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A TEOLOGIA TRINITÁRIA DE SÃO TOMÁS DE AQUINO

DA TRINDADE CRIADORA À VISÃO DO PAI

Conferência lida pelo Moderador P. José Jacinto de Farias, professor na Faculdade de Teologia da UCP.

Ff. Emmanuel Durand, o.p.Doutorado em Teologia pelo Instituto Católico de Paris e pela Uni­versidade Católica de Lovaina (2004), é “Maítre de Conférences” e responsável pelas especializações em Dogmática e Fundamental na Faculdade de Teologia do Instituto Católico de Paris.

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A teologia trinitária de São Tomás de Aquino Da Trindade criadora a visão do Pai

A presente contribuição procura reler a teologia trinitária de São Tomás de Aquino como um possível itinerário espiritual. Tal aproximação pressupõe um conhecimento das principais aquisições dos tratados sobre a Trindade desenvolvidos pelo santo teólogo: as duas processões imanentes, as relações distintivas idênticas à essência, a pessoa como relação subsistente, as analogias do verbo e do amor, a constituição correlativa das três pessoas (incluindo a do Pai), a sua perfeita igualdade e a sua imanência mútua, e, enfim, a teologia das missões divinas. A dimensão «itinerante» da teologia trinitária toma- siana será aqui abordada em dois planos conexos: o do método e o dos conteúdos.

No plano do método, o empreendimento teológico do Aqui- natense deve, antes de mais, ser qualificado a partir das suas finalida­des explícitas. Pela sua orientação contemplativa, a teologia trinitária é passível de ser caracterizada como um lugar privilegiado de «exercí­cio espiritual». Uma tal concepção da teologia releva do seu vínculo estrutural com a beatitude divina, que consuma toda a economia do conhecimento de Deus — o que se repercute na própria arquitectura da exposição teológica.

No plano dos conteúdos, a teologia trinitária de São Tomás pode de novo ser compreendida como uma trajectória para a divina beatitude. Para o fundamentar, partiremos da dinâmica teologal im­posta ao criado pela Trindade criadora, a fim de mostrar como este movimento encontra a sua consumação última na visão do Pai, para quem o Verbo e o Espírito nos encaminham.

Ciente da diacronia das obras do Aquinatense1, a nossa investi­gação assumirá, todavia, uma forma sintética, e a nossa atenção inci­

1 Para a datação das diferentes obras de Tomás de Aquino, veja-se J.-P. T orrell, Initiation à saint Thomas d ’Aquin\ Sapersonne et son mvre, Paris-Fribourg (Suisse), Cerf--EUF,22002, p. 483-525.

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dirá prioritariamente na Suma de Teologia, reportando-a, quando neces­sário, a outras obras anteriores, especialmente ao Comentário às Senten­ças, ao Comentário ao T>e Trinitate* de Boécio, à Suma contra os Gentios e às Questões Disputadas T>e Potentia*. A fim de conduzir o nosso estudo até ao ápice do acto teológico, apoiar-nos-emos de modo privilegiado no Comentário sobre o Evangelho de São João, última obra trinitária do Santo Doutor.

1. A TEOLOGIA TRINITÁRIA COMO CONTEMPLAÇÃO DA VERDADE

E PROCURA DA BE ATITUDE. O DUPLO FIM DA TEOLOGIA: APREENSÃO

CONTEMPLATIVA E ARGUMENTAÇÃO DEFENSIVA

São Tomás atribui uma dupla tarefa à teologia: a percepção da verdade revelada e a sua defesa contra os erros; dito de outro modo, o manifestare contemplativo e o solvare defensivo, explicar (no sentido de des-implicar) as verdades da fé e afastar os erros a seu respeito. Trata-se, antes de mais, de manifestar as verdades da fé na sua unidade, par­tindo, por exemplo, de um artigo do Credo para tentar clarificar um outro2. Mas é também conveniente responder aos adversários da fé, diluindo, se possível, as suas objecções, ou, pelo menos, mostrando que. as suas razões contra a fé não são convincentes.

A fim de articular estas duas tarefas, Tomás explica que, a respeito da fé na pluralidade de pessoas na Santíssima Trindade, os «Santos Padres», face às objecções dos heréticos, tiveram como única ambição «apreender qualquer coisa da verdade que basta para excluir os erros»:

A pluralidade de pessoas em Deus pertence àquelas realidades que estão contidas na fé e que a razão humana natural não pode nem explorar nem apreender suficientemente; mas esperamos apreendê-la na Pátria, quando Deus for visto na sua essência, quando a fé tiver dado lugar à visão. No entanto, os Santos Padres foram obrigados a tratá-la de maneira desenvolvida em virtude das objecções levantadas

2 Tomás de Aquino, Sum. theol I, q. 1, a. 8, sol.: «a sacra doctrina argumenta, não para provar os seus princípios, que são os artigos de fé, mas para manifestar, a partir deles, uma outra [verdade], tal como o Apóstolo, em ICo 15, argumenta a partir da ressurreição de Cristo para provar a ressurreição comum».

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pelos contraditores da fé nesta matéria e sobre outras coisas [de aliis] que também dizem respeito à fé; fizeram-no, contudo, de maneira modesta e com respeito, sem pretender compreender. E uma tal in­vestigação não é inútil, dado que por ela o espírito é elevado para apreender o quanto baste da verdade para excluir os erros3.

Uma tal delimitação do propósito explicativo pelo fito defen­sivo é adequada para induzir a modéspa, a sobriedade e a precaução requeridas na teologia dos mistérios. No entanto, é necessário ter pre­sente a hierarquia dos fins introduzida por Tomás no seu comentário ao prólogo do De Trinitate de Boécio: «[Boécio] faz alusão ao fim prin­cipal [da teologia], que é interior, a saber, a percepção da verdade di­vina, e desenvolve o fim secundário, a saber, o juízo do sábio4». Aqui, o propósito defensivo é evidentemente incluído no juízo do sábio, a quem compete resolver as dificuldades e discernir os erros. A finali­dade contemplativa da teologia, saborosa percepção da verdade reve­lada, tem deste modo anterioridade em relação à função defensiva.

Tal é coerente com a concepção tomasiana da sacra doctrina como conhecimento de Deus articulado com os princípios recebidos por re­velação divina e condensados nos breves enunciados dos artigos de fé. O desenvolvimento teológico de um tal conhecimento forma uma ciência subordinada ao conhecimento que Deus tem de Si mesmo e que os bem-aventurados têm d’Ele5. A sacra doctrina constitui, assim, uma participação na ciência divina e, deste modo, proporciona uma certa antecipação da visão.

3 Depotentia., q. 9, a. 5, sol., tradução retirada de G. E m ery, Lm théologie trinitaire de saint Thomas d ’A.quin ̂Paris, Cerf, 2004, p. 39; veja-se também Summa contra gentiles (abrv. SCG), I, 9, §3.4 Super Boetium De Trinitate (abrev. SBdT), exp. prohemii; veja-se já S B dT prol.: «a finalidade desta obra é que as verdades ocultas da fé sejam tornadas manifestas na medida em que é possível na vida presente» (finis huius òperis est ut occulta fidei manifes- tentur quantum in via possibile esf).

5 Veja-se Sum. theol. Ia, q. 1, a. 1-2; veja-se também SBdT, q. 2, a. 2, sol.

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A teologia trinitária como exercício espiritual6Nesta perspectiva, a teologia especulativa pode ser considerada

como uma forma particular de «exercício espiritual», em que o espírito humano apreende e aprofunda — de modo adaptado às suas capacida­des (através de similitudes) — umas «pequenas gotas» da ciência divina, a ponto de daí retirar uma profunda alegria espiritual:

A razão humana, quando se trata de conhecer a verdade da fé, que não pode ser perfeitamente conhecida senão por aqueles que vêem a substância divina, foi feita de tal modo que lhe é possível colher algumas verdadeiras similitudes (verisimilitudines) desta última, que, contudo, não bastam para que essa verdade seja compreendida pelo intelecto, como aconteceria se ela fosse demonstrada ou pensada por si. Mas é útil ao espírito humano exercitar-se nestas razões, ainda que sejam falíveis, desde que não tenha a pretensão de compreender e de demonstrar, porque é uriia grande alegria a de poder perceber alguma coisa das realidades mais altas, ou não fosse este senão um olhar fa­lível e limitado7.

O horizonte da teologia tomasiana não é limitado pelas suas componentes defensiva, discursiva e argumentativa. O conheci­mento teológico, apesar da inadequação e da fraqueza de que pa­dece, possui recursos contemplativos, indirectos e limitados, mas enge­nhosos e fecundos.

Gilles Emery, teólogo de Friburgo (Suíça), que esclareceu re­centemente a dimensão de «exercício espiritual» implicada na teologia trinitária de São Tomás, ilustra-o principalmente através do uso das analogias do verbo e do amor, com a ajuda das quais o espírito hu­mano se pode elevarás forma progressiva até uma imagem, depurada,

6 Inspiramo-nos aqui largamente num estudo magnífico e inovador de G. E mery, «Le propos de la théologie trinitaire spéculative chez saint Thomas dAquin», Nova et vetera 79/2, 2004, p. 13-43; retomado e desenvolvido sob o seguinte título: «La théologie trinitaire spéculative comme “exercice spirituel” suivant saint Thomas dAquin», A.nnales theologiá 19/1, 2005, p. 99-133.

7 SCG I, 8, trad. (ligeiramente modificada) retirada de C. M ichon, Thomas d ’Aquin, Somme contre les Gentils, vol. I: Dieu, Paris, GF Flammarion, 1999, p. 155-156.

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de um aspecto do mistério trinitário contemplado de forma indirecta no seu reflexo criado. Uma tal ascensão por etapas é claramente ob­servável no célebre capítulo 11 do quarto livro da Suma contra Gentios, onde a geração do Verbo é vista como a última superação dos graus crescentes de interioridade já presentes nas realidades criadas.

Uma tal estratégia contemplativa cabe inteiramente na episte- mologia teológica tomasiana. Ljúcido acerca da nossa incapacidade de conhecer Deus tal como é em Si mesmo, enquanto permanecemos in via, Tomás, na esteira aliás de uma tradição já estabelecida, abre um caminho indirecto para conhecer Deus: podemos aproximarmo-nos d’Ele pelos seus efeitos ou operações: «Deus não é conhecido por nós na sua natureza, mas dá-Se a conhecer a partir dos seus efeitos e operações, [de modo que,] a partir deles, podemos nomeá-rO8». Estes efeitos e operações ou intervenções divinas são de duas ordens: natureza e graça; ou, dito de outro modo, relevam de uma dupla economia: cria­ção e salvação. Este duplo recurso será mobilizado de forma contínua na teologia cristã, particularmente na releitura do criado e no exame aprofundado das Escrituras.

A demanda da beatitude divina é o fim do teólogo e estrutura a teologia

A sacra doctrina, que se articula particularmente em teologia, é uma ciência ao mesmo tempo especulativa e prática. E principalmente especulativa9, porque trata das verdades mais altas, as verdades divinas reveladas por Deus a respeito d’Ele mesmo. Mas também se mos­tra «prática», na medida em que trata conjuntamente dos actos e dos meios para se chegar à nossa beatitude eterna, que consiste no pleno conhecimento de Deus10.

8 Sum. theol I, q. 13, a. 8, sol.: Deus non est notus nobis in sui natura, sed innotescit nobis ex operationibus vel effectibus eius, ex his possumus eum nominare.

9 Em São Tomás, a palavra «especulativo» (que se reporta a Aristóteles) quase que equivale a «contemplativo» (que se reporta às fontes cristãs); veja-se S. P inckaers, «Recherche sur la signification véritable du terme “spéculatif”», Nouvelle Revue Théo- logique 81,1959, p. 673-695.

10 Sum. theol. Ia, q. 1, a. 4, sol.; veja-se também a. 5, sol.

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Antes de designar a nossa felicidade última, quer dizer, a acti­vidade contemplativa integral, sobrelevada e transformada pela visão bem-aventurada e pela união definitiva com Deus, a beatitude é um atributo característico do próprio ser de Deus11. Na Suma de Teologia, o tratado acerca de Deus e suas divinas perfeições conclui-se, de facto, com a beatitude, que é idêntica à essência e à vida de Deus12. Isto não é irrelevante e merece reflexão. E mesmo necessário perguntar se esta última consideração sobre a soberana beatitude e alegria de Deus em Si mesmo não constitui justamente a melhor junção possível entre a secção sobre a essência divina e a da distinção das pessoas no seio da Trindade. Tomás não cede, no entanto, à lógica das «Razões necessá­rias», aquiImputada a Ricardo de São Vítor. Ele refuta a tese segundo a qual a unidade divina exigiria a pluralidade trinitária em razão da per­feição da divina beatitude13. Tomadas estas precauções epistemológi- cas, torna-se pertinente considerar a relação entre a beatitude divina e o aumento de inteligência proporcionado pela fé trinitária.

Por analogia, Tomás de Aquino compreende a beatitude divina como a «suficiência» (sufficientia) que acompanha o perfeito conheci­mento que Deus tem d’Ele mesmo na sua própria bondade14. Para explicar este ponto, é conveniente reportarmo-nos por um instante à Suma contra os Gentios, quando Tomás estabelece que a alegria (gaudium) e o prazer (delectatio) se encontram no seu mais alto grau em Deus: «A alegria e o prazer são um certo repouso da vontade no seu ob­jecto. Ora Deus, que é o principal objecto da sua vontade, repousa no mais alto grau em Si mesmo, enquanto possui em Si toda a suficiência (sufficientia). Ele alegra-Se e deleita-Se em Si, no mais alto grau, pela sua vontade15». Deus dispõe assim da total fruição da sua própria bondade

11 Veja-se Sum. theol Ia, q. 26, a. 3, sol.

12 Veja-se já SCG1 ,100-102 (os últimos três capítulos do livro).

13 V eja-se Sum. theol. Ia, q. 32, a. 1, ad 2, que resp on d e a R ic a rd o d e S ã o V í t o r , De • Trinitate, I, 1-4.

14 Veja-se Sum. theol. Ia, q. 26, a. 1, sol.; veja-se também a. 4, sol.

15 SCG I, 90, §4, trad. retirada de C. M ichon, Thomas d ’Aquin, Somme contre les Gentils, vol. I: Dieu, Paris, GF Flammarion, 1999, p. 351. A secção final sobre a beatitude divina remete particularmente para este capítulo sobre a alegria e o prazer divinos;

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essencial, pelo perfeito conhecimento de Si mesmo e no completo repouso da sua vontade em Si mesmo.

Mas há um acesso que se deixa iluminar de uma nova luz em virtude da fé trinitária quando se perspectiva a processio do Verbo no seio do conhecimento divino, para reconhecer, enfim, que esta vem acompanhada pela processio do Espírito como Amor16. Neste único Verbo perfeito e neste único Amor perfeito manifesta-se adequada­mente a soberana fecundidade (fecunditas) de Deus em Si mesmo17. Tal é na verdade a dimensão explicitamente trinitária da perfeita sufficientia de Deus no conhecimento e na posse da sua própria bondade. De facto, São Tomás explica algures que a alegria de Deus consiste no próprio amor que o Pai deposita no seu Filho, o qual recebe na sua própria geração toda a bondade essencial de Deus18. Deste amor do Pai pelo Filho provém o Espírito, Ele mesmo devolvido ao Pai no amor recíproco, pelo qual este último responde ao Pai19. A beatitude e a sufficientia do Deus Único não são portanto as de um Deus inerte e solitário, mas antes as de um Deus Trino.

A atracção da divina beatitude não finaliza somente toda a eco­nomia do nosso conhecimento de Deus, de que a teologia é parte integrante, mas deixa também a sua marca na estrutura formal de um enunciado teológico completo. De facto, reencontramos a orientação para a beatitude divina nas articulações decisivas do intellectus fidei pro­posto por São Tomás na sua obra maior.

Regressemos então aos prólogos da Suma de Teologia, que ofere­cem uma visão panorâmica do desenvolvimento da obra no conjunto da sua arquitectura. Isto permite-nos compreender que a teologia é

veja-se SCGI, 100, §5; 102, §3 e 9. Para fazer a distinção entre gaudium (união afec­tiva) et delectatio (união efectiva), veja-se SCG I, 90, §7.

16 Veja-se Sum. theol. Ia, q. 27, a. 1 e 3.

17 Veja-se Sum. theol Ia, q. 27, a. 5, ad 3.

18 Veja-se Sup. Mat. III, 17, Marietti 998-999; XVII, 5, Marietti 1435-1436; veja-se também Pot., q. 10, a. 4, ad 18.

19 Veja-se Pot., q. 10, a. 4, ad 10. Sobre a processão do Espírito como amor, veja-se E. D urand, Lapérichorèse despersonnes divines. Immanence mutuelle, rêáprocité et communion, Paris, Cerf, coll. «Cogitatio fidei» 243, 2005, p. 217-264.

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aqui concebida e exposta numa perspectiva económica. Todo o de­senvolvimento da Suma se revela, com efeito, comandado por uma certa percepção da lógica interna do desígnio benevolente de Deus. Recordemo-nos por breves instantes de que a estrutura da Suma è dinâmica, pois «Deus é o princípio e o fim de todas as coisas, espe­cialmente da criatura racional». Assim, nela se tratará sucessivamente: 1) de Deus (isto é, essência divina, distinção das pessoas, processão das criaturas); 2) do movimento da criatura racional para Deus; 3) de Cristo, que, como homem, é a via que nos leva a Deus20. No começo da segunda parte, acerca do movimento do homem para Deus, Tomás sublinha que aí tudo será explicado tendo em vista a relação ao fim, e que «o fim último da vida humana é a beatitude21». Por fim, no início da terceira parte, recorda-se que Cristo «Se nos mostrou como o ca­minho da verdade, mediante o qual nos é doravante possível chegar à ressurreição e à beatitude da vida imortal22». Então, o itinerário pro­posto forma um círculo que retorna ao seu princípio, na medida em que a beatitude comunicada ao homem por Cristo Salvador consiste em participar na glória na própria beatitude divina.

Segundo o intellectus fidei que se depreende da estrutura da Suma, o desígnio de Deus consiste principalmente em conceder às criaturas espirituais, como seu fim último, a própria beatitude divina. A fina­lidade prosseguida por Deus através de todas as suas iniciativas gra­ciosas permanece, com efeito, a comunicação da sua própria vida e a partilha da sua própria beatitude. De modo sobrenatural, Deus é então para as criaturas espirituais o seu bonum beatificanP. Para a con­secução de uma tal beatitude, tudo é utilizado, incluindo os remédios e as respostas adequadas ao pecado do homem. Cristo não intervém na história da salvação como um prodígio ontológico que vale por si mesmo e finaliza a criação, ou como um super-homem que, pela sua simples existência, apaga todas as falhas e todos os desvios da história

20 Veja-se Sum. theol. Ia, q. 2, prol.

21 Veja-se Sum. theol. Ila, prol.

22 Veja-se Sum. theol. Illa, prol.

23 Veja-se Sum. theol. Ia, q. 60, a. 5, ad 4.

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humana... Ele é Aquele que nos reabilita do pecado e renova na sua pessoa o caminho para Deus Pai e para a partilha da sua beatitude.

Depois de se perceber a orientação do método teológico utilizado por São Tomás, é conveniente fazer uma breve síntese. O propósito da teologia trinitária determina, com efeito, o bom modo de emprego da triadologia tomasiana. Esta não é uma simples gramática da língua ou da conceptualidade trinárias. Ela é concebida como um exercício de purificação das nossas Representações do Deus Trino, finalizada por uma melhor apreensão contemplativa da verdade revelada.

Não é, por isso, possível anexar sem distorção um tal projecto teológico a preocupações imediatas, a exigências antropológicas ou políticas, como a querela dos géneros, das reformas sociais, etc. O discurso trinitário em São Tomás não comporta uma intencionalidade funcional nem uma manipulação para fins utilitários. A sua virtude ilu- minativa do mundo criado e do homem, sendo bem real, é secundária e apenas relativa à explicitação objectiva da revelação trinitária na sua racionalidade teológica. Tal é, pelo menos, a natureza do propósito trinitário na tradição proveniente de São Tomás de Aquino. O que não dispensa o teólogo dos nossos dias de desenvolver uma aproximação mais contemporânea — de dominante analítica, estética ou contextuai —, mas não se pode exigir do Aquinatense aquilo que ele não tinha a intenção de realizar.

2. D a c r i a ç ã o t r i n i t á r i a n o P a i , t e r m o d a v is ã o b e a t í f i c a

Retomemos agora a dimensão itinerante da teologia trinitária de São Tomás no plano dos seus conteúdos. Tal exige mostrar o vínculo entre a criação como acto trinitário, as missões do Verbo e do Espírito pelo Pai e, enfim, a visão imediata e bem-aventurada de Deus na es- catologia final.

No termo da dinâmica teologal da fé e da esperança animadas pela caridade, Tomás considera naturalmente que «uma missão invisí­vel é feita aos bem-aventurados no próprio princípio da beatitude24». Isto é coerente com a via, onde uma nova missão se assinala, desde logo, por um crescimento da graça, que conduz a alma a um acto

24 Sum. theol Ia, q. 43, a. 6, ad 3.

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superior ou em direcção a um novo estado25. Completa-se assim inpatria o que se inicia in via pelos actos da fé viva e da caridade; a sa­ber, a total união ao Pai pela presença íntima do Verbo e do Espírito.

Na questão da Suma sobre o conhecimento de Deus, em que trata da visio, Tomás afirma que a própria essência divina será vista por nós, sem qualquer similitude criada26, mas não distingue nessas pági­nas a implicação própria de cada pessoa divina na visão bem-aventu- rada. No entanto, quando comentava as Sentenças, Tomás estava mais empenhado em sublinhar que o Pai é em pessoa o fim último, Aquele a que nos conduzem as missões do Verbo e do Espírito.

A mediação trinitária da criação e do retorno ao PaiDetenhamo-nos um instante neste auge precoce da doutrina

tomasiana, onde se reúnem a teologia da criação e a das missões di­vinas: a dupla mediação do Filho e do Espírito, no nosso retorno a Deus, confere continuidade à dupla mediação que caracteriza a saída das criaturas a partir de Deus:

Na saída das criaturas do primeiro princípio, observa-se uma certa circulação ou «movimento de volta» («regiration.»)9 pelo facto de todas as coisas retornarem como ao seu fim àquilo por que foram produzi­das como seu princípio. E é por isto que é necessário que o retorno ao fim seja também observado pelas mesmas realidades pelas quais saiu do princípio. Portanto, da mesma forma que a processão das pessoas é a razão da produção das criaturas pelo primeiro princípio, também igualmente esta mesma processão de pessoas é a razão de retornar ao fim; pois que, do mesmo modo que fomos criados pelo Filho e pelo Espírito Santo, assim igualmente é por eles que somos unidos ao fim último (fini ultimo coniungimur), como aparece claramente em Agostinho quando escreve27: «O princípio ao qual regressamos»,

25 Veja-se Ibid., ad 2.

26 Sum. theol. Ia, q. 12, a. 2, sol.; sobre as linhas definidoras da solução tomasi­ana, veja-se J.-P. T orrell, «La vision de Dieu “per essentiam” selon Saint Thomas dAquin», Kecherches thomasiennes, Paris, Vrin, 2000, p. 177-197.

27 A g o s t in h o , De vera religione, cap. 55, n° 113, BAug 8, p. 188-191.

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ou seja, o Pai, «e a forma que seguimos», ou seja, o Filho, «e a graça pela qual somos reconciliados» [ou seja, o Espírito Santo]. E Santo Hilário diz28: «A um só sem-princípio e princípio de tudo restituímos todas as coisas pelo Filho»29.

O fim último das criaturas espirituais é efectivamente, portanto, a própria pessoa do Pai. Tomás explica-o de forma aprofundada um pouco mais longe quando põe à frente a similitude espantosamente efficacfi'0 entre as relações de origem das pessoas divinas no que res­peita ao Pai e as modalidades de retorno da criatura para o Pai:

O retorno (reductio) da criatura racional a Deus faz-se pela proces­são da pessoa divina, que também se chama missão, na medida em que a relação própria desta pessoa divina é representada na alma por uma certa similitude recebida, cujo exemplar e origem é esta mesma propriedade da relação eterna. Assim como o modo próprio pelo qual o Espirito Santo Se refere ao Pai é o amor, também o modo próprio de referên­cia do Filho ao Pai\ é ser o seu Verbo que O manifesta. Eis porque, tal como o Espírito Santo procede invisivelmente na alma pelo dom do amor, também o Filho [procede na alma] pelo dom da sabedoria, no qual há uma manifestação do próprio Pai, que é o [termo] último ao qual regressamos (ultimus ad quod recurrimusfx.

Sem se tratar de simples mediações instrumentais, o Filho e o Espírito são enviados e visitam os justos de modo a tornar possível o coroamento da sua filiação pela graça, na união à própria pessoa do Pai. Com efeito, na medida em que cada uma das duas pessoas divinas enviadas comunica uma participação real na sua propriedade eterna, quer dizer, ao modo próprio da sua relação viva com a pessoa do Pai,

28 H ilá r io d e P o itie rs , De Sjnodis 59, XXVI, PL 10, 521.

29 T omás de A quino, In I Sent., d. 14, q. 2, a. 2, sol., tradução de G. E mery, Ta théo- logie trinitaire de saint Thomas dAquin, p. 221; veja-se toda a secção intitulada «De Père au Père», p. 210-212.30 Veja-se C. de B elloy, Ta visite de Dieu, Genève, Ad Solem, 2006, p. 35-40; 82-83 et 115-117.31 Tom ás d e A q u in o , In I Sent., d. 15, q. 4, a. 1, sol., trad. E m ery, p. 444; veja-se sobretudo o comentário nas pp. 444-445.

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é ao próprio Pai que a criatura é reportada assim que recebe o Filho e o Espírito.

Tal é uma das contribuições sem par da teologia das missões desenvolvida no Comentário às Sentenças. Esta percepção, tão profunda, da dimensão propriamente trinitária da nossa divinização permanece presente na Suma de Teologia sem, todavia, ser tão eloquentemente de­senvolvida. Contudo, aqui São Tomás afina uma concepção decisiva dos modos pessoais diferenciados da acção trinitária comum32. Estamos diante do paradoxo do agir divino ad extra, simultaneamente comum à Trindade e triplamente distinto. Isto convém perfeitamente à concep­ção tomasiana da pessoa divina como relação subsistente, que integra ao mesmo tempo a essência comum e o modo próprio de uma exis­tência pessoal.

A doutrina do modo pessoal da acção trinitária funda a pos­sibilidade de uma participação graciosa das criaturas espirituais nas processões trinitárias33. As relações distintivas das três pessoas estão sempre implicadas — segundo uma causalidade em simultâneo exem­plar, eficiente e final — na acção comum que a Trindade inteira exerce criando, salvando e divinizando os homens. E por isto que, na graça e na glória, se efectua uma participação real nas próprias relações do Filho e do Espírito Santo no que respeita ao Pai. A intuição de fundo enunciada no Comentário às Sentenças mantém, assim, todo o seu vigor e pertinência na Suma, todavia reformulada com maior mestria e fun­damento.

O Pai no termo na visão bem-aventuradaCerremos a nossa análise sobre o termo final da dinâmica teo-

logal das missões, conducente pela glória à visão do Pai. Nas suas obras da maturidade, Tomás centrou-se sobretudo na defesa de uma

32 Veja-se G. E mery, «Le mode personnel de 1’agir trinitaire suivant Thomas d’Aquin», FZPhTh 50, 2003, 334-353; retomado e desenvolvido em inglês: «The Personal Mode of Trinitarian Action in Saint Thomas Aquinas», The Thomist 69, 2005, p. 31-77.

33 Veja-se particularmenteSum. theol. Ia, q. 33, a. 3, ad 1; q. 45, a. 6-7; q. 93, a. 5, sol.; I-II, q. 110, a. 4, sol. (in fine).

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visão imediata da essênda divina, posta em causa por uma dissociação entre a substância e a glória de Deus34. Esta preocupação relativa à essência divina parece ter ocultado um pouco a explicitação propria­mente trinitária da visão. No entanto, esta permanece activa e como que em filigrana através de certos índices significativos. Encontrá-los- -emos essencialmente na jLectura super loannem, onde são comentados os versículos joânicos que designam o Pai como o termo do caminho oferecido por Cristo aos discípulos.

Não obstante a sua diferença subjectiva, a fé e a beatitude man­têm uma espantosa conivência. A atracção do Pai exerce-se desde já in via na fé, que dispõe progressivamente o crente para a visão futura35. Tomás afirma-o quando comenta o «isto basta-nos», de Jo 14,8: «Ver o Pai, tal é o firri (finis) de todos os nossos desejos e de toda a nossa ac­tividade, de modo que nada mais haja a reclamar»36. Isto não significa que houvesse «mais» a ver no Pai do que no Verbo. Com efeito, em ra­zão da unidade numérica de essência37, o Verbo é a perfeita imagem do Pai38, na qual este último Sé? manifesta a Si mesmo - embora na medida em que é cognoscível por uma criatura. De igual modo, a mesma «su­ficiência» (sufficientia) encontra-se no conhecimento do Filho e no do Pai39. Seguramente Cristo não é somente o Caminho, mas e também a Verdade e a Vida40. Neste sentido, não é uma via distante do termo

34 Veja-se Sup. Io. I, 18, Marietti 212; para o contexto, veja-se Ch. T rottmann, La vision béatifique. Des disputes scolastiques à sa définition pa r Benoit XII, Rome, École française de Rome, 1995.35 Sup. Io. XV, 15, Marietti 2018; Tomás inspira-se aqui em A gostinho, Tract. in Io. LXXXVI, 1, BAug 74B, p. 139-143.

36 Sup. Io. XIV, 8, Marietti 1883; veja-se também Sup. Io. XVI, 24, Marietti 2146. Sobre o contributo específico da Lectura super loannem para a doutrina tomasiana da visão beatífica, veja-se P.-Y M a i l la r d , Lm vision de Dieu che£ Thomas d ’Aquin, Paris, Vrin, «Bibliothèque thomiste» 53, 2001, p. 179-221.

37 Veja-se Sup. Io. XIV, 9, Marietti 1887 e Sup. Io. XIV, 10, Marietti 1891.38 Veja-se Sup. Io. XIV, 7, Marietti 1878-1879 e Sup. Io. VDI, 19, Marietti 1161-1162.

39 Veja-se Sup. Io. XIV, 9, Marietti 1889; veja-se já A gostinho, De Trinitate, I, 8,17, BAug 15, p. 130-135.

40 Veja-se Jo 14, 6.

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final (terminus), mas é-lhe inteiramente conjunto, de acordo com a sua divindade. Nesta perspectiva, Ele partilha com o Pai o ser o fim (finis) do nosso desejo41.

Na ordem da fé, a posição final do Pai traduz-se desde já pela atracção que Ele exerce sobre os discípulos para que estes acedam a Cristo: «Ninguém pode vir a Mim se o Pai que Me enviou não o atrai»42. Uma tal atracção releva da causalidade final exercida pelo Pai, que move os discípulos a crerem em virtude da auctoritas da sua majes­tade43. Enquanto Verbo encarnado, Cristo conduz ao Pai, que consti­tui propriamente o termo (terminus) e o fim (finis) do caminho44.

Ora, o que vale quanto ao tempo da fé esclarece por antecipa­ção certas Seterminações da glória futura. «A hora vem, diz Jesus, em que não vos falarei mais por meio de metáforas, mas vos falarei do Pai em toda a claridade» (Jo 16, 25). Uma das possíveis leituras deste versículo, segundo Tomás de Aquino, e na trilha de Agostinho45, é entender esta palavra do tempo da glória:

Dado que no presente vemos por um espelho e em enigma, aquilo que nos é dito de Deus é-nos proposto em parábolas. Mas como na pátria veremos [Deus] face a face (como é dito em ICo 13,12), então aquilo que diz respeito ao Pai (de Patre) ser-nos-á dado a conhecer, não em parábolas, mas em toda a claridade. E diz «a respeito do Pai» (de Patre), porque ninguém pode ver o Pai nesta glória se o Filho nãoo manifestar: Ninguém conhece o Pai senão o Filho, e aquele a quem o Filho o quer revelar (Mt 11,27). Com efeito, o Filho é a luz verdadeira, dando- -nos a luz, a fim de que por ela vejamos o Pai: Eu sou a lu% do mundo (Jo 8,12)46.

41 Veja-se Sup. Io. XIV, 6, Marietti 1868; veja-se também 1873-1875.42 Jo 6,44.

43 Veja-se Sup. Io. VI, 44, Marietti 935.

44 Veja-se Sup. Io. VI, 44, Marietti 936.

45 Veja-se A gostinho, Tract. in Io. CII, 3, BAug 74B, p. 411; veja-se também De Tri- nitate, 1 ,10, 21, BAug 15, p. 145.

46 Sup. Io. XVI, 25, Marietti 2150: Quia enim nunc videmusper speculum et in aenigmate, idcirco haec quae dicuntur nobis de deo, in proverbiisproponuntur. Sed quia in patria videbimus

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A teologia trinitária de São Tomás de Aquino

Se interpretarmos esta promessa de inteira claridade da palavra como uma referência ao tempo da glória futura, é natural que se reco­nheça a plena revelação do Pai na visão bem-aventurada. Todo o mi­nistério da revelação consumado por Cristo é estruturalmente relativo a esta última epifania paterna, porque Ele é o seu próprio Verbo e a sua perfeita Imagem.

Podemos encontrar ainda um outro indício da posição única do Pai no termo da visão bem-aventurada. Isto conduz-nos à cristologia desenvolvida por Tomás de Aquino na Suma de Teologia. A visão do Pai no Verboconvém não somente aos discípulos, mas também no seu mais alto grau a Cristo, que, a partir da sua própria existência de Logos, vê em Si mesmo e sem cessar o Pai47. E sabido que a afirmação de uma «visão beatífica» conferida a Cristo já antes da Páscoa (na sua própria concepção) suscitou um vasto debate cristológico no século XX48. Contudo, tal não nos impede de seguir uma boa explicação toma- siana a partir da dinâmica da beatitude incriada, cujo atributo constitui oportunamente o auge do tratado De Deo Uno.

A fruição criada em que Cristo vive a visão imediata de Deus é o reflexo n’Ele da beatitude incriada que recebe do Pai no próprio acto em que é engendrado. Ora, a pessoa do Pai é o princípio e o fim

fad e ad fadem, ut didtur I Cor: XIII, 12, ideo tunc non in proverbiis, sed palam de patre an- nuntiabitur nobis. Didt autem de patre, quia nullus potestpatrem videre in illa gloria nisi filio manifestante; Matth. XI, 27: nemo novitpatrem nisifilius, et cuifilius voluerit revelare. Ipse enim est lux vera, dans nobis lucem, quapatrem videamus; supra VTII, 12: ego sum lux mundi.

47 Tomás afirma da alma de Cristo: «porque ela se une ao Verbo na sua pessoa (inper- sona), a alma de Cristo é conjunta ao Verbo de Deus de maneira mais próxima (pro- pinquius) do que qualquer outra criatura. E por isto que ela recebe mais plenamente do que qualquer outra criatura do próprio Verbo a influência da luz na qual vemos Deus» (Sum. theol. III, q. 10, a. 4, sol.). Opropinquius sugere que a união particular do Verbo é válida também para as criaturas espirituais, mesmo que a união se cumpra por modo de operação e não por uma união inpersona.

48 As posições e os argumentos são inumeráveis aqui; para um bom status quaestionis, atento aos movimentos sucessivos da problemática, veja-se V. H olzer, «Ecriture et Dogmatique. Le cas exemplaire de la connaissance du Christ Verbe incarné», Trans- versalités 86,2003, p. 19-38. Para um esboço de resolução, veja-se Th.-J. W hite, «The Voluntary Action of the Earthly Christ and the Necessity of the Beatific Vision», The Thomist 69/4, 2005, p. 497-534.

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da beatitude incriada; de modo que a fruição criada, que preenche de alegria a alma de Cristo, assenta, seguramente, na pessoa do Pai49. Apesar da diferença ontológica entre nós e Cristo, as modalidades da sua visão esclarecem o nosso próprio destino final.

Pela convergência destes textos e pelo vigor da sua seiva evan­gélica, é pois conveniente ver de maneira explícita o Pai como termo da visão bem-aventurada, a fim de não se ficar apenas na evocação de uma visão da essência divina, sem qualquer explicitação trinitária. Pode- -se, por isso, compreender que, na vida bem-aventurada, o intelecto seja totalmente visitado pelo próprio Verbo, em quem veremos o Pai face a face, e que a vontade seja totalmente invadida pelo próprio Es­pírito, em quem amaremos o Pai com um amor que Lhe corresponde. Do mesmo modo, atingir-se-á a plena divinização e filiação da nossa alma no que respeita ao Pai, pela presença em nós do seu próprio Verbo, interiorizado como objecto conhecido no sujeito cognoscente, e pela presença em nós do seu próprio Espírito, interiorizado como objecto amado no sujeito amante50.

Na glória, a visão da inteligência dará lugar a um amor glorifi­cado segundo uma perfeita concomitância; ela será assim, portanto, plenamente beatificante.- Mas, sendo ponto assente que a nossa in­teligência não é senão a de uma criatura, o nosso conhecimento não será uma «compreensão» de Deus, campo exclusivo da ciência divina, incomunicável na sua perfeição ontológica51.

49 Interpretamos aqui Sum. theol. Illa, q. 7, a. 1, ad 2: «A Cristo, enquanto Filho de Deus por natureza, é-Lhe devida herança eterna, que é a própria beatitude incriada, pelo acto incriado de conhecimento e de amor de Deus, o mesmo [acto] pelo qual o Pai Se conhece e Se ama a Si mesmo. Ora a alma não é capaz de um tal acto por causa da sua diferença de natureza. Seria, portanto, necessário que ela atingisse Deus por um acto criado de fruição, o qual não pode existir senão pela graça».

50 Sobre estas duas analogias (o conhecido no cognoscente e o amado no amante) a que Tomás de Aquino recorre para qualificar simultaneamente a vida intratrini- tária e a divinização teologal, veja-se E. D urand, ~La périchorèse des personnes divines, p. 223-231.

51 Veja-se Sum. theol. Ia, q. 12, a. 7; q. 14, a. 3; veja-se também Illa, q. 10, a. 1: a inteligência humana e criada de Cristo também não possui a ciência divina da compreensão.

A teologia trinitária de São Tomás de Aquino

De igual modo, mesmo na glória, o amor manterá quanto a nós uma certa prioridade. Assim, quando Tomás afirma no seu tratado da caridade que «o amor de Deus é mais do que o conhecimento que d?Ele temos, no mais alto grau desta vida»52, dá a entender por esta sua máxima que tal permanece num grau menos verdadeiro para os ho­mens, mesmo na própria glória. O amor une-nos a Deus e alcança-O naquilo que Ele mesmo é, para lá daquilo que d’Ele nos escapa à «compreensão».

Isto é particularmente sensível nesta vida: «ainda que, pela re­velação da graça, não conheçamos nesta vida o que Deus é, e que lhe estejamos unidos como desconhecido53, no entanto, conhecemo-PO mais plenamente na medida em que nos são mostrados efeitos d’Ele mais numerosos e mais excelentes»54. Entre estes efeitos da graça, é neces­sário contar antes de tudo com o mais perfeito, a saber, Cristo na sua humanidade criada, especialmente reveladora através dos mistérios da Encarnação e da Paixão55.

Com a ajuda de Tomás de Aquino estamos aptos a distinguir a implicação diferenciada de cada uma das três pessoas divinas na visão imediata e bem-aventurada de Deus. Depreende-se sobretudo o pri­mado do Pai como fim último de toda a dinâmica do retorno a Deus, conforme à sua propriedade de princípio original de toda a Trindade, tanto na sua vida íntima como nas suas obras ad extra. Deus Pai apre- senta-Se aqui como Alfa e Omega da vida trinitária, como o Princípio e o Fim de toda a economia da criação e da salvação.

52 Sum. theol II-II, q. 27, a. 4, ad 2.53 Veja-se P seudo-D ionísio , Theol. myst. I, 3; veja-se também T omás de A quino, InI Sent., d. 8, q. 1, ad 2-4.54 Sum. theol I, q. 12, a. 13, ad 1: licetper revelaúonem gratiae in hac vita non cognoscamus de Deo quid est} et sic ei quasi ignoto coniungamur; tamen plenius ipsum cognosámus, inquantum plures et excellentiores effectus eius nobis demonstrantur [...].

55 Veja-se E. D urand , «D u concours des effets de nature et de grâce en sacra doc- trina,», Nova et vetera 80/1, 2005, p. 7-22; veja-se também M. L evering, Scripture and Metaphjsics. Aquinas and the Renewal o f Trinitarian Theology, Oxford, Blackwell, 2004, p. 137-142 (centrados sobre o mistério pascal).

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C o n c l u sã o

Retomemos finalmente o nosso propóstito global da leitura da teologia trinitária de São Tomás no plano da atitude teológica que ela exige ou propõe. Para situar o Pai em Pessoa no termo da visão bem- -aventurada, e, por conseguinte, no termo de toda a tarefa teológica, mobilizámos certas intuições menosprezadas de Tomás de Aquino. Procedemos assim a uma leitura interpretativa, que procura honrar a coerência interna da perspectiva trinitária tomasiana, levando-a so­briamente para lá da sua leitura <<minimalista>>.

Desde há oito séculos que a teologia trinitária de São Tomás tem sido recebida de muitas maneiras. Hoje, porém, não a poderemos apreciar devidamente se ela funcionar tão-só como um mero reser­vatório de conceitos escolásticos ou como uma gramática da língua trinitária latina. Quem quiser reapropriar-se em profundidade do De Trinitate de São Tomás deve procurar o que o santo teólogo pretende propor; a saber, uma aprendizagem do maravilhamento teológico, no sentido de se chegar a uma doxologia da inteligência perante o misté­rio da Santíssima Trindade.

Se tomarmos a sério a concepção tomasiana da teologia, po­larizada pela procura da beatitude, é possível entrar no ritmo do seu discurso teológico como se seguíssemos um guia por um percurso montanhoso. No início, experimenta-se, sobretudo, a inquietação de um esforço que se anuncia prolongado, e que não sabemos muito bem onde vai. Mas, passo a passo, a paisagem revela-se e o sentimento de nos encontrarmos perto de vislumbrar o topo dá uma nova energia. Na escola dos Santos, pratiquemos, portanto, uma teologia trinitá­ria de peregrinos (theologia viatorum), sabendo que brevemente virá o tempo da plena claridade, gratuitamente recebida.

Fr. TLmmanuel Durand\ o.p.

Nota do editor: Conferência em língua original nas páginas 581-598.

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C on g resso In tern acio n a l

San tíssim a T rindade P a i , F ilh o , E spírito San t o ...

Fátima

2008