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Dramamix 2007

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Primeiras Obras

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Dramamix 2007Coleção Primeiras Obras, 10Ivam Cabral (organizador)

Apoio Cultural

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Prefácio, DramaMix 2007: Um Caleidoscópio nas Satyrianas, Alberto Guzik, 7

A Breve Interrupção, de Gerald Thomas, 33O Amor nos Tempos de Câmera,

de Ana Rüsche, 44O Resto de Nossas Vidas, de Alex Gruli, 65

Lá Fora, de Nicolás Monasterio, 81Vinte e Cinco Comprimidos,

de Sabina Anzuategui, 94Vende-se?, de Jucca Rodrigues, 112

Dia de Visita, de Noemi Marinho, 124Alguém Escreveu Isso,

de Bráulio Mantovani, 140Pivete, de Renata Pallottini, 168

Por favor, Deixe-me Tentar Novamente, de Antonio Rocco, 185

Meu Segredo, de Marta Góes, 204Alternativa, de Célia Regina Forte, 211

Efeito Fantasma, de Roberto Alvim, 225

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Alice, de José Simões, 238

Medo dos Vivos, de Andréa Bassitt, 248

Quando Eu Era Criança, de Duílio Ferronato, 263

Laranja Vermelha, de Germano Pereira, 276

O Meu Vira-Latas Só Ouve Be-Bop, de Jarbas Capusso Filho, 294

Segredos, de Marici Salomão, 310

Cine Bijou, de Mário Viana, 323

Cavalo, de Eduardo Sterzi, 343

Sad Christmas, de Mário Bortolotto, 354

Vinte e Um, de Lúcia Carvalho, 364

Um Chá, de Priscila Nicolielo, 385

Foi No Carnaval Que Passou, de Paulo Vereda, 396

Fragmento De Um Naufrágio, de Cláudia Vasconcellos, 419

Milos e Evic, de Antônio Rogério Toscano, 430

Pequenos Furtos, de Contardo Calligaris, 456

Tosca, de João Luiz Sampaio, 464

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Este volume coloca nas mãos do leitor uma seleção de peças breves e fascinantes, escritas especialmente para as Satyrianas de 2007 e encenadas dentro do projeto DramaMix, rea-lizado então pela primeira vez. As Satyrianas, comemoração da chegada da primavera realiza-da todos os anos pela Cia. de Teatro Os Satyros, duram em geral 78 horas ininterruptas, nas quais se sucedem simultaneamente inúmeros tipos de manifestações artísticas, de espetáculos a exposições de fotografia, exibições de filmes, eventos, shows e performances, reunindo cen-tenas de artistas e milhares de espectadores. O DramaMix é uma gigantesca gincana teatral que enfileirou, nas primeiras edições, 78 textos com duração média de 20 minutos.

DramaMix 2007: Um caleidoscópio

nas Satyrianas

Prefácio

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O DramaMix, projeto da Cia. de Teatro Os Sa-tyros batizado pelo signatário destas linhas, teve antecessores. Ainda sem o nome pelo qual é co-nhecido hoje, o projeto nasceu em 2005, quan-do, ao redor de “Uroborus”, texto constituído de citações extraídas de dezenas de peças, costuradas com habilidade por Sérgio Salvia Coelho, foi interpretado 78 vezes seguidas por diferentes du-plas, trios ou grupos de atores. No ano seguinte, a mesma receita foi repetida com um texto do artista plástico Nuno Ramos, “Ai de Mim”. As apresentações eram feitas num espaço semi-aban-donado, em um prédio vazio ao lado do teatro. Depois dessas duas edições com dezenas de ato-res se revezando na interpretação/improvisação de um único texto, Ivam Cabral teve a idéia de pedir a colaboração de 78 dramaturgos diferentes, articulando atores, diretores, iluminadores, cenó-grafos. Surgiu então o DramaMix, que saiu do porão onde as montagens eram apresentadas para ocupar uma tenda montada especialmente para esse fim em uma área ampla na Praça Roosevelt. A fórmula deu certo e, enquanto escrevo estas linhas, está prestes a ser repetida pela terceira vez.

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Tal como ocorre até hoje, no primeiro Dra-maMix, em 2007, as companhias, grupos ou artistas escalados para o projeto, tinham de pensar rápido e agir mais rápido ainda. Contavam com, no máximo, 20 minutos para afinar a luz e montar o cenário, quando havia luz e cenário, e outros 20, depois de conclu-ída a peça, para desmontar tudo e deixar o palco livre para a próxima produção. Um esforço hercúleo, magnífico e louco. Que resultou no envolvimento de dezenas de cria-dores, intelectuais, escritores, pensadores e profissionais liberais com a arte da dramatur-gia. Gente que já havia escrito peças, gente que nunca havia escrito texto teatral algum, autores consagrados, outros em total início de carreira. O que há de mais marcante nesta coletânea é a grande variedade de formas e de temas que foram abordados pelos drama-turgos. O DramaMix provou ser um tubo de ensaio interessantíssimo. Várias das obras estreadas lá, retrabalhadas ou em seu estado original, acabaram entrando em carreira re-gular mais tarde.

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O DramaMix ofereceu, nas duas primeiras edições, um elemento de aventura aos seus espectadores. Havia algo de excitante no fato de se ter, ao longo de três dias, uma porção de peças que podiam ser vistas nos horários mais improváveis, às 18h e às 05h, às 09h e às 16h, às 12h e às 24h, às 11h e às 14h. Teatro em horários nos quais normalmente não acontece teatro. Talvez por isso o DramaMix tenha se tornado, nos últimos dois anos, um dos focos de maior atração das Satyrianas. Talvez por isso tenha se firmado como um dos eixos principais da festa, capaz de atrair espectadores e atores, diretores e autores vindos dos mais diversos territórios, das mais divergentes arenas. Refletindo o painel multifacetado e caleidoscó-pico do DramaMix, este livro aproxima figuras como o elegante psicanalista Contardo Cali-garis e o mais bukowskiano dos dramaturgos brasileiros, Mário Bortolotto. Os textos vão da experimentação sofisticada de Roberto Alvim à narrativa provocadora de Bráulio Mantova-ni. Passam pelo melancólico realismo de No-emi Marinho e pela crueldade explícita de

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Eduardo Sterzi. Abarcam desde as explosões de angústia geopolítica e filosófica de Gerald Thomas até a sutileza perversamente erótica de Marta Góes. Isso para citar apenas uns pares de nomes, pinçados ao acaso, na lista de 29 textos que compõem esta antologia de peças. Essas micro-obras superam com certeza o me-ramente episódico, o circunstancial, e podem legitimamente aspirar a uma vida teatral para além das Satyrianas.“A Breve Interrupção”, de Gerald Thomas, é uma brincadeira que tem um fundo sinistro. Dois críticos de teatro seqüestrados por um cidadão rancoroso são obrigados a se defrontar com o mundo em que vivem, feito de violên-cias, de políticas corruptas e mortais, de líderes brutais, de tráfico de armas e de seres humanos. Na pequena peça, Thomas traça um rápido e contundente painel da geopolítica em meados da primeira década do século 21. Coloca em questão as fronteiras da arte, que se chocam com uma realidade a cada dia mais irrespirável. A peça faz rir, decerto, mas deixa um travo de incômoda amargura na boca.

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Da poeta e romancista Ana Rüsche, “O Amor nos Tempos de Câmera” é um jogo quase líri-co, uma metáfora. Uma mesma personagem, Clara, se subdivide em três, e estas, por sua vez, se encarregam de todas as figuras secundárias que entram em cena. O universo feminino entra em cena, feito de esperanças, amores de-sencantados, desencontros, expectativas e vai-dades. Tudo visto com o olhar sempre ácido e terno dessa escritora que retrata mulheres com extrema habilidade e impressionante riqueza de detalhes. Esse texto nos faz torcer para que Ana Rüsche incursione com mais freqüência pelo teatro.O ator Alex Gruli participa deste caleidoscópio com “O Resto de Nossas Vidas”. É uma peque-na e contundente fábula apocalíptica, em que dois personagens sem nome, o Homem e a Mu-lher, partilham da experiência única de viver um ao lado do outro o fim do mundo. Ambos não se conhecem e conseguem se estranhar e implicar um com o outro no pequeno tempo de que ainda dispõem. Há humor no texto de Gruli, mas um humor amargo, sombrio, que

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convida mais à reflexão que à gargalhada. O final, porém chega ao grotesco, ao mesmo tem-po em que remete a um famoso samba gravado pela grande Carmem Miranda.“Lá Fora”, do jovem dramaturgo gaúcho Ni-colas Monasterio, tem um clima que lembra muito o teatro de Samuel Beckett. Nessa pa-rábola, duas pessoas, A e B, dormem sobre um tapete circular até acordarem, sobressaltadas e em pânico. Haverá alguém lá fora? O que é real, o que é delírio? Em cima desse mote descarnado, Monasterio elabora um texto de intensa energia. A dependência, a insegurança e o pânico do desconhecido permeiam o texto de forma tal que, ao final somos invadidos pela sensação de que as figuras da peça, mais que meros símbolos, são projeções de nossos medos profundos.A curitibana Sabina Anzuategui, autora dos roteiros de “Desmundo” e “A Casa de Alice”, entre outros filmes, traz para esta antologia uma breve tragédia familiar, “Vinte e Cinco Com-primidos”. Uma família disfuncional, formada pela mãe, uma filha e um filho, se debate com

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as mazelas da modernidade. O filho é suicida. A filha, prática, objetiva, saiu de casa e volta cada vez com mais relutância. A mãe está per-dida entre ambos. O desfecho, previsível, não é mostrado, apenas insinuado. E ganha um contraponto em diálogos de telenovela, que permeiam a ação. Jucca Rodrigues constrói em “Vende-se” uma conversa sinistra ao redor da venda de órgãos humanos. No caso específico, um rim. A partir desse magro mote, o autor traça um quadro so-turno, no qual não é difícil vislumbrarmos uma parábola tristonha do cotidiano. A linguagem coloquial que o autor emprega torna tudo mais familiar, mais próximo e sinistro.A atriz e dramaturga Noemi Marinho escre-veu “Dia de Visita”. Um quarto de hospital é o cenário. Pai e filho protagonizam a cena. Gonçalo e Armando. O rapaz está internado. O homem veio de visita. Ambos começam a ver fotografias de família. Fotos de aniversário, flagrantes do cotidiano. Os dois são frágeis, intensamente quebradiços. Qualquer palavra mais forte pode romper o precário equilíbrio

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que separa a sanidade da loucura. Um raminho de miosótis permeia toda a conversa. E uma perturbadora inversão de papéis vai se impor à medida em que a trama delicada, pungente, caminha para o final aberto e triste. O final que não é exatamente um final. Bráulio Mantovani, roteirista, autor do script de “Cidade de Deus”, entra neste volume com “Alguém Escreveu Isto”. É um exercício de me-tateatro, uma narrativa entrecortada, vivida por dois personagens, Perácio e o Homem da Mala. As ações de ambos são acompanhadas por um narrador que, brechtianamente, narra tudo que fazem. Um fio de conflito surge e se agiganta com jogos, coincidências estranhas, esboços de conflitos. E a história se encaminha para um impasse que o autor mantém, num magnífico recurso, suspenso no ar, ou melhor, espalhado pelo chão. Esta pequena peça faz pensar que se-ria muito bom se Mantovani voltasse com mais freqüência ao teatro, para o qual certamente tem uma contribuição significativa a dar.“Pivete”, de Renata Pallotttini, propõe a aproxi-mação de universos bem distantes. Um menino

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de rua e um velho vestido como turista, que pode estar ou não em busca de um garoto de programa, se cruzam nos baixos do elevado que sombreia a R. Amaral Gurgel, em São Paulo. No embate que se segue, a veterana dramatur-ga, professora e poeta propõe uma inversão de expectativas que opera em mais de um nível, até que o final surpreendente leva a ação a um impasse seguido de uma solução quase lírica em sua dimensão absurda e contundente. No peque-no texto, Pallottini mostra a força de sua prosa dramática, permeada de inesperado lirismo.“Por Favor, Deixem-me Tentar Novamente”, de Antonio Rocco, traz o humor inesperado e as situações surreais que o autor gosta de explorar em sua dramaturgia. Elza, de 77 anos, e Tunico, de 85, são os protagonistas dessa surpreendente cena em que o casal se dilacera. Na verdade, ela se dilacera, enquanto ele, numa versão ge-riátrica do “Belo Indiferente” de Jean Cocteau, folheia um exemplar da revista “Playboy”. O final surpreendente faz perguntar onde está a verdade, se nas falas agressivas de Elza ou na situação curiosamente improvável, mas tre-

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mendamente saborosa, que se delineia ao cabo do embate.A jornalista e escritora Marta Góes participa desta reunião de peças com o breve monólogo “Meu Segredo”. O texto é tecido como uma densa confissão que nos remete de certa for-ma ao teatro de Nelson Rodrigues, oscilando entre o trágico e o irônico. É uma estranha confissão de desajustamento esse “Segredo” que a personagem sem nome partilha com os espectadores. Uma boa dose de melancolia se insere na narrativa, mostrando a capacidade da autora de desvendar os alçapões emocionais de suas criaturas.Célia Forte escreveu para o DramaMix uma comédia de costumes sexuais que, embora não recorra a uma trama inédita, surpreende o es-pectador/leitor. A autora é boa observadora. E cria em cena uma situação relativamente banal, tratada com frescor e intensidade. “Alternativa”, o texto de Célia Forte, é uma boa análise do em-bate sexual e dos papéis nele desempenhados. Mostra a relação de pessoas que lutam de todos os modos para fugir do previsível. O melhor

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é que a dramaturga consegue difundir boas doses de sátira ao traçar esse quadro inusitado e colorido.“Efeito Fantasma”, de Roberto Alvim, é uma história de terror e de amor. Os dois temas são superpostos de modo estranho, lancinante. O crime e o sexo se mesclam de forma assusta-dora, e aos poucos o efeito criado pelo texto se torna espectral, sombrio. É um jogo sem saída. Não há para o protagonista qualquer possibili-dade além daquela que se entrevê muito rapida-mente nos instantes finais da obra. Roberto Al-vim, com esse “Efeito Fantasma”, prova ser um escritor superlativo, mesmo quando trabalha com formatos tão sucintos quanto o desta cena criada para o DramaMix. A história estranha do protagonista da peça se adivinha, mais do que se percebe, para além dos limites da narrativa. Não há como ficar imune ao sentimento de dor, de pânico, que o texto desperta. Alvim cutuca as fe-ridas do desencontro, do desalento, da solidão, e com recursos muito simples consegue o feito de criar um momento dramático sofisticada, experimental, extremamente ácido.

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José Simões partiu das “Alices” de Lewis Car-roll para construir sua “Alice”. Mas desenhou uma menina que explicita aquilo que a perso-nagem de Carroll não teria como expressar. Elabora o complexo de Electra da garota, que vai aos poucos, com uma perversidade delicada e pulsante, revelando a imensa paixão que sente pela figura fulcral de sua vida, o pai. É ao redor desse progenitor invisível que se movimenta essa Alice perplexa, perdida, solta no mundo. O texto exala uma poesia de rosas fanadas, de vidas emurchecidas, mas latejantes de desejo que perpassam e circunvolam as palavras e ações da jovem e amedrontada Alice, que não sabe lidar com o mundo dos adultos. Ou me-lhor, sabe que não quer lidar com este mundo de adultos. O que deseja, inocentemente, é escrever um conto de fadas.A atriz e produtora Andrea Bassitt participa da coletânea com “Medo dos Vivos”, que parte de uma experiência infantil formadora do caráter. No caso, o enterro de uma tia estabelece um modo de a personagem ver o mundo e viven-ciar suas experiências. Essa marcante memória

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infantil é contraposta à morte da avó da narra-dora, vivida quando a protagonista já é adulta. O que se tem no texto, assim, é um desenho da relação com a morte, que estabelece condutas e formas de comportamento. A peça de Bassitt é intensa, e tem um viés dramático, mas possui igualmente uma carga de humor que torna a narrativa irônica e autocrítica.Do designer e escritor Duílio Ferronatto, “Quan-do eu Era Criança” estabelece um interessante contraponto com “Medo dos Vivos”. É também elaborada a partir das experiências formado-ras vividas na infância. Mas aqui o material de combustão das memórias não é a relação com a morte e sim com a violência. O protagonista da breve história foi, quando criança, abusado pela mãe, que o surrava violentamente e perdia o controle na aplicação de castigos. Na verdade, a família é violenta, e o pai, embora não fizesse muito para conter a violência da mulher contra o menino, era capaz de se tornar extremamente agressivo nas brigas com a mulher. Um quadro sombrio se delineia até que o final, embora cer-cado de ironia, desvela uma situação inesperada,

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que ganha a cor da tragédia dentro da mais cor-riqueira das conversas.“Laranja Vermelha” é uma sátira concebida pelo ator e autor Germano Pereira. Num clima de ficção científica, o texto flagra um cientista histérico e sua assistente submissa e bajuladora. Ele acaba de inventar a “laranja vermelha” e anuncia seu achado “revolucionário” ao mun-do. A peça toda se articula na inveja que o cientista tem de seus pares, na sua necessidade doentia de ser adulado, e na feliz disponibi-lidade da assistente de cumprir esse papel. A ação se passa entre o fim da palestra em que a descoberta é anunciada e o início da sessão de perguntas da platéia. Ao cabo de tudo, cria-se um divertido jogo ao redor da feira das vaidades que compõe uma carreira acadêmica. E o autor ainda brinca com os fundadores dos Satyros, colocando-os na berlinda por conta de um mo-mento em que a companhia estava ampliando sua ação para bairros da periferia de São Paulo.Jarbas Capusso participou do DramaMix com “Meu Vira-Latas só Ouve Bebop”. Numa vés-pera de Natal, o reencontro de um casal que

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se separou há anos é colocado no centro da ação. Ele é um escritor falhado, e vive num apartamento miserável, onde transcorre a ação. Ela, por seu lado, casou com um rico execu-tivo norte-americano, enviuvou e agora volta a buscar as raízes de sua vida. O encontro é áspero e triste. Nada mais liga os ex-namorados. Estão presos cada qual a seu mundo, e todas as tentativas de diálogo falham. O teatro de Jarbas Capusso é evidentemente tributário do universo e do estilo explorados com perícia por Mario Bortolotto.“Segredos”, de Marici Salomão, é uma me-lancólica viagem ao interior familiar. A visita de uma mulher a sua irmã, que está internada numa casa de saúde, é o mote ao redor do qual se desenvolve o doloroso encontro. Não há di-álogo possível entre as duas, embora cada uma, a sua maneira, tente lançar pontes de comuni-cação. Entre a fala convulsiva da visitante e o silêncio relutantemente quebrado da interna, o texto estabelece um clima tenso, sofrido. Com um mínimo de recursos dramatúrgicos, ação reduzida ao essencial, Marici Salomão cons-

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trói um drama pungente e cria um clima que nos contagia com uma penetrante sensação de fracasso, de impossibilidade. Eis algo que só escritores muito competentes conseguem fazer. De Mario Viana, “Cine Bijou” é uma cena ur-bana protagonizada por seres que vivem à mar-gem do sistema de uma forma ou de outra. A ação está situada numa das duas salas do famoso cinema de arte que durante décadas funcionou na Praça Roosevelt, servindo de sala de aula para m sem número de cinéfilos. “Cine Bijou” acontece em um momento de decadência do cinema, já no fim de sua trajetória. Panfleto, o zelador, permite que, mediante uma caixinha, pares improváveis usem a sala para encontros clandestinos. Nessa condição é que chegam ali Celso, bancário quarentão, e Riba, garoto de seus 20 anos chegado faz pouco tempo do Nordeste. Enquanto Panfleto entra e sai da sala, por vários motivos, Celso tenta seduzir Riba, que de início não entende bem os avanços do bancário, e, quando por fim entende, recusa-se a aceitar o jogo sexual que lhe é proposto. A peça tem um clima que lembra a atmosfera dos

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textos breves de Tennessee Williams, tanto pelo desajustamento de seus personagens quanto pela habilidade com que o escritor articula e desenvolve a trama.“Cavalo”, de Eduardo Sterzi, é um assustador exercício de intensa teatralidade. Uma situa-ção absurda é explorada pelo escritor gaúcho, premiado poeta e ensaísta especializado em literatura. Na breve cena ele estabelece um exercício de limites. E elabora um estudo so-bre a submissão. Um homem que monologa incessantemente serve de cavalo a outro, cujo peso suporta com crescente dificuldade. Uma situação insólita, perturbadora, que o autor explora com habilidade. A cena é impiedosa, estranha. Seu clima insólito e o final surpre-endente e cruel nos fazem desejar que Sterzi continue a se dedicar ao teatro, e que produza textos mais extensos e igualmente elaborados. Há características marcantes em seu teatro: uma textura áspera, um clima de pânico e uma experiência narrativa radical, não encontráveis com freqüência nos projetos dramáticos que chegam à cena nestes dias.

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Mario Bortolotto cria em “Sad Christmas” uma cena brevíssima e pungente. Dois conhecidos, Emerson e Marcos são os personagens. A ação se passa na casa de Marcos, cuja mulher foi passar o Natal com a família. Emerson tem uma dúzia de cervejas, compradas com o dinheiro que a namorada lhe deu para sumir da vida dela. É uma conversa de bêbados que não se suportam. Um momento apenas dura a ação. Breve, agressiva. Intensa. Um texto que ganha força e energia nas falas sucintas, nas inten-ções subentendidas. A peça respeita o título que lhe deu o dramaturgo, mostra um Natal triste. São personagens derrotados, falem idos, como Bortolotto bsabe retratar. Personagens que estão perdidos num mundo que os recusa, que não deseja dialogar como eles. E que eles também recusam. Ao fim resta a ironia de uma declaração solene, transformada em motivo de chacota. Puro Bortolotto. Sem gelo.Arquiteta e blogueira, Lúcia Carvalho se aven-turou pela primeira vez na dramaturgia com o texto presente nesta antologia. Apesar do humor evidente em suas postagens no blog, ela apre-

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senta em “Vinte e Um” um universo soturno. Gellyson é um mano de vinte e poucos anos que joga basquete numa quadra de rua. Alan, ao redor dos 30, é um adulto que está vivendo uma grande crise e deixou a mulher no hospital. A ação se articula ao redor da partida de vinte e um pontos que os dois começam a disputar enquanto conversam e revelam seus fantasmas secretos. O jogo pontua a ação e a conversa vai se tornando mais e mais penosa, á medida que se descortinam preconceitos, sofrimentos e ódios. O final inesperado arremata a ação de modo brusco e seco. Lúcia Carvalho cria uma situação vibrante. Traça personagens verossí-meis, que transpiram emoções declaradas ou reprimidas, colocando-os num inferno do qual se safa apenas o mais esperto. Priscila Nicolielo, talentosa dramaturga que vem construindo uma obra consistente e inten-sa, explora em “Um Chá” uma situação limite. O texto mistura de maneira inteligente pro-cedimentos do teatro dramático com o teatro narrativo. A protagonista anônima narra seu en-volvimento com Pedro, um carteiro mais velho,

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que aos poucos se transforma em uma obsessão na vida da moça. Nada de muito especial acon-tece na peça. São ações de todos os dias que a peça retrata. Mas esse cotidiano vem repleto de melancolia, de esperança desesperançada. Não é uma situação banal, a que a moça vivencia. Há uma urgência e um sofrimento indizíveis em cada linha. Os sonhos nascem condenados a não se realizar. E assim a autora desenha o destino de sua personagem. Ao fim fica a pergunta: dessa peripécia, o que foi sonho, o que foi realidade? A peça, acertadamente, não responde. Que decida o leitor/espectador.Uma história ardente de paixão e de desilusão é articulada pelo texto de Paulo Vereda, “Foi no Carnaval que Passou”. Um bombeiro a trabalho no Carnaval e a manicure sensual que ele ajuda a subir no carro alegórico são protagonistas da trama. Vereda mescla a narrativa com trechos poéticos, que os atores dizem para a platéia, despindo-se de seus personagens. O texto ganha ares de parábola, de fábula moderna. Mas ao mesmo mantém um pé no realismo para elabo-rar um contundente quadro de costumes. Aqui-

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les, o bombeiro, e Helena, a manicure, vivem um grande amor, que não resiste às vicissitudes do cotidiano. Até aí nada de mais. Dezenas de milhares de peças giram ao redor contam essa história. O que há de particular, neste caso, é que o dramaturgo imprime ao texto uma forte característica de experimentação. O resultado atinge uma comicidade burlesca, e mesmo tempo mergulha na melancolia. De Cláudia Vasconcellos, “Fragmentos de um Naufrágio” remete de certa forma ao clima de “O Marinheiro”, de Fernando Pessoa. Numa casa à beira d’água, em uma praia não nome-ada, uma mulher na meia idade e um homem velho jogam cartas enquanto o mar avança. O naufrágio do título, não é difícil adivinhar, é o daquelas vidas que soçobram lentamente, enquanto a vida segue. O jogo na verdade não avança. Está paralisado. A mulher tenta recu-perar algo que se perdeu enquanto percebe, apreensiva, o avanço da maré. O homem pro-cura levar a vida como se nada fora, e parece indiferente à natureza com seus elementos ameaçadores. O texto tem uma vibração, uma

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tensão, que o percorre do início ao fim. O pe-queno drama se fecha na angústia, enquanto a descontrolada tempestade ameaça engolir a casa. “Milos e Evic”, do dramaturgo e pro-fessor Antonio Rogério Toscano, põe em foco as brincadeiras perversas de dois pré-adolescentes (que se sugere serem, na verdade, adultos). O dramaturgo cria uma situação na qual os meni-nos, que têm nomes bem comuns, e até angeli-cais, passam a se designar com as primeiras e as últimas sílabas do ditador sérvio Slobodan Mi-losevic, tirano que comandou guerras fratricidas na extinta Iugoslávia. Milos e Evic entregam-se a brincadeiras proibidas, que evoluem num crescendo repleto de ameaças, de provocações. Há uma grande sombra pairando ao redor das falas, dos gestos, das pequenas ações. Um mun-do sinistro surge em cena, movido por bonecas torturadas, por brinquedos destroçados. E aos poucos nos apercebemos de que esse universo tétrico é o mundo em que estamos. Toscano reafirma neste texto sua capacidade de criar climas extremamente incômodos, de fazer de

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seu teatro uma síntese sombria destes dias que vivemos. Outro tipo de jogo é desenvolvido pe-los personagens sem nome de “Pequenos Fur-tos”, texto do psicanalista e escritor Contardo Calligaris. Um jogo bem menos perverso, e à sua maneira honesto. Um homem de meia ida-de e uma garota na casa dos 20, que joga mala-bares e engole fogo num farol, se cruzam e vão até a casa dele. Lá, quase nada acontece, a não ser alguns pequenos furtos e uma ameaça que paira no ar durante todo o tempo. E que pode ou não se concretizar. A cena é bem urdida, es-tranha, com personagens fortes, mas solitários. Uma cena urbana muito breve, um flagrante do cotidiano, que nos faz desejar conhecer melhor esses tristes personagens, que nos faz perguntar se terão um amanhã. Se haverá um amanhã. “Pequenos Furtos” é uma crônica. E permanece na memória. A peça que fecha esta antologia do DramaMix é “Tosca”, de João Luiz Sampaio. Uma sátira ao drama romântico tardio de Vic-toriem Sardou, que Giacomo Puccini trans-

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formou em uma das óperas mais famosas do repertório mundial. Sampaio brinca com as convenções do gênero na cena entre a famosa cantora, Floria Tosca, e seu carrasco, o satânico Scarpia, que a deseja. A tortura e a morte do amante da Tosca, Mario Caravadossi, serve de pano de fundo à ação. Mas a tragédia aqui não está em primeiro plano. Os personagens criti-cam o próprio destino, fazem pouco do clima trágico que se instaura entre eles. Brincam até com os instrumentos letais que usarão. Quan-do Tosca deve pegar a faca com que vai matar Scarpia, pergunta por que ela não o mata com um garfo, e afirma que esse seria um instru-mento bem dramático. Há uma fina ironia no texto. Uma sátira armada por alguém que ama a ópera e que a entende. Esta rede de ironias e duplos sentidos será mais apreciada pelo espec-tador que não for um ignorante no universo da ópera e que tenha alguma familiaridade com o tremendo pathos que exala da ópera “Tosca”.

Alberto Guzik

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A Breve InterrupçãoGerald Thomas

Os dois críticos estão amarrados, como se numa câmara de tortura. Imóveis. Na frente dele, e de frente pro público, um elegante Edson Monte-negro sentado numa cadeira só fala, sem jamais se levantar.

AG – Agora estamos sós. Eu, você e essa xíca-ra! Não que eu queria saber o documento que… (chora) (num tom mais baixo) não que eu queria saber o que tenha sido es-crito pra mim, já que aqui, no monte da Oliveiras.

SC – Você tem noção de que você está dizen-do isso há mais ou menos três horas? E da mesma forma? Quer dizer, eu não posso me

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mexer, vc não pode se mexer. Porque você não para de falar um pouco. Eu sei do teu. Caralho. Me ocorreu algo.

AG – Eu, você e essa xícara e agora depois de três horas te ocorre algo. Estou arden-do em febre. Estou desidratado. So penso naquele prato que serviam no – esqueci o nome – aquela Sachetorte….com aquele café vienense transbordando com chantily.

SC – Quieto. Quer dizer…quieto. Ele está nos gravando. Será que vc não percebe a tatica? Mudar nosso papéis. Quantas pessoas você já matou durante sua carreira

AG – Matou…..SC – Sim, matou, mudou de rumo, arruinou,

deixou desfuncional, pirou, deixou desem-pregada….colocou no olho da rua, sem um puto na mão porque todo os investimento foi….

AG – Sim sim… Minha agência era uma…SC – Fale. Com todas as palavras pra que ele

registrarAG – Não

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SC – Sua agência traficava travecas e velhas desdentadas pra países arabes onde elas ti-nham que usar aquele veu mesmo….então. Então não fazia a menor diferença não eh? Ate que descobriram homens.

AG – O que eh que vc esta querendo dizer? Eramos honestos

SC – Homens. Contrabandearam homens no meio daquela cambada de Serras Peladas! E encobertas de islâmicas de mentirinha. Que ultraje!

AG – Quando eh que vc sera deposto mes-mo?

SC – Pera aí que ouço a voz do Ahmadinejad falando sobre…nucleares…destruição….

AG – Houve uma vez uma demonstraçãoEM – Você fala como se eu não tivesse sido

criado.AG – Justamente, essa demonstração….SC – O Ahmadinejad está dizendo aqui dentro

que, que dentro dele….putz, perdiEM – … E quando minha mae me levava pra

comprar pão na padaria de manhã, viamos, pelo menos um morto por dia, já coberto

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por lençol e com velas por todos os lados. Pra quem tinha acabado de aterrissar da Noruega, isso chama mais atenção, te deixa mais em estado de alerta, do que quem ja nasceu ai. Quer dizer, eu ficava com os olhos assim ó!

AG – Milhares de vezes vivi horas assim. Nós aterrissamos da Africa: Ruanda pra ser mais preciso. Sobrevivemos ao massacre dos Re-bels Tootsie. Esse braco aqui (ah, nao da pra ver, culpa do autor, sorry) só está aqui porque os médicos russos o colocaram de volta e

EM – Fico emocionado. Cínico de última! Fora isso, fiquei 7 anos direto, os anos mais importantes talvez, os da infância: dos 7 aos 14 tendo que engolir aquela gosma, aquele negócio nojento chamado caviar Beluga! Foi quando … foi quando… resolvi ir pra Corumba me prostituir. E lá estudei Witt-genstein. Dando o cu mesmo!

SC – Mergulho rumo a excitação e ao medo. Guerra eh Guerra e – acho que se o Iran está se munindo mesmo (e pelo que Ahma-

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dinejad esta dizendo aqui dentro de mim – putz, mas é tão profundo isso, queria tanto que vocês entendessem isso) o Iran está se tornando uma espécie de showcase no ce-nario mundial, mas só pra questões mesmo de marketing, entende, não é de verdade que ele diz que não existem

AG – Para de falar nele. Não aguento mais!!!!!

EM – “Esse ‘não aguento’ mais eh no sentido nietzschiano ou deleusiano ou você está citando La Poujade mesmo”

AG – Não estou mais aguentando porra!!! me soltem deixa eu sair!!!! eu nao sabia agora eu sei pronto falo tudo entrego Mas não preciso ficar Não preciso ficar Não preciso ficar Não preciso ficar

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Não preciso ficar Não preciso ficar

(Em vai la e ameaça um tapa)

Não preciso ficar (falta só mais uma) Não preciso ficar) Obrigado

EM – não vou fazer calendário. Tenho uma enorme vivência brasileira sim, porque di-rijo essa empresa de diversifiacao e arte por duas decadas e , por vezes, especialmente durante o final dos 1980 , casado com (cai aos prantos) nao não posso continuar!!!! O Fagundes me colocou num apart hotel na Pca Roosevelt, onde hoje fica o Satyros, onde vc entrava e escorregava de tanta gor-dura que tinha no tapete, pois no térreo tinha uma churrascaria de última cujo exaustor dava justamente no meu apt.....

SC – Eu por exemplo

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EM – Quieto! Posso não estar fixo no br como residente mas isso não me coloca numa posição nem um pouco diferente do Sa-ramago ou de Beckett e Joyce, que, apesar de serem ativos num determinado lugar e completamente integrados a ele, moravam em outro.

SC – Eu por exemploAG – Quieto. Na Ruanda nao era diferente.

Não havia churrascaria: a não ser humana. O modelo era o Terceiro Reich mesmo. E na fila de espera, sabendo que eu seria o próximo, sabendo que nao valeria pra mais nada, consegui escrever: “Sai para o corre-dor forrado por tapetes persas e desce para o saguão imponente pelo elevador de metal dourado manobrado por um belo rapaz mo-reno de uniforme verde escuro”. Eu devia estar sonhando com ele já. Meu… Ele o…

EM – Não sou imbecil e muito menos “inocen-ce”. Warhol nos fez perder a inocência de achar que o que vejo da minha janela é a re-alidade. Mesmo que fosse, a realidade aqui não passa de uma metafora. Multiplicada,

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assim como tudo eh multiplicado, sempre infinitamente multiplicado….

SC – Mas em Teheran, não tem mais nada. Digo aqui dentro: depois da quimiotera-pia dei a isso aqui dentro o nome de Iran, Teheran, o… o meu coração chama Aiatola Khomeini e meu figado, Ahmadinejad e os dois estão numa situação dificil porque o resto do mundo esta querendo impedir que nosso programa nuclear continue achando que tudo eh pra conseguir uma bomba. E… na verdade eh. Eh pra conseguir uma bomba. A bomba da Persia. A bomba da Persia. Tudo aquilo que comecou tem que ter um fim retumbante. Acho…

AG – Acho que era ele: o uniforme: o cara mais lindo do mundo: com um machado na mão. Digo, lendo Machado… Bras Cubas. Dois países tao diferentes.

EM – Dos pivetes da Reboucas com Henrique Schauman morro de medo tambem, como aqueles da Caio Prado com Consolação, mas quando eles me olham e trocamos olha-res, rola algo, aquele mesmo algo que rola

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quando vou dar palestras sobre a qualidade do mercúrio na agua ou sobre o salmão defumado em vigário Geral ou Parada de Lucas ou no morro do Cantagalo no Rio e trocamos olhares com pivetes de 11 anos com uma tremenda automática nas mãos, tremendo por causa da abstinência da coca. Não ache você que eu vivo num claustro ou que eu não tenho um profundo conhe-cimento das pessoas, todas elas, todas, seja de onde forem, do interior da Romenia, do Alagoas ou da Tchechenia. Somos seres humanos e temos medo da morte e isso nos torna iguais. Isso mesmo; iguais.

AG – Ainda queria falar do LagoSC – E eu dos cabritosEM – Mas a morte nos nivelou! E vamos pro

chuveiro queridas! Agora!SC – Nem um cabrito?AG – Dentro do lagoEM – Liguem as torneiras

(Falas pequenas e quase sussurradas dos dois)

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AG e SC – Mas eram cabritinhos tão lindos e… um lago tão esplendoroso… dois cabritinhos andavam pelo lago e dentro desse lago dois patinhos e um dos cabritos nhac, comeu um dos

patinhos

Fim

A Breve Interrupção, escrito e dirigido por Gerald Thomas, foi interpretado por Alberto Guzik, Sérgio Salvia Coelho, Edson Montenegro, Pancho Cape-letti e Anna Américo no dia 11 de outubro às 18h00.

* * *

Gerald Thomas é dramaturgo e diretor teatral. Tem passado a vida entre Estados Unidos, Inglaterra, Brasil e Alemanha. Começa vida no teatro no La MaMa Experimental Theater. Foi ilustrador para o The New York Times. Trabalhou com Beckett nos anos 1980. Em 85 formou e estabeleceu a Cia. Opera Seca em sp. Em 2007 estreou um divertido e alegre

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evento na Praça Roosevelt (dentro de uma tenda) as Satyrianas. Está se dedicando a investigar novas formas de lidar com a “interpretação” em cena e continua a revisar sua autobiografia fictícia “Notas de um Suicida”.

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O Amor nos Tempos de Câmera

Ana Rüsche 

Todos os comentários e rubricas são sugestões feitas para melhor entendimento do texto, sen-do a divisão de personagens mera proposta, dado que o texto em si é um monólogo de Clara, podendo as rubricas ser livremente modificadas conforme as criações da montagem. As escolhas dos atores entre homens, mulheres e transexu-ais para interpretar as Claras e outros também me parecem indiferentes, que sejam ao gosto dos encenadores. A mesma observação é feita a respeito da divisão proposta sobre as três cenas – fiz essa separação apenas para auxiliar na compreensão do texto, sendo meramente indi-cativa. Por fim, os figurinos para “transeuntes”,

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“guarda”, “atendente”, “vendedora”, imagino-os como o mais simples possível, bastando um quepe para o guarda, uma gravata para o aten-dente, etc. Et voilà!

Personagens

Clara 1: Clara-ela-mesma, a narradora Clara 2: Clara em sua versão crítica debo-

chada Clara 3: Clara em sua versão melodramática Voz: soa como os avisos do metrô de São Paulo Clara 3 como Segurança do Banco Clara 2 como a Câmera Clara 3 como Garoto atendente do Banco Clara 1 como Vendedora de lingerie Clara 3 como Mulher comprando lingerie Todas como Transeuntes esperando o Trem

Cenas

No Banco ante a Câmera. Na calçada, diante de uma Loja de Lingeries.A Esperar o Trem. 

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Cena i

Voz – Não ultrapasse a faixa amarela. Após o sinal da campainha, não embarque no trem. Sua segurança é o nosso direito.

Clara 1 – Ando pelas calçadas como um des-perdício. Vesti pérolas falsas e rendas, contu-do sou gasta entre ascensoristas, professores universitários, jornaleiros e entrevistas de emprego.

Pausa

Clara 1 – O dia cinza faz-me pensar no amor. E o que será o amor nos tempos de câmera?

Segurança do Banco faz sinal para que Clara tire seus metais e coloque na caixinha antes de entrar no estabelecimento bancário, enquanto a Câmera segue seus passos.

Clara 1 – Entro no banco para pagar contas, hoje são as contas as únicas cartas que se lembram de mim. Despeço-me de todos os

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meus metais em uma caixinha, sou inteira plástico e bijuterias.

O Segurança do Banco recolhe a caixinha com os metais e ignora-a. A Câmera segue-a. Clara 1 retoma seus metais após passar pela imaginária porta giratória.

Clara 1 – O Olho repara nos cabelos arrepia-dos, ainda impregnados de sonhos e o lençol quente, larguei-os cedo demais como mães a deixar os filhos com a televisão. Pressin-to, a máquina me segue! Entretanto, nem a câmera repara ao certo no desperdício de minha beleza bem maquiada para uma manhã de quarta-feira.

Chega-se ao Caixa, estende contas amassadas ao Garoto Atendente do Banco.

Atendente – Sem saldo suficiente, senhora.Clara 1 – Não tem problema, obrigada, viu?

Depois eu pago.

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Pausa. Enquanto Clara 1 guarda suas contas e confere os números e arruma os cabelos, Clara 2 e 3 despem-se de seus personagens anteriores e discutem o resumo da história de amor mal-sucedida...

Clara 3 – Apaixonei-me duas vezes na vida. A primeira foi aos 25 anos, um pouco tarde, e por isso mais letal: considere-se, é uma virose – quando contraída por crianças, sara rápido e deixa marquinhas denunciadoras de charme e personalidade; caso contraída por adultos, adquire resistência e deforma a pele por um tempo.

Pausa

Clara 3 – O objeto da paixão foi um homem raso, como poderia ser diferente?

Clara 1 (complementando) – O fundamental: tratava-me como um acessório. Dessa ma-neira, não houve como resistir... trocamos quilos e quilos de vogais e encontros arapu-cas por e-mail, evocamos falas de persona-

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gens, sovamos dramas minúsculos, tão pro-fundos!, pequenos abismos onde atirávamos pratos na parede.

Clara 3 – Como pode perceber, de imbecil tinha muito pouco, ou talvez muito; entre-tanto, não há melhor qualificação para esse primeiro amor antigo que esta.

Clara 2 (complementando) – Um imbecil, veja só.

Clara 3 – Na realidade, tudo durou uns pou-cos meses. Adoeci. Coração aos solavancos frente à perspectiva de encontrá-lo. Chorei compulsivamente ante a negativa de sermos felizes para sempre.

Clara 2 – Considero esse estado uma demên-cia. Ou uma perversidade de comportamen-to toxicômano.

Pausa

Clara 2 – A história para ser mais bem narrada teria que ter um começo, mas não há come-ços interessantes para histórias de amor, nor-malmente... num eis e estão apaixonados!

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Clara 3 – Poderia dizer também que não hou-ve um dia de fidelidade a esse primeiro amor...

Clara 2 – ... pois mesmo os acessórios ganham vida própria!

Clara 3 – Sim, admito, fui muito vadia, uma vadia!, durante esses poucos primeiros me-ses de paixão extremada, como se com as pernas abertas para outros conseguissem tirar aquele ranço melancólico dos ossos.

Clara 2 – Tentativa falha. Clara 3 – Provavelmente até tenha sido isso

que justificou a negativa de abdicarmos de vivermos felizes para sempre.

Pausa. Claras 2 e 3 já estão um pouco irritadas. Clara 1 intervém apaziguadora.

Clara 1 – Outra observação importante é que essa paixão foi heterossexual: entre um ho-mem e uma mulher. Sempre mais sem graça e previsível.

Clara 3 – Pois bem, não havia como dar certo nada daquilo, não obstante meu sofrimento

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ímpar e a dedicação de todos os meus pen-samentos àquele primeiro amor. Foram dias e dias entre chocolates, entradas na caixa postal do e-mail, conversinhas com amigos e amigas...

Clara 2 – Pessoas vazias e desconhecidas que, em um átimo de segundo, logo se tornavam conselheiros mediúnicos sobre a natureza humana!: crendices aparentemente sem nenhum sentido, explicavam os fatos como predições do destino e cada fragmento de sentido parecia exarar as pitangas choradas pelo desamor.

Pausa

Clara 2 – No entanto, esse estado de euforia irracional traz à baila algumas verdades, pois a incapacidade na existência de uma história de amor sequer na vida é uma tra-gédia sem o trágico. E o que poderia soar absolutamente emancipatório e libertador torna-se opressivo, obrigatório...

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Pausa. As três saem do banco, parecem passe-ar pela calçada sem rumo certo. Clara 3 finge mendigar moedas.

Clara 3 (alto) – Como você nunca se apaixonou na vida?

Voz – Pedir esmolas é prática ilegal. Colabore. Denuncie.

 Cena ii

Estão na calçada. A cena inicia-se com Clara 2 fazendo a proposição da cena, em que comenta as relações entre o amor e a compra de lingeries como um show de auditório. Enquanto Clara 2 faz suas falas, Clara 1 assume seu papel de vendedora de lingeries e Clara 3 o de compra-dora, abrindo e remexendo calcinhas e sutiãs – sugiro manter o paralelismo das marcações entre a cena anterior do banco e a loja de lin-gerie, sendo a marca de “atendente” agora a de “vendedora”. 

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Clara 2 (com trejeitos de apresentadora de show de auditório, “microfone” em punho) – Esse é o motivo fundamental das compras de lingerie femininas e do vocabulário que as acompanha.

Pausa

Clara 2: Perceba, a mulher bem-vestida e com o parco salário do mês, ticket-refeição, auxí-lio-desemprego e troco da padaria, adentra o estabelecimento com suas pérolas falsas. Há um ar de conquista que paira entre es-ses diálogos e uma censura para modelitos mais ousados. A compradora escolhe um certeira...

Clara 3 escolhe um “modelito improcedente”. Clara 1 “comenta” gestualmente essa escolha.

Clara 2 – ... escolha que por sua vez poderia muito bem ser censurado pela próxima com-pradora! – na realidade, a noção de moda é permeada somente por regras perenes sobre

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castelos no ar, assim como a beleza, que por ora é construída entre sorrisos de meninas tão novas, pequenas sílfides a ser violentadas pelo olhar guloso da primeira quarentona gorda que entra numa loja de lingerie...

Pausa. Clara 2 age como se julgasse Clara 3 “um pouco gorda”. Clara 3 fica amuada.

Clara 2 – E a escolha do modelito é precedida pela frase:

Claras 1 e 3 – “Estou investindo nele!”.Clara 2 – E o léxico aqui ocupa o papel funda-

mental citado acima para a opressão amo-rosa. Vê-se, por meio da frase corriqueira e lépida, que o amor é encarado.

Claras 1 e 3 auxiliam Clara 2 em sua enumera-ção, incitando a plateia à contagem. A música pode adquirir um tom animado.

Todas as Claras (à plateia) – Uuuum!Clara 3 (imitando a “metida” da Clara 2) –

Como um jogo de azar, em que uma mera

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chacoalhada da economia mundial pode por tudo a perder,

Todas as Claras (à plateia) – Doooois! Clara 2 – Não há como controlar os resultados

do amor, forças ocultas gerenciam a bolsa de valores e outros investimentos – e quan-do os índices de desemprego crescentes são motivo para que as ações na bolsa cresçam, enrijeçam... (gestos maliciosos) todos co-memoram!

Todas as Claras (à plateia) – Trêêêês!Clara 2 – Há, entretanto, a inegável verdade

de que certos perigosos tubarões controlam a bolsa de valores e o amor. Assim aquela menina sorrindo ali no cartaz como uma sílfide anêmica pode muito bem roubar o meu amor.

Pausa

Clara 1 (também imitando a “chata” da Clara 2): Afinal, nos tempos de câmera, o amor é um pacote bem embalado e palpável que é passível de apropriação.

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Todas as Claras (à plateia) – E quaaaaatro!

Pausa. Clara 2 assume a situação e profere seu veredicto final.

Clara 2 – Contudo, ante todos os poréns e per-calços da atual situação mundial, a mulher orgulhosamente deposita seu investimento em uma lingerie que representa 9% de seu salário e confiante quererá obter dividendos de volta.

Pausa

Clara 2 – Não há necessidade da existência do trágico se você é confiante. E caso haja algu-ma catástrofe ou pedregulho no caminho, haverá uma explicação clara e pertinente sobre isso, afinal...

Claras 1 e 3 – “Ele não me valoriza!!” Clara 2 (triunfante) – Evitarei ser pedante em

escandir o campo semântico de “valorizar” em quatro tópicos como acima feito, pode-mos dizer em resumo que a relação entre

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o amor e o sujeito apaixonado integra-se ao mundo dos negócios e da produção em série

Pausa. A euforia da cena desaparece.

Clara 2 – A pergunta que emerge dessas diva-gações é: será então que o que eu percebia era realmente amor?

 Cena iii

Todas as Claras sentam-se. A ideia é que pas-sem a noção de espera de um trem, que talvez nunca chegue para elas. A “câmera” agora está focada na plateia. 

Clara 1 (pode estar lendo esse trecho) – Após um tempo a gastar meus sapatos delicados pelas calçadas cinzentas e empoeiradas, garanto que sim, o que percebia era amor. Agora sabemos com certeza que não.

Pausa

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Clara 1 (pode estar lendo esse trecho) – Por mais cruel que seja comigo mesma, o imbecil conquistou-me, mostrando-se muito mais rentável e proeminente que seria e mes-mo após insistentes noites de sexo baboso e porco, conseguiu manter o porte do amor bem-sucedido.

Clara 3 – O amor que entrega flores e convida para restaurantes caros. O amor com trilha sonora e cores de calcinha adivinhadas de primeira. Ah, não tinha como não investir naquilo...

Pausa

Clara 3 – E sem práticas de ações em lingerie ou aplicações em renda fixa, naufraguei com um romantismo fora de moda, totalmente desproposital. Hoje em dia, disseram-me os conselheiros insistente, não é bom levar nada a sério.

Clara 1 (pensativa) – Entretanto, levo-me um pouco a sério. E esse trem não chega é nunca!

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Pausa

Clara 2 (novamente com ares didáticos) – Veja, esta história do meu primeiro amor é como o sudário de Penélope. E a ideia da ronda da morte é exatamente o que há de funda-mental.

Pausa. Claras 2 e 3 podem gestualmente ilus-trar sua fala seguinte.

Clara 2 (explica-se) – Penélope ficou em Ítaca a esperar Ulisses, seu marido, anos a fio. Bo-atos diziam que estava morto. Nós sabemos que, na verdade, o tal Ulisses tinha amantes. Enfim, como Penélope é uma viúva rica, apareceram pretendentes que se banquetea-vam na sua sala de espera. Então Penélope, muito esperta, decidiu que apenas se casaria novamente no dia em que terminasse de tecer um sudário para Ulisses – o Sudário de Penélope!

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Pausa. Claras 1 e 3 fazem cara de não ter com-preendido nada.

Clara 2 (chiliquenta) – Sudário? É tipo um pa-ninho que embrulha os mortos, sabe? Então, gente, é aquela história batida: ela tecia o paninho de dia e desmanchava de noite...

Pausa. Claras 1 e 3 parecem realmente não ter compreendido nada. Clara 2 prossegue.

Clara 2 – Ao tecer e ao desmanchar suas tramas, Penélope possui o controle sobre os dias em que estranhos se banqueteiam em sua sala. A esperança é um pedaço de linha, a rarear com os dias, um ralo fio de liberdade contida, uma trama típica de mulher. Uma mentira que embeleza o dia e se desfaz à noite, um refúgio para a espera frígida por um homem a borboletear pelas Circes de todos os mundos, Ulisses, o astucioso. Seria relevante saber se Penélope realmente o amava?

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Clara 3, tocada pela narrativa, concorda vee-mentemente com a pergunta.

Clara 2 (com desprezo à Clara 3) – O relevante não é saber se Penélope o amava! E ainda hoje estudiosos redigem dissertações a per-quirir: seria Penélope fiel?!

Aos poucos, as Claras libertam-se de seus perso-nagens para se fundir em Transeuntes, a divisão das falas dos Transeuntes entre os atores deve ser feita como a encenação quiser; contudo, é importante evitar o tom dramático.

Transeuntes – Dessa matéria escura e escor-regadia de que são feitas as histórias desse primeiro amor – o refúgio de mentiras para aqueles que possuem estranhos a se banque-tear na sala...

Transeuntes (complementa) – ... e cuja única opção é lembrar a memória de um marido morto pelo qual não se tem mais do que a sombra da afinidade, um truque para o respiro a uma liberdade vigiada e ébria.

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Pausa

Transeuntes – Os estranhos que se banque-teiam na sala olham com gula as ancas de Penélope. A ideia de estupro ronda próxi-ma. Frágil, Penélope responde com suas mentiras desfeitas em fios que enforcam seus dedos todas as noites. Pausa. O trem chega.

Voz – Esse trem não irá a teu destino. Não segure as portas.

Transeuntes – Mas, e minha entrevista de emprego? Eu preciso embarcar! Por favor.

Voz – Não toque nas portas do trem. Evite atrasos.

O trem parte

Transeuntes (indignados) – Pois parta! Parta com seu amor de lata!

À plateia

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Transeuntes – O coração hoje é um pedaço de carvão queimado, combustível barato nas fornalhas do trem.

Pausa. O(s) Transeunte(s) une(m) os dedos das mãos até formar um punho.

Transeuntes – Mas o seu diâmetro é do ta-manho de um punho. Pequeno, mirrado, mas punho.

Transeuntes – Punho que um dia em rosa florescerá.

Abrem as mãos.

Fim

O Amor nos Tempos de Câmera, de Ana Rüsche, foi dirigido por Jairo Mattos e interpretado por Gisa Gutervil, Aline Abowsky e Amanda Lyra no dia 11 de outubro às 19h00.

* * *

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Ana Rüsche, escritora, São Paulo, 1979. Publicou os livros de poesia Rasgada, que recebeu tradução em espanhol, e Sarabanda. É dela também o romance Acordados, premiado pelo pac – Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo. Foi publicada ainda em várias antologias e revistas literárias em português e espanhol. Participou de festivais de literatura na-cionais e internacionais e foi organizadora durante cinco anos da Flap! em São Paulo. Possui ativa par-ticipação na internet, tendo elaborado projetos como El Libro deAlan (www.librodealan.wordpress.com) e Dinossauros e Anfíbios (www.dinosanfibios.ning.com). Mantém site próprio: www.anarusche.com.

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O Resto de Nossas VidasAlex Gruli

(Banco de praça. Ela está sentada, olhando pro céu. Ele chega, também olhando pra cima e senta-se ao lado dela. Durante toda a cena, olham para o alto)

H – 10 minutos...M – É...

(Silêncio)

H – Pelo menos é bonito, né...

(Silêncio)

H – Quer?

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M – Não bebo...H – Eu também não... quer dizer, só em oca-

siões importantes, sabe? “Socialmente”, como se diz...

(Silêncio)

H – É... é bonito...

(Silêncio)

H – Eu já comi uma prostituta!M – O quê?H – Eu já... fiz... amor... sexo... sexo... com

uma... prostituta... é...M – Olha, eu não te conheço...H – Eu sei...M – E prefiro ficar sozinha.H – Eu precisava falar pra alguém... só isso!

(Silêncio)

H – Pechinchei...M – Ahn?

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H – Pechinchei... custava 50 e eu consegui por... 40!

(Silêncio)

H – Eu precisava mesmo falar por causa disso. M – Meu senhor...H – Nunca consegui negociar nada: sempre

paguei o que o mecânico pedia... eu sabia que ele provavelmente não tinha trocado algumas daquelas peças, mas nunca tive coragem de falar nada... sei lá, não queria que ele pensasse que eu tava duvidando da palavra dele, sei lá... mesmo eu nem conhe-cendo a porra do mecânico...

(Silêncio)

H – Mas com ela eu consegui... olhei pra cara dela, perguntei o preço, ameacei sair acele-rando se ela não baixasse aqueles dez reais! Dez reais!!! Tá me entendendo?

(Silêncio)

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H – Talvez seja por isso que eu não gozei...M – Você não gozou?H – Hum...

(Silêncio)

M – Ela gozou?H – Como vou saber?

(Silêncio)

M – Prazer... M.H – Ah... H.

(Silêncio)

M – Eu nunca...H – O quê? M – Gozei.H – Nunca?M – É...

(Silêncio)

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M – Uma vez foi quase... eu tava na faculdade! Tava tendo festa junina no estacionamen-to... a gente foi atrás do prédio da reitoria e foi ali mesmo... sei lá, acho que era o risco de alguém ver, da gente ser expulso... ou ser preso, sei lá... acho que era isso que me excitava mais... senti uma coisa diferente, mas acho que não era uma gozada não... era quase!

(Silêncio)

H – Não existe “quase gozar”...M – Na verdade, ninguém nunca me explicou

como é gozar... como vou saber se gozei ou não? Vocês veem saindo o líquido daí, mas a gente não... não dá pra saber! Talvez quem já tenha gozado possa ter um parâmetro, né? Mas eu não... talvez eu tenha gozado naquele dia... é... mas nunca mais... todas as minhas outras vezes foram na cama mes-mo... sabe... um por cima, outro por baixo e a gente quase obrigado a ficar ali...

H – Sete minutos...

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M – Ahn?H – Sete minutos... tô cronometrando aqui!M – Ah...

(Silêncio)

M – Você não tava prestando atenção?H – Claro que sim... você tava falando da fa-

culdade... da festa junina e tal...M – É...

(Silêncio)

M - Namorada?H – Ahn?M – Tem... namorada?H – Ah, sim... casado!M – Ah...

(Silêncio)

M – E onde é que ela tá?H – Foi ficar com a família... (ri) Queria que

eu fosse junto... Era só o que me faltava,

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né... morrer junto com aquela vaca gorda fedorenta da minha sogra.

(Silêncio)

H – Você é?M – Vaca gorda e fedorenta?H – Não, casada?M – Quase...H – Como quase... ou é ou não é!M – Ia me casar na semana que vem...H – Putz...M – Mas tava em dúvida...H – Não vai perder muita coisa... já experimen-

tou café sem açúcar? É igual casamento...

(Silêncio)

H – E cadê ele?M – Quando surgiu a notícia (aponta pra cima),

ele voltou com a namorada de infância...H – Hum...

(Silêncio)

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M – Quanto tempo?H – Cinco...M – Hum...

(Silêncio)

H – Você imaginou que seria assim?M – Nem pensar... achei que fosse morrer bem

velhinha, cheia de netos em volta...H – (Ri) Eu sempre fiquei imaginando um in-

farte durante uma partida de dominó, numa daquelas mesinhas de praça, com o cabelo bem branco e uma cirrose profunda...

M – Seria numa tarde de chuva... as crianças teriam passado toda a tarde comigo, no sítio que eu teria resolvido comprar pra passar o fim da vida! Teriam dado comida pras galinhas, nadado no lago, soltado pipa... a gente comeria bolinho de chuva, com muito açúcar! Elas iriam pra casa da mãe e eu ligaria a televisão pra ver a novela das oito... nos intervalos, continuaria o tricô da toalha que viria a ser do enxoval da minha neta mais velha... e morreria tranquila, só

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fecharia os olhos... pararia, só... e seria en-terrada ali mesmo, no pomar do sítio!

(Silêncio)

M – Vai, você!H – Eu?M – Como seria sua vida... sua... morte...H – Ah... Eu teria sido gerente... do banco... a

vida toda! Teria comprado apartamento... carro do ano... teria casado e divorciado umas cinco vezes... hehehe... aí na última vez eu ficaria sozinho mesmo. Beberia ao menos uma dose de whisky por dia... e iria sempre jogar dominó na pracinha... o in-farto seria fulminante, sem dor... o corpo cremado, por que seria vergonhoso fazer um velório e não aparecer ninguém pra me ver... hehehe... enfim, seria uma merda de uma vidinha chata...

(Silêncio)

M – Posso?

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H – Você disse que não bebia...M – Agora deu vontade... tá ficando quente...H – É...

(Silêncio)

H – Será que a gente se encontraria se não fosse o cometa?

M – Acho que não, né...H – Acho que não... três minutos...M – Agora deu um nervoso... será que vai doer?H – Não... é rápido...M – É.

(Silêncio)

H – E se a gente se beijar?M – Por quê?H – Ah, sei lá...M – Não... me dá mais! (toma mais bebida)

(Silêncio)

H – Quanto você cobraria?

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M – O quê?H – Pra... pra... você sabe...M – O quê?H – Sexo... sexo!M – Nunca cobrei pra fazer isso...H – Quanto?M – Mas nem daria tempo... o cometa vai bater

em... (olha no relógio dele) ...dois minutos e vinte segundos!

H – Eu já fiz isso em menos tempo, acredite! Quanto?

M – Ai, meu Deus!H – Diz... quanto?

(Pausa)

M – 50 reais!H – Ah, não...M – O quê?H – Você deveria ter falado mil reais, um mi-

lhão de reais, sei lá... 50 reais fica muito podrinha, perdi o tesão...

M – Perdi o tesão? E você realmente acha que eu usaria os dois últimos minutos da mi-

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nha vida pra transar com um cara que eu nem conheço? E que ainda pechincha com prostituta?

H – Olha aqui... foi uma vez só! E eu já tinha perdido o tesão antes, quando você falou do bolinho de chuva e do tricô... porra, como é que você quer que eu me relacione com alguém que faz tricô...

M – Eu não quero que você se “relacione”, se liga... E eu não faço tricô... disse que faria quando ficasse velha! E nunca ficaria velha se fosse casada com você, ia querer me ma-tar bem jovem, viu, senhor “faço sexo em menos de dois minutos”!

H – Espera aí... ninguém nunca reclamou não! Eu já fiz muita mulher gozar muito em menos de dois minutos... já a senhorita “sou frígida nunca gozei”...

M – Senhor “dominó na praça”...H – Senhorita “trocada pela namorada de in-

fância”...M – Senhor “sem amigo pra ir no velório”...H – Senhorita “enxoval da neta”...

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(Silêncio)

M – Um minuto?H – Já passou... tá pertinho, né?M – É...

(Silêncio)

M – Você tem razão...H – Ahn?M – Eu nunca me dei valor mesmo... acho

que se fosse prostituta cobraria menos de 50 reais! Acho que é por isso que nunca tava feliz...

(Silêncio)

H – (tenta aliviar o clima, apontando para o cometa, no alto) Bem que eu disse que aca-baria cremado... hehehe...

(Ela fica séria. Silêncio)

H – E sem amigos no velório...

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M – Eu podia ter sido bem feliz... nada de tricô, nem bolinho de chuva... nada de fri-gidez... nada de ficar pensando no enxoval da neta...

H – E eu poderia ter me demitido do banco... e viajar muito... nada de ficar jogando do-minó porra nenhuma... e poderia ter bebido menos, pra evitar a maldita cirrose... e talvez feito mais amizades, pra lotar o velório...

(Silêncio)

H – 20 segundos pro cometa bater...

(Silêncio)

M – Ainda tem aí?H – Tem... bebe...M – Foi um prazer conhecê-lo...H – O prazer foi meu...

(Silêncio)

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H – Acho que vamos passar o resto de nossas vidas juntos!

M – É... H – É... pois é...

(Tempo. Eles se preparam pra morrer e nada acontece)

M – Estranho... nada!

(Vão para a frente, na rua, olhar pro céu. Baru-lho de derrapada de automóvel. Atropelamento dos dois)

(Música)

Fim

O Resto de Nossas Vidas, de Alex Gruli, foi dirigido por Tatiane Daud e interpretado por Otávio Martins e Priscilla Carvalho no dia 12 de outubro à 1h00.

* * *

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Alex Gruli, ator formado em Artes Cênicas pela Uni-camp. Profissionalmente, trabalhou na Cia. Razões Inversas, de Marcio Aurelio. Faz parte da companhia Os Fofos. Encenam desde sua fundação em 2001. Recentemente, participou de projetos do Teatro Popular do sesi (sob direção de Denise Weinberg e Francisco Medeiros) e da Cia. Os Satyros (sob direção de Mário Bortolotto e Alexandre Heinecke). Seus últimos trabalhos foram o espetáculo Últi-mas Notícias de uma História Só, com direção de Otávio Martins; Narcisianas, sob direção de Ariela Goldmann; e A Noite mais Fria do Ano, com texto e direção de Marcelo Rubens Paiva.

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Lá ForaNicolás Monasterio

Penumbra. Em um tapete circular de cores quentes, “A” e “B” dormem.

“A” – Psht!“B” – Mmmh...“A” – Acorda! “B” – O que foi?“A” – Tem alguém lá fora.“B” – Não tem não.“A” – Tem sim! Escuta.“B” – Não tô ouvindo nada.“A” – Eu tenho medo.“B” – Boa-noite.

Ruído

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“A” – É Ele!“B” – Não, não pode ser.“A” – É Ele sim! Mas por que faz esse barulho?“B” – E se for ele, que diferença faz? Boa-noite.

“B” volta a dormir. “A” ouve atentamente.

“A” – Escuta só! É um barulho esquisito... parece barulho de água.

“B” – A hipótese da água a gente já descartou há tempos. Lá fora não tem água.

“A” – Às vezes tem.“B” – Apenas isso: água. Boa-noite.

“B” volta a dormir.

“A” – Você não tem nem um pouco de curio-sidade de saber como é lá fora?

“B” – Eu estou muito bem aqui.“A” – Será que tem outros mundos que nem

o nosso?“B” – Duvido.“A” – É muita arrogância achar que nós somos

os únicos.

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“B” – É muita arrogância achar que os outros são que nem nós.

“A” – E como são, então?“B” – No mínimo, diferentes.“A” – Será que são amigáveis?“B” – Se quisessem nos atacar já teriam feito.“A” – Podem querer fazê-lo a qualquer mo-

mento.“B” – E por que iriam fazê-lo? Não lhes fizemos

nada!“A” – Podem querer vir aqui. Desfrutar nosso

conforto. Comer nossa comida.“B” – Eu não me preocuparia tanto.“A” – Mas se eles nos atacarem, não temos pra

onde fugir!“B” – Também não teriam por onde entrar.“A” – Bom ou ruim, em definitiva, alguma

coisa tem. “B” – E como é que você imagina que seja?“A” – Lá fora?“B” – É.“A” – Talvez tenha outras casas que nem a

nossa. Várias casas, umas com dois, outras

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com um, outras com muitos... andando e se pechando sem saber uma da outra...

“B” – Várias casas, é? E Ele? Ele mora numa casa, também?

“A” – Sim. Não. Não sei.“B” – A sua teoria é completamente furada. Faz

mais sentido achar que é uma casa dentro da outra.

“A” – Como assim? “B” – A gente mora em uma casa, que fica

dentro de outra, que fica dentro de outra, e assim.

“A” – Infinitas casas.“B” – Sim.“A” – E a gente no meio.“B” – Isto.“A” – Claro, a gente é o centro do universo.

Como não pensei nisso antes. Pois se for as-sim, é um saco ser um centro do universo!

“B” – Talvez não seja. Talvez a gente seja ape-nas um ente intermediário entre o centro e a periferia.

“A” – Como assim? Desenvolve.

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“B” – Se tem infinitas casas pra fora, talvez também haja infinitas casas pra dentro.

“A” – Dentro como?“B” – Eeeh... dentro.“A” – Dentro?

“B” olha para a própria barriga.

“A” – Náááh. A maior bobagem que já ouvi. E não explica outra coisa: pra quê?

“B” – Pra que o quê?“A” – Pra que estamos aqui?“B” – Ora, o que fazemos o tempo todo?“A” – Nada. Dormir.“B” – Exato! E sonhar. Alguma utilidade deve

ter. Sonhamos o que aconteceu, o que acon-tece, o que vai acontecer. Tudo que aconte-ce vem dos sonhos, é óbvio.

“A” – E a gente? A gente vem do sonho tam-bém?

“B” – Claro.“A” – De quem?“B” – Ora, desta casa. Posso sentir este lugar

me sonhando.

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“A” – Interessante essa teoria. De onde você tirou?

“B” – Ora, de um sonho.“A” – Faz sentido.“B” – Faz. Porque a gente sempre sonhou.

Lembra dos primeiros? Eram bem simples. Uma cor, um som. Apenas isso o sonho in-teiro. Eu me lembro de ter passado uma noi-te inteira sonhando apenas com uma mão abrindo e fechando. Você não lembra?

“A” – O sonho da mão... Fui eu que sonhei ou foi você que sonhou?

“B” – Não sei. Acho que na época era a mesma coisa.

“A” – Pode ser.“B” – E depois aquele da cor...“A” – Esse eu não me lembro.“B” – Eu olhava pra cima e não tinha teto, nem

paredes, nem nada. Eu deixava o olho ir, e o olho ia. E pra cima, por todos lados, era tudo uma cor só. Não era cor de osso, nem cor de pele, nem cor de sangue.

“A” – Era cor de quê?

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“B” – Cor de sonho. Indescritível. Agora conte um seu!

“A” – Você sabe que eu não me lembro nada.“B” – Nenhum sonho?“A” – Nada de nada. Eu me esqueço de tudo

muito rápido, você sabe. Acordei e vupt! Passou.

“B” – Alguma coisa sempre fica. Não lembra nem de antes?

“A” – Antes do quê?“B” – Antes de antes. Antes da gente estar

aqui.“A” – A gente sempre esteve aqui, não?“B” – Cabeça oca. Esquece os sonhos! A única

coisa que faz no mundo, e esquece! Ne-nhum, nenhum mesmo?

“A” – Não. Sim. Não sei.“B” – Sim ou não?“A” – Não.“B” – Tem um que você lembra sim.“A” – Só um. Mas é sonho ruim. “B” – Aquele.“A” – Eu não quero falar dele.“B” – Ah, fala!

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“A” – Não quero falar. Não quero lembrar!“B” – Por que não?“A” – Porque eu sonhei com a morte.“B” – E como era?“A” – Era diferente, era estranho. De repente

a casa toda começava a tremer, as paredes fechavam em cima e tudo começava a aper-tar, e a gente era jogado pra lá e pra cá, e nisso surgia uma luz muito muito forte, e me pegava pelos pés e me puxava, e havia muitos gritos e eu me agarrava em você, e a mão dava um puxão forte, e nos arrancava e nos jogava fora.

“B” – E aí? O que mais?“A” – Não sei. Nessa hora eu acordei.“B” – Tá vendo? Se não tem no sonho não exis-

te. Não tem nada lá fora. Não existe morte. Nunca existiu.

“A” – Mas as coisas mudam.“B” – Não, não mudam.“A” – Você ainda não percebeu?“B” – O quê?“A” – A gente muda o tempo todo. Esta casa,

isto aqui.

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“A” encosta a mão na parede.

“A” – Isto está crescendo.“B” – Bobagem. Não está crescendo nada.“A” – Todo dia cresce um pouquinho. E a gente

também! Você já reparou que antes nem orelhas a gente tinha? Agora tem orelhas, dedos com unhas, cabelo, sabe-se lá o que mais vai sair!

“B” – Também não é pra fazer esse escândalo. As paredes crescem, a gente cresce, enquan-to continuar assim tudo bem.

“A” – Aí é que está. Não sei até quando vai continuar assim.

“B” – Você está estranha hoje. Meio assustada. O que tem? Foi o sonho, não foi?

“A” – Sim. Não. Não sei.“B” – Repete comigo: nossa casa nos acolhe. “A” – Nossa casa nos acolhe.“B” – Nossa casa é nosso lar.“A” – Nossa casa é nosso lar.“A” e “B” – Nada há de me ferir, nada há de

me faltar.“B” – Estás melhor?

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“A” – Sim. Obrigada.“B” – Às vezes dá medo. Mas medo é bom,

porque vem d’Ela.“A” – O medo vem d’Ela ou vem d’Ele?“B” – d’Ela.“A” – Eu sempre pensei que viesse d’Ele.“B” – Dá na mesma. Chupa o dedo que passa.

Ambas chupam o dedo.

“A” – Dá até curiosidade.“B” – De que? De sair?“A” – É.“B” – Pode sair. Eu daqui não saio não. Nem

que me peguem à força.

“A” e “B” são sacudidas por um forte ruído.

“A” – O que foi isso?“B” – É você que está fazendo isso? Para! Já

perdeu a graça!“A” – Eu não sou! É a casa que está tremen-

do!“B” – Não pode ser! Isto não está acontecendo!

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“A” – Está acontecendo sim!“B” – Vamos morrer! Por culpa do seu sonho!“A” – Eu não sabia, desculpa!“B” – Será que é o fim? Será que a gente se

encontra de novo?“A” – Não sei!“B” – Eu não quero ir embora! Eu não quero

morrer!

Em um canto da sala brilha uma luz muito for-te. “A” e “B” são puxadas para fora do tapete, mas tentam resistir. “A” é atirada fora, no chão frio. Abre os olhos e observa o mundo em torno com olhar fascinado.

“B” – Não me deixa! Volta! Eu não quero ficar sozinha!

“B” é puxada para fora fortemente, e cai de cos-tas no chão, do lado de “A”. O tapete é recolhi-do. “B” procura “A” chorando assustada. “A”, fascinada com o mundo, sorri.

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“B” – Eu juro, eu não queria morrer! Eu quero voltar pra dentro! Eu quero voltar pra casa! Onde estás? Onde estás?

“A” – Aqui.“B” – Ah! Você morreu também?“A” – Morri. “B” – E como é que a gente faz pra voltar pra

dentro?“A” – Pra dentro de onde?“B” – Pra casa! “A” – Que casa?“B” – Pro lugar quentinho! Pra onde a gente

estava, só nós duas, sonhando, lembra? Ou esqueceu esse sonho também?

“A” – Não sei. Não me lembro de nada.“B” – Que medo! Que luz forte! Que frio!

Que merda! Eu não queria morrer! Eu não queria morrer, merda!

“A” – Agora não tem mais volta.“B” – Será?

“B” olha em volta, apavorada.

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“B” – Promete que não vai me deixar? Que vai ficar sempre comigo?

“A” – Sim. Não. Não sei.

“B”, assustada, chora. “A”, maravihada, ri.

Fim

Lá Fora, escrito e dirigido por Nicolás Monasterio, foi interpretado por Ana Guasque, Flávia Teixeira e o contrabaixista Jefferson Collacico no dia 12 de outubro, às 5h00.

* * *

Nicolás Monastério, autor, diretor e dramaturgo, gaúcho de família argentina, criou-se desde pequeno em teatros e salas de ensaio, aprendendo o ofício da direção com seu pai, o mestre Néstor Monasterio. Radicado desde 2006 em São Paulo, escreve e dirige para teatro e vídeo, além de trabalhar com animação, ilustração, edição e música.

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No palco há uma parede com uma porta fecha-da. Encostado à parede, do lado direito, há um sofá. Do lado esquerdo, uma mesa com uma tv e um telefone.  Uma jovem de 20 anos dorme encolhida no sofá, vestida de jeans e camiseta. Está meio coberta por um lençol. No chão há um par de tênis e uma mochila. Um ruído vem de trás da parede, de um corpo caindo, tentando se levantar, batendo nos móveis, caindo contra a porta. A jovem não acorda, mas tem o sono incomodado, vira-se, cobre o rosto com o bra-ço. Uma mulher de 50 anos entra em cena, so-nolenta, vestindo camisola. A mulher observa a porta. O barulho continua. Ela parece cansada, resignada. Tenta abrir a porta. Está trancada. 

Vinte e Cinco Comprimidos Sabina Anzuategui

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Mãe (chamando alguém atrás da porta) – Ro-drigo...

Ninguém responde. Ela tenta abrir a porta no-vamente. 

Mãe – Rodrigo... abre a porta... 

Um movimento da maçaneta pelo lado de den-tro. Barulho de um corpo caindo no chão. 

Rodrigo (de trás da porta, balbuciando) – Eu tô... 

A jovem acorda. Tenta se levantar, ainda sono-lenta. 

Vanessa – Mãe... Mãe – Ele está trancado lá dentro. 

Vanessa fica sentada no sofá, limpa os olhos com as mãos. O barulho ainda vem de trás da porta. 

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Mãe – Rodrigo, abre a porta. Rodrigo – Eu tô me arrumando... 

Som de corpo caindo no chão.

Mãe – Abre isso, Rodrigo. 

Barulho de chave na fechadura. A chave cai no chão. 

Rodrigo – A chave caiu... Mãe – Pega ela. Abre. 

Barulho de movimentos descoordenados tentan-do colocar a chave na fechadura. A chave cai novamente. 

Rodrigo – Eu tô bem... tá tudo bem... Mãe (desanimada) – O que eu faço, Vanessa? 

Vanessa levanta, se aproxima da porta. 

Vanessa – Rodrigo, sou eu... Rodrigo – Vanessa... tá tudo bem... 

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Mãe – Cadê a chave? Rodrigo – Eu já vou dormir... Vanessa (para a mãe): Vou pegar a chave do

seu quarto. Talvez sirva. 

Vanessa sai de cena. A mãe suspira cansada, e senta no sofá. Vanessa volta com uma chave. Tenta abrir a porta. 

Vanessa – Rodrigo, vou abrir... 

Som de Rodrigo tentando se levantar, com difi-culdade. A fechadura destranca. Vanessa abre a porta. Rodrigo estava apoiado na porta, e cai pra cima de Vanessa quando ela abre. Ela se afasta, e ele cai no chão. É um jovem de 25 anos. Está de cuecas e meia, com a calça na altura dos joelhos.

Rodrigo – Desculpa... 

Vanessa ajoelha ao lado dele. 

Vanessa (carinhosa) – O que você tomou? 

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A mãe passa por cima de Rodrigo e entra no quarto. Volta com algumas cartelas de compri-mido vazias, e uma garrafa de vodka pela me-tade. Ela senta novamente no sofá, e começa a contar os comprimidos que faltam na carte-la. Do quarto, vem um barulho de computador, pequenos toques de mensagem de msn. 

Mãe (para Vanessa) – Desliga esse computa-dor. 

Vanessa entra no quarto, som do computador sendo desligado. Rodrigo tenta vestir as calças e levantar, mas mal consegue controlar os mo-vimentos. 

Rodrigo – Mãe... eu estou bem, viu?... está tudo bem... 

Vanessa volta para a sala. 

Mãe (terminando de contar as cartelas) – Ele tomou vinte e cinco. 

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A mãe deixa as cartelas vazias no sofá. Vanessa tenta levantar Rodrigo, mas ele é muito pesado pra ela, e fica sentado, apoiado na parede. O telefone começa a tocar. Vanessa e a mãe suspi-ram cansadas, e não atendem.

Rodrigo – É a Letícia... 

Vanessa senta ao lado da mãe. 

Vanessa – Eu não suporto essa menina. 

A campainha toca até o final, e para. Em segui-da começa a tocar novamente.

Mãe – Se ela aparecer aqui de novo, vai sair debaixo de porrada.

Rodrigo (olhando o telefone) – Ela é boazinha, mãe... 

A mãe levanta nervosa e atende o telefone.

Mãe (agressiva) – Quem é? 

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Rodrigo (para Vanessa) – Ela gosta muito de você... 

Mãe – Fala, piranha! 

Vanessa levanta e se aproxima da mãe. 

Vanessa – Desliga isso, mãe. 

A mãe desliga o telefone.

Mãe – O seu primo me contou o que eles fa-zem. Eles ficam a noite inteira no compu-tador tomando esses comprimidos. Ele fica mandando mensagens, contando cada com-primido que ele toma, se exibindo pra ela.

Vanessa – Mas ela toma também? Mãe – Claro que ela toma. Vanessa – Achei que ela não tomasse. Mãe (irritada): Ah, Vanessa, sei lá. Não me

confunda! 

Vanessa senta no chão, abraça Rodrigo e faz cafuné em sua cabeça. 

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Vanessa (sossegada) – Você devia levar ele pra uma clínica. 

Mãe – Eu não! Não tenho dinheiro pra jogar fora.

Rodrigo (deitando no colo de Vanessa) – Eu não quero ir pra clínica... 

Vanessa – E o plano de saúde? Rodrigo – Eu não preciso de plano de saú-

de... Mãe – O plano só paga hospital. Só aceitam

três dias de internação. Rodrigo – Mãe, pega um copo de leite pra

mim?... Vanessa – E você vai deixar ele assim? 

A mãe levanta os ombros. Pega as cartelas va-zias e a garrafa de vodka. 

Mãe – Vou jogar fora essa merda. 

A mãe sai de cena. Vanessa se estica para pe-gar o controle remoto da tv. Não consegue. A mãe volta para a sala com um copo de leite. Dá o leite para Rodrigo. Rodrigo se levanta um

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pouco para beber o leite. Vanessa consegue se esticar mais e alcança o controle remoto. 

Mãe (para Vanessa) – Até quando você fica aqui? 

Vanessa – Posso ficar até terça. Depois tenho que voltar pra faculdade. 

Mãe (suspirando) – Tá bom... Faz almoço ama-nhã. Eu volto meio-dia. 

Rodrigo termina o leite. Se estica através da porta do quarto, e alcança uma camiseta. Veste a camiseta. Volta a deitar no colo de Vanessa. 

Vanessa – Tem alguma coisa no freezer? Mãe – Tem um peito de frango. 

Vanessa penteia o cabelo de Rodrigo com os dedos.

Vanessa – Tem pimentão? 

A mãe passa por cima de Rodrigo e fica parada à porta, olhando para o interior do quarto dele. 

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Mãe – Acho que sim. Vanessa – Posso fazer com shoyu. 

A mãe levanta os ombros, sem dar importância. 

Rodrigo – Eu não gosto de pimentão. Mãe (entrando no quarto) – Será que ele tem

mais um comprimido? 

A mãe volta em seguida com outra cartela de comprimidos. Pega um e engole. 

Mãe (cansada) – Esse quarto parece uma far-mácia. (bufa) Boa-noite. 

A mãe volta para o seu quarto. 

Rodrigo (quase dormindo) – Boa-noite... 

Vanessa liga a televisão. Entram as vozes de um filme dublado. Vanessa fica assistindo. Rodrigo dorme em seu colo. (obs.: diálogos do filme As Três Faces de Eva). 

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Médico 1 (tv) – Não adianta tentarmos nos enganar. Esta mulher está em pior condição hoje do que quando entrou nesta sala dois anos atrás.

Médico 2 (tv) – Não será por causa do divór-cio?

Médico 1 (tv) – Não, é mais que isso. A filha é a única coisa que lhe importava no casamento. O problema é que ela não está qualificada para assumir o papel de esposa, mãe, ou mesmo de um ser humano responsável...

Rodrigo acorda.

Rodrigo – Vanessa... Vanessa (distraída, olhando a tv) – Oi... Rodrigo – O que você tá fazendo...? Vanessa – Nada... 

Rodrigo fica um instante em silêncio. Em segui-da retoma: 

Rodrigo – Vanessa... Vanessa (sem dar atenção) – Fala... 

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Rodrigo – Me dá um beijo... 

Vanessa suspira, cansada, e não responde. 

Rodrigo – Só um beijo... Vanessa – Fica quieto e dorme. 

Rodrigo se ajeita no colo de Vanessa, e também olha a tv. 

Médico 2 (tv) – Você vai tentar a hipnose no-vamente? 

Médico 1 (tv) – Creio que seja nosso último recurso. 

Médico 2 (tv) – Alguns pacientes não têm consideração conosco. 

Médico 1 (tv) – Realmente. Suas memórias re-velam uma história vazia. Vergonhosamente normal. 

Rodrigo volta a falar, ainda olhando a tv. 

Rodrigo – Pega um comprimido pra mim... eu não consigo dormir... 

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Vanessa – Você já tomou bastante hoje. Rodrigo – Só tomei um pouco de Hipofa-

gim... 

Vanessa não responde. 

Rodrigo – Também tinha uma caixa de Ino-besin, mas foi só isso... 

Vanessa balança a cabeça, impaciente, e conti-nua vendo tv.

Rodrigo – Depois tomei quatro Stilnox pra dormir, mas já passou o efeito... 

Vanessa afasta a cabeça de Rodrigo e levanta, irritada. 

Vanessa – Qual é o Stilnox? Rodrigo – É uma caixa verde... 

Vanessa entra no quarto. Rodrigo tira as meias. Vanessa volta com uma caixa de comprimidos e joga sobre ele. Ele pega quatro. 

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Vanessa – Quer água? Rodrigo (doce) – Não precisa. 

Rodrigo engole os comprimidos. Vanessa senta novamente no chão, na mesma posição em que estava. Rodrigo deita no colo dela e dorme. Vol-ta o som da tv: 

Eva – Algo está errado. Médico 1 – Você acha? Eva – Na noite passada ela tentou se matar.

Alguma coisa está errada, eu tenho certeza disso. 

Médico 1 – Como ela tentou se matar? Eva – Com uma gilete. Ela entrou no banheiro

e trancou a porta... Se eu não tivesse perce-bido... nem quero pensar.

Vanessa pega no sono. Da tv vem uma música suave dos créditos do filme. 

Rodrigo acorda e, ainda meio sonolento, en-tra em seu quarto e fecha a porta. Vanessa se ajeita no chão, dormindo encolhida. A luz fica

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mais clara, indicando que amanhece. Vanessa continua dormindo. A mãe sai do quarto, ves-tida para o trabalho, com a bolsa a tiracolo. Vê Vanessa dormindo. Pega o lençol no sofá e a cobre. Desliga a tv. Em seguida abre a porta do quarto, checando se Rodrigo está lá. Fica mais calma ao vê-lo, e fecha a porta com cuidado para não fazer barulho. A mãe sai para o traba-lho. Um celular toca. Vanessa acorda. Meio so-nolenta, ela se estica e alcança a mochila. Pega o celular e atende. 

Vanessa – Alô...? Fefê, daqui a pouco te ligo. Tô acordando agora. 

Vanessa guarda o celular no bolso. Limpa os olhos e levanta. 

Vanessa (olhando para o quarto da mãe) – Mãe...? 

Nenhuma resposta. Vanessa desiste. Pega o len-çol, dobra-o e o coloca sobre o sofá. Abre a porta do quarto de Rodrigo. Ao checar que ele está lá,

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fecha a porta para não fazer barulho. Vanessa pega o celular no bolso e liga. Depois de um tempo sua amiga atende. 

Vanessa – Oi, Fefê... tô com saudade... (pausa, ela sorri) ... Não, tô na casa da minha mãe. Meu irmão tá surtando de novo. Enfim, aquelas coisas... (pausa) ... Eu volto na terça, vamos sair? Tá, eu te ligo. Beijo, querida... Até.

Vanessa sai de cena em direção à cozinha. Vol-ta com uma tigela com pimentões e uma faca. Ela senta no sofá e liga a televisão. Com a faca, abre os pimentões, tira a semente e corta em fa-tias finas. Segue o som da televisão. (obs.: tre-cho da radionovela Uma Mulher Moderna, de Carmen Silva) 

Alberto – Está tudo resolvido, meu bem! Maria – É verdade, querido?! Alberto – É sim, meu amor! Vou me divorciar

e casarei com você! Maria – Oh, que bom! Mas e a sua esposa? 

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Alberto – Minha esposa? Maria – Ela concordou com tudo? Alberto – Claro que concordou! Eu lhe disse

francamente que já não a amava, que estava apaixonado por você e que queria me divor-ciar. Ela chorou um pouco mas depois achou que eu tinha razão! Vai me dar o divórcio! 

Maria – Maravilhoso! Eu estava com medo que ela fizesse um escândalo, que tentasse se suicidar ou algo assim! 

Alberto – Nada disso! Alice é uma mulher moderna! Alice tem ideias arejadas! 

 Fim 

Vinte e Cinco Comprimidos, de Sabina Anzuategui, foi dirigido por Marta Baião e interpretado por Hen-rique Mello, Marta Baião e Tatiana Pacor no dia 12 de outubro, às 8h00.

* * *

Sabina Anzuategui nasceu em Curitiba, em 1974. É autora do romance Calcinha no Varal (Cia. das

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Letras, 2005), roteirista dos filmes Desmundo (Alain Fresnot, 2003), A Casa de Alice (Chico Teixeira, 2007), Garoto Cósmico (Alê Abreu, 2007) e do do-cumentário Nasceu o Bebê Diabo em São Paulo (Renata Druck, 2002). É professora de roteiro no curso de Rádio e tv da Faculdade Cásper Líbero e desenvolve pesquisa de doutorado sobre as obras para televisão do dramaturgo Jorge Andrade.

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Vende-se?Jucca Rodrigues

Personagens

corretor 1corretor 2cidadão 1cidadão 2cidadão 3cidadão 4

Cena 1

Cidadão 1 – Absurdo né!?Corretor 1 – Loucura!Cidadão 1 – Vender o próprio fígado!Corretor 1 – Diz que os traficantes têm até

um navio! Um navio enorme, todo equi-

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pado com o que tem de mais moderno em equipamento médico, só pra fazer as cirur-gias. Eles fazem contato com os doadores aqui no Brasil, faz exame, e só se tiver tudo direitinho eles viajam lá pra fora pra fazer a operação! Parece que a coisa toda é supe-rorganizada e tudo.

Cidadão 1 – Onde é que as coisas vão parar?Corretor 1 – É muita coragem.Cidadão 1 – Coragem!?Corretor 1 – Tem que estar precisando muito.Cidadão 1 – Grana né?Corretor 1 – Realizar um sonho!Cidadão 1 – Não. É grana mesmo! Ganância!

De quem compra e de quem vende. Tem nada de sonho não. Muita miséria! Miséria material e espiritual! Eu num consigo nem entender direito uma coisa dessas.

Corretor 1 – Nem eu. Vender o próprio fí-gado!

Cidadão 1 – Onde é que as coisas vão parar?Corretor 1 – Loucura! Muita pobreza.Cidadão 1 – Miséria.Corretor 1 – É! Miséria!

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Cena 2

Cidadão 2 – Absurdo né!?Corretor 2 – Loucura!Cidadão 2 – Vender o próprio rim?Corretor 2 – Onde é que as coisas vão parar?Cidadão 2 – É muita pobreza!Corretor 2 – É muita coragem!Cidadão 2 – Coragem!?Corretor 2 – Tem que estar precisando muito.Cidadão 2 – Grana né!?Corretor 2 – Realizar um sonho!Cidadão 2 – Sonho?Corretor 2 – É. Sei lá! Você, por exemplo,

você tem um sonho!?Cidadão 2 – Nossa! Tenho um montão!Corretor 2 – Então, se de repente chega um

cara e oferece uma grana pra você. Uma grana pelo teu rim, ou por um pedaço do teu fígado, sei lá! E com essa grana você pode realizar esse teu sonho! Ou começar a sonhá-lo. E sei lá, um rim, a gente tem dois, um pedaço do fígado, depois cresce, não vai fazer tanta falta assim! Agora um sonho

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que a gente desiste, esse pode fazer muita falta. Sei lá! Tem que ter muita coragem pra realizar um sonho!

Cidadão 2 – É. É muita coragem.Corretor 2 – Você tem um sonho né?Cidadão 2 – Tenho.Corretor 2 – E você teria coragem?Cidadão 2 – De quê?Corretor 2 – Coragem pra realizar teu sonho.Cidadão 2 – Que você quer dizer com isso?Corretor 2 – Vender um rim. Você teria co-

ragem de trocar um rim pelo teu grande sonho?

Cidadão 2 – Não! Eu não!Corretor 2 – Nem eu! Vender o próprio rim!Cidadão 2 – Onde é que as coisas vão parar?Corretor 2 – Loucura!Cidadão 2 – Muita pobreza!

Cena 3

Cidadão 3 – Absurdo né!?Corretor 1 – Loucura!Cidadão 3 – Vender o próprio fígado?

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Corretor 1 – Onde é que as coisas vão parar?Cidadão 3 – É muita pobreza!Corretor 1 – É muita coragem!Cidadão 3 – Coragem!?Corretor 1 – Realizar um sonho!Cidadão 3 – Sonho?Corretor 1 – É. Um sonho. Você tem um

sonho!?Cidadão 3 – Eu queria montar meu próprio

negócio. Num depender dos outros. Nem emprego, nem patrão, só eu comigo mes-mo. Montar um bar. Pras pessoas tomarem umas cervejas, comerem alguma coisa. Meu sonho é montar um bar!

Corretor 1 – Você teria coragem?Cidadão 3 – De quê!?Corretor 1 – Coragem pra realizar teu sonho!Cidadão 3 – Claro! Por que não?Corretor 1 – Mas até onde você seria capaz

de ir pra realizar teu sonho?Cidadão 3 – Que você quer dizer com isso?Corretor 1 – Você teria coragem de trocar um

fígado pelo teu grande sonho?Cidadão 3 – Será? Num sei!

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Corretor 1 – Tinha que ter muita coragem!Cidadão 3 – Tinha que ser muita grana!Corretor 1 – Quanto?Cidadão 3 – Sei lá! Mas tinha que ser muita

grana!Corretor 1 – Cinco mil?Cidadão 3 – Não. Cinco mil é pouco.Corretor 1 – Dez mil?Cidadão 3 – Tinha que ser pelo menos uns

cem mil.Corretor 1 – Até eu.Cidadão 3 – É. Por cem mil eu vendia.Corretor 1 – Onde é que as coisas vão parar?

Cena 4

Corretor 2 – Você tem um sonho!?Cidadão 4 – Claro! Quem não tem?Corretor 2 – É. Mas tem gente que nem

lembra mais que sonha.Cidadão 4 – Ah, mas eu lembro muito bem!Corretor 2 – Qual é?Cidadão 4 – Num é grande coisa não. Com-

prar minha casinha e ter algum sobrando

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para organizar a vida. Criá os filhos! Nada demais não!

Corretor 2 – Você teria coragem?Cidadão 4 – De quê!?Corretor 2 – Coragem pra realizar teu so-

nho!Cidadão 4 – Claro! Por que não?Corretor 2 – Até onde você seria capaz de

ir?Cidadão 4 – Que você quer dizer com isso?Corretor 2 – Você teria coragem de trocar um

rim pelo teu grande sonho?Cidadão 4 – Num sei!Corretor 2 – Tinha que ter muita coragem!Cidadão 4 – Tinha que ser muita grana!Corretor 2 – Quanto?Cidadão 4 – Sei lá! Mas tinha que ser muita

grana!Corretor 2 – Cinco mil?Cidadão 4 – Não! Cinco mil é pouco.Corretor 2 – Dez mil?Cidadão 4 – Tinha que ser pelo menos uns

vinte mil!Corretor 2 – Vinte mil!?

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Cidadão 4 – É.Corretor 2 – Por um rim!?Cidadão 4 – É!Corretor 2 – Mentira!Cidadão 4 – Num é não.Corretor 2 – Você tá brincando?Cidadão 4 – Num tô não!Corretor 2 – Por dez você num vendia?Cidadão 4 – Num sei!? Dez!?Corretor 2 – Quinze!?Cidadão 4 – Num era o ideal, mas dava pra

conversar.Corretor 2 – Talvez eu possa te ajudar!Cidadão 4 – Como assim!?Corretor 2 – Eu conheço umas pessoas que

podem se interessar pelo negócio!Cidadão 4 – Negócio!?Corretor 2 – É. Eu conheço uma pessoa que

pode comprar o teu rim! Você topa!?Cidadão 4 – Vinte?Corretor 2 – Quinze. Amanhã de manhã

você vai ligar pra esse número. A pessoa com quem você vai falar já vai tá sabendo de tudo.

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Cena 5

Corretor 1 – Absurdo né!?Corretor 2 – Loucura!Corretor 1 – Vender um pedaço do fígado!?Corretor 2 – Ou o próprio rim!?Corretor 1 – É muita pobreza!Corretor 2 – É muita coragem!Corretor 1 – É! Tem que ter muita coragem

mesmo!Corretor 2 – Tem que estar precisando muito!Corretor 1 – Grana né!?Corretor 2 – Ou sonho!Corretor 1 –Grana pra poder realizar um

sonho!Corretor 2 – Sei lá, um rim, a gente tem dois!Corretor 1 – Um pedaço do fígado, depois

cresce, não vai fazer tanta falta assim! Corretor 2 – Agora um sonho que a gente

desiste, esse pode fazer muita falta! Corretor 1 – Tem que ter muita coragem pra

realizar um sonho!Corretor 2 – Você tem um sonho!?Corretor 1 – Claro! Quem não tem!

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Corretor 2 – É! Mas tem gente que já nem lembra mais que sonha!

Corretor 1 – Isso aí é o que mais tem!Corretor 2 – E qual é?Corretor 1 – Você vai querer realizar o meu

sonho?Corretor 2 – Quem sabe?Corretor 1 – Nossa! Até assustei! E você! Qual

o teu sonho?Corretor 2 – Por quê? Vai querer realizar o

meu?Corretor 1 – Só se tiver coragem!Corretor 2 – Claro! Por que não! Você não

teria?Corretor 1 – Coragem pra realizar teu sonho!Corretor 2 – Não! Coragem pra realizar o

teu!Corretor 1 – Pelo meu sonho eu iria até o

fim do mundo!Corretor 2 – Nossa! Agora eu me impres-

sionei!Corretor 1 – Você não!?Corretor 2 – Eu também! Eu iria até o fim

do mundo!

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Corretor 1 – Você teria coragem de trocar um fígado pelo teu grande sonho?

Corretor 2 – Será!? Num sei! Você teria?Corretor 1 – Um fígado?Corretor 2 – Ou um rim!Corretor 1 – Num sei!Corretor 2 – Tinha que ser muita grana!Corretor 1 – Quanto?Corretor 2 – Muita grana!Corretor 1 – Vinte!Corretor 2 – Mais de cem mil!Corretor 1 – Onde é que as coisas vão parar?Corretor 2 – Desculpa, mas você está tentan-

do comprar meu fígado?Corretor 1 – Quem? Eu!?Corretor 2 – É! Você!Corretor 1 – Por quê? Você está tentando

vender? Corretor 2 – Imagina!Corretor 1 – Por cem mil eu vendia até a

alma!Corretor 2 – Onde é que as coisas vão parar?Corretor 1 – Absurdo!Corretor 2 – Loucura!

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Corretor 1 – Muita pobreza!Corretor 2 – Muita concorrência!

Fim

Vende-se?, de Jucca Rodrigues, foi dirigido por André Grynwask e interpretado por Cléo Morais, Luciano Brandão, Kelly Laser, Marina Fossa e Guilherme Silva no dia 12 de outubro, às 9h00.

* * *

Jucca Rodrigues, dramaturgo, poeta e diretor. Mem-bro do Ágora cdt de 2000 a 2005. Estudou compo-sição e regência na fasm e artes cênicas na usjt. Escreveu para o teatro: Álcool, Pólvora e Maracujá, no money, no time, no nada, Crônica de um Teatro Ambulante, Traficados, Dois Irmãos, xx e Manfred & Isadora. Foi orientador de artes cênicas do Sesi Santo André, coordenador regional da Funarte São Paulo e administrador do teatro Cacilda Becker em São Bernardo do Campo.

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Dia de Visita Noemi Marinho 

Pai sentado numa cadeira, filho na beira da cama. Os dois estão olhando fixamente para um minúsculo ramo de miosótis em cima de um embrulho de papel pardo. 

Gonçalo – São miosótis. Não são? Armando – Cuidei que fossem. Gonçalo – Então, são. Armando – Devem ser. Gonçalo – Miosótis! Armando – São, sim. Você gosta? Não gosta? Gonçalo – Você é quem gostava. Armando – Ainda gosto. E você? Gosta? Gonçalo – Não muito. Armando – Não gosta mais?

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Gonçalo – Gosto mais ou menos. Armando – Foi com sua mãe que aprendi a

gostar de miosótis. Gonçalo – Ainda posso aprender a gostar

mais. Armando – Mas ela não veio. Gonçalo – Ela não vem nunca. Armando – Nós sabemos que ela não pode. Gonçalo – Ela não aguenta. Armando – Ninguém aguenta. Gonçalo e Armando – Você veio me buscar? Gonçalo – Ela está envelhecendo, não está? Armando – Todos nós estamos. Gonçalo – Mas em silêncio. Ela não, não

aguenta. Ela grita, se revolta. Armando – É o jeito dela. Gonçalo – Ela não aguenta. Armando – Eu trouxe as fotografias que pe-

diram. Podemos tentar? Eles disseram que pode ser muito bom. Pode te ajudar, pode ser bom. 

Gonçalo – Com aquela condição, pai. Armando – Como você quiser, Gonçalo, se

você não aguentar, eu paro. 

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Armando pega o embrulho e o desfaz. Uma cai-xa com fotografias soltas e um álbum. Os dois se acomodam para a sessão. 

Armando – Começamos pelo álbum? Gonçalo – Pode ser. Armando – Desta você não pode se lembrar.

Você era muito pequeno... Gonçalo – É meu batizado? É o quê? Armando – É sua saída da maternidade. Gonçalo – Mas com quantos quilos eu nasci?

Eu era enorme! Armando – Sua mãe teve complicações, não

pôde sair logo. A alta dela demorou a che-gar. 

Gonçalo – Mais um pouco e eu saía andando. Olha o tamanho do moleque. 

Armando – É você, Gonçalo. É você no colo da tua mãe. 

Gonçalo – E você? Onde é que você estava? Armando – Atrás da máquina. Eu é quem

estava fotografando vocês. Gonçalo – O que é que ela teve? Armando – Complicações. 

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Gonçalo – Você já disse, complicações, eu sei. Mas o que foi que ela teve.

Armando – Coisas de parto, de útero. Compli-cações. Ela ficou muito mal, muito nervosa, muito fraca.

Gonçalo – É bom não lembrar. Armando – É bom lembrar, sim. Gonçalo – E essas fotos soltas? Armando – Estão fora de ordem esperando o

dia que alguém vai ter tempo e paciência de organizar, pôr em ordem. Dá trabalho pôr os nomes, as datas, colar as cantoneiras, encaixar as fotos.

Gonçalo – Cada família tem seu álbum come-çado e sua caixa de fotografias soltas.

Armando – Eu não tinha muito tempo. Todos esses anos, o trabalho, a firma. 

Gonçalo – Eu podia ajudar. Tempo é o que não me falta agora. 

Armando – Mas e os nomes, as datas, como é que você ia fazer? 

Gonçalo – Não sei. Tentando. Quem sabe o meu corpo ainda lembra? 

Armando – Pode ser muito esforço, não convém. 

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Gonçalo – Se for, a gente para. Você mistura, eu escolho. 

Armando mistura as fotos dentro da caixa e es-colhe uma, olha e entrega a Gonçalo. 

Gonçalo – É uma mesa de aniversário, deve ser uma festa. É o meu aniversário. 

Armando – É o seu aniversário de 5 anos. Gonçalo – Eu estou vestido de pirata? Armando – Seu aniversário às vezes caiu no

Carnaval. Gonçalo – Que ridículo. O bolo é... um pan-

deiro? Eu não gosto desse bolo e nem dessa gente. Como é que eu podia gostar de uma festa assim? 

Armando – Mas você gostava. Gonçalo – Você não pode saber. Armando – Eu estava lá. Eu via, eu sabia que

você gostava. Gonçalo – Eu chorei. Eu lembro que eu cho-

rei muito nesse dia. Armando – Isso foi depois. Gonçalo – Mas foi nesse dia. 

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Armando – Foi. Gonçalo – Então você se também lembra? Armando – Ninguém teve culpa. Era Carna-

val, era brincadeira. Gonçalo – Eu não sabia que tinha sido no

meu aniversário. Sabia que era Carnaval. Só. Alguém deixou o portão aberto, estáva-mos todos na frente da casa. A gente cantava alguma coisa ou era uma brincadeira de roda. Só sei que eu tinha um lenço nos olhos. Lembro da gritaria, do barulho das batidas no portão, as crianças correndo, eu no escuro, o apito forte... 

Armando – Era um Clóvis, só isso. Gonçalo – Eu nunca tinha visto aquilo. Aque-

le homem enorme, mascarado, sem boca, sem nariz, o cabelo de lã, a roupa larga, o apito, a bola de couro que ele batia no por-tão. Quando eu tirei a venda eu estava de cara pra ele. Ele apitava e as minhas pernas tremiam... molhadas. Eu estava num lago de urina sem força para correr, o coração aos pulos e sem voz, sem ar, um pavor surdo me gelando todo. Eu desmaiei? 

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Armando – Não, não desmaiou, não. Mas cho-rou muito. Você não está cansado? Quer fazer outra coisa? 

Gonçalo – Agora eu aguento, mas eu não gosto mais de Carnaval. 

Armando – Esse Carnaval já não existe mais. Mas esse menininho de pirata ainda está aí dentro. Só que não precisa mais ter medo de abrir os olhos e dar de cara um Clóvis mau. O Carnaval muda. Quase tudo muda. 

Gonçalo – Eu não tenho mais cinco anos. Armando – A festa foi bonita. Gonçalo – Ela não estava fantasiada. Armando – Era ela quem organizava tudo, fi-

cava o mês inteiro planejando, preparando, embrulhando, enfeitando. No dia acabou se arranjando com esse quepe de marinha e esse colar havaiano. 

Gonçalo – E você, seu Armando? Onde? Ves-tido de Clóvis? 

Armando – Você está em pé na cadeira, não está? De frente para a mesa do bolo. 

Gonçalo – Do único bolo-pandeiro do mun-do. 

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Armando – Atrás de você tem uma cristaleira com um espelho no fundo. 

Gonçalo – Tem essa luz. Armando – Atrás da luz. Gonçalo – Você está atrás da luz? Outra vez? Armando – Eu era um amador. Um fotógrafo

amador. Gonçalo – Quer dizer então que eu estou me

vendo agora com os olhos que você me viu naquele dia. 

Armando – E eu também: estou te vendo agora com os olhos que eu te vi naquele dia. 

Gonçalo – Nós dois ainda somos aqueles? Armando – Eu tinha naquele aniversário a

idade que você tem hoje. Gonçalo – Você estava melhor que eu. Armando – Você está bem melhor. Gonçalo – Me empresta o celular. 

Armando entrega o celular para Gonçalo. Os dois se aproximam e sorriem para o celular que Gonçalo dispara. Grande clarão de flash. Bla-ckout. Armando e Gonçalo estão na mesma po-sição do início. 

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Gonçalo – São miosótis! Cuidei que fossem. Armando – Têm outro nome. Gonçalo – Amor-perfeito? Armando – Amor-perfeito é outra flor, outra

coisa completamente diferente. Gonçalo – Não sei. Armando – Ela foi quem me ensinou a gostar

de miosótis. Gonçalo – Eu sei. Armando – Você não gosta? Gonçalo – De miosótis? Armando – Dela. Ela não vem mesmo? Gonçalo – Não, papai, você sabe que ela não

vem. Ela não vem mais. Armando – Ela não aguenta, eu sei. Gonçalo – Ela está bem, papai. Armando – Eu também estou bem, não es-

tou? Gonçalo – Está. Armando – Ela não está. Veio ontem e não

me trouxe o pedaço de bolo que tinha me prometido. Bolo de nozes. De pandeiro. Você era pequeno, não vai lembrar. 

Gonçalo – Isso faz muito tempo. 

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Armando – Mas eu lembro, papai, eu lem-bro. 

Gonçalo – Pai! Armando – O que foi, meu filho? Gonçalo – O que foi que você disse? Armando – Você não lembra? Gonçalo – O que foi? Armando – Disse que eu me lembro. Eu disse

que faz muito tempo mas eu lembro. Não sei por que você se preocupa. 

Gonçalo – Esquece. Armando – Eu não quero esquecer mais nada.

Eu quero guardar, quero as fotos. Gonçalo – Tem certeza? Armando – Eu aguento. 

Gonçalo pega a caixa de fotografias embaixo da cama. 

Armando – Sorteio! Eu sorteio. (Sorteia uma fotografia) Esta é tão fácil. Sou eu e ela. Numa estação de águas. Era inverno. Nós tínhamos brigado por causa de uma bo-bagem. Qualquer coisa a respeito de uma

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boina. Ou de um cachecol. Este agasalho que ela estava usando é uma pelerine. Tam-bém não existe mais. Essa fonte, esse lago, pelerines, boinas, cachecóis, tudo isso, nada existe mais. Outra.

Armando e Gonçalo põem a mão na caixa de fotografias e se olham. 

Armando e Gonçalo – Você veio me buscar? 

Armando tira uma e fica muito tempo olhando a fotografia. 

Armando – Eu não consigo... Eu não sei quem são essas pessoas.

Gonçalo – Vamos parar. Armando – Por que é que você está aqui? Gonçalo – Não sei. Disseram que era bom,

que podia ajudar. Armando – Não são meus filhos? São? Gonçalo – Não. Vamos parar, vamos guardar

essas fotografias. Armando – É você, Gonçalo? 

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Gonçalo – Não, pai, não sou eu.Armando – Você também não sabe. Não lem-

bra, não é? Devem ser netos! Eu tive netos, não tive? Com o tempo qualquer um come-ça a ter netos.

Gonçalo – Não tem importância. Armando – Pode ficar com essa caixa para

você. É perigoso dormir com esses estranhos embaixo da minha cama. Vou ficar só com duas: a do aniversário do pirata e a da esta-ção de águas. É tudo que me diz respeito e interessa. Com vocês dois eu começo tudo de novo e não me perco mais.

Gonçalo – Eu posso pedir para guardarem. Armando – Toda essa gente vai fora. Gonçalo – Como você quiser. Armando – A vida começou a doer. Gonçalo – Eu estou aqui. Armando – Mas pode ir quando quiser. Gonçalo – Eu sempre volto. Armando – Nem sempre é o mesmo, nem

sempre sou o mesmo. Cada vez nos encon-tramos menos. Eu notei. Não é queixa, não é nada. É o jeito que a vida tem para lidar

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com o tempo. É melhor mesmo não saber tudo. É melhor para a saúde. 

Gonçalo – Eu também não me lembro de muita coisa. 

Armando – E não te faz falta? Gonçalo – Nem sempre. Armando – O tempo passa e vai mudando a

própria medida. O menino que esperava o Natal chegar sentia lentíssimos os movimen-tos dos dias pelo calendário na parede. Eu espero a chegada do Natal como espero a sua. A qualquer momento pode ser Natal ou você pode aparecer com os meus miosótis. 

Gonçalo – Pai... Armando – Não precisa falar. Eu sei. Eu sa-

bia. Gonçalo – Sempre que eu puder, eu venho. Armando – É preciso muita força. A vida separa

as pessoas. O tempo apaga. Gonçalo – Eu vou voltar sempre. Armando – Sempre que puder. Gonçalo – É, pai, sempre que eu puder. Armando – Ninguém pode com o tempo. Nem

a vida pode. 

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Gonçalo – Pai. Armando – Por que é que você me chama de

pai? Gonçalo – Pai? Armando – Eu não tenho filhos, moço. Gonçalo – Mas assim mesmo eu venho. Eu

venho te ver. Armando – Esquece. Eu já esqueci. De quase

tudo. Gonçalo – Você vai ficar bem. Vai ser bom.

Os médicos, os remédios. Armando – Você ainda está aqui? Gonçalo – Estou, pai. Armando – Pai? Gonçalo – Estou, seu Armando. Armando – Pode ir embora, a vida não para.

Não se esqueça de levar aquela caixa de fotografias.

Gonçalo apanha a caixa. 

Armando – Mais um favor, me alcança o ce-lular. Quero te mostrar o meu filho. A foto do meu filho e do meu pai. 

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Armando abre o celular e exibe para Gonçalo a foto. Gonçalo se ajoelha e toma a bênção de Armando beijando-lhe a mão. 

Armando – Não-me-esqueças... Gonçalo – Eu nunca vou te esquecer, meu

pai. Armando – É o outro nome. Gonçalo – Armando? Armando – Não-me-esqueças é o outro nome

do miosótis.

Fim

Dia de Visita, de Noemi Marinho, foi dirigido por Márcia Abujamra e interpretado por Luiz Damas-ceno e Rodrigo Bolzan no dia 12 de outubro, às 14h00oras.

* * *

Noemi Marinho, atriz formada pela Escola de Arte Dramática – ead/eca-usp. Nos anos 80 e 90 traba-lhou com os grupos Mambembe e Tapa. Começou

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a escrever para teatro no Seminário de Dramaturgia para Atores ministrado por Chico de Assis. Além de atuar, escreve e dirige para teatro e televisão. Rece-beu os prêmios apca, Mambembe, apetesp e Shell como Revelação de Atriz, Melhor Atriz, Revelação de Autor e Melhor Autora teatral.

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Alguém Escreveu IssoBráulio Mantovani

Personagens

NarradorPerácioHomem da Mala

Luz sobre um púlpito bem no centro do palco. Sobre o púlpito, um microfone e um calhamaço de papel, umas 500 páginas.

Narrador (em off) – Alguém escreveu isso.

Nova luz revela o Narrador, junto ao púlpito. O Narrador pega o calhamaço de umas 500 pá-ginas. Sente o peso: não é nada leve. Respira fundo. E começa a ler.

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Narrador – O Perácio...

Nova luz revela, em outra parte do palco, Perá-cio, que segura uma mala grande. Perácio tem em uma das mãos um pedaço de papel. Fica parado, congelado, como uma estátua. Ao lon-go da encenação, o Narrador vai atirando para trás as folhas que lê. O Narrador altera a ve-locidade de leitura (mais rápido / mais lento) ao longo do texto. Quando lê rápido, joga mais folhas para trás.

Narrador – O Perácio sai da rodoviária com o nome e o endereço do cliente dele por escri-to num papel. Ele quer mostrar o endereço que está escrito no papel que ele leva na mão para o motorista que vai dirigir o táxi que vai levar o Perácio até aquele endereço. Ele pensa que é melhor que o motorista leia ele mesmo o nome da rua para onde o Perá-cio tem que ir, porque ele mesmo não sabe se sabe como se diz aquele nome de rua que ele nunca tinha visto antes em nenhuma cidade. É um nome escrito em inglês.

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(Pausa. Perácio mostra o papel para o públi-co. Rapidamente, volta o braço para a mesma posição de antes. O Narrador retoma a leitura do texto. Perácio passa a interagir com o texto com gestos mínimos: move os olhos, faz caras e bocas, move um pouco a cabeça, de acordo com as informações do texto.)

Narrador – Perácio pensa que não tem por que ter vergonha do motorista do táxi porque ele não tem obrigação de saber dizer nenhum nome inglês de rua nenhuma daquela ci-dade porque nem aquela é a língua dele e nem ele é daquela cidade. E ele espera não ter que dizer isso para o motorista de táxi quando ele for mostrar o endereço para ele. E o que acontece é que ele não tem que dizer mesmo nada para motorista nenhum porque não tem nenhum táxi esperando passageiro nenhum na rodoviária.

(Pausa)

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Perácio sai da posição de estátua. Move o corpo todo. Sempre obedecendo ao que diz o texto, ele se move pelo palco, olha para os lados etc.

Narrador – O Perácio olha para um lado: e não vê nada. Olha para o outro: e pensa que não vai ver nada também. Mas ele se engana: ele vê sim alguém que vem de longe, na direção dele, que se aproxima bem depressa.

O Homem da Mala entra com gestos de quem corre apressado, mas seu movimento é lentíssi-mo (como em slow motion). Ele carrega uma mala idêntica à de Perácio.

Narrador – O Perácio percebe que aquele ho-mem só pode estar vindo para a rodoviária porque ele carrega uma mala. O Perácio se sente aliviado e sente também um negócio engraçado porque mesmo vendo o homem vindo de longe o Perácio acha que a mala que o homem carrega é igual à mala que ele leva e que agora está no chão do lado dele.

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(Pausa O Narrador olha para Perácio, que ain-da segura a mala.)

Narrador – (mais alto, didático) o Perácio acha que a mala que o homem carrega é igual à mala que ele leva e que agora está no chão do lado dele.

Perácio percebe que ainda segura a mala. Colo-ca a mala no chão. O Narrador retoma o texto. Perácio e o Homem da Mala encenam tudo o que o Narrador diz, sempre se movendo muito lentamente. O Narrador, ao contrário, lê tudo muito rápido e atira para trás muitas folhas do calhamaço de texto.

Narrador – Agora o Perácio está ansioso para falar com o homem e pega a mala e vai na direção dele para que eles se encontrem mais rápido. Eles vão chegando cada vez mais perto um do outro e o Perácio já está estendendo o braço se preparando para mos-trar para o homem o papel com o endereço do lugar para onde ele deve ir para encon-

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trar o cliente dele. E quando eles finalmen-te estão bem perto um do outro – tão perto que o Perácio consegue até ver que ele tinha razão de achar que a mala que o homem carrega é igual à mala que ele carrega – quando eles estão bem perto um do outro o Perácio se distrai olhando para a mala do homem e o homem acaba passando por ele quase correndo para a rodoviária, enquanto o Perácio demora para parar e conseguir se virar e sair depressa atrás do homem apres-sado quase gritando:

Perácio – Por favor. Por favor.Narrador – Mas o homem continua na pressa

dele sem olhar para trás. E por mais que o Perácio se apresse o homem está sempre bem na frente dele, andando bem mais de-pressa. Até que o homem entra correndo na rodoviária e o Perácio entra logo atrás dele, já sem pressa nenhuma porque não é mais para falar com o homem que o Perácio volta para a rodoviária. O Homem da Mala sai de cena. Perácio procura pelo telefone público e caminha na direção do púlpito do Narra-

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dor. Ele entra para procurar um telefone para telefonar para o cliente para avisar que ele já está na rodoviária. O que é só uma desculpa para ele ter a chance de contar para o cliente que não tem nenhum táxi para embarcar, nem ninguém para quem perguntar como se faz para chegar aonde o cliente está. O que é uma perfeita desculpa para o Perácio poder pedir para o cliente o favor de mandar um carro para a rodoviá-ria. O que para o Perácio é um verdadeiro tormento porque ele acha que vai ficar pa-recendo para o cliente que, se o Perácio precisa de ajuda para chegar até o cliente dele, não pode ser o homem certo para dar a ajuda que o cliente dele precisa. Por isso, o Perácio hesita diante do telefone –

Sem interromper a leitura do texto, o Narrador subitamente mostra um fone de telefone públi-co, com o fio que sai de trás do púlpito. O Nar-rador posiciona o fone como se ele estivesse no gancho do telefone. Perácio continua encenan-do as ações descritas pelo Narrador.

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Narrador – esfregando a mão na cabeça, que é o que ele sempre faz quando fica angus-tiado como ele está agora. E sempre que isso acontece – sempre que ele hesita e esfrega a mão na cabeça porque está angus-tiado – sempre que isso acontece ele fica muito distraído, como ele está agora, e não percebe as coisas que estão acontecendo em volta dele –

Narrador – Perácio pega o fone da mão do Narrador. O Homem da Mala volta à cena e caminha em direção a Perácio.

Narrador – como agora ele não percebe que o homem que passou por ele carregando uma mala igual à dele e entrou correndo na rodoviária está bem atrás dele e ele bate no ombro dele e diz – O Narrador atira a folha para trás. Ninguém diz nada. Perácio e o Homem da Mala olham para o Narrador esperando uma indicação mais clara. O Narrador percebe o problema. Ele se abaixa atrás do púlpito. Atira para o alto algumas folhas do texto que estavam no chão. Volta ao púlpito com uma folha na mão. Volta

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a ler o texto. Perácio e o Homem da Mala encenam de acordo.

Narrador – e ele – o homem da mala igual à do Perácio – bate no ombro dele – do Perácio – e diz –

Homem da Mala – Desculpe, senhor.Narrador – e o Perácio se assusta e não diz

nada porque ele não consegue. Porque ele só consegue olhar para a mala igual à mala dele na mão do homem e para os olhos do homem que olham para os dele e para a mala do Perácio que é igual à mala dele. O homem olha para o Perácio esperando o Perácio dizer alguma coisa. O Perácio não diz nada. O Perácio olha para os olhos do homem e vê nos olhos do homem o mesmo que ele imagina que o homem vê nos olhos dele. O Perácio vê a desconfiança. O homem percebe o olhar do Perácio e diz –

Homem da Mala – Desculpe o susto. Eu só queria me certificar de que o senhor vai mesmo telefonar, não vai?

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O Narrador estende a mão para servir de gan-cho do telefone. Perácio coloca o fone na mão do Narrador em sincronia com o texto. Ao lon-go dos diálogos a seguir, o Narrador lê o texto cada vez mais depressa e jogando cada vez mais folhas para trás. Perácio e o Homem da Mala aceleram as falas de acordo com o ritmo estabe-lecido pelo Narrador.

Narrador – E o Perácio coloca o telefone no gancho e tenta dar espaço para o homem passar enquanto diz –

Perácio – Tudo bem. O senhor pode telefonar primeiro. Eu não tenho pressa.

Narrador – E o homem se afasta um pouco do Perácio e responde –

Homem da Mala – Não não por favor eu tenho tanta pressa quanto o senhor afinal nós esta-mos na mesma situação, não estamos?

Narrador – E o Perácio, sem entender o ho-mem, vira de lado para mostrar que quer ficar longe do telefone –

Perácio – Estamos é?

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Narrador – E o homem surpreso também gira de lado para se afastar do telefone –

Homem da Mala – Não estamos?Narrador – E o Perácio, confuso –Perácio – Desculpe mas eu estou um pouco

perdido.Narrador – E o homem compreensivo –Homem da Mala – Entendo é a primeira vez

que acontece?Narrador – E o Perácio mais confuso com a

conversa e com a dança desajeitada entre ele e o homem, um querendo dar espaço para o outro –

Perácio – Que acontece o quê?Narrador – E o homem perdendo a paciên-

cia –Homem da Mala – Isso que acabou de aconte-

cer com o senhor e comigo, ora.Narrador – E o Perácio, começando a se ir-

ritar –Perácio – Eu nem imagino o que aconteceu

com o senhor.Narrador – E o homem já bastante irrita do

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Homem da Mala – Eu também perdi o ônibus, cavalheiro.

Narrador – E o Perácio entendendo a confu-são do homem –

Perácio – Mas eu não perdi o ônibus, meu senhor. Eu acabei de chegar aqui.

Narrador – E o homem indignado –Homem da Mala – Foi isso que eu quis dizer,

foi isso o que eu vi. O cavalheiro acabou de chegar aqui do mesmo jeito que eu acabei de chegar aqui: correndo. Portanto não me diga que o senhor não perdeu o ônibus porque eu sei que foi isso mesmo que aconteceu.

Narrador – E o Perácio tentando acalmar o homem –

Perácio – Mas eu não perdi o ônibus porque eu acabei de chegar aqui no ônibus que você perdeu.

Narrador – E o homem entendendo o que está acontecendo e desconfiadíssimo do Perácio –

Homem da Mala – Mas então por que o senhor voltou para a rodoviária se o senhor acabou de chegar aqui na cidade?

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Narrador – E o Perácio fingindo que não entende a desconfiança do homem –

Perácio – Eu vim atrás do senhor porque –Narrador – E o homem não deixa ele termi-

nar a frase e agarra firme na alça da mala e coloca a mão no bolso do casaco do mesmo jeito que fazem os bandidos elegantes dos filmes americanos antigos e diz –

Homem da Mala – Por quê?Narrador – E o Perácio –Perácio – Porque eu queria pedir uma infor-

mação para o senhor.Narrador – E o homem, apertando ainda mais

a alça da mala e mexendo em alguma coisa que ele tem no bolso do casaco de um jeito que começa a preocupar o Perácio –

Homem da Mala – E por que o senhor acha que eu tenho alguma informação para o senhor?

Narrador – E o Perácio, deixando a mala no chão e usando as duas mãos para mostrar para o homem o papel que ele tem na mão, com o endereço que ele queria mostrar para

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o motorista de táxi, mas como não encon-trou nenhum não mostrou –

Perácio – É uma informação muito simples.Narrador – E o homem fica assustado com as

duas mãos livres do Perácio. Ele também larga a mala dele no chão e enfia a mão que segurava a mala no outro bolso do casaco. E não diz nada. Fica olhando desconfiado para o papel na mão do Perácio. Silêncio. O Narrador volta a ler, só que mais lenta-mente, e em tom de suspense.

Narrador – O Perácio percebe que ele tem que continuar falando porque o homem não vai dizer nada. O Perácio não sabe o que dizer. O Perácio pensa que é melhor andar um pouco para pensar no que ele vai dizer, mas ele anda sem pensar por onde ele está andando e sem querer ele anda para trás do homem. O homem desconfia que o Perá-cio pensa que ele é bobo e rapidamente se afasta um pouco virando para o mesmo lado para onde o Perácio anda. O Perácio nem percebe o que acontece quando ele diz –

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Perácio – Eu queria saber se o senhor sabe como eu faço para ir até esse lugar que fica nesse endereço.

Narrador – E o Perácio estende o papel para o homem. E então o homem pega o papel da mão do Perácio e diz delicadamente –

Homem da Mala – Com a sua licença.Narrador – E o homem lê em voz alta o en-

dereço que está escrito no papel que agora ele segura –

Homem da Mala – Rua Bloomsburied... Tem um caminho mais fácil, mais curto, mas di-fícil de explicar. E um caminho mais longo, mais difícil, mas fácil de explicar. Qual dos dois caminhos o cavalheiro escolhe?

Narrador – E o Perácio –Perácio – O caminho mais longo, mais difícil,

é muito mais demorado?Narrador – E o homem –Homem da Mala – Não sei quanto demora

porque eu nunca fui por esse caminho por-que eu conheço bem o caminho mais fácil e mais rápido, mas que é mais difícil de explicar.

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Narrador – E o Perácio –Perácio – Acho que então é melhor o senhor

me explicar o mais fácil.Narrador – E o homem, confuso –Homem da Mala – Não entendi se o cavalheiro

quer que eu explique o caminho mais fácil para se chegar lá ou o caminho mais fácil de se explicar aqui.

Narrador – E o Perácio –Perácio – O caminho que o senhor achar que

é o mais fácil de eu entender agora.Narrador – E o homem –Homem da Mala – O que é mais fácil de o

senhor entender é o caminho de quem vai pela rua Spranger Ainsworth.

Perácio grita desesperadamente. O Homem da Mala e o Narrador ficam perplexos. Olham para o Perácio, que se contorce, com as duas mãos na cabeça, como se estivesse sofrendo com muita dor. Intrigado, o Narrador volta ao texto no calhamaço, à procura de uma explicação.

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Narrador – E o Perácio grita desesperado por-que escutou o mesmo nome que ele antes só tinha escutado em seus pesadelos: o nome Spranger Ainsworth. O Perácio volta a gri-tar. O Narrador se assusta. E volta a ler.

Narrador – O mesmo nome que ele escutou no pesadelo que tinha acabado de ter en-quanto dormia no ônibus a caminho daque-la cidade. E foi este o pesadelo: o Perácio está num galpão imenso e imundo e cheio de arquivos de metal e alguém diz o nome Spranger Ains –

Perácio grita. O Narrador fica aflito, sente pena do Perácio. Lê para si mesmo, muito ra-pidamente, num murmúrio inaudível, muitas páginas seguidas, que vai atirando para trás do púlpito. Escolhe uma aleatoriamente e começa a ler apressadamente. Perácio e o Homem da Mala ficam confusos, sem saber o que fazer.

Narrador – A ordem certa é século e sexo e cidade e idade e vício e comício e doença e esperança e esporte e morte e trambique e

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chilique e tique e traquejo e tomate e quei-jo, diz Spranger Ain– Perácio grita.

Narrador – Ai, ai, ai.

Narrador volta a ler rapidamente as folhas, murmurando palavras soltas e quase sempre ininteligíveis. Ele atira as folhas para trás. O que era antes um calhamaço de folhas fica re-duzido a umas poucas páginas.

Narrador – Aqui.

Narrador sorri para Perácio.

Narrador – Fica tranqüilo.

Narrador volta a ler. Perácio e o Homem da Mala voltam a encenar as indicações lidas pela Narrador.

Narrador – E o Perácio, ansioso para sair logo dali e partir para o endereço do cliente dele, faz o gesto de pegar a mala que está no chão ao lado da mala do homem que é igual à

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dele. E o homem quando percebe o que o Perácio vai fazer percebe também que a mala dele é igual à mala do Perácio e não deixa o Perácio pegar a mala.

Homem da Mala – O cavalheiro reparou que as nossas malas são iguais?

Narrador – E o Perácio –Perácio – Idênticas.Narrador – E o homem –Homem da Mala – E como o senhor sabe que

está pegando a sua mala e não a minha?Narrador – E o Perácio –Perácio – Eu acho que esta mala é a minha.Narrador – E o homem –Homem da Mala – Mas o senhor não tem

certeza.Narrador – E o Perácio –Perácio – Agora que o senhor levantou a dú-

vida eu fiquei na dúvida.Narrador – E o homem –Homem da Mala – Então nós temos um pro-

blema aqui.Narrador – E o Perácio, já se abaixando para

abrir a mala que ele acha que é a dele, –

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Perácio – Isso é fácil: é só abrir a mala.Narrador – E o homem, desconfiado, não

deixa ele abrir a mala –Homem da Mala – O senhor não pode fazer

isso!Narrador – E o Perácio, assustado –Perácio – Eu só vou ver se a mala é mesmo

a minha.Narrador – E o homem –Homem da Mala – E se não for a sua?Narrador – E o Perácio –Perácio – Se não for a minha, é a sua.Narrador – E o homem –Homem da Mala – Se for a minha o senhor

vai abrir uma mala que não é sua. O que venhamos e convenhamos não é coisa que se faça. Digo mais: um verdadeiro cavalhei-ro não faria uma coisa dessas.

Narrador – E o Perácio –Perácio – Vamos fazer o seguinte: se o senhor

não quer que eu abra a sua mala por en-gano, por que o senhor mesmo não abre qualquer uma das duas malas? Se o senhor abrir a minha, eu não me importo.

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Narrador – E o homem, extremamente ofen-dido –

Homem da Mala – O senhor está querendo di-zer que não me considera um cavalheiro?

Narrador – E o Perácio, perplexo –Perácio – Eu não –Narrador – E o homem –Homem da Mala – Se o senhor me considera

capaz de abrir, ainda que por engano, uma mala que não me pertence, na opinião do senhor eu certamente não sou um cava-lheiro.

Narrador – E o Perácio –Perácio – Escute meu senhor: se nenhum

de nós dois abrir uma das duas malas, nós nunca vamos saber qual mala é a minha e qual mala é a sua.

Narrador – E o homem, satisfeito, vaidoso –Homem da Mala – Exatamente como eu disse

para o senhor antes: nós temos um proble-ma aqui.

Narrador – E o Perácio, irritado, já se abaixan-do de novo para abrir a mala –

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Perácio – Pode deixar que eu vou resolver esse problema agora.

Narrador – E o homem, em tom ameaçador, mexendo em algo que tem no bolso do mes-mo jeito que ele tinha feito antes, que é o jeito que os bandidos elegantes fazem nos filmes americanos antigos quando querem mostrar que têm no bolso um revólver, sem mostrar o revólver –

Homem da Mala – Parado aí! Eu não vou per-mitir que um estranho abra a minha mala.

Narrador – E o Perácio se afasta da mala calmamente e –

Perácio – O senhor tem razão: nós temos um problema aqui.

Narrador – E o homem, mais tranquilo –Homem da Mala – Agora sim, nós estamos

falando como cavalheiros.Narrador – E o Perácio –Perácio – E como o cavalheiro acha que nós

podemos resolver o nosso problema como cavalheiros?

Homem da Mala – Fazendo um acordo de cavalheiros –

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Narrador – diz o homem, e se cala em segui-da. E o Perácio fica quieto olhando para a cara dele. Eles ficam quietos, um olhando um pouco para a cara do outro e um e outro olhando um pouco para uma mala e para outra. Até que o homem diz –

Homem da Mala – Eu tenho uma ideia para resolver o problema. Mas antes de eu lhe contar a minha ideia eu faço questão que o senhor entenda bem que eu só vou dizer qual é a minha ideia se o senhor enten-der que tudo depende de nós fazermos um acordo de cavalheiros. E sendo o senhor um cavalheiro como parece ser, apesar de quase ter feito uma coisa que não seria pró-pria de um cavalheiro, eu acredito que nós podemos, sem problema nenhum, fazer um acordo de cavalheiros e assim resolver o problema que temos aqui, agora.

Narrador – E o Perácio apenas olha para o homem e faz que sim com a cabeça. E o homem –

Homem da Mala – O acordo de cavalheiros que eu proponho é o de nunca contarmos

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para ninguém que nos encontramos neste dia, e que tivemos o problema que temos agora, e que resolvemos o problema da ma-neira como ainda vamos resolver, depois de fazermos o acordo de cavalheiros que eu proponho.

Narrador – E o Perácio escuta com atenção o homem –

Homem da Mala – E o acordo que eu propo-nho estabelece que, na possibilidade de um dia nos encontrarmos de novo, fica estabe-lecido que sempre agiremos, um perante o outro, como cavalheiros que não se conhe-cem. Quero dizer: um sempre ignorando o outro e vice-versa.

Narrador – Perácio e o Homem da Mala pe-gam cada um uma das malas, se afastam um do outro, andando para trás, um encarando o outro, como em um duelo.

Narrador – E assim o Perácio fica sabendo que a ideia do homem é que cada um de-les pegue uma das malas, e se afastem, e fiquem prontos para abrir as malas de ma-neira que um veja o conteúdo da mala que

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o outro segura. E os dois juntos contam até três. E quando contarem três, os dois abrem ao mesmo tempo as duas malas e logo em seguida os dois fecham imediatamente as duas malas. E os dois só têm esse tempo entre o abrir e logo em seguida o fechar para que um olhe o que tem na mala que o outro abriu.

Ao longo do texto a seguir, Perácio e o Homem da Mala colocam ao mesmo tempo as malas no chão, os dois se abaixam junto às malas, viram as malas de maneira que elas sejam abertas para que um veja o conteúdo da mala que o outro tem junto de si. Tudo muito lentamente. E com a tensão de um duelo.

Narrador – E assim os dois só têm o tempo suficiente para reconhecer o conteúdo da mala que o outro abriu e saber que o outro abriu a mala dele. Ou então não reconhecer o conteúdo da mala que o outro abriu e saber portanto que o outro abriu a mala que não é dele. Quer dizer: nenhum dos dois

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terá tempo suficiente para ver exatamente, mesmo que involuntariamente, o conteúdo de uma mala que definitivamente não lhe pertence, que como o homem faz questão de lembrar –

Homem da Mala – não seria uma atitude apro-priada de cavalheiros como nós. O Narrador atira para trás a penúltima folha do calha-maço original. Resta-lhe apenas uma folha com texto, que ele segura na mão e lê em tom de suspense.

Narrador – E os dois colocam as mãos nos fe-chos das malas e se preparam para começar a contar –

Perácio e Homem da Mala – (juntos) Um, dois, três –

Narrador – E o Perácio abre depressa os fe-chos da mala que está com ele, mas não tem tempo de abrir a mala porque o homem logo grita desesperado –

Homem da Mala – Ainda não! O cavalheiro ainda não pode abrir a mala!

Narrador – E o Perácio, impaciente –

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Perácio – Qual é o problema agora, cavalhei-ro? Nós temos um acordo de cavalheiros, não temos?

Narrador – E o homem –

O Narrador atira a última folha para trás. Não há mais nada para ler. Perácio e o Homem da Mala olham para o Narrador: não sabem o que fazer ou dizer. Constrangido, o Narrador engatinha pelo chão, procurando o texto da continuação da história. Sua busca é vã. Ele não consegue encontrar. As luzes diminuem em resistência até o blackout.

Fim

Alguém Escreveu Isso, de Bráulio Mantovani, foi dirigido por Gustavo Machado e interpretado por Roney Facchini, Plínio Soares e Gustavo Machado no dia 12 de outubro, às 16h00.

* * *

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Bráulio Mantovani nasceu na cidade de São Paulo, em julho de 1963. É formado em Letras pela puc-sp e tem master em roteiro cinematográfico pela Uni-versidade Autônoma de Madri. É autor dos roteiros Cidade de Deus, Última Parada 174 e Tropa de Elite 2. É coautor dos roteiros Tropa de Elite e vips.

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PiveteRenata Pallottini

 

Personagens

Pivete – Garoto de rua, com 13 anos, aparen-tando menos.

Velho – Homem de 60 anos, feio.  Noite de sexta-feira; baixos do elevado da Ama-ral Gurgel, o “minhocão”, na cidade de São Paulo. Faz calor, já é mais de meia-noite. Entra um homem de mais ou menos sessenta anos; ele é um forasteiro, talvez um turista, um viajante, vestindo calça de brim com elástico na cintura, camisa esporte, de mangas compridas, colete desses de mil bolsos, sapatões, máquina foto-gráfica bem aparente . É um tipo meio ridículo e inofensivo. Pode ser que seja um homossexual

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velho, à procura de aventura, mas pode ser ape-nas um fotógrafo interessado no submundo. O Velho entra, para e olha ao redor. Tudo parece deserto. Ele se sente seguro, e resolve urinar con-tra um dos pilares do elevado. Vira-se de costas, prepara-se e começa a urinar. Surge de repente, vindo de qualquer lugar, um Pivete, moleque de treze anos, mas muito miúdo, sujo, de calção, camiseta, sandália e gorro de lã, com um esti-lete na mão.  Pivete – Quieto aí, coroa!! Se não te furo!Velho – (Sempre urinando) Que foi?Pivete – Isto é um assalto!! Não se mexa!! E

vai passando a grana!Velho (Virando de frente, assustado, mas sem

deixar de urinar) – Como? O que? 

(O resultado da manobra do velhote é que, de pinto pra fora, urinando sempre, e tendo se vi-rado, movido pela surpresa, ele acaba urinando em cima do menino, que fica puto da vida, pro-cura se defender, se cobrir, esconder o rosto, e deixa cair o estilete) 

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Pivete – Para!! Para com isso!! Para de mijar em cima de mim!! Para!!

(O Velho tenta deter o fluxo de urina, mas não consegue) 

Pivete – Que merda!! Velho de merda!! Para de me mijar em cima!! Tá me molhando todo!! Velho sacana!! Puto!! Mijão!! Para com isso, eu já falei!!

(O Velho, afinal, consegue parar de urinar, de-tido pelo susto e pelos gritos. Confuso e dividi-do, não sabe se sacudir o membro, guardá-lo, enxugar o menino, sacar um lenço ou recolher o estilete. Começa por recompor-se, sempre acom-panhado pelos insultos do menino, que procura se limpar sozinho) 

Pivete – Viado!! Velho boiola!! Com essa bosta desse pinto de fora! Porco!!

(O Velho, afinal, saca do lenço e tenta limpar a cara do menino) 

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Velho – Pronto!! Deixa eu te limpar!Pivete – Sai daí com esse lenço cagado!Velho – É só pra te limpar... tá limpo... 

(Guarda o lenço sem jeito e só aí repara no es-tilete. Recolhe-o do chão, enquanto o menino esfrega os olhos, que ardem) 

Pivete – Porra, meus olhos tá ardendo!Velho (com o estilete na mão) – Que é isto?Pivete (ainda com os olhos tapados) – O que?Velho (insistindo) – Isto!! (Mostra o estilete)Pivete (olhando o estilete pela primeira vez e

dando uma de inocente) Sei lá...Velho – Caiu da tua mão...Pivete – Mentira.Velho – Caiu. O que que é?Pivete – Vai me dizer que nunca viu?Velho – Você queria... me matar?Pivete – Não... só dar uma furadinha...Velho – Por quê?Pivete – Ah, deixa de ser besta!! Eu queria

levantar uma grana!! Pronto, agora me dá isso, que é meu, você mesmo disse!!

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(O Velho pondera o estilete na mão, olha-o, de-pois olha o menino. Agora, a situação está in-vertida. Ele empunha o estilete, apontado para o menino) 

Velho – Pra que que você anda com isso?Pivete – Adivinha.Velho – Pra se defender?Pivete – Pra me defender, pra defender o

meu!! Pra viver, homem!Velho – Perigoso, isso...Pivete – Deixa de ser bundão. Parece cata-

menino!Velho – Que que é cata- menino?Pivete – Esses caras do governo que pega a

gente na rua e quer levar pra dar banho e encher o saco.

Velho – Você não vai com eles?Pivete – Pra quê? Pra ficar preso? Fazer cara

de bonzinho e ficar vendo tv de babaca? Anda, me dá isso.

Velho – (balançando na mão o estilete) E se eu te matasse? Com isto!?

Pivete – Cumé?

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Velho – E se eu te furasse, como você queria fazer comigo? Hem? Uma furadinha só, assim, bem dada, aqui debaixo... (ameaça na barriga do menino).

Pivete – Para com isso!Velho – Eu podia, né?Pivete – Tu não é macho pra isso!! Velho – (chegando a faca na barriga do moleque

e empurrando um pouco) Não, mesmo?Pivete – Eu posso sair correndo...Velho – Então sai...Pivete – Eu vou mesmo...Velho – Então vai... 

(O Pivete tenta se mexer, tenta liberar-se da ameaça, mas é como se não tivesse domínio so-bre seus movimentos; ele está como que amarra-do, com as mãos atadas, seguro. Ele está preso por cordéis, como se fosse uma grande marione-te. Esses cordéis podem ser simulados, ou, real-mente, algo pode surgir do alto, para prendê-lo. A ideia é fazer dele um boneco, movido por alguma força desconhecida, e sem domínio de si mesmo.) 

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Pivete – Não tou podendo... não tou podendo me mexer.... Larga de mim!! Larga de mim, velho boiola!! Larga!! Me deixa ir!! Me dei-xa ir!!!! Me solta!

Velho – Não estou te segurando. Pivete – Então alguém está.Velho – Isso não é comigo. 

(O Pivete se esforça para soltar-se mas está bem preso. O Velho se senta num resto de lixo qual-quer, no chão e começa a limpar as unhas com o estilete) 

Velho – Saiu de casa, é?Pivete – Tem nada com isso, você?Velho – Tenho. Podia ser seu pai. Ou seu

avô.Pivete – Mas não é. Me solta daqui, anda!Velho – Não sou eu que estou te prendendo.

Fugiu, é?Pivete – Imagina se a gente precisa fugir. Fugir

de quê? Eles manda a gente pra rua!Velho – Eles, quem?Pivete – A velha.

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Velho – Tua mãe?Pivete – É.Velho – E teu pai?Pivete – Que é isso? Pobre lá tem pai? É um

macho que tem lá em casa. Velho – Será que a tua mãe não te manda pra

rua porque não tem dinheiro pra te susten-tar?

Pivete – Eles diz que a gente já é marmanjo pra comer de graça.

Velho – E daí?Pivete – Daí que nada. Me solta!Velho – Fala!! E daí?Pivete – Daí que a gente vem pra rua, se vira e

tem sempre uns caras que protege a gente.Velho – Mas é porque eles querem dinheiro,

não é? Dinheiro de vocês?Pivete – Imagina se eu vou dar dinheiro pra

homem!! A grana é minha!Velho – Mas acaba dando pra não apanhar.Pivete – A grana é minha!!Velho – Que você faz com ela?Pivete – O que me dá nos cornos!! Anda, me

solta!

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Velho – Não sou teu pai .Pivete – É tira, então?Velho – Não, por quê? Só teu pai ou tira é que

podia te soltar?Pivete – Me solta, vai, moço ...Velho – (imitando) Moço, é?Pivete – De onde é que você é, velho filha

da puta?Velho – Faz diferença?Pivete – Faz. Se você é gringo, tem dólar. Se

é daqui mesmo...Velho – Sou do interior.Pivete – Casado?Velho – Viúvo.Pivete – Chato, né?Velho – Que é que há, tá querendo me como-

ver? Ficar com pena de mim? Cuido muito bem da minha vida sem mulher.

Pivete (desconfiado) – Chi... Mas sua cueca tá sujona...

Velho (chateado) Nem viu. Para com isso. Pivete – Vai, tio, me solta pelo amor de Deus!Velho – Tio? Amor de Deus? E você não ia

me furar?

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Pivete – Não ia não, era brincadeirinha!Velho – Se solta, ué!! Quem você acha que

está te prendendo?Pivete – Como é que eu vou saber?

(Faz força, tenta se desembaraçar, mas não con-segue. Os laços invisíveis são muito apertados. Ao longe, ouve-se uma sirene de carro policial.) 

Velho – E se a polícia vier aqui e te prender?Pivete – Eu saio logo. Eu sou de menor. Eles

me dão umas porradas, me levam pra uma casa muito da escrota, me dão um banho, me raspam o cabelo, me dão uma camiseta de eleição e depois me soltam na rua outra vez. Eles não tem lugar prá mim.

Velho – E a Febem?Pivete – Nem fala nessa merda!Velho – Periga de você ir prá lá... 

(Moleque esperneia, bate os braços, tenta de to-das as formas, mas não consegue) 

Pivete – Vamos fazer um acordo...

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Velho – Qual é?Pivete – Você escolhe: ou eu te dou o rabo, ou

eu te faço um boquete. Mas pra isso tem que me soltar antes.

Velho – Negativo. Como é que eu sei se você vai cumprir? Eu te solto e você ganha o mundo. Pensa que eu não conheço a tua raça? (Pausa) 

Pivete – Sabe por que a gente não melhora neste mundo? porque tem gente que nem você. (exagerando, melodramático) Que não acredita num (enfático) menino que nem eu. Uma criança.

Velho – Ah, não. Ah, não!! Não me faça rir!! “Menino”!! “Criança”!! Que é que você pensa, moleque? Que eu te vou te pegar no colo e te dar beijinhos? Que eu vou te levar pra casa e te adotar?

Pivete – Podia, velho brocoió. Podia. Pelo me-nos eu te limpava a bunda, quando você ficar um pouco mais velho e se cagar todo.

Velho – Podendo antes me roubar tudo que eu tivesse em casa...

Pivete – Ou não. Podendo te ajudar a viver.

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Velho – Podendo me furar de faca, com mais três medrosos que nem você.

Pivete – Tá vendo? Tá vendo? Não confia em ninguém. Podia até ter mulher, ter noiva, ter uma menina legal prá te cuidar, te fazer companhia. Mas não. O puto velho não confia em ninguém. Vai me solta daqui, velho, tem dó!! Já passou da minha hora!

Velho – Hora? E você lá tem hora?Pivete – Tenho. Tenho que entregar... a féria.

E pegar o meu.Velho – O que...Você não disse que não dá

dinheiro pra homem?Pivete – Eu tava exagerando um pouco...Velho – Isso. Então, você é um otário daqueles

que dá o dinheiro pra um macho qualquer? Que nem puta?

Pivete – Me respeita, velho brocha... Me res-peita...

Velho – É ou não é?Pivete (Depois de um minuto de hesitação) –

É... sou...Velho – (Ameaçando com a faca) Fala aí: “eu

sou uma puta” .

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Pivete – Nem morto.Velho (cutucando-o) – Fala!Pivete (puto da vida) – Eu sou uma puta.Velho – Eu não sou melhor que esses viados

que andam por aqui, pelas esquinas!Pivete – (Esperneando e bracejando) Me solta!!

Me solta!! Socorro!! Socorro!!

(Volta-se a ouvir a sirene da Polícia) 

Velho – Cala a boca, bobão. Se os homens vierem aqui, vão sacar na hora que você estava querendo me assaltar.

Pivete – Vão ver que eu estou amarrado!Velho – Amarrado? Onde? Por quem? Cadê

as cordas!?Pivete (desesperado) Não sei!!!! Velho – Aí que está. Você não sabe. Nem

sabe... Toma. Pega esta faca. (Dá-lhe o esti-lete) Vai!! Se solta!!

(Pivete pega a faca e, a princípio sem convic-ção, tenta soltar-se) 

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Pivete – Onde é que eu corto?Velho – Corta aí, nos braços... nas pernas... 

(Pivete vai tentando e, pouco a pouco, vai se soltando, sem nem saber como. Vê-se solto, completamente, de repente. Estira os braços e as pernas, feliz. Anda de um lado para outro) 

Pivete (Radiante) – Orra, meu!! Tô solto, mano!

Velho – Pois é. Tá solto. Mas tão duro como antes . E sem saber nem quem te prendeu, nem quem te soltou.

Pivete – E daí? Tou cagando. Dinheiro a gente acha fácil. Por exemplo: vai passando o teu aí, velho boiola. E o relógio. E esse anel de bicha. Ah, e a máquina, também. 

(Ameaça-o com o estilete, agora em seu poder) 

Velho – (meio que levando na gozação) – Nem morto.

Pivete – Me passa a grana, velho!

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Velho – Só se você me der o rabo. Pivete – Seja bobo não, velho viado!! Eu agora

tô com tudo em cima!! (Mostra a arma)Velho – Mas eu estou apostando que você está

querendo dar o rabo. Que você dá por gosto. Que você gosta de dar. Acertei?

Pivete – Num brinca...Velho – Estou apostando que você dava pra

qualquer um, lá na Febem: guarda, instru-tor, companheiro de cama... Estou apostan-do que você gozava gostoso... sem vaselina e com areia...

Pivete – (Aproximando-se, ameaçador) – Cala essa boca, velho fedido... Mijão de merda...

Velho (encontrando prazer na gozação) – Estou apostando que você está de pau durinho, só de olhar pra mim e pensar... imaginar... só de cobiçar...

Pivete (avançando, furioso) – Velho puto!! Aprende a me respeitar!!

(Mete o estilete furiosamente no Velho, uma, duas, três vezes, até que o homem caia, sangran-do; o velho estremece e morre. O Pivete olha-o

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sem acreditar. É a primeira vez que ele mata alguém. Não se conforma. Abaixa-se) 

Pivete – Velho... velho bicha... velho... acor-da... levanta... 

(Sacode o Velho)

Pivete – Acorda, velho... volta... acorda, vá!! Volta aqui... agora como é que eu fico... volta aqui, velho... (desesperando-se) Volta aqui... era verdade! Era verdade, mas eu não quero... volta aqui, velho puto!! E agora, como é que eu fico? Não me deixa!! Não me deixa!!

(Para, reconsidera. Tempo. Cai em si, na real. Abaixa-se, põe o ouvido no peito do velho. Certifica-se de que está morto. Ouve-se ao longe o som do carro de polícia. Ele se abaixa de novo e tira o relógio e o anel do homem. Pega a sua máquina fotográfica e a coloca a tiracolo. Sobe no pilar do elevado.) 

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Ouve-se música solene, lenta, pesada.  Quan-do já está lá em cima, Pivete lança mão dos mesmos recursos que o mantinham amarrado a principio. Quando consegue prender o corpo do Velho começa a levantá-lo, devagar. Já lá em cima, quando o corpo está ao seu alcance, abraça-o e some com ele para os intestinos do minhocão.)

Fim

Pivete, de Renata Pallottini, foi dirigido por An-dré Fusko e interpretado por Tiago Leal e Rodrigo Frampton no dia 12 de outubro, às 17h00.

* * *

Renata Pallottini é poeta, dramaturga, ficcionista; já trabalhou em tv e deu aulas na Escola de Arte Dramática, Escola de Comunicações e Artes, da usp e em várias Escolas e Instituições do Brasil e do exterior. Tem vários livros publicados no País e tradu-zidos para espanhol, francês, inglês e alemão. Gosta de vinho e de viajar. 

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Por Favor, Deixe-me Tentar Novamente

Antonio Rocco

Personagens

Elza – 77 anos. Lúcida, fala com desenvoltura. Aparenta ser uma doce velhinha. Bem con-servada e arrumada, tem cabelos brancos for-mando um coque. Ao longo da peça tricota um casaco para o marido.

Dr. Tunico – 85 anos. Marido de Elza. Médico aposentado. Aparenta ser um doce velhinho.

Cenário: Duas cadeiras de balanço e uma me-sinha entre elas. Elza está sentada na cadeira à direita. Faz tricô calmamente. Tunico está sentado à esquerda, folheia uma revista Play-

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boy. Entre eles há uma mesinha, sobre a qual repousa um rádio a válvula, uma bandeja com duas xícaras de chá e alguns bolinhos. Ouve-se a música Let me Try Again na voz de Frank Sinatra. Elza desliga o rádio interrompendo a música. Permanecem em silêncio por instantes.

Elza – Ai, que tédio! Você não cansa de não fazer nada?

(Elza espera a resposta, que não vem.)

Elza – Todo dia a mesma coisa. Todo santo dia a mesma santa coisa! A gente acaba até ficando nervosa. Todo dia eu acordo do seu lado e a única novidade é de vez em quan-do, quando você urina na cama. Eu logo percebo o cheiro! (Pequena pausa) Mas fora isso, é todo o dia a mesma coisa.

(Elza começa a imitar seu diálogo cotidiano matutino com Tunico.)

Elza – Bom-dia, meu amor!

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– Bom-dia, doçura! – Passou bem a noite? – Dormi muito bem, obrigado.

(Retoma seu discurso.)

Elza – Isso quando você não urina na cama. Quando acorda molhado vai correndo pro banheiro, nem fala nada comigo. Você fica com vergonha? Fica?

(Elza espera a resposta, mas Tunico continua calado folheando a revista.)

Elza – Que bobagem! Não precisa ficar não, viu? (Pequena pausa.) Daí vem o café da manhã: leite, café, pão, manteiga... (Reco-meça a imitar o diálogo do casal.)

– Elza! Você esqueceu de comprar sucri-lhos!

– Esqueci! – Mas Elza, você sabe que eu sempre como

sucrilhos no café.

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– Ah, Tunico... Esqueci. Não lembrei, ué! Por que você não foi comprar? Você tam-bém não faz nada!

(Pequena pausa.)

Elza – Ainda bem que eu vou à missa todo dia. Assim pelo menos saio um pouco de casa. Senão ia ter que ficar olhando para essa sua cara velha, o dia inteirinho. Cheia de ruga... Parece um buldogue. E o que é pior: um buldogue com ponte móvel. Sem falar no tique nervoso de ficar fazendo malabarismo com a ponte dentro da boca. Sabe como eu percebo? Hein?

(Pequena pausa, Elza encara Tunico.)

Elza – Fico reparando na sua bochecha se mexendo... Me dá nojo!

(Pausa, Elza tricota em silêncio por alguns se-gundos.)

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Elza – Por que você nunca vai à missa? Ia ser bom para tua alma. (Pequena pausa.) Talvez seja um pouco tarde. Acho que agora não adianta mais. Ninguém vai querer tua alma. Será que você ainda tem alma? Duvido!

(Pausa. Elza conta os pontos do tricô. Quando recomeça a falar perdeu o tom agressivo, está triste.)

Elza – Mesmo assim, deveria ir à missa. Ao menos para me fazer companhia. Todas as minhas amigas já morreram... Eu fico lá... Sozinha, sozinha. Nem Deus percebe que eu estou lá.

(Suspira e retoma o fôlego e o sarcasmo.)

Elza – A gente se conheceu numa missa, lem-bra? Engraçado! Já tinha quase esquecido... Também: faz tanto tempo. (Lembra com algum esforço.) Missa de corpo presente! Teu pai ainda estava quente! Morte esqui-sita que ele teve, não? (Espera a resposta,

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Tunico não responde e continua folheando a revista.) Coisa horrível! Todo inchado, disforme... Na época, correu boato que mor-reu de sífilis. Eu não duvido: passou a vida nos prostíbulos! (Pensa por um segundo.) Era só ver a tua mãe. Todo mundo sabia que ele tirou tua mãe do bordel, da zona, da putaria!

(Elza perde um ponto do tricô. Perde o tom agressivo. Agora fala como uma doce velhinha.)

Elza – Ah, meu Deus! Perdi um ponto... Pron-to! Agora sim.

(Pausa. Elza recorda o passado com carinho.)

Elza – Você era tão bonito... Bonitão mesmo! Moreno, olhos bem verdes... Tinha acabado de se formar. Era o melhor aluno da turma. Médico de futuro!

(Volta a ser agressiva.)

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Elza – Não sei por que veio clinicar nesse fim de mundo. Só se foi pra fugir da concor-rência. Claro! Aqui não tinha médico. Só um louco poderia vir pra cá. ja-cu-tin-ga! Nunca ninguém ouviu falar, nem nunca vai ouvir falar dessa maldita cidade!

(Pequena pausa.)

Elza – Jogou a carreira fora! Jogou ou não jogou? (Ela mesma responde.) Jogou! E me enfiou nessa terra de ninguém. (Fala com rancor.) Na época eu te pedi. Cheguei a implorar pra gente não vir... Mas você nem ligou, me fez parar de estudar e eu virei sua enfermeira. Cômodo pra você! Mui-to cômodo! (Eleva a voz.) Eu quero saber se algum dia na sua vida você pensou em mim? (Ela mesmo responde.) Nunca! Nun-ca! (Pequena pausa.) Mas em compensação, virou o homem mais popular da cidade. Doutor Tunico pra cá... Doutor Tunico pra lá. Lógico! Todo mundo gosta do único médico da cidade. Não é mérito seu, não

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senhor! (Pequena pausa.). O querido. O mais amado. O pai de todos. Dava consulta e tratamento de graça. Que beleza! Que homem bom! (Num impulso de cólera.) Isso não paga todo o mal que você me fez!

(Retomando a calma, agora cínica.)

Elza – Você sabia que estão querendo mudar o nome da cidade pra Doutor Tunicópolis? Tem até projeto na Câmara de Vereadores! Eu não tinha te contado antes pra você não ficar todo inchado. Não sei nem por que te contei... Pena, eu acho. É... Fiquei com dó de você.

(Depois de sentir realmente dó do marido por um segundo, volta a ser irônica.)

Elza – Grande coisa! Grande coisa! Dr. Tuni-cópolis: A cidade onde o vento faz a volta! O cu do mundo!

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(Elza ri sardonicamente. Tunico continua fo-lheando a revista completamente indiferente a Elza.)

Elza (Levantando o tom de voz.) – Agora me diz: Valeu a pena? (Ela mesmo responde.) Valeu nada! Trabalhou feito um burro e ficou desse jeito. (Elza olha fixamente para Tunico, avalia-o.) Eu não suporto mais essa sua ponte móvel!

(Elza, depois de pequena pausa, retoma a car-ga.)

Elza – O que mais me dói é olhar pra você e lembrar que eu também envelheci. Não como você, é claro! Ainda não estou po-dre. (Pequena pausa.) Você é um relógio que só marca os anos. É um espelho que me persegue dia e noite. (Grita.) Maldita velhice! (Retoma o fôlego.) Se eu soubesse que a velhice era essa desgraça, nunca teria chegado até aqui. É melhor morrer! Eu queria estar morta!

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(Elza para de tricotar e leva o tricô em direção a ele. Ela muda completamente o tom de voz. Fala meigamente.)

Elza – Deixa eu ver teu punho.

(Tunico estende-lhe a mão, sem tirar o olho da revista. Elza mede o tricô no punho dele. Fazem isso sem se levantar.)

Elza – Certinho! Eu tenho um olho...

(Elza volta a tricotar. Perde a meiguice.)

Elza – Se eu soubesse que ser velha era essa coisa, tinha vivido mais perigosamente. De um jeito mais forte! Eu fui boba. Antiga-mente eu não dava o valor que dou hoje para uma boa sacanagem. Aquelas de en-tortar o peru! (Pausa.) Agora já perdi muito da minha vitalidade. (Seus olhos Brilham.). Imagine só!... Eu na marinha mercante... Que aventura! Rodeada de todos aqueles marinheiros. Fortes! Brutos! Malvados!

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(Elza grita, imitando o capitão de um navio.)

Elza – Icem a bujarrona! Limpem o convés! (Volta a ser ela Mesma.) Eu a Capitã do navio e 4.000 homens à minha disposição. Era só escolher.

(Volta a imitar o capitão.)

Elza – Ordenança! Traga a leva de hoje! (Pau-sa.) Atenção, respondam presente quando eu for chamando. Carlão!

(Elza começa a responder pelos marinheiros. Dialoga consigo mesma.)

Elza – Presente! – Tire a calça! – Perdão Capitã, não ouvi bem! – Não ouviu? (Grita.) Tire a calça, imbecil! – Sim Senhora. – Hum... Sei, sei... (A Capitã avalia o mari-

nheiro nu.) Não! – Esse não serve. Dispensado!.

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(Chama outro marinheiro.)

Elza – Renatão!

(Dessa vez Elza imita um marinheiro com voz bem grossa.)

Elza – (Imitando o marinheiro.) Aqui, Capitã! (Como Capitã.)

– Hum! Gostei da voz!... Tire a calça! (A Capitã avalia o marinheiro nu.) Nossa! Que surpresa! Voz grossa e pinto fino! Ordenan-ça, dispense a todos! Hoje vou me mastur-bar!

(Elza volta a ser ela mesma.)

Elza – Isso sim, era vida! Mas o que eu fiz? (Olha para ele com desprezo.) Fui casar com o maior médico da menor cidade do Brasil. Burra! Burra! (Grita.) Burra! Toda aque-la sua conversa bonita... O que adiantou? (Dramática.) Você arruinou a minha vida!

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(Elza para de tricotar. Olha para Tunico. Olha para o tricô. Mostra o tricô a Tunico. Agora fala com candura.)

Elza – Você está gostando das cores?

(Tunico olha para o tricô, faz sinal afirmativo com a cabeça e volta rapidamente a olhar a revista. Elza recomeça a tricotar e volta a ser agressiva.)

Elza – Sempre vivi à tua sombra. Uma inútil. Tua subalterna. Tua empregadinha! Primei-ro teus doentes... Depois eu. (Lembra.) Saía a qualquer hora da noite. Ia atender gente no meio do mato. Podia estar onde estivesse. Você ia e eu ficava... (Lembra com tristeza.) sozinha...

(Pequena pausa.)

Elza – (Agressiva.) Atender doente, coisa ne-nhuma! Você ia pra farra que eu sei! Eu

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sabia. Eu sempre soube de tudo! (Lembran-do.) Voltava pra casa com aquele ar de can-sado. Tudo mentira! Aliás, mentira nada: Você estava cansado. Mas era de bebida, de jogo e de mulher!

(Elza enxuga os olhos úmidos com um lenço. Guarda o lenço, volta a tricotar. Agora, fala com ironia e sarcasmo crescentes.)

Elza – Mas eu me vingava! Eu não sou mulher de deixar nada de graça. Isso é que não! Eu ficava quietinha. Não reclamava. Não briga-va... Tudo bem! Tudo bem. (Com um prazer imenso.) Mas quantas e quantas vezes, eu dissolvi purgante na tua comida! Ah, isso eu fazia! O que eu mais gostava era te ver saindo em disparada pro banheiro. Quando dava tempo. Senão era ali mesmo. Ficava todo borrado!

(Ela sorri. Aos poucos esse sorriso vai se trans-formando em gargalhada até que se cala subi-tamente e ofende Tunico violentamente. Tunico

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não toma conhecimento e continua entretido com a revista.)

Elza – (Grita.) Porco! Você é um porco pega-joso, sempre foi! Com essa língua áspera de boi Zebu. (Lembrando.) Tinha dia, in-ventava de tomar banho comigo. Queria, porque queria. (Com nojo crescente.) Vinha me abraçando, me beijando, me lambendo debaixo do chuveiro. Aí, chegava naquela parte e ficava ali, me lambendo com a boca aberta!

(Pequena pausa.)

Elza – Eu não tinha dúvida. Começava a la-var a cabeça e pronto! Acabava tua festa. Enchia tua boca de sabão! (Sorri satisfeita. Pausa. Retoma o fôlego.). Só fazia amor quando eu queria. E eu queria com todos, menos com você. (Olha para ele.) Seu pica mole! (Pequena pausa.) Por que você acha que eu deixei de ser sua enfermeira? Res-ponde! (Ela mesmo responde.) Enquanto

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você atendia no consultório, eu atendia em casa. Quanto mais doente o sujeito mais eu tinha prazer. (Quase baba de prazer.) Trepava com Deus e todo mundo! Cada um é generoso à sua maneira!

(Elza fica calada alguns segundos, apenas tri-cotando.)

Elza – E você! Me infernizou a vida só porque nosso filho nasceu preto. Veio com explica-ções científicas. Você sempre gostou de ban-car o sabichão! Disse que tinha acontecido uma espécie de mutação, um fenômeno genético. (Com raiva e prazer.) Fenômeno genético era o pau daquele crioulo!

(Elza retoma o fôlego, sempre tricotando. Tuni-co continua olhando a revista, impassível.)

Elza – Você nunca percebeu nada. (Com rai-va.) Ninguém pode ser tão distraído, inge-nuidade tem limite! Você percebia, sim. Claro! Mas ficava quieto.

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(Tunico continua olhando atentamente a revis-ta. Abre o pôster da página central e vira a revis-ta para ver melhor, deixando assim, finalmente, a plateia ver qual revista ele vinha folheando. Elza, agora, fala com mágoa.)

Elza – Ninguém é tão distraído. Você nunca prestou atenção em mim. Nunca me deu a menor importância!

(Tunico volta a revista à posição normal e con-tinua a folheá-la lentamente. Elza está profun-damente magoada.)

Elza – Eu te amava tanto! No começo eu te amava! (Pausa. Elza chega ao desespero.) Nem te contando tudo isso, você mexe uma palha! (Grita.) Você não é humano! Você é um monstro!

(Elza muda completamente o tom de voz. Ago-ra, fala meigamente. Elza e Tunico se tratam com todo o carinho do mundo.)

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Elza – Tunico! Já estou cansada. Posso parar?

Tunico – Pode, meu amor! Já estou excitado.

Elza – Então vamos?

Tunico – Vamos!

(Elza se levanta, deixa o tricô no assento da ca-deira e estende a mão a Tunico. Este pega a mão dela, se levanta sem dificuldade e deixa a revista sobre o assento de sua cadeira. Os dois saem de cena de mãos dadas.)

Fim

Por Favor, Deixe-me Tentar Novamente, de Antonio Rocco, foi dirigido por Bárbara Bruno e interpretado por Denise Weinberg e Mauro de Almeida no dia 12 de outubro, às 18h00.

* * *

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Nasceu em São Paulo em 1961. Escreve para teatro desde 1980. Cursou Artes Cênicas na eca/usp. Atuou no teca – Teatro Experimental da eca, sob direção de Miroel Silveira. Ganhou prêmio de dramaturgia Nascente usp/Abril Cultural. Criou e coordena o teatro n.ex.t, dedicado à nova dramaturgia brasileira. Encenou sete de suas peças em circuito comercial.

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Meu SegredoMarta Góes

Minha sugestão é que a atriz reproduza a foto recentemente divulgada de Marilyn Monroe, com um véu sobre uma cicatriz quase san-grando. 

Eu fui uma moça linda. O meu problema, você não vai acreditar, o meu problema é que eu tinha sexo.

Pausa.Eu era o único caso na minha família.

Minha mãe não tinha, minha avó não tinha, minha irmã, minhas tias... Uma das minhas pri-mas tinha – diziam que tinha puxado a família do pai. Mas na nossa família, do lado materno, era muito raro.

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Minha mãe era dona de casa e mãe. Você olhava pra ela e já sabia: essa mulher só pode ser dona de casa e mãe. Sabe aquela cara de dona de casa? De mãe? Pois então. 

Minha avó, não. Minha avó era fazendeira, durona, brava. Comandava a fazenda sozinha. Bem masculina. Estou me lembrando até que ela tinha uns pelos no queixo. 

Minha irmã foi intelectual desde o dia que nasceu. Me lembro dela garotinha, já de ócu-los, lendo. Lendo e passando em primeiro lugar em tudo. Tá até hoje: lendo e passando em primeiro lugar. 

Minhas tias eram professoras, tinham cargos na secretaria de educação, acumulavam triênios quinquênios, uma coisa! Sustentavam os filhos sozinhas, todo mundo comentava da coragem delas. Os maridos tinham sumido no mundo. Os dois maridos das duas tias. Pode? 

Minhas primas... Bom, uma delas era gorda. Foi bebê gordo, criança gorda, adolescente gorda e é gorda até hoje. Casou e tudo, mas é gorda.

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A outra... faz tantos anos, nem sei o que aconteceu com a outra. 

Ter sexo nunca foi um problema para mim na infância. Eles me tratavam igual a todo mun-do, eu, pelo menos, nunca notei nenhuma dife-rença. Foi na adolescência que o problema apa-receu.Quando meu peito começou a crescer, meu pai e minha mãe começaram a me olhar de um jeito esquisito. E depois, meus colegas cochichavam quando eu entrava na sala de aula. Eu achava que era porque eles sabiam. E eu ficava vermelha, eu ficava um tomate. Aliás, antigamente as pessoas não ficavam vermelhas ‘como um tomate’. Elas ficavam vermelhas ‘como um camarão’.

Mas não importa. O caso é que todo mundo ri de quem fica vermelha. E eles adoravam rir de mim. Eu pensava ‘não, não vou ficar verme-lha, ninguém sabe, ninguém está vendo, não é culpa minha!’. Mas quando eles olhavam e cochichavam, pronto! Eu sentia o sangue subir e eu chegava a transpirar, de tão quente.

Teve um dia que eu cheguei em casa cho-rando! Minha mãe perguntou o que é que foi,

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mas eu não podia contar pra ela, entende? Eu não podia, ela ia sofrer tanto! Ia achar que a culpa era dela. Meu pai ia achar que a culpa era dela. Eu inventei uma desculpa qualquer e ficou por isso mesmo.

Um dia um menino quis namorar comigo. Um menino lindo. Eu gostava dele. Ele me pe-diu em namoro, eu falei que eu queria, mas aí começou aquele desespero: eu tinha que contar pra ele que eu tinha sexo. E eu não conseguia! E foi ficando cada vez mais difícil. Eu não podia mentir pra ele a vida inteira. Aí, fazia uns três meses que gente estava namorando, eu tomei coragem e contei:

– Alexandre, eu tenho que te falar uma coisa.

Ele ficou olhando espantado com a minha cara séria.

– Não vai me dizer que você não gosta mais de mim...

Daí eu respirei fundo e falei. De uma vez. – Alexandre, Eu nunca contei pra ninguém.

Eu tenho sexo.Ele falou:

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– Como assim?!– É, eu...– Você quer dizer o quê? Que você transa

com alguém, faz sexo com alguém?Eu falei:– Não! Nunca! Eu não faço, é muito pior:

eu tenho sexo. É pra sempre. Eu descobri há muitos anos. É uma abertura funda, bem no meio das pernas, coberta de pelos, pelos grossos, escuros. E lá dentro, como um vale entre duas colinas, é bem vermelho e úmido, e tem umas dobras de pele muito fina, que... 

Ele ficou me olhando espantado, e come-çou a rir. Ele ria, mas ele ria... Daí ele falou:

– Escuta, você é louca?!E eu comecei a chorar. Eu nunca tinha

contado aquilo pra ninguém, mas, não sei, eu tinha esperança que ele compreendesse, que ele falasse: ‘Não faz mal, não faz mal, eu gosto de você assim mesmo...”

Mas a partir daí, todo lugar que eu entrava eu sentia as pessoas virando a cabeça e cochi-chando e rindo.

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Eu me mudei da minha cidade. Eu queria morar numa cidade grande, num lugar onde ninguém me conhecesse, onde ninguém sou-besse nada de mim.

Se eu fui feliz aqui?Então... Por um lado, sim. Nunca mais nin-

guém cochichou, nunca mais riram de mim em nenhum lugar, eu me senti segura, aqui. Mas tem alguma coisa que ficou incompleta. Eu queria ter conhecido alguém que me falasse: olha, eu gosto de você do jeito que você é. Eu gosto de você mesmo que você tenha sexo. Mas como eu nunca contei pra ninguém, ninguém ficou sabendo o jeito que eu sou. Será que eles gostam de mim? Ou eles gostam só porque não sabem como eu sou?

Fim

Meu Segredo, de Marta Góes, foi dirigido por Marco Luque e interpretado por Mara Carvalho no dia 12 de outubro, às 23h00oras.

* * *

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É jornalista e escritora. Antes de começar a escrever livros e peças de teatro, trabalhou em jornais (Ultima Hora sp, O Estado de S. Paulo) e revistas (Istoé, Veja, Afinal e Claudia). Autora de sete peças teatrais: A Reserva, Um Porto para Elizabeth Bishop e Prepare seus Pés para o Verão. Suas personagens já foram interpretadas por Regina Duarte, Regina Braga, Irene Ravache, Marisa Orth, Patrícia Gasppar e Amy Irving. Escreveu A Menina que se Apaixonava (Companhia das Letrinhas), Alfredo Mesquita, um Grã-fino da Contramão e Mulheres Virando o Jogo (Editora Terceiro Nome).

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AlternativaCélia Regina Forte

Personagens

Homem – 30 anos. Mulher – 25 anos.

Cenário: Um quarto de hotel

Cena 1

Homem ao telefone: Sim, sim. Estou aguardan-do sim. Pode subir. Sim, sim... não, não estou passando bem e pedi uma enfermeira. Como as-sim “acabei de chegar”? Por favor, Sr., cheguei e já passei mal. Qual o problema? Deve ser a po-eira dessa espelunca. Pedi uma enfermeira sim.

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Por favor, não estou passando bem (faz algum gesto de mal-estar) e preciso de cuidados urgen-te. (Tempo). O Sr. está me deixando nervoso com tantas perguntas. Deixe a Srta. subir... Ho-mem afrouxa a gravata. Coloca a pasta executi-va num canto e anda de um lado para o outro, coloca uma música enquanto espera... Toque de campainha. Homem abre a porta.

Mulher (com uma roupa de enfermeira mi-núscula) – Desculpa a demora é que eu não...

Homem (interrompendo e olhando no relógio) – Por favor, não tenho muito tempo. Pre-feri não preocupar minha esposa, por isso chamei...

Mulher – ... o atendimento vip Expresso Exe-cutivo. Onde dói?

Homem – Meu peito... .aqui... por aqui assim.Mulher – Aqui? Nossa!Homem – Por que demorou? Só tenho duas

horas de almoço... Mulher – Azar o seu.

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Homem – Ainda por cima tenho um jantar em casa com os amigos da minha mulher. Ela está muito chata. Só fala dos problemas com meus filhos, de como resolver os problemas com a mãe. Não tem assunto...

Mulher (massageando o peito do Homem) – Está melhorando? E meu marido só fala de trabalho. De quantas ações ganhou. Não me interessa isso. Quero me divertir, rir... esquecer da vida. Assim. Exatamente como estou agora. Fantasiar um pouco...

Homem – Isso, vem cá que eu vou fantasiar você em duas horas...

Mulher – ... eu tenho o dia todo livre... SaiHomem (tentando tirar a gravata e falando

para a Mulher que já está fora de cena) – Você sempre tem os dias livres. Coitado do trouxa do seu marido que trabalha que nem um louco pra sustentar seus caprichos. (Olhando pros lados): Será que ele seguiu você? Será? Você sabe que isso me deixa um pouco nervoso (Tentando ainda tirar a gravata) e não rendo todo, como dizer, todo meu potencial.

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Mulher (da coxia) – em compensação me deixa excitadíssima. Só em imaginar que ele me seguiu, fico louca. Vem pra cá e pare de falar. Não estrague o clima...

Homem – ... Que clima? Ah, sei o clima... Puxa a gravata, joga longe e vai para a coxia.

(Blackout. Música.)

Cena 2

Mulher Executiva (ao telefone) – Mãe, por favor, pegue as crianças na escola. Meu analista atrasou e não posso perder a sessão de hoje... Por que não pode?

Toque de campainha.

Mulher – Tá bom, tá bom. Eu pego as crian-ças. Tá, tá. Certo. Tenho que desligar. Meu analista chegou!

Toque de campainha. Arruma-se. E abre a por-ta. Entra o Homem vestido de marinheiro.

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Homem – Meu navio atracou e vim atracar você...

Mulher – Que romântico... Homem – Eu sei. Gosto de romance. (Olhan-

do a Mulher dos pés a cabeça) Nossa, tu tá um avião! Tenho o dia inteiro pra navegar em seus mares... (Dando um sorriso de sa-tisfação)

Mulher – Esperei tanto por esse momento... só que poderei ficar apenas duas horas porque tenho que pegar meus filhos na escola.

Homem – Ah, não acredito. Você prometeu que poderia ficar o dia todo comigo. Não é possível. Peça para alguém buscá-los.

Mulher – Quem, por exemplo? Homem – Sei lá. O seu marido.Mulher – Nem pensar. Ele disse que tinha

uma reunião inadiável!Homem – Deve estar com uma vagabunda

qualquer... Mulher – Ou duas horas ou nada?Homem – Tirei o dia de folga... Planejei isso

o mês todo. Disse pra minha mulher que tinha uma reunião inadiável.

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Mulher – Nossa, os homens usam sempre a mesma desculpa?

Homem – A minha não é desculpa. Isso aqui, meu bem, é a coisa mais inadiável que te-nho na vida.

Mulher – Vem cá, meu amor, vamos aprovei-tar nosso tempo. Não estrague o clima...

Homem – Que clima? Ah, o clima. Claro... Mulher – Por onde tem andado meu marujo?

Saudades de você... Homem – Eu também. Olha só, não telefone

mais pra mim (Aumenta o clima de excita-ção enquanto fala isso), minha mulher está desconfiada...

Mulher – Fala mais, fala mais. Quanto mais você fala que seremos descobertos, mais quero ser...

Homem – Por isso que falo, vem cá, minha “Loura”.

Mulher – Você é deliciosamente perverso...

(Música. Blackout.)

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Cena 3

Acende foco nos dois. A Mulher com o quepe e a camisa do “marinheiro”.

Mulher – É tão difícil deixar você aqui e ter que encontrar o pentelho do meu marido. Acho que vou me separar dele.

Homem – Não faça isso, minha gata. Tá bom assim. Gosto do jeito que está. Fica mais emocionante. Não separa dele não.

Mulher – Você só me quer para suas fantasias. Não aguento mais. Fala que me ama...

Homem (com tom dúbio) – Amo, claro que amo. Principalmente quando está com esse vestido...

Mulher – Você é um canalha adorável. Quero um filho seu.

Homem – Por que as mulheres sempre querem mostrar o tamanho do seu amor querendo enfiar um filho goela abaixo?

Mulher – E por que os homens querem mos-trar o quanto amam só pela qualidade da trepada?

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Homem (impaciente) – Não dá. Assim não dá. Se for pra discutir a relação, fico em casa com minha mulher.

Mulher (com dengo) – Tem razão. Homem – Quanto tempo temos?Mulher – Nenhum. Preciso ir.Homem – Já? Você faz isso para que sempre

tenha uma próxima vez.Mulher – Isso mesmo. Muito tempo vira ro-

tina...Homem – Qual vai ser seu personagem da

próxima vez?Mulher – Surpresa!Homem – Eta, adoro surpresa.Mulher – Adorei esse hotel. Reserve a suíte

da próxima vez.

Beija o Homem e saí.

Homem (radiante, vestindo-se) – Adoro surpre-sa. A Mulher é cara, mas vale a pena! Vale cada centavo. Vale cada escapada. Vale cada trepada. Isso que é vida. Sem remorso, sem promessas, sem “aporrinhação”. (Pensando)

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Bom, é melhor eu ir embora direto pra casa. Quem sabe chego antes de todo mundo. Assim faço uma surpresa e fico com a maior moral...

(Blackout. Música.)

Cena 4

Mulher (ao telefone) – Não é possível que é só eu sair de casa que tudo acontece. Mãe, chama o zelador é peça para ele tomar uma providência... .Estou ocupada.

Toque de campainha.

Homem (decepcionado) – Ué? Veio do que hoje? Dona de casa?

Mulher – Não deu tempo de me produzir. Foi uma correria de manhã. Depois do al-moço fui levar o carro do meu marido pra revisão...

Homem – ... folgado ele, não?

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Mulher (olhando pro Homem) – ... um puta de um folgado.

Homem (debochado) – Deixa o folgadinho pra lá que eu relaxo você.

Mulher – Agora minha mãe ligou e disse que estourou um cano de água no meu aparta-mento.

Homem – Cano de água? Caralho! Que bosta. Que bosta.

Mulher – E aí? O que seremos hoje?Homem – Hoje sou o massagista eunuco.Mulher – Muito excitante.Homem – Então sou o padre.Mulher – Padre não. Já sei: Você é o mecâni-

co que vai fazer a revisão do carro do meu marido...

Homem – Broxante isso. Deixe eu ver: Hum... você é uma executiva capitalista insuportá-vel e eu sou um líder do Terceiro Setor.

Mulher – Que “qui” tem a ver isso?Homem – Sei lá. Dois tipos improváveis que

se encontram num elevador que para no trigésimo quinto andar de um prédio de judeus pró mundo árabe.

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Mulher – Você bebeu?Homem – Não, claro que não. Só quero algo

bem diferente. Bem, assim, excitante. Tô louco hoje.

Mulher – Que tal eu ser uma Argentina com a camiseta do Boca Juniors perdida no parque São Jorge. E você aparece para me salvar? “Que rico, que saboroso.”

Homem – Mui bien, Chica. Vem cá con su papa.

Mulher – Não, não isso é chato. Um corintia-no herói é chato... estou sem ideia hoje.

Homem – Ah, não. Sem rotina. Quero você bem vadia pra mim. Isso. Hoje você é ape-nas minha vadia.

Toca o celular.

Homem – Alô? Oi, minha Princesa. Que vozi-nha é essa? (Tempo). Não, a mamãe não está aqui. Por quê? Ah, tadinha da Princesa.

Mulher (irrequieta) – O que foi?Homem – O papai já vai pra casa... Sei, sei...

passa o telefone pra sua avó (Tempo). Está

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bem, assim que terminar a reunião vou pra casa. Dê um remédio para abaixar a febre. Passe o telefone pra ela...

Mulher (interrompendo) – Febre?Homem (falando pra Mulher) – É, mas está

tudo bem.Mulher – Tem certeza?

Homem faz sinal com a cabeça.

Homem – Alô? Oi, Princesa... Papai já está indo. Vou comprar um livro de colorir pra você... beijo... eu também te amo. Desliga.

Homem – E agora pra recuperar o clima? Mulher – Que clima? Que clima?

Toca o celular da Mulher.

Mulher – Oi, meu amorzinho... a mamãe já vai pra casa, viu?

Homem – Já? Mulher (com ar de reprovação) – Prometo.

Mamãe vai chegar antes do céu ficar pinta-dinho de bolinhas. Desliga.

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Homem (abraça a Mulher) – Vamos brincar só mais uma “veizinha”...

Toca telefone do Homem.

Homem – Oi, Princesa. (Olhando pra Mulher). A mamãe está aqui, veio buscar o papai no “trabalho”. Já estamos indo pra casa.

Mulher pega o celular.

Mulher – Já estamos indo. Estamos só termi-nando uma reunião. (Tempo). É, daquelas que a mamãe adora. Avisa a vovó que vamos jantar em casa... eu também. (Olhando para o Homem) Vamos, meu amor. Pro-meti pra nossa filha que chegarei antes de anoitecer. E temos que ver o lance do cano estourado.

Homem – Ai, vai ficar uma fortuna arrumar essa porra.

Mulher – Sempre reclamando de tudo... Homem – Será que não dá para “antes” fazer

um “papai e mamãe”?

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Mulher (sorrindo) – Não, não dá seu bobo. Va-mos logo, colocamos as crianças pra dormir e fazemos “papai e mamãe” em casa.

Homem – Eu vou ser a mamãe! (Blackout)

Fim

Alternativa, de Célia Forte, foi dirigido por Elias An-dreato e interpretado por Adriane Galisteu e Lázaro Ramos no dia 13 de outubro, à 1h00.

* * *

Célia Forte, nascida em São Paulo em 1961, formada em Jornalismo e Relações Públicas, atua desde 1985, quando fundou a Morente Forte Comunicações, como assessora de imprensa e produtora exclusi-vamente na área teatral, tendo trabalhado com os nomes mais expressivos do cenário artístico nacional. Em 2004 escreve seu primeiro texto teatral, supervi-sionado por Paulo Autran. Possui seis textos em seu currículo. Em 2010, seu primeiro texto, Amigas, Pero no Mucho estreia em Madrid e Buenos Aires.

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Efeito FantasmaRoberto Alvim

Personagens Homem – 40 anos, usando um traje velho e

amarfanhado, mistura de rockabilly e cowboy decadente.

Mulher – 20 anos, prostituta, loira.A voz gravada de uma outra mulher.A voz de um outro homem, fora de cena  Cenário: Um quarto de hotel barato. Cama, uma mesinha ao lado. Um toca-fitas sobre a mesinha, algumas fitas cassete, um maço de cigarros, um isqueiro. No meio do quarto, pen-dendo do teto, uma luminária preta.  

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(A mulher está próxima da parede no fundo. O homem, de pé em cima da cama, está seguran-do a luminária que pende do teto e apontando-a pra ela, de modo que toda luz está incidindo sobre a moça. O homem está de costas para a plateia. A mulher acende um cigarro e dá uma tragada. Em seguida, olha na direção do ho-mem. A luz a incomoda..) 

Mulher – Como é que é, cara? Vamos trepar? Ou vai ficar com essa luz na minha cara?

(Silêncio. O homem permanece imóvel.) 

M – Que saco... 

(Silêncio. Ela dá mais uma tragada.) 

M – Por mim tudo bem, o taxímetro da minha buceta tá ligado. É que eu acho esquisito, homem geralmente gosta de fuder, homem gosta de meter. (Tempo. Ela ri.) Só se você... (Ri. Fuma de novo. Fica séria, incomodada com a luz.) Dá pra tirar essa luz do meu

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olho? Tá me incomodando, essa luz, dá pra tirar... (Tempo.) Não escutou, idiota? Ou será que tá querendo me sacanear? É essa a tua onda?! (Traga o cigarro. Tempo. Com raiva.) Tô falando contigo, babaca, tá querendo me sacanear? 

(Um tiro a atinge na testa. A mulher põe sangue pela boca, enquanto seu corpo escorrega pela parede. Ela cai sentada no chão, morta. Tem-po. O homem larga a luminária, que balança iluminando o quarto. Ele tem um revólver em sua mão. Quando a lâmpada para de se mover, o homem desce da cama, caminha até a mesi-nha, deposita ali o revólver e liga o toca-fitas.) 

Homem – (Falando na direção do corpo da mulher morta.) Laura? 

(Começa-se a ouvir uma voz de mulher vinda do toca-fitas.)

Voz de mulher – Sim.

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H – Repete. Eu quero ouvir mais uma vez. Repete...

V – Sabe muito bem, querido: você é o homem da minha vida. E aconteça o que acontecer, eu sempre, sempre vou te amar...

(O homem desliga o toca-fitas.)

H – Você também...

(O homem caminha até o corpo. Para ao seu lado.) 

H – Você também é tudo o que eu quero... 

(Ele ergue o corpo pelos braços e leva-o pra cama, onde o coloca deitado. Arfa um pouco, por causa do esforço, e em seguida observa a mulher.) 

H – O que que há com você, Laura? Tá com cara de quem esqueceu alguma coisa... 

(Batidas na porta. Tempo.) 

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Voz de homem vinda de fora do quarto – Algum problema aí?

H – (Falando na direção da porta.) Tudo bem.Voz de homem – O barulho...H – Tá tudo bem...Voz de homem – Se ouvir mais barulho vou ter

que chamar a polícia. 

(Tempo. Ouvem-se passos se afastando. Silên-cio. Então o homem, que olhava na direção da porta, se vira para a mulher.)

H – Seu cigarro, Laura, você deixou seu cigarro caído lá atrás... (Tempo. O homem sorri.) Não importa o quanto eu me preocupe, o quanto eu cuide de você, não importa quan-to tempo eu espere: sempre acaba esque-cendo alguma coisa, não é, amor? Sempre acaba esquecendo... 

(O homem passa os dedos pelo cabelo da morta, sorrindo. Em seguida, liga o toca-fitas, se afasta da cama e começa a se despir.) 

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Voz de mulher – Mesmo depois de tanto tem-po, ver você se despindo ainda me... toca.

H – Ainda acha que eu sou atraente?V – Morreria por você.H – Fala sério?V – Cada segundo, cada momento sem tua

pele, sem teu cheiro... Vazia, é assim que eu me sinto, vazia sem você, perdida. Uma menina perdida, é assim que eu me sinto, uma criança que se afoga, me afogando e esperando a tua mão, os teus braços, espe-rando você. É por você, não percebe? Só por você... Vem, meu amor. Vem me salvar. Agora. Me salva. 

(Ele já está sem roupa. Aproxima-se da cama. Tempo.) 

V – Tua voz. Me deixa ouvir tua voz...H – (Olhando para o corpo, emocionado, lenta-

mente.) Eu acho... Eu sinto que realmente te amo.

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(Um trovão lá fora. A luz da lâmpada do quar-to oscila, barulho de curto. Começa a chover. O homem olha para a lâmpada por um tem-po, depois se dirige ao corpo e tira a calça da mulher. Desliga o toca-fitas, tira a fita, coloca outra, liga.) 

V – (Sôfrega.) Depressa! Agora! Não posso mais, não posso mais esperar...

H – (Começando a se masturbar.) Quem é você?

V – Sua garotinha. Sua garotinha má, é isso que eu sou...

H – Minha garotinha?...V – Sua garotinha malvada.H – Malvada.V – Má, uma garotinha má, sua garotinha.H – (Subindo na cama e virando o corpo de

bruços.) Você merece um castigo.V – Sim, sim...H – (Dando-lhe palmadas na bunda.) Laura...V – Sim, na bunda. Na minha bunda, amor.H – (Dando-lhe palmadas e se masturbando.)

Eu te amo, Laura.

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V – Na minha bunda, amor, assim...H – Eu te amo.V – Na bunda da sua garotinha.H – Laura... 

(A voz geme no gravador, cada vez mais alto e voluptuosamente, enquanto o homem tenta se masturbar. Mas seu pênis está flácido.) 

H – (Depois de um tempo, desistindo de se masturbar e afastando-se da cama, pena-lizado.) Eu não consigo. Eu não consigo, amor... Meu amor... Eu não consigo... Não consigo... 

(A voz continua a gemer no toca-fitas. Tempo; o homem chora. Então corre até a mesinha e desliga o aparelho. Tempo. Ele pega um cigarro do maço que estava na mesinha, acende com o isqueiro. Trovão lá fora; a luz da luminária oscila, o homem olha para a lâmpada, som de curto; a chuva continua a cair. O homem, com o cigarro na boca, desvira o corpo da mulher,

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coloca outra fita no toca-fitas, liga e se senta na beira da cama.) 

V – Quer conversar, querido?H – Me desculpa, Laura, me perdoa...V – (Carinhosa, compreensiva.) Tudo bem, isso

não é importante.H – Eu preciso, me escuta, eu preciso te dizer

que...V – Calma, querido, é minha culpa, minha,

minha culpa, está tudo bem, isso não é importante, isso não é...

H – Cala a boca! Cala a porra da boca e me escuta, vê se me escuta pelo menos uma vez! As coisas estão tão confusas, as coisas es-tão... Tão difíceis. Minha cabeça, sabe? Na minha cabeça, Laura... As coisas estão... 

(Pausa.) 

V – Quando existe amor... E é assim entre nós dois...

H – Minha cabeça...

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V – Entre nós dois, escuta: nós dois, querido... Quando existe amor, um casal pode supe-rar qualquer problema, qualquer um. Se ficarmos juntos, nós dois... Quando existe amor.

H – Vidro... Você é como um pedaço de vidro... Tem gosto de vidro, vidro me cortando por dentro...

V – Quando existe amor... 

(Tempo. Ele fuma. Então deixa o resto do cigar-ro cair no chão. Se levanta, vai até a mesinha, troca a fita, liga o aparelho.) 

Homem – Laura?Voz de mulher – Sim.H – Repete. Eu quero ouvir mais uma vez.

Repete...V – Sabe muito bem, querido: você é o homem

da minha vida. E aconteça o que acontecer, eu sempre, sempre vou te amar... sempre vou te amar... sempre vou te amar... sempre vou te amar... sempre vou... 

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(O toca-fitas começa a repetir a última frase sem parar, como se a fita estivesse presa. O ho-mem vira-se para o aparelho. E então, subita-mente, desliga-o violentamente, com um soco. No instante seguinte ouve-se um trovão; som de curto, a luz oscila, o homem olha para a lâm-pada, a luz termina por se apagar. Escuridão total. Tempo.) 

H – (Gritando no escuro.) Laura? Laura?! 

(O homem acende o isqueiro. Lentamente, aproxima-o do rosto sangrento da mulher mor-ta. Ela abre os olhos e fala, lentamente.) 

M – Por que não me deixa em paz? Por que não me deixa dormir? 

(Tempo, a chuva caindo. E então o homem apaga o isqueiro. Escuridão. Tempo.) 

H – Boa-noite, amor. 

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(Tempo. A luz da lâmpada se acende por dois ou três segundos – ou então é um relâmpago que clareia momentaneamente o quarto.): vê-se o homem com o cano da arma em sua própria boca, de pé, ao lado da cama onde está o cadá-ver da mulher. Na sequência, escuridão absolu-ta. A chuva continua a cair.)

Fim

Efeito Fantasma, de Roberto Alvim, foi dirigido por Haroldo Costa Ferrari e interpretado por Nathalia Rodrigues e Haroldo Costa Ferrari no dia 13 de outubro, às 3h00oras.

* * *

Roberto Alvim é dramaturgo, diretor e professor de Artes Cênicas. Escreveu 17 peças até o momento, encenadas no Rio de Janeiro, São Paulo, Curitiba, Paris (França), Córdoba (Argentina) e Laussanne (Suíça). Lecionou Dramaturgia e História do Teatro em instituições como a Universidade de Córdoba, a elt – Escola Livre de Teatro (sp) e a cal – Casa das

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Artes de Laranjeiras (rj). Atualmente é o coordena-dor do Núcleo de Dramaturgia do Sesi de Curitiba. Reside em São Paulo, onde dirige a companhia Club Noir, dedicada a encenar obras de dramaturgos contemporâneos.

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AliceJosé Simões

Alice sentada no chão de vestido branco. Olhos vendados. Na frente do vestido algumas marcas de vermelho. Ao lado duas pernas mecânicas e uma muleta. Com vários sapatos ao seu redor.

Alice – (sussurrando) Pai.Alice – “Comece pelo começo, siga até chegar

ao fim e então, pare”Alice – “Continuava caindo, caindo, cain-

do. Será que a queda não ia chegar ao fim nunca?”

Alice – “essa vida por aqui pode ser bem diver-tida, de tão estranha que é!”

Alice – Pai?! Por que parou? Posso abrir os olhos?

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Alice – “Receio que não possa me explicar, Dona Lagarta, porque é justamente aí que está o problema. Posso explicar uma porção de coisas, mas não posso explicar a mim mesma”

Alice – Posso abrir os olhos? Amanheceu?(Pausa)Alice – Amanheceu?(Pausa)Alice – (sussurrando) Amanhã você volta?(Pausa)

Alice retira lentamente a venda e encara a pla-teia como se sempre soubesse que ela estava lá.

Alice – Nada mais revelador que um sapato. (pausa) É constrangedor ver alguns sapatos que andam por aí. (pausa) Antes do aciden-te eu não reparava nos meus sapatos. Só nos sapatos dos outros (ri). Eu tinha uns quator-ze anos...treze...doze... não sei ao certo. De-pois de uma certa idade todas as coisas que acontecem na nossa adolescência parecem ocorrer aos 14 anos. Minha família não era

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pobre nem rica. Mas gostava de falar que era pobre. Sempre quando a família se reunia era, de um lado, uma lamentação sem-fim do que não se tinha, do custo disso e do custo daquilo. Porém, nunca repetíamos a mesma roupa numa festa. Os presentes de Natal, apesar de regateados e sob a ameaça de não aparecerem se não nos comportás-semos, sempre estavam lá. (ri) Papai-Noel. (pausa) Minha mãe fazia questão de... nas festas de família... nunca repetir a mesma roupa. Com certeza a minha família não era rica. Era média. (pausa) Insuportavelmente média (pausa) Ninguém nunca entendeu meu pai. Nem minha mãe, nem minha irmã. Nem ninguém. No fundo ele me amava muito. Queria me proteger. (pausa) Minha mãe e a minha irmã nunca enten-deram isso. Nem ninguém da família. Não é que ele não quisesse a vida. Ele desejava ser independente, livre. Ele amava a vida. Um dia ele me olhou...

Alice – “É cruel. A vida é cruel. Dolorida”Alice – Não há saída?

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Alice – Mas, Pai...Alice – Não se fala mais no assunto.(Pausa)Alice – Ele tinha uma consciência real da

crueldade. (pausa) Sabia que de tempos em tempos aparecem por aí casos de pais que matam seus próprios filhos e depois se matam. Por amor.

(Pausa)Alice – Não há tamanho na crueldade. Eu me

lembro de uma festa de Natal... Uma irmã do meu pai usava um irritante perfume, que fazia mal a mim e a meu pai. Foi nesse dia, quando eu tinha quartorze anos, que percebi que meu pai odiava tanto quanto eu aqueles perfumes. Todos os perfumes que abusados teimavam em invadir o nosso nariz. Não há nada mais violento do que um perfume que ultrapassa o nariz do próprio perfumado. Naquele dia, eu apenas olhei para ele e vi o terror em seus olhos, a dor que a proximidade da minha tia e o seu per-fume lhe causavam. Do outro lado, meu tio, cunhado do meu pai, falava pausadamente,

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sobre a importância daquelas festas de fa-mília e invariavelmente começava a contar histórias já contadas. Um tipo de arauto da memória... responsável por não deixar que você se esqueça um minuto sequer de que o tempo passa.

(Pausa)Alice – O tempo. Existe algo mais cruel do que

o tempo que passa. E a nossa impossibilida-de de estancar esse movimento?? Meu pai sempre falava que o cinema jamais poderia ser arte pela sua imobilidade temporal. Não há nada mais cruel do que ver o mesmo filme anos depois e perceber que ele não mudou, só você.

(Pausa)Alice – eu não peço esmolas. Peço sapatos.

Usados. Não tenho preferência por sapatos novos, são limpos demais. Mas não aceito qualquer um. Odeio tênis e chinelas, prin-cipalmente aquelas que agora são da moda. Odeio plástico. Valorizo, principalmente, os sapatos de couro, eles têm vida. Feitos à mão, costurados, com aquela irregularidade im-

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perceptível. (apontando para alguém) Veja aquele pé que veste um tênis. Não sabe cal-çar sapatos. Seu pé nunca vestiria um sapato. Você ficaria desconfortável. Você não me-rece um sapato. Não sabe aproveitar a vida (apontando para outro pé). Na verdade não me importam os pés. (apontando para outro sapato) Tão mal cuidado. (outro sapato) esse é disfarçadamente malcuidado... com uma parte do salto esfolado...sujo. (colocando a venda) Eu não teria coragem de ver o seu rosto. Os sapatos são a alma das pessoas.

Alice – Pai, eu fico sentada aqui na beira da cama?

Alice – Passe a mão mais uma vez nos meus cabelos. Eu não quero crescer.

Alice – Não. Não vou beber nada. Eu não que-ro dormir. Quero estar de olhos abertos.

Alice – Eu não quero mais sentir dor.Alice – Não tem fim. Será que ninguém per-

cebe que não tem fim? Isso pode ter um fim? Por que pai? Porque ninguém repara nos perfumes nojentos, mas sempre falam dos meus pés?

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Alice – Eu gosto dos meus sapatos e não dos pés.

Alice – Pai por que você não muda de sapa-to?

Alice – Aiiiiiiiiiiiiiiiiii.Alice – Aiii. Não pare. Corte.Corte.Corte.

(grita)Alice – Me olha nos olhos!Alice – Não desapareça.(Pausa)Alice – o acidente foi que eu sobrevivi. Um

lazarento chegou e salvou. Meu pai não. (pausa) Ninguém tinha o direito de olhar as minhas pernas... secar o meu sangue... nem mesmo chorar ou gritar. De quem é a dor afinal? Eu todo o dia furo novamente a per-na para que ela nunca cicatrize totalmente. Vaze. É a minha dor. Cadê a lagarta? O coelho? Olha. (mostra o vestido) Parece que nem sangue mais eu tenho depois de tan-to tempo. Antes, se formava uma poça de sangue ao redor do vestido. Agora só uma manchinha de nada.

(Pausa)

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Alice – Me dá o seu sapato? Me dá! Se você me der os seus sapatos eu deixo você ver as minhas pernas... a cicatriz. Eu mostro. Me dá o seu sapato? Eu posso contar cada detalhe do serrote cortando a minha perna. Se você quiser posso descrever os olhos do meu pai e até o que ele pensava na hora... a cada movimento da sua mão no vai e vem. Mesmo quando uma das minhas pernas caiu no chão, separada de mim. Eu vi os seus olhos. Me dá o seu sapato. Você não vai se arrepender...Me dá!

(Pausa)Alice – eu tenho fotos. Eu tenho fotos. (pega

algumas fotografias) Algumas minhas e ou-tras de algumas amigas decepadas. Me dá o seu sapato... você não quer experimentar da minha dor. Eu posso erguer só um pedaci-nho do vestido para você olhar...

Alice – Vai ou não dar o sapato?(Pausa)Alice – Escuta. (procura) Pai?Alice – (coloca a venda) Pai. Ainda não anoi-

teceu... ainda tem muita gente por aqui. Eu

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não quero que ninguém te veja. Só eu. Só eu posso ver os seus olhos. Por que somente eu te amo. Eles vão embora daqui a pouco. (pausa) Todos os dias eu vejo pessoas infe-lizes, que perderam toda a esperança. Elas merecem o meu respeito. Perdoe-me pai. Eu vivi. Todos os dias eu desejo que a dor possa suprimir a minha vontade de estar viva, que me dê conhecimento e se trans-forme em um calmante, para que eu possa me libertar. Mas o que seria de mim sem os meus sapatos?? É noite, todos vão embora. Você virá para me levar? Amanhã me trará ao mesmo lugar? Mesmo de olhos vendados eu enxergo o seu olhar, pai. Será que eu vou encontrar a minha alma, pai?

Alice – Me conta outra história.(Pausa)Alice – Talvez um dia eu possa escrever um

conto de fadas.

Fim

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Alice, de José Simões, foi dirigido por Rui Xavier e interpretado por Hevelin Gonçalves no dia 13 de outubro, às 12h00oras.

* * *

José Simões, encenador e pesquisador teatral. Úl-timos espetáculos O Banquete, Fausto, Cândido, Quando comi o Cão e Alma dos Objetos. Pós-doutor em Sociologia da Cultura (uc), Doutor em Teatro (usp), Mestre em Comunicação e Semiótica (puc-sp). Pesquisador associado do Centro e de Estudos Sociais (ces) da Universidade de Coimbra, membro associado do gt Pedagogia do Teatro da Associação Brasileira de Pós-Graduação e Pesquisa em Artes Cênicas (Abrace), Professor da Universidade de So-rocaba, Coordenador do gt Espaço Teatral (cnpq), tradutor e autor de artigos relacionados com a Peda-gogia do Teatro, o espaço e a teoria teatral.

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Medo dos VivosAndréa Bassitt

Personagens

EuPrimaMoço

Cenário: Cadeiras e mesa com uma morta. 

Eu – Lembro do dia em que tia Laura morreu. Ela era muito velhinha e foi velada em casa. Na casa dela, eu quero dizer; graças a Deus! Minha mãe fez questão de levar todos os filhos ao velório. A casa da tia Laura era grande, tava cheia de gente falando baixi-nho, uns rindo e alguns, poucos, choravam. Eu nunca tinha visto um morto. Da porta

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notei, no meio da sala: o caixão. Comecei a resistir o passo, mas minha mãe me puxou e, praticamente, me arrastou até bem pertinho daquela enorme caixa marrom. Eu ainda era pequena e não conseguia ver toda a parte de cima, enxergava só o perfil da tia morta, mas era o suficiente pra perceber a pele grossa meio cinza esverdeada. Aí, algu-ma outra tia minha, viva, me pegou no colo e disse “Beija a titia, beija”. Eu nem tive tempo de responder, me seguraram usando todo o poder que adultos têm sobre as crian-ças e me levantaram até eu alcançar o rosto da tia. As mãos dela estavam cruzadas um pouco abaixo do peito, e no nariz um tufo de algodão em cada buraco. Colocaram um tule branco sobre o corpo que da cintura para baixo estava coberto com flores; me lembro bem do cheiro. Fiquei com muito medo, mas tive que beijar. E beijei. Lembro da sensação dos meus lábios encostando naquele rosto frio e duro. Eu achava que ela ia se levantar e me pegar. “Há-há! Te peguei!” Esse foi meu primeiro contato com

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a morte, e aprendi a temê-la. Passei muito tempo lembrando disso diariamente, talvez fosse mais correto dizer, noturnamente. Eu tive pesadelos terríveis com aquele velório. Hoje, misturo um pouco as imagens que criei na minha imaginação de criança e os pesadelos. Mas esse é pesadelo mesmo...

Uma mulher entra na sala. Ela anda devagar, é pesada, sua muito e tem uma das mãos virada pra dentro, do mesmo lado, arrasta a perna e a cabeça solta pro lado oposto, pen-de pra fora como se fosse cair. Ela é ampa-rada por uma senhora baixinha, magra, mas forte. Então, essa mulher, a gorda, caminha na minha direção. Eu fico hipnotizada pela visão dantesca e me encolho na cadeira. Ela vem chegando mais perto e a cada passo ela parece maior, cresce, cresce, cresce, cresce até que me afoga como se sentasse em cima de mim! Ela senta em cima de mim! Eu sinto o cheiro daquele suor azedo e começo a sentir dores no estômago. Geralmente, acordo nesta parte, querendo gritar mas sem conseguir.

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Contei isso pra uma amiga que gosta de decifrar sonhos e ela me disse que a criança sou eu mesma, presa às imagens do passado que na vida real não quero matar. A morta é justa-mente a imagem que eu tenho que matar. E a gorda é a imagem que eu tenho que aceitar depois de ter chegado a uma certa idade. Não gostei da interpretação...

Hoje em dia não sonho mais com os mortos. Mas também evito velórios. Não fui ao ve-lório do meu pai, por exemplo. Não queria vê-lo transformado boneco de cera como a tia Laura. Queria me lembrar dele rindo, brincando comigo, cantando. Eu tinha 13 anos quando ele morreu. Não fui ao enterro e não me arrependo.

Ouvi falar que tem gente que precisa ver o defunto, faz parte do ritual de despedida. A pessoa não pode simplesmente desaparecer da sua vida, quando você vê o corpo mor-to a aceitação é mais natural. É o famoso “ver pra crer”. Apesar de evitar enterros, alguns são inevitáveis. Depois de muitos anos sem ir a velórios, tive que ir; confesso

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que até com certo prazer, fui ao velório da minha avó. Por favor, não me levem a mal, o prazer não era de ver a avó morta, não; era de poder ver a morte sem temê-la tanto. Adulta, eu não tinha a distorção das fantasias infantis. E também, minha avó estava muito velhinha, doente, e eu sabia que aquele dia ia chegar. E no mesmo dia chegaram também os parentes. Os primos, os tios, as tias, as tias... muitas tias! Mas a pérola veio de uma prima que insistia em querer tirar uma foto da avó pra mandar pras irmãs que moravam do outro lado do País e não puderam vir.

Prima – Marta, eu preciso tirar uma foto da vó.Eu – O quê?!Prima – Minhas irmãs não vão conseguir che-

gar e eu quero que elas vejam a vó! (Pausa) Teu celular tem câmera?

Eu – Ah, não...Prima – O que que é? Você não vai fazer isso

comigo! Eu quero a foto e você vai fazer esse favor pra mim. Olha, a gente chega perto do caixão, você faz de conta que teu

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celular tocou, atende, depois finge que tá anotando um número e bate a foto. Eu fico perto e quando fizer click, eu tusso, espirro, choro, sei lá.

Eu – Não, minha mãe tá lá, sofrendo, a tua também, e a gente tirando foto da vó? (Para o público) E ela tanto fez, que eu tirei a foto. Ficou boa, viu? Aí, eu fechei o celular e fiquei na minha. Quando foi lá pelas tan-tas, eu vejo minha tia, filha da minha avó, agitada, cochichando com minha mãe e meus primos. Chego perto e ela fala: “O tio Pedro quer uma foto da mamãe”. O tio Pedro era um dos filhos da vó e ele estava em outro país, não ia conseguir chegar a tempo pro enterro e queria ver pra crer. No meio do alvoroço eu digo baixinho pra tia: “Eu tirei uma foto da vovó”. Peguei o celular e mostrei. “Não ficou boa?” A tia: “Então manda pro titio”. Eu mandei pro primo, que mandou pro tio, que mandou pra outro primo. A foto tá até hoje no meu celular. Tenho um pouco de receio de apa-gar. Nunca se sabe, né?

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Mas o mérito da boa foto foi da maquiagem! Outras primas e uma irmã minha tinham pedido na funerária pra fazer a maquiagem da vovó, ela ficou bonita. Não parecia uma boneca de cera. Pelo contrário, às vezes tinha ares de viva. Houve um momento em que tive a sensação de que ela ia se levantar e dizer: “Há-há! Te peguei!” exa-tamente como aconteceu quando vi a tia Laura. Esse “milagre” de dar um tom de vivo aos mortos é graças à maquiagem. Que ideia! Eu mesma quero ser maquiada quando morrer. Claro que não muito, pra não virar piada. Por isso, tem que deixar alguém que você conheça e confie, avisado pra acompanhar o processo. No caso da minha avó, não houve esse rigor, mas ficou bom mesmo assim. Só o batom que estava estranho. Era muito brilhante e rosa, pare-cia batom de pré-adolescente, com gliter. Então, eu dei um retoque. Era madrugada e não tinha ninguém, só eu e minha irmã. Pedi pra chamarem o cara da funerária pra retocar o batom; eu não queria mexer sem

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autorização, vai que dá uma zica e aconte-ce alguma coisa: a boca abre e não fecha, ou pula pra fora um daqueles tufos que eles enfiam... Não quis arriscar mexer sem ter alguém perto. E, depois, tive um pouqui-nho de medo porque quando eu disse que queria arrumar o batom, minha irmã disse que não queria ver e saiu, eu fiquei sozi-nha no salão, cara a cara com minha avó defunta. (Pausa. Ela demonstra) Imaginem se eu ponho a mão e ela... Já sabem, né? “Há, há! Te peguei!”. Entenderam? Veio um mocinho.

Moço – Foi a sra. que chamou?Eu – Foi. Tudo bem? É que eu queria tirar

esse batom. Você tem outro um pouco mais vermelho e sem brilho?

Moço – Não, eles fazem a maquiagem na funerária. Eu só fico aqui pra cuidar do velório mesmo.

Eu – Sei. Mas você é da funerária?Moço – Eu sou da seguradora.Eu – De onde?Moço – Da assistência funerária, é uma segura-

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dora que cobre os gastos com funeral. Inclui o caixão, o terreno...

Eu – O terreno é a cova?Moço – É, sim, senhora.Eu (incomodada) – Por favor, não precisa me

chamar de senhora. Moço – Desculpe.Eu – E a maquiagem está inclusa no plano?Moço – Está, sim, se... Está, sim. Mas é feita

na funerária.Eu – Eu entendi. E eu posso mexer nela?Moço – Pode. Olhe só. (Mostra) Ela está mo-

linha.Eu – Mas os lábios estão soltos ou foram co-

lados?Moço – Não, tá solto.Eu – Você sabe se quebraram alguma coisa

dela? Assim, mão, maxilar, essas coisas que fazem com o corpo se estiver duro.

Moço – Não, não. (Mostra) Olha aqui. Pode mexer à vontade. (Ele puxa o véu e deixa o rosto da avó descoberto. A neta toca seus lábios devagar e sente o contato com o corpo frio, mas age normalmente)

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Eu – Então, vou pegar meu batom. Você pode me arrumar um cotonete?

Moço – Eu não tenho nada aqui.Eu – Eu sei, eu sei. Vou usar este lenço de

papel. (Para o público)

(Ela pega o batom da bolsa, o lenço de papel e se debruça sobre a avó, limpando com cuidado o excesso do batom brilhante e passa seu ba-tom nos lábios dela. Faz isso em silêncio por um tempo. Observando os retoques que faz. Depois começa a conversar com o moço sem perder o foco na maquiagem)

Eu – Engraçado, minha avó sempre me man-dava passar batom e eu nunca tinha um na bolsa. Ela vivia reclamando disso. E jus-tamente eu tenho batom na bolsa agora... Você também arruma os mortos?

Moço – Arrumo, mas não faço a maquiagem. Carrego, coloco no caixão, ponho as flores...

Eu – Já aconteceu alguma coisa estranha com você? O morto se mexeu, fez algum baru-lho...

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Moço – Nunca aconteceu nada.Eu – Nada, nada?Moço – Nada. Nem sonhar eu sonho com

essas coisas.Eu – Nem sonha?Moço – Não.Eu – Que beleza. Isso é dom, sabia?

(Ele acha graça e se afasta um pouco)

Eu (Assustada) – Onde você vai? Não me deixa aqui sozinha!

Moço – Eu vou só afastar a coroa.Eu – Hã?Moço – De flores!Eu – Ah, bom. (Se referindo à maquiagem)

Pronto. Acho melhor eu não mexer mais. O que você acha?

Moço – Tá bom.

(Ela guarda o batom e ele cobre a avó com o véu)

Eu – Você fica sozinho com o... com a pessoa?

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Moço – Fico.Eu – Não tem medo?Moço – Não. Medo eu tenho dos vivos.Eu – Engraçado, uma vez um coveiro me disse

a mesma coisa. “Medo eu tenho dos vivos.”

(Moço sai. Ela se dirige ao público)

Eu – Eu queria temer só os vivos, mas ainda não confio cem por cento nos mortos. Ah, não. O túmulo onde minha avó foi enterrada tem seis gavetas. Antes dela morrer, minha tia, nora dela, disse que queria ser enterrada com ela. Nunca vi a nora ser enterrada na mesma cova da sogra. Nunca! E elas não morriam de amores uma pela outra, não. Pelo menos que eu saiba. Acontece que minha tia queria economizar e já garantir a morada póstuma pra que sua família tivesse onde cair morta. Quando o caixão desceu no buraco, ela, a tia, gritou: “Daqui a pouco nós tamo aí pra fazer companhia pra senho-ra”. Foi um clima...

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Mas aquele dia fúnebre não me deixou ne-nhum efeito colateral. Não fiquei impres-sionada por ter tocado a pele rígida de mi-nha avó. Nunca sonhei com o velório ou com o caixão no meio da sala, nem com a mulher gorda. Talvez porque sua mor-te fosse real demais pra se transformar em sonho. A morte de minha avó era a morte de muitas outras coisas que passaram, e eu mesma morria um pouco. Devagar, fui es-quecendo o susto que tomei quando vi a tia Laura cinza-esverdeada, foi sumindo o véu do rosto com buracos cheios de algodão, foi amolecendo a pele fria. O morto não era um fantasma, mas um ex-vivo. A morte estava morta. Fui perdendo o medo deles. Nem sonhar sonhei mais. Me lembrei do moço da seguradora que disse que nunca um morto tinha se manifestado. Nunca. Nem em sonho.

E sabem o batom que usei pra retocar a ma-quiagem da vó? Sumiu. Procurei, procurei durante dias, nas bolsas, nos bolsos, no ba-nheiro, na cozinha, embaixo do sofá... De-

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sapareceu; sem mais nem menos. Confesso que me passou, rapidamente, pela cabeça... que minha avó podia ter gostado da cor e vindo buscar o batom. Mas logo cortei as asas dessa imaginação e pensei: “Deixa pra lá. Tá por aqui, uma hora aparece”.

E desta vez, me lembrei do coveiro que tam-bém disse: “Medo eu tenho é dos vivos”. Eu ainda não cheguei a esse grau de despren-dimento, mas, hoje, tenho muito menos medo dos mortos, e muito mais dos vivos. Claro que ainda não penso em ficar a sós com um defunto, como já disse, não confio cem por cento neles, apesar de me sentir bem mais à vontade diante da morte.

(Vai sair e volta)Ah, o batom apareceu. Estava caído no vão

do banco de trás do carro. Achei outro dia, quando levei o carro pra lavar. Tinha certe-za que minha avó não ia fazer isso comigo.

Fim

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Medo dos Vivos, de Andréa Bassitt, foi dirigido por Renato Andrade e interpretado por Andréa Bassitt, Márcio Cardoso, Gabriela Lóes, Gerson Almoster e Marlene Prado no dia 13 de outubro, às 13h00.

* * *

Andréa Bassitt, atriz, autora e produtora,  formada pela ead-usp. Nasceu em São José do Rio Preto, sp. Escreveu, produziu, e atuou nos espetáculos: As Turca, Filhos do  Brasil (Prêmio Shell de Melhor Música); As Favoritas do Rádio (premiada na Jornada Sesc);  É autora e atriz da série Aprendiz de Maestro, na Sala São Paulo. Escreveu os textos de Mar de Gente, de Ivaldo Bertazzo.

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Quando Eu Era CriançaDuílio Ferronato

 

Ele – Essa praça lembra de quando eu era criança...  

Ela – Eu também... sua mãe te levava pra brincar na praça? 

Ele – Não, uma vez ela tentou me matar e eu me escondi debaixo de um banco da praça. 

Ela – Sua mãe tentou te matar? Para de in-ventar! 

Ele – Sério! Eu nunca contei isso para nin-guém, ... sempre fiquei fingindo que aquelas coisas – que aconteciam comigo quando era criança – não valiam mais, entende? Que já tinham passado... Mas acho que valem pra sempre. 

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Ela – Claro que valem. A gente acaba virando um resultado das nossas histórias. 

Ele – Pois é! Mas eu não tenho vontade de matar criança ou espancar ninguém por causa desses traumas. 

Ela – Mas como isso aconteceu, foi durante um surto, ou ela estava deprimida? 

Ele – Não sei, mas toda vez que eu fazia algu-ma coisa que ela não gostava, ela me batia como uma doida. Ficava tudo marcado. Sabe que quando eu era criança não usava shorts nem camiseta de manga curta, por-que tinha sempre marcas de cintadas nas pernas e nos braços. Ficava com vergonha; na aula de educação física eu sempre fugi, não queria brincar e ficava sempre no ba-nheiro escondido. Tinha uma professora que, mais ou menos, me entendia e ajudava eu me esconder. Foi a única pessoa que me ajudou quando eu era criança.

Ela – Sua mãe bebia? Ele – Não, era uma pessoa normal, até hoje é!

Só que quando perdia a cabeça nada parava ela. Parece que ela ficava cega. Batia com

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força mesmo. Uma vez me jogou pela esca-da da cozinha e eu bati a cabeça no fogão e fiquei tonto, pensei que ia morrer, eu tinha uns 7 anos. Mas ela se arrependeu e me pegou no colo, fez carinho e pediu para eu não contar para meu pai. 

Ela – E você contava? Ele – Contava, mas ele era meio mole e es-

tourado. Nunca me bateu, nem fazia nada muito violento. Só quando eles brigavam, que a coisa ficava feia. Ele batia nela e ela nele. Ela bateu com um pau na cabeça dele uma vez e ele desmaiou; ele bateu nela em outra briga que ela não pôde sair de casa por mais de uma semana, com vergonha do olho roxo. Eles brigavam quase todos os fins de semana. Era uma coisa chata. Eu nem gostava de ir à escola, mas preferia dia de semana do que os finais; eu sabia que eles iriam brigar e ia sempre sobrar um pouco para mim. As brigas iam por horas, acho que eles só brigavam na verdade. Nunca ficavam em paz. 

Ela – Meus pais brigavam muito e acabaram

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se separando, eu fiquei bem triste, princi-palmente porque meu pai logo já arranjou outra mulher e tiveram filhos. Ele parou de visitar a gente, mas eu já era meio cres-cidinha e minha mãe foi ficando cada vez mais amarga. Depois eu fui morar em outra cidade e não participei muito da vida deles. Fui ficando distante e hoje só visito uma vez por ano. É gostoso nas primeiras horas e depois fica chato, mas acho que deve ser assim em todas as famílias. 

Ele – Deve mesmo. Depois que a gente cresce não deveria mais ter que falar com os pais. Acho que deveríamos poder ficar livres de-les. 

Ela – É mesmo, sabe que tem gente que acre-dita que matar a mãe é o pior pecado que você pode cometer? 

Ele – Quem será que inventou isso? Deve ter sido alguma mãe com medo do filho se vingar. 

Ela – Deve mesmo! E se tivesse um tribunal em que você pudesse entrar contra a sua mãe por danos causados na infância? 

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Ele – Nossa! Seria muito bom, eu iria arrancar dela tudo... mas hoje parece que já esqueci tudo que aconteceu. Ela nem é a mesma pessoa, nem eu. A gente conversa, fala dos sobrinhos, dos vizinhos, ela sempre encon-tra algum amigo meu da época da escola e comenta...  

Ela – Minha mãe sempre fala dos meus amigos de infância também, deve ser mais saudade da parte dela do que da minha. Eu não tenho muita vontade de encontrar nenhum amigo de infância. Todos ficaram tão estranhos... quando encontro é uma chatice. Ficamos falando de coisas do passado, só porque não temos mais nada em comum no presente, aí vem aquelas perguntas sobre profissão, casamento, filhos... e eu que não tenho nada disso, fico sempre com cara de tacho.

Ele – Mas profissão você tem! Ela – Tenho, mas não é dessas profissões que

as pessoas acham que seja trabalho. Acham que é um tipo de passatempo, até achar um trabalho de verdade. As pessoas acham que trabalho tem que acordar cedo, ir para al-

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gum lugar, fazer coisas chatas por lá, receber um salário e voltar para casa desanimado. Se sua profissão é divertida, não tem horário certo, às vezes trabalha muito, às vezes tra-balha pouco... isso não é profissão.

Ele – É, tem razão. Fica difícil explicar, mas eu já aprendi que as pessoas têm raiva de gente feliz, então eu finjo que não gosto do meu trabalho para elas se sentirem melhor. 

Ela – E funciona? Ele – Claro! Elas ficam felizes em saber que

você é infeliz com seu trabalho, mas que tem dinheiro para fazer compras.

Ela – É, eu sempre fico feliz quando faço compras... mas passa logo, é como comer chocolate. Dá aquela sensação boa e depois a sensação que vai engordar. Acaba ficando pior. Com compras também. Fica bom na hora que compra e depois que pensa como pagar fica mais difícil. 

Ele – Esse sistema de comprar e pagar depois é a maior armadilha... você nunca sabe re-almente se pode ou não pagar. Outro dia quase comprei uma televisão grandona,

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bem fininha... era em muitas vezes... mas muitas mesmo. Não comprei, não. Mas acho que ainda vou comprar, depois eu vejo como pago. 

Ela – Pede emprestado no banco! Ele – Ih, já estou pagando aquelas parcelas de

empréstimo automático, parece que não acaba nunca. E olha que só usei o dinheiro para pagar outra dívida.

Ela – Acho que um dia ainda vou ter um desses empregos que pagam bem. Só por alguns anos, para poder juntar dinheiro e depois volto a fazer coisas legais. 

Ele – Mas não dá para juntar. Quando você faz um trabalho chato, tem que compensar com compras... é um círculo vicioso. 

Ela – Tem razão. Acho que vou jogar na lote-ria, quando eu era criança sempre quis ficar rica. Comprar um monte de brinquedos e ir para Disney. Meu sonho era conhecer o castelo da Branca de Neve.

Ele – Você nunca foi? Ela – Não, depois que meus pais se separaram

nós ficamos meio sem dinheiro, só dava

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para as despesas. E parece que minha vida vai ser sempre assim. Só dá para as despesas e alguns luxos...  

Ele – Para com isso! Você leva uma vida boa. Ela – É verdade. Levo mesmo, mas falta um

pouco de estabilidade... Ele – É ! isso eu também queria ter. Um apar-

tamento próprio, carro novo, viajar e ficar em hotel bom... comer todos os dias em restaurante bacana. Até no almoço. Nunca mais comer em quilo.

Ela – Você acha que quem tem emprego bom não come no quilo? 

Ele – Acho que não. Devem comer sempre na-queles lugares executivos, ou ter empregada fixa que cozinha.

Ela – Isso sim é um luxo! Ter empregada to-dos os dias. Já pensou acordar e ter café da manhã pronto? Almoçar em casa e não precisar lavar louça? Tem dias que eu não cozinho por preguiça de ter que arrumar a cozinha.

Ele – Eu também. Pior que arrumar a cozinha só mesmo passar roupa. 

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Ela – É, isso também é ruim, mas eu sempre faço. Senão a faxineira não passa do jeito que eu gosto. E ela ainda liga o ferro na hora que chega, e deixa o ferro ligado o dia inteiro. 

Ele – Por que ela faz isso? Ela – Sei lá ! Mania. Ele – Será que a minha faz isso também? Deve

ser por isso que minha conta de luz é tão alta. 

Ela – Elas abusam da gente. Vê se na casa delas elas fazem isso. Vê quanto de sabão em pó que elas usam na casa delas e vê quanto elas usam nas nossas! E na casa delas sempre mora um monte de gente e na nossa só nós mesmos. 

Ele – A minha tem quatro filhos e ainda mora com uma irmã que também tem filhos. Será que ela gasta menos sabão do que eu? 

Ela – Pode apostar. Ele – Vou começar a controlar o sabão, e o

ferro também. Ela – Sua mãe nunca te ensinou essas coisas?

Ela só te batia, ou tinha alguma coisa boa nela? 

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Ele – Tinha sim, claro. Ela fazia sonhos, nho-que, bife com molhinho, arroz-doce...  

Ela – Mas você só tá falando em comida! Ele – Não era só isso, deixa eu lembrar. ... na

verdade não lembro de muita coisa boa daquela época. Lembro de uma vez que a gente foi para um sítio do meu tio, foi muito bom. Fiquei um dia inteiro feliz. Acho que isso não aconteceu muito quando eu era criança. Sabe? Ficar o dia inteiro feliz.

Ela – Ah, entendo. Eu não lembro se tive um dia inteiro feliz. Acho que algumas partes do dia eram... o dia inteiro... acho que só quando viajava também. Em casa, nunca.

Ele – É, parece difícil ser feliz em casa. Eu gos-tava muito de televisão, tinha um programa de desenho japonês que eu nunca queria perder. Mas eu sempre tinha que ficar de castigo e acabava perdendo. Um saco, era a melhor coisa do dia. 

Ela – Além de apanhar você ainda tinha que ficar de castigo? Será que sua mãe não co-nhece a regra de que se você apanha não precisa ficar de castigo? 

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Ele – Existe essa regra? Ela – Claro. Todos os pais conhecem. É assim:

dar bronca se a falta é leve, dar um puxão de orelha se a falta é maior, colocar de castigo por malcriação, tapas só se for muito, mas muito, grave e nunca na frente dos outros. Mas os castigos não devem ser acumulativos e se você recebe um, fica livre dos outros. É assim. 

Ele – Nossa! Minha mãe nunca soube dessas regras. Ela aplicava todas ao mesmo tem-po.

Ela – Ela te batia na frente dos outros? Ele – Claro! Uma vez ela me bateu na frente

dos meus amigos porque eu estava conver-sando com um menino que tinha fama de ladrão. Deu um tapão na minha cara na frente de todo mundo. Estalou e todo mun-do ouviu e viu. Fiquei com tanta vergonha que fiquei uns dias sem sair de casa.

Ela – Até que idade foi isso? Ele – Até eu crescer. Depois comecei a reagir

e ela parou. Mas um dia tentou e eu disse que se ela me batesse eu matava ela; ela veio

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para cima de mim e eu dei um empurrão nela. Ela caiu sentada e começou a chorar, dizia que bater em mãe era pecado e que eu ia ficar amaldiçoado pelo resto da minha vida. Acho que um pouco da praga pegou mesmo.

Ela – Credo! Não fala assim. Você é um sujeito tão feliz, tão bacana...  

Ele – Às vezes sou mesmo. Mas tem uma fera que escapa de vez em quando... aí não tem quem segure. 

Ela – Foi por isso que você matou sua mãe? Ele – Acho que foi...  (e os dois olham para trás, onde tem um corpo

enrolado em um plástico preto)

Fim

Quando eu Era Criança, de Duílio Ferronato, foi dirigido por Lavínia Panunzio e interpretado por Andréa Bassitt, Márcio Cardoso, Gabriela Lóes, Gerson Almoster e Marlene Prado no dia 13 de outubro, às 15h00.

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* * *

Duílio Ferronato, formado pelo Royal College of Arts em Artes Visuais – Londres 1986 e Arquitetura pela Faculdade de Belas-Artes de São Paulo. Tra-balha com cenografia desde 1992, quando desen-volveu os primeiros cenários para teatro e objetos cênicos para algumas telenovelas e programas de televisão. Desenhou e produziu móveis e objetos para as lojas Tok Stok por 12 anos. Foi colunista da Revista da Folha por dois anos e é blogueiro da Folha de S. Paulo.

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Laranja VermelhaGermano Pereira

 

Um púlpito, um Cientista e uma Ajudante do Cientista em conferência científica nos Satyros. Cientista e Aj. Cientista anunciam o intervalo da conferência. Cientista é um senhor entre 50 anos ou mais. Personalidade meio louca, psicó-tica, caricata e engraçada. Aj. Cientista é uma mulher gostosa que idolatra seu mestre. É inteli-gente, mas encanada, por isso chata engraçada. 

Cientista – Senhoras e senhores, muito obri-gado. (sai)

Aj. Cientista – Esta conferência vai prosseguir logo após 15 minutos..O grande excelentís-simo doutor dará prosseguimento a sua en-genhosa invenção e continuará explicando

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com maiores detalhes a descoberta das La-ranjas Vermelhas. Enquanto isso todos po-dem relaxar um pouco a cabeça, esticar as pernas, tomar uma água no Satyros 1... Ou um café no Satyros 2... Uma tequila no Sa-tyros 1 ½... Para quem preferir... Dispomos de bombons no Satyros da Vila Madalena, o Satyros 4... O Satyros 3, o do Pantanal, não dá pra ir no intervalo, deixem para o final. Obrigado. Fiquem à vontade... Em quinze minutos voltaremos para as perguntas a res-peito das Laranjas Vermelhas. (Sai) 

Cientista aparece ao fundo, cansado, sentado numa cadeira, suando muito. Enxuga-se com lencinho.

Aj. do Cientista (tirando o avental do Cientis-ta) – Doutor, posso falar uma coisa? 

Cientista (reticente) – Não, não pode falar... Aj. Cientista – Mas doutor... É da sua extrema

importância... Cientista – Agora não... Já disse, estou pensan-

do... Preciso me concentrar... Acabamos de

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falar muito sobre as Laranjas Vermelhas... E preciso saber como descobrir o último enigma... Bom, Não posso mais ficar assim, disperso... (olhando para a ajudante com desgosto)... Assim como você...

Aj. Cientista – O senhor está tentando ficar como aquele matemático recente que ga-nhou o prêmio e nem foi pegar a medalha junto com a quantia de 1 milhão de dóla-res... Isto tudo para não se distrair... Estar concentrado. 

Cientista – Isso... Isso... (olhando para o nada, pensativo, ficando com dor na cabeça de pensar)... Como é mesmo o nome dele?... Ai, ai... Como dói...

Aj. Cientista  (olhando para Cientista sem fazer nada, como se já o conhecesse a longa data) – Charlinston 

Cientista – Ah, Charlinston.. Isso... Char-linston... Como poderia me esquecer,... Como ele é excelente... Um dia vou ser como ele...

Aj. Cientista – Isso doutor, mas até lá... Ih... Bom, como eu ia dizendo...

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Cientista – Não ia dizendo nada, nunca disse e nunca vai dizer... (faz sinal de picuinha) (começa a doer novamente a cabeça) 

Aj. Cientista  (a parte, repete sinal de picui-nha feito pelo cientista) (para o cientista) – Ah, doutor que pena ... Sempre esta dor de cabeça neh... (feliz que vai poder falar e cientista não vai poder fazer nada, dona de si) Booooom, como eeeeeu ia dizendo... Eu também acho que o senhor tem toda a razão... No nosso meio... A mídia... Dar entrevistas, não tem muito sentido...

Cientista – Tem sim... O sentido da infor-mação...

Aj. Cientista – Sim, sim... Não estava falando mais neste sentido...

Cientista – E em qual outro então?... Entrevis-ta serve para quê? Dar informação. 

Aj. Cientista – Neste sentido sim... Mas... Cientista – E qual outro haveria de ser... Aj. Cientista – O senhor não me deixa fa-

lar... Cientista (irritado) – O quê? Como não lhe

deixo falar... A senhorita não para de falar...

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Parece uma matraca ... E vem me dizer que não lhe deixo falar... Oras...

Aj. Cientista – É que no fim fico receosa de falar com o senhor... É claro que com esta figura de todo-poderoso... O descobridor na nova ciência... Na nova era... Não é sempre que estamos perto de um mito...

Cientista – Sim, sim claro... Desenvolva, es-tou gostando... Pela primeira vez está falan-do algo que preste...

Aj. Cientista – O senhor é o grande mes-tre... E realmente falo sem falsas modés-tias... Estou sendo verdadeira... Alguns têm medo de falar nesta palavra... Mas eu não... Quando eu falo uma coisa, eu falo... Quan-do acho que não se deva falar, não falo... Assim deve ser...

Cientista – Mas qual palavra?... Aj. Cientista – Esta palavra... Mas é que... Cientista (dono de si, como se não soubesse,

fazendo charme) – Qual palavra?... Aj. Cientista (ela não percebe que ele quer es-

cutar a palavra “mestre” novamente) – Esta

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palavra... Esta palavra... Ah... Bom, enfim... Mas é que...

Cientista (brigando) – Mas qual palavra, mu-lher de Deus?... Porque você não diz ela de novo... Parece um porco andando em círculos.. 

Aj. Cientista – Qual palavra, doutor... Cientista (agarrando-a pelos ombros com vio-

lência) – Esta palavra, esta palavra que disse ainda há pouco...

Aj. Cientista – Qual palavra, qual palavra, não me lembro mais de nada... Me solte, me solte, por favor, doutor...

Cientista – Mestre! Mestre! Mestre! Aj. Cientista (falando junto) – Mestre! Mestre!

Mestre! Isto... Mestre! Cientista – Isto!... Isto!... Cabeça dura! Aj. Cientista – Lembrei! Lembrei... Cientista – Por que não disse antes?... Aj. Cientista – Eu me esqueci... O senhor

começou com aquele tom... Cientista – Com que tom?… Aj. Cientista – Este tom...

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Cientista (pausa) – Agora vai parecer que eu queria escutar de novo que você me acha um mestre no que eu faço... Vai pegar mal pra mim...

Aj. Cientista – Nunca pensaria isto do dou-tor...

Cientista – É porque nem tem por que pen-sar... Mas as aparências enganam... Enfim, as pessoas têm dificuldade de enxergar as ideias, as estruturas, as essências... E pra mim pouco importa eu ser mestre ou não...

Aj. Cientista – É isso mesmo. Cientista – Portanto, não pense que eu que-

ria escutar novamente que sou um mestre. (olha para a frente com olhar idealista e diz de forma empolada) Um mestre! 

Aj. Cientista – Não, não, nunca pensaria neste sentido...

Cientista – Especifique, em qual sentido? Aj. Cientista – Neste sentido... Cientista – Mas em qual sentido, criatura?... Aj. Cientista – Neste sentido que o senhor

está dizendo...

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Cientista – Que eu sou um mestre no que faço?... Ou que eu não sou um mestre no que faço?...

Aj. Cientista (gritando) – Não! No outro sen-tido...

Cientista (insano) – Então, eu não sou um mestre no que faço?...

Aj. Cientista (berrando) – Não!... Cientista (mais insano) – Não?... Você não

acha isso mesmo? Aj. Cientista (medo) – Não, no outro senti-

do... Cientista – Qual?... Que eu não sou um mes-

tre no que faço?... Aj. Cientista (mais medo) – Não... Cientista (psicopata engraçado) – Mas você

não acha isso mesmo... Que eu não sou mestre?... Ou que eu não?... Eu não sou um mestre? (aumenta o tom) Não vai dizer... Sei... Bem, me acompanhe se for capaz... (cientista psicopata chato) Portanto, como são dois não(s) de negação... Quer dizer um sim... E portanto Sou um mestre no que faço... Agora, se você disse não de não que

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é não, mas pode ser sim dentro da minha frase que da duas opções com bases de não mas que não querem dizer propriamente não pois são a sua dialética... e que se in-vertem... (fala bem alto) Somados com o seu subtexto, o seu olhar, a sua respiração, o jeito que você me olha, e me persegue todos estes anos, nas minhas pesquisas, traiçoei-ro, inquisidor... ocultados em semblante indigno e que está escrito no alto de suas sobrancelhas, entre este e os seus cabelos, precisamente nesta testa mentirosa que... (épico) Não, eu não sou um mestre!... Se é isso que você quis dizer... Eu... Eu... ... Minha mão esta coçando... Minha mão… minha espátula, cadê minha espátula?... se estivesse afiada... .(começa a pentear o cabelo com a espátula, tresloucado, e grita) ahhhhhhh 

Aj. Cientista (juntos) – Ahhhhhhhhhh Cientista (para repentinamente) – Ah, o

quê? Aj. Cientista – O senhor é um mestre! Cientista – Você acha? 

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Aj. Cientista – Sempre achei desde o come-ço...

Cientista – Mas por que não me disse antes?... Agora vai parecer que eu queria...

Aj. Cientista – Não, não... Eu sei que o senhor não queria...

Cientista – Mas por que você complicou tan-to... Era só dizer... O senhor era um mes-tre... É um mestre... Mestre é mestre... Até parece que eu gosto destas coisas todas... Que chato,... Pega mal... Chato...

Aj. Cientista – Era o sentido da coisa que ficou errado...

Cientista – Sentido?... Especificamente, sen-tido do que..

Aj. Cientista – Sentido... da entrevista... Cientista – Mas qual o problema... Já tinha

falado... O sentido da entrevista... é a in-formação...

Aj. Cientista – Não este sentido... Isto o se-nhor se complicou também quando falei sobre o mestre...

Cientista (bufando como francês) – Isto já está resolvido não? Paremos por aqui...

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Aj. Cientista (tempo, fala constrangida) – É que o senhor não deixou eu falar nova-mente... 

Cientista – Que eu não sou o quê?... Aj. Cientista – Não é esta questão, mestre! Cientista – Ah, tá. Prossiga. Aj. Cientista – O sentido da entrevista é a

informação... Cientista (cortando) – Mas isto foi o que eu

lhe disse... Aj. Cientista – Como o senhor me disse... E

eu já ia completar... Cientista – Ah, tá... Prossiga... Aj. Cientista – Se lembra que no começo

quando estávamos falando... Eu disse para o senhor que queria perguntar, falar uma coisa? 

Cientista – Não, não pode... Agora não... Aj. Cientista – Pois então... Foi isto que o

senhor me disse... Cientista – E você prosseguiu a falar mesmo

assim... Aj. Cientista – É que o senhor mudou o sen-

tido do que eu estava falando...

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Cientista – Eu mudei o sentido... O senhor mudou o sentido... Torne-se responsável pelos seus próprios atos... Clichê falar isso, mas é a mais pura verdade... 

Aj. Cientista – Eu tomo, sim, senhor... Mas é que eu estou fazendo justamente por isso...

Cientista – Então, por que prosseguiu a con-versa se euuuu disse não, não prossiga a con-versa, não precisa falar nada pra mim...? 

Aj. Cientista – É porque o senhor mudou o sentido...

Cientista – Epa, alto lá... O que acabei de dizer...

Aj. Cientista – Torne-se responsável pelos seus próprios atos...

Cientista – Pelos meus não, pelos teus... Aj. Cientista – Foi o que disse... Cientista – Não exatamente, mas se acha que

sim, tudo bem... Não vou discordar. 

(Tempo) 

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Cientista (agoniado, esperando pra ver se ele não fala) (berra) – E então?...

Aj. Cientista – Então o quê...? Cientista – Então que não me escutou, não

se tornou responsável pelos próprios atos, colocou-me em xeque várias vezes, me fez passar por bobo... cair no ridículo... Me descontrolar... Ainda mais eu, um grande cientista, passar por isso tudo... Esta besteira toda... Não me deixe mais nervoso do que eu já estou com essas malditas Laranjas Vermelhas que ninguém entende nada... Um bando de calhordas... Que ficam per-guntando... (imita) Mas por que laranja vermelha... por que não azul? Por que não amarela, como sempre foi?... Por isso mes-mo... Coisas novas..Ah.. 

Aj. Cientista – Desculpe, doutor... É que eu me responsabilizo não por mim, mas mais pelo senhor... Por isto que quis...

Cientista – Por isto que quis o quê?... Aj. Cientista (olhando no relógio) – Doutor,

15 minutos já se passaram... Cientista – Por que não me disse antes? Afe...

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E agora... Onde está o meu lencinho?... E a minha espátula?... A foto de mamãe... (coloca no bolso esquerdo) A foto de papai... (coloca no bolso direito).

Aj. Cientista (olhando novamente o relógio) – Doutor, precisamos ir agora...

Cientista – Sim é claro... Precisamos ir... Hoje será um grande dia... O dia da grande reve-lação, o dia em que alcançarei o patamar de Charlinston...

Os dois em pose de Estátua da Liberdade pa-ram nesta posição enquanto Cientista – com a espátula na mão – roça a cabeça e fala de modo vigoroso e caricato. Aj. Cientista o acompanha num subtom. “O gênio das laranjas vermelhas.” Os dois entram na sala para dar a conferência, é o mesmo lugar, só que fica claro que agora se comunicam com o público, os conferencis-tas. Cientista dono de si parado ao lado de Aj. Cientista enquanto esta fala. 

Aj. Cientista – Senhoras e senhores, Volta-mos para continuar nossa conferência e

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agora abrir para perguntas... (ninguém na plateia pergunta e se alguém o fizer, os dois fingem que não escutam). Dado que não houve nenhuma pergunta, encerramos aqui esta conferência internacional sobre a grande descoberta do doutor. As Laranjas Vermelhas... Simples mudança?.. Não... O amarelo é a pedra e o vermelho é a grande evolução... Em breve, todos serão influen-ciados por esta nova invenção. Bom, agora a próxima conferencia será sobre uma grande invenção, os Satyros. Então, antes de co-meçar a conferência que fale da invenção Satyros, gostaríamos de dar uma premiação, a premiação de nossa instituição. O prêmio Laranja Vermelha. Antes disso, nossas pal-mas aos criadores dos Satyros 1. Uma salva de palmas, por favor. E também queremos agradecer aos Satyros 2. Outra salva de pal-mas, por favor. Também agradecemos ao Satyros 3. (nervoso) Não, não, sem palmas agora. Palmas somente no final. Bom, agra-decemos aos Satyros 3 como já havia falado, e aos Satyros 1 e ½. Sim, palmas por favor.

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Agora, gostaria de chamar Ivam Cabral, fundador dos Satyros, para receber como premiação nossa Laranja Vermelha. Mas ele me disse que não poderia comparecer porque está na inauguração do Satyros 5. Palmas ao novo Satyros 5. Então, gostarí-amos de chamar – para também receber a premiação de nossa Laranja Vermelha – Rodolfo Vàzquez Garcia, também fundador dos Satyros.

Cientista vai falar no ouvido da Aj. Cientista. 

Aj. Cientista – Rodolfo está na inauguração do novíssimo Satyros 6, 7, 8, 9 e 10... Um ali no cruzamento das Marginais do Tietê e do Pinheiros..os outros eu não sei ainda...

Cientista no pé do ouvido dele. 

Aj. Cientista – Ah, tem mais Satyros 11, 12, 13, 14 e também Satyros 15 que acabou de me falar o doutor... Palmas, a estes novos Satyros. E com esta notícia Satyros atinge o

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patamar de Charlinston. (cientista fica mal, de forma engraçada) Então, gostaríamos de chamar algum representante dos Satyros para receber nossa premiação Laranja Ver-melha... Silvana? Laerte? Gisa? Marco An-tonio? Pedrinho? Ricardo? Ninguém? (com ar pueril e sorridente) É, como sabem, estão todos organizando novos Satyros ao lado de suas casas. No futuro, Doutor e eu quere-mos que as Laranjas Vermelhas também tenham esta mesma abrangência. E aceitem as novas laranjas. Muito obrigado. 

Fim

Laranja Vermelha, escrito e dirigido por Germano Pereira, e interpretado por Castilho e Alberto Guzik no dia 13 de outubro, às 18h00.

* * *

Ator, escritor e estudante de Filosofia. Participou de montagens como Romeu e Julieta; De Profundis; Antígona; A Dança da Morte, e A Mais Forte, Bella

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Ciao; Coriolanus e Liz, em 2009. Com seu 1º. texto teatral Pax Hominibus, é convidado para participar do ciclo promovido pela Associação Paulista de Autores Teatrais. Participou do filme O Menino da Porteira. Adaptou O Amante de Lady Chatterley para montagem em 2008/2009. Publica livros em 2007 e 2009.

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O Meu Vira-Latas só Ouve Be-BopJarbas Capusso Filho

  O cenário é uma sala. Tudo muito modesto e pobre. Ele veste calça jeans, camiseta e chine-los. Tudo bem velho e puído. Está sentado. Li-vros, revistas, garrafas e copos espalhados pelo chão. Ele está sentado e olha o infinito. Não demonstra uma emoção. Há um copo de vodca barata em sua mão. Durante o espetáculo, ele vai se servir de mais doses. Ela entra. Tipo exe-cutiva. Bem-vestida e maquiada. Muito tímida e acanhada, estranhando muito o lugar, mas disfarçando para agradar. 

Ela – A porta estava encostada e eu... Você devia colocar um trinco aqui. Não tem pe-rigo? 

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Ele – A porta sempre está encostada. O perigo, aqui, não vem de fora. 

Ela – Achei que podia entrar... (Parada na porta) Eu estive em Memphis! 

Ele – O meu cão sumiu. Ontem eu levantei e ele não estava aqui. Ele deve ter ido atrás de alguma cadela no cio. O Baudelaire é foda.

Ela – Fui na caminhada das velas, na Elvis Presley Boulevard... 

Ele – O danado gosta de Be-Bop. Mal ouve o primeiro acorde do piston e já se assanha todo. Vira a barriga pra cima e fecha os olhos. Que pulguento viajandão.

Ela – Eu senti uma emoção tão forte. Foi uma experiência extrassensorial... 

Ele – Mas ele volta. Não é a primeira vez que uma cadela vira a cabeça do meu cão. (Longa pausa) E o rei? Ainda vive? 

Ela – Vive... Acho que vive. Sei lá, é difícil dizer quando alguém como ele já está mor-to... não? Entrei na Graceland. E acendi algumas velas. Na procissão as pessoas cho-ram tanto. Você devia ver. 

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Ele – Gosto de Buddy Holly. Elvis perdeu a mão... ou as veias, sei lá. Você demorou. Sabia que eu não enjoei?

Ela – Jurava que você ia enjoar com a mare-sia. (Pausa) Me perdi um pouco. Foi difícil chegar. Eu nunca tinha passado por esse bairro. Na verdade... Essa época de Natal é terrível.

Ele – Como é que você me achou? Ela – (Não ouve a pergunta) As pessoas vão

todas pras ruas e ficam loucas. Ele – (Com irritação contida) Como é que

você me achou? Ela – (Continua não ouvindo) O trânsito está

impraticável! As pessoas não te veem. Nin-guém te vê.

Ele – (Quase gritando) Como é que você me achou, porra? 

Ela – (Assustada. Longa pausa) Bem, foi o... Ele – Não precisa responder, baby. Com cer-

teza, foi algum anjo da guarda que não tem onde enfiar a língua. Certo?!

Ela – Não precisa ficar bravo. Ele só queria...

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Ele – Ajudar. Sei. É por isso que o mundo é assim, essa merda. Porque tá cheio de gente querendo ajudar. (Longa pausa. Dá um gole) Eu não estou bravo. Digamos, que es-teja, como você pode observar, só um pouco sem tempo. Entende? Que dia é hoje? 

Ela – Da semana? Terça... Ele – Não, não! Do mês. Ela – 24. Ele – Hum... Natal? Ela – Natal... Aquilo é uma barata? Ele – (Sem olhar) Impossível. Os ratos já de-

voraram todas. Ela – Há ratos aqui? Ele – Provavelmente. Quando há ratos na sua

sala, das duas uma: ou você já está sofrendo um terrível delirium tremens ou... 

Ela – O Mickey Mouse entrou pro movimen-to sem-terra e acaba de declarar sua sala improdutiva! 

Ele – Pior. Pode ser o sinal que algo lá fora deu errado e deus deu no pé, compreende? Os ratos são os primeiros a abandonar o navio, baby! 

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Ela – Não sei. Não gosto de ratos. Uma vez, no Central Park vi uma ratazana enorme. Ela arreganhou os dentes pra mim. Acho que estava prenha. Sentiu seus filhotes amea-çados. (Ri) instinto materno. 

Ele – Você ainda envia cartões-postais? Ela – Ainda. Ele – Não acha isso um pouco de perda de

tempo? Ela – O quê? Ele – Enviar cartões! As pessoas não leem

cartões-postais. Eles ficam apodrecendo dentro das fruteiras, junto com as bananas e as horas. 

Ela – Tem gente que gosta. Ele – É. Toda a humanidade. Menos eu. Mas

até aí, grande novidade. Nunca tive muito a ver com a humanidade. (Pausa) O segredo é escrevê-los e não enviá-los. A sensação de ver as palavras e bananas apodrecendo não é muito agradável. 

Ela – Parece que você não mudou muito. E as paredes. Você escreve nas paredes? Quan-tos poemas têm aqui? Você os escreve pra

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quem? Na certa pruma mulher. Não, não. Você nunca foi muito romântico. Você es-creve poemas para a humanidade, não é? 

Ele – Sabe qual é a minha teoria sobre a hu-manidade (Irônica)? 

Ela – Não. Ele – O que não me falta é tempo para tecer

novas teorias. Tudo bem que a maioria delas não serve pra porra nenhuma...

Ela – E qual é? Ele – Qual é o quê? Ela – A sua teoria? Ele – Ah, sim. Bem a minha teoria é que o

mundo é uma descomunal loja de sapatos e cada um dos 6 bilhões de habitantes desta pocilga aqui é, composto por vendedores de sapatos. Sabe como é?

Ela – (Ri) Não... Ele – Quando você entra numa loja de sapatos

qual é a primeira coisa que lhe acontece? Ela – Um vendedor vem... me atender? Ele – Bingo! Isso mesmo. Mal você pisa na

maldita loja e o vendedor vem correndo para ser... prestativo, não é? Você mal pisa

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na porra da loja e já sente o bafo quente do desgraçado, aqui, no pescoço, dizendo com aquele sorriso amistoso do Christopher Lee, em horror de Drácula: “pode ficar à vontade, viu?” (Longa pausa. Dá um gole) Como é que eu posso ficar à vontade se eu mal piso na loja e já aparece um maldito vendedor bufando na minha nuca querendo ser prestativo, hã?! (Dá um gole) Este é o mal da humanidade, baby.

Ela – Poxa, faz tanto tempo que a gente não se vê... 

Ele – Mais precisamente, desde aquela manhã de domingo em que combinamos os últi-mos detalhes de uma viagem pra França, não foi?

Ela – Olha, eu acho que já se passaram tantos anos e a gente não devia remoer assuntos tão... antigos. Eu queria muito te ver... 

Ele – É? Você não acha que é muita falta do que fazer? 

Ela – Eu posso me sentar? Ele – Por favor. Mi casa, su casa. 

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Ela – Estou um pouco cansada e... muito ner-vosa. Gostaria que você compreendesse. Eu estive em Memphis... 

Ele – (irônico) Duas vezes...? Ela – Mas eu não disse que estive na Rua Beale

e bebi cerveja num bar e, quando estava amanhecendo, cantamos Piece of my Heart. 

Ele – Mas esta musica é da Janis. Ela – Eu sei. Mas é que se o Elvis tivesse casado

com a Janis, talvez os dois ainda estivessem vivos.

Ele – Não me diga! Ela – Quando você ama alguém no inferno, é

mais fácil achar a porta de saída, entende? Tomei cerveja e cantei. A noite toda. Cantei para o rei e pra todos os filhos que nunca nascerão! 

Ele – Quer tomar um trago? Não é russa, mas tudo bem. Eu também não sou nenhum Dostoievski. E no final, a gente sabe que todas as vodcas levam ao coma. (Pausa) Quando foi que você voltou? 

Ela – Faz alguns meses. Assumi a diretoria do banco aqui, no Brasil. 

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Ele – Uau! Diretoria de banco, hein? Isso soa bem. Importante. (Longa pausa) Você conseguiu, não é? 

Ela – Acho que sim. Vou cuidar de financia-mentos de obras sociais. O banco tem uma verba destinada às famílias de baixa renda e... 

Ele – Olha só. O tio Sam vai financiar mais pa-pinhas e tabuadas pros nativos. Isso é bom. Tem verba pra literatura de primeira? 

Ela – Não. Ele – (Pausa) Soube que você casou. Casou com

um executivo de Wall Street, não foi isso? Um tal de Will Walton, não é? (Ri muito)

Ela – Ele morreu. Ele – (Não ouve) Porra, como é que não tinha

sacado isso. Você casou com um Walton. Entrou pra família Walton!

Ela – Ele morreu... (Constrangida) Ele – (Ele ouve) Me desculpe. Ela – Um câncer... Ele – Ultimamente o meu humor está mais

barato do que essa vodca vagabunda que eu tento beber. 

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Ela – Mas você também casou... Ele – É, digamos que fiz juras eternas de amor

num momento de fraqueza. Ela – Fraqueza? Ele – É. Fraqueza. Estava numa ressaca dos

diabos e o pai dela tinha um bar. Ela – Será que você poderia ser menos sar-

cástico? Ele – (Grita, com raiva) E você pode me dizer

por que diabos resolveu aparecer aqui de-pois de vinte anos? Veio conferir a merda? Confirmar que você fez a opção certa? Que a melhor coisa que você fez na vida foi não ter embarcado naquele navio?! Como pode ver, as coisas não saíram como eu esperava. Você tinha razão!! 

Ela – Mas você foi. Ele – Fui. Fui sim. Subi naquele navio e me

mandei. Passei quase dez anos zanzando pela Europa.

Escrevendo, ouvindo jazz e bebendo. Bem, as prioridades não foram, necessariamente, nesta ordem.

Ela – O que aconteceu? 

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Ele – Como?! Ela – O que aconteceu? Ele – Nada. Ela – Como? Ele – Nada. Não aconteceu nada. Não publi-

quei uma linha. Ela – Mas o que você fez durante dez anos? Ele – Me ausentei... Ela – Como? Ele – Sabe, eu descobri que a punheta é um

mal necessário. É uma mentira, sabia? A punheta é a maior mentira que a huma-nidade inventou depois da boa vontade. E eu sou um grande mitômano!! (Ri muito. Pausa. Sério) Bebi. Foi o porre mais longo da história! Dez anos... 

Ela – Mas você sempre escreveu tão bem. Ela – (Com raiva) Entenda uma coisa de uma

vez por todas: eu não escrevo bem, porra. Eu não quero escrever bem. Nunca quis! Eu es-crevo o que deve ser escrito, compreende?! 

Ela – Não muito, mas tudo bem. (Abre a bolsa e vai sacando um talão de cheques) 

Ele – O que é isso?! 

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Ela – Eu quero te dar uma força... Ele – Força...? Ela – Eu gostaria... Ele – (Com raiva) E quem falou pra você que

eu preciso de uma... força? Ela – Não precisa dizer! É só olhar. Ele – Olha aqui, madame, eu não preciso da

sua força e nem a do Superman! Ela – Pelo amor de deus! Será que você pode

ser um pouco menos arrogante? Ele – Não, não posso. A minha arrogância é

o meu salvo-conduto nesta pocilga aqui. É o que me mantém longe de pessoas como você. 

Ela – Como você pode falar assim? A gente... Ele – ...foi uma tremenda bad-trip, baby! Ela – Eu não podia ir. Ele – A minha vida cabe aqui, ó! (Aponta para

a própria cabeça) Eu não preciso de uma Louis Vuitton para acampar, entende? O meu mundo cabe aqui, ó! (mostra um bloco de anotações e uma caneta) No papel.

Ela – Isso era muito pouco pra mim. Eu queria estudar, seguir carreira. Ter um bom lugar

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pra morar, ter uma família, filhos. Mas isso pra você sempre foi um absurdo, não é? Filhos, casa, carreira. Pra quê, não é? O importante era o que você tinha pra dizer. O importante eram os seus livros. Você nunca fez uma concessão pra gente. Nunca! Sem-pre foi do teu jeito!

Ele – E você conseguiu a sua família, os seus filhos? 

Ela – Não... não consegui. Ele – Então empatamos: também não publi-

quei uma linha. Ela – Mas eu pedia pra você ficar! Ele – Você sabia que eu não ficaria. Você sabia,

porra! Você sabia que eu não iria enterrar a minha vida numa baia de escritório. Eu nunca quis isso. Nunca te enganei. 

Ela – Eu sei... O problema é que você sempre pensou só em você.

Ele – Não te contaram não, baby? A vida é cruel. (Longa pausa) O problema é a insô-nia. Você consegue dormir? 

Ela – Não muito... Ele – Eu mapeei todas as rachaduras e man-

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chas do teto do meu quarto. A minha cons-telação de fissuras e bolor. O meu céu é cheio de fungos, Baby. Não há muito o que fazer. Só esperar o meu cão e colocar um Bird pra gente ouvir. Ele deita aqui e es-quenta os meus pés enquanto eu sonho. 

Ela – Eu tenho que ir... Já está tarde e eu não conheço os caminhos. Sempre me perco. Não adianta, sempre tem um desvio, uma bifurcação e, quando me dou conta, já estou perdida e só. 

Ele – Eu vou ficar, baby. Vou esperar o meu vira-latas. Ele vai chegar com fome. Vou preparar salsichas pra ele e alguns ovos pra mim. Vamos ouvir musica e escrever. Vou escrever, baby. Só isso. 

Ela – O que as pessoas não sabem é que o Elvis não nasceu em Memphis. Ele nasceu em Tupelo. Se ele tivesse conhecido a Janis. Se eles tivessem ficado juntos de verdade, tudo teria sido diferente. Quando a gente ama alguém no inferno é mais fácil achar a porta de saída. (Se levanta) Eu vou embora... 

Ele – Espera. (Pega uma caixa) Isso é teu. 

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Ela – O que é? Ele – Cartões-postais... Comprei. São todos

pra você. Ela – Pra mim...? Ele – É. O segredo é não enviá-los, assim, não

amarelam com o tempo. Ela – Espero que eu não me perca novamen-

te... Quer que eu tranque? (Ela sai) Ele – (Ele senta-se novamente, na mesma po-

sição do início. Longa pausa) Não precisa, Baby... No inferno, o trinco é sempre do lado de fora. 

 Fim

O Meu Vira-Latas só Ouve Be-Bop, de Jarbas Ca-pusso Filho, foi dirigido por Marcos Loureiro e interpretado por Zezé Motta e Paulo de Tarso no dia 13 de outubro, às 19h00.

* * *

Jarbas Capusso Filho (São Paulo-sp, 1963): 46 anos, dramaturgo e diretor de teatro, escreve dramaturgia

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e poesia desde 1998. Alguns livros editados: Tão Longe de Casa, A Noite em que Blanche DuBois Chorou sobre a Minha Pobre Alma e participação na coletânea Brother Cactus – Contistas da Praça Roosevelt. Vencedor dos Prêmios de Dramaturgia: Prêmio Jornalístico Vladmir Herzog de Anistia e Direitos Humanos (2001) e Prêmio Nacional de Dramaturgia Funarte (2003). Também é roteirista. Ainda escreve no blog: http://uivoslatidosefuria.zip.net/index.html

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SegredosMarici Salomão

Duas irmãs, totalmente diferentes uma da ou-tra. Vivem se provocando – morrendo e renas-cendo nos momentos de encontro. Elas usam perucas pretas – a interna, curta; a irmã visi-tante, longa. Suas roupas têm o mesmíssimo talhe, sendo que no da interna o tecido é mais simples. A visitante carrega bolsa combinando com sapatos. A interna usa óculos, tem um livro consigo e sandalinhas ou chinelos, não pantu-fas, mas esses de ficar em casa. Está divagando, depois abre o livro, depois volta a divagar, sorri a uma lembrança e repete sons, enquanto a vi-sitante chega por trás.

Interna – Anãnãnãnãnãnã.

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Irmã (Depois de um tempo) – O que foi que você disse? Agora há pouco? Não ouvi. Eu tentei, mas não consegui. Eu juro que ten-tei, mas não... (Um pouco agressiva) Você falou muito baixo! (Retomando. Suave) Pode repetir? Por favor? Por favor, repete? (Silêncio. Muito séria) Olha, você sabe que eu sou curiosa, que eu até já fiquei doente por ser curiosa, você sabe que o papai batia na minha boca quando eu ficava insistindo em saber o que ele e a mamãe conversavam, em segredinhos... Eu levava um tapa na boca, chorava, magoada, mas voltava a per-guntar. E ele me batia de novo, até minha boca ficar vermelha e inchada. Eu chorava, mas voltava a perguntar. E assim ia até o papai dizer qualquer coisa, só pra satisfazer o meu prazer em saber, em saber das coisas. Então, não faz assim comigo porque eu vou ficar perguntando, até você responder. E você sabe que vai ser assim. Porque eu sou insistente e você sabe disso. Porque eu dou importância a tudo o que você diz e você sabe disso. (Alto) Se você não repetir o que

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disse agora há pouco, vou te dar um murro na boca!

Interna parece ausente.

Irmã – Isso, tripudia, ri de mim, ri bastante, assim, por dentro, ri sem dó, ri! Você com esse seu ar de intelectual, sabendo fazer do silêncio, provocação. Porque sempre soube como me chatear. Com o seu silêncio – por-que essa sempre foi a maneira de você me fazer mal – todo mundo sabe uma maneira de fazer mal a quem ama – diz que não é verdade – que o amor não vem sempre com uma contraindicação. O amor sabe odiar e você – negando com o seu silêncio o meu prazer de saber das coisas – sempre... Só porque conseguiu se tornar uma cientista importante, costurada naquele laboratório esquisito, se achando uma espécie de deus. Porque você mesma dizia: “Não, não é fácil ser uma doutora em Física e ter o reconhe-cimento de toda uma classe de profissionais – não, não é nada fácil”, você dizia. Quan-

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tos homens e mulheres não sonharam em ter essa posição, de cientista importante. E você chegou lá. Quase. Porque no fim das contas você não suportou a realidade. Eu nunca entendi de que realidade você falava – mas entendi que pra você foi demais. Em compensação, eu, a mãe, a que não vai dei-xar nenhuma tese, nenhum título, só dois filhos e uns vasinhos de cerâmica pintada, eu estou aqui, firme! Mas isso pra você não vale nada, não é? Você não diz, mas pensa que eu não valho nada. (Pausa) Você acha mesmo? Acha que eu não valho nada? (Irmã pega carinhosamente na mão da interna) Pra mim pouco importa – você me odiar desse jeito; porque carinho eu tive de monte na vida, não preciso me lambuzar com mais um pouco vindo de você; de você, só a inte-ligência e as frases agudas. Ah, e o senso de humor – o seu senso de humor, uma coisa que eu nunca tive, porque pra ter senso de humor é preciso inteligência e isso... (Mu-dança súbita) Mas você não vai repetir o que disse? (Nova mudança, para suplicante)

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Por favor! (Irmã ajoelha-se na frente da Inter-na) Por favor, por favor, por favor, por favor. (Chorando, até ficar completamente sentada no chão) Você me deprime. Eu sinto vonta-de de morrer. Por favor, diga alguma coisa pra que eu possa crescer na vida. Ainda dá tempo – o horóscopo de hoje disse que até outubro de 2009, até outubro de 2009, eu vou mudar de profissão... (Ri) Então, diz alguma coisa – pra que eu possa cres-cer. Vamos trocar palavras, só isso, eu dou uma, você devolve outra. (Pausa) Você me esgota. Isso de ficar de segredinho consigo mesma. Eu tenho um nojo, nojo de quem se guarda em segredos! (Mudança) Porque você sabe do quanto eu sempre gostei de sua inteligência. Eu não sou como um da-queles... daqueles bajuladores que queriam casar com a sua fama, não com você, não com a sua... a sua boceta... Mas o que estou dizendo? (Beija-lhe os pés.) Eu adoro os seus pés, eles são tão firmes, não é? Parecem pés de anjo, não no sentido de grandes – se bem que eles são grandes – mas no sentido de fir-

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mes, de saberem onde pisam. Eles sempre pisaram com segurança – você pensa que eu ficava na praia assobiando à toa? Não, eu assobiava na praia pra não ser observa-da observando. E aí eu via os seus pés na areia, tocando fundo os segredos da praia; ah, se pelo menos eles pudessem conversar comigo... Hein, dedinho, ô dedinho, me conta o que a cabecinha dela falou agora há pouco... Eu preciso tanto saber. Ela me maltrata sempre, sempre que a gente senta nesse banco de asilo, de asilo de louco – não, eu não quis dizer isso, nesse banco de clínica de repouso – é bem melhor, não é? Então! Então eu fico assim. Falando sozi-nha, maltratada, derramada em solidão. Ela nem parece minha irmã, de tão má e egoísta que é comigo. (Chora, derramando-se no chão) Eu me sinto tão só. Por que é que você se esconde de mim? Eu preferia que você tivesse tido meningite e tivesse ficado com as ideias bem atrapalhadas, porque assim eu não ligaria pras coisas que você diz... Eu te olharia com desprezo, bem assim, com

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olhos frios de atum – você sempre gostou de atum, enquanto eu sempre gostei de bisteca de porco – e te encararia com olhos de atum até você se sentir no mar Ártico, sozinha, pendurada num gancho gritando por socorro! Socorro! Socorro! Repete o que você disse há pouco! (Chacoalha interna com ódio) Eu preciso saber! Eu não estou aguentando de curiosidade. É mais que isso: é a necessidade de saber das coisas! (Empurra a irmã) Eu te odeio!!! (Quase surtando) Eu não quero mais ver você na minha frente, eu quero que você morra, que você seja fisgada por um eunuco! Um eu-nu-co! Um eunuco que aguente você com esses seus nervos à flor da pele! É totalmente nojento ter que aguentar uma mulher com os nervos à flor da pele! (Ri, sarcástica) Você sempre se achou a tal, não é? A gostosa, com esse corpinho mole e esses óculos de inte-lectual. A tal! Mas sempre sozinha, coitada, arranhando palavras nos cadernos, caçando histórias nos livros, mas sempre derramada em solidão. Eu sempre detestei esse teu

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jeito de ficar até às três da manhã, com a lanterninha acesa debaixo do cobertor, lendo Moby Dick, escondida, pro papai e a mamãe não perceberem que você ficava acordada até tarde, lendo os teus livros de merda. Enquanto isso, os garotos sempre iam em casa, você sabe, mas pra ver quem? Quem? (Pausa curta) Ah, sim, em véspera de prova, eles perguntavam por você. Na-tural, não é? Aquele monte de repetente. (Muda de atitude) Natural? Natural uma ova! Eu não era repetente. Eu também era boa aluna. Não era? Que olhos são esses? Você quer dizer que eu colava de você? Você quis dizer que eu... Você é horrorosa! Você... Você... (Aproxima-se da irmã Interna. Dá-lhe um tapa na cara e grita, jogando-se no chão novamente, chorando) Eu não su-porto mais, eu não suporto viver assim. Eu detesto você, eu preferia perder um olho, que ter que ver você de novo... Meu deus, o que é que estou dizendo? Você está me matando – para de debochar de mim! Você está debochando de mim! (Chorando de-

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sesperadamente. depois, silêncio. Irmã está como morta no chão)

Interna (Depois do silêncio) – Anãnãnãnãnã.Irmã (Num sussurro.) O quê?Interna – Anãnãnãnãnã.Irmã – Foi isso o que você disse agora há pou-

co?Interna – Uma criança aqui, hoje. Passeando

no colo da mãe. (Apontando com o dedo) Ela me viu, eu vi ela. Uns nove meses. É. E ela passou por mim... Anãnãnãnã. Achei tão bonito. Um som bonito sob um sol bo-nito. Eu gostei tanto. Eu entendi o que ela quis dizer... Se a gente repete, o momento fica vivo de novo. Anãnãnãnãnãnãnã... O vestido verde-claro da mãe, os pezinhos da criança, tão expostos, brancos, brancos assim (Apontando os próprios pés). Eu adoro a praia, mas amo o mar – o mar é que eu amo, com seus pontos de fuga. Um som de fuga sob um sol de nove meses... (Ri)

Irmã – Besteira.Interna (Sem ouvi-la) – A realidade é feita de

sol e não pode ser tocada.

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Irmã – A realidade não é pra ser tocada. É pra ser vivida.

Interna – Ela queima suas asas.Irmã – Besteira! Interna – Cuidado! Dói, quando queima. Mas

a imaginação, a imaginação é bela. Irmã – Besteira.Interna – Você já reparou que o mar não tem

doença venérea?Irmã (Irritada. Levanta-se) – Só besteira.Interna – A gente podia surfar por baixo, não

por cima.Irmã – Sua besta! Uma cientista! Eu vou em-

bora!Interna – Ah, você. Você vive indo e voltando.

Você volta?Irmã – Eu vou pensar. Interna – Você volta.Irmã – Talvez não volte.

Interna ri.

Interna – Então talvez volte. Me coloca no seu colo.

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Irmã – Não.Interna – Me coloca.

Irmã coloca a cabeça da Interna no seu colo. Depois pega o livro que está com interna. Lê.

Irmã – Moby Dick. Você não se cansa?Interna – De quê?Irmã – Ah, se não sou eu pra te visitar. Talvez

o papai apareça de vez em quando em es-pírito, mas a mamãe... Ela fica contando as rugas do rosto e não tem tempo pra outra coisa.

Interna – Então me dá um beijo. (Expondo seus lábios chamativamente à outra)

Irmã – Você quer um beijo?Interna – Eu quero um beijo.Irmã – Você acha que merece um beijo?Interna – Eu acho que mereço um beijo.Irmã – Ela acha que merece um beijo.

Irmã ameaça beijá-la, mas abandona-a e come-ça a sair, devagar.

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Irmã – Só meninas bem comportadas merecem ser beijadas. Meninas que não ficam de segredinhos consigo mesmas.

Interna – (Com os dedos tremulantes nos lá-bios) Não – não faz isso – não! O que é um beijo? Só um, um só, antes de ir embora! O que é um beijo? Você quer que eu implore, que eu fique gritando pelo seu beijo. Mas eu não vou fazer isso. Eu não vou! Eu vou ficar aqui, quieta, esperando você voltar. Você é uma completa doente! Doente! Do-ente! Doente! Doente! (Repete “doente!” à exaustão, enquanto Irmã sai de cena. Entra música. Blackout).

Fim

Segredos, de Marici Salomão, foi dirigido por Ga-briel Vilela e interpretado por Helô Cintra e Arieta Costa no dia 13 de outubro, às 21h00.

* * *

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Marici Salomão é dramaturga e jornalista. Colabo-radora do Caderno 2 (O Estado de S.Paulo), de 1998 a 2004. Repórter e crítica de teatro da revista Bravo! Autora da premiada O Retiro dos Sonhos, Bilhete (di-reção de Celso Frateschi) e Maria Quitéria (direção de Fernando Peixoto), entre outras. É coordenadora do Núcleo de Dramaturgia Sesi-British Council e do curso de Dramaturgia da São Paulo Escola de Teatro. É jurada do Prêmio Shell de Teatro. Segredos foi dirigida por Gabriel Villela e Rodrigo Fregnan para o DramaMix.

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Cine BijouMário Viana

 

Personagens: 

Panfleto – cerca de 60 anos. Zelador de um cinema decadente na Praça Roosevelt.

Celso – 45 anos, bancário. Morador do centro. Riba – 20 anos. Maranhense, fala com sotaque,

mas sem folclorismo. Jeito de rapaz honesto.  O cenário é a plateia de uma sala de cinema. Cadeiras de madeira. Está vazio. É madruga-da. Dos fundos, entram Panfleto, Celso e Riba. Panfleto vem falando para Celso, que finge prestar atenção. Riba olha em volta, meio sem entender. 

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Panfleto (indicando) – Olha aí. É como eu disse. Maior tranquilidade. Vocês podem ficar à vontade aqui dentro. 

Celso – Quanto tempo? Panfleto – O quê? Celso – Quanto tempo a gente pode ficar

aqui? Panfleto – Ah! Normalmente, uma hora. Mas

hoje o movimento tá fraco. Acho que vou deixar vocês ficarem duas horas. 

Celso – Duas horas? Panfleto – Pelo preço de uma! Isso é que é

mais-valia, hein? Duas horas! Aliás... (esten-de a mão; Celso tira uma nota do bolso e lhe dá) Duas horas dá pra muita coisa. (embolsa o dinheiro e sorri) Divirtam-se. 

Panfleto está saindo, mas para um instante. 

Panfleto – Se precisar de qualquer coisa, é só chamar. Meu nome é Panfleto. 

Riba (estranha muito) – Sério? Panfleto – Não. Panfleto é apelido. O nome

mesmo eu nem lembro. 

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Panfleto sai. Celso e Riba ficam de pé, sem jeito. 

Celso (sorri) – Enfim, sós. (senta-se e chama o rapaz) Vem cá.

Riba (tempo) – Pra quê? Celso – Senta aqui. Vamos conversar. Riba – A gente já conversou lá na praça. Celso – Você não ouviu o que o cara falou?

Fica à vontade. 

Desconfiado, Riba senta-se na mesma fileira que Celso, mas com alguns bancos de separa-ção. Olha em volta. 

Riba – Isso aqui era um cinema? Celso – Ainda é. Decadente, mas funciona.

Nunca veio ao Cine Bijou? Riba – Faz tanto tempo que eu não sei o que

é cinema... Celso – Nesta sala eu assisti a tantos filmes

de arte! Riba – Que que é isso? Celso – Um tipo de cinema... diferente. Riba – Tipo filme pornô? 

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Celso (ri) – Às vezes. (levanta-se e senta-se duas poltronas mais perto de Riba) Você tem um sotaque tão gostoso de ouvir. De onde você é mesmo? 

Riba – Maranhão. Celso – Ah é, você falou. São Luiz, não é? Riba – Perto. De São José do Ribamar. Por isso

que eu tenho esse nome. Celso – Que nome? Riba – Ribamar. No Maranhão, toda família

tem um José de Ribamar. Na minha, calhou de ser eu. Mas todo mundo me chama de Riba. 

Celso – (saboreando o nome) Ribamar... Riba – Riba. É mais curto. E o senhor? Celso – Celso! (estende a mão, aproveita e pula

mais uma cadeira) Muito prazer. 

Riba cumprimenta, sempre desconfiado. Levan-ta-se. 

Celso – Onde você vai? Riba – Esticar as pernas. (pausa) O senhor faz

o que da vida? 

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Celso – Bancário. Riba – Que legal. Celso (irônico) – Nossa, demais! Riba – Será que tem emprego lá no seu banco

pra mim? (Celso ri) Eu faço qualquer coisa. Faxina, segurança... 

Celso – Você é muito novo pra ser segurança. Riba – Se eu tivesse mais estudo, até que podia

ser bancário. 

Pausa. Ambos não sabem o que falar. 

Riba – Por que é que o senhor deu dinheiro pro cara? 

Celso – Pra gente poder ficar aqui. Riba – Num cinema desligado? Se pelo menos

passasse um filminho... Celso – Assim não tem risco de ser assaltado,

nem de a polícia interromper a gente. Riba – Oxe! E a polícia ia interromper o quê? Celso – O que a gente estivesse fazendo de

bom. (bate na cadeira do lado) Vem cá, Riba. Deixa de coisa e senta aqui. O taxí-metro tá correndo. 

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Riba hesita. Ouve-se a voz de Panfleto, lá fora. 

Panfleto – Ô, dona Itália! Que bom que a senhora apareceu! Tô doido por um cafe-zinho. 

Celso – Senta aqui logo, antes que ele volte. Vem! 

Sem entender o que se passa, Riba senta-se ao lado de Celso. Panfleto enfia a cabeça na sala. 

Panfleto – Querem um cafezinho quente? Tá fresquinho. 

Celso – Agora, não. Mais tarde. 

Panfleto se retira. Celso olha em torno e coloca a mão na coxa de Riba, que fica tenso. 

Celso – Só assim, no susto, pra você sentar aqui perto. Que que foi? Algum problema? 

Riba – Não... Não, senhor.

Celso sorri e alisa a perna de Riba, que fica ain-da mais tenso. 

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Celso – (rindo) Calma... Eu não arranco pe-daço. 

Riba tira a mão de Celso de sua perna e se le-vanta. 

Celso – Que é que foi, menino? Riba – Não sou qualira, não, moço. Celso – Não é o quê? Riba – Não mordo fronha. 

Celso ri. 

Celso – Tá viajando, cara? Riba – Não viajei três dias e três noites pra, na

primeira dificuldade, deixar alguém me socar no rabo. 

Celso – Ah, não? Riba – Não. Celso – E veio até aqui dentro comigo fazer o

quê? Bater papo? Riba – É. A conversa tava boa lá na praça, daí o

senhor perguntou se eu não queria vir aqui pra esse canto. 

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Celso – E você veio! Riba – Na rua tá frio demais, Deus me defenda.

Não sei como vocês não vira tudo sorvete aqui em São Paulo. 

Pausa. 

Celso – (irritado, mas conformado) Quanto? Riba – O quê? Celso – Quanto você cobra? 

Riba demora um instante pra entender, mas entende.

Riba – Já falei que não sou disso. Celso – Tava fazendo o que lá em cima? Es-

perando a noite passar? Riba – Era! Perdi o último ônibus pros meus

lados, aí... Que horas são? Celso (olha o relógio) – Duas e quinze. Riba – O primeiro ônibus sai só às cinco. 

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Ficam os dois sentados, sem assunto. Celso está irritado, Riba está com sono. Quase cochila. Celso o acorda. 

Celso – Ei, não dorme, não! Riba – Tô com um sono da porra. Celso – Isso aqui não é dormitório. Riba – Sei lá que diacho de lugar é esse. Só sei

que eu queria dormir. Celso – Sabe por que aquele cara cobra ba-

ratinho? Porque as pessoas não vêm aqui pra dormir. Elas vêm trepar! Sabe o que é isso? (Riba sacode a cabeça, “sim”) Só vem veado que mora com a família ou bichas sem dinheiro pra hotel. Aí, o Panfleto apro-veita que o cinema tá fechado e vai ver na praça quem são os casaizinhos doidos pra dar umazinha. Por cinco mangos, os pombi-nhos ganham uma hora de privacidade.

Riba – Nessa sala? Celso – Você queria o quê, cama redonda e es-

pelho no teto? Por cincão, tá bom demais. 

Riba caminha pela sala e olha em torno. 

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Riba – Eu não curto macho. Celso – Eu, sim. Vem cá, vem. (Riba não vai)

Eu pago! Riba – (sentando-se em outra fileira) O senhor

tá maluco! Celso – Pra começo de conversa, senhor tá

no céu. Em segundo lugar... você não vai começar de novo com esse papo de que tava fazendo hora lá na praça. 

Riba – Se precisar que eu jure, eu juro. 

Celso presta atenção no rapaz. 

Celso – Você não é michê? (Riba olha espan-tado) Não transa por dinheiro? 

Riba – Acho que eu vou embora. 

Levanta-se. Celso chama. 

Celso – Para com isso. Tá frio pra caramba lá fora. 

Riba hesita. 

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Riba – Eu só vim pra esses lados procurar em-prego. Me disseram que tinha uma pizzaria aqui na praça precisando de entregador, eu vim.

Celso – E não estavam. Riba – Estavam. Mas queriam alguém com

experiência. Me diga: que experiência pre-cisa ter pra levar uma pizza na casa de al-guém? 

Celso – Não sei, eu nunca... bom, eu nunca pensei nisso. 

Riba – Pra piorar, o cara da pizzaria perguntou se eu conhecia a região. Aí, danou tudo. Eu não sei nem como cheguei aqui. Quanto mais conhecer as ruas em volta. Só que o fi-lho de uma égua só veio falar comigo depois que a pizzaria fechou. Eu cheguei às nove e ele só me atendeu depois da meia-noite! Pra dizer que eu não servia! 

Celso – É fogo. Riba – Sabe lá o que é ficar três horas na porta

de uma pizzaria, o estômago roncando de fome? É duro.

Celso – Não comeu nada a noite toda? 

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Riba – Saí com o dinheiro contadinho da pas-sagem. Mas agora tô bem. Só um pouco tonto. 

Pausa. Celso está perplexo. Ouve-se um trovão. 

Celso – Eu não acredito. Devia ter uns 15 garo-tos iguaizinhos a você dando mole na praça e eu fui pegar o único que não faz michê. 

Riba – Acontece. (Celso o olha espantado) Eu acho. (outro trovão) Será que vai chover? 

Celso – Era só o que me faltava. 

Pausa. Riba observa Celso com atenção. 

Riba – Eu não me conformo. 

Celso olha sem entender. 

Riba – Olhando pro senhor, ninguém diz. 

Celso suspira, incomodado. 

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Riba – Tanta mulher no mundo pra pirocar, o senhor vai logo atrás de macho. 

Celso – Escuta, moleque. Eu te chamei pra transar, não pra me passar sermão.

Riba – É que isso não tá certo. É esquisito! Celso – Problema meu. Quer trepar, muito

bem. Não quer, tudo bem também. Nin-guém morre por mais uma noite de pu-nheta. 

Pausa. Ouve-se um trovão. 

Celso – Vai querer me convencer que você nunca fez isso? (Riba olha) Safadeza com outro moleque? Lá no interior da Paraíba? 

Riba – Maranhão! Celso – Tanto faz. Não fez, não? (Riba acena

que não) Nem troca-troca? Riba – Ave Maria, Deus me proteja! Celso – Você foi direto da mais santa castidade

pra dentro de uma xoxota? 

Riba fica sem jeito, encabulado. 

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Riba – No começo, eu comia umas cabras da roça. 

Celso – Ah! Riba – Todos os moleques comiam. As bichi-

nhas tavam até viciadas. Viam a meninada, já iam pro barranco. 

Celso – Cabras? Cabras mesmo? Riba – Meu primo Zantônio uma vez queria

me convencer a comer uma galinha da granja do avô dele. Mas na hora eu fiquei com dó da coitadinha, achei que ela não ia aguentar. 

Celso – Muito delicado da sua parte. (pausa breve) Parou nas cabras ou atacou mais al-gum bicho das redondezas?

Riba – Deus o livre! Só uma vez eu tava que-rendo muito e não tinha cabra por perto...

Celso – Sei. Riba – Fiz um buraco no tronco da bananeira.

E enfiei o negócio lá. Celso – Numa bananeira? Riba – A gente abraçava a árvore e, se fechasse

os olhos, era direitinho como se estivesse abraçando uma quenga.

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Celso – Você fode uma bananeira e o esquisito sou eu? 

Riba – O senhor trepa com macho! Celso – São seres humanos. Quase todos, pelo

menos. 

Trovão forte. 

Riba – Acho que a chuva começou. 

Panfleto entra e senta-se na última fileira. 

Panfleto – Puta que o pariu! A noite já tava um miserê. Agora, com essa chuva, ferrou de vez. 

Riba – Tá chovendo muito? Panfleto – Caindo o mundo. Bosta! Nem se

apressem, viu? Não dá pra sair com esse toró. (sorri) Sortudos! Vão ganhar um monte de tempo grátis pra curtir o romancinho... 

Riba – Moço, escuta... Panfleto – Ó, podem ficar totalmente à von-

tade. Eu vou tirar um cochilo aqui, na boa.

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Barulho não me incomoda, gemido não me atrapalha. Boa-noite. 

Panfleto ajeita-se para cochilar. Riba está im-paciente. 

Riba – Moço, não é isso o que o senhor tá... Eu tenho namorada! Tinha. Mas era mulher mesmo. 

Celso – Deixa ele, porra. Não percebeu que ele não tá interessado nas suas explicações? 

Riba – Ele vai achar que eu sou veado. Celso – Eu também achei. Riba – Mas eu não sou! Celso – O homem certo no lugar errado. Ou

o contrário, quem sabe. Riba – Isso não tá direito. Celso – Vem cá! Você tá com sono, não tá?

(Riba faz gesto afirmativo) Então, fica quie-to. Se não é veado, pelo menos finge.

Riba – Eu não sei fingir essas coisas. Celso – Quando precisa, a gente aprende de

tudo nesta vida.

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Pausa. 

Riba – Eu só queria um trabalho. Celso – E eu queria sexo, também não conse-

gui. Empatamos. 

Panfleto resmunga, de seu canto. 

Panfleto – Vocês já estão discutindo a relação, é? Faz logo um meia-nove aí, ocupa a boca e para com esse falatório que eu tô com sono. O lumpesinato também tem direito ao descanso, porra. 

Pausa. Riba e Celso sorriem. Falam baixo. 

Celso – Sabe por que o apelido do Panfleto é Panfleto? Porque ele vivia distribuindo panfletinho de greve geral no tempo em que o Lula era metalúrgico. Ele era famoso aqui no centro. Andava com uma sacola deste tamanho lotada de tudo quanto era tipo de panfleto. Greve geral, morte ao f.m.i., salvem as baleias, o caralho. O muro caiu

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e o coitado do Panfleto ficou sem ter o que distribuir. Acabou virando zelador do Cine Bijou, onde ele vinha assistir aos filmes mais engajados. Z, Esse Crime Chamado Justiça, Sacco e Vanzetti... 

Pausa. Celso fica olhando para suas próprias recordações. 

Riba – E o que isso tem a ver com os veados da praça? 

Celso – O Panfleto acredita piamente que, alugando as cadeiras pros gays que querem transar e não têm onde ir, está solapando o sistema capitalista que mantém o prédio. Entendeu? Agora fica quieto e chupa meu pau! 

Riba – Qual é que é, porra? Celso – Você ouviu o que ele falou! (ordena)

Senta aqui do meu lado! (Riba se senta) Me abraça. 

Riba – Isso não. Celso – Então deixa que eu te abraço. 

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Celso passa o braço por cima do ombro de Riba e o abraça. Ficam um tempo assim. Riba, que estava tenso, cabeceia de sono. Celso fala mais suave. 

Celso – Encosta a cabeça no meu ombro. Riba – Não. Celso (puxando a cabeça dele em direção ao

próprio ombro) – Vai logo, menino. Tá cain-do de sono. Vai, relaxa.

Riba encosta a cabeça no ombro de Celso e logo começa a ressonar. Celso olha e sorri. Fala bai-xo, pegando a mão de Riba, que não reage. 

Celso – Faz de conta que a gente acabou de transar. Faz de conta que foi uma transa boa pra cacete. A melhor, a melhor de to-das as que você já teve até hoje. (olha para Riba) Pela carinha, você nem transou tanto assim... (sorri) Faz de conta que a gente gostou tanto que cochilou juntinho, como dois namorados que não querem que o dia amanheça. 

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Riba continua dormindo, encostado em Celso. Este encosta sua cabeça levemente no outro, fe-cha os olhos e sorri. Panfleto continua dormin-do na última fila. Luz se apaga lentamente. 

Fim

Cine Bijou, de Mário Viana, foi dirigido por Antonio Vanfil e interpretado por Cássio Inácio, Daniel Or-tega e Luiz Amorin no dia 13 de outubro, às 23h00.

* * *

Mário Viana é paulistano e teve seu primeiro texto teatral montado em 1993: Ifigênia. Trabalha regu-larmente com os Parlapatões (Pantagruel”, “Um chopes, dois pastel e uma Porção de Bobagem) e com a Cia. La Mínima (O Médico e os Monstros). Autor de Vestir o Pai, Natureza Morta, Carro de Paulista (com Alessandro Marson), Galeria Metrópole, Assim com Rose e O Amor do Sim. Escreve também para a televisão, como colaborador (Paixões Proibidas, Dance Dance Dance e Poder Paralelo).

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CavaloEduardo Sterzi

Personagens

PreválskiFalabella

O palco está vazio, à meia-luz. Preválski entra pelo fundo e caminha em diagonal até a frente do palco, parando no canto esquerdo, de costas para plateia, olhando fixo para o canto direito ao fundo. Segundos depois, Falabella também entra, dá uma volta circular pelo palco e para na posição para a qual Preválski olha. Prevál-ski e Falabella se encaram, imóveis, bufando de vez em quando, por aproximadamente um minuto. Ouve-se, então, uma campainha de

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ringue de boxe. Os dois caminham sem pressa até o centro do palco. Preválski se vira para a plateia, fixando o olhar, agora, no canto es-querdo ao fundo. Dobra um pouco os joelhos e inclina o corpo para a frente, em ângulo de mais ou menos 45 graus. Falabella se deita de frente sobre as costas de Preválski, que ar-queiam um pouco sob o peso, e também fica olhando para o mesmo ponto.

Preválski – Temos tempo. Não muito, é certo, mas não se preocupe. Tempo bastante. Mas não exagere. O senhor aí em silêncio. É me-lhor que comece a falar, ou não chegaremos a lugar algum. (Alguns segundos em silêncio. Preválski vira a cabeça para o lado, como se quisesse enxergar Falabella. Este permanece olhando fixo para o canto ao fundo.) Finge que não é com o senhor... Sei bem como é isso. Já estou acostumado. A questão, profes-sor – O senhor é professor, não é? Professor, poeta... Não é isso? Foi o que me disseram. (Com satisfação.) Professor Falabella! A questão, professor, é que sabemos pouca

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coisa um do outro. Que o senhor é profes-sor, eu sei. Ou poeta. Sim, sim... Poeta. E o senhor deve saber também alguma coisa de mim. Algo devem ter dito. Quando chegou aqui, certamente encontrou os outros. Falou com alguém. Ouviu histórias. Perguntou de mim. Agora estão todos escondidos, de to-caia. É assim mesmo. Sempre. Na hora de trabalhar, todo mundo some. Na hora de jo-gar conversa fora, aparecem. Mas a questão, professor, é que sei muito pouco do senhor. Nem mesmo sei se é professor ou poeta. De mim, disseram o quê? (Com voz irôni-ca) “Aquele lá é um burro de carga! Sim, professor, pode confiar no lombo! Aguen-ta, sim, professor! Pode se soltar! Dá até para dormir enquanto ele vai. Sem medo. Ninguém até hoje caiu. E se cair, o tombo também não é grande.” (Com a mesma voz de antes.) Não foi assim? (Fica em silêncio por alguns segundos.) O senhor se segure bem. (Falabella não se mexe.) Não vá atrás do que dizem. Não confie. Aqui, as coisas podem ficar feias de uma hora para a outra.

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No início, parece sempre fácil. Eu mesmo me engano às vezes. Acredito que vai ser diferente. Mas não. Sempre a mesma coisa. Duzentos metros, numa boa. Quinhentos metros, vamos bem. Mas então o caminho começa a ficar espinhoso, esburacado. É que aqui ainda estamos dentro da cidade. Lá embaixo – (aponta com o indicador para a frente) lá, professor! – lá já é descampado. Tem gente que diz: “O deserto”. Mas não é a palavra adequada. Tenho cuidado com as palavras, ainda mais quando estou falando com um professor. Com um poeta. Deser-to... Erro por erro, a cidade já é um deserto. Mais que lá. Lá pelo menos tem água. Na cidade, nem para beber. O senhor deve ter notado quando falou com os outros. O mau hálito. É de sede. Mas já estão todos acostumados. Uma gota aqui, outra ali. Tem gente que cospe para o alto, para pegar de volta. (Preválski vira novamente a cabeça para o lado, querendo ver Falabella.) É uma piada, professor. (Vira a cabeça mais uma vez.) Entendo o senhor não achar graça. Eu

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mesmo não vejo graça nas minhas piadas. Ninguém vê. Mas todos aqui já se acostu-maram com esta minha falta de graça. Aqui todo mundo se acostuma com tudo, como o senhor já deve ter percebido. (Em silêncio por alguns segundos.) Não é a sua primeira vez aqui, certo? Veio antes quando? Há dez, quinze anos? Época de grande movimento. Deve ter conhecido o meu irmão. Ele fazia o mesmo trabalho. Se chamava Preválski também. Toda a família está neste ramo. Quer dizer: estava. Agora só eu. Quem não morreu, está entrevado. Desgasta. Com o tempo, os joelhos viram farinha; as costas, uma tábua empenada. A cabeça começa a variar. O sol, o peso, o chão de buracos e es-pinhos. Isso quando não vem uma cascavel e pica. Tem muita cascavel por estes lados. O senhor vai ver. Vão cruzar pelo caminho. Para o senhor, aí em cima, não tem perigo. Mas, aqui embaixo, o perigo é praxe. Então é manter os olhos abertos. Até durmo de olhos abertos. E durmo enquanto caminho. Sim, sim... Parece mentira, mas não é. É só

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treinar com vontade e sem medo. Desde pequeno. Melhor desde que nasce. Chega uma hora em que já não se sente nenhu-ma diferença entre estar dormindo e estar acordado, e aí tanto faz deitar ou seguir no passo. E quem está aí em cima não perce-be. Agora mesmo: o senhor acha que eu estou dormindo ou acordado? (Espera pela resposta, que não vem.) O senhor parece ser tão inteligente, professor Falabella... Não vai arriscar um palpite? O senhor não é de conversa. Admiro quem é como o senhor. Eu não consigo. Gosto de falar. Preciso. Mas não digo nada que preste. (Silêncio por segundos.) O silêncio é de ouro. (Novo si-lêncio.) Em boca fechada – (Novo silêncio.) É melhor segurar firme, professor. Vamos atravessar o rio. O senhor não tem por que se preocupar. A água bate na minha cintura. Só nos pontos mais fundos é que chega ao peito. Claro, quando não chove. Mas aí eu prendo a respiração e aperto o passo. Cruzo o rio rápido, rápido. Meu irmão era bom nisso. Ele que me ensinou. Aguentava

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meia hora sem vir à tona. O senhor acredi-ta? Muito bom. Está com sede? Quer um pouco de água? Pode beber. Eu me abaixo um pouco, e o senhor bebe direto do rio. Não quer? (Silêncio por alguns segundos.) O senhor quer saber do que eu gosto mesmo? Sabe aqueles filmes de guerra, em que um soldado é ferido e um outro vem e o coloca nas costas? Os inimigos estão avançando, é preciso ir embora, todos em retirada, mas um soldado está caído no chão, sangran-do, quase morto, não consegue se mexer. Só vai se salvar com a ajuda de alguém. Mas todos passam correndo e não veem que pede ajuda. Ou fingem que não veem. Alguns fingem. Querem se salvar. É então que chega o herói. Um esforço danado para colocar o ferido nas costas. Sangue por todo lado. E lá vão os dois, para fora do campo de batalha. Gosto de imaginar que sou este soldado, o que carrega o outro nas costas. (Empolgando-se progressivamente, quase de-lirante.) Eu, soldado – Caminhamos pelo mato, o senhor nas minhas costas. Tento

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ir o mais depressa que posso. Ouvimos as explosões ao longe, e o assovio das balas que raspam em nós. Chegamos finalmente ao acampamento. Somos recebidos com festa. Nos mandam para casa. Desfile em carro aberto pelas ruas, a sirene dos bombeiros berrando, todo mundo saindo de casa para nos saudar. Confete, serpentina. Festa e festa. Somos levados ao palácio, o presi-dente nos recebe na porta, nos abraça, nos conduz até uma sala cheia de autoridades e fotógrafos, agradece pelo serviço prestado à pátria. Medalhas para mim, medalhas para o senhor, que eu salvei... (Voltando ao tom de voz anterior.) Não... Não desejo nada de mal para o senhor. Deus nos livre. Não quero, não, que o senhor se fira. E estamos bem longe de qualquer campo de batalha. (A partir deste momento, a voz de Preválski deve ficar sempre um pouco mais lenta, como se ele se deixasse dominar pelo cansaço.) Tudo bem que guerra existe em toda parte. Principalmente onde ninguém vê, ou finge não ver. São como as cascavéis,

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de tocaia para dar o bote. Não quero mal a ninguém. Muito menos ao senhor, de quem tanto dependo. Claro, se o senhor aprovar o trabalho. Está satisfeito, não está? Praticamente um herói, aos seus pés. Um herói confortável, com bom ritmo, que sabe quando é hora de trote, quando é de galo-pe. Que sabe desviar das cascavéis e das guerras. Que sabe dormir sem fechar os olhos, e seguir andando enquanto dorme. O senhor, quando dorme, fecha os olhos? (Preválski vira o rosto para o lado, tentando ver Falabella. ) Está dormindo, não está? E eu aqui falando sem parar. Um chato. Não quero incomodar. Esqueça o que eu disse. Só bobagens. Esqueça mesmo. Mais algumas horas e chegamos lá. Não é longe. O senhor confie. Sei o caminho. Não me perco. Não pense, não, que estamos an-dando em círculos. Pode dormir tranquilo, que eu também vou dormindo e sonhando aqui embaixo. Sem fechar os olhos. Sou treinado. Sou herói.

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Preválski não aguenta mais o peso de Falabella sobre suas costas e desaba. Falabella consegue saltar de cima de Preválski a tempo de não cair também no chão. Preválski, gemendo, tenta re-erguer-se, mas Falabella o impede, desferindo-lhe fortes e repetidas chicotadas no seu corpo, com o chicote que trazia escondido na roupa. Não se ouvem mais os gemidos de Preválski, apenas os urros de prazer sádico de Falabella. A surra continua por alguns segundos. Toca novamente a campainha de ringue de boxe. Preválski fica estendido no chão, agonizando, a boca escancarada, mas sem emitir nenhum som. Falabella acalma-se e retorna para a sua posição inicial, no canto ao fundo do palco. A luz se apaga abruptamente.

Fim

Cavalo, de Eduardo Sterzi, foi dirigido por Marcio Aurelio e interpretado por Marcelo e João Carlos Andreazza no dia 14 de outubro, às 2h00.

* * *

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Eduardo Sterzi nasceu em Porto Alegre em 1973 e vive em São Paulo desde 2001. Seu primeiro livro, Prosa (2001), conquistou o Prêmio Açorianos de Li-teratura na categoria Autor-Revelação em Poesia. É autor também de dois volumes de estudos literários, Por que Ler Dante e A Prova dos Nove. Alguma Poesia Moderna e a Tarefa da Alegria (ambos de 2008), além de ter organizado Do Céu do Futuro. Cinco Ensaios sobre Augusto de Campos (2006).

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Sad ChristmasMário Bortolotto

Personagens

MarcosEmerson

(Marcos está sozinho em casa. Barulho de cam-painha. Ele atende. Aparece Emerson na porta segurando um pacote de supermercado)

Emerson – Sua mulher tá aí?Marcos – Não. Foi passar o Natal com a fa-

mília. Emerson – Sinto muito. Marcos – A gente não precisa escrever uma no-

vela por causa disso. Você nem gosta dela. Emerson – É.

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Marcos – Muitos amigos meus não gostam. Outros gostam até demais.

Emerson – Eu sou seu amigo?Marcos – O que você tem aí?Emerson – Ah, é cerveja. Marcos – Hum.Emerson – Quer uma?

(Marcos pega uma latinha. Abre e dá um gole)

Marcos – Tá quente. Coloca o resto na gela-deira. (Emerson vai até a cozinha. Pausa. Marcos senta-se em uma poltrona. Emerson volta segurando uma latinha de cerveja) Você já tá meio alto.

Emerson – É. Eu andei bebendo.Marcos – Hum.Emerson – (senta-se em outra poltrona) Faz

uma semana que eu tô bebendo. Sabe como é.

Marcos – Hum. Emerson – É. Com pequenos intervalos só-

brios. (pausa) Muito pequenos. Escuta, não tem perigo dela voltar de repente?

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Marcos – Não. Ela gosta da família dela. Emerson – Sabe, Marcos, eu estive pensando.Marcos – Na irmã do Jarbas?Emerson – Como é que você sabe?Marcos – Acho que todos os caras da Bela

Vista pensam na irmã do Jarbas. Emerson – Pobre Jarbas. (Pausa) Mas eu não

sou da Bela Vista. Marcos – Os pensamentos maliciosos a res-

peito da irmã do Jarbas não conhecem fronteiras.

Emerson – Ela é um negócio, não é?Marcos – Você pôs a cerveja no congelador?Emerson – Na gaveta. Marcos – Vai demorar uma semana pra ge-

lar. Emerson – Eu vou passar pro congelador. Marcos – Faz isso. Como é que você conse-

guiu dinheiro pra cerveja?Emerson – Ah, é uma longa história. Marcos – Eu não pretendo ir a lugar algum

nas próximas 48 horas. Tente ser sucinto. Se não, eu aguento.

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Emerson – Você sabe, aquela garota com quem eu tava morando em Campinas.

Marcos – Sei. O que é que tem ela?Emerson – Ela me pagou pra ir embora da

casa dela.Marcos – É mesmo, é?Emerson – É. Ela falou: “Não aguento mais

você. Não aguento mais a sua cara. Não aguento mais seu mau humor. Não aguento mais ver você destratando minhas amigas. Quero que você saia da minha casa”. Eu então falei: “Eu não vou não. Não tenho pra onde ir”. Ela então disse: “Quero que você se dane. Eu vou sair. Quando eu voltar, não quero encontrar você aqui”.

Marcos – Será que a cerveja tá melhor?Emerson – Você quer dizer, mais gelada?Marcos – Menos incandescente. (Marcos

levanta-se e vai até à cozinha)Emerson – (Andando atrás dele. Para na porta

da cozinha. Não é possível ver Marcos em cena. Só se ouve a voz dele) Quando ela voltou eu tava lá.

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Marcos – Foi o que eu imaginei. Emerson – Tava lá, sentado no sofá, assistin-

do National Geographic. Cara, eu adorava aquela tv a cabo.

Marcos – (Entrando na sala segurando uma latinha de cerveja. Entrega outra lata a Emerson) E o que foi que ela fez?

Emerson – Ela disse: “Eu não falei que era pra você ir embora?”. Eu disse: “Eu não vou. Não vou. Não tenho pra onde ir”. Ela disse que ia chamar a polícia.

Marcos – (Voltando a sentar-se na poltrona) Hum.

Emerson – Eu falei: Chama. Pelo menos lá eu tenho lugar pra comer, pra dormir. Ela, percebendo que não ia conseguir nada, resolveu apelar.

Marcos – Foi aí que ela te deu uma grana?Emerson – É. Ela falou: “Se eu te der uma

grana, você vai embora?”. Eu disse: “Aí pode ser”. Eu ainda banquei o difícil, mas deixei claro que estava aberto a negociações.

Marcos – Sei como é.

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Emerson – Ela então pegou o talão de cheques da sua bolsa. Quando vi aquilo, fui categóri-co e conclusivo: “Cheque eu não aceito”.

Marcos – Você disse isso? Cheque eu não aceito?

Emerson – É isso aí. Cheque eu não aceito. Marcos – E ela?Emerson – Saiu pra trocar o cheque. Você

tem que considerar que estamos falando de um fato que aconteceu no período noturno quando os bem-aventurados e prósperos negociantes já estão repousando em seus sagrados lares.

Marcos – Claro. Emerson – Ela saiu pra trocar o cheque. Marcos – Ela não tinha cartão? Não podia

passar num banco 24h00oras?Emerson – Não existem mais bancos 24h00o-

ras. Você sabe disso. Marcos – Eu não sei. Eu não tenho conta em

banco. Emerson – Não existem mais bancos 24h00o-

ras. Os caras se borram com medo dos as-saltos. Era uma boa ideia essa dos bancos

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24h00oras. Mas eles não existem mais. O mercado informal do latrocínio acabou com mais essa livre iniciativa do sistema bancário.

Marcos – E aí ela trocou o cheque, te deu o dinheiro e você foi embora?

Emerson – Foi mais ou menos assim. Antes eu acabei de ver o programa do National Geo-graphic. Tinha que saber o que ia acontecer com o elefantinho que havia se perdido da manada.

Marcos – Eles vivem fazendo isso. Emerson – Como é que pode, Marcos? Os

pobres elefantinhos. Eles sempre se perdem das manadas.

Marcos – Sempre. Emerson – Eu realmente não suporto isso.

Pobres elefantinhos. Fico deprimido o dia inteiro quando acontece esse tipo de coisa.

Marcos – E aí você comprou cerveja e ficou bebendo.

Emerson – É... quer dizer, não apenas cerveja, você sabe.

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Marcos – Você é um merda mesmo.Emerson – E você se acha muito, não é, Mar-

cos? Você sempre se achou pra caramba. Sempre sentado na merda e se comportan-do como se fosse um rei, um lord inglês ou qualquer um desses caras posudos.

Marcos – Você veio aqui pra me ofender? Emerson – Qualquer hora dessas eu vou pisar

na sua cabeça. Vou acabar com você. Marcos – Você tá bêbado. Emerson – É. E daí? Mesmo bêbado eu ainda

acabo com você. Eu piso na sua cabeça. Eu te destruo. Eu pulverizo você.

(Marcos levanta-se e anda devagar em direção a Emerson. Fica frente a frente com ele, muito próximos)

Marcos – Emerson. Emerson – O que é?Marcos – Eu vou te dar uma porrada.

(Pausa. Emerson mostra-se sinceramente ofen-dido)

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Emerson – Eu vou embora. Nunca me senti tão ofendido. Eu só volto aqui no ano que vem.

Marcos – Não se apresse. O ano que vem é daqui a cinco dias.

(Emerson sai. Marcos fica sozinho. Liga a tv. Ouve-se nitidamente a voz da locutora do Na-tional Geographic)

Fim

Sad Christmas, de Mário Bortolotto, foi dirigido por Otávio Martins e interpretado por Alex Gruli e Nelson Peres no dia 14 de outubro, às 4h00.

* * *

Mário Bortolotto é escritor, dramaturgo, diretor de teatro e ator. Nascido em Londrina (pr), tem dois romances publicados, um livro de poesias, um livro de textos de jornal , um livro com textos de seu blog (Atire no Dramaturgo) e quatro volumes com seus

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textos de teatro. Ganhou o Prêmio Shell de Teatro de “Melhor Autor de 2000” pelo texto Nossa Vida não vale um Chevrolet, e Prêmio apca de 2000 pelo Conjunto da Obra. É diretor do Grupo de Teatro Cemitério de Automóveis.

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Vinte e UmLúcia Carvalho

Personagens

Gellysson – Rapaz de 23 anos. Veste roupa de “mano”, bermuda, casaco com capuz, tênis velho de basquete.

Alan – Homem de cerca de 30 anos. Roupa amarrotada, cara de cansado, olheiras.

Quadra de basquete em praça pública do centro de São Paulo. Cimentado no chão, alambrado, cesta de basquete. A cesta pode ser imaginária ou apenas uma marcação na parede, foto ou imagem. Uma bola no chão, um rádio ao lado. Luz de noite, madrugada. O rapaz está jogando bola sozinho quando um homem entra devagar

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e cautelosamente, vestindo roupas normais de trabalho. Aparentemente cansado, olha o outro jogando por um tempo segurando no alambra-do. Música de rap tocando. Quando eles falam a música abaixa um pouco, mas toca durante toda a peça. Os dois passam toda a peça jogan-do basquete e movimentando-se pelo palco ao redor da cesta.

Gellysson – (percebe que o outro está observan-do, mas continua jogando) E aí, meu.

Alan – (balança a cabeça) Ôpa.Gellysson – Falaí.

(Gellysson joga a bola na cesta, pega nas mãos e olha para Alan)

Gellysson – Tá olhando aí um tempão, mano. Alan – (distraído) Tava pensando outra coisa,

não estava nem te vendo. Desculpaí.Gellysson – Só.

(Silêncio, Gellysson avalia Alan)

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Gellysson – Quer tirar um vinte um, mano? Alan – Eu? Jogar?Gellysson – Tá a fim? Chega aqui.

(Alan se aproxima do rapaz, entrando na qua-dra. Tira o casaco e coloca de lado. Gellysson manda a bola pra ele).

Alan – (segura a bola, parado) Não sei jogar basquete.

Gellysson – Isso aqui é só de recreação, véi.

(Alan tenta desajeitadamente jogar a bola na cesta)

Alan – Dá não. Olhaí.Gellysson – Fica frio. Como você chama?Alan – Alan.Gellysson – Alân, pô, nome do caralho,

“Alân”.

(Gellysson para de jogar, segura a bola e vai até Alan pra cumprimentar)

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Gellysson – Pode me chamar de Géli, véi.Alan – “Géli”? Gellysson – Meu nome é Gellysson. Parada

dura esse nome, mano. Com dois ele, dois esse e ipisilom. Gellysson. Mas os neguinho me chama de Géli.

Alan – Ah.Gellysson – Cê num é muito de papo, né? Alan – Tou com um monte de problema, é

isso.Gellysson – Tu tava no trampo até agora? Te

cuida, isso aqui é centro, se liga, tá cheio de pivete, tu ai todo bacana. Cuidado com as quebrada, mano. Eu sô da paz, mas tá cheio de neguinho aí.

(Alternam-se jogando a bola na cesta e um para o outro)

Alan – (suspira) Que se foda. Gellysson – Tem que sair dessa e acreditar,

mano. Tu perdeu a vaga no trampo? Por causo disso que você tá ai frebento? (pausa) Aíó, fez cesta, véi.

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Alan – Não, não perdi emprego não. Não é nada disso, meu.

Gellysson – Se eu tivesse nascido playboy, mano. Se eu tivesse nascido playboy os ba-gulho eram diferente.

Alan – Quase, no aro. Até que eu tô melho-rando.

Gellysson – Se concentra no aro e regula a força. Vai com fé.

Alan – Hoje não tô a fim de muita fé, Géli.Gellysson – Ó. Eu tinha tudo pra ser pivete

marginal, tinha tudo mano. Nasci na peri-feria, meus mano de infância tudo tão no crime, mas eu tô a fim de felicidade. Entro nessa de droga não. Meu negócio é esporte, mano.

Alan – Você treina?Gellyson – Não, num dá. Só na brincadeira.

Depois do trampo eu sempre venho aqui. Trabalho ali na farmácia. (aponta para o lado) Ali no seu Nelson. Venho aqui pra se tranquilizar, mano.

(Silêncio longo, os dois alternam jogando)

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Alan – (hesita) Briguei pra caralho com ela ontem.

Gellysson – Foi mulher que te deixo assim, mano?

(Alan joga a bola na cesta com força)

Alan – É. Pode ser.Gellysson – Tenho uns companheiro que vive

tendo problema com as mina. Eu tenho minhas gata, mas num envolvo. Prefiro en-volver com bola, com as música aí.

Alan – (aponta) Ela tá no hospital, tô vindo de lá.

Gellysson – Tua mina, véi? Mina ou patroa? A do lance da briga?

Alan – Minha esposa, cara. A Paula.Gellysson – Lance pesado, cara? Alan – Acidente de carro.Gellysson – Mau, mano, mau...

(Silêncio)

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Gellyson – Deus te ajuda, cara. Tem que ter fé no grande.

(Tempo, jogam em silêncio)

Alan – Puta cesta. Três dois pra você.Gellysson – (sorri) A música, cara. Eu tô is-

pirando. Alan – Nunca fui bom de esporte. Nem futebol

eu jogava no colégio.Gellysson – Esporte é só alegria, mano. Tem

que entrar na balada.

(Vão se revezando nas jogadas, Alan correndo atrás da bola, arremessando)

Gellysson – Olhaí, cê quase deu uma enter-rada, mano.

Alan – Nem percebi. (pausa, fala sozinho) Brigamos pra caralho ontem, eu e a Pau-linha.

Gellysson –Tô entendendo não. Antes ou de-pois da mina bater o carro e ir no hospital?

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Aió, seis pra mim.Alan – Antes. Na madrugada de ontem à noite.

A gente nunca brigou assim.

(Gellysson pega a bola e pula na cesta)

Gellysson – Tem que ser guerreiro, véi. A dona deve tá num hospital de bacana. Pa-rada boa, fica frio.

Alan – Ela gritou, bateu porta, saiu brava. Tava brava pra burro.

Gellysson – Agora que tô entendendo, cara. Vocês brigaram, ela foi pra rua e bateu o carro. Sete. Ainda bem que não foi assalto, velho. Os neguinho vê madama e faz qual-quer coisa pra catar bolsa, celular. Inda mais na madruga.

Alan – É que eu cheguei de novo bêbado em casa. Maior pifão, desentendido, nem aí com ela.

Gellysson – Tem que tratá bem as gata, mano. Entendo de mulhé. Tem que ser só nos carinho, mano. Nos aconchego.

Alan – Foi tudo muito longe, meu.

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Gellysson – Ó. Mas esse lance de compro-misso comigo não pega. Num envolvo mes-mo, já falei. Trato bem as gata, mas num envolvo.

Alan – Olha... Pisei na jaca mêêêsmo... Gellysson – Álcool é coisa do diabo, mano.

Álcool, droga. Pode não. Oito, mano.Alan – Ela falou que eu num tinha que me

defender que ela tinha razão, berrava lá feito louca. Cinco eu.

Gellysson – Me chamaram pra entrar pros atleta de Cristo cara. Lance legal. Mas seu Nelson pega muito no meu pé, num sobra tempo. Dez.

Alan – O que você está fazendo aqui, Geli?Gellysson – (se atrapalha, surpreso) Eu... Eu

tô esperando uns mano ai pra jogar, Alân.Alan – (distraído) Puta briga horrível, meu.

Putz, coisa de grana, só coisa podre, puta que pariu. Sete eu.

Gellysson – Só. Doze.Alan – Pra que aquele apartamento daquele

tamanho, porra? O pai dela só deu pra me ver não conseguir pagar a porra. Filho de

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uma puta.Gellysson – Quatorze aí, mano.

(Silêncio, batem bola)

Gellysson – Olhaqui ô Alân.Alan – Que é?Gellysson – Tu tem que pará com esse lance

da ácool ai, véi.Alan – (suspira) Daí a Paulinha começou cho-

rar. Nunca sei o que eu faço quando elas choram. Oito.

Gellysson – Meus irmão, dois deles que eu tenho quatro, dois dele se envolvero com esse lance de bebida e droga e tão tudo em cana, véi. Minha mãe tá que só chora, a veia não conforma. Tô no dezessete, mano.

Alan – Daí ela pirou. Pirou mesmo. Dez, eu. Gellysson – Tá jogando bem, mano. Alan – Saiu, meu. Puta estranho a Paula sair à

noite, cara. Mulher não larga casa, marido. Gellysson – Tem uma mina minha que eu

gosto mais que as outras. A Cíntia. É mó gata a Cíntia. Aió, pega. Tou no dezenove,

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cara.Alan – (joga a bola com força) Tava com tanta

raiva que jogou o pote lá, o pote lá das cha-ves em mim. Espatifou o treco na parede.

Gellysson – Os lance dos período delas, véio. As fúria dos período, cara. Diz que elas fi-cam tudo maluca. A Cíntia nunca vi fazer assim. Mas dizem.

Alan – Aquela berraria deve ter acordado o prédio todo.

(Gellysson avalia o outro devagar)

Alan – Tava bebaço, meu. Bebaço.Gellysson – Coisa do diabo as bebida,

mano.

(Silêncio)

Alan – Uma hora parei, meu. Fiquei só lá olhando ela gritar pensando, puta que louca.

Gellysson – Aió. Tô quase no vinte um, mano. Fica esperto.

(Silêncio, Alan pega a bola de novo)

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Alan – (joga com força de novo a bola, mais vio-lento ainda) Mas pô! Ela atirou aquela porra do pote em mim, cara! Podia machucar, pô! Ficou aquela cacaiada no chão.

Gellysson – Bom que tu chegou, hoje num pintou nenhum parceiro. O Cascão e o Pé deram o cano, pô.

Alan – Isso que dá casar com bêbado. Ela tem toda razão de gritar.

Gellysson – São os cara aqui do bairro, esses ai que eu falei. Cascão trabalha na obra ali, é lestricista. Ninguém é involvido não, gente fina.

Alan – Quer saber? Fiquei puta aliviado dela sair.

Gellysson – A gente precisa de amigo e ativi-dade mano. Tem que tê atividade e fé, senão bebe e faz essas paradaí. Tá foda chegar no vinte um.

Alan – Olha, eu sei que era noitão quando eu cheguei. Mas tava mansinho, deitei, abracei a Paulinha.

Gellysson – Eu falo isso pros muleque, tem

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que se envolvê nas atividade do bem.Alan – (joga com força) Mas ela já veio empur-

rando, esquivando, nojentinha. Gellysson – Eu já envolvi com lance errado,

cara. Sei como é. Quase cabei em cana, mano.

Alan – Começou a empurrar, empurrar assim como se tivesse nojo, cara.

Gellysson – Os atleta de Cristo, cara. Vô entrá nessa um dia. Os cara são tudo organizado.

Alan – Dá licença cara, aquilo foi me dando uma coisa, comecei a ficar excitado pra caralho. Olha, quando bebo eu sinto as-sim bem pra caralho. Saco, não saio desse quinze.

Gellysson – Mas seu Nelson pega muito no meu pé, não tenho tempo.

Alan – Puta tesão e ela embaçando, falando que não aguenta minhas pisadas, que eu era um bêbado que isso, que aquilo, que devia ter mulher na jogada, que isso, que aquilo.

Gellysson – Eiiita seu Nelson... Alan – Puta raiva, mulher não entende como é

homem, porra. (muda o tom) Sério, num sei

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por que é que eu tive tanta raiva da Paula. Não sei por que que eu avancei daquele jeito.

(Silêncio, os dois jogam. Gellyson estranha o outro e fica subitamente calado, observando)

Alan – Puta, devo ter machucado a Paula. Gellysson – Tu comeu a patroa à força,

cara?Alan – (um pouco exibido) Daí ela ficou lá,

chorandinho, nhe-nhe-nhem, falando: “Cretino, para, para, cretino”. Odeio mu-lher choramingando.

Gellysson – (meio bravo) Véi... Alan – Na hora deu a louca. Mandei um foda-

se. Gellysson – (irritado) Mau, cara, mau.

(Gellysson para de jogar, segura a bola e olha para Alan)

Alan – E daí ela... Gellysson – (interrompe, sério) É o seguinte,

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mano. Pode parar já essa história aí.Alan – Que foi?Gellysson – (avança sobre Alan, bravo, falando

alto) Escuta aqui, mano. Se tu não tivesse arrependido eu te quebrava a cara. Mulher não. Se neguinho encostar nas minha irmã ou nas minha gatas morre. Vou preso, mas dô uns pipoco e furo o cara todo.

Alan – (assustado) Qué isso Géli?Gellysson – (agressivo) Olha só, eu sou do

bem, mas tem coisa que me descontrola. Treta com mina não pode. (berra) Não pode, mano!

Alan – (acuado) Olha, eu...

(Gellysson passa a bater a bola em silêncio no palco, respirando devagar. Alan fica assustado, recua e tenta ir embora)

Alan – Bom, meu, tá supertarde, tô cansado pra caralho e...

Gellysson – (arremessa a bola com força) Vai jogar até o fim, mano. Agora tu fica aqui.

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Alan – (assustado) Olha, Geli...Gellysson – (agressivo) Tem medo de ho-

mem, mas não de mulher, mano? Joga ai. Vai, vamo!

(Alan se encolhe e joga a bola)

Alan – Calma, cara. (fala baixo) Dezessete, olhaí.

Gellysson – (respira alto e anda pela quadra batendo a bola) Tu tem que parar de be-ber, mano. (tempo) Tou empacado nesse dezenove.

Alan – (hesita) Olha, espera, tou tentando relembrar a cena. O... o... problema da me-mória alcoólica é que ela não é seletiva e...

Gellysson – Entendo disso não. (aumenta o tom e arremessa com força, gritando) Mas não pode chegar perto de mulher.

Alan – (gagueja) Exagero, Geli, não foi tanto assim, cara.

Gellysson – (para de jogar e segura a bola) Mano, tu é muito violento cara.

(Alan fica parado em silêncio)

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Gellysson – (ameaça) Tu ainda apanha, cara.

Alan – Tou arrependido de tudo, Geli, da be-bedeira, da violência, do dane-se, eu...

Gellysson – Tu é muito bandido. Tu num presta, mano. Para com isso.

Alan – (confuso) Eu sei o que eu perdi, Geli. A Paula tá lá, eu tô com a mesma roupa até agora.

Gellysson – Tem que ser tudo só alegria, tem que cuidar das mina. Olha. Mais uma e eu faço vinte um, mano.

Alan – Vai logo aí. Gellysson – (interrompe, sério) Você devia en-

trar pras igreja, Alân. Errei. Voltei pros onze, mano. Mas ei ai? A dona saiu e daí?

Alan – (confuso) Saiu e eu fui dormir, cara. Gellysson – Doze aí. Já chego na tua frente,

véi.Alan – (fala rápido, medroso) Ai veio o telefone.

A polícia, bombeiro, cara. Puta merda, a Paula. Eu dormindo, ela lá... Dezoito.

Gellysson – A bebida, véi. A bebida esbagun-

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ça a cabeça.Alan – Não sei como resolve essa merda de

coisa casamento, cara. (muda o tom) Ô Geli, todo mundo tem problema de casamento, cara, você é novo não sabe, quantos anos você...

Gellysson – (interrompe engrossa a voz) Olha lá. Quando tu tiver no desespero vem bate bola aqui com nóis que somo pobre mais tudo batalhador. Opa. Cheguei no dezoito também. Muda a vida, cara. Vinte. Opa.

(Gellysson joga de novo, erra e Alan pega a bola. Encesta).

Alan – Vinte também. (suspira e sorri) Gellysson – Ta na hora. Alan – É.Gellysson – Vai, é tu.

(Gellysson começa a berrar bem alto)

Gellysson – (sacana) Eeerrrrrrôôôôôôô... Errrrrrôôôô...

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Alan – Merda, errei. Tua vez.Gellysson – (mira e joga a bola) Tsc. Também

errei. Alan – Agora ou nunca. Gellysson – Errou. Eu.

(Gellysson olha para o lado e para com a bola na mão, estático)

Gellysson – Iiiiiiiii mano...Alan – Que foi, Geli?Gellysson – Eiiii... Sujeira, mano. Sujeira.

Gambé!Alan – (olha para trás) Que é que...

(Gellysson vira-se, pega um pacote dentro da calça, esconde no casaco de Alan e sai correndo com a bola de basquete na mão).

Gellysson – (virando-se e começando a correr) Valeu ai ô mano!

(Barulho de sirene, luz de polícia, barulho de botas, gritos).

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Alan – (confuso) Ei, ei, eu...

(Entra um policial em cena e segura violenta-mente Alan, começando a revistá-lo. A luz vai apagando devagar, enquanto ele fala)

Alan – Ei, calma, meu, eu não tenho nada a ver com esse cara, olha, ele colocou alguma coisa no meu casaco, ei peraí, ei meu cara, espera... minha mulher está no hospital ali, cara, hoje não... eu estava só passando entrei pra jogar, ei, por favor, vamos conversar...

Fim

Vinte e um, de Lucia Carvalho, foi dirigido por Didio Perini e interpretado por Celso Melez e José Trassi dia 14 de outubro, às 6h00.

* * *

Lúcia Carvalho, paulistana nascida em 1962, é ar-quiteta, formada pela fau-usp, além de cronista,

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escritora e dramaturga. Foi coautora do livro sobre espaços escolares distribuído pelo mec para diretores de escolas públicas do Brasil, sob o título Livro do Diretor: Espaços & Pessoas, Cedac, 2002, publicou em diversas coletâneas com outros escritores. Atual-mente tem um site de crônicas, o Frankamente... em parceria com o site Itodas, da uol. Possui crônicas publicadas na Revista da Folha de S.Paulo, além de colaborar com sites na Internet e participou das Satyrianas em 2007 e 2008.

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Um CháPriscila Nicolielo

Envelopes vermelhos e grandes, papéis brancos e uma caneta no chão.

Ela – Ele aparecia às terças e quintas-feiras pela manhã. Logo depois que a minha irmã saía para trabalhar. Quando o vi pela pri-meira vez, ele falava muito. Dos buracos na rua, do cansaço, do frio que faz doer o ouvido, da sede que sentia. Não falava comigo, mas com a vizinha da casa rosa da frente. Pediu chá. Mais tarde soube que esse era um costume seu. Impossível negar uma xicrinha a ele, dono do sorriso mais encantador que eu já tinha visto até aquela manhã de terça-feira.

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Eu parada atrás da cortina reparando nele, em seus pés que entravam na casa rosa da vizinha da frente.

O nome dele era Pedro. Hoje em dia anda muito em moda. Pedro. Mas naquela época soava antiquado. Ele era exatamente como eu imaginei: mais velho. Seja bem-vindo, final feliz. Pode entrar, te sirvo um chá bem quente.

Chovia lá fora como não chovia há muito tem-po por aqui. As cartas, mesmo dentro da bol-sa de lona de Pedro, viraram uma pasta de papel, a tinta das canetas borrou, transfor-mando endereços em manchas. Um desses, o meu: qualquer coisa no meio de qualquer rua da periferia. Era uma quinta-feira quan-do Pedro surgiu tocando a campainha. De camisola, corri até o olho-mágico. Adoro olho mágico. Olhos mágicos, como os de Pedro, com a cara enfiada no buraquinho da porta. Começou a bater palmas. Ele se afastou um pouco e pude ver o seu nariz grande, cheio de cravos na ponta. Um bi-gode malfeito, uma boca fina e um queixo

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furadinho. Pedro tinhas rugas nos cantos dos olhos. Gritou “Ó o carteiro!”. Eu poderia ouví-lo gritar por horas ou sussurrar o meu nome, no meu ouvido. Ele estava ensopado. Ao me ver, sorriu. Me entregou o envelope molhado. O cheque do banco, pensei e es-queci um segundo depois com a mão de Pe-dro tocando a minha. “Assine aqui e aqui.” Enquanto escrevia o meu nome completo, que é como assino desde os treze anos, Pe-dro olhava por dentro da minha camisola. Fingi que não vi. Nessa noite dormi com duas caras: a minha amassada no travesseiro e a de Pedro, ainda borrada na memória. Um dia decoro aquele rosto!

Foi depois de Pedro que entendi o que era devaneio. Antes, só da boca pra fora. Na sexta ensaiava o nosso próximo encontro, no sábado eu levava Pedro para ver as estrelas deitado ao meu lado no chão de um parque, no domingo ele me surpreendia com uma carta, na segunda planejávamos o nosso casamento, eu usaria um vestido branco de rendas. Na terça... Terça era dia de Pedro!

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(silêncio) (desconfiada) Mas Pedro não veio. Pedro desapareceu.

Ela começa a escrever nos papéis brancos. Do-bra-os e os encaixa nos envelopes vermelhos.

Ela – Não tenho recebido cartas ultimamente. Mamãe de vez em nunca é que nos liga. “Tudo bem? Tá chovendo aí? Então tá bom. Tchau.”

Ela continua a escrever as cartas.

Ela – (entusiasmada) Mando duas por semana! Uma hora ele aparece. Pedro retornou ao meu portão na outra terça. Quantas situa-ções eu imaginei até aquela terça! Parado de frente para a garagem, Pedro ajeitou o cabelo com os dedos e bateu palmas. Na mão dele, um envelope vermelho, grande e perfumado. Um dos meus! Demorei para atender. (indignada) Pedro não me esperou. Deixou a carta presa ao quadro de luz, que fica na garagem e deu continuidade a sua

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rotina. Casa 89, 91, 92, 94. E foi embora. Casa 97, 99, 100, 102... E foi embora!

Depois da quinta carta escrita, perfumada, do-brada, encaixada, fechada, selada e enviada, Pedro resolveu me esperar para me entregar o envelope. Mesmo distorcido por aquele olho mágico, continuava bonito. Quem me visse, não precisaria de esforço para me zombar. Eu parada olhando por um bura-quinho, seduzida por alguma coisa do outro lado da porta. Girei a maçaneta. Pedro es-tava com as mãos no bolso. Os olhos fixos nos meus. Um frio lá fora! Distraída, me deixei reparar em cada pedacinho de Pedro. Desde uma pintinha no meio do pescoço até uma mancha no globo do olho direito. Fui interrompida por um “Carta para a se-nhora”. O envelope não era dos vermelhos. Era dos brancos, comuns. O remetente? Pedro. (Sorri) “Pode entrar, te sirvo um chá bem quente!”

Foi quando acendi o fogão para ferver a água. Ele se aproxima de mim por trás e agarra a minha cintura. Puxa o meu cabelo. Me

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vira de frente para ele. Coração acelerado. Calça desabotoando. Ele me joga de joelhos no chão. Respiração ofegante. Eu lembro de nós dois vendo as estrelas deitados no chão de um parque. Puta! Faz o que eu to mandando. Eu faço. Depois puxa o meu braço e me levanta. Continua de pé. A mão dele tapa a minha boca. “Fica quieta!”. Me atira em cima da mesa da cozinha. Levan-ta a minha saia. Estou deitada. Ele de pé. Abre as minhas pernas. Não era bem assim que eu... Do fogão, pro chão, pra mesa. Da carta, pro chá, pra saia levantando, levan-tando. Do senhora, pro Puta. Faz o que tô mandando. Sem gritar. E todas aquelas palavras que agora eu ouvia. “Vagabunda, eu sei do que você gosta.” Enquanto isso a água do chá fervia.

(Pausa longa.)

Ela – Prometi não contar a ninguém sobre a gente. Pedro tinha medo de ser mandado embora. Precisava tanto daquele emprego!

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Na terça-feira seguinte eu o esperei. Mas Pedro desapareceu.

(Pausa.)

Ela – O único que me olhou diferente, o único que me escreveu uma carta. Não podia nem perguntar à vizinha da casa rosa da frente sobre ele. Depois do dia em que Pedro to-mou chá na casa dela, não a vi mais. Ouvi comentários que ela e os pais se mudaram às pressas em uma dessas madrugadas. Eu, nem caminhão vi. (malvada) Mas tenho pra mim que foi ela quem ofereceu o chá.

Cada vez que o telefone tocava, o meu coração disparava de um jeito que eu achava que não fosse capaz de atender. Pedro não tinha o meu telefone, mas, sentada na poltrona da sala, eu imaginava que ele estava preso em algum lugar de onde não pudesse escapar e com suas artimanhas descobria o número do meu telefone e me ligava pra dizer “Tudo bem? Tá chovendo aí? Então tá bom! Um beijo. Tchau”. Cada vez que a campainha

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tocava, eu imaginava que Pedro estava em uma ilha deserta amarrado em uma cadeira, sol forte na cabeça. E com suas artimanhas se libertava e vinha ao meu encontro. Eu beliscava as bochechas e girava a maçaneta. A surpresa seria melhor se não o visse antes pelo olho mágico. Mas isso também nunca aconteceu

Fui até o correio da avenida perguntar por ele. “Aqui não trabalha nenhum Pedro”. Tristeza. O atendente teve dó de mim. “Pe-dro foi transferido para outro bairro.” Qual bairro? “Por que uma mocinha quer saber de Pedro?” Foi aí que ela apareceu. Uma perua de bijouteria dourada e calça de sarja. Tamancos. Plac, plac, plac. “Quem é que pergunta por Pedro?”

Pedro teve outras como eu. Muitas. Pedro sedu-zia as mulheres das ruas em que trabalhava. Passava as tardes com elas. Nunca repetiu uma amante! Aparecia com o sorriso, as rugas nos cantos dos olhos e um envelope branco. Pedia chá. Depois disso, abando-nava todas.

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A perua tomou um susto quando me ouviu pedir o endereço de Pedro. “Sua mãe sabe?” Foi ela mesma quem pediu, ela se preocupa comigo. Fui elogiada pela coragem.

A casa de Pedro era bege e sem vida. Uma man-cha. Como a minha. Não tinha nem uma samambaia para enfeitar a entrada. Suspirei aliviada por ele não ter olho mágico na por-ta. Não queria que me visse distorcida. Ao me atender, esbarrou os olhos arregalados nos meus. Aquele jeito de Pedro! (vingativa) “Foi ele, seu guarda.”

Eu costumo reparar bem nas pessoas. Sei de cor formato de sorriso de cada um que co-nheço. Mas Pedro... Quando eu me deitava, durante aqueles minutos que antecedem os sonhos com ele, não conseguia me lembrar do seu rosto! Um dia ainda decoro!

As visitas me ajudavam a não esquecer a fisio-nomia de Pedro. Eu decidi que começaria com o queixo furadinho. Chegava em casa e escrevia como era. Também escrevia uma carta por dia a Pedro. Contava como anda-va o colégio, falava do tempo, que um ca-

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chorro da rua teve de ser sacrificado. Dessa novidade ele gostava. Um a menos para morder a sua bunda! Aí perfumava, dobrava, fechava e entregava em mãos os sete envelo-pes grandes, vermelhos e perfumados. Não nos primeiros meses. Pedro, genioso, não queria me ver.

Foi numa quinta-feira. Nossa carta de recon-ciliação chegou a minha porta. Passei a visitá-lo aos sábados e trocávamos envelo-pes. Quando não estava relendo suas cartas, imaginava Pedro fugindo da cadeia por não aguentar mais passar os dias longe de mim. Ele tocava a campainha. Eu, sem espiar o olho mágico, abria a porta, convidava Pedro para entrar e ia direto ao fogão esquentar mais uma vez a água do chá. Passávamos a tarde juntos. Depois ele voltava para onde tinha de estar. Longe das mulheres do bair-ro, as vizinhas das casas azuis, verdes, bran-cas, rosas...

Fim

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Um Chá, de Priscila Nicolielo, foi dirigido por Ruy Filho e interpretado por Gabriela Rosas no dia 14 de outubro, às 7h00.

* * *

Priscila Nicolielo é dramaturga e roteirista de te-levisão. Integrante da Companhia de Teatro Antro Exposto. Estudou dramaturgia com Samir Yazbek e Roberto Alvim. Sua peça de estreia Desencontro foi apresentada no ccbb em 2006 e 2007 no evento “Dramaturgias – Novos Talentos da Dramaturgia”.

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Foi no Carnaval que Passou

Paulo Vereda

Para cada cena três momentos. Momento 1: os personagens narram a história no passado. Mo-mento 2: o ator diz a poesia. Momento 3: cena no presente.

Cena 1

Salão de beleza periferia de São Paulo, Ma-nicure = Helena / março de 2007. Helena, no salão, começa a fazer a unha de uma pessoa da plateia e contar sua história... Sempre que ela estiver contando a história no salão ela retorna a esta ação.

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Helena – ... foi no carnaval... não desse ano, tudo começou no carnaval do ano passado ... ah, eu adorava carnaval, desfilava todo ano! Meu sonho sempre foi desfilar no Rio de Janeiro... Marquês de Sapucaí, sabe?... Ano passado saí de destaque......... Em São Paulo mesmo! Aqui no Anhembi... (Eu sei que o carnaval de sp está melhorando e coisa e tal, mas ... Não se compara com o carnaval do Rio né?)... Bom, mas ano passa-do, pelo menos fui destaque num carro ale-górico maravilhoso, e eu glamourosíssima! Ah... E você não sabe! Advinha quem é que coloca os destaques nos carros alegóricos... Eu já te disse que eu sou louca por homem de farda???... então...

Quartel do corpo de bombeiros, São Paulo, Bombeiro = Aquiles / março de 2007. Sempre preparando a farda, passando, engraxando o coturno, ou polindo a fivela do cinto. O bom-beiro usa um “raibam” o tempo todo.

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Aquiles – Eu sou bombeiro, desde criança so-nhava ser bombeiro. Tipo herói, sabe? Apa-gar incêndios, salvar vidas... Mas, sabe como é né?... novato na corporação, ano passado me colocaram de plantão no sambódro-mo, logo eu que odiava carnaval! Colocar aquela gente fantasiada em cima daqueles carros enfeitados. Puta que pariu!!! Mas alguém habilitado tinha que observar os procedimentos de segurança. Que merda! É claro que você vai me perguntar: “Não dá para se divertir nenhum pouquinho?... tirar uma casquinha da mulherada?” E eu te respondo: sou pro-fis-sio-nal, porra! Mas escuta só esta história, foi no carnaval que passou...

As poesias devem ser executadas pelos atores e não pelos personagens

Poesia 1Atriz – A fantasia tinha de ser de anjo. Ou melhor, só as asas...

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O primeiro que olhasse pensaria... liberdade.Tudo bem, era isso, mas não só... era também,

um pedido de socorro, Era um pedido para... ficar mais leve, era um

pedido para que o céu escondesse durante alguns instantes suas lágrimas...

Queria sobretudo fingir bondade no meio dos anjos...

Aquiles – ...e aquele anjo tirou a paz da minha vida...

Concentração desfile de carnaval, Sambódro-mo Anhembi / fevereiro 2006.

Helena – Eu estou muito emocionada.Aquiles – Primeira vez que vai desfilar?Helena – Não! Mas é a primeira vez que chego

tão perto de um bombeiro...Aquiles – (tímido)é tudo igual dona, bombei-

ro, pedreiro, policial, garçom, professor... (vaidoso) A gente, é gente normal, como todo mundo.

Helena – Linda a sua farda!

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Aquiles – Obrigado! A sua fantasia também é muito bonita... É um passarinho? ...Uma galinha? Ou...

Helena – (interrompendo) Você, é lindo!Aquiles – Nossa dona! Assim eu fico sem jei-

to... Até me esqueci que estou trabalhando... Já pensou se a Sra. cair desse carro, a culpa vai ser minha! E essas asinhas não vão te salvar! rs

Pausa

Helena – meu carro já vai sair, se você não descer agora, vai ter que desfilar comigo...

Aquiles – ...então... boa sorte no seu desfile...Helena – obrigado... e... Aquiles – ...então tá... tchauHelena – tá... então...Aquiles – ... tá... Helena – ...tá...

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Cena 1a

Durante o desfile Aquiles – Não acredito... ela foi embora...

eu deixei... e ela foi... Eu disse tchau, mas eu queria dizer que ela também é muito linda!

Helena – (sambando) Não acredito... estou aqui em cima! Meu deus, quanta gente olhando para mim... Ai que pena... como passa rápido! Daqui de cima parece que a avenida é bem menor... Já estou chegando quase no meio da avenida... Quando eu chegar na dispersão, vou voltar correndo eu não consigo parar de pensar naquele bombeiro.

Aquiles – (correndo) O desfile já deve estar no final... Se eu sair correndo pela marginal, acho que eu consigo chegar na dispersão antes do carro dela! Eu preciso dizer que ela também é linda!

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Cena 2

Quartel Aquiles – Pirei, eu que odiava carnaval, passei

o dia em frente àquela escola de samba. Nin-guém aparecia, nenhuma comemoração... nada... um sol muito forte, um céu muito azul e uma quarta-feira muito “cinza”... Não sabia o que fazer, e fiquei ali sentado desde o meio-dia...do outro lado da rua, no meio-fio, olhando para aquele portão, do meio-dia até a meia-noite... olhando um portão fechado e esperando. A cada cinco minutos que passavam, eu dizia a mim mesmo: “Só mais cinco minutos”, e de cinco em cinco minutos, eu esperei 720 minutos, ou 145 ve-zes 5 minutos... e fiquei ali até a meia-noite, e quando deu meia-noite eu disse: chega!, vou esperar só mais cinco minutos, ... os últimos cinco minutos...

SalãoHelena – ... e daí que eu estava apaixonada

por um homem que eu nem sabia o nome,

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só sabia que ele era bombeiro e que estava de plantão na terça-feira gorda de carnaval. Procurei em tudo quanto é corpo de bom-beiro da cidade, minha via sacra começou na quarta-feira de cinzas. Mas não encontrei meu soldado. Eu fiquei quase louca, né? Não conseguia parar de pensar nele.

Poesia 2Ator – Caíram as folhas soltas numa noite

sem luarDe que serve o céu ter estrelas? Se elas não

podem ver os teus olhos?É como uma igreja vazia, onde ninguém vai

rezar.Meu peito é como a areia da praia que aguarda

teus pés e deseja as tuas pegadas.Dentro do meu peito saudade e culpa.O mar aqui apaga o nada...O sol voltou mas você foi embora...

SalãoHelena – Um dia estava distraída aqui no

salão, e o feijão queimando na panela de

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pressão, no meu quartinho aqui no fundo... quando senti o cheiro de queimado já não dava mais tempo e foi: “boooom”, a panela explodiu e eu gritei: ahaaaaaaaaaaaaaaa! Não deu outra, o Sr João da quitanda aqui em frente, nem pensou duas vezes, chamou o resgate ! Daí...

SalãoHelena – (chorando) Você ?... (ri descontrola-

damente) eu te procurei...Aquiles – (petrificado) Eu também... Eu pre-

cisava... preciso... dizer que...Helena – ... eu te procurei tanto... não conse-

guia parar de pensar em você...Aquiles – Preciso dizer... que... você, é linda!

Pronto, eu precisava falar... Eu já disse... e agora... quero ficar com você... Juro que nunca mais vou te perder de vista.

Helena – Pra sempre?Aquiles – É, pra sempre. (Beijo)

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Cena 3

SalãoHelena – Foi como um conto de fadas, aquele

carro do corpo de bombeiros, e meu bom-beiro parecia um príncipe num cavalo bran-co. A vizinhança não entendeu nada, apare-ço na rua chorando descabelada, sem fogão e sem panela de pressão, e de repente eu estava rindo, não conseguia parar de rir...

QuartelAquiles – ...tive meu dia de glória, cumprindo

meu dever, num acidente, onde ninguém saiu ferido, eu reencontrei aquela mulher que me tirava o sono há semanas. E foi mui-to emocionante o beijo e os aplausos, foi o dia em que me senti um herói de verdade!

SalãoHelena – ...Naquele mesmo dia ele dormiu

comigo no quartinho. Acordou, muito cedo, o sol nem tinha nascido; tomou banho, usou minha escova de dentes, e foi para o

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quartel. No final da tarde do dia seguinte, ele apareceu com uma malinha, jantou, tomou banho e... cama! Na segunda manhã acordei e me levantei com ele, e percebi duas escovas de dentes no armarinho do banheiro... Quando ele chegou no final da tarde, do terceiro dia, trouxe um cabide com uma farda e me explicou detalhada-mente como lavar e engomar... e foi assim que ele “penetrou” na minha vida.

QuartelAquiles – Não aguentava mais ficar longe dela.

A nossa química era tão forte, que quando percebi eu já estava casado. Morando no quartinho, nos fundos do salão de beleza. Mandei reformar o fogão, e comprei uma panela de pressão nova. Ai que felicidade! A minha vida era do quartel para o quartinho e do quartinho para o quartel, ela cuidava de mim... e a gente se amava... estava tão feliz que se eu pudesse eu cortava este sen-timento numa máquina de cortar presunto, e separava tudo em pedaços bem fininhos...

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para comer bem devagar... economizando... até conseguir um quilo de felicidade inteira de novo.

SalãoHelena – um belo dia, eu passando a farda e

ele fumando sentado na única poltrona da casa, pensei: o carnaval está chegando...

Quartel Aquiles – um belo dia, eu fumando o último

cigarro e olhando a fumaça sumindo no ar, pensei: o carnaval está chegando...

Poesia 3Atriz – Nada. Chega! É ponto final. ... não querer ter responsabilidade, não querer

ter compromisso, não querer saber de abso-lutamente nada...

Calar o barulho do existir e sufocar o compro-misso de ter de cuidar de alguém.

Onde estão as brincadeiras de casinha e o tem-po em que tudo parecia que ia dar certo?

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SalãoHelena – Não ? Mas como não???Aquiles – Não! Não e pronto!Helena – Mas quando você me conheceu eu

já desfilava no carnaval. Você sabe que eu amo carnaval...

Aquiles – E quando você me conheceu eu já era bombeiro, e já odiava carnaval...

Helena – ... foi no carnaval que passou... a gente se conheceu... e... se encontrou e se desencontrou e...

Aquiles – Helena, chega! Está decidido, você nunca mais vai desfilar! Mulher minha não vai se enfeitar e ficar rebolando para mar-manjo ficar babando...

Helena – Você não confia em mim, Aquiles?Aquiles – Em você eu confio, mas não confio

nos homens que vão ficar te... te... ai eu não consigo nem falar! Helena, você provoca os homens de um jeito que você nem imagina! Você é a mulher que todo homem que-ria ter dentro de casa! E tem mais... você quer que eu vire a piada do quartel...??? Você não me respeita mesmo Helena... Já

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imaginou outro bombeiro colocando você no carro alegórico, só de imaginar parece que vou ter um infarto...

Helena – Mas você é meu bombeiro, meu querido... eu quero que você me ajude a subir no meu carro alegórico, meu amor...

Aquiles – Você pirou Helena! Tá maluca! Chega ! Assunto encerrado!

Cena 4

SalãoHelena – Daí menina, eu sofri, eu chorei tan-

to. Quanto mais perto do carnaval, mais an-gustiada e triste eu ficava, até que eu decidi comprar um ingresso para ver o carnaval lá na avenida. Isso mesmo, e não era na ar-quibancada não... eu comprei um ingresso de camarote...

Quartel Aquiles – sabe meu lance com a Helena, já

não era mais a mesma coisa, eu não sabia como dizer isso para ela. Me partiu o co-

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ração ver Helena passando minha farda e chorando, eu já estava atrasado para ir para o sambódromo, e ela não parava de chorar e “alisar” aquela farda. Para não começar uma nova briga, eu esperei, me sentei na poltrona e fumei um cigarro, pensando: como seriam os destaques daquela noite?

Helena – Assim que ele saiu, corri para o sam-bódromo. Eu dividi a mesa com um gringo maravilhoso, não sei de onde ele era, falava um português meio enrolado, e era lindo e simpático. Nossa ele tinha um par de olhos azuis que pareciam que estavam cheios de água. Ele olhava para mim de um jeito... mas não entendi, conversa vai, conversa vem... ele me contou que a namorada dele estava desfilando, me mostrou uma foto dela, achei esquisito... Esquisito ele me mostrar uma foto da namorada... e esquisita a namorada, muito esquisita...

Aquiles – Lá pelas tantas, apareceu um carro alegórico que parecia o mar, bombeiro adora água e eu amo o mar... A primeira pessoa subir no carro tinha pernas altas,

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era muito alta, usava máscara, uma fantasia cheia de tentáculos e olhos pintados de preto, fiquei hipnotizado por aqueles olhos, ela não me olhava. Tive medo de perdê-la para sempre... enchi o peito de coragem e perguntei seu nome. Ela abriu um sorriso e me respondeu com voz rouca: – Jussara! E eu perguntei para puxar assunto... – Sua fantasia e de polvo? Ou de lula... ah, já sei ... alguma planta do mar ou... Nossa, ela engrossou muito a voz e disse: – Monstro marinho! E ainda completou: – ...um monstro gigante daqueles que conseguem engolir um navio, uma caravela ou até um caminhão de bombeiro inteirinho! Entendi tudo: Ela adorava bombeiro também.

Helena – ... caipirinha vai, caipirinha vem... ele segurou minha mão e disse: – Vamos fugir para Europa comigo? A gente volta todo ano para desfilar, eu te prometo! E no Rio de Janeiro!

Aquiles – ... nisso o carro começou a andar e eu tive que descer correndo... fiquei olhan-do o carro se afastar... Não aguentei! Saí

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correndo pelo meio da avenida atrás do carro alegórico. Como eu estava de farda, ninguém me impediu...

Helena – Olha amiga... lá pelas tantas... já era tanta caipirinha... (e de vodka, não era de pinga não)... mas então eu já estava para lá de Bagdá, ele foi chegando perto, e mais perto e me beijou... eu fiquei tão espanta-da que nem conseguia fechar os olhos (foi beijo de olho aberto)... então foi assim, de olho arregalado beijando aquele gringo que eu vi o meu bombeiro no meio da avenida, correndo atrás de um carro alegórico...

Aquiles – ... eu não podia perder de vista meu “monstro marinho”, corria e não desgruda-va os olhos daquele carro todo enfeitado de mar... de vez em quando disfarçava eu olha-va em volta para ver se alguém ia me tirar dali, foi quando vi num camarote Helena beijando um homem careca.

Helena – aí... eu empurrei o gringo, ele cam-baleou de bêbado e deu um tchauzinho para uma destaque que estava passando naquele instante, ela estava num carro todo

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enfeitado de mar, e usava uma fantasia que parecia um... Monstro!... E eu? Eu gritei!!! Gritei! Gritei!

Aquiles – ... e o mundo meio que parou em volta de mim...

Poesia 4Ator – Meu monstro marinho: Sei que está

ali. Mesmo quando quero fingir que ele não existe submerso em plácidas águas. Me tortura ainda mais quando não aparece. E fico imaginando sua vitalidade sob a frá-gil segurança do meu barco. Vigio o céu esperando a aurora. O medo e o desejo fundem-se num sentimento que ainda não inventaram palavra para nomear. O que pensa? Instinto, razão? Como será o mo-vimento de sua cabeça dentro da imensa escuridão de seus olhos serrados? O que sente? Seu peito aberto não teme o frio. Expõe o coração com movimentos grandes, redondos e harmônicos de seus ombros. E é sempre de repente que rompe a tênue membrana e desabrocha a flor da água. Não

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existe rotina ou hora marcada... e sempre é uma explosão. Belo e estarrecedor evento. Fugir ou ficar? Domesticar ou entregar-me em sacrifício... E lhe é tudo tão normal, que lhe pareço pequeno e estranho... petrifico e lhe pareço frio demais. Sei que já não me nota e faço parte de sua paisagem.

Sabódromo Anhembi 2007.

Helena – (gritando...) Aquiles! Aquiles!Aquiles – Eu não te quero mais, Helena! Não

te quero mais! Pode ficar com esse... careca!Helena – (Chorando) Aquiles! Nããããão! Não é

nada disso que você está pensando...Aquiles – (Rindo) Não quero saber, Helena!

Não te quero mais!

Cena 5

Salão Helena – e aí... que eu me arrependi... e queria

meu bombeiro de volta, saí do camarote e fui direto para a dispersão.

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Aquiles – e aí... que eu encontrei Jussara na dispersão, enquanto eu recuperava o fôlego ela tirava a fantasia e a máscara, foi quando percebi: Era um... homem! Não sabia o que fazer, eu estava perdido, num instante, passou um filme na minha cabeça, eu cor-rendo no meio da avenida atrás de um carro alegórico, atraído por um travesti, Helena beijando um careca, milhares de pessoas me vendo ao vivo e milhões de pessoas me assistindo pela tv..., minha desgraça tinha até a narração do Chico Pinheiro, com co-mentário do Maurício Kubrusly... A mi-nha vontade era de fugir... sumi, sei lá! ...O mais estranho de tudo é que, mesmo eu sabendo que era um travesti, eu continuava hipnotizado por aquele... aquela..., mulher, traveco, sei lá... Segurei a mão dele... ou ... dela... e disse: – Vamos fugir! (Tira o raibam e mostra o olho roxo) Ela me deu um soco no olho, e disse com voz grossa, muito gros-sa: – Sai fora! Tá loco, se o “meu gringo” ver você me segurando, ele volta para Europa e me deixa mofando aqui no Brasil... me

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larga se não eu te mato... eu te mato sua “inrustida” do caralho!

Helena – ... e quando encontrei meu bombei-ro ali chorando... o mundo meio que parou em volta de mim...

Poesia 5 Atriz – Desejava apenas molhar os pés / mas

mergulhei fundo demais.Pesadelo de afogamento num mar de men-

tira, num mar de mentira que sufoca de verdade.

Fora de mim tudo passa em câmera lenta e... não sinto prazer ao degustar este momento.

Observo o barulho, e só escuto o silêncio... / exprimido na multidão me sinto sozinho...

E nesse nada, que só eu consigo enxergar, per-cebo o rodamoinho se formar e se agigantar Me assusta saber com certeza onde estou / e ainda assim me saber inteiramente perdi-do... Encontros e desencontros são ventos, os ventos que movem que os moinhos da perda.

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Dispersão carnaval 2007.

Helena – (gritando) Aquiles!... Aquiles – (absorto) Monstro! Helena – Não chora meu amor, eu sei que eu

não presto, eu estraguei tudo! Me perdoa? Minha vida, me perdoa?

Aquiles – ... esse carnaval que não passa... tá me sufocando...

Helena – (chorando) Eu te amo! Me perdoa? Por favor? (gritando) Fala meu amor...

Aquiles – eu... não consigo... nem respirar...Helena – Fala meu amor... fala que eu sou lin-

da, fala que você ainda me quer... que a gen-te vai ficar junto, “pra sempre de novo”...

Helena – ... já está passando... já esta passando já... está... passando... passou... passou...

Fim

Foi no Carnaval que Passou, de Paulo Vereda, foi dirigido por Eloísa Vitz e interpretado por Daniela Rocha e Thiago Guastelli no dia 14 de outubro, às 13h00.

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* * *

Paulo Vereda, nascido em 75, amante do fado. Arqui-teto e urbanista, focado em patrimônio histórico. É pesquisador da história da Zona Norte de São Paulo, principalmente do Bairro do Limão, onde nasceu. Em 2005 enveredou para o teatro como ator quando passaria a usar o nome Vereda, batizado por Alberto Guzik, enquanto atuava em Vestido de Noiva, Sa-tyros 2008. Cenógrafo da escola J. C. Serrone, atua em teatro e televisão. Como dramaturgo realizou ensaios nas peças infanto-juvenis no grupo Gatu.

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Fragmento de um Naufrágio

Cláudia Vasconcellos

Personagens:

Homem Velho, entre 70 e 80 anosMulher de Meia-Idade, entre 55 e 65 anos

Penumbra. Som de tempestade e mar bravio que-brando na praia. Nesta penumbra distingue-se uma mesa posicionada no meio do palco. Sentada à direita, está a mulher. O homem está de pé à esquerda da mesa e próximo à boca de cena – ele está exatamente na direção de sua cadeira e olha para a frente. Sobre a mesa há um vaso vazio e um baralho disposto para um jogo. este quadro mantém-se congelado por alguns segundos. Depois

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disso, o homem volta para a mesa. Por sua iniciativa, os dois começam a jogar cartas. Dois minutos. Raio. Trovão. Luz cresce. Mas, ainda assim, a cena é mais para sombria. A mulher, sobressaltada pelo raio-trovão, se levanta e vai até a boca de cena, à direita da mesa, exatamente na direção de sua cadeira. Daí ela pode olhar, por um suposto vitrô, o mar (plateia).

Mulher – (ansiosa) Você ouviu? Está pioran-do. Eu sei. Um dia vai acontecer. Como no sonho. Uma onda enorme cobrindo a nossa praia, arrastando tudo. O mar está chegando.

Homem – Sua vez.Mulher – Você diz que não. Mas eu sei. Antes

não era assim. Eu tenho certeza que não era. Eu devo ter alguma fotografia. Nós tiramos tantas fotografias...

Homem – Vem. Vem jogar.Mulher – Quando foi que paramos de tirar

fotografias? (pausa) Quando é que se para de tirar fotografias?

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Homem – Quando a câmera cai na areia e estraga.

Mulher – Quantos momentos registrados. E a praia. a praia era mais larga. Na maré baixa. Você se lembra? Todo aquele espaço. Dava para andar de bicicleta. E deixar rastros. Fazer mandalas com os pneus. A minha bicicleta vermelha. (pausa) Mas agora... O tempo passa levando pedaços da gente. A bicicleta se estragou. E eu. E você.

Homem – Eu não.Mulher – Eu e você. Homem – Sua vez.

Relâmpago, trovão.

Mulher – Viu? cada vez pior. Homem – Não vai jogar?Mulher – Cada vez pior. eu sinto. Olha o mar.

(ele também olha para a frente) Todo espu-moso. De raiva. Ele vem se vingar. Ele quer se vingar. De mim. Se vingar de nós dois.

Homem – De mim? Por que de mim?

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Mulher – Mas não vai encontrar ninguém. (pausa)

Homem – Vamos lá.Mulher – (voltando para a mesa) Eu não que-

ro mais jogar. Homem – O tempo passa.Mulher – O tempo, o tempo. (baixinho) Eu

não aguento mais jogar. (recomeça a jogar)

Jogam em silêncio. Raio.

Mulher – Se eu fizesse um pedido pr’aquele raio.

Homem – (concentrado no seu jogo) Estrelas ca-dentes. Pedidos são para estrelas cadentes.

Mulher – Eu vou fazer um pedido pr’aquele raio. Eu vou rezar um pedido para o raio. (fecha as mãos para rezar, fecha os olhos)

Homem – Rezar pra raio é coisa de índio.Mulher – Senhor raio, eu peço uma surpresa.

Alguma coisa que eu não possa adivinhar, nem imaginar. Alguma coisa que não se pode calcular, nem prever. (breve pausa) Obrigada.

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Homem – (breve pausa) Bati!Mulher – (abre os olhos) Acabou?

Barulho do mar. Pausa.

Mulher – (olhando para fora) Que noite. Homem – (olhando para fora) Não tem lua.Mulher – Nem lua nem estrela. É uma noite

deserta, pra dois astronautas perdidos.

Breve silêncio.

Homem – Vamos mais uma. (embaralhando as cartas) Hoje é o meu dia de sorte.

Mulher – Sorte no jogo de canastra... Homem – Corta!Mulher – (ela corta) Era preciso ter sorte na

vida.

Ele dá as cartas em silêncio. Homem – (ele abre seu leque e leva-o perto dos

olhos, procura de onde vem o foco de luz) A luz está fraca.

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Mulher – (pausa) No escuro se pode ver o segredo das coisas.

Homem – (irônico) Ah, sei... Mulher – No escuro eu posso ver o segredo

de tudo.Homem – (pausa) Então, qual o segredo... (pro-

cura por algo) deste vaso? Mulher – (ela segura o vaso, pausa) As flores

mortas.

Trovão. Ela se assusta [pode deixar cair o vaso que se quebra]. Reclina-se sobre a mesa com medo. Ele estende as mãos e segura as dela.

Homem – Você está bem? Mulher – Não. Não muito. Homem – Eu vou pegar o remédio.Mulher – Depois. (ela o retém. Ouvem o baru-

lho do mar) Você não tem medo?Homem – Do mar? Quem é esperto tem medo

do mar.Mulher – Mas eu não sou esperta. Não sou

nem um pouco.Homem – Calma.

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Mulher – (suplicante) Eu quero uma bebida. Eu preciso de uma bebida forte.

Homem – Você está cansada.Mulher – E de um cigarro.Homem – Cigarro?Mulher – (pausa) Como é que eu me acos-

tumei a não fumar? Você se lembra? Se lembra como eu fumava?

Homem – E eu também.Mulher – É verdade... Homem – Mas agora...Mulher – Agora é proibido. (pausa) é proibido

sofrer em paz, não é isso?Homem – (pausa) Ninguém sofre em paz.Mulher – (suplicando) Eu preciso beber.Homem – (pausa) Já não tem mais nada.Mulher – O que foi que aconteceu conosco?Homem – Não faz assim.

Ele solta as mãos dela e concentra-se no jogo. Silêncio.

Mulher – (ela, alheia ao jogo, começa a cons-truir um castelinho ou cabana de cartas)

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Uma criança fez um castelo de areia. Enfei-tou as paredes com caquinhos de conchas. Fez a ponte com palito de sorvete. Pôs um ouriço na torre mais alta. Um peixinho mor-to de sentinela. E encheu o fosso com algas. Um castelo de um sonho de Gaudí. Triste e úmido. Maravilhoso. Então, vêm as ondas do mar. Uma, duas, três lambidas, (mulher destrói o castelinho de cartas) e, pronto.

Homem – (ignorando a performance dela) Sua vez. (ela não se move, concentrada no ‘caste-linho’ derruído) Sua vez.

Mulher – (aflita) Você se lembra o que fize-mos ontem?

Homem – Ontem já faz muito tempo.Mulher – (no mesmo tom) Você sabe o que

vamos fazer amanhã?Homem – (irônico) Vou olhar na minha agenda.

(pausa) O que é que há?Mulher – Por quê? (por que ter de repetir sem-

pre e sempre este jogo)Homem – Ai, ai, ai.Mulher – Você não vê os destroços?

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Homem – É melhor eu pegar o remédio. (ele se levanta e vai andando devagar para a posição com que iniciou a peça)

Mulher – Quando foi que naufragamos? (ela grita em seguida para ele que estanca o pas-so) Eu não vou tomar nada! eu não quero mais jogar!

Ele apoia a cabeça nas mãos. Pausa longa.

Homem – (voltando-se para o mar – ele pode pegá-la pelos braços com força, no fim solta) Acabou a bebida. Não tem mais cigarro. Nada. Nada além deste breu e desta tor-menta. Eu não sei quando. Nem sei por quê. Um dia renunciamos às coisas. Um dia eu não andei pela praia. Um dia esquece-mos as bicicletas e você não quis mais en-cher de flores esta casa. Se teve um castelo, se havia crianças, se o céu era azul, eu não me lembro. O que eu sei é que estamos aqui e já é tarde, já é muito muito tarde.

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Luz começa a decrescer. Imagem congela por alguns segundos, como no quadro inicial. Ele volta a sentar-se à mesa. Som de tempestade e mar bravio quebrando na praia. A luz cai até a penumbra inicial. Os dois jogam cartas. Raio. Trovão. Blackout.

Fim

Fragmento de um Naufrágio, de Cláudia Vascon-cellos, foi dirigido por Jairo Mattos e interpretado por Roney Facchini e Selma Egrey no dia 14 de outubro, às 16h00.

* * *

Cláudia Vasconcellos é dramaturga, atuante no teatro adulto e no teatro infantil. É doutora em Literatura Dramática (usp) e mestre em Filoso-fia (usp). É autora dos livros A Mulher no Escuro (Ateliê Editorial, 2007); Uma História da China (Nova Alexandria, 2002); As Roupas do Rei, seguida de Inventa-Desinventa (sm, 2007); As Histórias de Marina (Global, 2008).  Entre os prêmios recebidos

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destacam-se: Prêmio Coca-Cola Femsa de melhor autora por Assembleia dos Bichos (2005); Prêmio Femsa de melhor autora por O Tesouro de Balaco-baco (2007).

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Milos e EvicAntônio Rogério Toscano 

  

(Quarto de uma casa. Antes da queda do sol. Nele, há apenas os elementos fundamentais para reconhecê-lo como tal: cama de solteiro, brinquedos mórbidos abandonados e espalha-dos, um espelho de corpo inteiro, outras bu-gigangas. Ouvem-se, abafados pelas paredes, a uma distância próxima, sons de televisão e latidos de cães. Tempo em silêncio em que um foco móvel de luz narra o ambiente de modo sombrio. A porta se abre e uma luz mortiça in-vade o ambiente, agredindo-o de modo contun-dente. A nova luz assusta o ambiente, que pa-rece se reorganizar, como num flagrante. Dois garotos (que têm aparência contraditória de adultos) entram com materiais escolares, muito

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afoitos, quase nervosos. Trancam a porta, verifi-cam as janelas e analisam cada ponto para se certificarem de que estão, finalmente, isolados do mundo. Trocam olhares cúmplices em mo-mentos decisivos. Desparafusam, pela lateral, as paredes do espelho. Retiram-no do suporte. Levam o suporte para lugar nobre da cena, onde montam um altar/instalação com velas, caveiras de plástico, bonecas retiradas de escon-derijos estratégicos. Colocam-se, um em cada lado do suporte do espelho, e se olham longa-mente, narcisistas, cada um com uma máquina fotográfica Polaroid dependurada no pescoço. Beijam-se infantilmente através do espelho e só então se percebe que são quase idênticos. Sor-riem, canalhas. Como num reflexo especular, retiram de seus bolsos um batom que passam na boca e depois escrevem coisas em suas testas. Viram-se de lado, e podemos ler numa simetria demoníaca a poesia plástica de Antonio Dias: na testa de um deles, lê-se a palavra god; no seu duplo, dog. Fotografam-se. Sentem muita dor, aparentemente causada pelo flash. Depois, queimam seus retratos nas velas cerimoniais.

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Voltam para o suporte sem espelho e se cum-primentam de modo neonazi, após colocarem pequenas asas negras nas costas. 

Evic – Hi, Milos!Milos – Hi, Evic... 

(Puxam uma bandeira negra que hasteiam ao fundo. É outra obra de Antonio Dias, que contém a epígrafe “The Reality of Art” disposta em sentido inverso, na cor branca, ao centro. Levantam três cruzes que se escondiam sob a cama e iniciam uma crucificação de três bone-cas. Êxtase com pregos e martelo.) 

Evic – Cindy...Milos – Lindy...Evic – E Brenda. 

(Neste cenário de bonecas crucificadas, ins-pirado em imagem de Yasumasa Morimura, rezam, silenciosos. Dizem repetidamente a mesma frase.) 

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Milos e Evic – We are the Warhol boys. Nós somos os Anjos da Devastação. Brincamos para não morrer. We are the... 

(Milos se distrai, fica um tempo em silêncio.) 

Milos – Quanto tempo falta ainda até o anoi-tecer?

Evic – Não anoitece mais! O tempo nos deu um cano. Cala a boca e reza! 

(Oram mais um tempo. Milos para e se distrai. Silêncio.) 

Milos – Tudo estaria resolvido se o sol caís-se...

Evic – Rezamos por isso. Rezamos pela queda do sol! Lembra a última vez que caiu? Arra-sou com tudo, feito um míssil. Só sobramos nós dois, por milênios. Só depois aceitamos a companhia delas. (Para uma das bonecas.) E não pense, Brenda, que por ser um mártir, teremos pena...

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Milos – Você as alimentou na semana pas-sada?

Evic – Esqueci.Milos – Mas fere o código deixar os prisionei-

ros à míngua!Evic – Código? (Brinca com uma boneca cru-

cificada.) Não tem código se a desgraça é meu único deus...

Milos – Tanto tempo sem comida... Por isso Cindy anda tão esquálida...

Evic – Corpo de barbie é assim!Milos – Tempo demais...Evic – Se o sol não cai, não tem tempo que pas-

se. Que bonita era a queda do sol, bem aqui na nossa frente... (Olha para as bonecas, com desprezo.) Elas devem estar famintas... Principalmente pela morosidade dos seus reloginhos de plástico... (Riso.)

Milos –  (Lúdico, penetra muito crente na brincadeira de Evic.) Não comem há uma eternidade... E Lindy esteve fraquíssima por séculos.

Evic – Não se come na eternidade. Não é necessário.

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Milos – (Repetitivo, evidenciando a lógica ali-nhavada, em vai e vem, de suas atitudes.) Devem estar famintas...

Evic – (Irônico.) Os deuses não sentem fome. Peremptivamente, quando estão aprisio-nados.

Milos – (Em dúvida.) Peremptivamente? Tem peremptivamente no livro?

Evic – (Afirmativo demais.) Tem.Milos – Duvido.Evic – Tem sim! Verifique! Olhe na bíblia-

dicionário! 

(Milos olha num livro grosso que está próximo, no altar/instalação. É um almanaque de de-senhos e jogos de palavras. Nas páginas, Pato Donald fala através de um balão de hq: perigo. Noutra página, Professor Pardal: pirilampo. Noutra, Pluto: piripaque.) 

Milos – Não vale! Não há peremptivamente! Você está roubando!

Evic – (Ameaçador.) Você está insinuando que eu minto?

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Milos – Não. (Pausa.) Não. (Pausa maior.) Só que...

Evic – Se eu digo que tem...Milos – (Obediente e cabisbaixo.) Tem. Tem

sim.Evic – Peremptivamente! 

(Silêncio.) 

Evic – Essa sua mania já está ficando chata!Milos – (Indignado.) Mania... Que mania?Evic – Mania de ficar fazendo manha do que

eu falo. (Ameaçador.) Eu te mando embora da minha casa! Quer? Eu sou mais velho, Milos... Eu é que sei! Você precisa crescer muito ainda pra saber o tanto que eu sei. 

(Evic coloca a mão na parede, para marcar o seu alcance.) 

Evic – (Mostra.) Ó!Milos – Mas eu já tô maior do que você. 

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(Milos vai até a parede e mostra que alcança uma altura um pouco superior.) 

Evic – Maior? 

(Evic chega perto dele, para desmentir, embo-ra seja um pouco menor. Encosta os ombros e percebe a desvantagem. Visivelmente irritado, Evic sobe a sua marca, com a ponta dos pés – marca que é facilmente alcançada e superada pela de Milos. Então Evic, competitivo que é, percorre uma distância e salta até atingir, na parede, uma altura mais elevada. Milos não atinge a marca.) 

Evic – (Infantil.) Eu sou gigante! 

(Tempo.)

Evic – (Bem perto de Milos, ombro a ombro.) Tampinha!

Milos – (Entre ofendido e invejoso.) Se a gente estivesse no Mundo de Ponta-Cabeça, eu ganhava fácil... Lembra da Cabeça-Que-

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brada do Quebra-Cabeça do Mundo de Ponta-Cabeça? Desmiolada... Era tudo tão bonito, lá... Era tudo ao contrário, não era? Amor era Roma. Romã era Ãmor... (Ri-se.) Arara era arara, mesmo... Não era? E eu... (Repentinamente.) Vamos brincar de Mun-do de Ponta-Cabeça?

Evic – Ai, cada ideia tonta... O brinquedo é meu e eu brinco na hora que eu quiser.

Milos – Bicicleta era... (Com dificuldade, sole-trando.) Atel... (Interrompe-se.) Eu queria...

Evic – (Como se tivesse a melhor ideia do mun-do.) Eu tive uma ideia! 

(Evic pula para a parede. Fica de ponta-cabeça.) 

Evic – Vamos brincar de fazer o mundo ficar de ponta-cabeça? 

(Milos nota que Evic roubou sua ideia, mas entra na brincadeira dele. Tem-se a sensação de que eles sempre brincam este jogo.) 

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Evic – Aí, eu era o dono de todas as coisas que tinha no mundo...

Milos – E eu?Evic – Você? Ah, eu chamava você pra me

ajudar a olhar as coisas, que eram minhas, né... Porque eu tinha tantas, Milos, que... Quando a gente é dono de tudo e tudo tá de ponta-cabeça, fica muito difícil vigiar... Escuta! (Ambos olham para as coisas que estão na cena. Vigiam.) Fica de bituca! Se aparecer alguém, você me fala!

(Milos fica a vigiar. Evic brinca de tirar uma soneca. Milos não quer ficar sozinho.) 

Milos – No seu jogo de Quebra-Cabeça do Mundo de Ponta-Cabeça... (Evic o olha com ar de reprovação. Milos logo entra, obedien-te, no jogo de Evic.) Aí, tinha um vilão bem horroroso que vinha brincar com a gente...

Evic – Cala a boca! Cê num manda! Milos – (Sacaninha, continua – após um tem-

po.) E eu ficava com medo! (Protege-se no corpo de Evic, ainda de ponta-cabeça na

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parede.) Tá vendo? (Mostra a imagem de um homem, num retrato, que está de ponta-cabeça, como eles.) Ali. Eu falei que ele vinha...

Evic – Mas cê não ficava vigiando, não?

(Milos, com a boca, faz sinal sonoro de nega-tiva.) 

Evic – (Chateado.) Você era um guardinha muito ruim, hein!

Milos – Ih, parece que a gente nem pode ficar com medo das coisas!

Evic – De ponta-cabeça, a gente nunca fica com medo de nada! Não precisa! Olha. (Mostra a Milos uma imagem de Slobodan Milosevic, que eles deixaram de ponta-cabe-ça enquanto montavam o altar/instalação.) Nós e ele. De cabeça para baixo... (Ficam um tempo parados, a observar.) A gente pode tudo!

Milos – (Interrompe.) Eu cansei. (Sai da pare-de.) Machuquei meu dedo... 

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(Milos leva o dedo ferido à boca. Evic se irri-ta. Com um assovio, Evic faz Milos ficar numa posição em que, numa acrobacia de moleque, consegue voar pelo espaço para sair da parede de um modo espetacular, de super-herói. Evic vai parar perto das bonecas. Olha para elas, fascinado. Milos fica impressionado com o voo de Evic.) 

Milos – Que bonito o seu voo... Eu não con-sigo...

Evic – Voo que nem Cindy, nem Lindy e nem Brenda nunca conseguiram...

Milos – (Ainda com o dedo na boca. Provoca-dor.) Eu tenho saudade mesmo é do gosto da carne.

Evic – Boneca não tem. É plástico!Milos –  Gosto de carne, Evic... Crua...

Nua...Evic – Tarado!Milos – Quando você quebrou aquele copo

de vidro e me cortou, eu gozei. Lembra? Pela primeira vez... Foi quando eu fiz doze, não foi? Quando o sol caía, eu ainda tinha

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carne... Ai, como foi bom sentir a carne rasgada pela sua navalha...

Evic – Você precisa voltar a des-pensar.Milos – (Não entende.) Dispensar o quê?Evic – Des-pensar! Dispensar as ideias. Lembra

do espelho da Alice? Então!Milos – Mas eu gosto de ter ideias... Alice

tinha muitas ideias. Evic – Elas não servem pra muita coisa no

seu caso.Milos –  (Após pensar um pouco. Tem uma

ideia: vai acariciar Evic, mas interrompe o seu gesto. Triste.) Você é que vive me dis-pensando... Eu só queria sentir um pouco de dor, mais nada, ué...

Evic – Não vamos conseguir, bobo. Só quando os deuses deixarem de sentir, será a nossa vez...

Milos – E como vamos saber quando será isso?

Evic – Por enquanto experimentamos com Cindy, Lindy e Brenda. Precisamos treinar muito ainda... Um dia, será a nossa vez!

Milos – Então, vamos fotografá-las?

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Evic – (Repentinamente tenso e desconfiado de Milos.) Não. Ainda não...

Milos – Por quê? Não era você o grande sádico, Evic?

Evic – Não me chame mais assim! Não gosto de Evic. Retirei a perna de cima do meu “c”. Evil combina mais comigo...

Milos – Então, por que não fotografá-las? Evic – Deixaremos o mais dolorido para o fim.

(Sádico.) Tanta dor...Milos – É mesmo. Se anoitecer, a gente as

alimenta e prolonga um pouco a dor delas. (Entusiasmado.) Quanto mais dor sentirem os deuses, maior será nossa luxúria dolo-rida... Deve ter dor de sobra na eternida-de... Uma dor solitária... (Muito animado.) Nosso desejo não vai se aguentar de tanta comichão dolorida... Ai!

Evic – (Irritado.) Mas tem que esperar... Calma. Tem hora pra tudo. Senão, paro de brincar! (Milos assusta-se com a ideia.) Lembra-se da missa, cada coisa tem a sua hora...

Milos – Credo, como você é cristão! Evic – Você fala isso porque não sente tesão na

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hora de tocar o sino, na missa... Eu adoro ser coroinha, Milos. Quando todo mundo se ajoelha quando eu toco o sino... Parece que se ajoelham pra mim.

Milos – Prefiro cruz com boneca pregada. Eu gosto mais de brincar de boneca.

Evic – Eu tenho pena de você, Milos. Somos ou não os Anjos da Devastação? (Ameaça.) We are the Warhol boys...Vamos massacrar uma por uma as ideias dos deuses. Só assim a nossa dor será insuportável, ao lado de Lúcifer!

Milos – Lúcifer... Ai, que delícia... Quando falam de Lúcifer no catecismo, eu presto mais atenção. (Em êxtase de pensamentos.) Lúcifer...

Evic – O pai nosso que desceu do céu...Milos – O pai nosso que caiu do céu.Evic – Lúcifer!Milos – (Triste.) Você prefere ele a mim...Evic – Não se compare a ele, moleque!Milos – Lúcifer... (Tem uma ideia.) Vamos

brincar de deus?Evic – De novo?

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Milos – Mas se era bom... Na última vez...Evic – Cada ideia chata! Para que brincar de

deus? É mais gostoso brincar de gente.Milos – Mas se você acha chato até incinerar

o corpo do ursinho de pelúcia vivo...

(Milos pega um bichinho de pelúcia todo quei-mado e dá de presente para Evic.) 

Milos – Eu fiz isso ontem... Sozinho.Evic – A gente não tinha prometido que tinha

que ser sempre junto, fazer tudo sempre junto? Os dois?

Milos – Mas deu vontade, ué...Evic – Você nunca faz nada direito na nossa

brincadeira. Nunca vamos conseguir outra queda do sol, nem nunca vamos dizimar os deuses, um por um... Nunca... E tudo por sua causa, porque você só quer fazer as mesmas coisas e sempre sozinho!

Milos –  (Tentando consertar a situação.) A gente podia... (Muito entusiasmado.) Vamos brincar de terrorismo?

Evic – De novo?

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Milos – Eu sei um jeito diferente. Quer ver? (Pausa.) Pega o avião do Falcon!

Evic – A gente trucidou o Falcon.Milos – Até o helicóptero?Evic – Não sobrou nada. Foi divertido... Ideia

minha! A hélice cortou a cabeça dele... Milos – Como quando o vidro cortou a minha

pele...Evic – Sempre a mesma ladainha! Para quem

dizia que ia ser diferente, você tá querendo fazer terrorismo igual demais... Não tem graça. Já falei!

Milos – Tem um outro jeito. Quer? 

(Diante do silêncio de Evic, Milos se anima e pega duas cadeirinhas de madeira pequenas e as dispõe uma sobre a outra, com a de cima vi-rada de ponta-cabeça. A imagem que se forma é a de um pequeno prédio com dois andares.) 

Milos – Aí, a gente pega um monte de play-mobil e põe assim.

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(Milos despeja uma caixa com playmobil e os coloca nos andares do prédio.) 

Evic – E daí? Vamos soltar bombinhas? Já fizemos isso. Nem implode!

Milos – Só com bombinha, não... Mas se a gente pegar o Boeing que você ganhou no Natal...

Evic – (Animadíssimo.) Tá!Milos – É assim...Evic – Deixa que eu faço, senão você estraga

a ideia! 

(Evic faz, lúdico, o Boeing voar até aproximar-se do prédio formado pelas cadeirinhas. Após terrível colisão, com homenzinhos de playmobil se atirando prédio abaixo, com muita gritaria, a cadeira de cima cai sobre a de baixo, esmagan-do tudo o que havia dentro.) 

Evic – Ueba!Milos – Você gostou?Evic – Ué... Não somos os Anjos da Devasta-

ção?

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Milos – Eu gosto quando você sorri. Principal-mente quando sorri por mim.

Evic – Eu sorrio quando tenho ideias diverti-das... É a hora que eu mais gosto de brincar.

Milos – Mas essa ideia não era sua. Só o seu sorriso era seu.

Evic – Tudo é meu, Milos. Tudo. Não vai querer inverter tudo e dizer que foi você que quis massacrar o bando de playmobil!

Milos – Não, Evic... Quero dizer, Evil. Não inverto nada. Nunca. Eu te dei a ideia do terrorismo só para...

Evic – Que coisa feia, Milos! Te peguei no flagra...

Milos – Só para que você sorrisse pra mim. E você sorriu.

Evic – Fica armando emboscada só porque sabe que eu não gosto de sorrir! Lembra que a gente prometeu diante de Brenda que nunca mais soltaríamos nenhum risinho? Nunca! Nem quando estivéssemos sentindo prazer... Lembra?

Milos – Só por isso você não me machuca mais? Era divertido dar gargalhada... Eu

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gostava tanto dos seus abraços de jiboia do começo.

Evic – Mariquinha!Milos – Você não faz mais... Nem corta com

o vidro... Não faz nunca o que eu quero. E quando eu invento você muda tudo... Quer saber? (Decidido.) Vou tirar a roupa!

Evic – Nunca! Vai quebrar o código?Milos – Dá vontade. Você não inventou o

peremptivamente? Então eu posso arrancar a roupa, sim!

Evic – Louco!Milos – Desde o primeiro dia você vem in-

ventando e inventando e eu não posso in-ventar nada. Nem quando eu gosto das suas invenções posso pedir pra você repetir. Por exemplo, nunca mais paramos-o-ferrorama-por-toda-a-eternidade.

Evic – (Em fúria contida.) Se fizesse isso, ia enlouquecer o relógio. E ele podia, louco, voltar a funcionar... A trava podia se romper automaticamente. Então, os deuses morre-riam com pouca dor.

Milos – Não morreriam. Quer ver? 

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(Milos arranca a cabeça de Brenda. Deixa-a dependurada, como se o pescoço estivesse que-brado.) 

Milos – Continua tão viva quanto antes... Igual. Só fala quando apertamos o peito. E nem anda, que quem faz isso é Lindy! 

(Milos aperta o peito de Brenda, que solta, de um pequeno gravador interno, frases metáli-cas, repetitivas: “Você tocou no meu coração.”; “Você tocou no meu coração.”; “Você tocou no meu coração.” Evic se descontrola quando es-cuta os sons que nascem da boneca de cabeça arrancada. Retira uma arma do bolso, muito violento, e imobiliza Milos num golpe. Aponta o revólver de plástico para a sua nuca.) 

Evic – Se fizer isso de novo, vai se arrepender para sempre. E não tem eternidade que seja comparada a esse “para sempre”, Milos! Eu aprendi, vi no desenho da tv... (Aponta para as cruzes.) Eu te coloco ali, ó! Do ladinho delas, sua imundície! Lembra que o padre

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dizia que eram só três: Brenda e as duas la-dras? Eu mudo tudo! Eu reescrevo, palavra por palavra, a droga da bíblia-dicionário! Eu sou o poeta. Dona Vera disse isso na quinta-série, lembra? Crucificado, você será o quarto na minha poesia. (Cita sem saber, como versículos bíblicos, Esperando Godot, de Samuel Beckett, de modo afetado. En-quanto fala, refaz a reverência neonazi em direção ao espectador.) “Como é possível que dos quatro evangelistas só um conta a história desse jeito? Os quatro estavam lá – ou por ali perto – e só um deles diz que um dos ladrões foi salvo.” Devolve essa bola! Eu reescrevo tudo como os outros três evangelistas. A bíblia vai ter a crucificação de Brenda e mais três ladras,... (Silêncio tenso. Dolorido.) Meu amor!

Milos – Repete... Só o final... (Silêncio.) Evic – O fim?Milos – No fim, eu só queria ver o sol caindo,

no horizonte, ao seu lado... Como naquela excursão... Vermelho...

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Evic – Como sangue...Milos – Como a sua boca.Evic – O fim, Milos! Tem que ser assim!Milos – (Reutilizando o gesto de cumprimento

neonazi.) Não pode fazer isso com um Anjo da Devastação! Você não pode!

Evic – (Invertendo, também sem o saber, a mo-ral sofocliana, como versículo.) “Enquanto não tiver vivido em paz o seu último dia”, não pode dizer nada sobre o fim... Eu te digo isso há milênios.

Milos –  (Em luta impossível contra uma arma de brinquedo.) Quer dizer que você continua contando o tempo? Escondido? Canalha!

Evic – Cale a boca!Milos – (Grito revoltado.) Traidor! Por que

nunca mais penteou os meus cabelos, Evic? Era tão boa a brincadeira do pente-fino... Por que nunca mais quis arrancar os meus piolhos? Por que nunca mais dividiu minha franja de lado? Nunca mais me deixou bo-nito... E eu ficava bonito pra você. Por que, Evic? Por quê? Um menino como você

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podia pentear meus cabelos tantas vezes? Por quê? 

(Tiro. Muitas luzes artificiais vermelhas brin-cam no revolverzinho, de onde escampam sons eletrônicos tétricos. Milos cai. Tem sangue na cabeça. Evic, após uma inércia de quem não sabe direito o que fez, coloca-o dependurado num crucifixo. Muito nervoso, não sabe direito o que fazer. Reescreve com batom vermelho a palavra na testa de Milos. Em vez de dog, ago-ra desenha god. Pinta-lhe também a boca e, sensual, beija-lhe a boca. Desespera-se, sente-se sozinho. Anda pelo espaço e chama pela ausên-cia de Milos. Vai até o suporte do espelho. Não vê o seu duplo refletido. Grita, horrorizado. Os pais, ao ouvir o barulho, entram desesperados no quarto. Transformação subitamente realista. O garoto tem lágrimas nos olhos.) 

Pai – Que foi isso, Gabriel?Evic – Nada. Não foi nada, pai.Mãe – Cadê o Rafael? Acabou a lição? Já pas-

sou da hora.

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Evic – Então... Ele... Quero dizer, nós... É... Acabamos as equações e ele foi embora pe-los fundos, pra não atrapalhar o que vocês viam na tv... 

(Curiosamente, os pais não veem o mundo/al-tar fantasioso no quarto, nem o corpo de Milos crucificado com as bonequinhas.) 

Pai – Então pare de chilique, moleque!

(Os pais saem.) 

Evic – (Suspiro de alívio, mas ainda em de-sespero quase chorão.) Ufa! (Vai correndo aos pés de Milos. Reza, desculpando-se.) I am the Warhol boy. Eu sou o seu Anjo da Devastação. Eu brinco para não morrer, Milos... (Silêncio.) Meu amor... (Novo silên-cio. De dentro da calça, retira uma fotografia que estava escondida de Milos. Enquanto a queima, muito triste, continua.) Você re-cusou. Fez como os deuses, com quem é impossível brincar... Ai, que saudade... Hi,

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Cindy. Hi, Lindy. Hi, Brenda. Hi, Milos. I am the Warhol boy... 

 Fim

Milos e Evic, de Antônio Rogério Toscano, foi dirigi-do por Antonio Rocco e interpretado por Paulinho Roço, Victor Mendes e Fernanda Pirondi no dia 14 de outubro, às 19h00.

* * *

Antônio Rogério Toscano nasceu na cidadezinha de Macaubal (sp) e teve sua formação teatral rea-lizada em Campinas, na Unicamp, onde também iniciou sua trajetória como dramaturgo. Em São Paulo desenvolve, além do trabalho com drama-turgias em processos colaborativos e em escrituras cênicas autônomas, processos como diretor teatral e como professor de História e Teorias do Teatro. Atualmente, ministra aulas na Escola Livre de Teatro de Santo André, na Escola de Arte Dramática (ead/usp) e no curso de Comunicação e Artes do Corpo (puc/sp).

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Pequenos FurtosContardo Calligaris

Personagens

Ele – Homem, 40 anos mais ou menos, calça social, camisa, classe média.

Ela – Legs e blusa (batidos), cabelos presos em cima da cabeça por um elástico, cara e mãos chamuscadas, pés de quem anda de pés descalços na rua, chinelos, 20 anos mais ou menos. Na entrada, está com uma mochila velha, uma garrafa de plástico (para o querosene), na qual sobram 3 ou 4 dedos de líquido, e tem, na mão, os três bastões de quem faz malabarismos nos faróis (seria bom que o malabar menor, o que queima, estivesse bem embebido para que a plateia sentisse o cheiro).

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Nota geral de tom: entre os dois, não tem emba-raço; são dois adultos, com desejos “claros”; a tensão deveria ser na distância, não no embara-ço. Voz dela, de fora de cena, aproximando-se:

Ela – Sabia que você morava aqui pertoEle (abrindo a porta e ligando a luz antes de

entrar, para deixá-la entrar primeiro) – En-tre. Como é que sabia?

Ela – É que você passa na mesma hora, quase todos os dias.

Ele – Mas podia ser meu caminho, mesmo que morasse longe.

Ela – Não, moço, quem mora longe passa só de vez em quando.

Ela tira os chinelos e avança de pés descalços, vai até as janelas, examina a sala, os quadros e os pequenos objetos de decoração em cima de uma mesa de canto.

Ela – Bonito aqui, moço. Ele – É ok, eu gosto.Ela – Quantos livros.

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Ele – Não me pergunte se li todos, por favor.Ela – Não ia perguntar mesmo.

Ela coloca os bastões sobre uma mesinha de centro, deposita a mochila no chão e a garrafa ao lado da mochila

Ela – Tem um banheiro?Ele – Sim, é aqui. (Abre a porta do banheiro

social)

Ela entra e deixa a porta aberta, barulho de pi-garros procurados fundo nos pulmões. Nenhu-ma água. Sai do banheiro.

Ela – É o querosene, quando apago o bastão com a boca, dá uma coisa bem fundo, na garganta.

Ele – Você mora onde?Ela – Na zona leste, com a minha mãe.Ele – E como você volta?Ela – Não volto todas as noites. Tem lugares

que dá para trabalhar até de madrugada.Ele – E não é perigoso?

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Ela – Perigoso o quê?Ele – Na rua, de madrugada, assaltos, e você

sozinha, sei lá, os caras…Ela – Eu sei me cuidar (sorriso).

Silêncio.

Ele – Quer beber uma coisa? Café, chá, um vinho?

Ela – Um vinho, sim.

Ele sai, ela enfia na mochila um objeto que já tinha reparado antes. Ele volta com os copos e os coloca em cima da mesa. Ninguém vai beber.

Ela – Então, quer o que, moço? Transar co-migo?

Ele – Não, sim, não sei. Não é isso. Acho você tão bonita, lá na esquina. Queria ver você aqui.

Ela – Moço, eu deveria estar trabalhando nesta hora…

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Ele (tirando um bolo de dinheiro do bolso) – disse que ia lhe dar 50. (Coloca uma nota de 50 na mesa, ao lado dos bastões).

Ela – Quer ver meus seios?Ele – Adoraria.

Ela baixa a blusa completamente, mostra os seios mas sem sedução inútil e com um certo orgulho.

Ele – Você é linda.Ela – É?Ele – É.Ela – Mais cinquenta e mostro mais.

Ele coloca mais 50 em cima da primeira nota.

Ele – Mas não é preciso mostrar mais nada.Ela – E você mora sozinho aqui? Não tem

namorada?Ele – Você é minha namorada.Ela – É?

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Ele se aproxima e a beija. É um beijo na boca, longo e fundo, mas mantendo os corpos bem a distância, afastados.

Ele – Estava muito a fim disso. Ela – Não vou poder ficar. Eu não fico.Ele – Era só isso. Só queria beijar você.Ela – Mais 50 e vou poder trocar os bastões,

que são velhos, o pequeno já não fica quei-mando como deveria, você viu, não para de apagar no meio do show.

Ele acrescenta mais uma nota de 50 à pilha. Ele se ajoelha perto da mesa, pega e observa o bastão pequeno. Aproveitando da distração dela, que foi para a janela, ele esconde embaixo da mesa a garrafa:

Ele – Estranho, apagou mas está ainda úmido.Ela – É, ele não queima direito.Ele – Se vai fazer um novo, pode deixar esse

aqui comigo?Ela – Posso, sim, vou fazer outro amanhã mes-

mo.

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Sorrisos. Ela pega o dinheiro, pega os bastões mas deixa o pequeno e se esquece de pegar a garrafa, que está escondida.

Ela – Esse deixo, então.Ele – Levo você de volta.Ela – Não, não vou para lá. Igual, não tenho

mais o bastão; prefiro ir embora sozinha.Ele – Mesmo? Ela – Mesmo.Ele – Tudo bem. (Abre a porta.)

Ela enfia os chinelos; já na porta, enfia a mão na mochila e mostra o objeto que tinha escon-dido.

Ela – Roubei isso aqui. Tudo bem?Ele – Tudo bemEla – Te vejo amanhã na esquina, moço, vai

ter bastões novos. Sai. 

Ele, sozinho, coloca uma música (Billie Hol-lyday ou Marianne Faithfull) e se senta. Pega o bastão, cheira o querosene nas pontas. Tira

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uma planta de seu cache-pot. Pega a garrafa e molha bem as duas pontas, em cima do cache-pot, para não molhar a mesa. Levanta-se, vai para a cozinha, volta com um resto de baguete embalada num saco comprido de papel pardo, tira o pão e o coloca na mesa, enfia o bastão no saco e o fecha com a mão, senta-se de novo, aspira forte, como se fosse um saco de cola, e fecha os olhos.

Fim 

Pequenos Furtos, de Contardo Calligaris, foi dirigido por Emilio di Biasi e interpretado por Renata Bruel e Paulo Coronatto no dia 14 de outubro, às 21h00.

* * *

Contardo Calligaris, 61, italiano, no Brasil desde os anos 80, é psicanalista, colunista da Folha de S. Pau-lo” e escritor. Seus últimos livros: O Conto do Amor (Companhia das Letras), Quinta Coluna (PubliFo-lha), Cartas a um Jovem Terapeuta(Elsevier).

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ToscaJoão Luiz Sampaio

Roma, primeira metade do século 19. Em seu escritório no Palazzo Farnese, o barão Scarpia, chefe da polícia romana, recebe a cantora lírica Floria Tosca, a grande diva italiana da época, para jantar após um concerto. Depois de intro-duções amigáveis, ele mostra suas verdadeiras intenções. Naquela tarde aprisionou o pintor Mario Cavaradossi, amante de Tosca e revolu-cionário. Enquanto conversam, faz com que na sala ao lado Cavaradossi seja torturado. Com isso, espera que Tosca ceda a sua chantagem: se ela aceitar dormir com ele uma só noite, seu amante será libertado. Caso contrário, será acusado de revolucionário e assassinado. No

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palco, uma mesa, duas cadeiras, um prato de comida, uma garrafa de vinho, alguns papéis, entre eles uma partitura; Tosca deve estar ves-tida como uma cantora lírica, com vestido bem bufante, no limite da breguice mesmo, com os seios pulando de um grande decote, saias, saio-tes; ele pode estar vestido com roupa de gala, ou mesmo um terno com gravata. A cena começa com a gravação da ópera, a intenção é mostrar que a ação teatral se passa durante a apresen-tação de uma ópera. A transição da gravação, em italiano mesmo, para o teatro, se dá com a frase final do trecho selecionado – “Quanto?” –, que pode ser compreendido tanto em português como em italiano.

Gravação da ópera.

Scarpia – Minha pobre ceia foi interrompida. Por que está tão desanimada? Venha, bela senhora, sente-se aqui. A senhora gostaria que juntos encontrássemos uma manei-ra de salvá-lo? Sente-se, vamos conversar. Enquanto falamos, um gole de vinho? É

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espanhol. Um só gole será suficiente para reanimar seu espírito.

Tosca – Quanto?

(Corta para o diálogo dos atores)

Scarpia – Quanto? Tosca (nervosa, dramática) – O preço!!! Scar-

pia – (rindo, irônico) Ah, sim, já me cha-maram muitas vezes de mercenário. Mas a uma bela senhora eu não me vendo, não por dinheiro. (com ênfase) Não, não. (displi-centemente, andando em direção contrária a Tosca, que começa a tirar o vestido). A uma mulher eu não me vendo, não por dinheiro (para, faz uma pausa, como se pensando em algo) Se devo trair meu juramento... (se vira e vê a soprano, que está se despindo)... Mas o que é isso? 

Tosca – O quê? Scarpia – Como o quê? Tosca – Como o quê o quê? Scarpia – O que você está fazendo? Tosca – Quem? 

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Scarpia – Como quem? Tosca – Eu? Scarpia – (irônico) Não. Tosca – (olha para os lados) Então quem? Scarpia – Você!!!! Tosca – Como assim? Scarpia – Você está tirando o vestido! Tosca – Você tem ideia do tempo que demora

para tirar um vestido desses? Scarpia – Não. Tosca – Muito! Scarpia – E posso saber por que você vai tirar

o vestido? Tosca – Porque daqui a pouco você vai pedir

para dormir comigo. Scarpia – Vou? Tosca – Não vai? Até onde eu sei você aprisio-

nou meu amante e, se eu não dormir com você, você vai mandar ele para a forca e... 

Scarpia – Tá, não, então, eu vou... Tosca – Vai o quê? Scarpia – Pedir para você dormir comigo... 

(Ela volta a tirar o vestido) 

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Scarpia – ... mas você não vai aceitar. Tosca – Não entendi. Scarpia – Quer dizer, vai, mas não de verdade. 

(Ela para, pensa, olha em volta. e começa a ti-rar o vestido novamente) 

Scarpia – (corre em direção a ela). Para! Pode-mos continuar? 

Scarpia – Se devo trair meu juramento, quero algo mais de você, um outro tipo de paga-mento. Ah, como esperei esse momento. (com um misto de carinho, desejo e ódio) Já me consumiu por completo o amor pela diva. Mas agora há pouco eu te olhei como jamais havia feito. Aquele seu choro era como lava escorrendo por meus sentidos. E seu olhar, quando me olhou com ódio... e me encheu de desejo. Ah, naquele momen-to jurei que você seria minha. Minha! 

Tosca – Ah! Scarpia – Sim, eu a terei. Tosca – Ah! Scarpia – Sim, eu a terei. 

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Tosca – Seria melhor jogar minha própria vida pela janela... ô mulherzinha dramática.... 

Scarpia – (ignorando o comentário) Sim, eu a terei. E, até lá, mantenho seu Mario como refém. 

Tosca – Que homem horrível! Que horrível negociação! (vai em direção à porta) 

Scarpia – Não usarei violência contra você. Você é livre. Mas suas esperanças são vãs. A Rainha salvará um cadáver... (com despre-zo)... Como você me odeia! 

Tosca – (de saco cheio) Ai Deus! Scarpia – Não, não, não é assim... Tosca – Como não? Tá escrito (puxa do decote

um papelzinho, desdobra, começa a procu-rar... ele chega perto e começa a olhar) Tá aqui, ó: “Ai Deus” (guarda o papel) 

Scarpia – Não, mas não é assim, é um “ai deus” de medo, de ódio, de repulsa, de temor e, ao mesmo tempo, de tesão reprimido, uma coisa sensual.

Tosca – Não entendi. Scarpia – A Tosca ama o Cavaradossi, mas

ele é um pintor, um artista, um cara meio

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fraco, inseguro. O Scarpia, o Scarpia é um homem forte, seguro, bem posicionado, como o pai dela...

Tosca – Tá se achando, hein?! Scarpia – Já ouviu falar de complexo de

Elektra? Tosca – Não. Scarpia – Então esquece. Tosca – Esquece o quê? Scarpia – O complexo. Tosca – Complexada é essa mulher neurótica...

vai, vamos, continua. Scarpia – Então, o complexo de... Tosca – Não, para com isso. Continua o texto,

o texto. Scarpia – Onde eu estava? 

(Tosca puxa de novo o papel do decote e começa a procurar...) 

Scarpia – Tá, já lembrei, já lembrei. Você fala “Ai Deus”. E aí...Não, primeiro eu falo: “Como você me odeia”. Aí você fala... 

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Tosca – “Ai Deus”, já entendi, já entendi. Scarpia – (se prepara, respira fundo e, com

desprezo) Como você me odeia!! Tosca – Ai Deus!!! Scarpia – Mas te quero de qualquer maneira. Tosca – Eu te odeio, demônio, odeio, odeio.

Abjeto, vil! Scarpia – (com sarcasmo) Que importa? Es-

pasmos de ira, espasmos de amor! (agarra ela) Minha! 

Tosca – (tentando escapar dele) Não! Scarpia – Minha! Tosca – (joga ele para longe, com raiva) Não! Scarpia – Minha! Tosca – Tá bom! 

(Ele olha feio) 

Tosca – Brincadeirinha... (corre para a porta) Ajudem-me! Ajudem-me! 

(Scarpia corre atrás dela, pressiona ela na pare-de e fala no ouvido dela) 

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Scarpia – Ouça, os tambores (pausa) Eles es-tão se preparando, levando o condenado em sua última caminhada (pausa). O tempo está passando. Você sabe que ações escuras ali estão se cumprindo? Lá (pausa) Lá, se ergue o patíbulo. Ao seu Mario, por sua culpa, não resta mais do que uma hora de vida (ele sai, ela cai no chão, chorando, ele vai em direção à mesa, arruma o cabelo, se senta, serve uma bebida, acende um cigarro e a observa). 

Tosca (ajoelhada, entre o choro e a resigna-ção) – Vivi sempre da arte, vivi sempre do amor, jamais fiz mal a qualquer criatura. Em segredo ajudei os desafortunados que conheci (pausa). Com fé sincera, sempre ergui minhas orações aos céus; com fé sin-cera, sempre dei flores aos altares. Na mi-nha hora de tentação, de dor, Senhor, por que me recompensa desta maneira? Dei joias ao manto de Nossa Senhora e ofereci meu canto às estrelas, e ao céu, fazendo dele cada vez mais belo. Em minha hora

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de dor, Senhor, por que me recompensa desta maneira? 

Scarpia – Puta texto bonito, hein?! Tosca – (ainda ajoelhada) Quê? Scarpia – O texto, bonito mesmo. Mas me

explica uma coisa. Eu não entendi: o que que você tornou mais belo? Foi o céu ou o seu canto? 

Tosca – O céu. Scarpia – Não, acho que era o canto. Tosca – Tem certeza? Scarpia – Ah, tem que ser, senão não faz sen-

tido nenhum porque... Tosca (interrompendo) – Mas desde quando

ópera faz sentido? 

(Ela continua ajoelhada) 

Scarpia – Não, sério, espera aí (pega uma par-titura sobre a mesa e começa a procurar). Tá aqui ó... (ela se levanta, vai na direção dele, belisca alguma coisa que está no pra-to) “ofereci meu canto às estrelas e ao céu,

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fazendo dele cada vez mais belo”... é, não dá para saber. 

Tosca – (mastigando alguma coisa) Acho que pode ser os dois.

Scarpia – Não, não pode ser os dois. Tosca – Então tá bom. Escolhe. Scarpia – Você é que devia saber, o papel é

seu. Tosca – Meu nada. E eu lá sei do que essa

mulher maluca tá falando... Vai, vamos re-começar (ele senta-se; ela volta para o lugar dela, ajoelha, joga o rosto no chão, chorando, retira debaixo do vestido uma adaga. Pega com as duas mãos, ergue e a leva na direção do peito) Ahhhhhh! 

(Ele desperta, como de um transe, parte em di-reção a ela) 

Scarpia – Para! Para! (tira a adaga da mão dela)

Tosca – Que foi? (indignada) Scarpia – Você tá maluca? Tosca – Por quê? 

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Scarpia – Como por quê? Você ia se matar... 

(Ela pega a adaga, daquelas retráteis, de brin-quedo, mostra para ele) 

Tosca – Você anda ouvindo ópera demais.

(Ele resmunga alguma coisa) 

Tosca – Ué... (começa a pegar o papelzinho no decote). Ela não morre?

Scarpia – Morre. Tosca – Então... Scarpia – Mas não é assim. Tosca – E como é? Scarpia – É só no próximo ato. Tosca – Então me devolve a adaga. Scarpia – Não, você não vai usar a adaga. Tosca – E como eu morro? Scarpia – Você se joga do topo da prisão. Tosca – Não, não, assim não tá bom. Scarpia – Como não tá bom? Tosca – Soprano que é soprano morre de jeito

dramático.

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Scarpia – Ué, e não é dramático pular do topo de um edifício? 

Tosca – Só se mostrar para o público ela toda estraçalhada no chão.

Scarpia – Não precisa de nada disso. Tosca – (ignorando ele) E também, com a ada-

ga é muito melhor (fazendo os gestos) Você ergue os braços, lá no alto e pah! Aí pode fazer uma coisa bonita, põe uma luz verme-lha inundando o palco. Sangue é sempre um sucesso. Com bom gosto então... 

Scarpia – Tá bom, tá bom, mas o compositor quis de outro jeito. Você pula do precipício. 

Tosca – Não era de um prédio? Scarpia – De um palácio. Tosca – De uma prisão. Scarpia – De uma prisão. 

(Silêncio, ele recupera o fôlego) 

Tosca – E agora? Scarpia – Agora? Agora chega. Tosca – Assim, desse jeito? 

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p r i m e i r a s o b r a s

Scarpia – É, você queria o quê? Um final de ópera? 

Tosca – Vai, para com isso, vamos, continua. 

(Eles vão indo em direção ao fundo do palco, a luz vai diminuindo) 

Scarpia – Toma a adaga. Tosca – Pra quê? Scarpia – Você tem que me matar. Tosca – Mas não era com um garfo? Enquanto

você janta? Scarpia – Ah, agora você virou especialista? Tosca – É que garfo é bem dramático.

Fim

Tosca, de João Luiz Sampaio, foi dirigido e inter-pretado por Grace Gianoukas no dia 14 de outubro, às 22h00.

* * *

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João Luiz Sampaio é jornalista, especializado em música clássica e ópera, editor-assistente do suple-mento Cultura, do jornal O Estado de S. Paulo. Além de Tosca, escreveu para o projeto Satyrianas os textos Luísa e Confissão. Traduziu a peça A Con-fissão de Mahler, de Ronald Harewood, apresentada no Espaço Cultural cpfl, em Campinas. É autor de Prêmio Carlos Gomes: uma Retrospectiva (Al-gol), coautor de A Música Popular Brasileira Hoje (Publifolha)  e organizador da coletânea Ópera à Brasileira (Algol).

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Coleção Primeiras Obras

1. Otávio Martins2. Gabriela Mellão3. Ivam Cabral4. Sérgio Roveri5. Vera de Sá6. Sergio Mello7. Rudifran Pompeu8. Marcos Damaceno9. Lucianno Maza10. Dramamix 2007

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Foi feito o depósito legal na Biblioteca Nacional (lei n. 10.994, de 14.12.2004)Proibida a reprodução total ou parcial sem a autorização prévia dos editoresDireitos reservados e protegidos (lei n. 9.610, de 19.02.1998)

Impresso no Brasil 2010

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© Autores, 2009

Crédito Fotográfico: Bob Sousa

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação(Biblioteca da Imprensa Oficial)

Dramamix 2007 [Organização de Ivam Cabral]. – São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2009. 486 p. – (Coleção Primeiras Obras, 10)

isbn 978-85-7060-808-6Apoio: Grupo Satyros Literatura

Associação dos Artistas Amigos da Praça

1. Teatro – Brasil 2. Literatura – Teatro 3. Textos literários i. Cabral, Ivam ii. Título iii. Série.

cdd 808.2

Índice para catálogo sistemático:1. Textos literários 808.2

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formato 105 x 155 mm

tipologia Electra

papel miolo Chamois Fine Dunas 85 g/m2

papel capa Cartão Supremo 250 g/m2

número de páginas 486

tiragem 1500

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