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    Cultura como crime, cultura como direito: a luta contra a resoluo 013 no Rio de Janeiro1

    Adriana Facina (PPGAS/Museu Nacional/UFRJ) Resumo: Ao processo mais geral de criminalizao da pobreza que acompanha a consolidao do Estado Penal no Brasil ps-ditadura, correspondem prticas estatais de criminalizao de manifestaes culturais produzidas em favelas e periferias. No caso do Rio de Janeiro, o funk "bom para pensar" nos significados dessas prticas, sobretudo no contexto mais recente de implementao das UPPs. Estas tm marco zero cultural comum a proibio ou o controle militarizado sobre as formas de lazer das populaes dos territrios em que se instalam. Como contrapartida, surgem movimentos culturais que reivindicam a "cultura como direito", articulando formas de resistncia poltica a partir de linguagens estticas consideradas "da favela" ou "de periferia". Como exemplo, analisarei a luta contra a resoluo 013, baseada em legislao da ditadura, aplicada frequentemente em favelas com UPPs para regular eventos produzidos pelos moradores. Palavras-chave: favela, criminalizao, cultura como direito

    O socilogo Loic Wacquant argumenta que as ltimas dcadas do sculo XX, marcadas pela ascenso do neoliberalismo, assistiram a substituio do Estado de Bem Estar Social pelo Estado Penal. O Estado Penal, ao invs de redistribuir renda e garantir direitos fundamentais ameaados pelo mercado, se caracteriza, segundo o autor, pelo aumento generalizado das populaes carcerrias na Europa e nos EUA. E isto se deve ao

    uso crescente do sistema penal como instrumento de administrao da insegurana social e de conteno dos deslocamentos, que as polticas de desregulamentao econmica e de retrao do Estado de bem-estar social criaram na base da estrutura de classes. (WACQUANT, 2008:13) Essa penalizao seletiva e atinge os pobres, criminalizando suas prticas

    sociais, incluindo a formas de sociabilidade. A criminalizao cotidiana tm sua face 1 Trabalho apresentado na 29a Reunio Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2014, Natal/RN.

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    mais espetacular na criminalizao dos movimentos sociais, demonstrando sua serventia para administrar os efeitos de polticas concentradoras de renda e pouco democrticas.

    No Brasil, nunca tivemos propriamente um Estado de Bem Estar Social e a violncia contra os pobres histrica. No entanto, a partir da dcada de 1990, tambm recrudesce entre ns a poltica de encarceramento de pobres. Wacquant chega a afirmar que no Brasil a aplicao das penalidades neolibeirais significa o restabelecimento da ditadura sobre os pobres. (WACQUANT, 2008: 100). Segundo dados do DEPEN (Departamento Penitencirio Nacional), o nmero de presos cresceu em ritmo indito. Entre 1995 e 2005 a populao carcerria do Brasil saltou de pouco mais de 148 mil presos para 361.402, o que representou um crescimento de 143,91% em uma dcada. A taxa anual de crescimento oscilava entre 10 e 12%. A partir de 2005, a taxa de crescimento anual caiu para cerca de 5 a 7% ao ano. Entre dezembro de 2005 e dezembro de 2009, a populao carcerria aumentou de 361.402 para 473.626, o que representou um crescimento, em quatro anos, de 31,05%. 2 Cabe destacar que, no mesmo perodo, a populao brasileira cresceu numa taxa de menos de 2% ao ano, de acordo com o IBGE.3

    A outra face do encarceramento massivo a exploso de um tipo de violncia que, dada as possibilidades de espetacularizao que apresenta, por vezes tomada como A violncia. Trata-se da violncia urbana, identificada a crimes cometidos com a utilizao de armas de fogo e com alta letalidade. Sob a tica da classe mdia ou das classes proprietrias, essa violncia se traduz principalmente como ataque ao patrimnio privado. Na percepo dos moradores das periferias das grandes cidades ela sinnimo de assassinatos, com alto grau de participao de foras do Estado. Muitas dessas mortes so resultado de uma poltica proibicionista que prioriza o combate armado contra o comrcio varejista de drogas ilcitas nas favelas. Essa dinmica marca, na dcada de 1980, uma ruptura com o que Luiz Antonio Machado da Silva chama de modelo socialdemocrata de organizar o conflito nas cidades 2 Dados capturados em 03 de junho de 2014 e disponveis em http://portal.mj.gov.br/main.asp?View=%7BD574E9CE-3C7D-437A-A5B6-22166AD2E896%7D&BrowserType=IE&LangID=pt-br&params=itemID%3D%7B364AC56A%2DDE92%2D4046%2DB46C%2D6B9CC447B586%7D%3B&UIPartUID=%7B2868BA3C%2D1C72%2D4347%2DBE11%2DA26F70F4CB26%7D 3 Dados capturados em 03 de junho de 2014 e disponveis em http://seriesestatisticas.ibge.gov.br/series.aspx?vcodigo=pop119

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    brasileiras, baseado num horizonte de ampliao da proteo social, incorporao progressiva das massas s relaes de classe e seu reconhecimento como atores no debate pblico. (SILVA, 2012: 60) O controle negociado que marcava as relaes entre a populao das favelas e o Estado desaparece, dando lugar

    ao aprofundamento das prticas repressivas exigido, de um lado, pelas crescentes dificuldades de reproduo da fora de trabalho; e, de outro, pela preocupao cada vez mais generalizada com uma nova compreenso da criminalidade, agora relacionada violncia urbana. (SILVA, 2012: 62) De um problema coletivo, as favelas passam a ser vistas como perigo, sempre

    associado s armas circulantes e, nesse momento, ao crescimento do comrcio de cocana ao qual elas esto vinculadas. (SILVA, 2012: 63) Na rota do recrudescimento repressivo que essa representao engendra, a dcada de 1990 foi tristemente inaugurada com as chacinas de Acari, Candelria e Vigrio Geral, todas elas com participao de policiais. Apesar do fim da ditadura civil-militar, sacramentado em 1989 com a primeira eleio direta para presidente aps mais de duas dcadas, da ascenso dos movimentos sociais, da Constituio de 1988, os direitos das populaes mais pobres permanecem frgeis e constantemente ameaados, por meio de novas formas de reproduo de prticas polticas autoritrias.

    Um episdio com forte apelo miditico sintetiza aspectos desses conflitos em torno das representaes sobre o lugar das favelas e da populao favelada na cidade do Rio de Janeiro. Em 1992, num fim-de-semana de sol, as praias da Zona Sul do Rio de Janeiro se tornaram palco de confrontos entre gangues de adolescentes rivais, que encenaram nas areias o ritual de brigas e provocaes que aconteciam nos bailes funk das favelas e periferias da cidade. Denominadas de arrasto, essas cenas voltariam a acontecer diversas vezes na cidade e foram noticiadas como exemplo concreto do perigo representado pela juventude popular negra. A trilha sonora dos embates foi o funk, por vezes transformado em grito de guerra como Bonde do mal, Vigrio Geral!. Foi esse um dos marcos da descoberta do funk pelas camadas mdias mais abastadas e pelo poder pblico. (HERSCHMAN, 2000; VIANNA, 1997) Como resume MC Leonardo em uma frase que ele sempre repete em suas palestras e falas pblicas, o funk sempre foi visto pelo Estado como assunto da Secretaria de Segurana e no como tema das Secretaria de Cultura ou Educao.

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    nesse momento, portanto, que o funk passa a simbolizar um novo inimigo, o traficante. Acionistas do nada, nos termos de Orlando Zaccone. Esses traficantes so jovens pobres, em sua maioria negros, representando a ponta final e mais frgil do comrcio de substncias ilcitas. (ZACCONE, 2007). Uma representao influente na poca foi a da cidade partida, ttulo de livro best seller publicado pelo jornalista Zuenir Ventura em 1994 que, alm de uma narrativa sobre a vida na favela de Vigrio Geral aps a chacina ocorrida em 1993, tinha como um dos personagens principais o traficante Flavio Nego e tematizava a importncia do funk naquele contexto. A reportagem abaixo, publicada em 1992 no Jornal do Brasil, a poca o preferido das classes mdias intelectualizadas do Rio de Janeiro, exemplifica isso. Era momento de disputa eleitoral acirrada para a prefeitura do Rio de Janeiro e Benedita da Silva, candidata do PT que se afirmava como negra e favelada, tinha boas chances de ser eleita. No por acaso o jornal define o perfil do funkeiro como eleitor de Benedita.

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    O que se segue desde ento um processo contnuo de criminalizao, nem tanto do funk, mas sobretudo dos funkeiros. Digo nem tanto do funk porque este gnero aparece em programas televisivos de grande audincia, como o Xuxa Park e novelas da TV Globo. Na contramo da relativa aceitao miditica, os bailes funk sofrem restries cada vez mais severas para sua realizao. O fechamento de bailes por fora policial, leis restritivas e at mesmo uma CPI do funk, instituda em 1999 na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, foram eliminando do cenrio da cidade os bailes de clubes e restringindo os mesmos a espaos de lazer situados dentro das favelas, territrios em que a autorizao para o seu funcionamento depende de acordos informais, para no dizer ilegais, entre poderes locais e foras policiais. Em 1995, a msica Endereo dos Bailes, dos MCs Jnior e Leonardo, inscrevia no mapa da cidade o circuito dos bailes funk, sem distino entre os que aconteciam dentro e os que eram realizados fora das favelas.4 Essa integrao do funk e, por extenso, das

    4 Segue a letra da msica Endereo dos Bailes, dos MCs Jnior e Leonardo: No Rio tem mulata e futebol, Cerveja, chopp gelado, muita praia e muito sol, ... Tem muito samba, Fla-Flu no Maracan, Mas tambm tem muito funk rolando at de manh Vamos juntar o mulo e botar o p no baile Dj ah! Peo paz para agitar, Eu agora vou falar o que voc quer escutar ! Se liga que eu quero ver O endereo dos bailes eu vou falar pra voc que de sexta a domingo na Rocinha o morro enche de gatinha Que vem pro baile curtir Ouvindo charme, rap, melody ou montagem, funk em cima, funk embaixo, Que eu no sei pra onde ir O Vidigal tambm no fica de fora Fim de semana rola um baile shock legal A sexta-feira l no Galo consagrada A galera animada faz do baile um festival Tem outro baile que a galera toda treme l no baile do Leme l no Morro do Chapu Tem na Tijuca um baile que sem baguna A galera fica maluca l no Morro do Borel ah! Peo paz para agitar, Eu agora vou falar o que voc quer escutar ! Se liga que eu quero ver O endereo dos bailes eu vou falar pra voc

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    favelas por ele cantadas, cidade j no era mais possvel nos anos 2000. Restavam poucos bailes de asfalto e a linguagem do funk tambm sofreu grandes modificaes, se tornou mais gueto, mais favela como ouvi de vrios MCs durante minha pesquisa de campo.5 Com isso, os artistas do funk buscavam associar a interdio do asfalto ao baile funk com a consolidao dos proibides e do funk putaria, cujo teor das letras, a princpio, faz com que sua circulao seja restrita. Quando, em 2008, iniciei minha pesquisa de campo de ps-doutorado sobre o funk carioca vigia a chamada pelos funkeiros lei lvaro Lins, oficialmente lei 5265, sancionada em junho do mesmo ano. lvaro Lins foi chefe da polcia civil durante os governos Garotinho e Rosinha Garotinho e era deputado estadual na poca em que essa lei foi aprovada. Envolvido em vrios casos de corrupo, foi cassado ainda em 2008. A lei proposta por ele regulava a realizao de bailes tipo funk e festas de msica eletrnica. Alm de exigncias impossveis de serem cumpridas por uma festa popular, com ingressos muito baratos ou mesmo gratuitos, como a existncia de um banheiro para cada 50 pessoas ou de detectores de metal, a lei colocava nas mos da Vem Clube ris, vem Trindade, Pavunense Vasquinho de Morro Agudo e o baile Holly Dance Pan de Pillar eu sei que a galera gosta Signos, Nova Iguau, Apollo, Coelho da Rocha, ... Vem Mesquito, Pavuna, Vila Rosrio Vem o Cassino Bangu e Unio de Vigrio Balano de Lucas, Creib de Padre Miguel Santa Cruz, Social Clube, vamos zoar pra dedu Volta Redonda, Maca, Nova Campina Que tambm tem muita mina que abala os coraes Mas me desculpa onde tem muita gatinha na favela da Rocinha l no Clube do Emoes Vem Coleginho e a quadra da Mangueira Chama essa gente maneira Para o baile do Mau O Country Clube fica l praa seca Por favor, nunca se esquea, Fica em Jacarepagu ah! Peo paz para agitar, Eu agora vou falar o que voc quer escutar 5 Realizei meu ps-doutoramento em Antropologia Social no PPGAS/Museu Nacional/UFRJ, sob superviso de Gilberto Velho, durante os anos de 2008 e 2009.

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    autoridade policial local o poder de liberar os bailes. Para a realizao destes, alm de uma longa lista de documentos, havia a necessidade de um nada opor da delegacia policial e do batalho de polcia militar da rea.6 Como me disse um deputado da oposio poca, essa lei foi feita para alimentar a corrupo policial, pois criava dificuldade para vender facilidade, dando a entender que era preciso comprar o nada opor dessas autoridades. Durante a pesquisa acompanhei e participei da fundao da Associao dos Profissionais e Amigos do Funk (APAFUNK). As principais bandeiras dos profissionais do funk ali reunidos eram a descriminalizao do gnero e o respeito aos seus direitos como trabalhadores do funk. Com o apoio do mandato do deputado Marcelo Freixo, a poca presidente da Comisso de Direitos Humanos da ALERJ, e de outros parlamentares, essas bandeiras se traduziram numa batalha legislativa. A demanda passou a ser a suspenso da lei lvaro Lins, que havia sido aprovada pela maioria absoluta dos deputados, e a criao de uma lei que definia o funk como manifestao cultural e musical de carter popular. Escrita por integrantes da APAFUNK em conjunto com representantes do mandato Marcelo Freixo, a lei foi aprovada por unanimidade em 2009 e tem o seguinte texto: LEI N 5543, DE 22 DE SETEMBRO DE 2009.

    DEFINE O FUNK COMO MOVIMENTO CULTURAL E MUSICAL DE CARTER POPULAR.

    O GOVERNADOR DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO Fao saber que a Assemblia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro

    decreta e eu sanciono a seguinte Lei: Art. 1 Fica definido que o funk um movimento cultural e musical de carter popular. Pargrafo nico. No se enquadram na regra prevista neste artigo contedos que faam apologia ao crime. Art. 2 Compete ao poder pblico assegurar a esse movimento a realizao de suas manifestaes prprias, como festas, bailes, reunies, sem quaisquer regras discriminatrias e nem diferentes das que regem outras manifestaes da mesma natureza. Art.3 Os assuntos relativos ao funk devero, prioritariamente, ser tratados pelos rgos do Estado relacionados cultura. 6 O texto da lei pode ser encontrado em http://alerjln1.alerj.rj.gov.br/contlei.nsf/bc008ecb13dcfc6e03256827006dbbf5/ede57aa198e6e98d8325746d00606539?OpenDocument

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    Art. 4 Fica proibido qualquer tipo de discriminao ou preconceito, seja de natureza social, racial, cultural ou administrativa contra o movimento funk ou seus integrantes. Art.5 Os artistas do funk so agentes da cultura popular, e como tal, devem ter seus direitos respeitados. Art. 6 Esta Lei entra em vigor na data de sua publicao.

    Rio de Janeiro, 22 de setembro de 2009.

    SERGIO CABRAL Governador

    A aprovao dessa lei se deu no mesmo dia em que foi revogada a lei lvaro

    Lins ou lei 5265. Essa vitria no parlamento foi precedida de uma ampla mobilizao que deve duas frentes: uma delas fora da ALERJ e a outra dentro, marcada por conversas em gabinetes entre MCs e DJs da APAFUNK e deputados de diferentes tendncias polticas. Fora da ALERJ a luta se fazia por meio de rodas de funk, eventos poltico-culturais no dizer do MC Leonardo, presidente da APAFUNK, que misturavam entretenimento e debates de ideias. Os integrantes da APAFUNK circulavam em favelas, universidades, cadeias, veculos miditicos, escolas e em qualquer espao onde houvesse chance para divulgar suas reivindicaes. Um evento juntou essas duas frentes, a do Parlamento e a da rua: a audincia pblica sobre o funk, ocorrida em agosto de 2009. Convidados a debater a questo pelas Comisses de Direitos Humanos e de Cultura, os parlamentares viram a ALERJ ocupada por mais de 600 pessoas reivindicando a suspenso da lei 5265 e a aprovao da lei do Funk Cultura. Nas falas, nas faixas que tomaram o salo e nas msicas entoadas havia a defesa do funk como cultura e como direito. Na voz de um MC integrante da APAFUNK ouviu-se o trecho do Rap do Silva que diz o funk no modismo, uma necessidade.7 No mesmo momento em que a lei lvaro Lins era derrubada e a lei do Funk Cultura era aprovada, uma grande festa acontecia do lado de fora da ALERJ. Centenas de funkeiros comemoravam discursando, cantando e danando. Saram todos em passeata em direo ao Circo Voador para um grande baile comemorativo daquele momento histrico. Os representantes da APAFUNK e o deputado Marcelo Freixo foram recebidos como heris. Todos os estilos e matizes estetico-polticas do 7 Para uma narrativa detalhada deste evento ver LOPES, 2012.

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    funk estavam ali representadas, mesmo aqueles que se confrontavam diretamente. o caso da Furaco 2000, representada pelo empresrio Rmulo Costa, e a prpria APAFUNK, j que a associao denunciava a autointitulada equipe nmero 1 do Brasil por desrespeito aos direitos autorais e trabalhistas de MCs e DJs. Em muitas falas percebia-se ao mesmo tempo a alegria da comemorao e a preocupao em fazer valer a lei. Os profissionais do funk percebiam que a vitria no parlamento no significava liberdade para a realizao dos bailes funk e para o exerccio de sua profisso. No dizer de MC Leonardo naquele dia: a luta continua. Afirmada como direito, a cultura do funk permanecia, na prtica, criminalizada. Enquanto toda essa movimentao ocorria, uma novidade poltica aparecia nas favelas: as UPPs (Unidades de Polcia Pacificadora). Centro da poltica de segurana pblica do estado do Rio de Janeiro desde 2008, as UPPs so a ocupao territorial armada de algumas favelas consideradas estratgicas para a conteno de prticas criminosas associadas ao comrcio varejista de drogas ilcitas (denominado superlativamente de trfico)8. O principal efeito da UPP reduzir tiroteios e armas circulando ostensivamente nas mos de moradores (os policiais circulam com armamento pesado). Na poca da aprovao da lei do Funk Cultura as seguintes UPPs haviam sido instaladas: Santa Marta, Cidade de Deus, Batan. Babilnia e Chapu Mangueira. Em suma: duas UPPs na Zona Sul e duas na Zona Oeste. Apenas uma delas, a da Cidade de Deus, numa favela grande em termos populacionais e territoriais, com cerca de 50 mil habitantes segundo dados do Instituto Pereira Passos.9 A questo que toca o funk que a UPP se coloca no somente como uma forma de policiamento do territrio para a conteno daquilo que legalmente classificado como crime, mas tambm atua como rbitro geral das formas de sociabilidade presentes em favelas. Hoje, em tempos ps-Amarildo, a crtica a essa atuao e as denncias de abuso de autoridade so fartas e amplamente divulgadas. Mas em 2009 havia um consenso em torno das UPPs que tornava a crtica sua 8 Em textos crticos, analticos, que buscam ir alm do senso comum, penso no ser possvel utilizar o termo "trfico" para se referir ao comrcio varejista de drogas que acontece em favelas sem usar aspas e problematiz-lo. Isso porque das duas uma: ou estamos falando de uma categoria nativa dos moradores, o que deve ser explicitado, ou estamos nos referindo a um termo que torna superlativo tal comrcio, obscurecendo uma cadeia lucrativa da qual o varejo a ponta final e mais frgil. Neste ltimo caso, frequentemente o propsito e o efeito so criminalizantes. 9 Dados capturados em 03 de junho de 2014, disponveis em http://www.upprj.com/index.php/informacao/informacao-selecionado/upp-cidade-de-deus/Cidade%20de%20Deus

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    atuao muito mais difcil. Ainda mais quando essa crtica era pronunciada por vozes desacreditadas de sujeitos estigmatizados, no sentido de Goffman, tais como as dos funkeiros. (GOFFMAN, 1988) Fato que a implementao de UPPs passou a significar a proibio dos bailes funk em seu territrio de refgio: as favelas. O instrumento legal para tal proibio, na ausncia da lei lvaro Lins e frente resistncia dos organizadores locais dos bailes que tinham em mos a lei do Funk Cultura, foi a resoluo 013. Segundo Guilherme Pimentel 10 , advogado e ativista da APAFUNK, que foi um dos articuladores da Campanha contra a 013, a resoluo 013 era a norma de aplicao do decreto 39.355/2006 e foi editada em 2007. Ela determinava a relao dos rgos de segurana com os eventos "sociais, culturais ou esportivos" no estado. A partir da 013, a polcia cumpria o papel de autorizar eventos em todo o estado, no diferenciando eventos de pequeno, mdio e grande porte, nem estabelecendo pblico mnimo para o evento se submeter norma. Alm disso, dava autoridade policial total discricionariedade para autorizar ou proibir, ou seja, a autorizao dependia de motivos no estabelecidos na prpria resoluo, possibilitando ao policial criar motivos a partir de subjetividades ou convices prprias.

    Ainda de acordo com Guilherme Pimentel, a resoluo 013, assim como o "decreto da censura" (39.355/2006) so normas que carecem de embasamento legal e violam a Constituio Federal, pois na democracia inconstitucional o dever de pedir autorizao para autoridade policial para realizar um evento. Desde a aprovao da Constituio Federal brasileira, em 1988, foi extinta a censura artstica, tanto no contedo das manifestaes artsticas, quanto na organizao de um evento que rena pessoas em locais abertos ao pblico. A prtica de obrigar o cidado a pedir licena ou autorizao para organizar um evento cultural a reedio das prticas da ditadura civil-militar inaugurada em 1964, repudiadas no ordenamento jurdico democrtico brasileiro.

    Sendo assim, na viso do advogado e ativista, a importncia da luta contra a 013 est na defesa no somente do funk, mas da democracia brasileira, pois ela uma norma autoritria, que, na prtica, controla todas as formas de encontro de pessoas segundo a mesma lgica da ditadura civil-militar, podendo ser considerada como parte de um entulho autoritrio. Foram vrias as denncias de equipes de som 10 Agradeo imensamente a Guilherme Pimentel por me explicar pacientemente os meandros jurdicos da resoluo 013, algo difcil de ser compreendido por leigos como eu.

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    impedidas de trabalhar com base na resoluo 013 que foram encaminhadas APAFUNK e Comisso de Direitos Humanos da ALERJ, em grande parte organizadas pelo DJ Tojo, da equipe Espio Shock de Monstro, uma da mais antigas em atividade. Na poca, Guilherme trabalhava no gabinete do deputado Marcelo Freixo, ento presidente da Comisso de Direitos Humanos da ALERJ, que engendrou uma audincia pblica, em maio de 2011, com o tema "Os conflitos entre os agentes culturais populares e as autoridades da segurana pblica". De um lado, a Polcia Militar e a Secretaria de Segurana Pblica. Do outro, a Fundao Getlio Vargas (FGV), que produziu sob encomenda da APAFUNK, um parecer tcnico sobre a norma, e a prpria APAFUNK. A Secretaria de Cultura estava representada na audincia, mas, ainda segundo Guilherme, parecia ter um peso muito inferior ao dos representantes da Secretaria de Segurana Pblica presentes. A partir dessa audincia, foi formado um grupo de trabalho integrado pelas instituies presentes, com o intuito de propor mudanas na resoluo.

    Nos meses seguintes, o grupo de trabalho se reuniu com a presena da APAFUNK, de tcnicos da FGV, da Comisso de Direitos Humanos da ALERJ, da Secretaria de Cultura, do Circo Voador11 e da Procuradoria da Secretaria de Cultura. A Secretaria de Segurana no participou das reunies e jamais respondeu proposta de reformulao das normas que regulam eventos que lhe foi enviada.

    A partir da, a APAFUNK percebeu a importncia de ampliar sua alianas e divulgar a luta contra a resoluo 013 para alm dos espaos institucionais do parlamento ou do poder executivo. Nos termos de Guilherme, era necessrio ir no fundamento, questionar a existncia de uma norma para proibir eventos. Dessa articulao nasceu um manifesto conjunto da APAFUNK, da B.O.C.A (Brigada Organizada de Cultura Ativista, liderada pelo msico Marcelo Yuka) e da Viso da Favela Brasil (este um coletivo organizado pelo Repper Fiell, artista ativista do morro Santa Marta que chegou a ser preso por desacato a autoridade e agredido fisicamente durante um conflito com a UPP daquele local). Intitulado "Os Sete Motivos para ser contra a Zero-Treze", o manifesto foi amplamente divulgado nas redes sociais, e se baseia no parecer tcnico elaborado por Luiz Fernando Moncau, da FGV. Segue seu texto na ntegra: 11 A presena do Circo Voador se deve ao fato de nele ser realizado um dos maiores eventos de funk da cidade, o Eu amo baile funk, e de seu produtor ser tambm um dos principais realizadores do Rio Parada Funk.

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    7 MOTIVOS PARA SER

    CONTRA A RESOLUO 013

    1 A Resoluo 013 dificulta muito a realizao de eventos, pois estabelece uma grande burocracia para juntar todos os documentos exigidos. Para piorar, o procedimento todo descentralizado e o organizador do evento deve passar por uma srie de rgos diferentes antes de completar a solicitao do nada-a-opor. Muitas vezes, o evento fica invivel por aquele jogo burocrtico que todo mundo j conhece... 2 A Resoluo 013 deixa o organizador de evento na mo da autoridade policial. Ela no estabelece requisitos bem definidos a serem cumpridos pelo organizador, nem critrios claros para a proibio ou autorizao do evento. O pargrafo nico do artigo 2 d poderes para a polcia proibir eventos por qualquer motivo. Alm de abusiva, a norma abre brechas para a corrupo, pois os organizadores ficam submetidos vontade e discricionariedade da autoridade policial de cada local. 3 A Resoluo 013 prejudica os eventos mais baratos, pois no diferencia economias, tamanhos e geografias diferentes. A mesma norma regula desde festas com 50 pessoas a shows com mais de 100.000. Determina o mesmo procedimento para reas pobres e bairros ricos. Desse jeito, a norma fica desproporcional e acaba prejudicando a maioria, que tem menos dinheiro para investir em estrutura. 4 A Resoluo 013 prejudica a economia de toda a comunidade. Como no estabelece prazo mnimo para a resposta do rgo de segurana, muitas vezes a proibio ocorre nas vsperas, ou at mesmo no dia do evento. A essa altura, o organizador j contratou artistas, comprou bebidas, gastou em divulgao e todo esse investimento vai por gua abaixo. Pior, no so somente os organizadores que perdem. Restaurantes, bares, sales de beleza, ambulantes... todos deixam de ganhar quando no tem o baile. 5 A Resoluo 013 foi feita sem dilogo com os principais interessados. Nenhum organizador de eventos culturais, esportivos ou sociais foi chamado. Nenhum usurio e/ou consumidor foi ouvido. 6 A Resoluo 013 no possui amparo legal e d poderes exagerados para os rgos de segurana. No Estado Democrtico de Direito no h lei que d poderes de proibir ou autorizar eventos para Secretrio de Segurana, Polcia Civil ou Polcia Militar. Pelo contrrio, a Constituio Federal assegura o direito de acesso cultura para frequentadores, livre manifestao do pensamento para os artistas, alm dos direitos sociais ao trabalho e livre iniciativa dos organizadores. E para garantir todos esses direitos que existe o direito segurana pblica. 7 A origem da Resoluo 013 questionvel. Um parecer da Fundao Getlio Vargas (FGV) verificou que a resoluo 013 baseada no decreto 39.355/2006. Tal decreto, por sua vez, a atualizao de decretos do passado. A origem de todos eles um decreto de 1968, que dava polcia plenos poderes para proibir eventos de diverso pblica, como forma de implementao da censura federal da ditadura militar.

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    APAFUNK (Associao dos Profissionais e Amigos do Funk) BOCA (Brigada Organizada de Cultura Ativista)

    Viso da Favela Brasil Outra entidade parceira na divulgao da Campanha contra a 013 foi a Rede

    Meu Rio, formalmente uma associao civil cujos membros rejeitam o termo ONG. A Rede Meu Rio rene ativistas oriundos de movimentos polticos variados, a maioria jovens, e tm forte trabalho de mobilizao on line, com larga utilizao de recursos audiovisuais (fotografias, design grfico, vdeos etc). A partir dessa parceria foi organizada uma mobilizao online e materiais informativos audiovisuais e impressos que foram distribudos nas agitaes da mobilizao. Muitos desses materiais contaram com as fotografias de Maria Buzanovsky, cujo trabalho artstico voltado para as culturas da dispora negra no Rio de Janeiro, em especial o funk em suas diversas expresses. Uma de suas fotografias, feita numa roda de funk realizada em 2012 na favela do Cantagalo, se tornou smbolo da campanha. Nela, um morador da favela segura um cone como se fosse um megafone, simbolizando a necessidade de expresso livre de ideias que se materializava na luta contra a resoluo. A foto captou a performance do morador, um homem negro de cabelo com dread locks, comum aos integrantes do movimento rastafari. Maria afirma que ele chegou quebrando tudo, significando que sua performance foi muito expressiva, danando at o cho, sacudindo a cabea sem parar e produzindo a imagem que capturava o sentido daquela mobilizao. Na perspectiva da fotgrafa, suas fotografias fortaleceram a concepo do funk como cultura que perdura no tempo, a despeito da sua criminalizao:

    Procurei contribuir documentado a campanha promovida pela APAFUNK contra a resoluo 013 atravs fotografias que revelassem o funk como cultura e forma de expresso de pessoas que vivem nas favelas. Neste sentido, busquei captar a alegria, a dana e, especialmente, a participao das crianas nas rodas de funk da campanha, pois essas crianas funkeiras, muitas que danam o passinho, pra mim, mostram claramente que essa cultura continua forte e o funk no vai acabar, apesar de toda represso.

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    No material da campanha essa foto se juntava ao verso da msica Minha alma,

    de Marcelo Yuka, tambm tornada mote do Fora Zero-Treze. A participao de Maria e a utilizao de suas fotos junto com os versos de Yuka so demonstraes da amplitude da rede que se formou em torno da Campanha contra a 013. Debates em favelas e universidades, alm de rodas de funk, recursos j utilizados anteriormente pela APAFUNK, foram instrumentos na divulgao da luta pela revogao da resoluo. Maria, Guilherme e MC Leonardo so unnimes em afirmar que as rodas que se destacaram nesse circuito de informao foram as do Cantagalo, Chapu Mangueira, Central do Brasil e na Cpula dos Povos, esta um evento paralelo (e crtico) a Rio +20. As rodas de funk do Cantagalo e do Chapu Mangueira foram realizadas mesmo com a presena de UPPs naqueles territrios, o que demandou processos longos e difceis para sua liberao. Na roda do Chapu Mangueira por

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    exemplo, na qual estive presente, durante quase todo o tempo uma liderana local, responsvel pela mediao entre a APAFUNK e o comandante da UPP, precisou desenrolar12 com os policiais para que o ato no fosse interrompido, ainda que fosse fim-de-semana e num horrio cedo, compatvel com o respeito lei do silncio.

    Com esse esforo de mobilizao, a Resoluo 013 se tornou conhecida e foi alcanado o objetivo, nos termos de Guilherme, de alardear a existncia de um resqucio da ditadura. Como resultado, vrios grupos e indivduos relacionados ao campo da produo cultural no Rio de Janeiro, atuando dentro e fora de favelas, se incorporaram campanha, como o caso do produtor cultural e funcionrio do Circo Voador Mateus Arago. Foi na presena de Mateus e do editor do site Voz da Comunidade 13, Rene Silva, que, no bojo das manifestaes de junho de 2013, o ento governador Sergio Cabral anunciou a suspenso da resoluo. Mateus Arago narrou a mim, em mensagem inbox no Facebook, a sua viso sobre a sequncia de acontecimentos que resultou na queda da 013:

    Sem dvida nenhuma, a suspenso da 013 reflexo da luta da APAFUNK. Foi o que contagiou todos os setores da sociedade, tornando-se uma das bandeiras mais revindicadas pelos movimentos de junho de 2013, expandindo-se para alm do movimento Funk o que nacionalizou a causa e, naturalmente, tornou-se pauta no processo de mobilizao das passeatas. Acredito que a reunio [com Sergio Cabral] foi convocada no calor de junho, numa tentativa de dilogo provocada pela Secretaria de Juventude e de Cultura do Governo do Estado, reflexo das manifestaes. Na reunio, estavam presentes representantes de setores organizados da juventude, movimentos sociais tradicionais - movimento estudantil, religiosos, de empreendedores e ns, da cultura urbana. Na reunio, ficou claro que a pauta era urgente: todos os movimentos falaram

    12 Desenrolar um verbo muito utilizado em favelas e que frequentemente significa resolver conflitos ou pendncias por meio de conversa, com acertos que passam pela utilizao da palavra para tcnicas de convencimento ou de esclarecimento de posies sujeitas a mal entendidos. 13 OVoz da Comunidade foi primeiramente um jornal e hoje uma agncia de notcias do Complexo do Alemo. A Voz da Comunidade ganhou destaque nas redes sociais e na imprensa tradicional quando Rene Silva, jovem morador do Morro do Adeus, comeou a noticiar ao vivo na internet a ocupao militar daquele territrio em 2010. Representante principal do jornal, Rene acabou se tornando uma espcie de porta-voz oficial do Complexo, com forte presena em veculos miditicos de grande audincia.

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    sobre a 013 e o governador foi convencido de que a liberao de eventos caberia prefeitura e aos rgos de segurana e, policia e bombeiro, caberiam os pareceres tcnicos. Acabou por declarar que suspenderia a resoluo. Depois da reunio, eu e Rene Silva pedimos para o governador gravar uma exclusiva para a o jornal Voz da Comunidade dando a notcia. Gravamos o vdeo e postamos ali mesmo. Achei o texto [que postou no Facebook] da poca, qualquer dvida estou por aqui. Fui chamado para a reunio, l encontrei Rene Silva e DjSaddam Opalo Sete Meia. Conversamos rapidamente e focamos nossas falas na 013. Tinha muito o que dizer, fui e falei! Vitria de todos que lutaram para que a 013 fosse revogada, quem puxou o bonde foi a APAFUNK os irmos Mc Leonardo Apafunk, Mano Teko, Mc Pingo Do Rap, Mc Liano, Raphael Calazans, Guilherme Pimentel , Alessandra Martins e todos da guerreira APAFUNK, eles que fizeram rodas de funk nos quatro cantos da cidade para que a essa revogao acontecesse, ACONTECEU!!!!! 013 CAIU!!

    A viso de Guilherme Pimentel sobre o mesmo episdio distinta e aponta

    para o carter mais encenado do que real da suspenso da resoluo 013 naquela ocasio. Nos suas palavras:

    Cabral, malandramente, anunciou "o fim da resoluo 013". No entanto, a publicao no Dirio Oficial s saiu meses depois com a substituio das normas de censura por outras com teor muito semelhante, que absorveram somente as crticas mais amenas e mantiveram os vcios de falta de legalidade e falta de respeito s liberdades democrticas.

    Ainda de acordo com Guilherme, o decreto 39.355 deu lugar ao decreto 44.592/2014 e a resoluo 013 deu lugar resoluo 132/2014. O decreto manteve o eixo central de exigncia de autorizao prvia das polcias para a realizao de eventos, e ainda aumentou o escopo de norma para "sociais, esportivos, culturais, religiosos e quaisquer

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    outros que promovam concentrao de pessoas" (antes era s "sociais, esportivos e culturais"). As nicas diferenas que excluram expressamente dessa vez as "reunies de expresso do pensamento" (quais seriam as reunies que no expressam pensamento? - essa questo continua sendo aberta) e os eventos de menos de 2.000 pessoas. Contudo, permanece a violao ao Princpio da Legalidade e liberdade de reunio de pessoas para fins pacficos.

    Em resumo, apesar da nova resoluo simplificar os procedimentos para a

    liberao dos bailes, ela no diminui o poder das autoridades policiais para proibir os eventos abarcados na norma. Guilherme Pimentel ressalta sobretudo o fato do artigo 4 da resoluo nova dizer que a autorizao dever levar em considerao "o tipo de local e a natureza do evento", deixando em aberto o que significaria isso e criando possibilidades de atuao discricionria das autoridades policiais.

    Na tica de MC Leonardo, o Governo mais uma vez no ouviu ningum, e apresentou uma nova norma sem que houvesse a participao da sociedade civil organizada, fato que levou o avano a ser quase que insignificativo. No entanto, ele prossegue, a derrubada do pargrafo nico e a obrigao do policial que estiver proibindo o evento ter que fazer isso por escrito dando ao produtor cultural maneiras de reclamar sobre a proibio um passo a frente, pequeno, mas importante.

    Em todo esse processo, muitas das falas dos protagonistas das rodas de funk (profissionais e amigos do funk) apontavam para a relao entre a aplicao da resoluo 013 e a implementao das UPPs. Em entrevista concedida a mim, MC Leonardo afirma que essa resoluo quase no era utilizada antes das UPPs e que ela permitiu um controle sobre as formas de lazer nas favelas, particularmente importante num momento em que o movimento funk conquistou no parlamento um respaldo legal para sua descriminalizao. Assim sendo, apesar da vitria considerada histrica entre os funkeiros e amplamente divulgada na mdia hegemnica, a conquista de uma lei definindo o funk como cultura no significou, na prtica, um direito adquirido. No cotidiano da cidade o funk permanece sendo tratado como crime pelo Estado. O mesmo Estado que, contraditoriamente, publicou um edital de apoio criao artstica no funk em 2011 e em 2013 lanou um edital especfico para patrocinar a realizao de bailes funk. Em maio de 2013 pude acompanhar de perto essa contradio ao ser convidada

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    a ser debatedora no I Festival Funk Favela no Morro da Providncia, projeto contemplado com o edital de 2011. O Festival quase no aconteceu, apesar do apoio do Governo do Estado, por meio de sua Secretaria de Cultura, e teve suas datas remarcadas vrias vezes porque o comandante da UPP local no queria dar autorizao para sua realizao. At o ltimo momento no se sabia se o evento aconteceria ou no e teve de ser acordado um horrio de encerramento (1h da manh, muito cedo para os padres do funk), bem como o controle do repertrio que seria tocado naquela noite. Durante todo o tempo, a quadra em que foi realizado o festival esteve cercada por policiais fortemente armados, a despeito do pblico ali ser formado por famlias, crianas e jovens, alm dos convidados vindos de fora da favela. MC Leonardo traduz esse estado de coisas como um abismo entre o direito e o dever. Nos seus termos,

    O Estado no tem o DIREITO de criar DEVERES para toda populao cumprir sem respeitar o DIREITO do cidado de ter participao na elaborao dessas regras. Assim fica o cidado sem saber qual o seu DEVER, ficando cada vez mais difcil saber por onde comear a lutar por seus DIREITOS.

    Se, como afirma Barth, a criatividade resultado da luta dos atores para vencer a resistncia do mundo, podemos ver essa luta permanente do movimento funk contra a sua criminalizao e pelo seu reconhecimento enquanto cultura como um processo criativo. (BARTH, 2000: 129) A afirmao da criatividade se d, nesse caso, pela reivindicao do direito de criar e fruir. Cantar e danar o funk so, desse modo, maneiras de se inventar cidadania.

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    Referncias bibliogrficas BARTH, Fredrik. O guru, o iniciador e outras variaes antropolgicas. Rio de Janeiro, Contra Capa, 2000. GOFFMAN, Erving. Estigma. Notas sobre a manipulao da identidade deteriorada. Rio de Janeiro, Guanabara, 1988. HERSCHMANN, Micael. O funk e o hip-hop invadem a cena. Rio de Janeiro, Ed.UFRJ, 2000. LOPES, Adriana Carvalho Lopes. Funk-se quem quiser. O batido negro na cidade carioca. Rio de Janeiro, Bom Texto/FAPERJ, 2012. SILVA, Luiz Antonio Machado da. A partir do relatrio SAGMACS: as favelas, ontem e hoje. IN: MELLO, Marco Antonio da Silva et al (orgs.). Favelas cariocas: ontem e hoje. Rio de Janeiro, Garamond, 2012. p. 51-63. VIANNA, Hermano (org.) Galeras cariocas. Territrios de conflitos e encontros culturais. Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 1997. WACQUANT, Loc. As duas faces do gueto. So Paulo, Boitempo, 2008. ZACCONE, Orlando. Acionistas do nada: quem so os traficantes de drogas. Rio de Janeiro, 2007.