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[email protected] Jornal do Brasil Quartafeira. 21 de julho de 2010 JB CADERNO B!B3 i TEORIA DrvulßtXfo ‘Arte e sociedade: escritos estéticos 1932-1967’ prova a atualidade do filósofo húngaro Eduardo Guerreiro Brito Losso A pesar de Gyorgy Lukács ter sido uma influência profícua para a crítica no Brasil, apesar de seu apa- rato teórico e analítico ter proporcionado, de Anto- nio Candido a Roberto Schwarz, preciosos frutos para a relação entre so- ciedade e literatura e con- tribuído, até mesmo por meio de discordâncias e deslocamentos, para a vertente mais consistente e original da crítica lite- rária brasileira, apesar disso é forçoso atestar que ele ainda é bem menos conhecido e estudado do que se deveria. * Repulsa natural 0 motivo principal da natural repulsa ao maior filósofo do Leste Euro- peu nos anos da Guerra Fria é o de que ele es- taria supostamente ul- trapassado. Sem dúvida, há muitos erros a meu ver imperdoáveis, prin- cipalmente em sua fase posterior: a adesão teó- rica ao stalinismo, a re- cusa das rupturas for- mais do modernismo, a crença num prõgresso escatológico da cons- ciência proletária e a fi- xação de um ponto de vis- ta “científico” do materia- lismo dialético. Demasia- dos problemas de ordem epistemológica e política, nos quais ele investiu tan- to, não parecem deixar so- brar algo que preste. ■!»3 Porém, a publicação de Arte e sociedade: escritos es- téticos 1932-1967, reunião de ensaios sobre estética e teoria da literatura da fase mais problemática, dos anos 30 em diante, vai na contramão do que Schwarz chamou, no Bra- sil, de “um esforço de atualização e desprovin- cianização” que termina por seguir as últimas mo- das sem dar a elas uma marca própria nem tor- ná-las produtivas para pensar suas próprias questões, ao preço de es- quecer o legado crítico do país em formação. Vício colonial É difícil, sofrendo essa modalidade de vício co- lonial, saber encontrar no vigor da releitura de Marx e Engels uma estética ap- ta a examinar, na obra li- terária, como “o elemento social se toma fator de constituição da estrutura, não modelo do conteúdo”, nas palavras de Antonio Candido. Para isso, o en- saio sobre a estética de Hegel realiza.o árduo tra- balho de mostrar histori- camente o desenvolvi- mento da estética ao sair paulatinamente de tima perspectiva idealista e a-histórica, passando ao grande avanço do “idea- lismo objetivo” de Hegel, que começa a abordar a objetividade da obra com valiosas intuições porém ainda do ponto de vista da elevação idealista do es- pírito, até a “inversão ma- GYORGY LUKÁCS - Os grandes erros do filósofo não diminuem sua importância terialista” marxiana, que reconhece o trabalho ma- terial real e “o papel da atividade social do ho- mem na gênese e no de- senvolvimento da arte”. Esse trabalho de sedi- mentação dos conceitos dos grandes filósofos da estética, modificando-os e atualizando-os, é a tarefa crítica que devemos hoje fazer com Lukács, já que, simplesmente, não há co- mo pensar a relação entre literatura e realidade sem passar por ele. Portanto, os grandes erros do filó- sofo não diminuem a ine- vitabilidade de sua impor- tância, maior do que mui- ta moda teórica atual e politicamente correta. Por isso, o trabalho de Carlos Nelson Coutinho e Tosé ι ' ί · ■ i '■ caatJriif ^ g ai FaukTNetto para á tradú7 ção e recepção de sua obra é mais do que bem vindo. 0 livro é dividido em duas partes: uma reco- lhendo artigos sobre his- tória da estética e outra dedicada à teoria mar- xista dos gêneros literá- rios. A primeira contém um polêmico texto sobre Nietzsche, publicado em 1935, isto é, em plena as- censão do nazismo, “Nietzsche como precur- sor da estética fascista”. Se o importante filósofo alemão é hoje tão estu- dado e sua recepção no século 20 é motivo de precisas análises, o arti- go impressiona por ser relativamente desco- nhecido e, no calor da hora, saber apontar a im- portância da “crítica nietzschiana da cultura capitalista” e provar ter consciência da diferen- ça entre um crítico de- cisivo da decadência burguesa e o fascismo nascente que seleciona dos seus textos só o que interessa. por antecipar um debate que está na ordem do dia. Basta comparar com a bio- grafia recém-traduzida de Domenico Losurdo pa- ra constatar o que há de atual na crítica do fi- lósofo húngaro. A segunda parte ofere- ce ensaios sobre a sátira, o romance, a lírica e a tra- gédia. Neles fica claro o seu ponto forte, a teoria dos gêneros, e seu limite: o realismo de figuração, não de escola, não chega a evi- tar um conceito de rea- lidade que exclui o expe- rimentalismo modernista em nome da manutenção do primado da ação sobre a descrição. A influência, dessa concepção causou problemas na crítica lite- rária brasileira até hoje. Aristocratismo Contudo, o nexo entre o repúdio de Nietzsche à de- mocracia, ao movimento operário, evidenciando o lado nostálgico de um aris- tocratismo suspeito, e o fascismo, é suficiente- mente bem feito para que o texto de Lukács seja fre- quentemente ignorado Eduardo Guerreiro Dnto Losso £ professor ad junto de teoria da liter aturo dd UFRRJ Nas livrarias Arte e sociedade Gyorgy Lukács. UFRJ. 268 páginas. R$ 38 Ainda tempo de

DrvulßtXfo TEORIA Ainda tempo de - Eduardo Guerreiro B. Lossoeduardoguerreirolosso.com/tempo_de_lukacs.pdf · de ensaios sobre estética e teoria da literatura da fase mais problemática,

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[email protected] do Brasil

Quartafeira. 21 de julho de 2010 JB CADERNO B!B3

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TEORIADrvulßtXfo

‘Arte e sociedade: escritos estéticos 1932-1967’ prova a atualidade do filósofo húngaro

Eduardo Guerreiro Brito Losso

A pesar de Gyorgy Lukács ter sido uma influência

profícua para a crítica no Brasil, apesar de seu apa­rato teórico e analítico ter proporcionado, de Anto­nio Candido a Roberto Schwarz, preciosos frutos para a relação entre so­ciedade e literatura e con­tribuído, até mesmo por meio de discordâncias e deslocamentos, para a vertente mais consistente e original da crítica lite­rária brasileira, apesar disso é forçoso atestar que ele ainda é bem menos conhecido e estudado doque se deveria.

*

Repulsa natural0 motivo principal da

natural repulsa ao maior filósofo do Leste Euro­peu nos anos da Guerra Fria é o de que ele es­taria supostamente ul­trapassado. Sem dúvida, há muitos erros a meu ver imperdoáveis, prin­cipalmente em sua fase posterior: a adesão teó­rica ao stalinismo, a re­cusa das rupturas for- mais do modernismo, a crença num prõgresso escatológico da cons­ciência proletária e a fi­xação de um ponto de vis­ta “científico” do materia­lismo dialético. Demasia­dos problemas de ordem epistemológica e política, nos quais ele investiu tan­to, não parecem deixar so­brar algo que preste.

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Porém, a publicação de Arte e sociedade: escritos es­téticos 1932-1967, reunião de ensaios sobre estética e teoria da literatura da fase mais problemática, dos anos 30 em diante, vai na contramão do que Schwarz chamou, no Bra­sil, de “um esforço de atualização e desprovin- cianização” que termina por seguir as últimas mo­das sem dar a elas uma marca própria nem tor­ná-las produtivas para pensar suas próprias questões, ao preço de es­quecer o legado crítico do país em formação.

Vício colonialÉ difícil, sofrendo essa

modalidade de vício co­lonial, saber encontrar no vigor da releitura de Marx e Engels uma estética ap­ta a examinar, na obra li­terária, como “o elemento social se toma fator de constituição da estrutura, não modelo do conteúdo”, nas palavras de Antonio Candido. Para isso, o en­saio sobre a estética de Hegel realiza.o árduo tra­balho de mostrar histori­camente o desenvolvi­mento da estética ao sair paulatinamente de tima perspectiva idealista e a-histórica, passando ao grande avanço do “idea­lismo objetivo” de Hegel, que começa a abordar a objetividade da obra com valiosas intuições porém ainda do ponto de vista da elevação idealista do es­pírito, até a “inversão ma­

GYORGY LUKÁCS - Os grandes erros do filósofo não diminuem sua importância

terialista” marxiana, que reconhece o trabalho ma­terial real e “o papel da atividade social do ho­mem na gênese e no de­senvolvimento da arte”.

Esse trabalho de sedi­mentação dos conceitos dos grandes filósofos da estética, modificando-os e atualizando-os, é a tarefa crítica que devemos hoje fazer com Lukács, já que, simplesmente, não há co­mo pensar a relação entre literatura e realidade sem passar por ele. Portanto, os grandes erros do filó­sofo não diminuem a ine­vitabilidade de sua impor­tância, maior do que mui­ta moda teórica atual e politicamente correta. Por isso, o trabalho de Carlos Nelson Coutinho e Tosé

ι ' ί · ■ i ' ■ c a a t J r i i f ^ g a i

FaukTNetto para á tradú7 ção e recepção de sua obra é mais do que bem vindo.

0 livro é dividido em duas partes: uma reco­lhendo artigos sobre his­tória da estética e outra dedicada à teoria mar­xista dos gêneros literá­rios. A primeira contém um polêmico texto sobre

Nietzsche, publicado em 1935, isto é, em plena as­censão do nazismo, “Nietzsche como precur­sor da estética fascista”. Se o importante filósofo alemão é hoje tão estu­dado e sua recepção no século 20 é motivo de precisas análises, o arti­go impressiona por ser relativamente desco­nhecido e, no calor da hora, saber apontar a im­portância da “crítica nietzschiana da cultura capitalista” e provar ter consciência da diferen­ça entre um crítico de­cisivo da decadência burguesa e o fascismo nascente que seleciona dos seus textos só o que interessa.

por antecipar um debate que está na ordem do dia. Basta comparar com a bio­grafia recém-traduzida de Domenico Losurdo pa­ra constatar o que há de a tual na crítica do fi­lósofo húngaro.

A segunda parte ofere­ce ensaios sobre a sátira, o romance, a lírica e a tra­gédia. Neles fica claro o seu ponto forte, a teoria dos gêneros, e seu limite: o realismo de figuração, não de escola, não chega a evi­tar um conceito de rea­lidade que exclui o expe­rimentalismo modernista em nome da manutenção do primado da ação sobre a descrição. A influência, dessa concepção causou problemas na crítica lite­rária brasileira até hoje.

AristocratismoContudo, o nexo entre o

repúdio de Nietzsche à de­mocracia, ao movimento operário, evidenciando o lado nostálgico de um aris­tocratismo suspeito, e o fascismo, é suficiente­mente bem feito para que o texto de Lukács seja fre­quentemente ignorado

Eduardo Guerreiro Dnto Losso £ professor ad junto de teoria da liter aturo dd UFRRJ

Nas livrarias

Arte e sociedadeGyorgy Lukács. UFRJ. 268 páginas. R$ 38

Aindatempo

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