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Quem disse que é bom ser normal? Dr. Dale Archer As vantagens de ser tímido, ansioso, hiperativo, compulsivo, ou narcisista

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Quem disseque é bom

ser normal?

Dr. Dale Archer

As vantagensde ser tímido,

ansioso,hiperativo,compulsivo,ou narcisista

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A todos nós que somos diferentes...

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S U M Á R I O

INTRODUÇÃO 9

U M Os oito traços da personalidade 20

D O I S Aventureiro (TDAH) 42

T R Ê S Perfeccionista (TOC) 62

Q UAT R O Tímido (ANSIEDADE SOCIAL) 80

C I N C O Hiperalerta (ANSIEDADE

GENERALIZADA) 98

S E I S Dramático (HISTRIÔNICO) 114

S E T E Autocentrado (NARCISISTA) 135

O I TO Agitado (BIPOLAR) 155

N OV E Mágico (ESQUIZOFRENIA) 179

CONCLUSÃO 203

APÊNDICE: Os questionários 209

NOTAS 218

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I N T R O D U Ç Ã O

“Doutor, eu sou normal?”Como psiquiatra, ouço essa pergunta inúmeras vezes – bem

mais do que você imagina. Não só de pacientes, mas também de amigos, familiares e até de pessoas que acabei de conhecer. No mundo de hoje, todos querem saber se o que pensam, sentem e acreditam – ou o modo como agem – é considerado “normal”.

Mas o que de fato quer dizer “normal”? Aliás, o que há de tão bom assim em ser normal? Desde cedo aprendemos que pos-suímos determinadas aptidões que nos tornam especiais. Se ser normal significa ser igual a todo mundo, qual é a vantagem? Não deveríamos preferir ser únicos e nos aceitar como somos?

Porém, quando se trata de nossa saúde mental, ficamos preo-cupados. Se sou um pouco impaciente e às vezes não consigo me concentrar em alguma coisa por muito tempo, isso significa que tenho transtorno do déficit de atenção?

Se minha autoestima é elevada e gosto de atrair as atenções, isso quer dizer que sou narcisista?

E se às vezes tenho oscilação de humor, será que sou bipolar?A resposta a essas perguntas, para a maioria das pessoas, é não.Por outro lado, há alguns traços da personalidade que fazem

parte do caráter normal, mas que, quando acentuados, podem ser anormais, causar problemas e até dar margem a um diagnóstico psiquiátrico. É com esses traços que todos se preocupam, mas são eles que definem quem somos e que podem nos tornar genui-namente especiais – e até extraordinários.

Este livro aborda os oito traços de personalidade mais comuns

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e importantes. (Vale dizer que, em certo grau, a maioria de nós apresenta muitos e até todos eles.) Você vai aprender a identificar quais deles são dominantes em seu comportamento e como eles podem complicar sua vida. Mais ainda: este livro vai ensiná-lo a fazer esses traços dominantes trabalharem a seu favor.

Por exemplo: você já encontrou um jeito de usar sua natureza aventureira de forma produtiva? Ou ela o empurra de uma ati-vidade a outra, sem nunca deixá-lo terminar o que começa?

Você já conseguiu tornar seu perfeccionismo valioso e gratifi-cante? Ou ele mais parece uma obsessão devastadora, que frustra todas as pessoas à sua volta?

E a ansiedade? Ela o leva a agir ou o paralisa de medo?Examinar com atenção o perfil de nossa personalidade talvez

seja assustador. A princípio, podemos não gostar do que vemos. Então ficamos preocupados conosco ou com os que nos cer-cam – um filho, cônjuge, amigo ou colega. Comparamos nossa vida com histórias horríveis de pessoas aparentemente comuns que, na verdade, são “malucas”. Começamos a nos perguntar se não deveríamos ser avaliados, fazer terapia ou até tomar remé-dios para ajudar a reduzir o perfeccionismo, controlar o espírito aventureiro ou substituir o pensamento mágico por uma aborda-gem mais lógica, para ficarmos mais parecidos com todo mundo e sermos normais. Ou, pelo menos, mais parecidos com o que achamos que deve ser uma pessoa normal.

Há 25 anos venho discutindo essas questões com meus pacien-tes. Também questionei a mim mesmo, principalmente em mo-mentos de viradas na minha vida e carreira. Sei que pensar nisso pode ser difícil porque geralmente exige que façamos mudanças e criemos um novo modo de ser e de pensar. Muitas vezes, parece mais simples continuar lutando para ser “normal” em vez de dar um salto e aceitar quem somos de fato.

Um desses períodos de questionamento aconteceu no verão de

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2008, em Las Vegas. Mas a história começa em Lake Charles, no estado americano da Louisiana.

Em 1987, terminei a residência em psiquiatria. Com minha mulher e meus dois filhos, voltei para Lake Charles, a bela ci-dadezinha onde nasci e cresci, a oeste de Nova Orleans. Meus pais ainda moravam lá e decidi abrir um consultório psiquiátrico. Lembro-me de ter ficado extremamente empolgado. Minha na-tureza aventureira me deixava ansioso para experimentar novas ideias e provocar mudanças na área. Em resumo, eu me sentia pronto para fazer diferença e tentar mudar o mundo.

Eu tinha chegado à cidade havia algumas semanas quando re-cebi um telefonema de Jan Hardy, âncora de um noticiário da TV local. Ela explicou que estava fazendo uma série sobre saúde e me convidou para ir a seu programa falar sobre depressão – e foi aí que ela me pegou de surpresa. Naquela época, ninguém fala-va muito sobre esse tema. Mas Jan parecia inteligente, educada e bem informada sobre o assunto, então concordei.

Uma coisa espantosa aconteceu quando eu e Jan entramos no ar. Pouco depois de começar a entrevista, ela revelou que sofria de depressão. Mais do que isso, ela contou ao mundo que tomava Prozac, um dos primeiros medicamentos antidepressivos. (O re-médio se tornou mundialmente famoso em 1993, quando Peter Kramer publicou o grande sucesso Ouvindo o Prozac.)

Hoje, ninguém se importa em admitir que toma remédios para depressão. (Na verdade, em alguns círculos pode haver até surpre-sa caso alguém diga que não toma.) Mas em 1987, na Louisiana, essa era uma confissão e tanto, ainda mais para uma celebridade da televisão num programa ao vivo. Realmente explodiu como uma bomba. A depressão – na verdade, qualquer tipo de doença mental – era um verdadeiro estigma. Não há nada de mais em ficar meio desanimado, é claro, mas deprimido de verdade, inca-paz de conduzir sua vida? Pouquíssimas pessoas admitiriam isso.

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A revelação de Jan provocou um debate interessante no pro-grama. Eu disse que a comunidade médica aprendera muito so-bre a depressão nos últimos anos, que tínhamos passado a vê-la como doença provocada por um desequilíbrio químico do cé-rebro. E, como qualquer outra doença – diabetes, cardiopatias, pressão alta –, a depressão podia ser tratada com remédios. O Prozac, embora fosse o mais conhecido na época, era apenas um dos vários antidepressivos disponíveis.

Após a apresentação, Jan me disse que achava que a entrevista ficara muito boa. Alguns dias depois, ela me ligou de novo para contar que a reação dos telespectadores e da gerência da emissora fora positiva. Perguntou se eu estaria interessado em participar regularmente do seu programa.

– Fui estigmatizada por sofrer de depressão – disse ela. – Te-nho certeza de que outros também foram. Adoraria que você fa-lasse sobre problemas psiquiátricos como esse, que resultam de uma doença clínica.

Nos dois anos seguintes, eu e Jan fazíamos uma entrada de cinco minutos nos programas das segundas-feiras, ao meio-dia. Eu falava um pouco sobre as descobertas mais recentes ligadas a depressão, transtorno bipolar, TOC e outros problemas mentais, e depois recebíamos comentários e perguntas dos telespectado-res. Era um tema novo e foi considerado importantíssimo.

Além de ser o começo de minha carreira na TV, o programa me deu um entendimento melhor de minhas características do-minantes. Vi que a combinação da confiança com o prazer que tenho em ajudar os outros numa escala maior me trazia uma sa-tisfação que ia além da prática clínica da psiquiatria. Escrevi um livro, Chemical Imbalance Depression (Depressão por desequilí-brio químico). Comecei a dar palestras e realizar seminários para vários grupos e associações, principalmente na Louisiana e no Texas. Continuei a trabalhar no consultório. Eu tinha uma vida

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plena e satisfatória. Os meus traços dominantes eram usados de forma completa e adequada.

Eu trabalhava no consultório em horário integral, aparecia se-manalmente na televisão, cuidava de minha família e tinha uma série de hobbies. Adorava velejar, pedalar e andar de motocicleta. E, embora poucos colegas soubessem, me tornei um jogador de pôquer de nível mundial.

O perfil de minha personalidade é adequadíssimo para jogar pôquer. Ou, em linguagem mais técnica, meus traços dominan-tes reforçam os pontos fortes que me tornam um adversário di-fícil na mesa de jogo. Sou narcisista o suficiente para confiar em mim mesmo quando a probabilidade não parece boa e para re-sistir nos dias em que a sorte me abandona. E, como muita gente competitiva, tenho pensamento mágico. Considerado uma com-binação de fé e intuição, o pensamento mágico, aliado aos anos de experiência como psiquiatra, me permite ler os adversários como se fossem um livro aberto. Posso perceber imediatamente se estão com um jogo bom ou se estão blefando.

Passei a me envolver com o pôquer por uma razão incomum. Sempre tive aptidão para saber se alguém falava a verdade e deci-di experimentar o pôquer para comprovar. Durante vários anos, levei o pôquer muito a sério. Competi algumas vezes na Série Mundial de Pôquer, o torneio mais importante de todos. Em 2004, fiquei em décimo primeiro lugar no ranking mundial.

Então passei por um período turbulento na vida pessoal, pro-fissional e no pôquer.

Divorciei-me em 2006. Meus filhos maravilhosos estavam cres-cidos, na faculdade. E, por razões que explicarei adiante, parecia que eu perdera o sentimento de satisfação que antes obtinha com o trabalho no consultório e o programa de televisão.

Portanto, pouco depois de oficializado o divórcio, decidi que jogaria pôquer em nível profissional, embora pelas razões erra-

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das. Por que não fazer isso? Eu tinha um histórico excelente, ven-cera torneios e ganhara algum dinheiro. Achei que conseguiria responder à pergunta “O que ‘normal’ significa para mim agora?” de um modo novo e empolgante.

Joguei profissionalmente durante dois anos, mas, na época da realização da Série Mundial de Pôquer, em maio de 2008, estava convencido de que a vida de jogador de pôquer não era para mim. Em todo caso, decidi fazer uma última tentativa. Voei para Las Vegas, me hospedei num hotel e tentei me enquadrar numa postura mental vencedora. De nada adiantou. Não demo-rou para eu me dar mal – ou seja, estava sem fichas, sem sorte e fora do torneio daquele ano.

No fim do dia, saí do cassino e fui direto para o Petrossian, o famoso piano-bar russo do hotel Bellagio. Ocupei uma mesa e resolvi me presentear com uma taça de champanhe. Enquan-to bebe ricava, escutava o pianista e pensava na minha situação: Jogar pôquer é divertido, principalmente quando estou ganhando, mas não há como fazer disso uma carreira. Pode ser um passatem-po, é claro, já tive minha breve experiência e agora é hora de pensar em coisa séria. O pôquer extraiu o pior de minhas melhores carac-terísticas. Então o que quero fazer daqui por diante com minhas aptidões? Que caminho devo seguir? O que posso fazer que seja significativo de verdade – sendo eu mesmo?

Percebi que a insatisfação que eu sentia, pelo menos em parte, era causada pelas mudanças que tinham ocorrido no campo da psiquiatria nos dez anos anteriores. Durante a década de 1990, enquanto meu consultório se expandia, ganhava sócios e ficava cada vez mais famoso e bem-sucedido, eu continuara a falar sobre depressão. Queria ajudar os milhões de pessoas que, como Jan Hardy, tinham sido estigmatizadas pela doença. Ao considerar o número estimado de casos de depressão no país inteiro, era óbvio que tínhamos nas mãos uma crise nacional.

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É claro que minha voz era apenas uma entre muitas nessa discussão. Aos poucos, a ideia se espalhou e ganhou adeptos. E foi assim que, por volta de 2003, meu consultório – e a prática psiquiátrica em geral – tornou-se muito diferente do que era em 1987.

Como assim? Vinte anos antes, as pessoas só procuravam o psiquiatra quando estavam gravemente deprimidas, maníacas ou psicóticas e não conseguiam conduzir suas vidas. O médico de doidos era o último recurso.

Mas agora muitos pacientes que eu recebia não apresentavam transtorno mental algum. Isso não quer dizer que não passassem por problemas difíceis, mas geralmente não precisavam de me-dicação nem de tratamento prolongado. Lembro-me de um pa-ciente que veio me ver pouco depois que a mãe morreu. Sentia-se triste, desanimado e deprimido. Fiz as perguntas de rotina.

– Está dormindo bem?– Estou, sim.– Tem sentido cansaço?– Não.– Você consegue trabalhar?– Claro, trabalho todos os dias. Meu chefe e meus colegas são

ótimos.– Está comendo bem?– Normalmente. – Ele suspirou. – Só estou muito, muito triste.– Ora, só faz uma semana que sua mãe faleceu – comentei.

– É normal se sentir triste e até deprimido depois da morte da mãe ou do pai. Não vejo em você nenhum problema clínico, nenhum sintoma de doença. Acho que não há necessidade de medicação. Na verdade, percebo que você está lidando com isso bastante bem. O luto é parte natural da vida. Quando perdemos quem amamos, é dificílimo aguentar.

Ele suspirou de novo.

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– É verdade. Só achei que talvez algum remédio me ajudasse. Quem sabe um antidepressivo?

Então aconselhei-o a concentrar-se nos bons momentos pas-sados com a mãe e em como poderia homenageá-la. Depois, eu lhe disse:

– Por que não espera um mês e vê como fica a situação? Se piorar, é só voltar para uma nova avaliação.

Ele não retornou. Na verdade, encontrei-o alguns meses de-pois, e ele relatou o seguinte:

– A melhor coisa que o senhor me disse foi que eu não preci-sava de remédios e que o que eu sentia era normal. Enfrentei o luto e, embora ainda fique triste de vez em quando, estou ótimo.

Em 2008, esse tipo de consulta passou a ser a regra e não a exceção. E, além do aumento do número de consultas de quem não estava gravemente enfermo, vi outra tendência: cada vez mais pessoas me procuravam com problemas decorrentes do abuso de remédios como Ritalina, Xanax e, principalmente, analgésicos narcóticos. O uso indiscriminado de medicamen-tos para dor intensa, como Oxycontin, vinha aumentando pe-rigosamente em todo o país. Como uma epidemia, havia gente exagerando e tornando-se dependente de drogas legalizadas e receitadas para tratar problemas clínicos e psiquiátricos.

Sentado ali no bar de Las Vegas, organizei com mais clareza as ideias que vinham se acumulando havia algum tempo.

Percebi que, além de acabar com o estigma da questão da saú-de mental, tínhamos avançado no sentido completamente oposto. Na verdade, a glamourizamos. Hoje parece que todo mundo ne-cessita consultar um psiquiatra e ser avaliado. Todos precisamos nos tratar de alguma coisa.

De certa forma considero positivo que tanta gente tenha toma-do consciência da própria saúde mental, da questão em termos gerais, e se interesse em falar a respeito e abordar uma grande

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variedade de preocupações emocionais e psicológicas. Por ou-tro lado, percebi que seguíamos um caminho errado e poten-cialmente perigoso ao ver problemas de saúde mental por toda parte. Ao avaliar demais. Ao diagnosticar demais. E, pior ainda, ao medicar demais.

E não era uma questão apenas de confiar excessivamente nos medicamentos. Vi que a terapia tradicional também precisava de redirecionamento. Não me entendam mal, sou e sempre fui um grande defensor da psicoterapia. Afinal de contas, passei quase trinta anos ajudando pacientes usando uma combinação de re-médios e terapia da fala. Porém, cada vez mais, via que a terapia estava sendo aplicada do mesmo modo que os remédios – para “consertar” traços que pareciam anormais. Assim, quando uma paciente vai ao terapeuta por se achar tímida, a resposta qua-se automática passou a ser: “Vamos trabalhar juntos para deixar você mais ousada, confiante e extrovertida!” Uma abordagem mais adequada seria começar avaliando os pontos fortes da pa-ciente. Não seria possível compreendê-los melhor e acentuá-los? Será que a timidez, de fato, é um problema tão grande assim? Será que, na verdade, a timidez não é uma parte tão essencial da personalidade da paciente que a torna excepcional?

Então o que tudo isso significava para mim? Eu sabia que ado-rava dar conselhos e ajudar os outros, mas isso eu já fazia. Como poderia agir nesse aspecto em escala maior, talvez até global? De que forma colocaria minha autoconfiança, o elevado nível de energia e o fluxo de criatividade para trabalhar em prol dessa causa? Naquele dia de 2008, em Las Vegas, resolvi que já era hora de voltar a falar tudo o que eu pensava. Decidi que, aos poucos, passaria menos tempo atendendo a pacientes e dedicaria mais tempo à pesquisa e à divulgação de informações, explicando os mitos e os estigmas acerca da saúde mental. Assim, ajudaria a explicar que nem todo mundo precisa de remédios ou terapia

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e que nos aceitar do jeito que somos é o segredo do sucesso e da felicidade.

E foi exatamente isso que fiz nos últimos anos. Tornei-me cada vez mais presente nos meios de comunicação e comecei a aparecer com regularidade em programas importantes do rádio e da televisão. No início de 2009, lancei o meu site na internet, www.DrDaleArcher.com. Por meio dele, posso interagir com as pessoas e orientá-las nos problemas que as incomodam mas que não necessitam da visita a um psiquiatra. Tento dar conselhos sensatos e explicar que a pessoa não é a única com aquele tipo de problema. Procuro assegurar que a questão pode ser tratada com sucesso. E é claro que, em alguns casos mais graves, digo à pessoa que o problema realmente merece a visita ao psiquiatra. O site teve (e continua tendo) um retorno extremamente positivo e me sinto bem por ter sido capaz de ajudar tanta gente e de fazer isso sem cobrar nada.

Ainda assim, achava que poderia fazer mais. Queria apresentar todas as minhas ideias de maneira abrangente e organizada para oferecer uma estrutura filosófica que ajudasse os outros a pensar mais claramente sobre os problemas de saúde mental no contexto da sociedade de hoje. E, da mesma forma, queria oferecer minha experiência clínica e sugerir modos práticos de abordar proble-mas que eles ou seus familiares, amigos e colegas pudessem estar enfrentando.

O resultado é este livro. Redigi-lo foi uma das iniciativas mais difíceis e compensadoras de minha carreira. Além de ser um es-tímulo a meu compromisso com a psiquiatria, ele criou novas oportunidades para que eu fizesse uma abordagem sensata e res-ponsável da saúde mental coletiva.

Escrever o livro também me ajudou a entender melhor quem sou e como aproveitar ao máximo o perfil de minha personalida-de. Percebi que o sucesso no pôquer se devia à presença de meus

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traços dominantes – mas que dificilmente este seria o melhor uso para eles e que eu não estava feliz de verdade. Embora eu não tivesse nenhum transtorno psicológico, meu comportamento me causava problemas. Porém, atividades como ajudar pacientes, levar ideias ao público, defender uma melhor abordagem ao pen-sar a personalidade colocavam meus atributos para trabalhar de forma positiva e me faziam avançar com a crença de que essa é uma grande causa e de que há muito a fazer.

Espero que este livro também ajude você, leitor, a entender que, quando tentamos nos enquadrar no que chamam de “normal”, ne-gando nossos atributos ou tentando medicá-los para que desapa-reçam, perdemos uma fonte de força e singularidade, que é a base de nossa grandeza pessoal.

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U M

Os oito traços da personalidade

É preciso lembrar que não há nada mais difícil de manejar, mais perigoso de conduzir e mais incerto no seu êxito do que ser o primeiro a apresentar uma nova ordem das coisas. Porque o inovador tem como inimigos todos os que prosperaram nas antigas condições e como defensores mornos todos os que talvez prosperem nas novas.

Nicolau Maquiavel

É hora de apresentar uma nova ordem das coisas no mundo da saúde mental. Como psiquiatra, constatei que precisava olhar de forma crítica os excessos de diagnóstico e de medicação. Mais do que isso, sinto-me na obrigação de divulgar uma mensagem nova e libertadora sobre transtornos mentais que devolve ao lu-gar certo – as suas mãos – o controle de sua personalidade e de sua saúde mental.

Percebo uma mudança real no significado de sermos nós mes-mos. Acredito que, ao entender os oito traços fundamentais do comportamento e ao vê-los como parte de uma escala contínua, conseguiremos transformar a maneira como nos enxergamos. Quando terminar de ler este livro, você vai constatar que todos nós temos, em maior ou menor grau, todos esses traços e poderá analisar onde cada um dos seus recai numa escala de um a dez. Você será capaz de dizer, por exemplo:

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“Tenho oito pontos na escala do TDAH, sete pontos na escala do narcisismo, sete pontos na escala bipolar e dois pontos na escala obsessivo-compulsiva.”

Mais ainda, você saberá reconhecer exatamente como seus tra-ços dominantes foram úteis no passado. Talvez, como eu, você diga: “Eu nunca teria vontade ficar dez dias velejando sozinho se não fossem os oito pontos na escala do TDAH.” Ou: “Tenho todos os pontos fortes de que preciso para fazer a viagem com que sempre sonhei. Agora não há nada que possa me impedir.”

Vou contar algo que aconteceu comigo, mas poderia ter se passado com qualquer um. Certa vez, quando eu estava no quinto ano, a professora ficou doente e tivemos aula com uma professora substituta que chamarei de Srta. J. Assim que ela en-trou na sala, identifiquei seu padrão de comportamento. Decidi confirmar minhas suspeitas. Para isso, faria uma série de ex-periências. A primeira envolvia uma zarabatana. Não sei se as crianças ainda brincam com zarabatanas, então vou explicar a técnica:

1. Rasgue um pedacinho de papel, de preferência do dever de casa.

2. Enrole o papel, ponha na boca e umedeça com saliva (mais conhecida como cuspe).

3. Retire o papel da boca e aperte até formar uma bolinha dura.4. Insira a bolinha na ponta de um canudo, ponha a outra pon-

ta do canudo na boca.5. Sopre com força.

Preparei a carga inicial da zarabatana e esperei a Srta. J. ficar de costas no quadro-negro. Vum! A bolinha disparou pela sala e atingiu a nuca de um garoto na primeira fila. A Srta. J. olhou para

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nós. Não demonstrou ter notado a confusão. Caramba, eu tinha mesmo razão a respeito dela.

Continuei a experiência fazendo vários elásticos saírem zunin-do pela sala antes de elevar o padrão a um nível bem mais alto: gaivotas de papel.

Dessa vez funcionou. Minha gaivota errou o alvo e atingiu o joelho da Srta. J. Ela ofegou. Corou. Parecia à beira das lágrimas. Saiu apressada da sala e, um instante depois, voltou com o Sr. B., o vice-diretor. Sem hesitar, ele me chamou à frente da sala e me olhou, irritado.

– D. – disse ele, duramente. D. era meu apelido na escola.Eu me encolhi um pouco.– O que é? – perguntei.O Sr. B. falou em voz baixa e controlada.– Se você não se comportar, terei de ligar para seus pais. Direi

a eles que você está perturbando a aula e que alguém deverá levá--lo para casa.

Apesar do modo como essa história me retrata, na verdade eu era um garoto bem obediente. Disse ao Sr. B. que me comportaria. Pedi desculpas à Srta. J. e voltei ao meu lugar. O Sr. B. saiu. Encostei minha cadeira na parede. A Srta. J. continuou a aula. Adormeci.

Eu me sinto meio mal quando conto essa história. Provavel-mente a Srta. J. era uma mulher tímida, cujo tipo de persona-lidade não era muito adequado a uma professora do quinto ano. Assim, vou aproveitar a oportunidade para pedir desculpas (de novo) por arruinar o dia dela. Sinto muito, Srta. J.!

Essa história da zarabatana ilustra um caso típico da doença chamada transtorno do déficit de atenção com hiperatividade ou TDAH. Entre os sintomas estão incapacidade de se concen-trar, atitudes impulsivas e agitação constante. De acordo com a maneira tradicional de abordar esse transtorno, quando os sin-tomas causam problemas – como aconteceu comigo na aula da

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Srta. J. –, não são mais considerados características normais da personalidade. Eles se tornam anormais e indicam um transtorno mental que precisa ser tratado, em geral com uma combinação de psicoterapia e medicação, tipicamente um psicoestimulante como Ritalina ou Adderall. Além disso, quem apresenta os sin-tomas e passa pelo tratamento é rotulado como doente mental. É classificado, estigmatizado e, muitas vezes, marcado para a vida inteira. Se hoje em dia uma criança fizesse uma travessura como a que fiz, talvez fosse levada a um médico que não hesitaria em lhe prescrever remédios.

Essa é a maneira tradicional de pensar sobre alguns traços da personalidade. Minha missão é fazer todo o possível para pôr fim a esse tipo de pensamento. E usarei todas as ferramentas de que dispuser – inclusive, se necessário, zarabatanas.

A caixa da normalidade

Vejo que as pessoas analisam e rotulam os perfis dos outros e os seus próprios como se houvesse uma caixa da normalidade. Colo-cam dentro dessa caixa todo mundo que parece são. Antigamente, a maioria cabia dentro dela porque se considerava normal.

Mas aí está o problema. A caixa tem ficado menor, menor e menor a cada dia. Antes, só as pessoas com doenças e problemas gravíssimos – psicose ou transtornos graves do humor – ficavam excluídas da caixa. Eram discretamente encaminhadas para tra-tamento e, de preferência, esquecidas. Não importava que fôsse-mos diferentes uns dos outros; todos nos amontoávamos na caixa sendo simplesmente quem éramos.

Considere os seguintes traços comportamentais:

AgitaçãoIrritabilidade

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Dificuldade de concentraçãoFala excessiva

Alguma dessas características descreve você ou um conheci-do seu? Sem dúvida se aplicam a mim. Sempre disseram que eu não paro quieto. Quando criança, às vezes tinha dificuldade de me concentrar. E, como meus próprios filhos dizem, sou mesmo tagarela.

Qualquer um desses atributos poderia me empurrar (ou em-purrar você) para fora da caixa da normalidade. Esses traços são critérios legítimos de diagnóstico de doença mental grave, tirados diretamente do Manual diagnóstico e estatístico de trans-tornos mentais, mais conhecido como DSM (Diagnostic and Sta-tistical Manual of Mental Disorders), a bíblia do diagnóstico, o padrão de referência da comunidade psiquiátrica americana. O problema, como disse, é que esses também são “sintomas” que quase todo mundo tem. Todos ficamos agitados uma vez ou outra. Todo mundo se irrita. Quem não tem dificuldade de se concentrar? Quase todo mundo fala demais de vez em quando. Então qual é o limite? Até que ponto é preciso se irritar para ser rotulado de anormal?

A caixa da normalidade está ficando perigosamente pequena, e a culpa não é só dos psiquiatras. Todo mundo parece estar com a febre do diagnóstico. Pais, professores, colegas, amigos, paren-tes distantes: todos se dispõem a fazer diagnósticos. A criança entediada na escola tem TDAH. A pessoa extremamente organi-zada tem transtorno obsessivo-compulsivo. Quem fica empolga-do demais com as coisas é maníaco. Quem muda de humor com frequência é bipolar. Quem demonstra autoconfiança saudável provavelmente é narcisista. A lista não tem fim. Esses juízos es-tereotipam as pessoas, as limitam e marginalizam. Não ajudam a nos entendermos. Em vez disso, ficamos com a sensação de que

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a sociedade não valoriza o modo individualíssimo de nos com-portarmos em determinadas situações e de lidarmos com os altos e baixos da vida.

De certo modo, estamos psicologicamente “errados”.Na verdade, chegou-se ao ponto de considerar que 26% dos

americanos têm um ou mais transtornos de saúde mental passíveis de diagnóstico.1

A única palavra para qualificar essa estatística é “ridícula”. Qualquer tipo de transtorno, por definição, é algo errado, en-guiçado, que não funciona direito. Um transtorno mental é uma irregularidade do funcionamento do cérebro. Se o cérebro de um quarto da população dos Estados Unidos está transtornado, há algo muito, muito errado com a mente humana. Ou com a sociedade.

Mas não acho que seja o caso. Acredito que, na maioria das vezes, o cérebro humano está muito bem. Na verdade, ele é sim-plesmente espantoso. O problema está no modo de analisar e diagnosticar a doença mental.

Vale ressaltar que não estou sugerindo que as doenças mentais não sejam uma questão real e gravíssima. Quem já enfrentou um desses transtornos ou conhece alguém nessa situação sabe que podem ser dolorosos, incapacitantes e até pôr a vida em perigo. Como psiquiatra clínico, já vi como os transtornos mentais gra-ves abalam os pacientes e seus familiares.

O que estou dizendo é que precisamos pensar de modo dife-rente a definição que damos a essas doenças. Temos de reenqua-drar a discussão e redefinir a caixa da normalidade.

O excesso de medicamentos

Atualmente sabemos que grande parte dos transtornos maiores é influenciada por fatores genéticos, e que a doença mental grave em geral é causada por um desequilíbrio químico do cérebro. Hoje

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examinamos de forma específica os genes dos transportadores de serotonina e dopamina como locais de determinados transtornos mentais maiores.

Esse entendimento demorou muito a chegar. Trinta anos atrás, na faculdade de psiquiatria, eu tinha reservas quanto aos vários tipos de terapia e orientação ensinados em grande parte das re-sidências psiquiátricas e cursos de medicina e me ressentia de ter de perder tempo com essas aulas. Por quê? Porque acreditava que obteríamos o estado ótimo de saúde mental – nos indivíduos e na sociedade – por meio de uma combinação de neurociência e farmacêutica.

Durante muitos anos, parecia que eu estava certo. Nos últimos cinquenta anos, uma série de grandes descobertas farmacêuticas realmente transformou a psiquiatria. Hoje podemos tratar com sucesso transtornos como esquizofrenia, bipolaridade e depres-são grave com medicamentos que aliviam os sintomas e melho-ram a qualidade de vida da maioria dos pacientes. A indústria farmacêutica prosperou – alguns diriam que inchou – em torno do desenvolvimento e da produção desses remédios.

Mas eu também estava errado. Aconteceu algo curioso com toda a pesquisa que era financiada. Descobrimos que a química cerebral também pode ser profundamente afetada pela psicotera-pia, não apenas pelos remédios. O poder do pensamento positivo de fato funciona e é capaz de ajudar a configurar a realidade. Mas, muito embora a psicoterapia e a psicologia positiva tenham se mostrado tão eficazes quanto os remédios para tratar algumas doenças psiquiátricas, o pêndulo oscila cada vez mais na direção oposta – rumo a ainda mais diagnósticos para um número maior pessoas e mais remédios sendo receitados.

Tudo isso contribuiu para uma tendência claríssima – e, para mim, perturbadora – do mundo farmacêutico: nunca se tomou tanto remédio, com ou sem prescrição médica, quanto nos dias

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de hoje, pelas mais diversas razões. É claro que não são apenas medicamentos receitados para problemas mentais. Há os anal-gésicos. Soníferos. Remédios contra resfriado. Remédios contra tosse. Remédios combinados contra tosse e resfriado. Anticoncep-cionais. Antídotos para a disfunção erétil. Medicamentos contra enxaqueca. Remédios para doença cardíaca. Medicamentos para reduzir o risco de doença cardíaca. Esteroides para a asma. Pílu-las para emagrecer. Comprimidos, líquidos, cápsulas contra azia. Antidepressivos. Psicoestimulantes.

Hoje, 47% dos adultos americanos afirmam ter tomado pelo menos um remédio prescrito por um médico no mês anterior, e 20% das crianças (uma em cinco!) também.2 Sofremos todo tipo de efeito colateral desses remédios – alguns quase tão ruins quanto a doença que tentamos aliviar – e pagamos um valor al-tíssimo para parecer e sentir que somos iguais a todo mundo. Em 2007, os americanos gastaram 25 bilhões de dólares só em anti-depressivos e antipsicóticos.3 Naquele mesmo ano, 3,9 milhões de pessoas (ou seja, uma em cada 76) receberam pensões por inva-lidez do Seguro Social porque tiveram algum tipo de problema relacionado a doenças mentais.4 Por que isso está acontecendo? É uma questão complexa e há muitos fatores envolvidos, mas de imediato posso citar o estado atual do setor psiquiátrico. Os psi-quiatras, cientes de que sua profissão não é considerada ciência “real” ou “dura” (isto é, baseada em estudos feitos em laborató-rio, biópsias ou exames por imagem), têm dado menos ênfase à tradicional terapia pela fala, cujo resultado não é tão simples de avaliar, e recorrido cada vez mais aos medicamentos, por serem mais concretos e produzirem um resultado mais fácil de quan-tificar. E também, é claro, porque realmente ajudam um grande número de pessoas.

Essa confiança nos medicamentos estimulou ainda mais as empresas farmacêuticas, que veem um mercado sempre em

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expansão para seus produtos. O setor farmacêutico recorre aos psi-quiatras e cientistas para ajudá-los a formular, desenvolver, testar e avaliar a eficácia dos remédios. A verba e o poder concedidos pe-los fabricantes de remédios à comunidade científica e psiquiátrica serviram para aumentar mais ainda a onipresença e a importância dos medicamentos, e nem sempre de forma positiva. Em 2003, um estudo constatou que, quando uma empresa farmacêutica finan-cia a pesquisa de um medicamento, a probabilidade de o resultado mostrar que a substância é eficaz em seu propósito é maior.5 Em outras palavras, a pesquisa financiada pela empresa que vende o medicamento tende a comprovar sua eficácia.

O que me surpreendeu foi que, até esse estudo ser divulgado, os medicamentos eram aprovados pela FDA, agência americana que avalia alimentos e remédios, com base em pesquisas enco-mendadas pelas empresas farmacêuticas. Não é mais assim que acontece, mas essas pesquisas ainda não são totalmente confiá-veis, nem as relações entre o setor farmacêutico e a comunidade científica são inteiramente transparentes. Como me contou um amigo cientista e pesquisador, quando alguma empresa farma-cêutica financia um de seus estudos e o resultado não condiz com a expectativa da empresa, é muito provável que ele não seja escolhido para fazer o próximo estudo daquela companhia. Isso impõe muita pressão sobre os pesquisadores para que obtenham o resultado esperado pela empresa.

Volto a afirmar que não sou contra medicamentos. Já vi que são bastante benéficos para sugerir que devemos interromper os testes com eles ou a pesquisa de remédios melhores para o tratamento de transtornos mentais. No entanto, acredito que os medicamen-tos deveriam ser apenas uma peça do quebra-cabeça da assistência médica e, sempre que possível, a última a se encaixar. Não sou o único que pensa assim. Há um consenso crescente entre os mé-dicos que querem evitar a prescrição de medicamentos no tra-

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tamento de determinadas doenças fisiológicas e passar a indicar mudanças fundamentais no estilo de vida. Por exemplo, quando um clínico geral verifica que o paciente tem pressão alta, não pre-cisa receitar medicamentos de imediato. Em vez disso, pode es-timular o paciente a melhorar os hábitos alimentares, a praticar exercícios físicos, a dormir mais ou a tentar reduzir os fatores que provocam estresse. Se essa nova rotina não proporcionar o resul-tado desejado, o médico indicaria um medicamento para ajudar.

A abordagem que funciona no caso de hipertensão e outros problemas físicos também pode se aplicar ao tratamento da saú-de mental. Quando um paciente descreve sintomas ou caracte-rísticas comportamentais que não são manifestações óbvias de transtornos mentais graves, o médico deveria primeiro tentar aliviar os transtornos de outra maneira.

Ainda mais importante – e fundamental para o conceito deste livro – é que o paciente, que talvez não tenha de fato anorma-lidade alguma, deveria ser estimulado a examinar os traços de sua personalidade do jeito novo que descrevi. Todos precisam ser orientados a ver que podem aceitar as características que os tornam diferentes. Mais ainda, devemos mudar completamente o modo de encarar nosso perfil. Em vez de considerar anormal um traço dominante, podemos passar a considerá-lo especial. A característica que às vezes parece um fardo ou um obstáculo tal-vez seja, na verdade, nosso maior tesouro. O que vemos como fraqueza pode ser um ponto forte. O que parecia uma barreira, o caminho para ter mais sucesso e felicidade do que nunca.

Parece exagero, mas já vi funcionar com centenas de pessoas.Essa ideia tem raízes na teoria evolucionária. A teoria da evolu-

ção dos grupos, que tem atraído cada vez mais interesse nos últi-mos anos, sugere que, como os seres humanos vivem em grupos interdependentes, a evolução favoreceu o tipo de especialização da personalidade de que estamos falando. Quando alguém é especial-

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mente aventureiro, ou bem organizado, ou um líder de carisma ex-cepcional, todos no grupo se beneficiam. Mas quando buscamos diagnósticos e medicamentos para colocar todo mundo de volta na caixa da normalidade, sufocamos a grande diversidade huma-na. Como indivíduos, o potencial de satisfação pessoal diminui. Como grupo – e sociedade –, sofremos.

Os traços da personal idade numa escala contínua

Acredito que há oito traços importantes da personalidade que, quando extremamente dominantes, podem constituir um trans-torno. Quase todo mundo apresenta pelo menos um desses tra-ços em algum grau.

Esses traços não costumam ser secretos. A maioria das pessoas é bem astuta como juiz de caráter (pelo menos do caráter dos ou-tros!) e sabe muito bem que a Srta. J. é tímida, que o Sr. B. é bas-tante autoconfiante e que o garoto nos fundos da sala, que atira bolinhas de papel, é agitado demais e se entedia à toa. Esses atri-butos podem ser considerados positivos e poderosos ou proble-máticos e limitantes; ou, com mais frequência, podem estar em algum nível entre estes dois extremos. Os oito traços fundamen-tais do comportamento humano também são bem conhecidos na comunidade psiquiátrica. No Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais, são todos classificados como transtornos mentais – doenças como transtorno bipolar, TDAH, transtorno obsessivo-compulsivo ou transtorno de personalidade narcisista. Esses termos, além de claramente definidos no léxico da psiquia-tria, também entraram no uso geral e popular.

Nos últimos anos, a comunidade psiquiátrica começou a ver esses traços com gradações – uma visão que, algum dia, deveria começar a expandir a caixa da normalidade – e a colocá-los

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numa escala contínua. Numa das pontas da escala, o traço da personalidade pode nem aparecer. É o que chamo de ausente. Em se tratando do traço da timidez, por exemplo, significa dizer que a pessoa não é tímida. Na outra ponta, o atributo é tão acentuado que quase define completamente quem ela é e dificulta sua vida. Chamo-o de superdominante. Seguindo o exemplo dado, a pes-soa é tão tímida que não quer nem sair de casa – caracterizando o transtorno de ansiedade social. Entre esses dois extremos, o traço tem muitos níveis. Isto é, ele está presente a ponto de ser dominante, mas não em excesso. Ou seja, a pessoa é muito con-tida, com uma força interior tão grande que dispensa a interação social exagerada para ser bem-sucedida, feliz e produtiva.

Acredito que o modelo em escala contínua é a direção certa a seguir e a melhor maneira de expandir a caixa e nos libertar desse ciclo de diagnóstico e medicação em excesso. Precisamos saber que muitos de nós têm esses traços em graus variados. Temos de parar de considerar esses atributos como negativos e reconhecer os aspectos positivos de cada um. É fundamental compreender quando e como cada traço se torna superdominante – e, por-tanto, um problema para a pessoa e a sociedade – e aprender as formas de controlá-lo.

Antes de falarmos desses traços com mais detalhes, explico por que eles são oito e como cheguei até eles. Primeiramente, os oito traços correspondem a transtornos psiquiátricos bem conheci-dos, havendo outros menos comuns, que se classificam como subcategorias. Por exemplo, o transtorno de personalidade limí-trofe ou borderline tem sintomas semelhantes aos do transtorno bipolar e do transtorno de personalidade histriônica. Em segun-do lugar, quis me concentrar em atributos cujas causas foram (e ainda são) alvo de pesquisas sobre vínculos genéticos – isto é, por que, no decorrer de milênios, esses traços se tornaram tão do-minantes e persistentes na sociedade humana. Assim, optei por

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não incluir alguns tipos de comportamento, como agressividade--passividade, que na verdade não definem a personalidade.

Além disso, e igualmente importante, descobri na prática que esses oito traços são os que mais se manifestam numa escala contí-nua e que causam maior preocupação. Vejo também muitas pessoas se queixarem de depressão, mas ela recai na escala da ansiedade. No entanto, em todos esses traços, quando se chega a nove ou dez pontos na escala, é muito comum que a pessoa também tenha depressão associada a eles. Como médico, meu trabalho é avaliar os traços subjacentes que podem fazer parte do problema e abor-dar a situação por inteiro. Em relação ao uso de drogas, considero uma doença e não característica da personalidade.

Agora, falemos desses traços com mais detalhes.Ao ver a definição clínica, é provável que você diga: “Esse não

sou eu.” Ou então: “Não pode haver nada de bom nisso.” Portan-to, vou listá-los primeiro pelo aspecto positivo, quando o traço está presente e é até preponderante, e depois mostrarei a classifi-cação do DSM quando ele é superdominante. Mais adiante, tam-bém darei alguns exemplos de casos reais.

Aventureiro (TDAH)

Quando esse traço é dominante, mas não superdominante, a pessoa se entedia com a rotina, tende a ser ousada, ignora o peri-go e assume riscos calculados. Quando é superdominante, pode ser diagnosticado como transtorno do déficit de atenção com hi-peratividade ou TDAH. Nesse caso, sente-se dificuldade para fi-car sentado quieto, desacelerar, concentrar-se, refletir ou agir de forma comedida e deliberada.

Perfeccionista (TOC)

Caracteriza a preocupação com detalhes que passariam des-percebidos pela maioria das pessoas. Quando esse traço é pre-

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ponderante, temos um perfeccionista com olhos de lince para aspectos específicos importantes. Quando é superdominante, podemos diagnosticá-lo como transtorno obsessivo-compulsivo ou TOC. Nesse caso, a pessoa não consegue ignorar os detalhes. Também cria para si rotinas obsessivas e inflexíveis e não tem controle de algumas ações.

Tímido (ANSIEDADE SOCIAL)

Muita coisa acontece com uma pessoa tímida. Ela é perfeita-mente capaz de viver e trabalhar sozinha ou apenas com familia-res e amigos íntimos. Quanto o traço é superdominante, temos o transtorno de ansiedade social, que pode gerar problemas no trabalho, na escola e em outras situações sociais.

Hiperalerta (ANSIEDADE GENERALIZADA)

Quem tem esse traço costuma ser incrivelmente atento, se concentra em problemas reais e usa a atenção como força moti-vadora. Também procura se precaver para as piores situações. A ansiedade serve de sistema de alerta para trazer à tona detalhes que precisam ser cuidados. Quando esse traço é superdominan-te, o diagnóstico é transtorno de ansiedade generalizada, que se caracteriza por um medo sem fundamento. A pessoa corre de tarefa em tarefa, nunca se sente satisfeita e se preocupa incessan-temente com tudo.

Dramático (HISTRIÔNICO)

Caracteriza a pessoa com uma grande carga de emoções e que demonstra isso de forma total, autêntica e sem constrangimento. Sente tudo profundamente e se expõe sem medo. Quando esse traço é superdominante, dizemos que há transtorno de persona-lidade histriônica. Tudo é um drama, por menor que seja a ques-tão. O sentimento sempre supera a racionalidade.

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Autocentrado (NARCISISTA)

Caracteriza quem tem orgulho de si mesmo, transmite con-fiança e acredita em sua intuição e em seu talento. Exerce atração e liderança sobre os outros. Quando superdominante, esse traço se transforma em narcisismo patológico e o diagnóstico é trans-torno de personalidade narcisista. Nesse caso, a pessoa é autocen-trada a ponto de excluir ou não perceber os outros. Tudo gira em torno dela mesma e de seus objetivos.

Agitado (BIPOLAR)

Caracteriza quem vive em ritmo acelerado, se entrega por com-pleto, avança sem parar e consegue ser intensamente criativo e produtivo. Essa energia dinâmica, quando superdominante, pode ser chamada de bipolar. O comportamento se torna maníaco e descontrolado. Depois de algum tempo, a pessoa pode ficar aba-tida e cair numa melancolia profunda ou numa depressão grave.

Mágico (ESQUIZOFRENIA)

Caracteriza quem é muito intuitivo, tem fé, age de acordo com sua percepção e consegue exergar além. Quando o traço é super-dominante, pode se tornar esquizofrenia. A pessoa ouve vozes e vê coisas que não existem. Vive num mundo irreal.

Como aproveitar ao máximo um traço dominante

Você acha que isso é possível? Ou imagina que eu esteja tentando amenizar alguns problemas muito graves? Talvez pense: “Dr. Dale diz que ser autocentrado pode ser bom, mas na verdade ele está falando de um narcisista insuportável que só pensa em si mesmo.”

Meu propósito aqui é desmontar o estigma que cerca rótulos como hiperativo e bipolar. Embora eu me sinta muito à vontade

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ao dizer que sou um pouquinho hiperativo, sei muito bem que há quem tenha dificuldade de distinguir aventureiro de hiperativo, principalmente quando se trata dos filhos.

Mas temos de aprender a fazer essas distinções. É a única ma-neira de aprimorar a autoconsciência para conseguirmos perceber mais inteiramente nosso potencial. E é o modo mais adequado de apreciar as características dos outros para conseguirmos convi-ver e trabalhar com eles da melhor forma possível.

Em última análise, espero que consigamos ver os nossos tra-ços dominantes como qualidades e não como desvantagens. Por exemplo, não há dúvida de que tenho uma característica aventu-reira dominante; tenho oito pontos na escala do TDAH. Quan-do criança, isso me causou todo tipo de encrenca, ainda que na época não existisse o diagnóstico de déficit de atenção com hi-peratividade. No entanto, na idade adulta esse traço sempre foi um trunfo. Quem fica algum tempo perto de mim sabe que é co-mum eu fazer várias coisas simultaneamente: concilio reuniões, telefonemas, e-mails, eventos, viagens, escrevo textos, falo, me relaciono socialmente e cumpro obrigações familiares. A capa-cidade de fazer isso é essencial para quem trabalha nos meios de comunicação. E o espírito aventureiro me permitiu começar uma carreira inteiramente nova na meia-idade.

Como no caso de todos os traços comportamentais, ser aven-tureiro nem sempre é fácil. Em alguns períodos da vida essa característica é agradavelmente dominante e me leva a desafios novos e empolgantes (jogar pôquer, por exemplo). Outras vezes, se aproxima da superdominância e chega mais perto do TDAH (desassossego com o consultório psiquiátrico, foco excessivo no jogo de pôquer e busca constante de esportes radicais.)

Mas, com o passar dos anos, passei a ter extrema consciência de meus traços e de como eles se situam em pontos diferentes da escala. Dessa forma, hoje estruturo minha vida em torno da

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natureza aventureira. O trabalho, os relacionamentos e as ativi-dades ao ar livre combinam com quem sou de verdade.

Isso não acontece apenas comigo. Olhe em volta e verá inúmeros exemplos de pessoas com traços de personalidade muito pronun-ciados – fortes, mas não superdominantes – que obtiveram conquis-tas de todo tipo, grandes e pequenas. Vou lhe dar alguns exemplos.

David Neeleman é o fundador da JetBlue, uma empresa aérea de grande sucesso. A sua história é bem conhecida. Ele não pa-rava quieto na escola e recebeu o diagnóstico de TDAH na idade adulta. Ao longo da vida, David conseguiu utilizar seus atributos para obter sucesso em escala mundial. Chegou a dizer que não admitiria que fosse de outro modo.

Como David, as pessoas que têm TDAH superdominante não costumam ser bem-sucedidas em empregos ou carreiras que não os mobilizem em todos os aspectos. Precisam fazer algo em que con-sigam mergulhar de cabeça, que amem de verdade e em que se concentrem de forma implacável. Quando conseguem encontrar um trabalho assim, podem se tornar os melhores.

Vejamos outra situação: Mardi é uma vendedora que vive fa-zendo apresentações importantes a grandes clientes. Ela ensaia várias vezes o que vai dizer, pensa em todos os aspectos, tenta prever perguntas e elaborar respostas, pesquisa os clientes e a concorrência. Odeia errar e não suporta perder a venda. É visí-vel que ela se preocupa e fica ansiosa com o trabalho e poderia ser descrita como muito tensa. Mas é a ansiedade que faz com que ela dê o melhor de si. No passado, ela tomou medicamentos, mas sentiu que era desvantajoso perder esse traço e então pa-rou. A ansiedade no meio da escala contínua faz parte da rotina em muitos contextos: lidar com situações diferentes, ajustar-se a novas pessoas, reagir a perigos. Pode aguçar os sentidos e nos preparar para a ação e, ao mesmo tempo, aprimora a capacidade de aprender e resolver problemas.

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