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EVOLUÇÃO URBANA DO BRASIL 1500 / 1720 Trecho Nestor Goulart Reis Concluímos que não existiu urbanização no Brasil durante os primeiros anos, enquanto Portugal praticou em relação ao novo território uma política de colonização com base apenas na economia predatória da extração de pau- brasil. O sistema de feitorias, que vinha sendo praticado como recurso de controle das linhas de comércio e, portanto, de controle das colônias da África e da Ásia e que nessas regiões implicava quase sempre no surgimento de novas aglomerações urbanas ou na transformação das já existentes, provou ser incapaz de promover os mesmos resultados em face das condições sócio- econômicas presentes na colônia da América. Com a criação das capitanias e o estabelecimento de uma agricultura regular, Portugal inicia no Brasil uma nova forma de colonização, procurando encontrar um relacionamento mais favorável entre seus interesses e as condições locais. Como conseqüência, o Brasil passou a constituir uma retaguarda rural para os mercados europeus, aos quais encaminhava produtos agrícolas de produção especializada, a baixo preço, recebendo, em contrapartida, produtos manufaturados. É certo que "a América passa a constituir parte integrante da economia reprodutiva européia", mas o processo ocorre com características bem definidas, de ambas as partes: para os países europeus significa o aumento de demanda em seus mercados, o aumento de seu índice de urbanização e a propagação dos efeitos desse aumento de procura, sobre o conjunto da economia. Para a Colônia, significa a transferência para o exterior de todos os efeitos dinâmicos que sobre a sua economia teria a produção agrícola. Em certo sentido é possível afirmar que se estabelece, em escala internacional, aquela divisão de trabalho entre cidade e campo, que existia em princípio em nível regional. As bases da expansão foram expostas: grandes unidades agrícolas dedicadas à monocultura, movidas com o emprego de trabalho escravo. Organizadas de forma e se aproximar da auto-suficiência, chegavam a possibilitar nos períodos mais favoráveis lucros de 50% ao ano. Nessas condições, todos os capitais disponíveis eram reencaminhados para este setor e as atividades dos colonos e o fluxo da renda orientavam-se de acordo com os interesses da metrópole. A organização rural brasileira, voltada para a grande empresa agrícola de exportação - como organização agro-industrial, com altos níveis de especialização e centralização e de sentido nitidamente empresarial - só poderia se constituir e se desenvolver como complemento de um mercado urbano grandemente desenvolvido e especializado. As relações que essas áreas rurais mantinham com os núcleos urbanos das respectivas regiões eram fundamentalmente diversas das relações urbano- rurais das aglomerações européias, como suas retaguardas rurais mais imediatas. Nesse quadro, que perdura aproximadamente até meados do século XVII, a rede urbana que se instala tem em vista exclusivamente o amparo às atividades da agricultura de exportação. Constitui parte daqueles serviços que devem ser fornecidos, para permitir o funcionamento do sistema.

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Relatorio historico do desenvolvimento urbano e historico das cidades brasileiras.

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EVOLUÇÃO URBANA DO BRASIL 1500 / 1720

Trecho

Nestor Goulart Reis

Concluímos que não existiu urbanização no Brasil durante os primeiros anos, enquanto Portugal praticou em relação ao novo território uma política de colonização com base apenas na economia predatória da extração de pau-brasil. O sistema de feitorias, que vinha sendo praticado como recurso de controle das linhas de comércio e, portanto, de controle das colônias da África e da Ásia e que nessas regiões implicava quase sempre no surgimento de novas aglomerações urbanas ou na transformação das já existentes, provou ser incapaz de promover os mesmos resultados em face das condições sócio-econômicas presentes na colônia da América.

Com a criação das capitanias e o estabelecimento de uma agricultura regular, Portugal inicia no Brasil uma nova forma de colonização, procurando encontrar um relacionamento mais favorável entre seus interesses e as condições locais. Como conseqüência, o Brasil passou a constituir uma retaguarda rural para os mercados europeus, aos quais encaminhava produtos agrícolas de produção especializada, a baixo preço, recebendo, em contrapartida, produtos manufaturados. É certo que "a América passa a constituir parte integrante da economia reprodutiva européia", mas o processo ocorre com características bem definidas, de ambas as partes: para os países europeus significa o aumento de demanda em seus mercados, o aumento de seu índice de urbanização e a propagação dos efeitos desse aumento de procura, sobre o conjunto da economia. Para a Colônia, significa a transferência para o exterior de todos os efeitos dinâmicos que sobre a sua economia teria a produção agrícola. Em certo sentido é possível afirmar que se estabelece, em escala internacional, aquela divisão de trabalho entre cidade e campo, que existia em princípio em nível regional.

As bases da expansão foram expostas: grandes unidades agrícolas dedicadas à monocultura, movidas com o emprego de trabalho escravo. Organizadas de forma e se aproximar da auto-suficiência, chegavam a possibilitar nos períodos mais favoráveis lucros de 50% ao ano. Nessas condições, todos os capitais disponíveis eram reencaminhados para este setor e as atividades dos colonos e o fluxo da renda orientavam-se de acordo com os interesses da metrópole. A organização rural brasileira, voltada para a grande empresa agrícola de exportação - como organização agro-industrial, com altos níveis de especialização e centralização e de sentido nitidamente empresarial - só poderia se constituir e se desenvolver como complemento de um mercado urbano grandemente desenvolvido e especializado.

As relações que essas áreas rurais mantinham com os núcleos urbanos das respectivas regiões eram fundamentalmente diversas das relações urbano-rurais das aglomerações européias, como suas retaguardas rurais mais imediatas. Nesse quadro, que perdura aproximadamente até meados do século XVII, a rede urbana que se instala tem em vista exclusivamente o amparo às atividades da agricultura de exportação. Constitui parte daqueles serviços que devem ser fornecidos, para permitir o funcionamento do sistema.

Nos primeiros anos de sua instalação, em face das hostilidades do meio ou da ignorância de suas características, a população das vilas e cidades vivia reunida de modo permanente, portas a dentro. O mercado urbano não se comportando como o das cidades européias. O aumento da demanda e a acumulação não implicavam em qualquer transformação qualitativa, em qualquer mudança de caráter estrutural. Ocupavam-se novas terras, importavam-se mais escravos, aumentando o número de proprietários. Por outro lado, como bem o demonstra Celso Furtado, as situações desfavoráveis do mercado não conduziam à desorganização dessa forma de economia, mas apenas à sua relativa estagnação, com sinais muito lentos de declínio.

Com as atividades econômicas concentradas em um único setor, que por sua rentabilidade monopolizava o interesse dos colonos e transferia para os mercados urbanos do exterior todos os efeitos dinâmicos da produção e que, na sua organização,

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reagia muito lentamente aos efeitos das oscilações de preços, a organização econômico-social da colônia só conheceu, nesse período, transformações de ordem quantitativa.

Acompanhou-a a rede urbana. A rede (ou sistema urbano) era composta de alguns centros regionais, com a condição de cidades, construídos em situações privilegiadas, em territórios da Coroa e sob sua responsabilidade. Completava-se com núcleos de menor importância, as vilas, espalhadas pelas capitanias, em geral ao longo da costa, fundadas sob responsabilidade dos donatários, com exceção apenas de algumas, erguidas por ordem régia nas capitanias da Coroa.

A política de colonização aplicada pelos portugueses no Brasil até meados do século XVII é a mesma utilizada pelos holandeses durante os 35 anos de sua colonização do Nordeste: concentrar atenção e recursos nos núcleos maiores - para os holandeses apenas o Recife - e controlar indiretamente as demais povoações. Colocados em face das mesmas condições, dois tipos de colonizadores comportavam-se de forma semelhante.

(...)

As transformações sofridas pelo processo de colonização deslocam o interesse dos colonos para novas atividades econômicas. Ocorre de um lado crescente dispersão da população pelo interior, com base em formas de economia de subsistência, vindo a constituir um setor, em certa medida, desligado dos interesses de exportação. Crescem de outro lado as possibilidades do setor comercial e manufatureiro, com vistas para o mercado local, reforçado nos centros urbanos pelo aumento da população permanente.

Repercussões dessa envergadura deveriam conduzir, como de fato conduziram, ao aparecimento de medidas de restrição por parte da Coroa. Essa passará portanto à execução de um plano de controle direto das capitanias e vilas e à fundação de novas vilas para o enquadramento da população rural dispersa, proibindo ao mesmo tempo a instalação de manufaturas e reservando o comércio de vulto às companhias privilegiadas e aos comerciantes portugueses.

Desenvolveu-se também, aos poucos, uma política de controle sobre as transformações espaciais nos centros urbanos e procurou-se conferir monumentalidade aos edifícios públicos. Organizaram-se novos quadros técnicos para atendimento dessas exigências, com a fundação das "Aulas de Arquitetura Militar". A arquitetura civil, como a religiosa, reflete propensões semelhantes, comuns em centros urbanos maiores, assumindo, quando possível, características de monumentalidade.

De parte dos grandes proprietários rurais, o fenômeno é facilitado pela existência de capacidade ociosa de mão-de-obra, no setor escravo, que é transferida das lavouras para as construções.

A arquitetura dessa primeira fase, na medida em que pode ser conhecida, como essas estruturas urbanas, pelas quais era em grande parte determinada, revela-se de extrema simplicidade e de caráter acentuadamente utilitário. Por outro lado, com interesses tão claramente definidos e tão nitidamente coincidentes, os principais agentes do processo de colonização não chegam a ter necessidade de empregar a arquitetura como recurso de expressão do poder, pois este era indiscutível. Os documentos estão a indicar para as construções urbanas dessa época, sejam oficiais, sejam particulares, uma simplicidade e uma austeridade que em tudo correspondem a essas condições da vida social.

As características espaciais da organização dos núcleos refletem também essa situação, seja na escolha dos sítios, seja no traçado e na conservação precária, respostas que são a um crescimento lento, ao uso apenas eventual e à defesa com recursos simples, ao alcance dos colonos.