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- , E COM CERTEZA UMA CASA LUSO -A FRO -B RAS ILEIR A O objetivo deste traba- lho! é refletir sobre a presença da Umbanda em Portugal, por meio de um primeiro conta- to com o Terreiro de Umbanda Ogum Megê, situ- ado no Benfíca, em Lisboa. A nossa preocupação é, ao mesmo tempo, o processo de transculturação da "me- mória coletiva brasileira" e as mutações por que passa a re- ligião umbandista brasileira ao se instalar na sociedade por- tuguesa. As lembranças seriam in- completas se não fossem si- tuadas no tempo e no espa- ço. Daí estratégias utilizadas a esse propósito: sinais cro- nológicos ou estimação tem- poral global. O distanciamen- to temporal do evento e sua localização é uma das funções características fundamentais da memona que visa favorecer a adaptação do ho- mem a seu meio. Nesse sen- tido Michael Pollack (990) chama a atenção para o fato de que a desigualdade de acesso à linguagem opera uma escolha daquilo que pode ser traduzido em palavras, pois a memória se inscreve em uma dinâmica de reapropriação e se manifesta por meio de sua mediação com a identi- dade do sujeito. Temos advertido para os aspectos que se encon- tram interligados no que se refere à memória questão do espaço no teatro da possessão (Pordeus, 1994a; 1995). A disposição ordenada do espaço per- mite a ordem das coisas. Os personagens da Um- banda ao serem visualizados, chamam eles mes- mos os personagens. Queremos dizer que a apren- dizagem e a rememoração encontram-se intrinse- camente articuladas à memória. E a ordem ritual, por sua vez, encontra-se ligada ao olhar que irá permitir fixar e ordenar as lembranças. Os locais são como páginas em branco a serem inscritas e as imagens, os próprios mitos que são reinscritos no imaginário. Para Roger Bastide (972), o empobrecimento da sobrevivência da memória coletiva' dos mitos africanos ocorreu pela falta de referência para ligar ao grupo. Para que as lembranças permaneçam, é necessário que façam parte do pensamento de um grupo. No entanto, é necessário que essa memória seja articulada entre os membros desse grupo. Estudando a topografia da Palestina encontrada pelos cruzados, profundamente modificada pelos ISMAEl PORDEUS JR. * o trabalho apresenta uma anólise da transculturalidade na umbanda de Omolocõ em Lisboa, no Terreiro Ogum Megê, no Benfica. Foz uma reflexão sobre o panteão umbandista no SOCiedadeportuguesa e, 00 mesmo tempo, discute o processo do per- manência do "memória coletivo brasileiro" e os mutações por que posso essa religião 00 se instalar na sociedade portuguesa. 'Professor Titular do Departamento de Ciências S0- ciais e Filosofia da UFC MEMÓRIA COLETIVA BRASILEIRA A memória se inscreve sempre no presente. Toda lembrança pertence, a um só tempo, ao passado e ao presente e é modificada por este último. O indi- víduo solicita, entre todas as imagens que podem lhe fornecer sua experiência pessoal, sua tradição familiar e a cultura de seu grupo, aquelas que são significativas para seu engajamento presente. As tra- dições sobrevivem somente quando são significati- vas para seu engajamento no cotidiano. Dito de outra maneira, as tradições sobrevivem quando po- dem se inscrever na "práxís" dos indivíduos e grupos. A capacidade da memória é a de conservar e reconstituir informações. A memória representativa (Pollack, 1990) é complexa, pois necessita de ope- rações mentais que permitam representar os objetos ou fatos na sua ausência. E as principais maneiras de manifestá-Ias são a linguagem e a imagem visual. A invenção da arte da memória por Simonide não repousava somente sobre a descoberta da impor- tância da ordem na memória, mas também sobre a descoberta do sentido da visão como o mais forte de todos os sentidos (Yates, 1994). As lembranças serão conservadas muito mais no pensamento se o olhar participar na apreensão da- quilo que deve ser memorizado (Yates, 1994:14). A memória possui características que se manifes- tam em seus aspectos afetivos e sociais. 56 Revistode Ciências Sociais v.26 n.1/2 1995 RESUMO

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-,E COM CERTEZA UMA CASA

LUSO -A FRO -B RAS ILEIRA

Oobjetivo deste traba-lho! é refletir sobrea presença da

Umbanda em Portugal, pormeio de um primeiro conta-to com o Terreiro deUmbanda Ogum Megê, situ-ado no Benfíca, em Lisboa.A nossa preocupação é, aomesmo tempo, o processode transculturação da "me-mória coletiva brasileira" e asmutações por que passa a re-ligião umbandista brasileira aose instalar na sociedade por-tuguesa.

As lembranças seriam in-completas se não fossem si-tuadas no tempo e no espa-ço. Daí estratégias utilizadasa esse propósito: sinais cro-nológicos ou estimação tem-poral global. O distanciamen-to temporal do evento e sualocalização é uma das funçõescaracterísticas fundamentaisda memona que visafavorecer a adaptação do ho-mem a seu meio. Nesse sen-tido Michael Pollack (990)chama a atenção para o fatode que a desigualdade deacesso à linguagem operauma escolha daquilo que

pode ser traduzido em palavras, pois a memória seinscreve em uma dinâmica de reapropriação e semanifesta por meio de sua mediação com a identi-dade do sujeito.

Temos advertido para os aspectos que se encon-tram interligados no que se refere à memória e àquestão do espaço no teatro da possessão (Pordeus,1994a; 1995). A disposição ordenada do espaço per-mite a ordem das coisas. Os personagens da Um-banda ao serem visualizados, chamam eles mes-mos os personagens. Queremos dizer que a apren-dizagem e a rememoração encontram-se intrinse-camente articuladas à memória. E a ordem ritual,por sua vez, encontra-se ligada ao olhar que irápermitir fixar e ordenar as lembranças. Os locaissão como páginas em branco a serem inscritas e asimagens, os próprios mitos que são reinscritos noimaginário.

Para Roger Bastide (972), o empobrecimentoda sobrevivência da memória coletiva' dos mitosafricanos ocorreu pela falta de referência para ligarao grupo. Para que as lembranças permaneçam, énecessário que façam parte do pensamento de umgrupo. No entanto, é necessário que essa memóriaseja articulada entre os membros desse grupo.

Estudando a topografia da Palestina encontradapelos cruzados, profundamente modificada pelos

ISMAEl PORDEUS JR. *

o trabalho apresenta uma anólise datransculturalidade na umbanda de Omolocõem Lisboa, no Terreiro Ogum Megê, noBenfica. Foz uma reflexão sobre o panteãoumbandista no SOCiedadeportuguesa e, 00

mesmo tempo, discute o processo do per-manência do "memória coletivo brasileiro"e os mutações por que posso essa religião00 se instalar na sociedade portuguesa.

'Professor Titular do Departamento de Ciências S0-ciais e Filosofia da UFC

MEMÓRIA COLETIVA BRASILEIRAA memória se inscreve sempre no presente. Toda

lembrança pertence, a um só tempo, ao passado eao presente e é modificada por este último. O indi-víduo solicita, entre todas as imagens que podemlhe fornecer sua experiência pessoal, sua tradiçãofamiliar e a cultura de seu grupo, aquelas que sãosignificativas para seu engajamento presente. As tra-dições sobrevivem somente quando são significati-vas para seu engajamento no cotidiano. Dito deoutra maneira, as tradições sobrevivem quando po-dem se inscrever na "práxís" dos indivíduos e grupos.

A capacidade da memória é a de conservar ereconstituir informações. A memória representativa(Pollack, 1990) é complexa, pois necessita de ope-rações mentais que permitam representar os objetosou fatos na sua ausência. E as principais maneiras demanifestá-Ias são a linguagem e a imagem visual.

A invenção da arte da memória por Simonide nãorepousava somente sobre a descoberta da impor-tância da ordem na memória, mas também sobre adescoberta do sentido da visão como o mais fortede todos os sentidos (Yates, 1994).

As lembranças serão conservadas muito mais nopensamento se o olhar participar na apreensão da-quilo que deve ser memorizado (Yates, 1994:14).A memória possui características que se manifes-tam em seus aspectos afetivos e sociais.

56 Revistode Ciências Sociais v.26 n.1/2 1995

RESUMO

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romanos e árabes, Halbwachs (972) mostra queas representações da memória cristã são recons-tituídas para a conservação dessa memória por meioda criação de centros materiais visando à preserva-ção das imagens do cristianismo.

Roger Bastide diz que "a memória coletiva é umconjunto de imagens mentais ligadas, de um lado,a mecanismos motores, os ritos, se bem que osultrapassando, e de outro, às estruturas morfológicase sociais (. ..) lugar, gestos e memória constituemuma só unidade" (Bastide,1972:344). A memória seinscreve igualmente no corpo, como estrutura esistema coerente de representação, do gesto ne-cessário e valorizado pelo grupo.

A Umbanda, no seu processo de catequização an-tropofagizou em todo o Brasil as práticas de outrasreligiões, tornando-se uma síntese das religiõesbrasileiras, ou melhor, da própria cultura.

Assim, pensamos que designaríamos de memóriacoletiva brasileira, no caso específico da Umbanda,as representações que permanecem nas práticas erituais da religião, seja no Brasil ou mesmo em outrospaíses.

(URSOS E PERCURSOS DE UMA MÃE-DE-SANTOA mãe-de-santo Virgínia de Albuquerque migrou

de Portugal para o Brasil com os pais no final dadécada de 1940. Sua adesão à Umbanda se deu damesma maneira que encontramos no discurso degrande parte dos umbandistas: sentia tonturas eprocurou, em 1960, em Jacarepaguá, bairro da ci-dade do Rio de Janeiro, um terreiro denominado"Vovó da Bahia", pertencente à mãe-de-santo Lu-cinda. Ressalva que o terreiro era da "linha de Orno-locô", e foi fechado, posteriormente, quando a mãe-de-santo, que era mineira, voltou à terra natal.

Iniciou-se e recebeu os cruzos: quando ia a Por-tugal 'para visitar a família, dava consultas com aPreta Velha Maria Conga. Uma preta velha muitocomum nos terreiros de Umbanda do Nordeste,diversas vezes citada por meus informantes.

Havendo contraído casamento no Brasil com umportuguês, em meados da década de 1970, o mari-do achando que os negócios não iam bem, resolve-ram retomar a Portugal e instalaram-se em Lisboa.Mãe Virgínia começou a trabalhar na casa de Oxóssi.Depois saiu dessa casa e foi para a casa de SantaBárbara de Almada, em 1984. Permaneceu nesseterreiro até o momento em que resolveu fundarsua própria casa, designando-a de Terreiro deUmbanda Ogum Megê, em 1989.

Vale a pena lembrar que desde a época de Joãodo Rio, no início do século, destaca-se a presençade migrantes como seguidores da Macumba e, pos-

teriormente, do Candomblé e da Umbanda.Ressalve-se ainda que "a linha de Omolocô" tem

um ritual originário da nação Angola, destacando-se principalmente na Umbanda do Rio de Janeiro.Segundo a mãe-de-santo Antonieta Alves, que temum terreiro em Santíssimo, subúrbio carioca, essadesignação era dada genericamente aos antigos ter-reiros de Umbanda até o final da década de 1940.Para a mãe-de-santo Maria Luiza, dona de um ter-reiro de Umbanda de Omolocô na grande Fortale-za, e que se iniciou em Belérn, Pará, foi emUberlândia, Minas Gerais, que contatou o pai-de-santo Nilton para vir ao seu terreiro e iniciá-Ia nes-sa linha de Umbanda. E conta também que essepai de santo havia se tornado herdeiro "dos funda-mentos" trazidos de Angola por Chico Rei e divul-gados por Tancredo, que, por sua vez, tinha seuterreiro no Rio de Janeiro.

Arthur Ramos nos fala de um terreiro situado noalto de um morro em Niterói, pertencente aHonorato, considerado como protótipo dos terrei-ros de macumba do Rio de Janeiro: "... último com-partimento da parte posterior do edifício e ocupandotoda a largura deste, é destinado ao altar do santoprotetor do terreiro. O do Honorato era Ogum Megê,conseqüência do sincretismo gêge-nagô" (Ramos,1934:96).

Aqui fica a questão se o nome do terreiro seriasomente possível de ser atribuído à popularidadealcançada pela entidade Ogum Megê ou ao fatode a própria mãe-de-santo ser filha desse Ogum.E ainda, poderia ser a conseqüência de um fenô-meno que vem sendo detectado: os livros acadê-micos terem se tornado fonte de inspiração elegitimação dos pais e mães-de-santo nas práticasreligiosas afro-brasíleíras.

No discurso de Mãe Virgínia não é feita nenhumareferência ao marido como também pertencente àUrnbanda, no entanto, encontramos nos "Estatutos eregulamentos" os agradecimentos a todos os queparticiparam da criação do terreiro e acrescenta: "Nãoqueremos no entanto deixar de mencionar o nomedo presidente do terreiro, senhor Antônio de MelloAlbuquerque, esposo de Mãe Virgínia, que deu todaa sua força e coragem para sua construção" (p. 3).

Essa mesma publicação, na página final, diz oseguinte: "... com o falecimento do presidente (. ..)fiz uma assembléia geral para se eleger os corposgerentes dessa associação. Tendo esta assembléiasido realizado no 16.02.91". O filho, Pedro Simão,passou a ser o presidente e é quem cuida da partefinanceira, bem como das publicações editadas pelopróprio terreiro.

Poderíamos aqui fazer algumas observações: no

PORDEUSJR., Ismael. É com certeza uma coso luso-ofro-brasileira. pp. 56 o 64 57

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retomo da família biológica a Portugal, em um pri-meiro momento, a mãe-de-santo continua a trabalharem casas de Umbanda já existentes e, com o auxíliodo marido e do filho, constrói o terreiro. Nos terreirosde Fortaleza, quando a mulher exerce o papel demãe-de-santo, geralmente o marido fica na presidência;o mesmo não ocorre quando o homem é o pai-de-santo. O mais das vezes a mulher também "trabalha"ou, quando muito, fica no papel de cambone.

O terreiro de Mãe Virgínia é registrado no Minis-tério da justiça portuguesa como associação religi-osa e filiado à Federação Brasileira de Umbanda,com sede no Rio de janeiro. Poderíamos pensar queessa filiação à Federação estaria ligada às questõesde legitimação perante os terreiros lisboetas aosquais Mãe Virgínia pertenceu, assim como aosterreiros do Rio de janeiro.

De acordo com informações do presidente PedroSimão, o terreiro possui 50 (cinqüenta) filiados. Nãotivemos oportunidade em nossos primeiros conta-tos de explorar essa questão.

A LOJA DE UMBANDASituado no bairro do Benfica, em Lisboa, o terrei-

ro localiza-se em um edifício de apartamentos. Umaloja no térreo sem nenhuma placa indicativa nossurpreende, pois é semelhante às lojas de Umbandaexistentes no Brasil. Um balcão envidraçado comlivros expostos à venda, apostilhas editadas pelopróprio terreiro. Caixas de contas com cores diver-sas para confecção de guias. Outras contendo in-censo, defumadores, velas, ex-votos em cera, ba-nhos de descargas, perfumes, cocos-de-dendê, ca-valo-marinho. Já confeccionadas algumas guias: deOgum (vermelha), das Almas (pretas e vermelhas),Oxalá (branca), Oxumaré (amarela e preta). Nasprateleiras fixadas nas paredes encontram-sequartinhas de santo em barro, estátuas de Exus ePombas-Giras, Caboclos e Pretos Velhos e aindabacias e pratos brancos em louça.

Os livros expostos na vitrine do balcão e publica-dos no Brasil têm os seguintes títulos: Pomba-Gira;1500 pontos riscados de Urnbanda; Oferenda parameu ortxâ, O Ebó no culto dos orixâs; MariaPadilha; No reino dos Exus. mirongas, magia efeitiçaria; Dicionário africano de Umbanda; Comocurar pela água e bomeopatia, Iorubá o lugar dosorixás, Jogo de búzios; Magia do ano de SãoCipriano, Manual de festejar caboclos; Orixás eCandomblé; Iemanjâ; O mágico mundo dos orixâs;Gira de Candomblé; Pomba-Gira cigana; Exu se-nhor da vida e da morte; Balangandãs e figas daBabia; Babalaôs e ialorixás, O destino revelado nojogo de búzios.

58 Revistade Ciências Sociais v.26 n.1/2 1995

Queremos chamar a atenção para o seguinte: deacordo com os livros e a maior parte do materialda loja para venda, há um constante fluxo Portugal- Brasil. Significaria para nós então uma constantereatualização da memória coletiva brasileira.

Outro aspecto a ser destacado são os livros dedi-cados aos Exus e Pomba-Giras, magia, feitiçaria emesmo uma das versões do livro de São Cipriano.Moisés Espírito Santo 0994a, 1994b) tem escritoinsistentemente sobre o sincretismo do catolicismopopular português não só com o judaísmo, mastambém com as antigas religiões da bacia do Medi-terrâneo.

Não nos detemos aqui nos aspectos tradicionaisdo catolicismo popular nem em Portugal nem noBrasil, que se encontram fora de nossas preocupa-ções. Estamos muito mais interessados nas ques-tões da memória, suas reproduções e permanênci-as, seu esquecimento, e mesmo seus vazios. Mes-mo sabendo que a Umbanda traz em seu bojo for-tes elementos desse catolicismo.

A LITERATURA UMBANDISTA E A SUA PRODUÇÃO NO TERREIROA existência de toda uma literatura escrita pelos

próprios intelectuais da religião urnbandista nos conduzà questão da transformação da linguagem escrita emoral e a uma linguagem corporal. Caminho inversopercorrido por Santa Teresa D'Ávila, obrigada, peloseu confessor, a pôr em seus cadernos todas assensações extáticas que sentia em sua busca do contatocom o sagrado. Como nos diz Paul Zumthor (993), ocorpo não é somente uma única fonte de metáforas,ele é também uma fonte de medidas, ele procura oselementos de uma linguagem.

A criação do terreiro de Umbanda Ogum Megêtoma-se então o local onde, por meio da literatura,da possessão, dos gestos e das canções se vive umBrasil imaginário.

Vale a pena nos atermos mais detalhadamente àspublicações em forma de apostilhas editadas pelopróprio Terreiro Ogum Megê, pois nelas encontra-mos alguns aspectos a serem explorados.

Conforme citamos, Arthur Ramos, descrevendo oterreiro de Honorato, em Niterói, diz que OgumMegê é conseqüência do sincretismo gege-nagô. Oautor da apostilha, por sua vez, se diz da "NaçãoAngola".

Pesquisadores das religiões afro-brasileiras têmverificado que pais e mães-de-santo vêm consultan-do livros acadêmicos sobre a temática, seja comoforma de informação ou mesmo de legitirnação. Nessesentido, Pedro, o presidente do Terreiro Ogum Megê,em uma rápida conversa conosco, fez questão dedizer que havia lido vários livros de Roger Bastide.

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Essas apostilhas se referem às histórias míticas dosorixás, e seus respectivos cultos. Essas histórias sãoclaramente compiladas, sem os respectivos crédi-tos, de enciclopédias, no que se refere à África, comreproduções de fotografias e de autores como PierreVerger, Roger Bastide, juana Elbein dos Santos eoutros.

Em uma das apostilhas que analisaremos a seguire da qual mantivemos os títulos dos tópicos dapublicação sobre Exu, a ilustração da capa e algu-mas internas parecem ser de autoria de Caribé.

A capaA capa da coleção dos orixás é padronizada em

cor azul, enquadrada por duas colunas que temcomo capitel a flor-de-lis e que seguram um portalestilo neoclássico, onde está inscrito "conhecimen-to" de um lado, ao meio de uma estrela de seispontas, e de outro a palavra "sabedoria".No cen-tro dessa moldura está desenhado um Exu estilizado(o desenho parece um Caribé, como nos referimosacima), e o nome Terreiro de Umbanda OgumMegê. Ao lado, um logotipo que tem um altar comuma cruz e apoiando-se nela um escudo com umaestrela de cinco pontas. Aos pés do altar, duas es-padas de punhos cruzados. Embaixo da ilustração,o nome Exu. Separados por um traço ligando asduas colunas, do lado esquerdo, estão a palavra"paz" e o desenho de uma pomba com um ramono bico; do lado direito, escrito "Luz", sobre um sol.Entre as colunas, em maiúsculas, "Os OrixásAfricanos". Doze medalhas contendo uma folhade parreira fecham a moldura e ligam as colunas.

A concepção gráfica da capa inspira-se em diver-sas fontes: encontramos elementos que podem seratribuídos, entre outros, à Maçonaria, como as duascolunas e a palavra "conhecimento", além da es-trela de seis pontas, designada de estrela de Davi.

Não constam origem, local e data de publica-ção. No entanto, na apostilha intitulada "Propostade sócio", encontra-se impresso na quarta capa:"Este livro é de utilização interna do Terreiro deUmbanda Ogum Megê. O seu uso limita-se ex-clusivamente aos seus sócios, sendo a suareprodução proibida". Essa advertência nospermité aferir a origem da publicação que é objetode nossa análise.

Essa publicação está organizada em treze tópi-cos, número tradicionalmente ligado, como o nú-mero sete, a toda uma ordem de significados má-gicos, principalmente na Cabala. "... boa parte dareligião popular portuguesa é judaísmo disfarça-do de cristianismo, um cristianismo adotado ex-teriormente por judeus" (Espírito Santo,1994b).

MitologiaO primeiro tópico trata da mitologia e, referindo-

se a Exu, frisa que "tanto no Candomblé como naUmbanda, esta entidade dá continuidade ao pensa-mento e às tradições do pensamento africano. É arepresentação de um simbolismo, cujo sentido seencontra não apenas na estrutura do imaginário,como também na real" (grifo nosso).

Esse trecho introdutório e assinalado é demons-trativo daquilo que falamos anteriormente, ou seja,a compilação literal de livros acadêmicos sobre atemática afro-brasíleíra. Sabemos que encontraría-mos, na afirmação "tanto no Candomblé como naUrnbanda" aparentemente uma contradição, namedida em que o papel reservado ao Exu no Can-domblé difere fundamentalmente da Umbanda.Enquanto no primeiro o Exu é um ser primordial edinâmico, como demonstramos em nossa tese(Pordeus jr., 1988), na codificação da Umbanda oExu é posto na Quimbanda, o pólo negativo dareligião, e reduzido a operário da magia. Amplia-mos a mesma questão quando abordamos o imagi-nário e a representação do trabalho e da magia namacumba cearense (Pordeus jr., 1993).

Ferramentas de Exu e suas qualidadesRessalte-se que a palavra Ésu (Exu) guarda a

forma gráfica iorubá, assim como o nome de todosos orixás. Dentre as representações gráficas dos fer-ros, uma é o clássico tridente atribuído ao demônio,e outra um candelabro (menorab) judaico.

Falamos anteriormente do aporte do judaísmo aocatolicismo popular português. No entanto, nãopodemos nos esquecer de que na Umbanda encon-tramos estrelas de Davi e de Salomão, e mesmo,em alguns terreiros, o menorab ocupa o lugar centralno altar portando as velas com as cores relativas àssete linhas da Umbanda. Leão Teixeira e Raul Lody(994) demonstraram a presença de símbolosjudaico-cristãos no Candomblé decorrente dosincretismo com o catolicismo.

As qualidades conforme os nomesSeguido da palavra Ésu (Exu), são relacionados:

Youngi; Obá (Exu Rei); Igba (Dono do Futuro); Agba(Exu Chefe); Obã Sin (Rei Mensageiro); Ije Lu (Ageluou jelu); Ina ou Lona; Odara, Elebo; Olóbe; Aresan;Marbô, Lalu. Tendo cada um a sua especificidade,como das entradas, dos cruzamentos, ete.

De todos esses nomes, tenho encontrado em mi-nhas pesquisas na Umbanda somente Marabô, queé designado de Seu Marabô e associado ao diabocatólico. E ainda Lalu, que também recebe o mes-mo tratamento e associação.

PORDEUSJR., Ismoel. É com certeza uma coso luso-afro-brosileiro. pp. 56 o 64 59

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o texto fala da infinidade dos nomes de Exu, masfaz a ressalva de serem, de certa maneira, descen-dentes uns dos outros. E ainda que cada orixá possuiseu Exu correspondente e tem seu assentamentoao lado do próprio orixá.

O tópico em questão conclui dizendo: "Na naçãoAngola, o genérico tem o nome de Aluvaía, mas háoutros também bastante conhecidos ( ... ) NaUmbanda, os nomes são em português mas a ca-racterística é a mesma".

o PactoSegundo o texto, o sacerdote faz um pacto com

Exu que dura sete anos, traz muito sofrimento e érealizado no cemitério, e que nesse ritual é neces-sária a cabaça contendo elementos ministrados àmaneira de porção. Ressalva que no Candomblétradicional é raro receber Exu, mas na Umbanda eleé muito solicitado para dar conselhos. "Então dá-sea incorporação Eguns, que ele é Ésu, escolheu paraserem os seus servidores ... " Encontramos nessetrecho a mesma explicação dada por Babá Didi, doterreiro em Fortaleza, o qual vem sendo objeto denossos estudos há mais de quinze anos. Ointeressante é que esse terreiro possui um percur-so inverso, quer dizer, se encaminha para umaUmbanda Esotérica, ou seja, despido de imagens etendo os rituais sido modificados ao longo do tempo(Pordeus Ir., 1993).

o culto ao És11Esse tópico trata da qualidade primordial do Exu,

que, por ser uma entidade propiciatória, possuiprioridade em qualquer ritual, invocações ou sa-crifícios. Relata ainda que nos terreiros onde osorixás são cultuados, existe um ritual especial aoqual se dá o nome de Padê. Mas nos terreiros deEguns, "onde os ancestrais são invocados, o des-pacho do Padê não é necessário (. .. ) aobrigatoriedade de cultuar Ésu em primeiro lugar,segundo a lenda, advém de um compromissoassumido por Ifá ( ... ) a despeito de todos,continuaria sempre a ser o primeiro". Nessemesmo tópico, é interessante perceber osincretismo entre a Umbanda e o Candomblé: "Hádois tipos de Egun: Iku - Eguns - espíritosdesencarnados com menos iluminação espirituale que são os auxiliares diretos de Êsü, que se servedeles para o trabalho sujo que, muitas vezes, lheé pedido - e os Baba - Eguns - ancestrais comuma capacidade muito elevada, denominados deBaba (Pai), e destes o Ésu não se serve paratrabalhar, como, por exemplo, os Pretos Velhos eos Caboclos"(p. 15).

60 Revistode Ciências Sociais v.26 n.1/2 1995

Como realizar o PadêO texto explica o significado da palavra Padê

como reunião, e fala do ritual propiciatório de ofe-renda a Exu realizado antes de cerimõnias públicasou privadas. Adverte que, erroneamente, é desig-nado de despacho. O ritual tem por finalidade pe-dir ao mensageiro que proteja e leve a mensagemaos orixás. Vem a seguir a descrição de um Padê.Embaixo da página, fechando o texto, um desenhomostrando uma tigela, um copo até a metade comágua e uma vela acesa. Logo a seguir, um parágra-fo mostrando a possibilidade de um Padê mais sim-ples feito de farofa de água e outra de dendê, semmais explicações do significado dessas farofas.

Padês mais usados e seus câruicosAbrindo esse tópico é transcrito um cântico em

iorubá, em seguida explica que enquanto a Dagàn ea Sidàgan levam o Padê para o Exu da Porteira, deve-se tirar outro cântico que fornece a seguinte tradução:"Ésu deve jogar para a rua tudo o que de ruim houverno terreiro, pois queremos estar à vontade e nãodeve haver brigas, fuxicos, discussões, etc ...".

Em seguida vem uma série de explicações sobreos Exus: eles não gostam de ser tratados por mulhe-res, exceto quando treinados para isso; estão semprecom fome e sede, pois a boca é o caminho pelo qualtodo ser vivo é alimentado. O texto mostra que asoferendas possuem o significado de manter aharmonia do cosmo e a integridade do ser humanopela restituição do Axé à divindade; que o Axédesigna a força vital que assegura a existênciadinâmica, permitindo o acontecer e o dever; fala daambigüidade do Exu, que tanto pode ser benéficocomo maléfico, manter a ordem e a desordem; "Ossímbolos representativos de Exu têm significadomágico, transmitindo ao ser humano os sentimentosambivalentes de temor e segurança"; explica aindao assentamento e seu significado; faz a ressalva deque não gosta de obedecer a ninguém. Essa parte éconcluída com uma foto, que toma quase uma página,de uma mulher no primeiro plano caracterizada debaiana e mais outras duas, em segundo plano, emuma avenida, onde se vê parte de um carro, umposte de iluminação e um edifício. A foto traz comolegenda: "As negras baianas, presença essencial dastradicionais escolas de samba carioca". Fechando apágina, uma explicação sobre o Afoxé como sendouma "sátira a Exu e que nos dias de hoje passou aser bloco carnavalesco na Bahia e no Rio de Janeiro".

Assentamentos de És11e suas preferênciasO texto faz uma diferença entre o assentamento

e o Ebó e mostra a importância do primeiro como

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"uma arma, impedindo que qualquer carga passepor ele". Um desenho ilustra metade da página re-presentando o Exu masculino, que tem em umadas mãos o tridente e na outra uma lança; na cabe-ça, chifres; possui um pênis, uma cauda e os pésdão idéia de cascos. O feminino porta um tridentena mão esquerda e um garfo de dois dentes nadireita, como o anterior; à exceção do pênis, o cor-po é representado da mesma maneira. O texto apre-senta a terra como elemento especial, fala da pe-dra-ímã e que o Otá é a pedra vulcânica. Fala aindada importância do ferro pela ligação entre Exu eOgum, dois frutos, Obi e Orogbô, que servem parafortificar o pensamento. De acordo com o texto, érecomendável que as pessoas envolvidas nesseculto tenham o "corpo limpo", e remete ao refe-rencial católico sobre o "corpo sujo" "pelo facto deter sido praticado acto sexual, e para limpar de todaa imundície deve-se tomar banho para purificar".Imediatamente nega essa afirmação: "... o chamado'corpo sujo', em se tratando desse exemplo, nãoexiste. O que existe são sujeiras espirituais, pensa-mentos negativos ou carga de Eguns". Mas, aomesmo tempo, diz que não se deve ser "libertino edevasso", pois é sinal de santo fraco; mas que namagia não existe essa questão; que as bebidas en-fraquecem e são contra-indicadas; para qualquerritual é importante que o corpo esteja preparadopara receber as vibraçôes e afastar "as negati-vidades". Descreve como deve ser a casa de Exu eestar localizada em um barnbuzal, ensina o proce-dimento para se invocar o Exu na sua própria casa;fala da cruz do Exu que representa os quatro pon-tos cardeais e tudo o que colocar no assentamento,como pedras, ferros, moedas de cobre pelas forças"magnéticas que elas contêm".

Este é, de todos os tópicos, o mais longo e bas-tante interessante quando trata das três abordagensdo corpo: a do catolicismo como o "corpo sujo peloato sexual"; a da magia, em que essa questão não érelevante, tanto quanto para a própria prática dareligião na linha do Omolocô, fazendo as ressalvas"que não deve ser libertino nem devasso". O outroaspecto é da representação do Exu, pois tanto ocorpo masculino como o feminino é a mesma re-presentação do Demônio que encontramos nosterreiros de Umbanda, embora em nenhuma partedo texto trate do sincretismo entre o Diabo e oExu.

Alguns assentamentos de És11O texto começa diretamente tratando do Exu

Tiriri: "21 búzios, 21 moedas, 1 ímã, 1 pedaço deaço, 1 pedaço de carvão de pedra, 1 obi, 1 orogbô,

lama de praia, terra de cemitério, tabatinga, 2 olhosde boi, ferramenta, pemba de 7 cores, 7 pulseirasde aço, 7 guizos, folha de fogo, cansanção-branco,aroeira, São Gonçalinho, corredeira, graveto-de-cão,pimenta-da-costa, do reino, malagueta, 7 tipos debebidas diferentes. Obs: Êsü de Õgúm e Oyá". Seguea relação e os respectivos assentamentos dos ExusBará, Lalu, Marabô, Ebarab, Akesan, Toroni Batolâ.Nessa relação, são citados três Exus que encontramosem nossas pesquisas na Umbanda em Fortaleza:Tiriri, Lalu e Marabô,

Folhas de És11São designados os nomes em iorubá e em portu-

guês: Folha-da-costa, Bredo-sem-Espinho, Favaqui-nha (Alfavaquinha), Tiririca, Folha-de-Bobô, Cansan-ção-de-Porco, Cansanção-Branco-de-Leite, Picão-da-Prata ou Carrapicho de Agulha.

Mãe Virgínia diz que as folhas são compradas nosherbanários de Lisboa que importam do Brasil;algumas são encontradas em Portugal, ou ela enco-menda diretamente, chegando a plantar algumasespécies que se adaptaram ao clima lusitano.

Em outra comunicação "La nature dans l'espacereligieux du terreiro de candomblé" (995), cha-mamos atenção sobre a questão de a memória co-letiva ser seletiva, como nos referimos acima, eencontrar-se relacionada ao presente. '0 entanto,os esquecimentos, as brechas, os buracos, são pre-enchidos para dar uma coerência a um todo. Nocaso específico, a utilização de folhas nos rituaisobedece ao princípio de substituição, como afirmaMãe Virgínia: "Vou ao mato perto de onde estouconstruindo o terreiro e 'sinto' que tal folha subs-titui o que eu utilizo normalmente".

Os sacrifícios e EbósO texto conceitua o significado do sacrifício animal

como sendo a transferência daquilo que tem vida paraalgo que não a possui. Entre os sacrifícios enumerados,destaca o de preferência do Exu, que é o cachorro;cita ainda, em iorubá e entre parênteses, a galinha, acobra, o caracol, o pombo e o galo. No que se refereà cor dos animais consagrados, é preta, mas tambémqualquer outra cor, mesmo o branco. E quando fordada a comida a Exu, o mesmo deve ser feito para oorixá "para que ele não se volte contra nós" .. 10 casode os pedidos serem feitos "para coisas boas, pode-se oferecer mel, mas para o Ésu guardião da porteira,deve-se oferecer sempre que possível obi e pimenta(àtarê) e, ao oferecer, comemos também, o quenos vai causar salivação dependendo do tipo deASE que queremos que o Ésu transporte, e se qui-sermos que a força esteja conosco, engolimos". No

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final, esse tópico descreve e explica os procedi-mentos e significados simbólicos dos sacrifícios.

OferendasEsse tópico tem um texto curto e repetitivo dos

significados que foram explicitados anteriormente."Só os sacrifícios é que podem ser de expiação poralguma falta cometida perante o Orixâ, que a estáreclamando, e, enquanto este não receber o sacri-fício, não perdoa o faltoso".

Ofertas de ObrigaçãoComo o tópico anterior, o texto que fecha a

apostilha é sintético. Enumera as obrigações deobediência aos pais-de-santo: "Ao filho, só compe-te cumprir as ordens dadas pelos Pais-de-Santo, asquais são primeiramente observadas através do Jogode Búzios. (. ..) É seu dever tudo fazer para que oritual ao qual foi chamado seja o mais rapidamenteexecutado, mas sempre sob as ordens dos Pais enunca por conselhos dos Irmãos-de-Santo". Perce-be-se aí a reificação do poder dos pais-de-santo e ocuidado para a manutenção das hierarquias, bemcomo precavendo-se contra os conflitos existentesnos terreiros (Maggi). Na última página encontra-sea reprodução de uma estátua de Exu africana.

É importante ressaltar que em nenhuma parte dotexto, tanto no que se refere à Umbanda de ummodo geral como ao Candomblé, é feita qualquerreferência ao sincretismo do Exu ao Diabo cristão,como encontramos no Brasil. Poderíamos pensar quepara o português, de acordo com sua formação, nocotidiano é difícil associar o Demõnio a outrarepresentação que não seja ao mal absoluto, talcomo é visto pelo cristianismo. Devem aindapermanecer no imaginário lusitano as representa-ções dadas pela Inquisição. Em relação à literatura,um exemplo desse imaginário é a polêmica causa-da pelo livro de José Saramago, O evangelho se-gundo Jesus Cristo, que gerou muitas celeumas,principalmente pelo papel predominante que oDemõnio toma na vida de Jesus.

No entanto, não devemos perder de vista que,na Umbanda de Ornolocô, encontramos uma novatentativa de síntese religiosa ao contrário do fenô-meno que ocorreu na década de 1930 no Brasil.Não somente "a morte branca do feiticeiro negro",mas o restabelecimento do papel do Exu não maiscomo simples operário da magia na Quimbanda, esim, personagem primordial e dinâmico das tradi-ções africanas Iorubá e Fon.

o TERREIRO

No fundo da loja, há uma porta do lado esquerdo

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que dá acesso a uma escada que conduz a umsubsolo, desembocando em um pequeno corredorcom uma porta de cada lado: uma para o toalete eoutra para uma pequena cozinha onde há umageladeira e um fogão.a corredor termina em uma sala ampla de cerca

de 30 metros quadrados. Esta é dividida em doisespaços por uma balaustrada e uma pequena por-ta. A parte menor contém cadeiras e poltronas paraa assistência. a espaço maior é o local onde serealizam os rituais. Ao fundo dele, vê-se um altarsemelhante ao que encontramos nos terreirosumbandistas brasileiros. a altar é em três níveis: nosuperior, as imagens do Coração de Jesus, de NossaSenhora de Santana e São Miguel Arcanjo. No nívelintermediário, uma estátua de Santa Bárbara e daCabocla Jurema. No nível inferior, encontram-seimagens menores de Santa Bárbara, joana D' Are,São Jorge e Santa Filomena, Nossa Senhora dasGraças, São Pedro, São Sebastião e São jerônimo.Sustentado por duas colunas, o altar tem embaixouma Iemanjá, uma sereia cercada de conchas mari-nhas, São jerônimo e um signo de Salornão em metal,e uma xícara com café, cercada de sete charutospara Pretos Velhos.

Nas paredes laterais dois nichos: no da direita,uma estátua de Cosme e Damião e um prato comdoces aos pés de duas bonecas de plástico. No ni-cho da esquerda, as imagens de São Roque, Sãojudas Tadeu e São Lázaro, Nossa Senhora de Fáti-ma, Nossa Senhora da Conceição e da Índia Jupira.E, ainda, um vidro com uma cobra mergulhada emum líquido, dedicado ao Caboclo Cobra Coral, alémde duas quartinhas de cerâmica. Nas paredes late-rais estão fixados a corda e o chicote do CabocloBoiadeiro, e uma armadura medieval de madeira,com uma lança e um escudo, representando OgurnMegê. No chão, abaixo da armadura, imagens deSanta Filomena, Santo Antônio, Nossa Senhora deFátima e São Miguel, uma bacia com pipocas e umpote de incenso. Vale a pena observar que nãoexiste nenhuma imagem de Exu, diferentementede todos os terreiros de Umbanda que conhece-mos. Teríamos assim, como na publicação, a exclu-são do Exu como é concebido no Brasil.

Uma porta lateral abre-se para o quarto de jogode búzios, e uma outra dá acesso ao altar de Exu.

SEMANA RITUAL E PANTEÃO

Mãe Virgínia explica que três dias por semana osrituais são coletivos e que pessoas que não perten-cem ao terreiro vêm assistir, sejam elas das redon-dezas ou convidados por aquelas que pertencem àcasa.

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Segunda-feira, correntes coletivas ou individuaisque têm por objetivo "abrir os bons negócios",estimular o "bem-estar na vida" e a "cura de doen-ças", dedicadas ao Espírito Santo, a Oxalá e Omulu.O ritual resume-se a acender quatro velas, duas nascores dos Orixás e duas para as almas trabalhadoras.

Quarta-feira, corrente de Preto Velho. Não éconsiderada na linha de Omulu, "pois Preto Velho éda linha das Almas, e da linha dos Ancestrais".Falange de São Benedito e de Nossa SenhoraAparecida. Trabalham na linha de Kalunga Grande,linha do Mar. São acesas velas para Vovó Maria Conga,Pai João de Angola, Tia Maria do Cruzeiro, VelhaQuitéria. "... Os Pretos Velhos dão consultas decaridade e aceitam esmolas para as despesas."

Sexta-feira, a mesma corrente da segunda-fei-ra. Velas para Oxalá, na Falange do Divino EspíritoSanto.

Nos outros dias da semana, A Mãe Virgínia dáconsultas individuais jogando búzios, e ainda emcertos casos de "trabalho particular", incorporadacom o Exu Caveira. Em nenhuma das publicaçõesdo terreiro a que tivemos acesso nem no texto queanalisamos sobre o Exu encontramos referência ao"seu Caveira", como é designado correntemente nosterreiros do Nordeste brasileiro.

No primeiro sábado de cada mês há a Gira deCaboclos. "Os portugueses tiveram que estudar osCaboclos porque não conheciam a floresta, e nãoentendiam que índio era caboclo." Encontramosnessa afirmação de Mãe Virgínia a mesma concep-ção índio-caboclo percebida pelos umbandistas deFortaleza (Pordeus jr., 1994a). Fazem parte da cor-rente Caboclos: Boiadeiro, Peito de Aço, jupíra,Tupinambá, jurerna, Pena Negra, Pena Dourada doSol, Mata Virgem, Pena Verde e jussara. Trabalhamna linha da saúde, dão passes e não aceitam paga-mentos. Aqui encontramos uma inversão de papéis,pois essa "linha da saúde" é atribuída aos PretosVelhos enquanto aos Caboclos estão afetos "lutas ebatalhas" (Babá Didi, Fortaleza, 1993).

Vale observar que nessa relação fornecida pelamãe-de-santo estão somente aqueles que baixamno Terreiro. Essa ressalva se aplica também aosPretos Velhos e Exus.

Na última segunda-feira do mês é realizada agira de Exu. Os Exus incorporados pelos médiunssão Seu Tatá Caveira, Seu Sete Encruzilhadas, ExuMarabõ, Exu Calunga da Praia, Pomba-Gira SeteEstrelas da Calunga, Pomba-Gira Rosa da Praia.Ressalte-se que somente o Exu Marabô consta dapublicação que vimos anteriormente, enquanto oExu Caveira que Mãe Virgínia recebe para consul-tas particulares não é relacionado. Isso nos permiti-

ria afirmar que na Umbanda de Omolocô coexis-tem duas concepções desse personagem, como jáchamamos atenção anteriormente: a concepção tra-dicional do Candomblé e a da Umbanda.

JoGO DE BÚZIOS

O jogo de búzios é utilizado tanto para consultasde clientes quanto para a filiação. A publicaçãoProposta de sócio tem uma página que trata dojogo: "Sempre que desejar saber sobre o seu futurodeve consultar o jogo, porque só assim terá certezade como proceder hoje para não se lamentar ama-nhã". Em seguida vem uma explicação sobre o jogo:"... é uma prática divinatória de origem africana,que visa determinar e conceituar a cosmogonia eteologia dos povos africanos ( ...) Podemos entendê-10 para desvendar o culto, como, por exemplo, odestino das pessoas (Odu) e, mais do que isso, éum guia seguro para negócios imprevistos ...". MãeVirgínia diz que a consulta é gratuita e muito de-morada, pois os portugueses não conhecem nadade mitologia. A cada designação do jogo, tem deser explicado o significado ao consulente. Ao mes-mo tempo, por meio do jogo que são encomenda-dos os "trabalhos" e algumas vezes se promove àadesão ao terreiro.

É COM CERTEZA UMA CASA luso-AFRO-BRASILEIRAMãe Virgínia faz questão de frisar que todas as en-

tidades do terreiro são originárias do Brasil, tanto as da"linha de cruzo" (Caboclos e Pretos Velhos) quanto osExus. No que conceme à presença de entidades deorigem portuguesa; nega a existência dessas em seuterreiro, como também em outros terreiros de Portugal,não vendo contradição em ter em seu altar imagensde Nossa Senhora de Fátima e Santo Antônio. Diz que"sentiu" uma única vez a vibração da presença do dr.Souza Martins, médico muito invocado pelos espíritasportugueses, quando realizava trabalho de cura.Falando sobre possíveis "entidades" portuguesas,afirmou que algumas poderiam se adaptar à Umbanda,como a Rainha Santa Isabel e o Marechal Nunes daCosta que em vida prestaram muita caridade.

Essa ambigüidade, no nosso entender, decorre de oterreiro se classificar como da "Linha de Omolocô"como falamos anteriormente. Podemos aí perceberuma linha da Umbanda que se africanizou emdecorrência da "valorização do que é africano", nocaso, o Candomblé. Ou seja, a Umbanda incorporarepresentações rituais "africanas" que haviam deprincípio sido recusadas de forma radical e tidos comode feitiçaria de magia negra, quando se deu a criaçãoda Umbanda (Pordeus jr., 1993).

PORDEUSJR" lsrnoel. É com certeza uma casa luso-afro-brasileira. pp. 56 064 63

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Em oposição, a outra corrente procura ocupar oespaço que estaria afeto ao Espiritismo Kardecista,despindo-se de altares e imagens e se auto-designan-do de Esotérica. Como é o caso do Terreiro Pai To-bias, do Babá Didi, em Fortaleza, que construiu umasala voltada exclusivamente para esses estudos.

No que se refere à memória coletiva, Mãe Virgíniafaz uso de duas linguagens para a manutenção dessamemória: a publicação de apostilhas e a linguagemdo corpo nos rituais como forma de reutilização dosmitos. A divisão espacial do terreiro não difere dadivisão dos terreiros brasileiros como chamamosatenção, ordenando o espaço e assim ordenando oritual como constatamos na semana ritual e Panteão,onde lugar, gestos e memória constituem uma sóunidade.

As folhas utilizadas nos diversos rituais para banhos,encontradas nos herbanários de Lisboa, importadas doBrasil ou encomendadas diretamente, e ainda, as quepor "intuição" são substituídas, também são parteconstitutivas dessa memória.

Algumas questões que ficam em suspenso para umavolta ao campo seriam: o que atrairia o portuguêspara a Umbanda ou o que há na Umbanda que oatrai? Como se manifestaria a memória coletivabrasileira nos outros terreiros em Portugal? Qual aimportância da retomada da linguagem corporal atravésdo teatro da possessão para festejar o sagrado? Efinalmente, até que ponto o fenômeno da possessãoteria relação com as mutações por que passa asociedade portuguesa contemporânea?

NOTAS1. Trabalho apresentado no XIX Encontro Anual da

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