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A JMAGIN ACAO SI1 'v IBÓLICA J , l M GILBERT DURAND A IMAGINAÇAO , SIMBOLICA Gilhert Durand Um estudo do Imaginário e do pensamento simbólico, mostrando sua funç ão na estrutura cognitiva do homem, éo que de mais importante se pode destacar em A imaginaçã o simbólica de Gilbert Durand . Est e livro é fruto de uma pesquisa que em pou cas páginas condensa um trabalho bastante amplo sobre o símbolo e o re- lacionamento de nossa civiliza ção com ele. Gilbert Durand é um estudioso do símbolo, da imaginação. Segundo ele, "o pensamento em sua totalidade encontra-se integrado na função simbólica". Nesta obra , além de mostrar o papel que coube ao símbolo em diferentes trabalhos, como os de Freud, Lévi-Strauss, Jung , Dumézil , Cassirer e Bach elard, Gilbert Durand aponta um caminho para o apaziguamento do conflito entre Razão e Imagem e acena com a espe rança do esta- belecimento de uma ciência e sabedoria novas, fundadas no símbolo. o autor conclui o livro afirm ando "que o símbolo, em seu dinamismo instaurativo à pro cura do sentido, constitui o modelo mesmo da mediação do Etern o no temporal" . Talvez possamos nos vol tar par a o pensamento simbólico e redescobrir esse poder natural de mediação entre o Eterno eo temporal, e seu poder de integr ação do psiquismo diante do processo de fragmentaç ão vertiginoso de nossa época. Para os que se interessam pelo estud o do simbolismo e do pensamento simbólico, este livro p ode servir como um precio- so guia. ED IT O R CULT RIX EDIT O A DA UNIVERSIDADE DE SAü PA UL( J I?l\ '? ?8t :: . ' .- o símbolo é a eplfanla de um mlstéflo N,Cham. 128.3 D949 1988 Titulo :A Irnllg\naCllO slmhouce Autor : DURAND , Gilher1 1111 111 1111111111111111111 11111 1111 :11111111 11 111, PIJr.PR - Rf Editora Cultrix Editora da Universidade de São Paulo

Durand Imaginacao Simbolica Pesq

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introdução a antropologia do imaginário de Durand e mostrando a imaginação como função simbólica

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  • A JMAGINACAO SI1'vIBLICAJ

    , lM GILBERT DURAND

    A IMAGINAAO,

    SIMBOLICA

    Gilhert Durand

    Um estudo do Imaginrio e do pensamento simbl ico,mostrando sua fun o na estrutura cognitiva do homem, oque de mais importante se pode destacar em A imaginaosimblica de Gilbert Durand .

    Est e livro fruto de uma pesquisa que em poucas pginascondensa um trabalho bastante amplo sobre o smbolo e o re-lacionamento de nossa civilizao com ele.

    Gilbert Durand um estudioso do smbolo, da imaginao.Segundo ele, "o pensamento em sua to talidade encontra-seintegrado na funo simblica" . Nesta obra , alm de mostraro papel que coube ao smbolo em diferentes tr abalhos , comoos de Freud, Lvi-Strauss, Jung, Dumzil, Ca ssirer e Bachelard ,Gilbert Durand aponta um caminho para o apaziguamento doconflito entre Razo e Imagem e acena com a esperan a do esta-belecimento de uma cincia e sabedoria novas, fundadas nosmbolo .

    o autor conclui o livro afirmando "que o smbolo, em seudinamismo instaurativo procura do sentido, constitui o mod elomesmo da mediao do Eterno no temporal" . Talvez po ssamosnos vol tar para o pensamento simblico e redescobrir esse podernatural de mediao entre o Eterno e o temporal, e seu poder deintegrao do psiquismo diante do processo de fragmenta overtiginoso de nossa poca.

    Para os que se interessam pelo estudo do simbolismo e dopensamento simblico, este livro pode servir como um precio-so guia.

    ED IT OR CULTRIXEDIT O A DA UNI VERSID ADE DE SA PA UL( J

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    o smbol o a eplfanla de um mlstfl o

    N,Cham. 128.3 D949 1988Titulo: A Irnllg\naCllO slmhouceAutor: DURAND , Gilher1

    1111111 1111111111111111111111111111:1111111111 111,0008139~

    PIJr.PR - Rf

    Editora CultrixEditora da Universidade de So Paulo

  • GI LBERT DURAND

    Dados de Catalogao na Publicao (CIP) Internacional(Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    A IMAGINACO SIMBLICAI

    D953i

    872385

    Durand, Gilbert.A imaginao simblica / Gilbert Durand ; traduo

    Eliane Fittipaldi Pereira. - So Paulo: Cultrix, Editorada Universidade de So Paulo, 1988 .

    Bibl iografia .

    1. Imaginao 2. Simbolismo (Psicologia) I. Ttulo.

    CDD150-128 .3

    ludices para catlogo sistemtico:

    1. Imaginao: Antropologia filosfica 128.32. Simbolismo: Aspectos psicolgicos 150

    TraduoLlLIANE FITIPALDI

    Licenciada em Letras e aluna regular de mestrado em lngua e literaturafrancesa na Universidade de So Paulo.

    EDITORA CULTRIXSo Paulo

    EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SO PAULO

  • "- E n6s Ihe bradamos: Abrahaml Acreditaste em teu sonho I Na verdade, eis a( a prova evidente '"

    Afcoriio, XXXVII, 104106.

    PREFACIO A QUARTA EDICAO FRANCESA

    Aqui esta a quarta edic,:ao frances a deste livrinho que ainda se considera uma modesta "iniciac;:ao filos6fica".

    Quase nada foi alterado em nosso texto de vinte anos atras (com excelfao de duas notas e de uma palavra) e na "Bibliografia Sumaria" que, naquela epoca, no rastro dos novos Cahiers Interna-tionaux de Symbo/isme, nos acompanhou na redac,:ao desta pequena obra. Mas a bibliografia do sfmbolo do mito, da "imaginac;ao simb6-lica" aumentou vitoriosamente depois de 1964, A imaginac;:ao andou reconquistando sua autoridade, senao seu poder. Assim, este novo prefacio pretende ser apenas um breve complemento bibliogrMico para auxi liar os estudantes dos anos 80.

    Em primeiro lugar, gostarfamos de assinalar que a obra mais importante de E. Cassirer e a maior parte da obra de C. G. Jung foram, finalmente, traduzidas para 0 frances. Tambem as teses de C. Mauron vieram a luz quase ao mesmo tempo que as tres edic,:6es precedentes de nosso livro. Depois, os trabalhos inovadores de Henry Corbin, de Mircea Eliade e de Jung passaram a posteridade nos tnh Cahiers de I'Herne que Ihes foram consagrados. Finalmente, e sobretudo, gosta rfamos de indicar que as perspectivas de uma "hermenE!utica instaura dora" e de uma "remitificac;:ao" esboc;:adas neste livro viramse provei-tosamente ampliadas, tanto pelos trabalhos daquela que podemos, hoje, chamar "a escola mitocr(tica", como pelas pesquisas de "mita-nalise", executadas com base em Jung.

    Na prime ira categoria, citarfamos as importantes contribui

  • Georges Balandier, J. Brun, A. Pessin, F. Pelletier, M. Maffesoli, A. Berque e Nicole Martinez, e necessario colocar a obra original de James Hillman . Deve-se tambem anunciar, em ambas as areas, a apanr,;ao Iminente dos consideraveis trabalhos de jovens pesquisadores como Y. Durand, P. F aysse, G. Bosetti, Patrice Cambro nne, Patrick Tacussel.

    Finalmente, devemos indicar que todos esses proveitosos esforc;:os de restaurac;:ao do pensamento simb61ico vem convergindo, ha vinte anos, no mundo todo, para novas e duradouras instituic;:6es, particular-mente no Centre de Recherche sur 1'1 maginaire [Centro de Pesquisas sobre 0 Imagin'ariol, cuja direc;:ao nos foi confiada pelo CNRS (Centro Nacional de Pesquisa Cientffica) e cuja fertilidade pluridisciplinar e propagac;:ao internacional sao cada vez maiores. Atualmente, 0 C. R. I., tendo-se transformado em Groupement de Recherches coordonmies, n~ 56 (Grupo de Pesquisas Coordenadas, n~ 56), reune umas vinte equipes de especialistas franceses e estrangeiros, cuja celula- mae tivemos a oportunidade de fundar, ha dezoito anos, com os falecidos colegas Leon Cellier e Paul Deschamps, na Universidade de Grenoble.

    Que a quarta edic;:ao deste livrinho, que se tornou uma iniciac;:ao d3ssica a qualquer empreendimento de remitificac;:ao, ainda possa ser util a todos os pesquisadores do futuro, as sucessores emergentes dos mestres aqui evocados, que nao se contentam mais com explicac;:6es " redutivas", herdadas dos positivismos do seculo passado .

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    INTRODUC;:AO

    o VOCABULARIO DO SIMBOLISMO

    "Urn sinal II uma parte do mundo ffsico do ser (being), urn s(mbolo duma parte do mundo humane da signiticacao (meaning) ."

    E. Cassirer, An Essay on Man, p. 32.

    Sempre reinou extrema confusao no uso de termos .relativos ,00 imaginario. Talvez se deva presumir que esse estado de cOlsas provem da extrema desvalorizac;:ao que sofreu a imaginavao, a "phantasia", no pensamento do Ocidente e da AntigUidade ciassica. De qualquer

    . f bol "" bl ""pa-' modo "imagem", "signo", "alegoria", "5 m 0, em ema, leI-bola": "mito", "figura", "[cone", "rdolo" etc. sao utilizados indiferen-temente pela maioria dos escritores. 1 ..

    A consciencia disp5e de duas maneiras de representar 0 mundo. Uma direta, na qual a propria coisa parece estar presente na mente, co~ na percepc;:ao au na simples sensac;:ao. A outra, indireta,.q~~ndo, par qualquer razao, 0 objeto nao pade se apresentar 11 senslbJlldade "em carne e ossa", como, par exemplo, nas lembranc;:as de nossa inffincia na imaginac;:ao das paisagens do planeta Marte, na inteligencia da volt~ dos eletrons em torno de um nucleo atomico au na

    1. . Ct. G. Dumas, TraitS de psych%gie, t. IV, pp. 266-268. Ct. 0 ,~xcele~te artigo de F. Edeline, "Le symbole et I'image salon la thl!on8 des codes ,Cahlers /nrernationaux de Symbolisme, n92, 1963.

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  • representac;:ao de um a/em-morte. Em tados esses casos de consciencia indireta, 0 objeto ausente e re-(a)presentado a consciencia por uma imagem, no sentido amp/o do termo.

    Na verdade, a diferenc;:a entre pensamento direto e pensamento indireto nao e assim tao nftida como acabamos de expol" com a preocu-pac;:ao de sermos claros. Seria me/hor afirmar que a consciencia disp5e de diferentes graus da imagem (conforme eJa seja uma c6pia fiel da sen-sac;:ao ou simplesmente assinale 0 objeto), cujos dois extremos seriam constitu (dos pel a adequa!;ao total, a presenc;:a perceptiva ou a inade-quac;:ao mais acentuada, ou seja, um signo eternamente privado do significado, e veremos que esse signo long(nquo nada mais e do que o sfmbolo.

    o s(mbolo se define, primeiramente, como pertencente a cate-goria do signo. Mas ,a maioria dos sign os sao apenas subterrugios de economia, remetendo a um significado que poderia estar presente ou ser verificado. ~ assim que um sinal simplesmente precede a presenc;:a do objeto que representa Assim tambem uma palavra, uma sigla, um algoritmo substituem economicamente uma longa definic;:ao conceitual. ~ mais rapido trac;:ar numa etiqueta uma caveira estilizada e duas trbias cruzadas do que explicitar 0 complicado processo pelo qual 0 cianeto de potassio destr6i a vida Da mesma maneira, 0 nome "Venus", aplicado a um planeta do sistema solar, ou ainda sua sigla astrol6gica ? , ou ate mesmo 0 conjunto de algoritmos que definem a trajet6ria elipsoidal desse planeta nas f6rmulas de Kepler sao mais economicos do que uma longa definic;:ao baseada nas observac;:6es da trajet6ria, da magnitude, das distancias desse planeta em relac;:ao ao Sol.

    Como os signos desse tipo nada mais sao do que um meio de economizar as operac;:oes menta is, nada impede (pelo menos em teoria) que sejam escoJhidos arbitrariamente. Basta declarar que um disco vermelho corn uma barra branca significa que eu nao devo avanr;:ar, para que esse sinal se transforme no de "contramao". Nem e necessario que figure, no painel sinalizador, a imagem de um policial ameac;:ador. Assim tambem, a maior parte das palavras, especial mente os nomes proprios, para quem niio estudou a filologia da Ifngua, parecem desti-tu/dos de qualquer motivayao, de quaJquer razao para serem consti-tufdos deste modo e niio de outro : eu nao preciso saber que havia um deus celtico Lug e que "Lyon" vem de Lugdunum, para nao confundir a cidade de Lyon com a de Grenoble. Basta saber que a palavra Lyon _

    12

    , I II 'd de" para nao confundir que to rno precisa atraves da pa avra CI a 'd d ' . . al "Iion" (leao) - remete a uma CI a e fonetlcamente com a aOim _.

    realmen te existe na confluencia do Rhone e do Sao~e francesa que d ara util izar esse signa fonetico numa conven

  • e ' o signo s6 pode referir-se a urn sentido nao b ' ,

    Por exem I ' . ,a um 0 )eto senslvel. . ' po, 0 mlto escatol6glco que COroa Le Phooo' .

    slmb6lico'a d n e um mlto ,) que escreve 0 dom {nio prcibido a toda experiencia

    humana, 0 alem -morte. Pode-se tamb-

  • o "significante", estara sempre carregada do maximo de concretude e, como diz muito bem Paul Ricoeur,13 todo sfmbolo autentico possui tres dimensoes concretas: ele e, ao mesmo tempo, "c6smico" (ou seja, retira toda a sua figurac;:ao do mundo vis(vel que nos rodeia); "onrrico" (enraiza-se nas lembranc,:as, nos gestos que emergem em nossos sonhos e constituem, como bem mostrou Freud, a massa concreta de nossa biografia mais intima); e, fina/mente, "poetico", ou seja, 0 s(mbolo tambem ape/a para a linguagem, e a linguagem mais impetuosa, portanto, a mais concreta_ Mas a outra metade do sfmbolo, essa parte indivislvel e indizlvel que faz dele um mundo de representac;:6es indi-retas, de signos a/eg6ricos sempre inadequados, tambem constitui uma especie 16gica a parte. Enquanto num simples signo 0 significado e limitado e 0 significante, atraves do pr6prio arbitrario, infinito; enquanto a simples a/egoria traduz um significado finito at raves de um significante nao menos de/imitado, os dois termos do Sumb%nl4 sao infin itamente abertos_ 0 termo significante, 0 unico concreta-mente conhecido, remete em "extensao", se podemos assim dizer, a todas as espfkies de "qualidades" nao figuraveis, e isso ate a antinomia. ~ assim que 0 signa simb6lico, "0 fogo", aglutina as sentidos divergen-tes e antinomicos do "fogo purificador", do "fogo sexual" e do "fogo demoniaco e infernal".

    Mas paralelamente, 0 termo significado, concebivel na melhor das hipoteses, mas na~ representavel, sedispersaem todo 0 universo concreto: mineral, vegetal, animal, astral, humano, "cosmico","onfrico"ou "poeti-co". ~ assim que 0 "sagrado", ou a "divindade", pode ser designado por qualquer coisa: uma pedra elevada, uma arvore gigante, uma aguia, uma serpente, um planeta, uma encarnac;:ao humana como Jesus, Buda ou Krishna, ou ate mesmo atraves do apelo a Infancia que reside em n6s_

    Esse duplo imperialismo ls - ao mesmo tempo do significante

    13. P. Ricoeur, Finitude et culpabilite, II, La symbolique du mal, p. 18,

    14. Sobre a etimologia de Sumbolon, cf. R. AlJeau, De la nature des svmboles, pp . 14, 49. Em grego (sumb%n) como em hebraico (mashal) ou em alemao (Sinnbild) , 0 termo que significa simbolo implica sempre a reuniao de duas merades : signo e significado_

    15. Cf. p, Godet, op. cit ., p. 121: "0 s(mbolo, cu;a propriedade e manifestar um sentido do qual e portador, pode ser rico de numerosos sentidos."

    16

    e do significado - na imaginac;:ao simb61ica marca especificamente 0 signa simb61 ico e constitui a "flexibilidade" do s(mbo~0.16 Tanto 0 imperialismo do significante que, ao se r~pe~ir, chega a I~tegra~ n.uma (mica Figura as qualidades mais contradlt6nas, como o.lmpenalismo d . 'f' ado que consegue transbordar sobre todo 0 unlverso sensrvel o slgnl IC , " -f" " para se manifestar, repetindo incansavelmente 0 ate epl anlco ,

    S em 0 carater comum da redundancia . ~ atraves do poder de pos u . d _ . ue 0 s{mbolo ultrapassa indefinidamente sua Ina equayao repetJr q . , _ d

    fundamental. Mas essa repeti

  • Um mito - ou um conjunto de parabolas evangelicas, por exempio _ e uma repetic;:aa de certas re/aC;;Des, 16gicas e lingufsticas, entre ideias au imagens expressas verbalmente. ~ assim que 0 "Reino de Deus" e expresso, nos Evangelhos, par um conjunto de parabolas que consti-tuem, principa l mente em Sao Mateus, 19 um verdadeiro mito simbolico onde a relac;:ao semantica entre 0 joio e 0 trigo, a pequenez do grao de mostarda e 0 tamanho da arvore que dele nasceu, a rede e os peixes etc., conta mais do que 0 sentido literal de cada parabola.

    Finalmente, a imagem pintada, esculpida etc., tudo aquilo que se poderia chama. de s/mb% Iconograflco e constituido de mGltiplas redundancias: "copia" redundante de um lugar, de um rosto, de um modelo, COm certeza, mas tambem representac;:ao pelo espectador daquilo que 0 pintor ja representou tecnicamente. Nos casos de lcones religiosos ha ate a "copia" em varios exemplares de um mesmo modelo : cada estatueta de Nossa Senhora de Lourdes e a irnaculada Conceicao (mica; 0 altar de cada igreja e, ao mesmo tempo, 0 Cenaculo eo G6Ig;ta. Mas, mesrno no caso de uma simples pintura profana, a Gioconda , por exemplo, compreende-se bern esse poder da imagem simb6lica: 0 "modelo" Mona Lisa desapareceu para sempre, nao sabemos nada a seu respeito, mas seu retrato torna presente essa ausencia definitiva. Cada espectador que visita 0 Louvre repete, mesmo sem sabe r, 0 ate red undante de Da Vinci, e a Gloconda Ihe aparece concretamente numa inesgotavel epifania. ~ certo que ha variacoes na intensidade simb61ica de uma ima~m pintada e na intensidade significativa do sistema de redundancias iconograticas. A imagem veicula mais ou menos "sentido". E, como ja se disse, Os Peregrinos de Emaus de Remb,andt sao incontestavelmente mais ricos, desse ponto de vista, do que 0 bol. 21 Assim tarnbem, a intenc;:ao simb61ica de um (cone bizantino ou, aind a, de um Giotto e mais intensa que a do pintor

    19. Sao Mateus, 13-3, 24-31, 31.33, 31-44,45-46,47 _51.

    20. H. Corbin (op. cir., p . 13) insistiu bastante nesse poder de repeticao instau-radora do objeto simb6lico, que compara a '~nterpret~ao" musical; "0 s (mbolo .. . jamais e exp/icado de uma vez por todas, mas deve ser sempre decifrado de novo, assim como uma partitura musical nunca e decifrada de uma vez por todas , mas exige uma execucao sempre nova." 21. P. Gadet , ap. cit., p. 106.

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    impressionista que s6 se interessa pelo "rendu"* epidermico da luz: Uma pintura ou uma escultura de valor simb61ico e aquela ~ue. ~OSSUI o que ttienne Souriau chama - par um termo amplamente 1,~stlflC~o, como veremos - "0 Anjo da Obra", ou seja, esconde um conteudo alem".22 0 verdadeiro "[cone" e "instaurativo" de um sentido, a simples imagem - que se perverteu rapidamente em Idolo ou fetiche -e um fechamento sobre si mesma, uma recusa do sentido, uma "c6pia" inerte do senslvel. No dom(nio do lcone mais simbolieamente intensi~o, parece certo que, do ponto de vista do consumido~ ~3 Icone bizantlno e 0 que melhor satisfaz ao imperativo da reconducao e, do ponto de vista do produtor e do consumidor, e a pintura Tehan e taoista a que reconduz a artista chines ao sentido do objeto sugerido por alguns tracos ou alguns "respingos de aquarela".24

    . Detenhamo-nos agora nessa definic;ao, nessas propriedades e nessa classificacao sumaria do s(mbolo enquanto signo que remete a um indizt'vel e invisfvet significado, sen do assim obrigado a encarnar concretamente essa adequar;ao que the escapa, pe/o jogo das redundan-cias m(ticas, rituais, iconognfficas que corrigem e completam inesgo-tavelmente a inadequar;:ao.

    Ja 5e ve, de imediato, que esse modo de conhecimento, jamais adequado, jamais ".objetivo", pois nunea atingiu um objet? e se de-seja sempre essencial, po is basta a si mesmo e carrega c~nsl.go, ~sca~dalosamente, a imagem imanente de uma transcendencla, lamals

    Rendu; tecnica que reconstitui fielrnente a impressao oferecida pela realidade (N. T.) 22. Cf. E. Souriau, Cambre de Dieu, Paris, 1955, p. 167 e, tambem, pp. 133-144, 152 -153. 280 -282. Cf. aquilo que Focillon denomina a. aura que transfigura a obra (La vie des formes, Paris, Leroux, 1934); cf. Igualmente H. Corbin, ap. cit., p. 215, n. 10 e P. Godet, 00. cit., p. 127.

    23. 0 (cone E! definido como anamnese pelo 5etimo ConcClio Ecumenico (784, Nioeia). 24. Para todo 0 Extremo Oriente sino-japont!s, a beleza co.ncr6ta, como para Platao e reconduc;:iio iluminadora a beleza em si e ao alE!m tnefavel da bel.eza. Ja se ~isse do pintor chines Yu-K'O que, enquanto pintava bambus, "esquecla-se de seu pr6prio corpo e era transformado em bambus". Mas esses bambus sao, por sua I19Z , s(mbolos, e reconduzem a um ~xtase m(stico. Cf. F. S. C. Northrop, The Meeting af East and West, p. 340.

    19

  • QUADRO I - Os Modos de Conhecimento Indiretoexpl (cita mas sempre ambgua e freqentemente redundante, verdir igirem-se contra ele, no curso da histria, numerosas opes reli-giosas ou filosficas . E esse conflito que traaremos sucintamenteno primeiro captulo deste livrinho. Mas, tendo constatado que, apesarda ofensiva de toda uma civilizao, o smbolo passa muito bem e quea prpria atitude do pensamento ocidental contemporneo, quer queiraquer no, deve encarar metodicamente o "fato" simblico sob penade alienao, estudaremos, nos captulos seguintes, A realidade simb-lica e os mtodos da simbologia. Finalmente, nos ltimos captulos,depo is de mostrar o caminho do apaziguamento para o conflito daRazo e da Imagem, poderemos, serenamente, em vista dos resultadosdos mtodos da hermenutica, preparar uma cincia e uma sabedorianova fundada na simbolog ia e estudar as funes filosficas do sirnbo-lismo. Mas, antes, faremos um breve resumo das principais diferenasque acabamos de estabelecer entre signo, alegoria e smbolo.

    Significante

    Relao entresignificante esignificado

    Significado

    Qualificativos

    o signo(no sentido literall

    Arbitrrio.

    Adequado .

    Equivalncie indicativa : ~.

    Pode ser apreen-dido por um ou-tro processo depensamento .

    Fornecido antesdo significante.

    Sem iolgico(Saussurel.

    Semit ico(Jung, Cassired.

    Ind icativo(Cassi rer} ,

    A alegoria

    No-arbitrrio,ilustrao geralmente convencional dosignificado .Pode ser uma parte,um elemento, umaQualidade do significada (emblemaI.Parcislmente ade-quado.

    Traduo: ~(traduz economica-mente o significadol.

    D ificilmente apreen-sfval por meio direto ,geralmente um con-ceito complexo ouuma idia abstrata.Fornecido antes dosign ificante .

    Alegrico(Jung).

    Emblemtico.Sintemtico

    (R. Alleaul.

    o srrnbolo..

    No-arbitrrio.

    No-convencionet.

    Reconduz signiflcao.Aparece isolado .

    Suficiente e inade-quado ou para-blico .

    -Epifania: +-

    Nunca pode seratingido pelo pen-samento direto.

    Nunca fornecidofora do processosimb lico .

    Simblico.Semntico

    (Saussurel.

    20

    Signo "arbitr- Signo "associado" (EdelineLrio" (Edeline] .

  • CAPfTULO I

    A VITO R IA DOS ICONOCLASTAS OU 0 AVESSO DOS POSITIVISMOS

    "0 positivismo e a filosofia que, com 0 mesmo movimento, suprime a Deus e clericaliza todo o pensamento."

    Jean Lacroi x, La sociologie d'ALguste Comte,

    p.ll0 .

    Pode parecer duplamente paradoxal querer tratar do "Ocidente iconoclasta". Pois nao e esse 0 epfteto reservado pela Hist6ria da cultura a crise que sacudiu 0 Oriente bizantino do reculo VII? E como e que pode ser taxada de iconoclasta a civilizaC;:3o abundante de imagens que inventou a fotografia, 0 cinema, os inumeraveis meios de reproduC;:3o ico nogratica?

    Mas ha muitas formas de iconoclasmo. Uma, por falta, puritana, e a de Bizancio: desde 0 reculo V, com Santo Epifanio, manifestase e se torna cada vez mais forte sob a influencia do legalismo judeu ou muc;:ulmano, e consiste principalmente numa exigencia reforma dora, de pureza do sfmbolo, contra 0 realismo demasiado antropo' morfo do humanismo cristol6gico de Sao Germano de Constantinopla

    23

  • e, depois, de Theodoros Stoudite. ! A outra, mais insidios3, e de algunl modo, por excesso , contraria em suas intenc;:6es ados piedosos conef-lios bizantinos. Ora, se 0 iconoclasmo do primeiro tipo foi um simples acidente na ortodoxia, tentaremos mostrar que 0 iconoclasmo da segunda especie foi, por excesso, por evapora
  • redutor da geometria analitica vai se aplicar ao Ser absoluto, ao pr6prio Deus.

    t verdade que, com 0 seculo XVIII, inicia-se uma reac,:ao contra 0 cartesianismo. Mas essa reac;:ao so sera inspirada pelo empirismo escolas tico de Leibniz e de Newton, e veremos mais adiante que esse empirismo e tao iconoclasta como 0 metodo cartesiano. Todo 0 saber dos dais ultimos seculos se resumira em um metoda de analise e de medida matematica mesclada a preocupac,:ao com a enumerac,:ao e a observac,:ao, da qual a ciencia hist6rica se beneficiara. ~ assim que se inaugura a era da explicacao cientificista que, no seculo XIX, sob a pressao da historia e de sua filosofia, se desviara para 0 positivismo.6

    Essa concerx;;ao "semioI6gica" do mundo sera a concepc;:ao oficial das universidades ocidentais, especial mente da universidade francesa, filha mais velha de Auguste Comte e neta de Descartes. Nao apenas 0 mundo e passivel de explorac,:ao cientffica, mas apenas a explorac;:ao cientffica tem direito ao titulo despretensioso de conheci-mento. Durante dois seculos, a imaginac,:ao e violentamente anate-matizada. Brunschvicg ainda a considera como "pecado contra 0 espfrito", enquanto Alain s6 ve nela a infancia confusa da consciencia;7 Sartre descobre no imaginario apenas a "nada", "objeto fantasma", "pobreza essencial" .8

    Na filosofia contemporanea produz-se, no rastro do impulso cartesiano, uma dupla hemorragia do simbolismo: ora se reduz a cogito as "cogitac;:6es", e entao se obtem 0 mundo da ciencia, onde a signo s6 e pensado como termo adequado de uma relac,:ao, ora se "deseja submeter 0 ser interior a consciencia".9 Obtem-se, assim, fenomenologias desprovidas de transcendencia, para as quais a colec;:ao dos fenomenos nao mais se dirige para um polo metaffsico, nao evoca tanto 0 ontol6gico quanta ela 0 invoca, nao atinge mais do que uma

    6. Cf . F. S. C. Northrop, The Meering of East and West, pp. 71 55, nas quais 0 autor aproxima, desse reino do algoritmo, a igualdade politica na dernocracia de Locke, inspiradora dos te6ricos franceses da Revoluc;ao .

    7. Cf. Brunschvicg, Heritage des mors, heritage d 'idees , p_ 98. Alain, Pre/imi-naires a /a myrhologie, pp. 89 55. Cf. Gusdorf. Myrhe er mt!taphysique, p. 174.

    8. Same, L'imaginaire, pp. 82 , 85, 91,137,174-175 etc. 9. Alquie , op. cit., p. 223.

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    "verdade a distancia, uma verdade reduzida."l0 Em resumo, pode-se dizer que a denuncia das causas finais feita pelo cartesia~i~.~o e a red uc,:ao do ser ao tecido de relac,:6es objetivas dele resultante liquid ara~, no significante, tudo aquilo que era sentido figurado, toda recondw;:ao a profundidade vital do apelo ontol6gico.

    Esse iconoclasmo radical nao se desenvolveu sem gerar graves repercussoes na imagem artistica pintada ou esculpida. 0 pa.pel cultural da imagem pintada foi minimizado ao extremo num unlverso onde triunfa, a cada dia, a forc,:a pragmatica do signa. Ate mesmo Pascal afirma seu desprezo pela pintura, prefaciando, assim, 0 desamparo social no qual "0 artist a" sera mantido pelo consenso ocidental, atraves da pr6pria revolta artfstica do Romantismo- 0 artista, como o. (~ne, nao tem mais lugar numa sociedade que pouco a pouco elimmou a funcao essencial da imagem simb6lica. Do mesmo modo, apos as vastas ' e ambiciosas alegorias do Renascimento, ve-se, no conjunto, a arte dos seculos XVII e XVIII minimizar-se em puro "divertimento", em puro "ornamento". A propria imagem pintada, na al~oriaa~refecida dos Le Sueur na alegoria politicados Lebrun e dos David, asslm como na "scene d~ genre" do seculo XV III, ja nao procura mais evocar_ Dessa recusa da evoCa9ao nasce 0 ornamentalismo academico que, dos epfgonos de Rafael a Fernand Leger, passando por D~v~d e pelos ep[gonos de (ngres, reduz 0 papel do (cone ao do cenano_ Me~~o em suas revoltas romanticas e impressionistas contra essa condlc,:ao desvalorizada, a imagem e seu artista jamais recobrarao, nos :empos modernos, a fon;;a de significac;ao plena que possuem nas socledades iconofilas, na Bizancio macedonica e na China dos Song_ E, na cres:ente e vingadora anarquia das imagens que de repente desaba sobre 0 seculo XX e 0 faz submergir, 0 artista procura desesperadamente ancorar sua evocac;ao alem do deserto cientificista da nossa pedagogia cultural.

    *

    * *

    Se remontarmos a alguns seculos antes do cartesianismo, perceberemos uma corrente de iconoclasmo ainda mais profund~ que acabara por repudiar, bem menos do que se afirma, a mentalldade

    10. P. Ricoeur, op. cit. , p. 70.

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  • IIcartesiana. Essa corrente veiculada, do sculo XIII ao scu lo XIX,pelo conceptualismo aristotlico ou mais exatamente pelo esquerdismoockhamista e averrofsta deste ltimo. A Idade Mdia ocidental retomaa velha querela filosfica da Antigidade clssica. O platonismo, tantogrego como alexand rino, mais ou menos uma filosofia do "algarismo"da transcendncia, ou seja, implica uma simblica. Sem d vida , dez

    S~cu!o s de racionalismo corrigiram, a nossos olhos, os dilogo s dodiscipulo de Scrates, onde agora lemos apenas as prem issas da dial t icae da lgica de Aristteles e at mesmo do matematismo de Descartes. 12Mas a util izao sistemtica do simbolismo mtico, e at do trocad iihoet imolgico , no autor do Banquete edo Timeu, basta para nos convencerde qu e o grande problema platnico era exatamente o da reconduco"dos obje tos sens veis ao mundo das idias, da reminiscncia que, emvez de se r vulgar memria, , ao contrrio, imaginao epifn ica.

    Na ponta extrema da aurora medieval, est ainda uma doutrinasem elhant e que vai sustentar Jean Sco t trigene : o Cristo se torna oprincp io dessa reversio, inverso da creatio, pelo qual se efetuar adivinizao, a deifica tio , de todas as coisas. 14 Masasoluoadequadaaoproblema platnico finalmente proposta pela gnose vaJentiniana nesselong nquo pr-Ocidente dos primeiros sculos da era crist. questo Quepersegu e o platonismo, apresentada pelo alexandrino Basilide ("Como que o Ser sem raiz e sem vnculo acabou chegando at as coisas?") ,IS

    11 . E. Gilson mo strou como Descartes foi o herdeiro da problemtica e dosconcei tos peripatt ico s, cf . Discouf de la mthade, notas cr t icas de E. Gilson,Vrin , ed .

    12 . Cf. L. Brunsc hvicg, L'experince humaine ette causalit phvsique.

    13 . H. Corbi n (op . cit ., pp . 17-18) demonstrou que o Isl oriental shi'itaespe cialm ente com Ibn Arab, dito Ibn Aitetim, "filho de Plato", foi maisprotegido do que o Oc idente cristo da onda oerioatuca do averrorsrro con-s e rv~ ndo i~t a ct a essa doutrin a da reco nd uo. o te'wt) e os priv ilgios da ;magi-naao eplfanl ca lalm el -rnith l ),

    14 . CL M. Cappuyn e, Jean Scot ~rigene, sa vie, son oeuvre, se pense Louvain1933. ' ,

    15. Ttul o do livro X Ifi dos Commentaires des Evangiles de Basilide. Cf.F . Sa gnard, La gno se valentinienne et le tmaignage de saint Irne, Paris, Vrin,194 7 . Cf. S. Hutin , Les gnastiques, p, 40 : "Essas entidades semi-abstrata s semi-co n c retas, movem -se num dormn io intermedirio (grifo do autor) entre a re~lidadee o mito" ,

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    \\

    IValentino responde atravs de uma angelologia, uma doutrina dos"anjos" intermedirios, os ons que so os modelos eternos e perfeitosdesse mundo imperfeito porque separado, enquanto a reunio dosons constitui a Plenitude (o Pleromal.

    Esses anjos, encontrados em outras tradies orientais, so oprprio critrio de uma ontologia simblica, como demonstrou HenryCorb in.16 Eles so s/mboios da prpria funo simblica que - comoeles - mediadora entre a transcendncia do significado e o mundomanifesto dos signos concretos, encarnados, que atravs dela se tornamsmbolos.

    Ora, essa angelologia, constitutiva de uma doutrina do sentidotranscendente veiculado pelo humilde snbolo, extrema conseqnciade um desenvolvimento histrico do platonismo, vai ser rejeitada emnome do "pensamento direto" pela crise dos universais que abre, noOcidente, o conceptualismo aristotlico. Conceptualismo cada vezmais lastrado no empirismo ao qual o Ocidente ser fiel durante pejomenos cinco ou seis sculos (se encerrarmos a era peripattica emDescartes, sem levar em conta o conceptualismo kantiano, no maisdo que o positivismo comtiano... ).17 O aristotelismo medieval, aqueleproveniente de Averris e invocado por Siger de Brabant e Ockham, a apologia do "pensamento direto,,18 contra todo o prestgio do

    16. H. Corbin, op. cit., p. 16.

    17 . Pode parecer estranho querer reabsorver uma parte do positivismo naidade "rnetaf slca " do peripatet ismo. Entretanto, o prprio Cornta invoca explici-tamente Aristteles. Ele v, no conceptualismo biolgico do Estagirita, o modelomesmo da srie const itutiva dos famosos trs estados : a srie, "esse artifIciobiolgico, gradualmente elaborado desde Aristteles... para instituir uma imensaescala destinada a ligar o homem ao vegetal .. ." (Cathch. positiviste, p, 128,Pchut, 00.). Pode-se dizer perfeitamente que o modo de ligao aquele, inteira-mente positivo , do vegetal ao homem, e no como em Plato, do homem idiaatravs do meio-termo simb6lico.

    18. Sobre G. de Ockham, cf. L Baudrv, Le tractarus de principiis heologiaesttriboe G. d'Ockbern, Vrin, 1936; cf. E. Gilson, La philosophie au MoyenAge. Sobre Averr6is, cf. L Gauthler, Accord de la relilon et de la phltosopbie,tratado de Ibn Rochd, traduzido e comentado, Alger, 1905; P. Mandonnel,Siger de Brabant et I'averro;sme tetin au XII/e sicle, Louvain, 19081911.

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  • pensamento indireto. 0 mundo da percepr;:ao, 0 senslvel, nao e mais urn mundo da intercessao ontol6gica onde se epifaniza um misterio, como era 0 caso em Scot trigene ou ainda em Sao Boaventura. E um mundo material, a do lugar limpo, separado de um motor im6vei, tao abstrato que nao merece 0 nome de Deus. A "ffsica" de Arist6 -teles, que a cristandade vai adotar ate Galileu, e a ffsica de um mundo desafetado, combinat6ria de qualidades senslveis que reconduzem apenas ao senSlvel, au ilusao ontol6gica que batiza com 0 nome Ser a copula que une um sujeito a um atributo. 0 que Descartes vai denunciar ness a fisica de primeira instancia nao e a sua positividade mas a sua precipitar;:ao. Sem duvida, para 0 conceptualismo, a ideia passu i uma realidade in re , na coisa senslvel, de onde e extrafda pelo intelecto, mas ela s6 conduz a um conceito, a uma definir;:ao terra-a-terra que a/rneja urn sentido pr6prio; ela nao reconduz mais, de impulse medita-tivo em impulso meditativo, como a ideia plat6nica, ao sentido trans-cendente supremo que esta "alem do ser em dignidade e em poder". E sabese com que facilidade esse conceptualismo se atenuara no nomi-nalismo de Ockham. A esse respeito, nao se enganam os comentaristas dos tratados de ffsica peripatetica I9 que opoem as historiai" (as investi-ga
  • cJ . b I' 24O sim e rs rno com So Boaven tura. Do mesmo modo, deve -seassina lar que, no realismo de certos artistas, de Memling, por exemplo ,e, ma is tard e, de Bosch, transparece uma mist icidade oc ulta que trans-figura a mincia trivial da viso.2s Mas tambm no menos verdadeque o regime de pensamento adotado pelo Oc idente "faustiano" doscu lo XII I, fazendo do aristotel ismo a filosofia oficial da cr istandade um regime qu e privilegi a o " pensamento d ireto" em d etrimentoda imaginao simb lica e do s modo s de pensamento indi reto.

    A pa rti r do scul o XIII, as artes e a conscincia no tm maispor amb io recond uzir a um sent ido , mas "copiar a naturezu";" Oconceptua lisrno gt ico pretende ser um decalque realista das co isastai s como so. A imagem do mundo, seja pintada, esculp ida ou pensadase des-f igura e subst itu i o sentido da Beleza e a invocao ao Ser pe lomaneiri smo da formo sura ou o expressionismo do terror feira.Pode-se dizer que, se o cartes ianismo e o cientifismo dele resultanteeram um iconoclasmo por falta e desprezo generalizado da imagem,o iconocl asmo peripattico o t ipo do iconoclasmo por excesso: nosmbolo, e le negligencia o significado para se apegar apenas epidermedo sent ido , ao signific ante . Toda a arte, toda-a imaginao se colocaa servio apenas da curiosidade faustiana e conqu istadora da cristan-dade, ~ verd ade que a consc incia do Ocidente havia sido preparadaainda ma is profundamente para esse papel ornamentalista por uma

    24 . Deve-se assinal ar aqui o contraste qu e. no decorre r dos sculos, opor opens amento franci scano , de obedi nc ia p latnica, ao pensamento dominicano,qu e se torn a r o ba luarte do to mismo . ~ verdade que Eckhart foi dom inicanoma s um do m in icano condenado por sua ordern . . . '

    25. Note-se que essa t rans figurao do realismo se efetua no s pases do Nort eda Eu rop a, os menos " ro manos" , o nde d esabrocho u a Reforma. O realismo deCar avaggio e Ribera ficar no mero n fl.l do expressionismo.

    26. A po t ica de Arist teles. que foi a b fblla da esttica ocidental an tes doRomantismo , repousa essencialmente na no o de "imitao", A imitao nadamai s q ue o extremo aba sta rdamento da redundncia: o cone bizant ino , aofigu rar o Cristo , repet e incansavelment e a Santa Face, enquanto Gr new ald o umesmo Van der Weyden apenas cop iam um modelo humano, demasiadamentehumano.

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    l

    corrente de .iconoclasmo mais pr imitivo e mais fundamental, queagora devemos ex aminar.

    *

    * *

    O racionalismo, ar istotlico ou cartesiano, apresenta a imensavant agem de pretender ser universal atravs da part ilha indiv idualdo "bom senso" ou do "senso comum". O mesmo no acontece comas imagens: elas est o suje itas a um evento, a uma situao histricaou exist encial que lhes d colorido. ~ por isso que uma imagem simb-lica precisa ser sempre revivida, mais ou menos do modo como umamsica ou um heri de teat ro precisa de um " int rprete", E o smbolo,como toda imagem, ameaado pelo regionalismo da significao ecorre o risco de se transformar, a cada instante, naquilo que R. Alleauchama judiciosamente de "sintema" ,27 ou seja, uma imagem que tempor funo, antes de mais nada, um reconhecimento social, uma segre-gao convencional. Poder-se-ia dizer que h ar um smbolo reduzido sua potncia socio lgica. Toda "conveno", mesmo que animadapelas melhores intenes de "defesa simblica", fatalmente dcqrn-tica. 28 No plano da reconduo ontolgica e da vocao pessoal,produz-se uma degenerescncia muito bem distinguida pelo pastorBernard Morel:29 "A teolog ia latina traduziu a palavra grega 'mistrio'po r 'sacramento ' , mas a palavra latina no transm ite toda a riquezada palavra grega , H, no mistrio grego, uma abertura para o cu, umrespeito ao inefvel, um realismo espiritual, uma fora na exultao30q ue no ex primem a moderao lgica e a conciso jurdica do sacra-menta lismo romano." Essas virtudes de abertura para a transcendnciano seio da livre imanncia, a imagem simbl ica as perder. Ao tornar-sesinterna . ela se funcio naliza e, em vista dos clericalismos que irodefini-Ia , qu ase somos tentados a dizer que ela se funcionariza. Ao se

    27 . R. Alleau , De la narure des symboles,28. CL B. Morei, Le signe et le secr, p. 186: " Les conventions sac ram entaires."

    29 . Op . cit. , p. 23.

    30 . Grifo do autor,

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  • encarnar nu m a cult u ra e numa linguagem cultura l, a imag em simbiicaco rre o risco de se escle ros ar em dogma e em sintaxe. t nesse po ntoqu e a le t ra ame aa o e sp irita, quando a potica proft ica incriminadae amordaada. Certa mente, um dos grandes paradoxos do sfmbol o ode ex p rimir-se apenas por uma "letra" mais ou menos sintemtica.Mas a insp iraco simb lica pretende ser o despertar do esp rito par aalm d a letra so b pena de morrer. Ora, toda Igreja funcionalmentedogmt ica, est inst itucionalmente do lado da letra. Um a igreja, cornocorpo so cio lgico, "recorta o mundo em duas pa rtes : os fiis e os

    ' I " 3 1 . I I ' Rsacr i egos, especta mente a qrera omana q ue , no momento cu lrni-nante d e sua h ist r ia, mantendo com mo firme a faca d e "dois gumes",no po der admit ir a liberdad e de inspirao da imag ina o sim b lica.A virtude esse ncial do sfmbolo, como j dissemos, a d e assegu rar, noseio do mist rio pessoal, a presenamesmada transcendn cia. Ta l preten-so apa rece a um pensamento eclesial como a porta ab er ta para o sacr i-lgio. Quer o legalismo relig ioso seja fariseu , sunita ou "romano" , ele sem -p re se de fronta f unda men talme nte com a afirmao de q ue exis te, paracada ind ividua lidade espiritual, uma "inteligncia agente separada, seuEsp rito Santo , seu Senhor pessoal, que o prende ao Pleroma semoutra mediaco" .32 Isso quer dizer que, no processo simblico pu ro, Gmedi ad or , An jo ou Esprito Santo ,33 pessoal e eman a de algu m mododo livre exame , ou melhor, d a livre exul tao , escap ando assim aqu alque r fo rmu lao dogmtica im post a de fo ra. A ligao d a pesso aao Abso luto on to lgico po r intermdio de seu anjo escamoteia mesmo

    3 1. B. Morei. op , cit., p. 32.

    32 . H. Corbin, op . cit. , p . 160, demons tra bem a Igao ent re a heresia gn st icn eo si mbo lismo . ao escrever : "E poss ivel discerni r, na oposio qu e provocou ofrac asso do avicen ismo lat ino . . . as mesmas razes que haviam mo t ivad o os esfo rosd a G ran d e Igreja, nos primeiros sculo s, para el iminar a Gnose. Mas essa elimi na-o assegurava de antem o a vitria do ave r ro ismo , com todas as su as impli ca es."

    33. Cf. B. Morei , op. cit. , p. 193 , que define o Espirito Santo como u mainsero pe ssoal da energ ia d ivina : "Deve-se admit ir um ponto de incidnciada ene rg ia d ivina no organismo humano, a menos qu e se qu eira faz er coexi sti rd o is ti pos d e vida heterogneos na mesma pessoa."

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    a segregao sacramental da Igreja .34 Como no platonismo, especial-mente o platonismo valentin iano, sob a cobertura da angelologia, ~:uma relao pessoal com o Anjo do Conhecimento e o da Revelao.

    Todo simbol ismo , portanto, uma espcie de gnose, isto , umprocesso d e mediao atravs de um conhecimento concreto e experi-mental. 36 Como uma certa gnose, o sfmbolo um "conhecimentobeat ificante", um "conhecimento salvador" que no necessita de umintermedirio soci al, isto , sacramental e eclesial. Mas essa gnose , porser concreta e experimental, estar sempre inclinada a figurar o anjonos mediadores pessoais de segundo grau : profetas, messias e, sobre-tudo a mulher. Para a gnose propriamente dita , os "anjos supremos"so Sofi a, Barbl , Nossa Senhora - Esprito Santo, Helena etc., cujaqued a e salvao figu ram as prprias esperanas da via simblica: areconduo do concreto ao seu sentido ilu minad o r. Po is a Mulher,assim como os Anjos da teofania plotin iana, contrariamente ao homem,pos sui uma dupla natureza que a dupla natureza do prprio symbolon:criadora de um sentido e, ao mesmo tempo, receptculo concreto

    34. Contudo a Igreja Ortodoxa oficializa essa liga o pessoal no sacramentoda cr isma (mvronl. que faz de todo confirmado um "Portador do Esp lrito Santo"(pneumatforol. A Igreja Ortodoxa tambm insist e na confirmao individ ualdo Pentecostes : "lfnguas de fogo . . . surgiram sobre cada um deles ..." , cf. O.Clment ,op. cit . , pp. 81 , 82.35. H. Corbin, op. cit. , p. 16 . O autor assinala, alis , um notvel paralelismoentre as persegu ies da Igreja Romana d iante de seitas mfst icas - gnsticos,ctaros etc. - e as do Isl legalista sunita com relao mst ica sufi.

    36. Escrevemos, aqui , "um tipo de gnose", pois a gnose propriamente dita u m procedimento bastardo de racional ismo e de dogmatismo defensivo, o q~ebem observou P. Ricoeur (Finirudes et culpabilitd, p. 156) : "A gnose aquiloque concentra e desenvolve o momento et iolg ico. do mito." ~ntretanto, o qu~H. C. Puech escreve sobre a gnose pode ser perfeitamente ap licado ao conheci-mento simblico: "Chama-se ou pode-se chamar gnosticismo - e tam~~ g~ose -toda doutr ina ou at itude religiosa fu ndada sobre a teoria ou a e xpenencia ante-rior, convocada a se tornar estado inad misslvel. .. atravs da qual, no decorrerde uma ilum inao o homem se reapodera de sua verdade , se recorda nova-mente . . . conhecend'o-se ou reconhecendo-se, assim, em Deus .. .": Puech, " Phnomnologie de la gnose" , in Ann. College de Fmnce, n'? 53, pp. 168-169. Cf.S. Petrement, Le dua/isme chez Pteton, les gnostlques et les msnichens, PressasUniversita ires de Franca, 1947.

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  • desse sentido . A feminilidade 56 e mediadora porque e, ao mesmo tempo , "passiva" e "at iva". !: 0 que Platao ja havia exprimido, e 0 que exprime a figura judia da Schekinah, assim como a figura mu~ulmana de Fatima.)? A mulher e, portanto, como 0 anjo, 0 simbolo dos sCm bolos, ta l como aparece, na mariologia ortodoxa, sob a figura de Theotokos, ou na liturgia das Igrejas cristas, que de bom grado se ass eme lham a Esposa,38 na qual idade de intermediario supremo.

    Ora, e bastante significativo 0 fato de que todo 0 misticismo do Ocidente acabe se sac iando nessas fontes pl at6nicas. Santo Agostinho nunca ren egou total mente 0 neoplatonismo. E e Scot !:rigene quem introduz, no seculo I X, no Ocidente, os escritos de 0 ion isio, 0 Aeropa gita.39 Bernardo de Claraval e seu amigo, Guilherme de Saint-Thierry, assim como Hildegarde de Bingen,4{) estao todos familiarizados com a anamnese plat6nica. Mas, diante dessa transfusao do misticismo, a Igreja vela funcionalmente com suspeita.

    Tocamos aqui no fator mais importante do iconoclasmo ocidental, po is a atitude dogmatica implica uma recusa categerica do leone enquanto abertura esp iritual atraves de uma sensibilidade, de uma epifania comunial individual. Para as Igrejas orientais, 0 leone e pintado segundo meios canonicamente fixados, e fixados mais rigidamente, ao que parece, do que na iconografia ocidental. Mas tambem e verdade que o culto dos ieones utiliza plenamente 0 duplo poder de recondu

  • significa absolutamente que seja tolerada aqui uma livre interpreta
  • CAPfTULO II

    AS HERMENEUTICAS REDUTORAS

    "AnaJisar intelet:tualmente urn simbolo 6 como dest:ascar uma cebola a fim de achar a cebols."

    Pierre Emmanuel, Consideration de I'extase.

    Nossa era tomou consclencia novarnente da importancia das imagens simb6licas na vida mental, gracas a contribui~ao da patologia psicol6gica e da etnologia. Essas duas cU~ncias parecem ter repentina-mente revelado, ao indiv(duo normal e civilizado, que toda urna parte de sua representali=ao se limitava singularmente com as representalfoes do neur6tico, do deHrio au dos "primitivDs". Os metodos que campa-ravam a "Iourura" com a sanidade. a 16gica eficaz do civilizado com as mitologias dos "primitivos" tiveram 0 grande merito de fazer com que a atenlfao da ciencia S8 voltasse para 0 denominador comum da compara9ao: 0 reino das imagens, 0 mecanisme pelo qual se associam os sfmbolos e a pesquisa do sentido mais au menos velada das imagens, ou hermeneutica.

    Mas se a psicanalise e a psicoiogia social redescobrem a impor tan cia das imagens e, por isso, rompem revolucionariamente com oito seculos de repressao e de coen;::ao do imaginario, essas doutrinas s6 descobrem a imaginac;:ao simb61ica para tentar integra-l a na sistema-tica intelectualista estabelecida. apenas para tentar redfJzir a simboliza-c;:ao a urn simbolizado sem misterio. Sao esses processos de reduc;:ao -

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  • do simbolizado a dados cientlficos e do srmbolo ao signo - que estuda-remos agora, primeiramente no sistema da psicanalise.

    * * *

    "0 tio famoso freudismo e urna arte de inwntar, em cada homem, urn animal terr(vel a partir de signos totalmente comuns!. ....

    Alain, tlemenes de phiJosophie.

    Para melhor podermos transmitir qual a concepC;8o redutora do metodo psicanalftico,l torna-se indispensaval resumir muito gros-seiramente aquilo que constitui a armadura da doutrina freudiana.

    o primeiro princfpio de Freud e 0 de que existe uma causalidade especificamente ps(quica, ou seja, Que incidentes ps(quicos, au mesma fisiol6gicos, nao tern necessariamente origem organica. 0 principal resultado disso e que um determinismo reina rigidamente, tanto no universo ps(quico como no-universo material.2

    a segundo principia de Freud, decorrente do exercicio desse esfo~o terapeutico para exumar as causas psrquicas das quais as neuroses sao efeitos significativQs, e a de que existe um inconsciente ps(quico, reservat6rio concreto de toda a biografia do individuQ, conservat6rio de tOdas as causas ps{quicas "esquecidas".

    1. ~ necessaria a referencia aos escritos do pr6prio Freud. especialmente: Ineroduction

  • determinista que sempre une um efeito psfquico (por exemplo, asimagem. de um sonho) causa suprema do psiquismo, a saber, a libido,o slmboJo sempre acabar reconduzindo, em ltima instncia, sexua-lidade imatura porque insatisfeita. ~ essa inclinao fatal que Freudchamou de pansexualismo. Todas as imagens, todos os fantasmas,todos os smbolos se reduzem a aluses figuradas dos rgos sexuaismasculino e feminino. A infncia e as etapas da maturao sexualseriam o reservatrio causal de todas as manifestaes da sexualidade,de todo o polimorfismo" das satisfaes sexuais. Ora, como observaDalbiez,5 so a estreiteza e a rigidez do determinismo freudiano quepermtem reduzir toda imagem a seu modelo sexual: o erro de Freudfoi a de confundir "causalidade" e "associao", por semelhana oucontigidade, foi ter constitudo, como causa necessria e suficientedo fantasma, aquilo que era apenas um acessrio agregado ao poli-morfismo do smbolo. Freud no apenas reduz a imagem ao espelhovergonhoso do rgo sexual, porm, mais profundamente ainda, reduza imagem ao espelho de uma sexualidade mutilada, parecida com osmodelos fornecidos pelas etapas da imaturao sexual da infncia.A imagem , portanto, maculada de anomalia, j que se encontrapresa entre dois traumatismos: o traumatismo do adulto, que provocaa regresso neurtica, e o traumatismo da infncia, que fixa a imagemnum nvel biogrfico de "perversidade"," O mtodo associativo - noqual a associao no tem nenhuma liberdade - confundido com apesquisa rigidamente detenninista de uma causalidade (e, nesse caso,de uma causa nica) pode apenas reduzir, de associao em associao,a apario an6dina e fantasista de uma imagem ao efeito necessrioda causa primeira e de seus avatares: a libido e seus incidentes bio-grficos.

    Mas h algo ainda mais grave do Que essa reduo empobrecedorado smbolo a um sintoma sexual: Dalbiez 7 assinala que Freud utiliza

    4. Cf. Freud, Ma vie et la psychanBlyse. p. 158.5. R. Dalbiez, op. cit., II, p. 267.

    6. Cf. Freud, "Fragment d'une analyse d'htsterie", ln R6V. de Psychan.,t. II, ni? I, pp. 1 e 112.7. R. Dalbiez, op. dt., II, p.124.

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    a palavra srmbolo no sentido de efeito-sgna, o que reduz o campoinfinitamente aberto do simbolismo tal como o definimos no inciodesta obra: "Um ser tem, portanto, uma infinidade de s(mbolos,8enquanto s6 pode ter um nmero limitado de efeitos e de causas ... ";"O simbolismo pslcanalttlco constitui exatamente o avesso do simbo-lismo comum."

    A partir dar, assiste-se a uma cascata de "redues" psicana-Ifticas: enquanto o mortal comum considera Minerva saindo docrnio de Jpter9 como o sfmbolo, ou pelo menos a alegoria da origemdivina da sabedoria, o psicanalista, equalizando na desrealizao Minervae a Sabedoria e, segundo a rgida necessidade da causalidade, fazendoderivar o abstrato do concreto, considera a Sabedoria como smbolo(ou melhor, o rndice-efeitol de Minerva. Assim, aps uma primeirareduo do simbolismo a uma pura representao associativa, em nomedo princpio linear de causalidade, interverte-se o sentido comum dosmbolo: o simbolizante logicamente igual ao simbolizado e pode-seento substituir um pelo outro, atravs de uma operao de reversibi-lidade.

    Em segundo lugar, de reduo em reduo, Minerva saindodo crnio de Jpiter reduzida, por sua vez, representao do nasci-mento atravs da vutva,c. apenas mais um passo a transpor e a emergn-cia da sabedoria torna-se apenas o efeito-signo do nascimento vulgardo mortal comum atravs da vulva feminina. Finalmente, a prpriasabedoria, assim COmo Minerva, apenas um efeito-signo da sexuali-dade. Tracemos um resumo da cadeia dessa reduo do "sfrnboloinvertido" tal como concebido por Freud: A sabedoria ~ Minervasaindo da cabea + nascimento pela vulva. O defeito essencial da psica-nlise de Freud o de ter combinado um determinismo rrgido, quefaz do smbolo um simples "efeito-signo", com uma causalidade nica:a libido imperialista. A partir da, o sistema de explicao apenas umsistema unvoco, onde um signo remete a um signo, e um sistemapansexual no qual o signo ltimo, a causa, incidente da sexualidade,esta ltima uma espcie de motor imvel de todo o sistema.

    Pode-se perceber essa dupla reduo num caso concreto,

    8. Ibid., op. cit., pp. 125126.9. Oalbiez,op. cit., p. 128.

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  • salientanda .. e a famasa camplexo de ~dipo no exemplo seguinte: X ... sonha que estl! almo~ando em campanhia de urn monge; ele 50 compromete, em sua presenf;:3, diante de urns estatua da Virgem. e nao sem alguma "'pugniincia, a se dedicar a cura de leprosos. A analise freudiana desse caso nos ds, primeiramente. as seguintes associac;oes: "mange": antigamente. a sujeita X teve urn trade como conselheiro; "compromisso"; 0 sujeito assumiu uma atitude amigavel, muito terna, para com uma jovem mulher que atravessava urna crise moral; "estirtua da Virgem'"; e aestatua diante da Qual sua mae 0 fazia rezar na infineia; o TOsto da imagem era parecido com 0 de sua mae. Ao passar da 8SS0 ciac;ao aos s(mbolos, descobre-se que "a lepra" e a alusao bfblica ao pecado. Oepois, 0 mange faz lembrar ao sujeita que ele ass/stiu a encena9ao de Thais e que 0 personagem do monge Paphnuce, que quer salvar a cortesa mas acaba sucumbindo, causou-Ihe uma viva impressaa.

    Assirn, a sanho se reduz a urn sonha de rapaz edipiano, cam 0 drnbolo fortalecendo as associar;6es: a secreta tentar;ao pela mulher que atualmente atravessa urna crise de consciencia representa urn papel traumatico que remete ao desejo incestuoso da inffincia. A libido sexual e suas repressoes biagnificas e a (mica metteur en scene do simbolismo do sonho.

    Contudo, apesar dessa linearidade causalista e do escamoteamento do dmbolo em favor do sintoma, 0 imenso ml;irito de Freud e da psica-nalise e a de haver novamente conferido 0 direito de 'cidadania aos valares ps(quicos, as imagens, cassadas pelo racionalismo aplicado das ciencias da natureza. r: bem verdade que a efeito~signo se reduz, em ultima am~lise, a urn avatar da libido, mas nesse meio tempo ele apercu como causa secundaria no campo da atividade psiquica. E e "esse "realismo psicol6gico" que reside, antes de mais nada, a revolu~o freudiana. tO

    Contuda, como veremos agora, hi urn outro modo de conceber a inconsciente, nao mais "como 0 inefiivel refugio das particularidades individuais, 0. dep,?sitario de uma hist6ria unics",11 mas como 0

    10. Cf. Dalbiez. op. cit., II, p. 56: "A influt!ncia de Freud na pSlquiatria e n8 psicopatologia 18 traduziu por uma wrdadeira ressurreif;60 da crent;a na eficllcia do paJquismo." 11. Cf. Ldvi-8trauss, Anth. Struct., p. 224.

    46

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    reservatorio das "estruturas" que a coletividade privilegia, nao mais sobre esse perverse polimorfo que seria a crianr;a, mas sabre esse "social polimorio" que e a crianc;:a humana.

    * * *

    "0 pensamento m(tico ... constr6i :-" sells palacios ideol6gicos com 0

    entulhe de um discurso sodal antigo,"

    C. Lt1viStrauss, La pense9 sauvage.

    Como acabamos de ver, ao mesmo tempo que a psicamilise foi uma redescoberta da importancia do sfmbolo, ela escamoteou 0 signi-ficado em favor de uma biografia individual e da causa libidinal. Em seu aspecto freudiano, ela desenhou muito bern urna arquetipo!ogia, mas obsedada pela sexualidade, ",duzindo 0 sfmbolo a aparencia vergonhosa da Hbido rejeitada e a libido ao imperialismo rnultiforme do impulso sexual.

    Esse monismo subjacente, esse imperialismo da sexualidade e especialmente 0 universalismo dos modos de repressao e que foram justamente criticadas. Os etn6grafos, particularmente os posteriores a Malinovski1'2 e seu determinante estudo sobre os ind(genas da ilha Trobriand. questionaram a universalidade do famoso complexo de

    ~dipo.13 A pesquisa etnogratica nos ensina que 0 simbolismo edipiano, sobre 0 qual repousa todo 0 sistema freudiano, e apenas urn episodio cultural rigidarnente localizado no espalfo e, provavelmente, no tempo. A antropologia cultural, como urn todD, vai questionar os modos de repressao, a unidade da pedagogia parental. A reduC;ao prima ria a urn

    12. B. Mallnovski. La vie sexuefle chez les Stluvages de Mdlan8ses. 13. Cf. infra, p. 96.

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  • traumatismo. edipiano, base da psicanlise freudiana, no pode maisser mantida. Em particular, o livro onde Freud se arrisca no terreno daetnologie, Totem e tabu, chegando a reduzir a sociedade, a relao eo oontrato social ao acidente edipiano originrio, julgado pela etno-logia como um romance altamente fantasioso.J" Como poderia umasociedade primitiva ter um evento edipiano como origem de todos osseus sfmbolos, de todas as suas relaes sociais, enquanto que em seusprincipias morais, em seus costumes vivos, essa sociedade no apre--senta nenhum trao, nenhuma possibilidade de uma situao edipiana?

    No entanto, o etngrafo ou etnlogo no pode permanecerinsens(vel inflao mitolgica, potica. simblica, que reina nessassociedades ditas "primitivas". Essas sociedades parecem compensara ausncia de progresso tecnolgico. a ausncia de preocupaes tecno-crticas com um fantstico transbordamento de lmsqnao, Os atosmais cotidianos, os costumes, as relaes sociais so sobrecarregadosde sfmbolos, duplicados nos menores detalhes por todo um cortejode valores simblicos. IS Mas a que que remetem esses sfmbolosluxuriantes, que parecem atapetar o comportamento e o pensamentodos "primitivos"?

    A Iingstica, em todas as suas formas, ser sempre o modelode um pensamento sociolgico. De fato, a Irngua um fenmenotestemunhador e privilegiado do objeto sociolgico. Ela apresentaesse pluralismo diferencial que constitui a caracterstica da antropo-logia social em oposio ao monismo da natureza humana, que postulamais ou menos a antropologia psicolgica e, particularmente. a psica-nlise. Pois as Ifnguas 'so' diferentes e os grandes grupos Iingsticosirredutrveis uns aos outros. E se o "simbolismo" que constitui umaI(ngua com seus fonemas, suas palavras, suas modulaes de frase.remete a um significado mais profundo, esse significado deve conser-var o carter diferencial da I(ngua que o explicita e o manifesta; comoa I(ngua, ele no passvel de generalizao: sua natureza diferenciale o "simbolismo" filolgico s6 pode remeter a uma significao

    14. Cf. Malinovski. La sexualittJ et S8 rpffJSSion dans tes sOcits orimitives.pp. 130-131.

    15. Cf. M. Grlaete, Dieu d'eau; cf. G. Dieterlen, La religion des 8ambara;cf. don Telavesva, So/eit Hopi.

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    sociolgica. A reduo do simbolismo sociedade que o suporta pareceser sugerida pela Iinglstica. Mas, enquanto certos socilogos16 seapegam estritamente ao simbolismo ling(stico e se isolam no domfniodos fonemas e dos semantemas procurando, nas inesgotveis formas dasIfnguas da linguagem humana, semelhanas Iing(sticas que permitaminferir semelhanas sociolgicas, outros tentam aplicar os mtodosda Iing(stica - especialmente da fonologia -, no apenas lngua masaos smbolos de uma sociedade em geral, tanto rituais como mitolgicos,procurando no mais semelhanas mas, ao contrrio. as diferenasque as estruturas dos conjuntos simblicos. mticos ou rituais. indicamentre as sociedades.

    Ao primeiro mtodo de "reduo" simblica esto ligados ostrabalhos de Georges Dumzil, prefaciados pelos de Andr Piganiol,e que se podem chamar "reduo sociolgica funcionalista". A. Piganiolhavia observado, ao estudar a Antigidade romana, que se encontravadiante de duas correntes de simbolismo que, na maior parte do tempo,caminham lado a lado sem se misturar. Por um lado. observsvam-seos sfrnbolos-rltuais ou mticos - orientados para cultos ctonianos,compreendendo rituais de sacriffcio, mistrios, orgias, utilizandoaltares baixos, "pedras de sacriffcio", sepulturas onde o morto estenterrado etc; por outro lado, outro grupo de smbolos "isomorfos"em seu antagonismo aos precedentes. I 7 Piganiol inferiu daf que asociedade romana era formada por duas sociedades historicamentesuperpostas: as tropas de Rmulo, indo-europias, e os sedentrios"sabinos", populaes asinicas com culturas e costumes agrrios.

    Completamente difrente ser o mtodo de G. Dumzil aplicadoao mesmo terreno semntico de Piganiol, ou seja, Roma Antiga.Dumzil vai reintegrar, por assim dizer, o simbolismo '4sabino" . aolado do simbolismo propriamente romano, numa entidade funcional

    16. Tomamos esse termo genrico. no em seu sentido restrito, mas desejandosimplesmente exprimir que o especialista em cuesto toca no dcmrnlc das"cincias sociais" em geral: sociologia propriamente dita, etnologia. antropologiacultural, etnografia etc.17. Termo emprestado do psicanalista Baudouin, que significa "pertencendoqualitativamente mesma esceeie", remetendo mesma estirpe interpretativa;prefarirfamos "istopo".

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  • que engloba um e outro; essa entidade funcional nada tem a ver comuma "difuso" de smbolos indo-europeus em uma populao estran-gera, simplesmente'porque a filologia ressalta que os smbolos "sabinos",assim como os "romanos", coexistem no conjunto das sociedades dogrupo ling(stico indo-europeu. A sociologia Iingstica faz melhor:entre os Celtas, os Germanos, os Latinos ou os antigos Hindus e lra-nianos, a sociologia Iingstica salienta, no duas camadas simblicas,mas trs camadas perfeitamente distintas que manifestam seu sirnbo-Iismo religioso nos 'trs deuses latinos que se tornaram o emblema detodo o sstema dumeziliano: Jpiter, Marte, Quirino. Mas Dumzilno tem a timidez redutiva de um Pignol ou um Lowie: a "difuso"indo-europia no explica nada; a explicao profunda, a reduoltima da "tripartio" simblica entre os indo-europeus uma expli-cao funcional. Os trs regimes simblicos correspondem biunivoca-mente a uma tripartio da sociedade indo-europia em trs gruposfuncionais bem prximos das trs castas tradicionais da lndia antiga:Brahmanes, Kshatrvas, Vayias. Jpiter, seu ritual e seus mitos, odeus dos "padres",lS do flamen, como Mithra-Varuna o deus dobrmane; Marte o deus dos "qites", dos "Iceres", como Indra o dos guerreiros kshatryas; quanto a Qurino, a divindade "plural"freqentemente feminide (Fortuna, Ceres etc.l, divindade dos aqri-cultores e dos "produtores", dos artesos e comerciantes.

    Para o funcionalismo de Dumzil, um mito, um ritual, um sim-bolo diretamente inteliqvel. desde que se conhea bem sua etimologiaO simbolismo um departamento do semantismo lingstico.

    Entretanto, a psicanlise nos provou que era preciso desconfiarde uma leitura dreta: no no nvel da conscincia clara - caso emque de nada serviria a complicao do "sentido figurado", do "smbolo"em relao ao sentido prprio - mas nas complicaes do inconscienteque se tece o vu do smbolo. Se o smbolo precisa de um deciframento, justamente porque ele cifra, criptograma indireto, mascarado. Poroutro lado, os principais conjuntos simblicos, os mitos, possuem essaestranha propriedade de escapar contingncia lingstica: o mito

    18. A realidade 1Ii mais complexa; as prprias funes de Jpiter so duplas.como a soberania o t! para Roma ou para os Vedas: /f1x-f/amen corresponde literal-mente a raJbrshman.

    50

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    est do lado oposto de um "engajamento" Iinglstico como o dapoesia, ancorada no prprio material da Ifngua: seu fonetismo, seulxico, suas aliteraes e seus trocadilhos. ~ essa originalidade emrelao a todos os outros fatos ling{srioos que Lvi.Strauss' denotaquando escreve: "0 mito poderia ser definido como o modo do discursoonde o valor da frmula treduttore, traditore20 tende praticamentea zero ..."; "0 valor do mito persiste COmo mito atravs das piorestradues", enquanto o valor filolgico da palavra - flamen ou rex,por exemplo - se evapora numa traduo. Isso significa que o mito,diferentemente da palavra que se agrupa no lxico, no vai se reduzirdiretsmente, atravs da contingncia de uma lngua, a um sentidofunconal. bem verdade que ele constitui uma linguagem, mas umalinguagemacima do n(vel habitual da expresso Iingstca.2 1

    isso que faz a diferena fundamental entre a reduo sernn-tica direta, do funcionalismo de Dumzil, e a reduo translingsticado "estruturalismo" de LviStrauss. No sobre uma Iingstcapositivista, no nvel do lxico e do semantismo, que Lvi-Strauss vaialinhar sua antropologia e especialmente sua hermenutica, mas sobrea fonologia estrutural: a ambio de Lvi-Strauss fazer com que asociologia - especialmente a hermenutica sociolgica - consiga umprogresso anlogo22 quanto forma (seno quanto ao contedo)quele que foi introduzido pela fonologia." Abandonando todainterpretao que modelaria rigidamente o sfrnbolo sobre um padrode Iingfstica material (isto , lexicolgica e semntica), LviStraussconserva, da Iingstca, apenas o mtodo estrutural da fonologia.E esse mtodo, tal como r! encontrado em N. Troubetzkoy,24 faz aapreciao, admiravelmente, entre outras coisas, dos prpros carac-teres do mito em particular e, em geral, do smbolo.

    19. AnriJr. Struct., p. 232.20. Que se aplica ao mximo ao texto de poesia.21. Uvi-5trauss,op. ctt., p. 232.22. Ns que sublinhamos este termo que nos parece Importante.23. Gp. cit.. p. 41.24. N. Trcubetakcv, "La phonologie aauelle", in Psycho. du /Bngags (Paris,19331, citado por Lvl-Strauss, op. cit. p. 40.

    51

  • "Em primeiro lugar", a hermenutica sociolgica, em concor-dncia perfeita com a psicanlise e com a fonologia, "passa do estudodos fenmenos .. conscientes ao de sua Infra-estrutura inconsciente."O inconsciente que, longe de ser "0 inefvel refgio das particularidadesindividuas", , ao contrrio, o rgo da estruturao simblica. Istoquer dizer que o vnculo redutivo no ser mais procurado dlratamente.mas indiretamente, e longe da significao direta do semantismo dostermos: e isso nos remete segunda caracterfstica.m segundo lugar, a hermenutica estrutural, assim como afonoloqia, "recusa-se a tratar os termos como entidades independentes,tomando como base de sua anlise, ao contrrio, as relaes entre ostermos". Gostarfamos de acrescentar que isso que constitui a prpriamola do estruturalismo: a possibilidade de decifrar um conjuntosimblico, um mito, reduzindo-o a relaes significativas. Ora, comodistinguir essas "relaes"? Como estabelecer relaes no.arbitrrias,ou seja, constitutivas, que possam ser dadas como leis? Assim ~m.o afonologia ultrapassa e abandona as pequenas unidades semantlcas(fonemas, morfemas, semantemas) para se interessar pelo dinamismodas relaes entre os fonemas, tambm a mitologia estrutural nunca selimitar a um smbolo separado do seu contexto: ela ter por objetoa frase complexa na qual se estabelecem relaes entre os semantemas,e essa frase que constitui o mitema, "grande unidade constitutiva"que, por sua complexidade, "tem a natureza de uma relao".2s .

    Tomando um exemplo do prprio Lvi-Strauss, no mito de~dipo, tal como nos transmitido pela tradio helnica, no nosfmbolo do drago morto por Cadmos, ou no da Esfinge morta porI:dipo, nem no ritual do enterro de Polinice por Antegona, ou nosimbolismo do incesto, to precioso para o psicanalista, que devemosnos deter, mas na relao expressa pelas frases: "Os heris matam osmonstros etonianos"; "Os pais [dipo, Polinice) superestimam arelao de parentesco (casamento com a me, enterro proibido doirmo .. )" etc.

    Finalmente, entre essas "grandes unidades", estabelecem-serelaes e damonstra-se, ~gundo o mtodo da fonologia, que esses

    25. Uvi-5trauss,op. clt., p. 233.

    52

    diferentes "mitemas" se alinham em sistemas de afinidades estabelecidasentre si. Pode-se dizer, por exemplo, que a "colocao em rnitemas"estruturais do mito de dipo "mostra sistemas ... concretos e evidenciasua estrutura".26 De fato, pode-se organizar os mitemas assim obtidosem classes de relaes semelhantes, classific-los em "pacotes sincr-nicas", que escandem, por uma espcie de repetio. de "redundncia"estrutural, o fio da narrativa mtica, seu "diacronismo". O mito setranscreve, assim, em vrias colunas sincrnicas que podemos inscreverno quadro da pgina seguinte. 27

    Resta, finalmente, decodificar o sentido desse mito, o que ficamais fcil com essa dupla anlise redutora: os sfrnbolos foram reduzidosa "relaes" chamadas "mitemas" e os mitemas alinhados em colunassincrnicas; pode-se, ento, reduzir esses sincronismos a um s sistema:a coluna n~ IV (consagrada aos seres enfermos, "oscilando para a frenteou para o lado" e que a mitologia comparada nos mostra como sendo

  • Seria possvel dizer que a reduo sociolgica o inverso exatoda reduo psicanalftica, mas procede da mesma exclusiva. Para apsicanlise, o inconsciente uma verdadeira faculdade sempre "plena",e simplesmente plena do potencial energtico da libido. A ambinciasocial, as situaes da vida individual vm mooelar de maneiras mlti-plas, vm "metamorfosear,,32 e mascarar mais ou menos essa correntenica de vida, esse impulso especfico cuja potncia vital ultrapassade todos os lados a clara vontade individual e influencia sem cessaro contedo da representao, colorindo todas as imagens e atitudes.Para o socilogo, ao contrrio, o inconsciente "est sempre vazio",33"to estranho para com as imagens como o estmago para com osalimentos que o atravessam"; ele se limita a "impor as leis estruturais",e a estruturao - que estranhamente a mesma faculdade que a

    Assim, reduzindo-se o mito a um jogo estrutural, percebe-se quea combinatria estrutural que, no primeiro momento, parecia tocomplicada, em ltima anlise muito simples,30 de Uma simplicidadequase algbrica, assim como "h muitas Ifnguas. mas muito poucasleis fonol6gicas que valem para todas as Irnguas". A extrema complexi-dade da mitologia Zuni, por exemplo, quando organizada num quadro,quando metodicamente reduzida, llrnita-se a uma simples "ferramenta16gicadestinada a operar a mediao entres vidae a morte",31 mediaoparticularmente diffcl para uma mentalidade que modela sua concepoda vida e do nascimento no sfmbolo da emergncia do vegetal parafora da terra. Tanto o estruturalismo como o funcionalismo reduzema sfmbolo a seu estrito contexto social, semntico ou sinttico,conforme o mtodo utilizado.

    *

    * *

    30. Cf. op. cit., p. 243.

    31. Cf.op. ct., p. 243.32. Cf. Jung, Symboles et mtamorphoses de Is libido.33. Cf. Lv-5trauss.op. ctt., p. 224.

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    Sistema slncrnleo de "mitemas".

    55

  • inteligencia, urns especie de inteligencia nioconsciente - integra em suas formas simples as imagens, as semantemas veiculados pelo social.

    Mas, tanto para a psicanalise como para a sociologia do imagi nario a s(mbolo s6 remete, em ultima analise, a urn epis6dio regional. A tr;nscendtincia do simbalizada e sempre negada, em funl'aa de uma redw;:io ao simbolizante explicitado. Finalmente, psicamHise ou estl1lturalismo reduzem 0 sfmbolo ao signa ou, na methor das hip6 teses, a alegoria. "0 efeito de transcendencia" s6 seria devido, em ambas as doutrinas, a opacidade do inconsciente. Urn esforc;:o de eluci-dac;:ao intelectualista anima tanto Levi-Strauss como Freud. Todo a seu metodo se esfort;:a para reduzir 0 sCmbolo ao signa.

    56

    CAPITULO III

    AS HERMENI:UTICAS INSTAURADORAS

    "as conceitos eriam (dotos de Deus, apenas a emocao pressente alguma coisa."

    Greg6rio de Nysse, Patrologie grecque, 443728.

    Entre a grande corrente das hermeneuticas redutoras, caracteri zada pel a psicanalise e a etnologia, e as hermeneuticas instauradoras, e valida colacar a abra filas6fica de Ernst Cassirer,' que cabre tada esta metade decorrida do seculo XX e que teve a merito de levar a filosofia, e nao &omente a pesquisa sociol6gica e psicol6gica, para 0 interesse do sfmbolo. Essa obra constitui urn adminlvel contraponto au urn prefacio a doutrina do supraconsciente sirnb6lico de Jung, a fenomenalagie da linguagem paetica de Bachelard e aas nassas pr6-prios trabalhos de antropologia arquetipol6gica ou ao humanismo de Merleau -Panty_

    Partindo da critica kantiana, Cassirer teve 0 imenso merito de tentar desalienala de um certo positivismo cientificista que queria consi-derar apenas a primeira critica, aquela da Razao pura. Cassirer vai tentar nao s6 levar em conta outras "Cr(ticas", especial mente A Crftica do Julgamento, mas tambem aperfeit;:oar esse inventario

    1. E. Cassirer (18741945). obras principais: Philosophie des Symbo/ischen Formen 1111 vol., 1923, 1925. 192~n, Die 8egriffs Form im My this chen Oenken 119221, Spf8che und Myrho, (1925) An E,say on Man (1944).

    57

  • da consciencia oonstitutiva do universo de conhecimento e de ac;:ao_ Tambem Cassirer consagra uma parte de seus trabalhos ao mito e a magia, a religiao e a linguagem. Aproveitamos para lembrar que a descoberta "copernicana" de Kant e demonstrarque a ciencia, a moral, a arte nio se contentam em ler analiticamente 0 mundo, mas em ronstituir um universo de valores atraves de urn julgamenta "sintetico a priori". Para Kant. 0 conceito nao e a signo indicativa das objetos; ele e a organizac;ao instauradora da "realidade". a conhecimento a, portanto, constituiQao do mundo; e a s(ntese conceptual se forja graQas 30 "esquematisma transcendental". au seja, grac;as a imaginac;ao.2

    Portanto, nio se trata absolutamente de interpretar urn mita ou urn s(mbola, procurando, par exemplo, uma explicac;::ao cosmogonica precientCfica, ou ainda, reduzir 0 mito e 0 simbolo a fort;as afetivas, como faz a psicamWse, ou a urn modelo socioJ6gico, como fazem os soci6logos.3 Ou seja, 0 problema do s(mbolo nao e absolutamente a do seu fundamento, como querem as perspectivas substancialistas do cientismo, da socioiogia au da psicamUise mas, sim, numa perspec-tiva funcional que denuncia 0 criticismo, 0 problema da expressao imanente ao pr6prio simbolizante.4 0 objeto da simb6lica nao e uma ooisa analisavel mas, segundo uma expressao' cara a Cassirer, uma lisionamia, ou OOia, uma especie de modelagem global, expressiva, viva das coisas mortas e inertes. !=: esse fenomeno inelu"tavel para a cDn~ciencia humana que constitui essa imediata organizac;:ao do real. Este nunca e dado como urn objeto morto, mas abjetificado, au sej a, promovido por todo canteudo psicocultural da consciencia 11 digni dade do objeto para a consciencia humana. Essa impotencia constitu-tiva que condena a pensamento a jamais poder intuir objetivamente uma coisa, mas a integrala imediatamente em urn sentido, Cassirer a chama de pregnancia simb61ica S Mas essa impotencia e apenas 0 avesso de um imenso poder: 0 da presenc;:a inelutavel do sentido que faz com

    2. Cassirer,Phiiosophied8soSYmboJiscJUtn, II, p. 3B.

    3. Cf. Cassirer, Philosophie, II, p. 22; An Essay on Man, pp. 39,142. 4. Cassirer, Philosofjhie, II. PP. 192. 194; An Essay, p. 106. 5. Cassirer, Phi/osophie, III, p. 202.

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    que, para a consciencia humana, nada seja simples mente spresentado, mas tudo seja representado.

    A doenc;:a mental reside justamente numa confusao da repre sentac;ao. a pensamento doente e urn pensamento que perdeu 0 "poder da analogia" e no Qual os s(mb%s se desfazem, se desfmpregnam de sentido. 6 a homem pensante e a saude mental se definem, portanto, em termos de cultura, e 0 homo sapiens e, afinal, apenas urn animal symbolicum. As coisas s6 existem atraves da figuia" que Ihes d. a pensamento objetificante, elas sao eminentemente "simbolos", j

  • Se a teoria de Jung, relativa ao papel das imagen" e uma da, mais profundas, sua terminologia no tocante ao sfmbolo e das mais confusas e flutuantes. E: assim que se confundem continua mente arquetipos, s(mbolo, e complexos. Contudo, Jung parte de uma dife renlfa muito firme e muito "(tida entre signo-sintoma e simbolo-arquetipo para criticar a psicanalise freudiana.

    Voltando iJ defini"ao classica do ,(mbolo, Jung 7 redescobre explicitamente que este e, antes de mais nada, mult(voco (senaa equi-voco); consequentemente, a sfmbolo nao pode seT assemelhado a urn efeito que se reduziria a uma "causa" (mica. 0 slmbolo remete a alguma ceisa, mas nao se reduz a uma (mica coisa. Em outras palavras, "0 con-teudo imaginario do impulso pode seT interpretado ... redutivamente, ou seja, semioticamente, como a propria representar;:ao do impulso au, simbolicamente, como sentido espiritual do instinto natural".8

    Esse "sentido espiritual", essa infra.estrutura amb (gua da pr6pria ambigiiidade simb61ica eo que Jung chama de "arqulftipo". 0 arquetipo per se, em si, e urn "sistema de virtualidades", "urn centro de fon;a invisfvel", urn "n6 dinamico", au ainda "as elementos de estrutura numinosos9 da psique". 0 inconsciente e que fomece a "forma arque t(pica", em si mesma "vazia", que, para tornar..s;e sensivet a c.onsciencia, "e preenchida imediatamente peto consciente, com a auxClio de ele

    d - 'I ,,10 0 "to " mentos e representacao, conexos ou ana ogos . arqut: IPO t:, portanto, uma forma dinamica, uma estrutura que organiza as imagens, mas sempre ultrapassa as concretudes individuais, biograficas, regionais e socials da formaCao das imagens.

    Assim, 0 efeito..s;igno freudiano se encontra integrado no arquetipo psiquico em que se banha e, ao mesmo tempo, e par ele ultrapassado. Retomemes.o exemple ja citado sabre Freud, 0 do sonho incestuosa de tipo edipiano. ~ verdade que, no caso especifico que ilustramos,

    7. Jung. Seelenprobleme, III, Aufl., Zurique. 1946, p. 49. B. Jung, Die Psych%gie der UebertrBgung. ZuriQue. 1946. pp. 17.18,23. 9. De numen, 0 poder, a vontade divina.

    10. Jung, Symbole def Wandlung, ZuriQue, 1952. p. 391. e Von den Wurzeln des Bewusstseins. Zurique, 1954, VI, p. 491; ct. Jolande Jacobi, Archtftype er symbole dans /a psych%gie de Jung.

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    ha uma redu~iio poss(vel a um desejo real, embora terminado, de dormir efetivamente com a mae. Contudo, em numerosos sonhos semelhantes, nao se pade chegar 'a redu~o do efeito-signo do sonho a urn efeito causal preciso da biografia. Desse modo, uma explicac;::ao conduzida puramente pelo metoda de associac;ao por "contiguidade", na biografia do paciente, pode levar a conclusoes falsas e a uma terapia fantasista. Mas principal mente 0 ~~onho do incesto", muito mais geral do que 0 desejo efetivo do incesto, reconduz simbolicamente aquila que os grandes sistemas reiigiosos ilustram pela grande imagem do Para{so: "Rerugio secreto, onde se esta livre do peso da respansabili dade e do dever de tomar decisoes e cujo s{mbolo intransponivel Ii 0 seio materno".ll Portanto, inverte-se aqui total mente a reduc;ao simb6 lica freudiana: e a exaltapio arquet(pica do simbolo que no' da 0 seu "sentido", nao sua redw;ao a uma libido sexual, biol6gica e a seus incidentes biogrcificos. Mas, nesse casa, para Jung, a pr6pria libido muda de aceplfao; em vez de ser apenas urn impulso biol6gico rna is ou menos imperialista, ela se toma a Energia pslquica em geral, especie de "motor im6vel" do arquetipo, do arquetipo dos arquetipos. inex-primfvel, sem duvida, mas que simbolizava muito bern a serpente enrolada que se desdobra, eo proprio 6rgao sexual mascuJ ino em erec;::ao.

    De fato, Jung redescobre e exp5e prafundamente 0 papel media-dor do arquetipos(mbolo. Pois, pela faculdade ,imb6lica, 0 homem nao s6 pertence ao mundo superficial da linearidade dos signos, ao mundo da causalidade f(sica, mas tambem ao mundo da emergencia sirnb6lica, da crialfao simb6lica cont(nua atraves da incessante "meta-morfo,e"" da libido. A fun9iio simb61ica e, portanto, no homem, 0 lugar de "passagem", de reuniao dos contrarios: 0 s{mbolo em sua essencia e quase em sua etimalogia (Sinnbild, em alemao) e "unificador de pares de opostoS".13 Em tennos aristotfWcOS, ele seria a faculdade de "manter unido" 0 sentido (Sinn = 0 sentida) consciente14 que capta e recorta precisamente as objetos e a materiaprima

    11. Jolande Jacobi. op. cit p. 179. 12. to dtulo de uma obra capital de Jung. 13. Jacobi.op. cit., p. 183. 14. Cf. 0 eSQuematismo em Kant.

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  • (Bild = a imagem) que emana do fundo do inconsciente." Para Jung,a funo simblica conjunctio, casamento, onde os dois elementosse fundem sinteticamente no prprio pensamento simbolizante em umverdadeiro "hermafrodita", num "Filho divino" do pensamento.

    De fato, esse simbolismo constitutivo do processo de ladlvi-duao, atravs do qual o eu se conquista pela equilibrao, pela"sintetizao" dos dois termos do Sinn-bild: a conscincia clara, queem parte ccletva." formada pela conduta, os costumes, os mtodos,as Irnguas inculcadas na psique pela educao, e o inconsciente coletivo,Que nada mais seno a libido, essa energia e suas categorias arquetfpi-caso Mas esse processo de individuao apela para elementos, arquet-picos (inconsciente coletivo) que diferem, bem entendido, conformeo sexo que informa a libido: assim que, no homem, a grande imagemmediadora que vem contrabalanar a conscincia clara ser a da anima,da Mulher etrea, lfica, enquanto, na mulher, a imagem do enimus,do "jovem primeiro", heri de aventuras mltiplas, que vem equilibrara conscincia coletiva.

    Mas preciso assinalar, prncpalmente, que para Jung e paraCassirer a doena mental, a neurose, vem de uma deficincia da funosimblica que cria um desequiHbrio, fazendo o princpio de individuaosubmergir de duas maneiras: a primeira - como nos "casos" estudadospela psicanlise - pela dominao dos impulsos instintivos, que noconseguem mais "simbolizar" conscientemente a energia que os anima,e ento o Indivrduo, em vez de se personalizar, se isola do mundo real(autismo) e assume uma atitude anti-soclal, impulsiva e compulsiva; asegunda, nos casos menos estudados, mas mais insidiosos, o equilfbrio rompido em favor da conscincia clara, e ento se assiste a um duploprocesso de Iiqidao - muito freqente e at mesmo endmico emnossas sociedades hlper-racienallstes - Iiqldao do smbolo que se

    15. Cf.Bachelard. paraquem,tambm.o stmcoto necessitada conscincia desperta.16. O termo "colativo" no absolutamente uma aluso sociolgica; elesignifica bem mais do que um lao social regional, o cimento comunitrio querene coletivamente os indivduos solitrios de uma mesma espcie. sccre oproblema do inmnsciente coletivo, ef, R. Bastide,soaot. et psychsns/yse. PressesUniversitairesde France, 1950, p. 39.

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    I~I

    III,,,

    I!IIIIIII

    estreita em signo, Iiqdao da pessoa e de sua energia constitutivametamorfoseada em um rob mecnico animado apenas pelas "razes"do consciente social estabelecido.

    A dissociao a-simblica, como havia observado Cassirer, constituia doena mental: o smbolo se reduz ento a um simples sintoma; osintoma de uma "anttese reprimida"}' " matria-prima-imagemcontedo do inconsciente, falta o poder que tem o consciente de criarformas, engendrar estruturas" ... 18 e assim o impulso se manifestacegamente, nunca encontrando sua expresso simblica e consciente.Paralelamente, ao "significante" no corresponde mais um significadoinstaurador, uma energia criadora, e o smbolo "se apaga" em signoconsciente, convencional, "casca vazia dos arqutipos,,19 que se agrupacom seus semelhantes em teorias vs - mas perigosas, pois so sucedneasde smbolosl -, "doutrinas, programas, concepes que entrevam eseduzem nossa inteligncia", e ento o indivduo se torna escravo doconsciente coletivo, do preconceito estabelecido; ele se torna "homemda massa", entregue a todas as aberraes do consclente coletivo.

    O smbolo , ento, mediao, porque equilrbrio que esclarecea libido inconsciente pelo "sentido" consciente que lhe d, mas lastrandoa conscincia atravs da energia psquica que veicula a imagem. Sendomediador, o smbolo ser igualmente constitutivo da personalidadeatravs do processo de individuao. Observa-se, assim, que em Jungse desenha, contrariamente associao redutiva de Freud. um sobre-consciente pessoal e ecumnico, que domnio prprio do smbolo.

    No entanto, a grande obscuridade (freqentemente apoiadapelas imprecises de linguagem que assinalamos no in fcio deste pargrafo)reinante em Jung provm da freqente confuso entre as noes dearqutipo-smbolo, por um lado, e de individuao, por outro. Ora,na prtica, percebe-se muito bem que h smbolos conscientes que noso "personalizantes", e que a imaginao simblica no tem apenasuma funo "sinttica", no seio do processo da individuao. Todos os

    17_ Psycho/ogische Typen, p. 648.

    18. Jacobi, p. 184.19. Jacobi, p. 196.

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  • grandes deHrios apresentam as caraeterlsticas do sfmbolo e no so"sfnteses" personalizantes, mas, ao contrrio, por exemplo, ilhas deimagens "obsessionais", ou seja, estereotipadas atravs de um nicoarqutipo.

    Em outras palavras, se Freud tinha uma concepo demasiadoestreita do simbolismo, que reduzia a uma causalidade sexual, pode-sedizer que Jung tem uma concepo demasiado ampla da imaginaosimblica (que ele concebe unicamente em sua atividade sinttica -isto , em sua atividade mais normal, mais tica), quase no conside-rando a "morbidez" de certos sfmbolos, de certas imagens.2/) Pois, sea psicanlise s6 pode compreender a admirvel universalidade dosgrandes smbolos atravs da trucagem da extrapolao edipiana [des-mentida por toda a etnologia); se, principalmente, o sistema darepresso no pode compreender a expresso simblica sob suas formascriadoras mais elevadas; e se a teoria de Jung precisamente restaurao slmbolo em sua dignidade criadora no-patolqica e no apela para oE:dipo generalizado a fim de compreender o carter universal dosarqutipos-sfmbolos, o sistema de Jung ainda parece confundirestranhamente, num otimismo do imaginrio. a conscincia simblica criadorada arte e da religio e a conscincia simblica criadora dos simplesfantasmas do dei frio, do sonho, da aberrao mental.

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    20. Haveria muita coisa a dizer sobre o uso da prpria noo de stntese. queJung parece conservar de Hegel e que ns tambm havamos edotedc. Oe fato,Lupasco demonstrou que se trata mais de um sintema, onde subsistem intactasas polaridades antagonistas. que de urna srrrrese. onde a tese e a antftese perdemat mesmo sua potencialidade de contradio. A "pessoa", enquanto individua-lizada, muito mais um sistema. rico de potencialidades contraditrias quepermitem a liberdade, do que uma "sfntese", Que apenas uma Iiqidalio est-tica das contradies.

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    Parece-nos que Gaston Bachelard quem vai pre.c~sar esse bo~uso e mau uso dos smbolos. O universo de Bachelard dIVlde.-se em tres

    , 'mbolos tm uma utilizao bem diferente: osetores. nos quais os Si "setor que se presta cinciaobjetiva, e de onde todo e qualqu~r srnbolodeve ser impiedosamente proscrito, sob pena de desvanecImento doobjeto,'21 e o setor do sonho, da neurose, no qual o sm..~lo se.de~faz,se reduz _ como Freud bem observara - a uma sinto~atlca mlser~vel.Em ambos esses setores, todo smbolo deve ser suspel:o, per~egu~do,expulso, atravs de uma "psicanlise objetiva" que restlt~a a h~PI?ez

    . - do s,gno ou atravs de uma psicanlise clssica, subjetiva,e a preclsaa, . ~que desperte a psique das brumas do delfrio e torne a p-la de p nodomnio da conscincia humana. .. . .

    Mas h um terceiro setar, pleno porque espectlco da hu.manl.dade, que existe em ns: o setor da palavra.humana, ou seja, da lingua-gem que nasce, jorrando do gnio da espcie, ao mesmo tempo Irnguae pensamento. E na linguagem potica que encontra~os essa encru-zilhada humana entre uma revelao objetiva e o enraizamento dessa

    21. La parique de la rverie, p. 46: "No pensament~ cienttflcc. o con,:e;t~funciona melhor cueorc mais for privado da qualquer Image~ de :undo. .C.

    . . . I 49 "Sebe-se que a atitude elentrftca ccnststeLe matt!rtsltsme ra~/o~ne, p.. ',~ .. Cf La tarmztion de J'espritprecsamente em resrstu a essa mvasec do s(mbolo., . .scientttique, contribution une psychanalvs8 de la,connaissan:, abJectILE. ~aramaiores detalhes. cf. nosso artigo: "Sclence oblecttve et cons~ence svmboh6~edens I'oeuvre de Gas.ton eecreraro". Cahi8rs traem. de Symbollsmf1, 1963. n. .

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  • revelao no mais obscuro do indivfduo biolgico," A linguagempoemtica, como observa Fernand Verhesen num artigo notvel,oferece um "no-eu meu,,23 que permite s funes realmentehumanizantes do homem funcionar totalmente, estar alm da obje-tividade seca ou da subjetividade viscosa. Finalmente, se for negli-genciada a viscosidade autfstica do sonho e da neurose, o homemdispe inteiramente de dois e no de apenas um meio de "transfor-mar" o mundo, de duas "numenotcnicas": de um lado, a objetifica-o da cincia, Que pouco a pouco domina a natureza; de outro, asubjetificao da poesia que, atravs do poema. do mito, da religio,acomoda o mundo ao ideal humano, felicidade tica da espciehumana.

    Enquanto a psicanlise e a socologia se orientavam para umareduo ao inconsciente, seja pelo intrprete dos sintomas onricas,seja pelo das seqncias mitolgicas, Bachelard orienta sua pesquisaao mesmo tempo para o sobreconsciente potico, que se exprimeatravs de palavras e metforas, e para esse sistema de expresso, maisleve, menos retrico que a poesia e que constitui o devaneio. Noimporta se devaneio livre ou "devaneio de palavras" do leitor depoemas, contanto que se mantenha iluminado por uma conscinciadesperta, deste lado das trevas do sonho.

    Da uma hermenutica que, paradoxalmente, para este epis-temlogo, nada mais tem a ver com a anlise, com o mtodo dascincias da natureza Bachelard demonstrou-o constantemente emtoda uma srie de livros: a anlise o fato das cincias objetivas,das cincias sujeitas ascese rigorosa de uma "psicanlise objetiva"que arranca o objeto de todos os seus vnculos aterivcs e sentimen-tais. Bachelard constata muitas vezes que "os eixos da cincia e dapoesia so inversos 'como dois plos da vida psrquica' ",24 ao contrrio

    22. Cf. F. Verhesen, "La lecture heureuse de Gaston Bechelard", in Courrierdu Cenrre Inremational d'tudes Poetiquee, n9 42, p. 5: "Saber cientffico esaber potico utilizam mtodos diametralmente opostos, mas ambos conferem umpoder sobre os fatos e sobre O vivido Que, desembaraado das contlnncias, osilumina e valoriza:'23. F. Verhesen, op. cit p. 7. Cf. G. Bachelard, La podtique de la reverte. p. 12.

    24. Psychanalyse du teu, p .10.

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    do que afirma o intelectualismo de Cassirer ou de Lvl-Strauss. Essadualidade existe no apenas no seio da conscincia, mas "l: bom provo-car uma rivalidade entre a atividade conceptual e a atividade da irnaqi-nao. Em todo caso, s6 se tem decepo ao faz~las cooperar'.'.25 Pois" preciso amar as potncias psquicas de dOIS amores diferentes

    " 26quando se ama os concertos e as Imagens.DaI' a necessidade de adotar um mtodo prprio do campo da

    expresso potica. A fenomenologia s