eti-a no envelope e depois noutro maior, já selado e endereçado para a Estação de Correios Alternativa de Berkeley. Meti ainda uma nota de dez dólares presa a um cartão: «Por favor, enviem esta carta. Gary Sunimer s.» Na manhã seguinte, depois de sair do motel, meti o envelope na caixa de correio. Eu levaria pelo menos quarenta e oito h oras a chegar à Califórnia, razão pela qual datei a carta de Gary com 2 de Dezembro. Depois de a receber, o pessoal da Estação Alternativa de C orreios enviá-la-ia para Beth, com o necessário carimbo de Berkeley. Fui até ao MG no parque de estacionamento do motel, entrei e abri meu mapa Rand McNaIly das estradas. Seguindo para o este pela 1-80, chegaria a Salt Lake City; se fosse para leste, aca baria no Nebraska. Duas opções deprimentes. A única outra estrada que saía da cidade era a 191, uma estrada asfaltada de duas faixas que segui a para norte em direcção às montanhas. Há semanas que eu e vitava as estradas secundárias, agarrando-me ao anonimato da auto-estrada. Mas agor a, depois de a morte de Ben Bradfford ter sido decretada acidental , eu já não tinha de viver como um fugitivo nocturno. Optei pel a estrada secundária. 84 Passei aquela noite em Jackson, no Wyoniing. Ao alv orecer da manhã

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seguinte, já rumava a oeste pela Estrada 22. Tombar a um forte nevão durante a noite. Embora a estrada tivesse sid o desobstruída havia pouco, ainda continuava perigosa. O MG derrapou por duas v ezes. Por duas vezes, consegui recuperar o controle do carro antes que ele se precipitasse por uma ravina abaixo. Seguia lentamente, a quarent a à hora, com os dentes a baterem, quais castanholas. O aquecimento bem se esforçava, quase em vão contra a temperatura exterior de cator ze graus negativos. No Idaho, meti pela Estrada 33. As horas foram-se a rrastando. Por volta da 1 daquela tarde de 1 de Dezembro, passei p or uma tabuleta que me dava as boas-vindas em nome da Região do Céu Abe rto: era o estado do Montana. O céu estava completamente tapado; acim a de nós, havia apenas uma cúpula cinzenta de neve. Encontrava-me n a Estrada 287. À minha frente iam as luzes cintilantes de uma máquin a limpa-neve. Segui no seu rasto enquanto me abria caminho. Durante trê s longas horas, fui no seu encalço até desembocar, são e salvo, na Estr ada Interestadual 90. Eram cerca de 4 horas. Eu conduzia desde a madrugad a, mas a neve começava a escassear, e eu não conseguia seque r pensar em retirar-me tão cedo para outro quarto de motel. Por isso, virei pa ra oeste. Oitenta quilómetros após ter entrado na 1-90, a nev e transformou-se em gelo. Cento e vinte quilómetros depois do início da Estrada 1-90, quase colidi com um alce americano quando a neve recomeçou a cair. Depo is de percorridos duzentos e quarenta quilómetros na Estrada 1-90, o nevoeiro envolvia-me de tal modo que eu mal consegui ver a tabuleta de s aída para a cidadezinha de Mountain Falls. Parei num Holiday Inn por ser o primeiro sítio que vi. - O início de Dezembro é sempre assim? - perguntei à recepcionista, qe se encontrava atrás do balcão de entrada. - É verdade - retorquiu ela - É assim o Inverno no Montana. De manhã, as nuvens de neve tinham-se dirigido para sul. Feixes de luz atravessavam as cortinas de plástico do meu qua rto. Saí do Holiday Inn à procura de um lugar onde tomar o pequeno-almo ço. Talvez fosse por ver toda aquela neve virgem, ou talvez porque e stivesse simplesmente predisposto a abandonar a estrada. Fos se qual fosse a

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razão, após uma caminhada de cinco minutos por Mountain Fals perceb i que ia permanecer ali durante algum tempo. A rua principal chamava-se Main Street. Na extremid ade norte, começavam as montanhas. Para sul, havia um rio cham ado Coppeitead. Entre ambos, estendia-se um quilómetro de velhos ed ifícios de tijolo, incluindo um bar e churrasqueira chamado Mo untain Pass. 85 Quando entrei, pensando em pequeno-almoço, já lá es tavam cinco homens robustos a beber cerveja ao balcão. Ergueram o olhar à minha chegada, mas não me agraciaram com um sorriso . A empregada, porém, - uma mulher rechonchuda com permanente e um buço de respeito -, dirigiu-me um leve sorriso de boas-vindas enquan to eu me esgueirava para um privado perto da cozinha. - Está com fome? - perguntou-me. Acenei que sim com a cabeça. - Então, o mais indicado é o nosso pequeno-almoço M ountain Man por quatro dólares e noventa e cinco. Foi-me servido passados cinco minutos. Um bife, doi s ovos, três panquecas, uma enorme pilha de batatas fritas caseiras. Só consegui comer metade. - Pensei que estivesse com fome - exclamou a empreg ada, aproximando-se com um púcaro com café. - Com tanta, não. De súbito, a porta escancarou-se, e um homem robust o com um blusão de lã já muito usado entrou, cambaleante. Ti nha à volta de quarenta anos e uma fisionomia de bêbado: veias vermelhas e azuis cruzavam-lhe as maçãs do rosto, e o nariz era bulboso. - Rudy! - gritou a empregada. - Sai imediatamente. - Ora, então, Joan - replicou Rudy. - Não podes imp edir-me de entrar aqui para sempre. - Queres apostar? - Apenas uma chávena de café. - Charlie! - gritou a empregada. Apareceu um brutamontes vindo da cozinha. Com mais de um metro e oitenta, tinha troncos de árvore em vez de braços . Numa das mãos segurava um taco de basebol. Rudy retrocedeu e m direcção à porta. - Já percebi - anunciou ele, e depois desapareceu. - Quem é o seu amigo? - perguntei à empregada. - Quer dizer que não o conhece? - Sou novo na terra. - Lá isso deve ser, porque, se vivesse em Mountain Falls, conheceria Rudy Warren. Sobretudo se lesse o jornal local. - Ele é jornalista? - É. Escreve para o The Montanan. Além disso, é bêb ado. Há seis semanas entrou aqui, bebeu uma dúzia de imperiais, pegou num banco, atirou-o para dentro do balcão e depois voltou a sa ir. Quatrocentos dólares de prejuízo. - E ele pagou? - Pagou, mas aqui é que ele não volta a beber. Nem pensar.

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86 Saí do Mountain Pass e segui à toa pela Main Street . Passei por três cafés, duas livrarias com aspecto decente, uma gale ria de arte contemporânea e pelo Fred's Hole - um bar de aspect o suspeito que anunciava «Noite de Striptease Amador» para esse serão. Agrad ou-me a mistura de desleixo, característico do Oeste, e intelectualida de cosmopolita que impregnava a cidade. Agradava-me ai nda o facto de ser uma cidade com cerca de trinta mil habitantes, segundo os números oficiais - acolhedora, mas suficientemente grande para se pass ar despercebido no meio dela. O frio começava a penetrar-me os ossos. Dirigi-me a uma máquina de Multibanco e levantei 250 dólares da conta de Ga ry. Em seguida, entrei num armazém de artigos desportivos e comprei uma parka comprida e grossa e um par de botas forradas. Ao lado da loj a havia uma agência imobiliária, aberta aos sábados durante todo o dia, segundo o horário afixado na porta principal. Entrei. Uma mul her na casa dos quarenta e muitos - loura, de blazer e saia de twee d - estava sentada atrás de uma secretária. - Olá, bom dia - saudou-me ela. - Como está? - Estou óptimo, obrigado - respondi, surpreendido c om o tom extremamente afável. - Alugam apartamentos? - Claro que sim, Mr ... - Sunimers. Gary Summers. Estendeu-me a mão. - Meg Greenwood. Que tipo de casa procura, Gary? - Um único quarto. Qualquer coisa central. - Para si e para a sua mulher? - Sou solteiro. Os lábios dela esboçaram um sorriso. - Como é que escapou à rede? - Desculpe? - Foi apenas uma piada. Que preços pretende? - Sou novo na cidade, por isso não sei ao certo ... - Os apartamentos T1 custam entre quatrocentos e ci nquenta e sete centos dólares por mês. Tenho um T1 e meio por seis centos dólares no Frontier Apartments. Conhece o edifício? - Como já disse, sou novo em Mountain Falls. - Vem do Leste, não? - Hmin, venho. Como é que ... - Conhecem-se sempre os iguais. Eu própria sou do C onnecticut. E você? - Connecticut. 87 - Está a brincar! Donde?

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- New Croydon. - Não posso acreditar. Eu nasci e cresci em Darien. Tive vontade de fugir porta fora. - Bem, rapaz de New Croydon, o que o traz ao Montan a? - Um trabalho fotográfico. - Então, é fotógrafo? Tinha de cortar com aquela conversa rapidamente. - Sou. Então, e essa casa no Frontier Apartments .. . - Bem, fica apenas a dois quarteirões daqui. Tem de z minutos para ir até lá? - Claro. A caminho do apartamento, Meg bombardeou-me com per guntas. - Então, para que revistas trabalha? - Estou a trabalhar num livro - menti. - Sobre o Mo ntana. - Então, anda à procura de uma base para vários mes es? - Exactamente. Chegámos aos Frontier Apartments e subimos até ao t erceiro andar no minúsculo elevador. - Eu própria vivi aqui durante um mês depois de me divorciar - contou ela. - Mas, claro, depois de receber o dinhe iro da venda da nossa casa, pude comprar um belo T2 em Sha winut Valley. Tenho de o levar lá um dia. - Outro sorrisinho insinuante. O elevado r parou com um solavanco. - Bem, cá estamos nós - anunciou ela, parando em frente a uma porta de madeira bastante estragada. - Agora, a ntes de entrarmos, devo dizer-lhe que a decoração é um pouco antiquada , mas o espaço é magnífico. Antiquada era o termo profissional. Papel às flores de há várias décadas, tapete cor de ferrugem, muito coçad o, cama de casal com uma cova ao meio. - É isto que seiscentos dólares por mês podem aluga r em Mountain Falls? - inquiri. - A localização é fantástica, e veja só o espaço. Ela tinha uma certa razão. A sala e o quarto princi pal eram espaçosos, e havia um pequeno quarto estreito que daria uma be la câmara-escura. Mas aquela decoração sinistra teria de desaparecer. - Não levantaria objecções a que eu alterasse isto tudo, pois não? - perguntei. - Nós apenas gerimos a propriedade. Os donos vivem em Seattle. Utilizam isto como investimento, por isso eu acho q ue poderia falar-lhes nesse assunto. Desde que não pense fazer nenhuma al teração radical. 88 - Eu sou do Connecticut. A palavra «radical» não fa z parte do meu vocabulário. Ela riu-se e depois acrescentou: - O tempo de aluguer mínimo é seis meses. - Isso não deve ser problema ... a quinhentos e cin quenta por mês. - Você é mesmo do Connecticut. Regressámos ao escritório. Ela fez uma chamada para Seattle e

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gabou ao proprietário da casa o maravilhoso novo in quilino que acabara de arranjar e explicou-lhe que ele desejava renovar o apartamento a troco de uma redução na renda de 50 dólares por mês. O propr ietário pareceu-me um pouco difícil de convencer, mas Meg Greenwood ac abou por levar a sua avante. - Foi preciso alguma conversa, mas o apartamento já é seu - disse-me ela depois de desligar. - Um depósito de u m mês como caução e um mês adiantado, claro. Além da taxa cobrada pela agência, que é de duzentos e setenta e cinco dólares. Fiz umas contas rápidas. Depois do que eu levantara hoje, a conta à ordem de Gary tinha um saldo de 3165 dólares. A min ha mudança ia custar-me 1375 dólares. Teria de pagar mais 550 dól ares dali a um mês, o que me deixaria com o total magnífico de 1240 para cobrir as oito semanas, até que o pagamento seguinte do fundo fosse creditado na conta. Ia ter de apertar o cinto. - Quando posso mudar-me? - perguntei. - Segunda-feira de manhã, creio, se lhe convier. - Óptimo. Venho assinar o contrato de arrendamento às dez, se for uma boa hora. - A mim parece-me bem. Hum..., não pode dar-nos alg umas referências? Fiquei quase sem respiração. - isso poderia levar alguns dias - retorqui. - O me u banco fica muito a leste e ... - Não há ninguém aqui na cidade que possa dar refer ências sobre o seu carácter? Lancei-lhe um grande sorriso insinuante e respondi: - Só você. Ela aceitou a insinuação atrevida. - Creio que vou ter de aceitar a sua palavra de hon ra de New Croydon de que é honesto a pagar a renda. Passei o resto do fim-de-semana a matutar sobre Meg Greenwood. Imaginava-a a telefonar a todas as amigas que tinha em Darien dizendo-lhes que tropeçara num espécime dos mais ra ros que existe: um 89 homem sem ligações amorosas. Precisava de erguer ra pidamente uma barricada à minha volta. - Olá, rapaz de New Croydon! - exclamou Meg à minha chegada ao seu escritório na segunda-feira de manhã. - Bom dia. Ao sentar-me, meti a mão no bolso de dentro da minh a parka e retirei de lá um maço de notas levantado de uma máquina. Co ntei as notas empilhei-as com cuidado em cima da secretária dela. - Um cheque serviria muito bem - disse ela ao ver o dinheiro. - Pois servia, mas você levaria uns dois dias a rec ebê-lo do meu

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banco de Nova Iorque. Tem aí o contrato? Ela entregou-me um documento de três páginas. Li-o atentamente e, depois chamei-lhe a atenção para uma frase específi ca. - olhe, a cláusula quatro assusta-me um pouco - com entei. - E a expressão «direitos do proprietário». Isto impl ica que o contrato com o inquilino será rescindido se o senhorio decidir rei vindicar os seus privilégios absolutos de propriedade sobre a c asa, como garantido pela escritura de constituição da propriedade? Ela pareceu-me estupefacta. - Julguei que você fosse fotógrafo! Seu idiota! Senti campainhas a tocarem na minha cab eça, avisando-me de que devia reparar os estragos. - O meu pai trabalhava na imobiliária - expliquei, tentando sorrir. - Passei várias férias de Verão a trabalhar no escr itório dele. Por isso, os contratos de arrendamento são uma especialidade inú til que eu tenho. - Ele ensinou-o muito bem. Mas nós aqui não temos g arantias de direitos do proprietário, por isso todos os contrat os de arrendamento trazem uma cláusula relativa a direito s do proprietário. - óptimo - retorqui, não desejando continuar a expl orar este campo. Peguei numa caneta e assinei as duas cópias do cont rato. Ela entregou-me as chaves, e apertei-lhe a mão. - Você foi fantástica, Meg. - Levantei-me. - Uma última coisa - disse ela. - Está livre para j antar alguma destas noites? - Gostava muito - repliquei, dirigindo-me para a po rta. - Mas que tal daqui por umas duas semanas, quando eu e Ra chel já estivermos instalados na cidade? - Rachel? Quem é Rachel? - A minha namorada. - Mas você disse que era solteiro. 90 - E sou, mas tenho uma namorada em Nova Iorque. Ela vem visitar-me pelo Natal, por isso, se você ficar por cá, gostaríamos muito ... Meg fitou-me como se tivesse acabado de ser enganad a. O que, obviamente, era verdade. DuRANTE a minha primeira noite no apartamento, reco meçou a nevar. Não parou durante dez dias, o que foi muito conveniente para mim, mantendo-me dentro de casa a trabalhar. A fastou-me dos preparativos para o Natal que se viam por toda a parte nas ruas de Mountain Falls. O Natal era uma época festiva cuja aproximaç ão me fazia tremer. Dormi mal naquela primeira noite. A cama tinha quat ro covas diferentes; os lençóis cheiravam a mofo. Na manhã s eguinte, deitei fora a cama e gastei 150 dólares num futon. Larguei mais 200

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dólares por um edredão, lençol a condizer e almofadas. Seguiram-se os tapetes. Aluguei uma máquina de afag ar por 75 dólares e passei uma semana a eliminar a tinta que cobria o soalho de pinho. Em seguida, dediquei-me às paredes. As minhas tenta tivas iniciais de substituir o papel saíram frustradas. Estraguei vár ios rolos e tive de os arrancar e recomeçar tudo de novo. Só te rminei o trabalho na véspera de Natal. Acordei na manhã de Natal com a mente toldada por i magens de Adam e Josh. Via Adam a mergulhar numa pilha de pre sentes situada por baixo da árvore. - Onde está o presente do pai para mim? - perguntar ia ele a Beth. E Beth tentaria explicar mais uma vez que o pai est ava ... Comecei a tremer, por isso deitei mãos ao trabalho, passando dezoito horas na companhia de uma trincha e de várias latas de tinta branca. O jantar de Natal foi uma omeleta de queijo e três ga rrafas de cerveja. No Dia de Ano Novo, o apartamento estava pintado de novo, os soalhos, envernizados, e eu, quase falido. Depois d e ter pago a renda do mês seguinte (metendo-a certa noite, já tarde, por baix o da porta da Green wood Realtors), restavam-me exactamente 250 dólares . Ainda faltava um Mês para o pagamento seguinte do fundo. Teria de so breviver com apenas 9 dólares por dia. 91 Não foi difícil. No supermercado, tinha todo o cuid ado ao fazer compras. os livros que comprava eram edições barata s de um dólar-, mantive-me por casa. A 2 de Fevereiro, quando o meu saldo liquido era de 7,75 dólares, dirigi-me a uma máquina Multibanco situada na Main Street e premi o botão de consulta de saldos. Apare ceu no ecrã a soma de 6900 dólares. Aliviado, levantei 750 e fui às co mpras. A loja Petrie's Cameras situava-se em frente do Hol iday Inn. Tinha passado por ela muitas vezes, mas havia-me mantido sempre afastado das tentações. Até então. - Como vai isso? - saudou-me o tipo que se encontra va por de trás do balcão. - Estaria no fim da casa dos trinta anos : alto, cabelo hirsuto, camisa de xadrez grossa. - Ando à procura de um ampliador - retorqui. - Pode ser qualquer coisa já usada, se é que vende equipamento em segunda mão.

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- Claro que vendo - replicou. - Tenho uma grande pe chincha: nas traseiras; é um Durst auto AC707. Está em perfe itas condições e é,,, uma bagatela: quatrocentos e setenta e cinco dólare s. Quer ver? Assenti com a cabeça, e ele desapareceu dentro do a rmazém. Quatrocentos e setenta e cinco dólares por um ampliador - devia ser uma porcaria. O meu Beseler 45mx tinha-me custado 3750 dólares havia dois anos. Contudo, eu não estava em condições de desper diçar dinheiro. O empregado regressou com o ampliador, ligou-o à co rrente e fez uma demonstração da autofocagem. - Não é topo de gama - comentou -, mas trabalha mui to bem. Tem garantia de seis meses. - Negócio fechado - repliquei. - Preciso de uns pro dutos químicos. Vende Ilford? - Claro. - Papel de brometo Galleria? - Naturalmente. - E também preciso de,um cavalete, três tabuleiros, uma luz de segurança, um ajustador de focagem, uma lata de rev elação, um saco para mudar de rolo e um temporizador. - Com certeza. Já agora, chamo-me Dave Petrie. Apertei-lhe a mão e apresentei-me. - É novo na cidade, Gary? - Sou. - A fotografia para si é hobby? - Não, é um trabalho pago. - Bem me parecia. Oferecemos um desconto de quinze por cento a profissionais. 92 - Então, levo uma dúzia de rolos de Tri-X e Ilford HP4- Depois de ele ter regressado com todos os artigos, passou vários minutos a passar uma factura. - São setecentos e quarenta e dois dólares e cinque nta cêntimos, já com IVA. Puxei do meu maço de notas. - Nós aceitamos cartões de crédito, se preferir - d isse ele. - Eu pago sempre em dinheiro. - Por mim, tudo bem. Sabe, nós temos uma sociedade de fotógrafos amadores em Mountain Falls. Eles reúnem-se duas vez es por mês, e tenho a certeza de que adorariam ouvi-lo fal ar sobre o seu trabalho ... - Ando bastante ocupado nesta altura - menti. - Compreendo. Quer que eu mande entregar em sua cas a todo este material? Não é preciso. Volto cá mais logo com o meu carro. Atravessei a Main Street, pensando que Mountain Fal s tinha o pequeno defeito de ser demasiado hospitaleira para o meu gosto. Senti a necessidade premente de fugir. Mas se abandonasse a minha casa

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alugada, Meg Greenwood não tardaria a telefonar par a o Connecticut a investigar. A minha única opção era ficar e adapt ar-me à cordial curiosidade da vida numa cidade pequena. Com efeito, se eu não começasse a descontrair-me aqui, se continuasse a encarar cada pergunta como uma potencial ameaça, chamaria a atenção para a min ha pessoa como um tipo misterioso com qualquer coisa a esconder. Assim, quando, mais tarde nessa mesma manhã, voltei à Petrie's Cameras para levar as minhas compras, aceitei o caf é que Dave me ofereceu; enquanto o tomava, Dave contou-me um p ouco da sua própria história - era um refugiado de Phoenix que viera parar ali depois da faculdade e que entretanto se casara e tinha doi s filhos pequenos. - Gerir uma loja não era aquilo que eu tinha em men te quando cheguei ao Montana - contou ele. - Mas o grande pro blema de Mountain Fals é que, embora o estilo de vida seja óptimo, nã o se consegue sustentar uma família como fotógrafo. Não há trabalho suficiente. Contudo, Beth e eu ... - A sua mulher chama-se Beth? - perguntei. - Chama. Portanto, aquilo que Beth e eu pensamos é que, se queremos viver num lugar como o Montana, temos de f azer alguns compromissos. Ao sair da Petrie's Cameras, lamentei o facto de Da ve querer ser meu amigo e de eu não poder dar-me ao luxo de ter amigo s. Passei os dias que se seguiram a montar a minha câm ara-escura. 93 Em seguida, peguei na máquina fotográfica e em meia dúzia de rolos de 2( e segui para leste por uma estrada secundária de signada por RTE. 20' À saída da povoação de Lincolll, parei num restaura nte à beira da estrada e penetrei num período já esquecido. Pavimentos cob ertos de serradura um bar com máquinas manuais de tiragem de gasosa, b alcão de zinco diante do qual dois homens de rosto enrugado bebiam sentados. Por detrás do balcão, encontrava-se uma mulher enge lhada com uma bata às flores. Ela reparou na máquina fotográfica. - Fotógrafo? - inquiriu enquanto me sentava ao balc ão. Assenti com a cabeça. - Importa-se que tire algumas fotografias aqui? Ela olhou de relance para os clientes. - Pague-lhes uma rodada, que não deve haver problem a. Atirei 10 dólares para cima do balcão e deitei mãos ao trabalho. A luz era magnífica - feixes oblíquos de sol invernoso en travam através da

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janelas enegrecidas. Trabalhei rapidamente, concent rando-me no rosto dos homens sentados a beber. Também tirei um retrat o à gerente. Já Conseguiu o que queria? - perguntou ela depois de eu ter terminado. - Consegui sim, minha senhora. Fico-lhe muito agrad ecido. Ela pegou num lápis já muito gasto, lambeu-lhe o bi co e escrevinhou num pedacinho de papel. - Fico à espera de uma cópia do meu retrato - disse ela, entregando-me o papel. - Combinado? - Combinado - repliquei. Prossegui mais para leste, atravessei a Divisória C ontinental e entrei no condado Lewis and Clark. A estrada não apresenta va vestígios de vida dos finais do século XX. Apenas uma longa faixa de alcatrão serpenteando lá em cima. A certa altura, passei por uma estação de serviço. Duas bombas antigas, uma garagem a cair. Um miúdo com ta lvez dezassete anos saiu para me encher o depósito. Tinha barba fr isada, acne muito inflamada e um boné de basebol, além de uma p arka bastante gasta vestida por cima de um fato-macaco salpicado de óleo. Conve nci-o a posar em frente das bombas. Agradeceu e depois perguntou se a mulher e o bebé também podiam entrar numa fotografia. - óptima ideia! - exclamei. Ele desapareceu no interior da garagem. Passados in stantes, apareceu um arremedo de adolescente - ela não podia ter mais de dezasseis anos - embalando um bebé minúsculo, todo abafado co ntra o frio. - A minha mulher, Delores - anunciou o miúdo da bom ba. Delores mastigava pastilha elástica e usava uma swe atshirt desbotada 94 com a figura de Michael Jackson. Tive dificuldade e m olhar para o garoto, por isso coloquei a família rapidame nte em pose entre as duas bombas, com a garagem decrépita a servir de mo ldura, ao fundo, e o terreno vazio coberto de neve para lá dela. Tirei uma dúzia de planos, paguei a gasolina, tomei nota do endereço e prometi enviar-l hes cópias. Regressei a Mountain Fals quase ao pôr do Sol e fui directamente para a minha câmara-escura. Ao fim da noite, já eu estava a observar atentamente os negativos revelados e a marcar nove imagens com um circulo a tinta-da-china vermelha. Depois de sec os, rejeitei de imediato

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quatro deles, mas os cinco restantes agradaram-me. Os rostos do bar estavam fortemente delineados. Tinham feiçõe s duras e enrugadas, temperadas por um cansaço geral da vida. O retrato da gerente do restaurante estava igual ao original duro e ressequido, e os po rmenores circundantes compunham a fotografia. As suas mãos nodosas puxand o a alavanca de um velho alambique, com uma garrafa de Hiram Walker ao lado. Uma das fotografias da bomba de gasolina também ace rtara em cheio. Mostrava o rapaz da bomba e a mulher, lado a lado. O pai segurava o bebé nos braços, quase junto à cintu ra. Ambos tentavam sorrir, mas as bombas enferrujadas e o terreno descampado realç avam a tristeza da perspectiva das suas vidas. As cinco fotografias bem conseguidas eram-no porque não impunham um olhar conhecedor sobre o tema tratado. Se eu me concentrasse nos rostos - deixando-os definir a composição -, tu do o resto se resolvia por si. Então, porque não havia eu de m e concentrar nos rostos? Na manhã seguinte, mandei pelo correio as fotografi as prometidas à gerente do restaurante e ao casal da bomba de gasol ina. Depois, ao longo das três semanas seguintes fiz constantes incursões diurnas pelos arredores de Mountain Falls. Fui até Whitefis h e fotografei jogadores nas máquinas de um casino local. Fui a Ka lispell e fotografei o dono de um cemitério de automóveis. Percorri todo o oest e da Divisória Continental. Ignorei as paisagens, concentrei-me em fotografias em que os rostos dominassem, contando-nos tudo o que precisáv amos de saber acerca do indivíduo e do seu meio. No princípio de Março, tinha sessenta fotografias q ue me agradavam. Também tinha um problema com o meu saldo bancário, pois tirara mais de cento e cinquenta rolos de fotografias. Depois d e pagar a renda de Abril, restar-me-iam apenas 1350 dólares até ao cré dito seguinte. - De certeza que não lhe apetece abrir uma conta-co rrente na nossa loja? - perguntou-me Dave Petrie certa manhã. - Obrigado pela oferta, mas eu só gosto de lidar co m dinheiro. - Também é o meu melhor cliente. Quando é que vai a rranjar uma 95 noite livre para vir até nossa casa, conhecer Beth e as crianças? - Quando este projecto estiver pronto para entrega. - Deve ser dos grandes, tendo em conta a quantidade de película

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que o senhor tem comprado. Vai render-lhe bom dinhe iro? - Duvido. Em meados de Março, houve uma tempestade de neve. D ez dias a fio de nevoeiro cerrado. Fiquei confinado aos Frontier Apartments até senti claustrofobia. Por isso, certa noite afrontei a nev e e subi a Main Street, em busca de diversão líquida. Deparei com o Eddie's Place. Era muito barulhento: um enorme balcão em forma de ferr adura apinhado de bebedores. Consegui arranjar um banco junto ao balcão e pedi u ma Bud Light. - Você mete sempre combustível com poucas octanas? - perguntou o tipo que estava a meu lado. Meia-idade, olhos tristes, um rosto que eu já vira. Gritou à mulher, que trabalhava no bar: - Linda, meu amor, outro J&B. E serve a este meu am igo um copo, de qualquer coisa enquanto estás com a mão na massa . - O que é que vai ser? - perguntou ela. - Têm Black Bush? - perguntei. - Temos - retorquiu ela, enchendo um copo. - O homem tem gostos caros em matéria de whisky - d isse o meu companheiro enquanto Linda retirava uma nota de dez dólares da pilha de notas pousada à frente dele. - A próxima rodada é por minha conta - anunciei. - Por mim, tudo bem - respondeu ele. - Rudy Warren. Sim, eu já tinha visto aquela cara quando ele estav a a ser expulso do Mountain Pass. - Gary - apresentei-me. - De passagem por Mountain Falls? - Vivo cá. - Contei-lhe a história sobre o meu cont rato para um trabalho fotográfico. - Ah, você é desses - disse ele. - De quais? - Um artista. Parece que nós os atraímos em Mountai n Falls. Se perguntar aqui neste bar, encontra pelo menos um a dúzia de tipos que estão a escrever o grande romance sobre as Montanhas Roch osas ou que fingem ser Ansel Adams. - Obrigado por me transformar num lugar-comum cultu ral. - Ficou ofendido? - Na verdade, não. 96 Que desilusão! Geralmente, consigo ofender toda a g ente. Bebemos mais quatro rodadas, durante as quais Rudy falou incessantemente sobre o Montana e Mountain Falls. D isse-me que estava condenado a viver para sempre em Mountain Falls. Na scera ali e nunca trabalhara nem vivera em mais parte nenhuma. Linda, a empregada, expulsou-nos às 2 da manhã. Dem os connosco no meio da rua. Continuava a nevar. - Como é que você vai para casa? - perguntei. Meteu a mão no bolso e puxou das chaves.

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- de carro. - Nem pense. Dê-me essas chaves, Rudy. - Afinal, quem é você? A minha ama? A Mary Poppins? Arranquei-lhe as chaves da mão. - Eu vou para casa - anunciei. - Se quiser as chaves do seu automóvel, siga-me. Voltei costas e dirigi-me para a Main Street, com R udy a cambalear no meu encalço. O frio era pavoroso, mas servia de antídoto contra todo o álcool que tínhamos ingerido. Quando cheguei aos Frontier Apartments, esperei por Rudy no átrio. Você vive aqui? - inquiriu ele, transpondo a porta de entrada. Assenti com a cabeça. Acho que entrei aqui uma vez, para nada de bom, com uma agente de imobiliária chamada Meg Greenwood. Se alguma vez encontrar essa doida num bar ou numa festa, ponha-se a andar. E de pressa. Desatei a rir. - Suba comigo. Eu chamo-lhe um táxi. Quando entrámos na minha sala, Rudy emitiu um leve assobio. - Vejam só isto - exclamou ele. - SoHo, no Montana. - Ainda bem que gosta - retorqui. - Sabe o número d a empresa de táxis? - Dê-me uma cerveja; depois, pode expulsar-me ao po ntapé. Cambaleei até à cozinha. Rudy seguiu-me. Tirei duas garrafas de Roffing Rock do frigorífico e passei-lhe uma para a mão. - Muito agradecido - disse ele. Depois de beber um grande gole, fitou-me longamente com um olhar duro. - Tenho a ce rteza de que não gostava de jogar pôquer consigo, pois aposto que vo cê é perito em bluff. Senti um certo mal-estar. - Eu perco sempre ao pôquer - repliquei. - Não acredito - disse ele. - Passei as últimas cin co horas a beber consigo, e você não me contou nada acerca de si pró prio. Um velho rePórter metediço como eu, fica a pensar: «Po rquê?» 97 - Talvez porque, ao contrário de si, não preciso de contar a história da minha vida a toda a gente depois do segundo copo . Vamos lá ver se chamamos esse táxi. Regressei à sala e peguei no telefone. Liguei para as informações. a telefonista deu-me o número da empresa de táxis, qu e eu marquei. Ao fim de quarenta toques, pousei o telefone. - Não atendem - disse eu, dirigindo-me para a cozin ha. - Depois da meia-noite, numa noite de neve, acham s empre que já chega. - Ele já não estava na cozinha. Entrara n a minha câmara-escura e estava a dar uma vista de olhos à pilha dos retra tos tirados no Mountain. Ergueu o olhar quando entrei. - Isto é tudo obra su a? -

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inquiriu. Assenti com a cabeça. Rudy ficou calado; apenas con tinuou a passar com o dedo a pilha de imagens; de vez em qua ndo, os seus lábios eram perpassados por um sorriso. - É Madge, a Ameaça - comentou ele finalmente, pegando nu retrato da gerente do restaurante à beira da estrad a. - Conhece-a? - Correu-me de lá pelo menos duas vezes. - Ergueu a garrafa vazia. - Pode arranjar-me outra Roffing Rock? - Está a fazer-se tarde - repliquei. - Como é que v ocê vai conseguir chegar a casa? - Tem um sofá? - Creio que sim. ... - Então, tem aqui um hóspede. - Vou buscar-lhe a cerveja - disse eu. Continuando a segurar a pilha de fotografias, ele a rrastou-se até à sala e deixou-se cair em cima do sofá. Eu retirei a s duas últimas Roffing Rocks do frigorífico, passei-lhe uma e caí também n o cadeirão situado, em frente de Rudy. Ele bebeu a cerveja enquanto vol tava a ver as fotografias de trás para a frente. Finalmente, ergueu o olhar. É a melhor galeria de rostos do Montana que eu já v i. Está a falar a sério? Eu olho para estes rostos e penso: é o meu povo, o meu estado do Montana. - Fez saltar os sapatos dos pés, estendeu- se no sofá e entregou-me as fotografias. - Agora, arranje-me u m cobertor - ordenou. Deixei as fotografias na câmara-escura e depois con segui desencantar a antiga colcha bafienta da cama que eu pusera de lado. - Dolce vita! - exclamou Rudy enquanto eu a atirava para cima dele. - Que tal um copo de água? Basta meio. - Certo, Alteza. 98 Quando regressei da cozinha, Rudy meteu a mão na bo ca e extraiu uma dentadura completa - de cima e de baixo. Meteu- a dentro do copo e pousou-o junto ao sofá. Estremeci. Ele reparou. - Tem a certeza de que eu ainda não o ofendi? - per guntou com uma voz borrachenta devido à boca desdentada. Boa noite - foi a minha resposta. - Obrigado pelas suas bondosas palavras acerca das minhas fotografias. - Eu nunca sou bondoso retorquiu Rudy Warren. - Apenas falo com precisão. Apaguei a luz do quarto e meti-me na cama. Acordei às 11, jurando converter-me à religião mórm on, islâmica ou outra que proibisse o consumo de álcool. Um duche a judou-me, mas ainda me sentia abalado quando espreitei para d entro da sala. O sofá estava vazio. O copo que contivera os dentes de Rudy Warren também.

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- Rudy? - chamei, pensando que talvez estivesse na cozinha. Não obtive resposta. Preparei uma caneca de café e leve i-a comigo até à câmara-escura, acendendo a luz ao entrar. Pestanejei com o choque. A minha pilha de fotografi as do Montana tinha desaparecido. Amaldiçoei-me a mim próprio por ter feito de bom sa maritano ao convidar Rudy para minha casa. Porque teria ele lev ado as fotografias? Várias histórias possíveis galoparam pela minha cab eça. Pressentindo que eu era alguém com um passado duvidoso, fugira c om as fotografias e exigiria um resgate a troco da devolução. Talvez ti vesse um amigo polícia - algum companheiro de copos. «Olha-m e só este forasteiro», diria Rudy, espalhando o meu trabalho pelo balcão do bar. «O tipo diz que é fotógrafo, mas mal tentamos tirar-lhe nabos da púca ra, fica todo atrapalhado.» Peguei no telefone. Liguei para o Montanan e pergun tei por Rudolph Warren. Atendeu-me um gravador de chamadas. - Olá, daqui fala Rudy Warren. Já sabe o que tem a fazer: deixe o seu nome e número de telefone depois do sinal. Fiz um esforço por parecer calmo e afável. - Rudy, daqui Gary Summers. Espero que tenha ultrap assado a ressaca. Dê-me uma apitadela para o 555 88 09 logo que possível. Obrigado. Pousei o auscultador e em seguida liguei imediatame nte para as informações, tentando obter o número de casa de Rud y. Não vinha na lista. Que diabo! Durante as duas horas que se seguiram, l iguei três vezes para O Montanan. Quem me atendia era sempre o gravador d e chamadas. Não 99 deixei mais mensagens. Finalmente, por volta das 4 horas, o telefone tocou, e eu precipitei-me para ele. - Gary Summers? - Era a voz de uma mulher. - O próprio. - Olá, eu sou Anne Ames, editora fotográfica do Mon tanan. Esta manhã, Rudy Warren entrou pelo meu gabinete dentro e atirou com um maço de fotografias suas para cima da minha secretá ria, dizendo que eu devia contratá-lo imediatamente. Eu soltei uma gargalhada de enorme alívio. - Então, foi para isso que ele quis as fotografias - exclamei. - Ele não lhe disse que ia mostrar-mas? - Não, mas, pelo que percebo, Rudy é um homem de su rpresas. Então, foi a vez de Anne rir. - Isso é a declaração mais comedida do ano - disse ela. - Seja como for, acho as fotografias formidáveis. Estava s ó a pensar se já teriam sido prometidas a outro jornal ou revista ... - Ainda não.

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- Óptimo. Então, talvez possamos fechar negócio. Es tá livre amanhã por volta do meio-dia? Mal tinha combinado o encontro, já me apetecia canc elá-lo, mas os receios que me invadiam eram temperados pela vaidad e. Alguém do mercado fotográfico profissional tinha gostado do m eu trabalho. Por isso, apareci nos escritórios do Montanan no dia se guinte ao meio-dia. Anne Ames tinha cerca de trinta e cinco anos. Alta, elegante, cabelo louro-arruivado cortado à moda e pele clara sem pin tura. Usava calças de ganga justas e camisa do mesmo tecido. Olhei-lhe pa ra as mãos: não tinha aliança. O seu aperto de mão era firme. P ercebi que também ela me observava. Tinha-me habituado a prender o cabelo, q ue já me dava pelos ombros, num rabo-de-cavalo e até aprendera a viver com a barba por fazer, como qualquer artista que se preze. Quando o lhava para o espelho, já não via Ben Bradford, mas uma edição de emergência de Gary Summers. O escritório de Anne era um caos de fotografias e p rovas tipográficas marcadas a tinta. Havia qualquer coisa de tranquili zante naquela desarrumação - um indício de alguma caracte rística de rebelião a espreitar por baixo do seu aspecto alinhado. - Bem-vindo à lixeira fotográfica - gracejou ela, i ndicando-me uma cadeira. Procurou no meio de uma pilha de papéi s até encontrar as minhas fotografias. - Portanto, Gary, com base nest e material, você é um fotógrafo espantoso. Isso leva-me a perguntar o que faz aqui em Mountain Falls, no estado do Montana. 100 Estive quase a apresentar-lhe a minha versão habitu al acerca do livro em que estaria supostamente a trabalhar, mas presse nti que ela poderia aperceber-se da mentira, por isso decidi ser direct o. Bem, quase directo. Eu trabalhava comofreelancer em Nova Iorque. Não e stava a sair-me muito bem em termos de trabalho, por isso v im para oeste. Parei aqui por uma noite, gostei do que vi e pensei: «Por que não hei-de ficar aqui por algum tempo?» E assim acaba a história. Pareceu-me que lhe agradou o facto de eu não ter fe ito comentários adicionais sobre o meu fracasso profissional em Man hattan. - E como decidiu começar a fotografar rostos? - Foi um acaso. - Contei-lhe como tinha parado no r estaurante à

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beira da estrada. - As melhores ideias começam sempre como acasos - c omentou ela. - E nós gostaríamos de beneficiar deste acaso. Já mostrei as suas fotografias ao nosso editor. Ele sugere que publiqu emos uma secção fotográfica todos os sábados. Chamar-lhe-emo s Rostos do Montana e utilizaremos um dos seus retratos por semana. De início, será a título experimental durante seis semanas, e pagamos -lhe cento e vinte e cinco dólares por fotografia. - Parece-me bastante pouco, não acha? - repliquei. - Bem-vindo ao Montana - prosseguiu Anne. - A minha oferta está muito acima dos nossos preços normais. - Mesmo assim, está abaixo do que eu esperava receb er - retorqui. - Que era? Arrisquei um número ao acaso: - Duzentos e cinquenta por fotografia. - Só em sonhos! - exclamou ela. - Cento e setenta. Oferta final. - Cento e setenta e cinco. - Você é o quê? Advogado? Consegui dar uma gargalhada. - Claro! - repliquei. - Não se vê logo? Ficamos ent ão em cento e setenta e cinco? - Você é um negociador e pêras, Gary, mas não vou d iscutir por cinco dólares. Cento e setenta e cinco. Negócio fec hado. Levantei-me. - Só mais uma coisa: você é mesmo de New Croydon, n o Connecticut? Senti uma vontade súbita de me evaporar. - Como é que sabe? - Meg Greenwood. - É sua amiga? 101 - Toda a gente se conhece em Mountain Fals - respon deu ela. Bem, ainda bem que consegui contratá-lo. Entrarei e m contacto consigo dentro de um ou dois dias. De regresso ao meu apartamento, comecei a sentir-me oprimido por uma enorme ansiedade. O que é que Meg Greenwood lhe teria contado, Ter-me-ia chamado aldrabão? Teria informado Anne de como eu a tinha seduzido até à assinatura do contrato e depois lhe enfiara um barret acerca da namorada que tinha em Nova Iorque? Umas horas depois, o telefone tocou: - Gary Summers? - Exacto - respondi. - Daqui fala Judy Wilmers. Eu dirijo a New West Gal lery. Ann Ames apareceu aqui esta tarde com as suas fotografi as. São fantásticas. Poderíamos encontrar-nos amanhã para tomar café? Porquê, meu Deus, teria eu aterrado nesta pequena c idade? A NEW WEST GALLERY ficava numa ruela estreita perpe ndicular à Main Street. Estava decorada ao gênero do tipo de

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empório, da arte que se pode encontrar actualmente nos bairr os boémios de Nova Iorque. Chão de cimento pintado de preto. Paredes d e um branco imaculado, focos luminosos, um café com mesas e cad eiras cromadas. Estava em exposição uma colecção de telas abstractas sob o título colectivo e, «Sonhos das Terras de Pradaria». Judy Wilmers vestia saia comprida de ganga e trazia uma grande quantidade de braceletes dos índios americanos. O c abelo grisalho caía-lhe em cascata até à cintura. Sentámo -nos no café. Ela bebeu chá de bagas de roseira-brava; eu, um café duplo. J udy era da zona de S. Francisco e tinha dirigido uma pequena galeria em Pacific Hei ghts, mas mudara para ali em 86, quando o seu primeiro casamento ter minara e ela sentira necessidade de «alterar os parâmetros» da sua meia- idade. Ela achava que as minhas fotografias tinham um «potencial de g rande alcance». - Quer dizer que acha que vão ter compradores? - Como pãezinhos quentes. Judy foi direita ao negócio - um jogo que ela jogav a com um espírito 102 implacável. Uma exposição já marcada falhara à últi ma hora; ela tinha um espaço livre dentro de seis semanas, mas precisa va de uma variedade maior de fotografias para poder «compor» a exposiçã o. A galeria pagaria as molduras. Ela calculava um preço de cerca de 150 dólares por fotografia e queria uma percentagem de cinquent a por cento sobre todas as vendas, mais trinta e cinco por cento de t odos os direitos subsidiários - livros, postais ilustrados e até mes mo a reprodução na Internet. - Se quiser fazer a exposição - retorqui -, terá de aceitar uma divisão de sessenta-quarenta sem qualquer comis são futura sobre os direitos subsidiários. Ela não quis ceder. Levantei-me, pegando nas minhas fotografias, e agradeci o café. Não está a ser um pouco vaidoso, Gary? Anne disse-m e que você confessou ter vindo para Mountain Fals porque as co isas não estavam a correr-lhe bem a nível de trabalho em Nova Iorque. Não está interessado nesta exposição? Não, caso seja para ser manipulado em termos de pre scindir de eventuais futuros direitos mundiais de autor. - Con tive-me antes de começar a utilizar linguagem demasiado jur ídica. - Se quiser voltar a negociar os termos do contrato, tem o meu número de telefone. - Saí.

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Primeiro, senti-me aliviado por ter recusado a ofer ta de Judy Wilmers. Aceitá-la teria sido expor-me demasiado. M as uma voz vangloriosa dentro do meu cérebro não parava de me espicaçar: «Ela ofereceu-te uma exposição ... e tu, que fizeste? De itaste-a pela janela fora, armando-te em legalista.» De regresso ao meu apartamento, parei no Benson's, armazém situado na Main Street, e desembolsei 70 dólares po r um gravador de chamadas. Instalei-o no telefone mal cheguei a casa ; depois, peguei na máquina fotográfica e fiz-me à estrada. Quando regressei, o Sol estava quase a pôr-se. Havi a três mensagens no meu novo atendedor. A primeira e a terceira eram de Judy Wilmers. «Tenho a certeza de que podemos chegar a acordo, Ga ry. era o teor da mensagem número um. «Reflicta sobre a natureza d o potencial e volte a telefonar-me.» Na segunda mensagem, ela entrava nos pormenores: «A minha proposta é a seguinte: aceito uma divisão de sessenta-quarenta por cento a seu favor; você dá-me uma opção de doze meses para agir como sua agente e receber os direitos subsidiá rios sobre trinta e cinco por cento das vendas. Ao fim de um a no, todos os direitos revertem Para si. Falo-lhe como a um amigo. Acredite que nun ca conseguiria um acordo destes em Nova Iorque.» 103 «Como a um amigo.» Aquela mulher teria algum sentid o de ironia? Entre as duas propostas de Judy, havia uma mensagem de An Ames pedindo-me que lhe ligasse para o telemóvel. ela estava no automóvel quando atendeu. perguntei. - Os nativos daqui não troçam dos telemóveis?- Troç am, mas todos têm um. Ouça, já escolhi as seis fotografias que vamos utilizar. Quer ver a minha escolha e crav ar um jantar ao Motanan ao mesmo tempo? - Não sabia que o editor fotográfico tinha ajudas d e custo. - Duzentos dólares por ano, o que significa que vou estoirar metad, hoje. Vou buscá-lo dentro de cinco minutos. Levou-me ao Restaurante Lê Petit Place. Era o melho r de Mountain Falls, com uma ementa que se autodescrevia como New Pacific, embora estivéssemos a cerca de oitocentos quilómetros de d istância dessa massa de água. O empregado que nos serviu chamava-se Calv in. Recomendou-nos perca com cogumelos. O vinho da sema na era um Chardonnay do Oregon «com os vapores de casco de carvalho exac tamente adequados».

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- Você sabe preparar um martini? - perguntei. - Claro! - exclamou ele num tom ligeiramente ofendi do. - Então, queria um martini de Bombay Gin, muito sec o, com quatro azeitonas. - E a madame? - inquiriu Calvin. - A madame gostaria do mesmo - replicou Anne. Chegaram as bebidas; pedimos o que queríamos comer. Anne ergueu o copo: - À nossa colaboração - disse ela. Batemos com os copos um no outro, fazendo-os retini r. Durante o jantar, Anne contou-me um pouco da sua hi stória. Tinha crescido em Armonk, Nova Iorque, e depois mud ara-se para Skidinore, Após a licenciatura, trabalhara como investigadora fotográfica para uma revista da moda em Boston. - Eu vivia em Cambridge - prosseguiu -, e o meu viz inho do apartamento ao lado chamava-se Gregg. Ele estava a acabar um doutoramento em Língua Inglesa. Ao fim de um ano, c asámos. Ao fim de dois, tínhamos saído de Boston e aterrado em Bozeman, qua ndo Gregg arranjou um trabalho no estado do Montana. - Quanto tempo durou o casamento? - perguntei. - Cinco anos. - Porque é que acabou? - Aconteceu uma coisa. - O quê? 104 - Uma coisa. - O tom desaconselhava o prosseguiment o do interrogatório. - De qualquer forma, depois de nos separarmos eu não quis ficar em Bozeman, mas também não quis sair do Monta na. Visitei Momtain Falis e pedi a um amigo que me arranjasse u ma entrevista com Stu Sinimons, o director do Montanan. O calendário esta va a meu favor: uma semana antes, o editor fotográfico saíra do jornal. Aceitei o trabalho e mudei-me para cá. Percebi que Anne agora esperava que eu me descosess e e lhe contasse os pormenores do meu fracasso profissional em Manhattan. Por isso, o que fiz essencialmente foi pegar em certos detalh es da vida de Gary, retocando-os um pouco. Fiquei surpreendido com a fluência do meu discurso. Cheguei mesmo a referir a minha aventura com Beth. - Foi a sério? - inquiriu Anne. - Não! Apenas autodestrutiva. Você agora anda com a lguém? - Houve um tipo, repórter do nosso jornal, mas ele foi-se embora há três anos. De então para cá, só duas ligações ... d ois enganos estúpidos. - Fico surpreendido - comentei. - Não fique. A escolha é limitada em Mountain Falls . - Rudy Warren está sempre à mão.

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- Por amor de Deus! Bebemos o vinho, comemos a perca, mandámos vir outr a garrafa de vinho, e as nossas gargalhadas começaram a ser um p ouco fortes demais. Saímos, cambaleantes, do Lê Petit Place por volta d a meia-noite. - Espero que não esteja a pensar em guiar até casa - disse eu. - De maneira nenhuma - retorquiu Anne, dando-me o b raço. - Você é que vai acompanhar-me a casa a pé. Não dissemos uma palavra enquanto percorríamos os t rês quarteirões que nos separavam de casa dela. Anne vivia num beco tranquilo e arborizado, com casas de ripas dos anos 20. Quand o chegámos ao patamar, ela voltou-se para mim e dirigiu-me um sorriso de cem w atts. O brilho do candeeiro atingia-lhe em cheio o rosto. «Ela é lind a», pensei. - Bem... - balbuciei. - Foi divertido. - Muito divertido. Inclinei-me para a frente para lhe dar um beijo no rosto, mas de súbito beijei-a em cheio na boca. Ela lançou-me os braços ao pescoço, e começámos a cambalear para trás, caindo para dentro de casa. Mais tarde, na cama, ela comentou: - Eu até era capaz de me habituar a isto. - Eu também era capaz de me habituar - retorqui. Quando acordei de manhã, Anne já saíra, deixando um recado em cima da almofada. 105 Gary Há quem tenha de trabalhar nesta vida. Telefona-me mais logo. Talvez consigas persuadir-me a fazer-te o jantar es ta noite. Há café, chá e gin na cozinha. Beijinhos, A. Vagueei pela casa. Tinha uma decoração simples, com soalho de tábuas desbotadas e tapetes pequenos do Novo México . Havia uma pequena câmara-escura naquilo que em tempos fora um a segunda casa de banho, onde duas fotografias recentes estavam pendu radas de uma corda da roupa. A primeira mostrava uma placa - ELEGANT MOTEL, ... SUITES PARA LUA-DE-MEL ... AR CONDICIONADO - cr ivada de balas. A segunda era de uma igrejinha no meio de um bosque , enterrada na neve cujo pináculo estava adornado com a frase JESUS EST Á A CHEGAR. Sorri. Anne Ames tinha um humor terrivelmente mordaz. Além disso, ajeitava-se bem com uma máquina fotográfica na mão. Havia um telefone na câmara-escura. Peguei nele e l iguei-lhe para o jornal. - Gosto muito da fotografia da igreja enterrada - c omentei. - Você andou a meter o nariz onde não é chamado. - Se me deixa sozinho em sua casa, claro que eu ten ho de meter

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o nariz. As fotografias estão espectaculares. Vai mos trar-me mais? - Se gostar. - Eu gosto. - Então, aceita o convite para jantar? - Claro que aceito. - Então, até por volta das sete - terminou ela. - L eve muito vinho. «Não devias fazer isto», dizia para comigo. «Eu sei , eu sei», dizia outra voz. «Mas, faz-me um favor, cala a boca .» Preparei uma chávena de café e entrei na sala de es tar. Havia uma fotografia sobre a pedra da lareira - Anne com um bebé minúsculo ao colo. «Deve ser alguma sobrinha ou sobrinho», pense i, pois ela não mencionara o facto de ter filhos. Dei uma olhad ela às revistas e aos jornais. The New Yorker, The Atlantic Monthly, The New York Times. Folheei o Times. Quando cheguei à página da necrologia, o meu olhar deparou com uma história: JACK MAYLE, ADVOGADO, MORRE AOS 63 ANOS Jack Mayle, sócio principal da empresa Lawrence, Ca meron and 106 Thomas, da Wall Street, morreu no passado sábado no Mount Sinai Hospital vítima de doença prolongada. Tinha 63 anos . Pobre Jack! Tinha sido o meu pai adoptivo, alguém q ue me compreendia, porque, tal como ele, eu era um estranho. Éramos dois executivos, envolvidos no jogo da Wall Street, mas que, no entanto, detestávamos secretamente tudo o que tinha a ver co m aquilo. Provavelmente, a minha própria morte acelerara a dele. Era mais uma das minhas vítimas. Tranquei a porta de Anne e regressei a pé ao meu ap artamento. Quando abri a porta da rua, havia um cheiro a fumo de cigarro no ar. Estava alguém em casa e, de repente, senti-me muito assustado. Até que ouvi uma voz semiacordada: - É você, fotógrafo? Meti a cabeça pela porta da sala, e lá estava Rudy Warren estiraçado no meu sofá, com três garrafas de cerveja vazias al inhadas junto aos seus sapatos enlameados. A dentadura estava mergulhada n um copo de água. - Bom dia - disse ele. Em seguida, erguendo o copo, bebeu a água de um tra go antes de voltar a colocar a dentadura na boca. - Encantador! - exclamei. - Como é que você entrou aqui? - Com as chaves que roubei no outro dia. Sabe, aque le molho sobresselente que você tem na cozinha. Meteu a mão no bolso e atirou-mas. - Mandou fazer cópias destas chaves? - perguntei.

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- Não seja parvo! Só as levei para o caso de vir a precisar de uma cama de emergência. - Coisa que aconteceu ontem à noite, não? - Claro. Não estava em condições de conduzir nem um triciclo, quanto mais o meu carro. - Podia ter-me telefonado antes. - Ouça o seu atendedor de chamadas e verá que tem p elo menos três mensagens minhas. Mas você estava fora, a namorar c om Ms. Ames. - Não tem outros amigos na cidade? - Que falem comigo já não. Calculo que não esteja i nteressado em pôr uma cafeteira ao lume para mim, pois não? - Rudy, quero-o imediatamente daqui para fora. - Parece que está irritado comigo, não é verdade? - Muito perspicaz. - Você devia aprender umas certas coisas acerca de amizade, fotógrafo. E acerca das cidades pequenas também. Se quer brincar ao Sr. Isolado, compre um bilhete de volta para Nova Iorqu e. Aqui gostamos de 107 meter o nariz na vida dos outros. E de ter uma idei a sobre quem são e que são as pessoas com quem lidamos. Por exemplo, D ave, da loja de fotografia, diz-me que você é um cliente fantástico , sempre simpático sempre educado. Mas já deve tê-lo convidado para ja ntar uma dúzia de vezes e você esquiva-se sempre. Ora agora diga-me c á: porquê? Porque a mulher dele se chama Beth, só por isso. E porque tem dois filhos. - Eu não gosto de misturar negócios com lazer. - Certo - replicou Rudy. - Continue a ser um livro fechado. Levantou-se, apanhando o casaco do chão. - Mais uma coisa. Eu tenho um verdadeiro fraquinho por Anne Ames, aliás como t odos nós lá no jornal. Por isso, não a magoe. Ela é uma miúda f antástica e já teve problemas que chegassem. - Quais, exactamente? - Tenho a certeza de que ela própria lho dirá, a se u tempo. Depois, abriu a porta e disse: - Até qualquer dia, no Eddie's. DURANTE a tarde desse dia, Judy Wilmers, e eu chegá mos a um acordo. Eu disse-lhe que a divisão em sessenta-quar enta era aceitável, mas que eu lhe daria apenas um período de seis meses pa ra receber percentagens sobre o meu trabalho e que só lhe conc ederia vinte e cinco por cento sobre as vendas subsidiárias. Ela f ez finca-pé, dizendo que, se só podia ter seis meses, insistia numa perc entagem de trinta por cento. Cedi. A exposição teria início a 18 de Maio e duraria até 1 de Julho. Haveria uma festa de inauguração para a qual seriam convidados

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«importantes negociantes». Judy queria mais trinta retratos dentro de duas semanas. - Isso fará oitenta ao todo. Eu escolho quarenta pa ra a mostra. Quando visitei Anne nessa noite, cheguei armado com duas garrafas, de shiraz do estado de Washington. Depois do jantar , comentei que a nossa noite anterior devia ser do conhecimento públ ico em toda a cidade de Mountain Falls. - Escusas de olhar assim para mim! - exclamou Anne. - Fazer publicidade à minha vida particular não é exactamen te a minha ideia de divertimento. - Então, como é possível que as paredes aqui tenham olhos e ouvidos? - Não há muito mais que fazer - explicou Anne. - Ma s ouve, estás preocupado que as pessoas saibam que passaste a noi te em minha casa? Quero dizer, foi apenas uma noite. Hoje é ape nas mais outra noite. Retribuí-lhe o sorriso: - E amanhã também é apenas mais outra noite - repli quei. 108 Ela inclinou-se para mim e beijou-me calorosamente, - Era precisamente isso que eu queria ouvir. AS DUAS SEMANAS seguintes foram frenéticas. Eu corr ia de um lado para o outro para fazer mais retratos. Manhã após m anhã, à primeira luz da aurora, já me encontrava na estrada. As tardes e ram passadas a revelar fotografias durante umas horas na minha câmara-escu ra antes de ir jantar a casa de Anne. Aparecia lá sempre com vinho e foto grafias acabadas de secar. - Que tipo de flash utilizaste para a fotografia do armeiro? - perguntou ela certa noite depois de analisar o retr ato que eu tirara ao orgulhoso proprietário do Ferdic's Firear nis, de Butte. - Nenhum - retorqui. - Aproveitei apenas a luz natu ral. - Estás a brincar. Como conseguiste obter aquele br ilho espectral no rosto do homem? - Tive sorte com o sol do fim da tarde. - A sorte não tem nada a ver com isto. Tu consegues fazer que os teus retratos pareçam obra do acaso, embora seja ób vio que cada um é pensado com todo o cuidado. É um truque muito útil. - Só há pouco o aprendi. - Já calculava. Assim, quando fores famoso, poderás dizer que a tua chegada ao Montana foi o momento em que descobriste o poder do teu olhar. Certo. O Montana foi a minha libertação De quê? Do fracasso profissional. Das dúvidas acerca de mim próprio. Mais alguma coisa? Eu escolhi as palavras com precaução:

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- Toda a gente tem uma história, Anne. - Eu sei, só que tu resistes muito a contar-me a tu a. - Só te conheço há dez dias. - É verdade. - E tu também tens resistido a abrir-te sobre o teu passado. Ela fitou-me com um olhar decidido. - Queres saber porque acabou o meu casamento? - Quero, sim. Ela manteve-se em silêncio por instantes. - Estás a ver aquela fotografia na lareira, onde eu estou com um bebé? - Assenti com a cabeça. - Era o meu filho - c ontinuou ela. - Charlie. - Fez uma pausa. - Morreu. Fechei os olhos. A voz dela mantinha-se calma: 109 - Foi cerca de um mês depois de aquela fotografia t er sido tirada. ele tinha apenas quatro meses e meio. Ainda acordav a duas, três vezes por noite. Só que naquela noite não se mexeu. Gregg e eu estávamos tão exaustos das semanas de noites mal dormidas que nos deixámos ficar. não nos mexemos até às sete da manhã seguinte. Fui eu a primeira a levantar-me, e quando não ouvi um único som vindo do berço, apercebi-me imediatamente ... - Anne cedeu, evitand o o meu olhar. Síndroma da morte súbita no berço, é assim que lhe chamam. Os médicos disseram-nos que não havia razões que expli cassem aquela... síndroma. Acontece simplesmente, não deví amos culpar-nos. Mas, é claro nós culpávamo-nos. Se tivéssemos ido ver como ele e stava, se não nos sentíssemos tão cansados. Se ... Voltei a fechar os olhos. Naquela câmara-escura, a imagem de Adam e Josh tornou-se muito nítida dentro do meu cérebro . - Um casamento tem de ser sólido como uma rocha par a sobreviver à morte de um filho - disse ela. - O nosso não era. Passados oito meses, eu tinha-me mudado para Mountain Falls. Além disso, sabes, já lá vão sete anos, e eu nunca mais entrei em contacto c om Gregg. Não consigo. É impossível ultrapassar uma coisa des tas; aprende-se apenas a aguentar a situação, a mantê-la oculta. Bem arrumad inha num compartimento muito pessoal, um lugar que só cada u m sabe que existe e que se visita a cada hora de vigília de cada dia da nossa vida. Por muito que nos esforcemos, sabemos que nunca conseguiremos ver-nos livres desse

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compartimento. Fica connosco para sempre. - Anne er gueu o olhar para mim. - Estás a chorar - apercebeu-se ela. Eu fiquei calado, limpando os olhos com a manga da camisa. Anne deitou a cabeça no meu ombro e desatou a soluçar. E u abracei-a até ela acalmar. - Nunca mais me perguntes nada sobre este assunto - pediu-me por fim. Nessa mesma noite, já de madrugada, acordei de repe nte. O relógio digital da cabeceira indicava 3.07. O quarto estava escuro. Anne estava encolhida, como que morta para o mundo. Fixei o olh ar no tecto. Adam e Josh apareciam novamente diante de mim: os filhos q ue eu perdera. Anne tinha razão: o desgosto é uma câmara-escura de sconhecida de todos os demais. Só que, ao contrário da dela, a minha perda fora auto-infligida. Ao matar Gary, eu matara a min ha própria vida, uma vida que eu não desejava ... até ao momento de a perder. Na manhã seguinte, sábado, Anne fez-me levantar da cama abanando uma cópia do jornal Montanan à frente da minha cara . - Desperta e rejubila - exclamou ela. - Vens no jor nal. 110 Bastaram-me uns segundos para despertar, e na segun da página do caderno de fim-de-semana lá estava a minha fotograf ia do casal da bomba de gasolina com o bebé. Não vinha acompanh ada de comentários do editor nem havia legendas por baixo da imagem. Apen as um título: RosTOS DO MONTANA - por GARY SUMMERS. - Agrada-te? - perguntou Anne. - Estou assombrado. É a primeira fotografia tirada por mim jamais publicada. Fizeste um belo trabalho de enquadrament o e reprodução. A impressão está de primeira categoria. Obrigado. Anne beijou-me. - Sempre às ordens, meu tesouro. Tens planos para h oje? - Sou todo teu. - Gosto de ouvir isso. Apetece-te passar uma noite fora? - Combinado. Metemo-nos no automóvel, passando pelo meu apartame nto para eu ir buscar uma muda de roupa e uma máquina fotográfi ca. De regresso ao carro, Anne disse-me para seguir pel a Estrada 200 em direcção a leste. - Por falar nisso, aonde é que vamos? - perguntei-l he. - Logo verás. Já tínhamos percorrido uns cinquenta quilómetros da Estrada 200 quando Anne me encaminhou para uma faixa estreita e serpenteante de alcatrão que rastejava no meio de uma floresta de p inheiros

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gigantescos. Formavam uma massa tão compacta e eram de uma altur a tão vertiginosa que o céu parecia ter desaparecido. Era como se nos encontrássemos numa imensa e majestosa catedral. Ao fim de dez min utos naquela floresta, Anne disse-me para virar à esquer da para uma minúscula estrada de terra tão irregular que eu tive de abrandar para trinta à hora. - Espero que valha a pena - comentei. - Acredita que vale. Passados cinco minutos, começou a ver-se o azul. Az ul não, mais precisamente, azul-turquesa. Diante de nós estendia -se um lago infindável. Duas ilhotas minúsculas flutuavam no me io da sua grande extensão, ambas desprovidas de habitações. Estacionámos o aut omóvel quase à beira da água e saímos. Era um paraíso recém-criado , imaculado, cercado por uma gigantesca floresta virg em. - Moose Lake - anunciou Anne. - O segundo maior do estado. Perguntei-lhe há quanto tempo ia para ali passear. - Desde que comprei aquilo. Apontou para uma cabana minúscula a uns duzentos me tros de nós, aninhada entre os pinheiros. Fazia lembrar uma chou pana. Madeira gasta pelas intempéries, pequenas janelas, chaminé de ped ra. Dirigimo-nos à cabana e entrei. O interior consistia numa única di visão grande. Salamandra a lenha, uma velha bacia de alum ínio, uma cama de casal de ferro, prateleiras com latas de comida empilhadas a té acima, uma garrafeira com uma dúzia de garrafas empoeiradas. Um transísto r estabelecia a ligação com o mundo exterior. - Não há electricidade - disse Anne. - Apenas cande eiros a petróleo. Contudo, tem casa de banho com banheira, embora a única maneira de se conseguir água quente seja fervê-la na salama ndra. É o meu refúgio. Surpreendes-me, Ms. Ames. Há quanto tempo a tens? Quatro, cinco anos. - Abriu a portinhola da salaman dra e acendeu-a. - Carrego sempre lenha nova no fogão ant es de me ir embora. Isso significa que não tenho de passar uma hora a c ortar lenha quando volto cá. Daqui a duas horas, a temperatura deve es tar tolerável. Anda! vamos dar um passeio. Começámos a descer uma vereda estreita situada em f rente da borda

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do lago. O ar estava fresco e tonificante, e uma br isa ligeira fazia oscilar os pinheiros. A tranquilidade envolvia-nos. Enquant o caminhávamos impressionou-me constatar que aquilo de que eu mais gostava naquele estado não era apenas das suas estradas solitárias e céus grandiosos, mas, também do seu respeito pela quietude. Estava quase escuro quando regressámos da nossa cam inhada. O fogão tinha cumprido a sua missão; a cabana perdera o seu ar de congelador. Anne retirou azeite de uma prateleira, deitou uma certa quantidade numa frigideira pesada e colocou-a sobre o fogão. - Estás prestes a descobrir as maravilhas do meu mo lho silvestre para massas - anunciou. - Que tal abrires uma garrafa de vinho? Adicionou duas latas de tomate ao conteúdo da frigi deira e depois encheu uma panela com água e pousou-a na par te de trás do fogão. - Tens uma despensa impressionante - exclamei, obse rvando a enorme variedade de produtos enlatados. - Se quis esses, podias desaparecer sem deixar rasto. - Agora, já não - replicou ela. - Então, porquê? Esboçou um meio-sorriso. - Agora, já sabias onde havias de encontrar-me. Adicionou ainda uma lata de mexilhão ao tomate e de itou uma mão-cheia de esparguete para dentro da água a ferve r. Eu abri uma garrafa de Shiraz, acendi umas velas e pus a mesa. - Linguine alle vongole - disse Anne, pousando uma tigela e 112 massa fumegante em cima da mesa. - Uma das especial idades preferidas do Montana. Comemos. Esvaziámos a garrafa de Shiraz. A luz da v ela tremeluzia. Anne inclinou-se para a frente, pousando a sua mão sobre a minha. A luz da vela iluminava-lhe o rosto. - Estás contente? - perguntou ela. - Muito contente. - Eu também. Fizemos silêncio. Em seguida, ela perg untou: - Tens um filho nalgum lado? Cerrei a mão livre sem pensar. Graças a Deus, tinha -a debaixo da mesa. Não. isso surpreende-me. Porquê? Porque, quando te falei de Charlie, ficaste muito p erturbado. É uma história muito perturbadora - expliquei. Pois é, mas das poucas pessoas a quem a contei, as que não têm filhos não costumam reagir de forma tão emotiva, ao passo que quem já os tem acha a história extremamente aflitiva, como te aconteceu a ti. Encolhi os ombros. Pareceu-me ser aquela a resposta mais

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segura. - Não me interpretes mal - prosseguiu ela. - Fiquei muito sensibilizada com a tua reacção, mas a verdade é qu e também me surpreendeu. - Fez uma pausa e em seguida fitou-me a direito nos olhos. - Queres ter filhos? Retribuí-lhe o olhar. É possível. E tu? Também é possível. SENTI UMA mÃo apertar-me o ombro, abanando-me. - Gary ... Acordei de repente. Anne estava junto à cama, vesti da e ansiosa. - Temos de ir - disse ela. - O quê ... - O meu cérebro estava muito confuso. O lhei para o relógio: quase meio-dia. Não admirava que me sentis se desorientado. - Temos de fugir imediatamente - disse Anne. - Porquê? - Já te mostro quando te levantares. Mas tens de le vantar-te já. - Só lhe faltou puxar-me da cama para fora. - Mexe-te ! Obedeci às ordens dela, vestindo-me à pressa e atir ando com as minhas coisas para dentro do saco de fim-de-semana. - Porquê todo este drama? 113 Anda lá fora - disse ela. Peguei no saco e abri a porta. Tinha deflagrado um incêndio que envolvia parte da floresta. Estava a pouco mais de um quilómetro de distância, e as chamas lambiam os top os das árvores. Soprava um vento forte, avivando a fornalha. Corri para o carro e pe guei na minha máquina fotográfica. - Estás doido? - gritou Anne. - Vou só tirar umas fotografias. - Usa Rford HP4. Dá imagens mais definidas. Eu sorri-lhe e disse: - Sim, chefe. - E despacha-te com isso. Já só temos uns minutos. Enrosquei uma teleobjectiva e tirei apressadamente uma dúzia de instantânios dos pinheiros em chamas. Vistos atr avés da lente de aumento pareciam velas de aniversário gigantescas a arderem alegremente. Mas depois ouviu-se um silvo sinistro, e as chamas pare ceram aumentar subitamente, espalhando-se mais para a nos sa direcção. - Vamos mas é sair daqui - exclamou Anne. - Eu cond uzo. Atirei-lhe as chaves e saltámos para dentro do MG. Ela ligou a ignição. Nada. Voltou a rodar a chave. Nem o mínimo ruído. - Dá umas aceleradelas - recomendei. Ela assim fez, e depois experimentou a ignição. Sil êncio. Já sentíamos o cheiro dos pinheiros a arderem. - Se não arrancar, vamos morrer - comentou Anne, desesperada,voltando a carregar repetidas vezes no pedal. - Pára - ordenei-lhe

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- Vais afogar o motor. Mete a segunda e agora roda a chave e carrega a fundo na embraiagem. Ela obedeceu-me. Saltei para fora do carro, corri a té à traseira e empurrei. De início, não se mexeu, mas d epois de eu o impelir vigorosamente por cima de um montículo, começou a d escer a encosta. - Solta a embraiagem - gritei. De súbito, o motor deu sinal de vida. - Acelera - gritei de novo enquanto Anne tentava ag uentar o motor a trabalhar. Porém, ao fim de uns segundos voltou a fazer-se silêncio. - Que diabo! - Desesperada, Anne rodou de novo a ch ave. O motor fez um gemido. O fumo do incêndio ia-se torna ndo mais espesso. - Engata a segunda - gritei. - Carregaste na embrai agem? - Carreguei - retorquiu-me ela, também aos gritos. - Empurra. Reunindo todas as minhas forças, voltei a impelir o MG e corri atrás dele até ter adquirido velocidade, afastando-se de mim. Deu um solavanco convulsivo, seguido pelo rugido tranquili zante do motor. Precipitei-me para o carro e saltei lá para dentro. 114 Anne carregou a fundo no acelerador, meteu a primei ra e arrancámos. O vento voltara a soprar com muita forç a, e uma nuvem espessa e tóxica de fumo entrou pela janela, fazendo-nos sent ir asfixiados e cobrindo-nos de fuligem. Tentámos fech ar as janelas, sacudidos por um violento acesso de tosse. A visibilidade era reduzi da - três metros, no máximo. Anne ia sempre inclinada sobre o volante, t entando fixar o olhar no pouco que conseguia ver da estrada. Durante um q uarto de hora não trocámos uma palavra. Ambos sabíamos que, se não fu gíssemos rapidamente dali, o fogo nos devoraria inteiros. O fumo era aterrador. Anne estava lívida, mas conti nuou a conduzir o automóvel o mais depressa possível pela vereda esbu racada. No momento preciso em que o nevoeiro abriu por alguns instantes, pondo a descoberto a estrada principal, ouviu-se um estam pido enquanto o fogo se aproximava atrás de nós. Anne gritou quando um gran de pinheiro se partiu ao meio e ficou suspenso sobre a estrada, com os ramos em chamas. Mas quando parecia mesmo que o ramo ia tombar à nos sa frente, um jorro de água inundou o pára-brisas, cegando-nos . Quando a água escorreu, descobrimos que tínhamos chegado à estrada principa l e que havíamos sido salvos da imolação pela brigada local de bombe iros. Dois bombeiros tardados correram para o carro e pux aram-nos para

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fora. Anne estava presa de um acesso violento de vó mitos, quase sufocada. Um dos bombeiros cobriu-lhe o rosto com uma máscara de oxigénio. Peguei na minha máquina fotográfica e corri para ju nto dela. - Estás bem? - perguntei. Ela assentiu com a cabeça, depois retirou a máscara e ordenou: - Atira-te ao trabalho. - Já percebi. - Quero a cores e também a preto e branco. Inclinei-me para ela e beijei-a. - Menina, volte a pôr a máscara - recomendou um dos bombeiros. Mas ela já procurava o telemóvel no bolso do casaco . - Só depois de telefonar para o meu jornal. Gary, f az lá o que eu te disse. Corri estrada acima. No ar, hidroaviões bombardeava m o incêndio com água, regressando depois ao lago para reabastec er os depósitos. Mudei para Fujicolor e tirei um primeiro plano de u m bombeiro mais velho - com a pele encarquilhada como cimento seco - com os olhos muito abertos de estupefacção, enquanto o brilho ve rmelho das chamas lhe inundava o rosto. O calor à minha volta era tão intenso que eu estava encharcado de suor, mas continuei a trabalhar, com o cérebro a galopar a todo o vapor. A gravidade da situação - o facto de Anne e eu termos escapado 115 à imolação por uma questão de segundos - era ultrapassada a emoção do perigo, de me encontrar finalmente em acç ão. Agora, compreendia por que razão os fotógrafos de guerra c orrem na direcção dos tiros. Havia qualquer coisa de irresistível em esta r tão perto da morte. Contudo, tem-se a sensação de que, estando a ver tu do através de objectiva, se está imunizado contra o perigo. A máquina fotográfica torna-se uma espécie de escudo. Protege -nos do perigo. Ou pelo menos, era isso que eu pensava enquanto corria para um lad o e para outro.Ao longo da estrada florestal, desbobinando rolos de f otografias, ignorando completamente as chamas. - O senhor aí, seu fotógrafo! - Voltei-me e vi o co mandante dos bombeiros a apontar na minha direcção. - Quero que saia ... Não completou a frase, pois um lençol de chamas sal tou subitamente do alto das árvores, envolvendo um bombeiro que se encontrava três metros à frente dele. Três colegas precipitara m-se imediatamente na direção dele. Dirigi a minha objectiva para o co rpo, transformado

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num archote. O meu dedo não parava de carregar no b otão enquanto o bombeiro revoluteava sobre si próprio, agonizante - com a ro upa e o cabelo ao fogo -, e os colegas tentavam desesperadamente salvá-lo. Vencidas as chamas, o bombeiro tombou simplesmente de borco, ficando deitado por terra muito quieto. Fotografei outro ângulo, enquanto o comandante dos bombeiros, tentava desesperadamente uma massagem cardíaca e depois sentir o pulso. A minha última fo tografia foi do comandante ajoelhado ao lado do cadáver, com as mãos cobrindo o rosto. - ho, céus ... - Era Anne. Estava atrás de mim e ob servava a cena, em estado de choque. - Ele está ... Assenti com a cabeça. Aproximou-se de nós um bombei ro. - Está na hora de os senhores se irem embora - diss e ele. - Já. Fugimos como bandidos. Ao fim de dez minutos, estáv amos de volta à Estrada 200. - Acho que é o fim da minha cabana - disse Anne. O telemóvel tocou. Ela atendeu-o e entabulou uma rápida troca d e palavras sobre o fogo. - Sim ... Preto e branco e a cores ... Um mor to até agora . Estamos aí dentro de uma hora. Voltou-se para mim. - Era o director. Está encantado por nós quase term os sido assados vivos e por acontecer tu teres a máquina contigo na altura. Está a guardar a primeira página, por isso temos de nos apressar. - Carregou no acelerador até o MG atingir cento e quarenta. - Qua ntos rolos tiraste? -Quatro a preto e branco, quatro a cores. - Óptimo. As fotografias a cores vão ser extremamen te vendáveis. 116 - A quem? - Time, Newsweek. A quem pagar mais. - E quem vai vendê-las? - Vou eu, na minha posição de editor fotográfico do jornal. - Não sabia que tinha acordado com o Montanan a pos se de direitos subsidiários, de Marketing. Ela ergueu os olhos para o céu. - Está bem, vamos lá resolver isto: quanto queres p ela primeira Publicação das fotografias no nosso jornal ? - Dois mil. - Não sejas doido. Somos um jornal de uma pequena c idade. Até mil dólares já seria excessivo. - Então, terei de as vender a outro jornal. - Mil e quinhentos. E uma partilha de cinquenta por cento

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sobre todas as que vendermos. - Cinquenta e cinco-quarenta e cinco. - Odeio-te - exclamou ela. Inclinei-me e beijei-lhe o cabelo. - Bem, eu amo-te - repliquei. Ela voltou-se para mim subitamente e fitou-me, muit o séria. - Olha para a estrada - recomendei eu. Ela fixou de novo o olhar no pára-brisas. - O que acabaste de dizer não era uma táctica de ne gócios, pois não? - Oli, você saiu-me cá uma peça, Ms. Ames. - Bem - concluiu ela por fim -, acho que vou aceita r os teus termos. Chegámos ao jornal em quarenta minutos. Jane, a ass istente de Anne, estava à nossa espera no átrio, andando para trás e para diante. - Bem, querida - pediu Anne -, leva depressa a pelí cula de Gary para o laboratório. Quero provas de contacto dentro de uma hora. Um homem de meia-idade com um casaco de tweed avanç ou em grandes passadas decididas na nossa direcção. - Você deve ser Gary Summers - disse ele, estendend o-me a mão. - Stuart Siminons. - O nosso chefe - explicou Anne. Stu voltou-se para Anne. - Quero-te cá até que esteja terminada a paginação - disse ele mas vamos precisar de fotografias do rescaldo para amanhã. Gary, está pronto para outra incursão na frente de combate? Ta lvez possa tirar algumas fotografias nocturnas ... ? 117 Era difícil resistir à analogia com o campo de bata lha. Respondi afirmativamente. - óptimo - replicou Stu. - Mas tenha muito cuidado. Anne entregou-me o telemóvel dela para o caso de al gum de nós precisar de entrar em contacto com o outro. Tocou-m e no braço e recomendou: - Não faças parvoíces. Passada uma hora, eu estava de volta ao local do in cêndio. A cena no caminho florestal transformara-se num circo de fotó grafos e jornalistas. Quatro equipas de televisão. Duas ou três estações de rádio ... e RuWarren. - Que faz por aqui? - perguntei-lhe. - Stu Siminons quer um comentário pronto para passa r no noticiário das oito da noite. Rudy desapareceu no meio da confusão. De vez em qua ndo, avistava-o a perscrutar os bombeiros enquanto eles manejavam mangueiras de água desajeitadas, protegendo a retaguarda uns dos outros. De tempos a tempos, puxava de um bloco de notas e escrevinhava qualquer coisa Mas, essencialmente, limitava-se a observar. Vê-lo a trabalhar fez-me

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lembrar que os escritores são como animais carnívor os - observam cuidadosamente uma cena em busca de detalh es que, depois de reunidos, darão origem ao Grande Furo da sua vida. Os fotógra fos andam sempre alerta, na intenção de conseguirem apanhar a quela imagem ousada capaz, de definir uma história. Mas um escritor sabe que a sua arte consiste, em parte, em transfigurar pequenos incidentes numa nar rativa arrebatadora. Consiste ainda num acto de equilíbrio - uma históri a sem detalhes poderosos torna-se, inevitavelmente, numa narrativa sem interesse. Contudo, um escritor que não tenha uma v isão global crítica deixa-nos com sensação de não ter captado as implicações mais vas tas dos acontecimentos observados. Rudy Warren podia ser um dos principais bêbados do Montana, mas, no que tocava a escrita, compreendia essa necessida de de equilibrar os pormenores com um tema subjacente. Passada uma hora sobre a minha chegada ao local do incêndio, encontrou-me a fotogr afar um bombeiro que estava a receber tratamento por inalação de fum o. - Empreste-me o seu telemóvel - pediu Rudy. Passei-lho. Ligou para o jornal, pediu um gravador e começou a ditar o seu comentário. Recorreu uma ou duas vezes ao blo co de notas, mas, essencialmente, foi uma actuação de mestre, com uma fluência perfeita. Pus-me à escuta, assombrado com a forma como ele ut ilizava imagens reveladoras. 118 disse: O bombeiro Chuck Manning estava prostrado junto ao camião número dois, sem vontade de nada a não ser de uma c erveja fresca e um cigarro. Cerveja não havia, mas ele tinha um maç o de Marlboro no bolso da farda. Pescou um e entalou-o entre os dentes enegre cidos. Depois, apalpando os bolsos, apercebeu-se de que nã o tinha lume. A três metros de distância, uma golfada de chamas incinerou de repen te outra parcela da maior reserva florestal do Montana. Piscou os olhos , chocado, frente àquele inferno. O cigarro continuou apagado. Quando Rudy acabou de ditar, fez parar um bombeiro que passava por nós.

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- Sargento, tem alguma ideia do que pode ter causad o o incêndio? - perguntou ele. - Provavelmente, algum turista que atirou um cigarr o pela janela do carro. Eu tinha uma pergunta a fazer ao sargento. Alguma d as cabanas frente ao lago tinha sobrevivido àquela fornalha? - Quer acredite, quer não, o fogo não atingiu as ma rgens. Não houve quaisquer danos em habitações. - Anne vai gostar de saber que a cabana dela se saf ou - comentou Rudy. - Como é que você sabe que ela tem uma cabana aqui? - admirei-me. Rudy revirou os olhos, impaciente. - Você ainda não percebeu como é esta cidade. O telemóvel tocou. Era Anne. - Ainda estás inteiro? - perguntou ela. - Estou. E a tua cabana também. Alguém lá em cima g osta de ti. - Alguém cá em baixo gosta de ti. Desde que enviámo s as tuas fotografias para o serviço fotográfico da Associate d Press ... - Vocês fizeram o quê? - A AP queria imagens. Então, enviei-lhe imediatame nte dez das tuas melhores fotografias pela rede. Chegaram a tod a a parte. Sentia-me desorientado ... e nervoso. - Ai! - exclamei. - Não fiques assim tão contente - ironizou Anne. - Tens mais películas para mim? - Tenho. - Bem, então traz-mas já cá. - Depois, desligou. Rudy - o grande sabichão - farejou o meu pouco à-vo ntade e disse: - Pareces alguém que ainda não conseguiu acostumar- se ao êxito! Segui o Bronco velho de Rudy de regresso a Mountain Falls. Ele estacionou em frente do Eddie's. Eu continuei até a o Montanan. Ao entrar a primeira edição estava a sair da impressão. Anne correu para mim, trazendo na mão uma cópia com a tinta ainda fresca. O título da primeira página era o seguinte: DOIS MORTOS ENQUANTO O FOGO DEVORA FLOREsta ESTADUAL. Por baixo deste, encontrava-se a minha fotografia a preto e branco: comandante dos bombeiros ajoelhado ao lado do cadáv er de um dos excolegas mortos, com o rosto enterrado nas mão s. Mais cinco fotografias tiradas por mim adornavam as páginas interiores. St u Sinimons veio ter connosco. - Magnífico trabalho, Gary. Jane estava sentada em frente a um terminal de comp utador ali próximo. - Gary - chamou ela -, você tem de ver isto. É espa ntoso. Reunimo-nos todos junto ao terminal. Ela estava a n avegar na Internet, contactando os principais jornais do país . Uma a uma, foram aparecendo diante de nós as primeiras páginas do New York Times, do Post de Washington e do USA Today. Todas elas ostentavam a minha fotografia

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do bombeiro morto e do seu comandante desgostoso. T odas elas diziam também de quem eram os créditos: foto de Gary Summe rs/The Montanan. - Parece que já é famoso - comentou Jane. TODA A GENTE publicou aquela fotografia. Fora compr ada por quarenta jornais de todo o país, segundo Jane, que foi encarregada de as localizar. No fim dessa semana, eu tinha compreendido uma das grandes verdades da vida na América: quando alguém está na moda, todos o querem. O tipo que se esforça por ser reconhecido, é uma fi gura desprezada na nossa cultura. É visto como um falhado que tenta desesperadamente convencer um editor, um produtor, um proprietário de galeria, de que também é capaz de entrar no jogo - bastando par a isso que a oportunidade 120 certa se lhe atravesse no caminho. Mas, como é óbvi o, ninguém quer dar-lhe essa oportunidade. Mesmo que achem que ele pode ter algum talento, têm o pavor de confiar no seu próprio juíz o e de apoiar um desconhecido. Por isso, o zé-ninguém continua a ser um zé-ninguém. A menos que um golpe de sorte inesperado intervenha e o bri lho do êxito profissional o envolva. De súbito, ele passa a ser a mascote do dia. Então, toda a gente atende os seus telefonemas, toda a gente lh e telefona. Porque ele foi ungido com a aura do sucesso. - Grandes novidades - exclamou Anne certa noite. - A revista Time telefonou e pediu-nos que lhe enviássemos cinq uenta dos teus negativos a cores. O editor fotográfico disse que publicariam duas páginas só com fotografias a cores, acompanhadas por um art igo. Naquela semana, Gary Summers passou a ser um dos un gidos. Aconteceu no dia em que a Time chegou às bancas. Quando fitei as duas páginas cobertas de fotografias - com o meu no me exposto em local proeminente por baixo do título: «NO INFERNO DA NAT UREZA»-, a única coisa que consegui pensar foi: «Toda a gente vai ver as f otografias, toda a gente vai ver o nome, e vai tudo começar a s er desvendado.» No dia seguinte, o telefone começou a tocar ... con stantemente. Deixei o gravador de chamadas a atender os telefone mas. A primeira mensagem foi de Judy Wilmers. Ela estava num frenesim de febre mercantil. - Que posso eu dizer? Eu também vi e adorei; você é um gênio. E o que isto vai dignificar os Rostos do Montana! nem p osso imaginar. Telefone-me, seu gênio.Telefone-me. A segunda foi de Jules Rossen, editor fotográfico d a revista Destinations. - Olá, Gary! Jane, do Montanan, acabou de me dar o seu número

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de telefone ... «Vou matá-la a fogo lento», pensei eu. - Precisamos de falar de negócios, hombre - continu ava a mensagem. - Telefone-me às ... Claro que eu não ia responder a Jules Rossen. Ele p oderia achar estranho que a voz de Gary se tivesse alterad o tanto desde que mudara para O Oeste. Eu precisava de um intermediário. Peguei n o telefone e liguei a Judy. - Gary, bello, eu estava mesmo para lhe telefonar. Como é que se sente como estrela? - Tem coisas boas e más! - Escute, já ouviu falar de Cloris Feldman? Agente literária extraordinaire de Nova Iorque? Você é o novo client e dela. Apenas para o livro, 121 claro. Eu vou enviar-lhe por ela os negativos da ex posição dos Rostos de Montana e ela já tem o nome de pelo menos cinco editores que adorariam publicar um livro com elas. - Você é uma verdadeira intermediária, Judy - repli quei. - MI' gostaria de me representar no que respeita a contac tos para trabalhar com revistas? Ela precisou de um milésimo de segundo para aceitar . Precisou dois milésimos para estabelecer uma comissão de qui nze por cento. também aceitou gravar uma fita para o meu atendedor de chamadas informando que todas as questões profissio nais seriam tratadas pela agente de Mr. Summers, dando o seu próprio número de telef one. Passados cinco dias, Judy já tinha quatro ofertas. Duas tentavam-me - uma proposta da National Geographic p ara uma edição inteiramente dedicada ao Montana e outra para uma h istória mundana da Vaníty Fair que implicaria retratar a actores famosos que tivessem comprado ranchos no estado. - Vão intitulá-la «Hollywood, Montana» - explicou J udy. - já sabe o tipo de coisa que eles querem: Jane Fonda e Ted Turner, dejeans e botas de cowboy. Tem de aproveitar a oportunidade . Ficaria estabelecido como um tipo que tanto sabe trabalhar rostos famosos como os estratos mais rudes e baixos da sociedade; Conse guiria exigir os preços que quisesse para o resto da sua carreira. Mostrei uma certa relutância por ter de confraterni zar com gente rica e glamorosa ... até Judy mencionar os honorários: 2 500 dólares por dia por um trabalho de doze dias. E eu podia esperar pa ra começar a fazer este trabalho até depois da abertura da minha expos ição, dali a duas semanas. Isso dar-me-ia tempo suficiente par a terminar

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o trabalho para a National Geographic - um pequeno conjunto de foto grafias das estradas do Montana. - Pediram a seis fotógrafos que se concentrassem so bre vários aspectos do estado - explicou Judy. - Acharam que v ocê podia ser o tipo das auto-estradas. É uma oportunidade fantástica pa ra reforçar o seu material como autor de «A Fotografia do Século», o grande furo da sua vida. Siga a rotina da «Estrada Solitária». Capte a queles dois trilhos de alcatrão que desaparecem no horizonte ao pôr do Sol ... - Quanto oferecem eles? - Quatro mil. E isso permitir-lhe-á sair da cidade nas semanas que decorrem até à exposição. Por muito frio que você s eja, uma semana antes da inauguração vai ficar com NPE. - Que é isso? - Nervos pré-exposição. 122 Ri-me e aceitei as duas encomendas. Trinta e quatro mil dólares por dois contratos. O absurdo do êxito aterrava-me. Na tarde anterior à minha partida em busca da estra da perfeita do Montana, chegou uma carta da Estação Alternativa de Correios de Berkeley. Reconheci imediatamente a graciosa cal igrafia. Gary Depois de ter recebido a tua carta de despedida em Dezembro, jurei nunca mais entrar em contacto contigo. Por favor, n ão penses que o teu trabalho exposto com tanta profusão na revista Time te tornou subitamente simpático a meus olhos. A tua carta che gou na sequência imediata das semanas mais terríveis da minha vida. Ben morreu num acidente de barco a 7 de Novembro. F oi um choque tremendo, e o que o tornou ainda mais insuportável foi o facto de eu lhe ter pedido o divórcio no início dessa semana, como tu bem sabes. Embora o relatório do médico-legista tivesse declarado «morte acidental», não posso deixar de me interrogar se ele não terá s ido impelido a cometer um acto de autodestruição irrevogável enquanto se e ncontrava no alto mar. Na última vez que o vi, tivemos uma cena horrí vel por causa de uma bicicleta que ele comprou a Adam. Dois dias depois, ele morria. Tenho terríveis remorsos. Temo que nunca mais desapareçam . Josh, claro, é demasiado pequeno para se aperceber dos acontecimentos, mas para Adam foi muito duro. Duran te várias semanas

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após a morte de Ben, continuava a perguntar quando é que o pai vinha para casa. Quando eu finalmente lhe disse que o pai tinha tido um acidente e nunca mais regressaria a casa, ficou inconsolável. Já pas saram meses, mas ele continua inconsolável. Não consegue aceitar os fact os. Interrompi a leitura, tentando controlar-me. Não co nsegui. Fui para a casa de banho e mergulhei o rosto no lavatório chei o de água fria. Em seguida, voltei a pegar na carta. A tua missiva a dar-me uma «tampa» aterrou no meu t apete de entrada quinze dias depois do começo deste pesadelo . Pontaria impecável. Até há muito pouco tempo, senti-me uma verdadeira candi data a um esgotamento nervoso. Depois, conheci Elliot Burden. Talvez tenhas ouvido falar dele. Ex-grande senhor da Goldman Sach s, que deixou a Wall Street para abrir uma galeria na Wooster Street. Tem cinqu enta e muitos, é divorciado e tem dois filhos já crescidos . Pode não ser o amor da minha vida, mas é afectuoso, estável e com uma boa posiçã o financeira. Também já começou a estabelecer uma cer ta relação com Adam. 123 Elliot Burden. Amaldiçoei-o imediatamente. Provavel mente, será o cavalheiro boémio: blazer Ralph Lauren e jeans A rmani. E agora pai adoptivo dos meus dois filhos. O homem a quem A dam começará a chamar pai antes do fim do ano. Foi Elliot quem me convenceu a escrever-te. Ele sen tia que, enquanto eu não te informasse sobre o que aconteceu a Ben, n ão seria capaz de cortar contigo. Obtive o teu endereço através da Es tação de Correios de New Croydon, mas, a julgar por aquilo que li na Tim e, tu agora estás instalado no Montana. Isso significa que tamb ém partiste o coração à tua conquista de Berkeley ou foi ela quem tomou juizo e te pôs na rua? De qualquer forma, Elliot é amigo de Cloris Feldman. E la mostrou-nos as fotografias da tua próxima exposição. Elliot adorou . Quanto a mim, também fiquei profundamente impressionada, emb ora preferisse não o admitir. Agora, atingiste o sucesso; estás a dar. Beth Cortar ... Essa palavra oca dos anos 90. Quando se matou alguém e se perdeu dois filhos, é impossível cortar. Contudo, s e Beth queria um fim bem definido, eu fazia-lhe a vontade. Abri a agenda

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electrónica e comecei a escrever. B.: A tua carta estava à minha espera quando regres sei do Montana. Ainda conservo uma casa na Bay Arca, embora passe c ada vez mais tempo na ruralidade do Norte. Ao que parece, p assaste um mau bocado; contudo, esse tal Elliot parece-me ser uma boa notícia - alguém com quem poderás manter o estilo de vida a que estás habitua da. Obrigada por dizeres que as minhas fotografias são boas. Isso significa muito para mim. Cuida bem de ti. G. Enviei a carta para a Estação de Correios Alternati va e depois segui de automóvel para o Montana. Como tinha de pa rtir na manhã seguinte para o extremo leste do estado, prometera levar Ann e a jantar ao Le Petit Place e combinara ir buscá-la ao escritório. Contud o, mal entrei na sala da redacção, tive de me desviar de uma cadeira voad ora que atingiu a parede à esquerda do meu ombro. Em seguid a, um teclado de computador caiu com estrondo aos meus pés. - Um presentinho para o homem do ano da Time. Ergui o olhar no momento preciso em que Rudy Warren estilhaçava 124 com o punho o ecrã do seu computador Mac. Todos na sala da redacção fitavam Rudy, horrorizados, tombado na sua cadeira com o punho enfiado no terminal. Começou a escorrer sangue pelo lado da sua secretária. Ele fitava aquele derramamento de líquido circulató rio com estupefacção, Foi então que percebi que estava bêba do. Anne precipitou-se para fora do seu gabinete com um estojo de primeiros socorros na mão. Abriu muito os olhos ao ver o sangue que corria em cascata da secretária para o chão. Ergueu o olha r para os colegas. - Bem, não fiquem para aí a olhar! - exclamou. - Ch amem uma ambulância. - Olá, meu amor. - Rudy dirigiu-lhe um sorriso dips omaníaco. - Esquece isso do meu amor, Rudy. Vamos antes tenta r retirar a tua mão do computador? - Ergueu o olhar para mim. - Vou ter contigo ao restaurante - articulou ela, e depois regressou à t arefa que tinha em mãos. Eu já ia no meu segundo martini quando Anne entrou finalmente no Le Petit Place. - Este suspense está a matar-me - disse eu depois d e mandar vir uma bebida para ela. - O punho dele ainda está dent ro do Mac? - Não. A operação de remoção foi um êxito. Agora, e le está a

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ser cosido no Mountain Falis General. Esperemos que o acorrentem à cama durante a noite. O tipo tinha cerca de uns cinco li tros de J&B a passearem-lhe pelas veias. - Entrelaçou os dedos nos meus. - Vou ter saudades tuas - disse ela. - Muitas. - São só dez dias. Depois, estarei de volta. - Tens a certeza de que vais voltar? - Absoluta. - Não sei. O êxito é uma droga perigosa. Vais começ ar a gostar cada vez mais dele. Em breve, as pessoas começam a dizer -te que és muito importante, e tu começas a pensar que têm razão. E também começas a pensar que podes esquecer-te do teu passado. É assi m que o êxito funCiona. - Não no meu caso. Ela evitou o meu olhar. - Veremos. Um silêncio incómodo caiu sobre a mesa. Anne contin uava de olhos Postos na bebida, parecendo distraída. - É só uma semana e meia, Anne - disse eu por fim. - Eu sei. - E eu só vou ao Leste do Montana, não vou para o I raque. - Eu sei. 125 - Eu telefono-te todos os dias, não te preocupes. - Tu realmente não sabes o que é perder alguma cois a na vida, pois não? Estive prestes a ripostar «Isso não é verdade», mas consegui conter-me.. - A perda faz-nos considerar tudo como sendo ténue e frágil - prosseguiu ela. - Se nos aparece uma coisa boa na vida, nós sabemos que é apenas uma questão de tempo até que ela nos s eja tirada. - Eu não vou desaparecer, Anne. NA MANHÃ SEGUiNTE, enquanto atravessava a Divisória Continental. dei comigo a pensar: «Anne sabe. Pode ainda não ter percebido tudo mas, instintivamente, suspeita de que ando a fugir de alguma coisa. agora receia aquilo que eu receio - que o êxito pon ha tudo a descoberto, obrigando-me a desaparecer da vista de todos.» Mas quando falei a Anne nessa noite, depois de me a lojar num motel num sítio chamado Lewistown, ela estava decididamen te alegre. - O motel é romântico? - perguntou provocadoramente . - Só se tu fores fã de Anthony Perkins. - Por falar em psicóticos, Rudy Warren desapareceu. - é incorrigível. - Fugiu do hospital ontem à noite e nunca mais foi visto nem se ouviu falar dele. - Nem sequer há uma pista de para onde terá ido? - O carro dele continua estacionado à porta do jorn al. Ninguém o

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viu no aeroporto. O que eu penso é que ele possa te r apanhado um autocarro. Como é Lewistown? - Um lugar sem absolutamente nada. - Detesto o Leste do Montana. É demasiado plano, de masiado vazio. Anne tinha razão. Esta parte do Montana era uma reg ião soturna e desolada de vegetação rasteira e com uma paragem de camioneta de vez em quando. Vagueei pelos arredores durante mais de uma semana, passando porcidadezinhas tais como Lustre, Antelope e Plerit ywood. Tirando rolos atrás de rolos de fotografias. Dormia todas as noit es num motel e fazia duas chamadas para Mountain Falls. A primeira para fazer o ponto de situação diário dos negócios com Judy. - Ah, é verdade - disse ela certa noite -, a Nation al Geographic quer uma fotografia de passe sua para a página dos colaboradores. - Informe-os de que eu não gosto de ser fotografado . 126 Muito engraçado. Estou a falar a sério. O Mundo não precisa de ver a minha cara. - Quem diabo é você? A Greta Garbo? - Apenas alguém que não quer entrar no jogo das pro moções. Essa função é sua. A mim, deixe-me de fora. E nada de fo tografias da minha pessoa. Entendido? Você é o patrão ... Infelizmente. Creio que Judy aceitou a minha aldrabice de artista tímido. Anne, pelo contrário, quis mandar-me prender por altivez. Passados uns dias, o seu telefonema nocturno começou com uma pergunta: - è verdade que disseste a Judy que não deixavas qu e a tua fotografia aparecesse onde quer que fosse? - Vejo que os tambores da aldeia já deram sinal out ra vez. - Estás a esquivar-te à pergunta. - Sim, foram essas as minhas instruções. - Isso é de rir à gargalhada. - Eu não quero chamar a atenção. Assim, fomentarei a aura mística. - Pareceu-me sentir uma certa ironia nessa última a firmação; será verdade? Sentiste, sim. - Que alívio! Onde estás hoje? - Mildred, Montana. - Nunca ouvi falar nisso - comentou ela. - Sabes quem está a viver cá? Rudy Warren. - Pois sim! A propósito, ele acabou por telefonar a Stu. Contou-lhe que ia a caminho de Tijuana e que queria uma licenç a paga de seis meses. - Temos de convir que Rudy tem uma certa noção de e stilo! - Stu concordou com a licença, mas sem vencimento, claro.

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- O que é que o velho Rudy vai fazer para o México? - Dar cabo do fígado com tequila barata ... coisas espertas como essa. - É uma das desvantagens do Leste do Montana, não h á tequila barata. Calculo que não queiras vir aqui ter comigo ... - A Mildred? Nem penses. Mas podes continuar a ter saudades minhas. - Vou continuar. E de facto continuei. Mas quando empreendi o meu ca minho de regresso para oeste, comecei a ser invadido por um grande temor. Nas grandes regiões selvagens e isoladas, eu sentia-me seguro, ninguém me conhecia. Mas, em Mountain Falls, eu já era uma car a conhecida. E, se 127 Judy fizesse o seu trabalho como devia ser, começar ia também a ter nome. Em tempos, eu ansiara por isso. Agora, po rém, queria fugir da fama, porque, inevitavelmente, ela conduziria à min ha denúncia. Sobreudo, uma voz sussurrava dentro da minha cabeça : «Se tiveres cuidado podes safar-te bem. Podes alcançar um lugar proemin ente como fotógrafo. Podes viver bem com Anne. Basta manteres -te afastado da vista dos outros.» Na manhã da inauguração da exposição, ao preparar-m e para enfrentar os últimos trezentos quilómetros de regresso a Moun tain Falls, o motor do MG calou-se. Eu estava em Bozeman , e um mecânico local diagnosticou vários problemas de combustão interna. - Temos aqui um problema de válvulas - explicou ele . - E não lhe vai sobrar muito troco de mil dólares. Agora, v em a boa notícia: tenho uma folga. Se me der luz verde, posso entrega r-lhe o carro por volta do meio-dia. Atirei-lhe as chaves. Mas o mecânico fora extremamente optimista. Eram 3 da tarde quando ele finalmente rodou a chave da ignição e an unciou: - Acabou de comprar mais cento e cinquenta mil quil ómetros de vida para o seu MG pela pechincha de novecentos e oitenta e quatro dólares e setenta e dois cêntimos. Entreguei-lhe o cartão Visa de Gary. O mecânico int roduziu-o na máquina de cartões de crédito e pediu-me que assina sse sobre a linha tracejada. Verificou a minha assinatura e con cluiu que era legítima. - Vai para longe? - perguntou ele. - Mountain Falls, e tenho de lá estar às seis. - Trezentos quilómetros pela Montana-balin? Consegu e fazer iss em duas horas e sem grande esforço. O caminho é bom . Ele tinha razão. Na auto-estrada sem limite de velo cidade do Montana, é possível guiar a cento e sessenta à hora sem temer

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um encontro com a Brigada de Trânsito. A velocidade é a mais in toxicante de todas as drogas, e, à medida que me aproximava de Mountain F alls, senti-me meio tentado a não parar e seguir caminho. Anne andava de um lado para o outro no exterior da New Gallery quando estacionei. Tinha-se vestido de form a apropriada para a inauguração e estava muito atraente, com um fato de homem estilo Annie Hall com um casaco muito justo. - Por onde tens andado? - perguntou. Comecei a explicar o problema com o carro. - Cala-te e dá-me um beijo - exigiu ela. Obedeci. Judy precipitou-se para mim, vinda do inte rior da galeria. 128 - Realmente, você sabe como provocar uma úlcera a u ma mulher! Ainda a meio do beijo, levantei uma mão num gesto d e saudação. Quando finalmente entrei na galeria, respirei fundo . Ali, suspensos de paredes acabadas de caiar, encontravam-se os meu s quarenta retratos, muito bem emoldurados, dispostos de forma perfeita e bem iluminados. judy e Anne observavam em silêncio enquanto eu pass ava de fotografia em fotografia, tentando absorver tudo. Sentia-me es tranhamente desligado enquanto perscrutava o meu trabalho. Mas também sentia aquele estranho zumbido de prazer e terror decorren te do facto de sabermos que finalmente, e embora com muito custo, conseguimos c hegar à boca de cena, que finalmente podemos ser tomados a sério co mo praticantes do nosso ofício. Durante vários anos, eu fantasiara so bre este momento. Agora, só conseguia pensar: «Que pena Ben Brafford já não estar connosco para desfrutar disto.» - Então ... ? - inquiriu Judy finalmente. - Pode ser que o tipo até tenha qualquer coisa de f otógrafo - comentei. - Sim - concordou Anne, passando-me para a mão um c opo de vinho. - Até pode ser ... Eram 5.30. Já não tinha tempo para ir a casa mudar- me, por isso sentei-me numa mesa de café com Anne, engolind o nervosamente copo atrás de copo de Chablis da Califórnia. - Acalma-te - tranquilizou-me Anne. - Assim, cais p ara o lado antes das sete. - É essa a ideia - retorqui. DAvE, da Petrie Cameras, e a mulher, Beth, contavam -se entre os primeiros convidados a chegar. Afastei-me da mes a, cambaleante, para ir ter Com eles. Beth, uma mulher pequenina na casa dos tr inta,

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trazia óculos de avozinha e um macacão de ganga. - Este é o esquivo Gary Summers - disse Dave, apresentando-nos. - Será que alguma vez vamos conseguir tê-lo a janta r connosco? - Perguntou Beth. Não cheguei a responder, pois Judy puxou-me para ir cumprimentar Robin NickelI, o dono de uma grande galeria em Seat tle. - Adoro o seu trabalho - comentou Robin. - E sei qu e conseguiremos fazer-lhe uma publicidade fantástica quando abrirmos a exposição em Setembro. - Você ficou com a exposição? - perguntei, atordoad o com a notícia. 129 Judy intrometeu-se: - Fechámos o contrato na noite passada. - Gary Summers? Dei uma volta sobre mim próprio e deparei com um ho mem pesado de barbas e casaco de tweed. - Sou Gordon Craig, director do Departamento de Bel as-Artes da universidade. Magnífica mostra. Já alguma vez pe nsou em dar umas conferências em part-time? Anne poupou-me o ter de responder àquela pergunta a o dar-me uma pancadinha no ombro para me apresentar a alguém. - Nick Hawthorne, São Francisco. - disse ela. - O Homem da revista Time. - Estava aqui a fazer uma história em Kalispell e p ensei vir ver a sua inauguração - disse Nick. - Se amanhã tiver algum t empo livre, gostaria de me encontrar consigo para lhe apresenta r uma proposta. Estou a trabalhar num livro de viagens sobre o Novo Oeste Americano. ando à procura de um fotógrafo que colabore com ... Judy puxou-me, levando-me até junto de uma negocian te de arte de Portland para que eu fizesse conversa de salão c om ela. Não fixei o seu nome, pois o vinho estava finalmente a amorte cer todas as minhas faculdades cognitivas. Agora, deviam estar m ais de cem pessoas na galeria. Eu sentia uma necessidade desesperada de apanhar ar puro, mas continuava a ser levado de convidado em convidado, inclinando a cabeça como um autómato, enquanto outra pessoa me sacudia a mão e tentava entabular conversa comigo. A certa altura, Anne voltou a apanhar-me. - Estás bêbado - constatou ela. - Por favor, muda p ara água. Ainda falta uma hora para o fim. Vamo-nos embora daqui - pedi eu. É a tua festa. Tens de ficar. De qualquer forma, Ju dy quer apresentar-te a Elliot Burden. Recuperei subitamente a sobriedade. - A quem? - A Elliot Burden. Sabes, aquele tipo importante da Wall

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Street que abandonou tudo para gerir uma galeria no SoHo. - Ele está cá? - Acabou de chegar. Está aqui com uma antiga vizinh a tua do Connecticut. Beth qualquer coisa. - Beth Bradfford - disse eu num sussurro quase inau dível. - Isso mesmo - replicou Anne. Os meus olhos perscrutaram toda a sala. Estavam jun to à porta 130 em conversa animada com Judy. Elliot Burden - bronz eado, magro, um verdadeiro senhor, de blazer e calças de flanela - estava junto de Beth. Ela estava com um aspecto maravilhoso, muito elegan te, de vestido curto preto. Durante um instante, fiquei paralisado. Mas depois Judy viu-me a olhar na direcção dela, e eu executei uma reviravol ta imediata. - Que é que foi? - perguntou Anne. - Ficaste lívido . - Só preciso de apanhar ar. - Comecei a abrir camin ho por entre a multidão, com o olhar fixo numa porta das traseiras . - Gary - gritou Anne. De súbito, ouvi a voz da minha mulher. - Gary! - exclamou Beth. Senti-me petrificado, de costas para ela. Depois, l ancei-me para a porta e saí rapidamente para o exterior. Corri a to da a velocidade por uma rua secundária e precipitei-me para o meu apartamen to. Quando lá cheguei, lancei-me escada acima e depois porta adentro. Há dez dias que não ia a casa, e apercebi-me imedia tamente de que havia qualquer coisa de errado. Havia garrafas vazi as de cerveja e cinzeiros transbordantes, bem como latas semivazias de feijão guisado espalhadas pelo chão. Além disso, chegou-me aos ouvidos o barulho de água a correr vindo da casa de banho. Abri a porta com u m pontapé e fiquei a olhar para o corpo nu de Rudy Warren, debaixo do ch uveiro. - Olá, Gary - exclamou ele, fechando as torneiras e esboçando um grande sorriso, que revelou gengivas enegrecidas de sprovidas de dentadura. - Fez boa viagem? - Como entrou aqui? - Tinha uma chave - replicou ele, começando a limpa r-se com a toalha. - Você devolveu-me a chave. - Pois foi, mas fiz uma cópia antes ... - Você disse que não tinha feito cópia nenhuma. - Menti. - Não devia estar no México? - Também menti sobre isso. Precisava de um sítio pa ra me recolher,

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ordenar os pensamentos. E como sabia que você ia es tar fora... - Saia! - ordenei-lhe, agarrando-o pelo braço. Ele soltou-se, sacudindo a minha mão. - Não precisa de se armar em valentão! Foi interrompido pelo toque do intercomunicador. Ti nha de ser Anne. Rudy dirigiu-se ao interruptor que abria a porta da rua. - Não abra a minha porta - disse eu. Ele ignorou-me. Felizmente, era a mulher da lavanda ria a entregar-me umas peças. Após fechar a porta, voltei-me para o meu co mpanheiro e perguntei: - Que é que se passa com os seus dentes?? - Tiraram-mos quando dei entrada no hospital. E com o saí sem a autorização, os dentes não vieram comigo. - Sobreviveu dez dias sem dentes? - Não preciso de dentes para comer feijão guisado f rio. - Preciso que me faça um favor. - Isso depende - respondeu ele, vestindo a última p eça de roupa. - De quê? - do quanto me contar. - è um problema com uma mulher, está bem? - Isso é bastante vago, Gary. - Não posso dizer mais. - Então, acho que não posso ajudá-lo ... - Quer continuar nesta casa durante mais uma ou dua s semanas? - Seria agradável. - Então, vá até MacDougal Alley e traga-me o meu ca rro. - Isso é perigoso. Supostamente, eu estou a sul da fronteira. Levantei as chaves do automóvel. - Ou me vai buscar o carro ou se vai embora. Rudy pegou nas chaves e depois abriu o armário onde eu guardava as bebidas alcoólicas e retirou uma garrafa pequena de J&B. - Você não precisa de whisky - disse eu. - Ai isso é que preciso - replicou Rudy, bebendo um gole da garrafa. Dirigiu-me um sorriso radiante: - Estou de volta dentro de cinco minutos. Metendo a garrafa de J&B no bolso do casaco, saiu p orta fora. Enquanto eu fazia a mala, ia-se delineando um plano na minha cabeça. Refugiava-me num motel durante uns dias. No dia seguinte, telefonava a Anne e explicava que Beth era a tal mu lher casada com quem eu tivera uma ligação, e o facto de a ver a pa r da ansiedade da inauguração tinha-me deixado completamente zonzo. D iria a Anne que regressaria a Mountain Fals dentro de poucos dias, quando Beth e Elliot estivessem a uma distância segura, de regresso ao Leste. Certame nte ela ia ficar furiosa, mas enfrentar a sua ira era uma alte rnativa mais aceitável do que passar um período alargado nalguma penitenci ária. Olhei pela janela da cozinha e vi o MG entrar na ru a estreita atrás dos 132

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Frontier Apartments. Saí do apartamento e desci as escadas de serviço até à porta das traseiras. Mas, ao chegar ao carro, Rudy não queria sair do assento do condutor, dizendo: - Acho que vou acompanhá-lo na viagem. - impossível. - Agarrei o fecho da porta e tentei a bri-la, gritando: - Saia do carro, Rudy. - Grite um pouco mais alto - gracejou Rudy - e toda a cidade fica a saber da sua fuga. Corri para a porta do outro lado e entrei no carro. Porém, quando tentava retirar as chaves da ignição, Rudy l igou o motor e partiu rua abaixo. - Então, para onde vamos? - perguntou ele. - Eu devia matá-lo - foi a minha resposta. - Quer dizer, assim como matou Gary Summers? - Fiqu ei rígido. Por um ou dois segundos deixei de respirar. Rudy di rigiu-me um sorriso sombrio. - Eu bem sabia que isto ia emudecê-lo. Ent ão, para onde vamos? - Eu não conseguia falar. - O gato come u-lhe a língua? Que tal seguirmos pela Estrada 200 em direcção a leste? - L á consegui assentir com a cabeça. - Então, é para leste que vamos. Retirou do bolso a sua garrafa de J&B, bebeu um gol e e depois segurou a garrafa aberta contra o volante. Passou m eia hora antes de qualquer um de nós proferir palavra. - Como descobriu? - perguntei, finalmente. Rudy Warren deu uma gargalhada. - Se ao menos você tivesse televisão no apartamento , eu nunca teria sabido. Dêem-me «bonecos» para ver que eu passo tod o dia em frente do ecrã, mas como estava sem licença de saíd a e fiquei farto dos seus livros, comecei a meter o nariz em tudo. Certa tarde, abri o seu computador e percorri os documentos. Encontrei aquelas pequenas cartas de amor que você escrevia a B. Muito tocantes, na verdade. Vasc ulhei um pouco mais e descobri que o nome de B. era Beth Bradford. Depo is, dei com aquela carta de despedida que você escreveu em Dezembro di zendo-lhe que tinha montado casa com uma miúda qualquer em Be rkeley. Só que eu lembrava-me de que, cerca de dez dias antes do Nata l, eu tinha encontrado Meg Greenwood e ela me contara que tinha acabado de alugar um apartamento a um fotógrafo do Connecticut, um tipo de falinhas mansas que conseguira dela uma redução de renda, portando- se como se quisesse engatá-la, mas que mais tarde lhe dissera uma

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aldrabice qualquer acerca de uma namorada que tinha deixado n o Leste. Se Meg lhe alugou o apartamento em meados de Dezembro, você não podia t er estado em Berkeley por essa altura. Por isso, calculei que ho uvesse alguma razão muito forte para você não querer que B . soubesse do seu paradeiro. 133 Mais tarde, porém, enquanto examinava uma pilha de material na sua câmara-escura, encontrei a carta que B. lhe escreve u há poucas semanas atrás dizendo como o marido tinha morrido num acide nte de barco em Novembro. Não pude deixar de reparar que a sua part ida do Connecticut coincidia muito claramente com a morte desse tal Be n Bradlford, com cuja mulher você até costumava dormir, por coin cidência. - Fez uma pausa, tomou um longo gole de J&B e lançou-me outro sorriso sardónico. - Está a gostar da história, até aqui? Olhei em frente, fitando a estrada negra, sem profe rir palavra. - De qualquer forma, pensei que poderia ser interes sante saber mais algumas coisas acerca do falecido Ben Bradford. Mas como não era suposto eu estar em Mountain Falls, não podia p ropriamente entrar na biblioteca e vasculhar os números antigos do New York Times. Mas tiv sorte. A sua agenda electrónica tem um modem incorp orado e está carregada com o software America Oriline. E o pequeno fio que liga o computador ao dispositivo do telefone ainda estav a na embalagem original. Por isso, liguei-o e descobri o seu número Visa e o pra zo limite do cartão nos seus documentos CAPITAL, realmente você é muito org anizado, e inscrevi-o na Internet. Naveguei até ao New York Ti mes e pedi-lhes que me transmitissem tudo o que tivessem sobre Ben Bradfor d. Infelizmente, a notícia da sua morte não trazia fotografia, pelo qu e tive de navegar através de uma quantidade de jornais - o Gl obe, de Boston, o Wall Street Journal. Todos eles traziam a história, mas, mais u ma vez, nada de fotografias. Finalmente, descobri um filão de ouro. O Advocate, de Stamford, o jornal local de Ben. Uma enorme históri a de três páginas acerca da sua morte no mar. Trazia uma ópti ma fotografia de grandes dimensões

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do falecido Dr. Bradford, que, apesar de você ter b arba e rabo-de-cavalo, era o seu retrato. - Rudy ergueu a garrafa de J&B n um brinde trocista e depois bebeu outro longo gole. As palavras começara m a sair-lhe entarameladas: - Livre, remate e golo, Ben . Suponho que agora já posso chamar-lhe Ben. A minha mente galopava. Apertei com força o fecho d a porta. - Um trabalho de detective muito impressionante, nã o acha? - inquiriu Rudy. - Quero dizer, eu estou impressionad o. Tal como também me impressiona a forma como você encenou a sua mort e e ressurreição. Presumo que o corpo no barco era o de Gary, não? - Porque é que não foi logo à Polícia? - perguntei. - E estragar um segredo? Arruinar este vínculo de a mizade que agora nos une? - Que quer então? Levou de novo a garrafa de whisky à boca. 134 - Bem, como advogado, tenho a certeza de que você e stá familiarizado com o conceito de quidpro quo. - Mais conhecido por chantagem. - Ou, neste caso, o preço do silêncio. - Quanto quer? - Os termos e as condições ainda estão por elaborar . Como você está prestes a receber uma importante quantidade de massa pelas suas fotografias e como eu tenho dívidas impo rtantes, uma soma significativa terá de mudar de mãos. Você e eu vamos esconder-nos durante uns dias na cabana de Ms. Ames e delineamos um acordo. - Então, deixe-me conduzir. Você é perigoso com ess e whisky. Ele desviou os olhos da estrada por um instante par a me fitar com ar zangado. Você não vai conduzir-nos a lado nenhum. De qualqu er modo, sou um profissional no que toca a bebida ... Nunca chegou a terminar aquela frase, pois fomos su bitamente encadeados pela luz de faróis. Eu ainda gritei «Rud y!», pois apercebi-me de que um camião vindo em sentido contrário se dirigia de frente para nós. Rudy fez girar o volante com toda a força e evitámo s o camião, mas o MG despistou-se para a direita e saiu da estrada, d eitando abaixo uma vedação. Abri a porta e atirei-me no momento precis o em que o veículo foi projectado pelo ar. A minha cabeça bateu no chã o; um abanão sísmico percorreu-me o joelho e o cotovelo d ireitos enquanto eu rebolava pela encosta abaixo. Fui detido por um grande rochedo. A o embater nele, ouvi o barulho de um choque seguido de um silvo exp losivo.

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Espreitei por cima do rochedo e dei comigo a fitar um vale pr ofundo onde o MG aterrara, encontrando-se em chamas. Ao fim de uns s egundos, o depósito de gasolina incendiou-se com um rugido. O veículo e stava envolto em labaredas. Tentei levantar-me. Tive de fazer um certo esforço, mas consegui, pensando que precisava de procurar socorro. Cada pa sso era uma verdadeira agonia, mas continuei a andar durante ce rca de cem metros, indo parar a um cerrado maciço de árvores. Em seguida, v i tudo negro e caí para a frente. PASSARINHOs a cantarem. Uma lufada de orvalho da ma nhã. E, ao longe, o barulho mecânico de um grande veículo. Abr i um olho. Foi então que a dor me atingiu. O meu crânio lateja va como um metrónomo descontrolado. Vi que tinha um golpe profundo no jo elho direito. Quando toquei no rosto, os meus dedos fica ram carmesins, manchados de sangue. 135 Pisquei os olhos, estonteado, enquanto o sol da mad rugada raiava pelo meio do céu nocturno. Distingui então o barulh o de engrenagens e maquinaria. Consegui voltar-me sobre o lado esque rdo e assim vi o MG a ser içado do vale. O carro estava calcinado e ficar a irreconhecível. O negrume invadiu-me de novo. Quando finalmente aco rdei, só havia silêncio à minha volta. Olhei para o relógio. 8.45 da manhã. Apoiando-me a uma árvore, levantei-me. Levei alguns segundos a conseguir equilibrar-me. Encontrava-me no meio de u m bosque que tinha ardido. De súbito, lembrei-me de que tinha estado naquele luga r há umas semanas, tirando fotografias perante o avanço do fogo. Regre ssara ao palco do meu triunfo profissional. Apesar do meu estado lastimáv el, não deixei de me aperceber da ironia da situação. E embora estive sse prestes a arrastar-me até à estrada principal e a pedir boleia ao primeir o carro que aparecesse hesitei. Beth podia ainda estar em Mountain Falls. Os polícias interrogar-me-iam acerca do acidente. Não. Era pref erível retirar-me para qualquer sítio e reflectir sobre a minha próxima jogada. Mas para onde? Foi então que me lembrei de que Rudy e eu íamos a c aminho da cabana de Anne. Ficava apenas a dois quilómetros pe la estrada fora. Procurei um pau e, utilizando-o como cajado, empreendi a lenta e dolorosa

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caminhada até lá. Demorei duas horas. Quando cheguei à porta da cabana, deixei-me cair lá para dentro e atirei-me para cima da cama. A certa altura, leva ntei-me a custo, cambaleei até ao fogão e acendi-o. Quando já estava quente, fervi quatro grandes tachos com água, que deitei na banhe ira. Repeti o processo duas vezes, acabando por conseguir uma banheira mei o cheia de água quente. Despi as minhas roupas esfarrapadas e enfiei-me no banho com um esgar de dor. Deixei-me lá ficar sentado até a á gua arrefecer. Numa cómoda, encontrei um par de calças largas, de fato de treino, de Anne e uma camisola grande que me servia à justa . Não tinha apetite, - a não ser de álcool -, por isso desrolhei uma gar rafa de vinho tinto e esvaziei quatro copos antes de finalmente ligar o r ádio. Apanhei as notícias das 3 da tarde. Depois de quatr o ou cinco notícias, o locutor anunciou: «A Polícia está a investigar a mo rte em acidente de viação do fotógrafo Gary Summers, de Mountain Fals ... » Engasguei-me com o vinho e fiquei tão estupefacto que nem sequer ouvi o rest o da notícia. Tentei freneticamente sintonizar outras estações, procuran do outro noticiário, mas acabei por ter de esperar pelas 4 da tarde para ouvir a repetição do que já ouvira. O camionista disse que Mr. Summers conduzia a uma v elocidade considerável e que se despistou, precipitando-se no vale de Moose Lake. 136 Trata-se de um precipício de uns cem metros, e é im possível escapar-se de uma queda assim. O médico-legista está a procede r à autópsia, mas o corpo encontra-se de tal maneira carbonizado que ne m os registos dentários ajudarão a identificá-lo. Levei um ou dois segundos a voltar a mim. Graças à falta de dentes de Rudy, o seu cadáver fora confundido com o meu. A lém disso, quem mais poderia seguir naquele MG a não ser Gary Summe rs? O camionista disse que tinha visto apenas uma pessoa no automóve l - devia ir ao médico dos olhos. E quanto a Rudy Warren, nin guém o procuraria, pois supostamente estava a sul da fronteira. Eu tinha morrido outra vez. Tive grandes dificuldades para adormecer naquela no ite. Não conseguia deixar de pensar que nunca mais veria Ann e Ames. E como a minha

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morte seria para ela outro terrível desgosto. E com o - assim como acontecia em relação a Adam - eu choraria por ela t odas as horas de todos os dias. Finalmente, caí num profundo vazio escuro e aí perm aneci durante horas. Até que ouvi um veículo parar no exterior da cabana e passos a aproximarem-se da porta. Já desperto, olhei de lado para o relógio: 12.15. Sentei-me na cama. Depois, ouvi um grito. Um grito forte e estridente, seguido de silêncio. Anne estava à porta, boquiaberta, em estado de choq ue. Ficámos a olhar um para o outro durante muito tempo. Depois, eu comecei a falar. CONTEI-LHE tudo. Ela ficou ali enquanto eu falava, com um pé no limi ar da porta, como se estivesse pronta a fugir a qualquer momento. Qua ndo cheguei ao momento da morte de Gary, senti fisicamente o se u arrepio, embora ela se encontrasse quase a dois metros de distância de mim . Só depois de lhe ter falado das ameaças de chantage m de Rudy é que ela acabou por falar: - Também o mataste? - Não - repliquei. - O acidente aconteceu tal como foi relatado. 137 Só que Rudy é que ia a conduzir e estava bêbado. Eu consegui saltar antes ... - Porque havia eu de acreditar nisso? - perguntou e la com a vós trémula. - Porque havia eu de acreditar na mínima c oisa que tu me diceres? Toda a tua vida aqui comigo foi uma men tira. Eu não sabia o que dizer, porisso não disse nada. - Quando ouvi as notícias - contou ela com uma voz que mal ouvia -, pensei em suicidar-me. Primeiro Charlie, d epois tu. Pensam que é impossível sobreviver à morte de um filho. Fi nalmente, acabam por encontrar alguém que nos faz pensar que pode ha ver uma forma de viver com esse desgosto. E depois Foi-se abaixo e desatou a soluçar. Levantei-me e aproximei-me dela. - Não! - gritou Anne, levantando as mãos para me ma nter à distância. Voltei a sentar-me na cama. - A única razão por que vim aqui hoje - continuou e la - foi ter sido aqui que eu percebi que te amava... - Aban ou a cabeça com violência, como se tentasse apagar a última frase. - E agora quem me

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dera ter adiado isto por um dia. Porque nessa altur a tu já terias fugido; não é verdade? - Não tenho muitas alternativas. A Polícia... - Tu estás morto, lembras-te? Como é que eles podem saber? - Através de ti. Fez-se um longo silêncio. Fui eu que o quebrei. - Tu vais denunciar-me, não vais? Ela olhou para o chão. - Não sei. Novo silêncio. Desta vez, foi ela que o quebrou. - Tenho de ir-me embora - disse ela. - Não posso fi car aqui. - Voltas? - perguntei. - Não tenho a certeza. Tu vais-te embora hoje? - Eu não quero. Ela encolheu os ombros. - Como queiras, Gary - Parou subitamente. - Nem seq uer sei como hei-de chamar-te. Foi-se embora. E embora eu estivesse plenamente con vencido de que aquele era o meu último dia de liberdade, sentia um a estranha sensação de calma. Tinha confessado a minha culpa, o segredo já não me pertencia. Viveria sempre com o sentimento de culpa , com a vergonha, mas pelo menos, o fardo da mentira desaparecera. 138 ÀS 10 da manhã do dia seguinte, que era sábado, ouvi u m carro descer ruidosamente o caminho lamacento. Fiqu ei à espera da entrada de polícias fardados. Mas Anne apareceu sozinha. - Tu não fugiste - comentou ela. - Pois não. - Porquê? - Por tua causa. - Compreendo. - Tu não foste à Polícia - comentei eu. - Pois não. - Porquê? Ela encolheu os ombros. - Amanhã é o teu enterro - replicou. - Tu vais? - Claro. E Beth também. Ela ainda está cá. - Quem é que ficou com as crianças? - perguntei ime diatamente. Anne suspirou. - A irmã dela, Lucy, ficou com elas. Beth mostrou-m e uma fotografia dos miúdos: são lindos. - Pois são - retorqui. - Beth está muito em baixo. Primeiro Ben, depois Ga ry. Estivemos a tomar uma bebida ontem à noite no hotel onde ela está, depois de Elliot se ir deitar. Ela falou-me um pouco da aventura com Gary e do casamento contigo. Sabes o que eu pensei depois de ela terminar? Que nunca me

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teria envolvido com o Gary que ela descreveu, nem m e teria casado com o Ben que ela conheceu. - Abanou a cabeça e dep ois fitou-me a direito nos olhos. - Estou grávida e faç o tenções de ter esta criança. Estendi os braços na direcção dela, mas ela empurro u-me. - Isto não quer dizer que também vá ficar contigo. - Dirigiu-se para a porta. - Volto daqui a uns dias. Se ainda cá estiveres, tornamos a conversar. Regressou na terça-feira à noite com uma pilha de j ornais. Havia meia página com fotografias do funeral no Montana. O New York Times trazia um artigo acerca de Gary Summers na secção d e Notícias Nacionais. O mesmo acontecia com o Times de LA. - Segundo Judy, o telefone da galeria ainda não par ou de tocar - disse Anne. - Ela contou-me que um redactor do Ne w Yorker foi incumbido de escrever um artigo. E, ao que parece, vários agentes pensam que a tua vida e morte trágica dariam um bom filme. Um deles telefonou, em nome de Robert Redford. Afastei os jornais. Ela percebeu o que eu estava a pensar. 139 - Nunca chegaste a alterar o testamento de Gary, po is não? Não, nunca - repliquei. - E quem beneficiará da sua famosa morte? - O Hard College. - Eles ficam com tudo? - Sim, com todas as obras ... excepto aquilo que Ju dy tem a receber como comissão. Ela também vai sair-se bem desta con fusão. - Extraordinário - comentou Anne. - Fantástico, não há dúvida! - Passou-me para a mão um saco de compras. - Parei no Smart e comprei-te umas roupas. - Obrigado. - Meg Greenwood pediu-me se amanhã a ajudava a tira r as coisas do teu apartamento. Vou dar tudo à Associação Boa V ontade. Está bem. - Podes ficar com o computador portátil? - Não vejo por que não. - Quando o levares para casa, apaga o disco rígido. Contém ... - Provas? - Isso mesmo. - Estás a pedir-me que seja tua cúmplice. - Ainda estás a tempo de ir à Polícia. - Pois estou e posso ir. Há mais alguma coisa que q ueiras do apartamento? - A máquina de escrever de Rudy. Tenho a certeza de que ele a deixou lá. - Porque é que precisas dela? - Rudy tem de enviar um pedido de demissão a Stu. P roveniente do México. - Não sei se quero fazer parte desse enredo - disse ela.

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- Então, não faças. Denuncia-me. Ela desapareceu durante quatro dias. Quando voltou, no sábado, trazia a velha Olivetti portátil de Rudy. - O tipo do New Yorker está na cidade e anda a entr evistar toda a gente - replicou ela. - Vais falar com ele? - inquiri. - Não, vou desaparecer durante uns tempos. - Para onde? - Tenho velhos amigos. Desapareço por uma semana, d ez dias. Tens o suficiente para sobreviver aqui? - Fico bem. - Quer dizer ... se ainda cá estiveres. quando eu v oltar. 140 - Ainda cá estarei. - Logo veremos - replicou ela. Na manhã antes de partir para LA, Anne comentou: - Não sei como consegues viver com isto. - É como se vive com qualquer desgosto - retorqui. - Vive-se. Eu não queria matar Gary. Devia ter-me entregado à Pol ícia, mas entrei em pânico. - Pensaste que conseguias safar-te dessa e safaste- te. - E depois conheci-te. Ela franziu o sobrolho. - Grande coisa - exclamou. Antes de Anne partir, entreguei-lhe a carta que tin ha escrito a Stu Simmons na máquina de escrever de Rudy - uma carta sem qualquer nexo em que Rudy explicava que não via razão para r egressar a um jornal onde era considerado pecado mortal cuspir no chão. Anne aceitou ir um dia a Tijuana para a levar e metê-la lá no corre io. Desapareceu por onze dias. Quando regressou à caban a, disse: - Pedi a demissão do Montana. Fui apanhado de surpresa. - Porquê? - Porque os meus amigos de LA me apresentaram a um tipo que gere uma das maiores agências fotográficas do país, que me ofereceu um emprego ... como número dois da empresa. Setenta e cinco mil por ano. Eu aceitei. Achas que conseguirias viver em LA? - Queres que eu vá também? - Não tenho a certeza. Mas... - pôs a mão na barrig a - esta criança vai precisar de alguém que cuide dela enqua nto eu estou a trabalhar. Por isso ... É essa a proposta? É - replicou -, é esta a proposta. Aceitei. - Vamos ter de arranjar-te um novo nome - disse ela . Eu disse-lhe o que havia a fazer. Passada uma seman a, depois de ter percorrido a secção de Necrologia nas edições de 19 60 do Montana,

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Anne encontrou uma relativa a um rapazinho de quatr o anos chamado Andrew TarbelI, vítima de afogamento enquanto a fam ília passava férias no México. Depois de investigação mais aturada, Ann e descobriu que nessa época as certidões de óbito de cidadãos do es tado do Montana mortos no estrangeiro nunca ficavam registadas nos Registos Centrais do Montana. Em seguida, contactou a Estação Alternativ a de Correios de Berkeley e disse que estava a falar em nome de Andr ew Tarbell e que desejava 141 contratar os serviços de reencaminhamento de correspondência. Também os informou de que qualquer correspondência por eles reencaminhada não devia conter o seu nome no envelo pe - apenas o número do apartado que ela alugara recentemente em Mountai n Falls. Em seguida, redigi uma carta para os Registos Centr ais dizendo que era Andrew TarbelI, dando a minha data e local de n ascimento, e pedindo que me passassem uma certidão de nascimento. Esta c arta foi enviada para a Estação Alternativa de Correios de Berkeley, que, por sua vez, a enviou para o Montana. A seu tempo, cheg ou a Berkeley o impresso de requisição, que foi remetido para o apartado de Ann e. O impresso exigia uma fotografia tipo passe. Sugeri que Anne fizesse outra chamada para Berkeley. - Claro, nós podemos arranjar um cartão identificat ivo falso - confirmou-lhe o funcionário. Anne pediu uma Polaroi d emprestada ao jornal e comprou uma cassete de película especial utilizad a para fotografias tipo passe. Tirou-me um retrato e enviou-o para Ber keley com a quantia de 300 dólares por eles requerida pelo serviço. (Um a identidade falsa não sai barata.) Ao fim de uma semana, chegou um ca rtão de identidad plastificado ao apartado de Anne - um documento com aspecto oficial emitido por um tal Stockton Junior College. Por bai xo da minha fotografia tipo passe estava escrito ANDREW TARBELL , PROFESSOR. Anne fez uma fotocópia do BI e, metendo-o no mesmo envelope com o impresso de inscrição devidamente preenchido, reencaminhou-o via Califórnia para os Registos Centrais em Helena. Dez dias depois, veio parar às minhas mãos uma certidão de n ascimento de um indivíduo do

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sexo masculino, de trinta e nove anos, chamado Andr ew Tarbel. Entretanto, enquanto eu esperava a chegada da minha nova documentação, Anne fizera várias viagens a LA. Decidiu que, como eu precisava de me manter relativamente invisível, era preferível não nos instalarmos num local de gente tão fina como Santa Mônica, por isso alugou uma casa em San Fernando Valley - em Van Nuys. - Devo avisar-te - disse ela - de que Van Nuys é um descampado, suburbano e que a casa é do tipo rancho-padrão, com três divisões, mas hás-de acostumar-te. Depois, certa noite, Anne levou-me clandestinamente do Montana. Demorámos quatro dias para chegar a Los Angeles. Ela tinha razão. Van Nuys era o protótipo do pesade lo suburbano. E a casa era de época nenhuma, mas conseguimos viver. E la começou a trabalhar. Eu passei dias inteiros a raspar as tá buas do soalho para envernizar. Embora tivesse tido de enganar um funcionário público bastante céptico com o barrete de ter sido levado para o est rangeiro pelos meus pais durante 142 a adolescência, lá consegui obter um cartão da Segu rança Social. Seguiu-se uma carta de condução. E depois d e casarmos em Novembro desse mesmo ano, Anne habituou-se a tratar -me por Andy. Ela não tomou o meu nome. A 2 de Fevereiro de 1996, nasceu o nosso filho, Jac k. Para nós os dois, foi amor à primeira vista, embora a sua prese nça acentuasse ainda mais as minhas saudades de Adam e Josh. Por essa al tura, li uma notícia no New Iork Times a anunciar o casamento de Elliot Burden com Beth Bradford. Fiquei acordado durante várias noites a interrogar-me se Adam e Josh já tratariam Elliot por pai. Quando a minha mulher regressou ao trabalho, eu ass umi as obrigações de dono de casa a tempo inteiro, cuidando de Jack dura nte todo o dia e tomando a meu cargo a lida doméstica. Entretanto, o falecido Gary Summers, espreitava por toda a parte. Os direitos da história que apareceu no New Yorker - « Morte de Um fotógrafo em plena ascensão.. foram vendidos à empresa de produções de Robert Red ford através de um contrato secreto de centenas de milhares de dólares. Se chegarem a fazer um filme, duvido de que o vá

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ver. Agora, chamo-me Andrew Tarbel. Por que razão h avia de estar interessado num fotógrafo já falecido chamado Gary Summers? Contudo, passado algum tempo, ainda durante aquele ano, comecei de novo a tirar fotografias. Com o subsídio de Nata l, Anne ofereceu-me uma bela Nikon nova. Além disso, depois de termos c ontratado uma baby-sitter para tratar de Jack durante a tarde, co mecei a percorrer o vale, obtendo uma série de retratos dos subúrbios a ngelenos. Do ponto de vista técnico, Anne considerava-os mais maduros do que o meu trabalho do Montana. Mas quando os enviei a alg uns editores fotográficos que tinham andado atrás de Gary, todos me foram devolvi dos, acompanhados de notas de rejeição. Andrew Tarbell era um desconh ecido. Anne ficou ainda mais aborrecida do que eu com as r ejeições. - Tu hás-de voltar a conseguir - garantiu-me ela. - Tu tens talento e sempre o terás. - Já não sei nada. - Vai resultar - disse ela, acariciando-me o cabelo . - Como resultou connosco. Creio que a nossa vida juntos resultou realmente. O casamento tem muito que ver com o ritmo das pessoas, e nós ajusta mo-nos muito bem nesse campo, adoramos o nosso filho e gostamos da c ompanhia um do Outro. Além disso, embora o caso Gary esteja sempre presente, pairando sobre nós como uma nuvem tóxica, até à data temos c onseguido mantê-lo à distância. 143 Como é óbvio, há noites em que eu revivo aquela fra cção de segundo na cave de Gary e me interrogo sobre qual seria o m eu paradeiro se não tivesse pegado naquela garrafa. Pelo menos, a m inha antiga necessidade premente de fugir - de escapar à prisão doméstica - dissipou-se de vez. Quando se morre duas vezes e se regressa à vida, para onde é que se pode continuar a fugir? Contudo, as necessidades prementes nunca morrem; ap enas jazem em estado de dormência. E ontem à noite, precisamen te na noite em que Adam estaria algures no Connecticut ou em Nova Iorq ue a comemorar o seu aniversário, saí de casa por volta das 8 dize ndo a Anne que ia comprar cerveja ao supermercado. Porém, mal saí do nosso beco, precipitei-me para a auto-estrada. Números, números . Da 101 até à 10. Da

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10 até à 15. E antes de ter oportunidade de pensar naquilo que estava a fazer, já estava na orla do deserto de Mojave, dirigindo-me e m linha recta para a fronteira do Nevada. Por volta das 2, cheguei a Las Vegas. Com alguma sorte, estaria em Salt Lake City lá para as 10. E d epois? Esta pergunta não me saía da cabeça, mas eu não conseguia dar-lhe resposta. Talvez porque o único destino real de quem anda na estrada seja a nossa própria casa. Rápida saída da Estrada 15, que segue para leste. R ápida reentrada na 15, mas na direcção oeste. Alvorada sobre o Mojave. E estava de regresso a Van Nuys quando o Sol chegou ao meio- dia. Mais um dia perfeito no vale. Meti pelo caminho de estacionamento ao lado da casa . A porta de entrada abriu-se. Anne saiu para o sol, com Jack ao colo. Parecia não ter dormido, mas não disse uma palavra. Limitou-se a en colher os ombros, cansada, como quem diz: «Eu sei, eu sei ... Mas o t eu lugar é aqui.» Nesse momento, Jack olhou na minha direcção e agito u os braços. - Paii, paii. Alguém me chamava. O meu lugar era ali. 144 NASCIDO E CRIADO em Nova Iorque, Douglas Kennedy vi ve fora do seu país desde 1976, ano em que se formou no Bowdoi n College, no Maine. Começou por viver em Dublin e, em 1988, mudou-se pa ra Londres. Entretanto, durante estes anos criou nome como auto r de peças de teatro, jornalista, escritor de livros de viagem e romancista. Como aventureiro inveterado que é, Douglas Kennedy dá preferência a trabalhos jornalísticos que impliquem deslocações a locais exóticos - Amazónia, Cuba e Tasmânia foram alguns d os seus últimos destinos. O Homem que Morreu Duas Vezes é o seu primeiro romanc e a ser publicado nas Selecções do Livro. A propósito da publicação deste romance pelo Reader's Digest, Douglas Kennedy comentou: - Como qualquer romancista, estou sempre interessado em que o meu trabalho alcance o maior número possível de pessoas. Por isso, fiquei encant ado quando O Homem que Morreu Duas Vezes foi escolhido para aparecer nas S eleções do Livro em vários países do Mundo. Depois de ler o resultado final, fiquei extremamente impre ssionado com a forma cuidadosa como foi editado. Acho que O Homem que Mo rreu Duas Vezes é uma excelente leitura na sua versão condensada. Por out ro lado, esta versão é perfeita na fidelidade ao espírito e à intenção do romance.

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Fim