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1 FILOSOFIA ESPÍRITA “AMOR DA SABEDORIA” E FILOSOFIA GERAL VOLUME III DE IV RENASCIMENTO E FILOSOFIA MODERNA de DESCARTES a HEGEL (Evidenciando a atualidade e perpetuidade da Filosofia Espírita) Estruturado por José Fleurí Queiroz Com o objetivo de vincular ALLAN KARDEC J. HERCULANO PIRES (O Filósofo para o século XXI) e EMMANUEL (Espírito)

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FILOSOFIA ESPÍRITA

“AMOR DA SABEDORIA”

E

FILOSOFIA GERAL

VOLUME III DE IV

RENASCIMENTO E FILOSOFIA MODERNA

de DESCARTES a HEGEL

(Evidenciando a atualidade e perpetuidade da Filosofia Espírita)

Estruturado por

José Fleurí Queiroz

Com o objetivo de vincular

ALLAN KARDEC

J. HERCULANO PIRES

(O Filósofo para o século XXI)

e

EMMANUEL (Espírito)

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LICEU ALLAN KARDEC – BURI-SP

CENTRO ESPÍRITA “SINHANINHA”

“QUÊQUÊQUÊ – QUEIROZ”

EDITORA

(Querer para os outros o que queremos para nós)

José Fleurí Queiroz Rua Inácio Xavier Luiz, n. 10. Vila Sene.

BURI-SP – CEP 18.290.000

Tel. (15) 3546-1191

E.m. [email protected]

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AGRADECIMENTOS

Reitero os agradecimentos registrados no Volume II.

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FILOSOFIA ESPÍRITA

“AMOR DA SABEDORIA”

E

FILOSOFIA GERAL

VOLUME III DE IV

RENASCIMENTO E FILOSOFIA MODERNA

de DESCARTES a HEGEL

AUTO-APRESENTAÇÃO E RESUMO

Em continuidade ao nosso trabalho de reunir, na medida do possível, a Fi-

losofia Espírita e a Filosofia Geral, através do processo histórico, permitindo ao

leitor estabelecer a identidade ou contradições entre ambas, trazemos este Volume

III – Renascimento e Filosofia Moderna -, no qual despontam “O Novo Mundo do

Renascimento”, a “Reforma e Contra-Reforma”, “Filosofia Moderna” (Descartes,

Pascal, Malebranche, Espinoza, Leiniz, Hobbes, Locke, etc.), “Iluminismo”

(Newton, Berkeley, Hume, Vico, Voltaire, Diderot, Montesquieu, Rousseau, Re-

volução Francesa, Wolff, Kant, Fichte, Herder, Goethe, Schiller, Schelling, Hegel,

etc.).

No “Volume I – Existencialismo e Interexistencialismo” procuramos de-

monstrar a parcial identidade entre a Filosofia Existencial Contemporânea com a

Filosofia Espírita, bem como os pontos em que se distinguem e o caráter existen-

cialista desta, ou seja, a abrangência de seus postulados para os dois planos da e-

xistência: física e espiritual.

No “Volume II – de Tales até Ibn Khaldun” – demos início ao processo

histórico propriamente dito, procurando respeitar a cronologia, o que continuará

ocorrendo, obviamente, no “Volume IV – Filosofia Contemporânea”.

Como já foi dito, à saciedade, este projeto de 4 volumes: “Filosofia Espíri-

ta – Amor da Sabedoria – e Filosofia Geral” tem de inédito apenas o objetivo de

vincular Allan Kardec – o Codificador do Espiritismo -, doutrina de tríplice aspec-

to: Ciência, Filosofia e Religião à Filosofia Geral, evidenciando, em todos os sen-

tidos, a superioridade da Filosofia Espírita que absorve, em seu conteúdo, as par-

celas de verdade contidas na primeira e amplia-as aos limites possíveis do conhe-

cimento da Verdade Absoluta.

Para tanto, relembramos que recorremos às obras de J. Herculano Pires –

“O Filósofo para o Século XXI”, “Aposto de Kardec” (o metro que melhor mediu

Kardec” – nas palavras de Emmanuel) e, também, como não poderia deixar de ser,

às de Emmanuel (Espírito), com ênfase ao livro “A Caminho da Luz” psicografia

de Francisco Cândido Xavier, onde é descrito o processo filosófico histórico com

suas implicações nos dois planos: Físico e Espiritual.

Na condição de Mestre em Filosofia do Direito e do Estado e professor u-

niversitário, espírita atuante por mais de 20 (vinte) anos, observei, salvo melhor

juízo, que o nosso currículo cultural, em todos os níveis, apresenta-se, ainda, mui-

to saturado da ideologia materialista, impedindo uma abertura intelectual para os

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aspectos transcendentes da vida. Já fui dispensado da condição de professor por

duas Faculdades, por levantar essa questão e inserir nas matérias de minha compe-

tência os temas que são abordados nestes 4 (quatro) volumes. Não desisti, entre-

tanto, e não desistirei NUNCA de cumprir este dever de divulgar a maravilhosa

FILOSOFIA ESPÍRITA, principalmente no meio acadêmico, onde os interesses

mundanos se sobrepõem aos espirituais.

Até o próximo volume.

Buri, outubro de 2.009.

José Fleurí Queiroz

*

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SUMÁRIO – VOLUME III

PRIMEIRA PARTE

RENASCIMENTO E FILOSOFIA MODERNA

1 – O MUNDO NOVO DO RENASCIMENTO................................ 10

RENASCENÇA DO MUNDO: Movimentos Regeneradores. Livro “A

Caminho da Luz” (Emmanuel). Missão da América. O Plano Invisível e a Colo-

nização do Novo Mundo. Apogeu da Renascença. Renascença Religiosa. A Com-

panhia de Jesus. Ação do Jesuitismo.

MUDANÇAS À VISTA. Livro História da Filosofia. Os Pensadores... 13

O fim do sonho cristão. O papel da Itália. A Descoberta do Homem. A Va-

lorização da Criatividade. O retorno às humanidades. Reinventando a Antiguida-

de. No ensino, um novo enfoque. A crença nos poderes astrais. Um Lugar de Hon-

ra Para Platão. Deus, Cabala e Magia. Pamponazzi e a autonomia da razão. A Arte

sob a Influência da Filosofia. O caráter divino da pintura. A reinvenção do espaço.

O Avanço da Ciência e da Técnica. Inovações mudam estilos de vida. Decifrando

o mundo. A revolução do heliocentrismo. O universo de Giordano Bruno. Deus

está na natureza.

UM CENÁRIO DE LUZ E SOMBRA.................................................... 27

Nicolau Maquiavel. Um príncipe maquiavélico. Os fins justificam os mei-

os. A utopia de Thomas Morus. As outras utopias. O Comportamento Humano na

Berlinda. François Rabelais. Montaigne e a debilidade da razão. A supremacia da

Loucura. Por um Cristianismo Humanista. A vida como espelho dos Evangelhos.

2 – REFORMA E CONTRA-REFORMA........................................... 35

O INÍCIO DA CONTESTAÇÃO. Livro: História da Filosofia. Os Pensa-

dores. João Huss e John Wyclif. É preciso resistir à opressão. A Rebelião de Mar-

tinho Lutero. O servo-arbítrio. Münzer e o poder do povo. Intolerância e Riqueza

Em Nome de Deus. João Calvino. A rigidez do Estado eclesiástico. Da Religião

ao Capitalismo. A reação Católica. O rigor do Concílio de Trento.

ÉPOCA DE TRANSIÇÃO. AS LUTAS DA REFORMA. Livro “A Cami-

nho da Luz.......................................................................................................... 43

A Invencível Armada. Guerras Religiosas. A França e a Inglaterra. Refú-

gio da América. Os Enciclopedistas. A Independência Americana.

3 – A FILOSOFIA MODERNA. A REORGANIZAÇÃO DA

EUROPA. Livro: História da Filosofia. Os Pensadores.............................. 47

A Importância do Método. A Ciência Vira a Mesa. Francis Bacon. “Saber

é poder”. Nicolau Copérnico e a “salvação dos fenômenos”. Johannes Kepler: da

astrologia à astronomia. Galileu Galilei: nova concepção do mundo. René Descar-

tes: A Vida É Um Sonho? Penso, logo existo. E Deus, existe? Dos astros ao corpo

humano. Os homens, senhores da natureza.

RENÉ DESCARTES: Livro “Os Filósofos”. J. Herculano Pires........ 58

Entre Dois Mundos. O Filósofo Espadachim. A Esgrima Filosófica. A Re-

construção do Mundo.

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BLAISE PASCAL Livro “História da Filosofia”. Os Pensadores....... 69

A razão é frágil. O coração tem razões, que a razão não conhece. O místico

que fazia ciência. NICOLAS MALEBRANCHE. A Razão é Deus. O engano dos

homens. BARUCH ESPINOSA. Deus é Natureza. Herege e sacrílego, mas livre.

Livre e sem livre-arbítrio. Nos passos da democracia. GOTTFRIED WILHELM

LEIBNIZ e a busca da harmonia. Da física à metafísica. O mundo completo das

mônadas. THOMAS HOBBES. O Homem sem ilusões. O grande teórico da sobe-

rania. Um monstro em favor da paz. JOHN LOCKE. Crime e Castigo. Experiên-

cia, fonte do conhecimento. Do estado de natureza ao corpo político.

SEGUNDA PARTE

O ILUMINISMO

De BERKELEY até HEGEL

1 – O SÉCULO DAS LUZES................................................................. 95

NEWTON E A TEORIA GERAL DO UNIVERSO. A Lógica da Filosofia

Experimental. GEORGES BERKELEY – Na Contra Corrente. A abstração não

existe.

BERKELEY. Livro “Os Filósofos”. J. Herculano Pires......................... 101

Existir é ser percebido. A Linguagem de Deus. DAVID HUME. O Abismo

de Hume.............................................................................................................. 110

AS INVESTIGAÇÕES DE HUME. Livro: História da Filosofia. Os Pen-

sadores. Ideias, cópias das impressões................................................................ 112

GIAMBATTISTA VICO. Vico e as Idades do Homem........................ 116

2 – O ILUMINISMO FRANCÊS......................................................... 117

A REPÚBLICA DAS LETRAS. A vida é simples matéria. A ciência como

linguagem. Salve o prazer. A ousadia do conhecimento. FRANÇOIS MARIE

AROUET. VOLTAIRE, O PANFLETÁRIO. Contra a intolerância e o fanatismo.

DENIS DIDEROT. DIDEROT CONTRA O SISTEMA. A natureza produz a si

mesma. CHARLES LOMS DE SECONDAT, BARÃO DE MONTESQUIEU.

JEAN-JACQUES ROUSSEAU: O Caminhante Solitário. Um contrato social legí-

timo. Contra o despotismo, a liberdade civil. A REVOLUÇÃO FRANCESA. O

despotismo da liberdade. As teorias na prática. CONDORCET, O ÚLTIMO

‘PHILOSOPHE’. Marquês de Condorcet (Marie Jean Antoine Nicolas Caritat).

A REVOLUÇÃO FRANCESA. FRANÇA NO SÉCULO XVIII. Livro “A

Caminho da Luz”. Emmanuel........................................................................... 136

Contra os Excessos da Revolução. O Período do Terror. A Constituição.

Napoleão Bonaparte. Allan Kardec.

O SÉCULO XIX. DEPOIS DA REVOLUÇÃO. Livro: “A Caminho da

Luz”. Emmanuel............................................................................................... 140

Independência Política da América. Allan Kardec e os seus colaboradores.

As Ciências Sociais. A Tarefa do Missionário. Provações Coletivas na França.

Provações da Igreja.

3 – A ALEMANHA SOB AS LUZES. A AUFKLÄRUNG.............. 144

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CRHISTIAN WOLFF. O racionalismo de Wolff. O surgimento da estéti-

ca. O belo como reflexão filosófica. GOTTHOLD EPHRAIM LESSING. Lessing:

arte e religião. IMMANUEL KANT. Kant e o Julgamento da Razão. Da intuição

ao conceito. Do conceito à experiência. Idéias puras, simples ilusões.

IMANNUEL KANT. Livro: “Os Filósofos”. J. Herculano Pires.......... 157

O Mundo Moral. O Problema do Conhecimento. A Razão Prática.

JOHANN GOTTLIEB FICHTE. O Saber Absoluto de Fichte.............. 171

Livro: História da Filosofia. Os Pensadores.

4 - Romantismo e Idealismo. O Sentimento Vence a Razão............. 173

Transformar um povo em nação. JOHANN GOTTFRIED HERDER. A

procura da alma alemã. Linguagem, história, humanität. JOHANN WOLFGANG

von GOETHE. A Demoníaca força da vida. Só o universo vence o homem.

JOHANN CHRISTOPH von FRIEDRICH von SCHILLER. Da Arte à Liberdade.

Fragmentos do Absoluto. A reflexão pela linguagem. A Filosofia encontra a Poe-

sia. Johann Christian Friedrich Hölderlin. Friedrich Wilhelm Joseph von Schel-

ling. Schelling e a Filosofia da Identidade. Natureza e liberdade. O fundo sem

fundo.

GEORG WILHELM FRIDRICH HEGEL. HEGEL E A CONSTRUÇÃO

DA REALIDADE............................................................................................ 188

O real como processo. A dialética do senhor e do escravo. A razão, princí-

pio de tudo. Construindo a liberdade. A realização do espírito.

TERCEIRA PARTE

FILOSOFIA ESPÍRITA

Livro: Introdução à Filosofia Espírita. J. Herculano Pires

1 – INTRODUÇÃO À FILOSOFIA ESPÍRITA................................. 197

Perfil da Filosofia Espírita. Do Indivíduo como Representação Coletiva.

2 – FILOSOFIA E ESPIRITISMO..................................................... 201

O que é Filosofia? O que é Espiritismo? A Tradição Filosófica. Teoria Es-

pírita do Conhecimento. Como Conhecemos? O que Conhecemos? O processo

gnoseológico. Fideísmo Crítico. Kardec e a Crítica da Fé versus Kant e a Crítica

da Razão. Ontologia Espírita. Existencialismo Espírita. Cosmossociologia Espíri-

ta. Parassociologia. Cosmossociologia.

BIBLIOGRAFIA.................................................................................. 230

Contra-capa (selecionar texto).............................................................. 231

Dados biográficos (José Fleurí Queiroz)............................................... 231

Foto (José Fleurí Queiroz)...................................................................... 231

Primeira dobra do livro........................................................................ 232

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PRIMEIRA PARTE

RENASCIMENTO E FILOSOFIA MODERNA

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1 – O MUNDO NOVO DO RENASCIMENTO

RENASCENÇA DO MUNDO

MOVIMENTOS REGENERADORES

Livro: A Caminho da Luz. Emmanuel

Nos albores do século XV, quando a idade medieval estava prestes a ex-

tinguir-se, grandes assembléias espirituais se reúnem nas proximidades do plane-

ta, orientando os movimentos renovadores que, em virtude das determinações do

Cristo, deveriam encaminhar o mundo para uma nova era.

Todo esse esforço de regeneração efetuava-se sob o seu olhar misericordi-

oso e compassivo, derramando sua luz em todos os corações. Mensageiros devo-

tados reencarnam no orbe, para desempenho de missões carinhosas e redentoras.

Na Península Ibérica, sob a orientação da personalidade de Henrique de Sagres,

incumbido de grandes e proveitosas realizações, fundam-se escolas de navegado-

res que se fazem ao grande oceano, em busca de terras desconhecidas. Numerosos

precursores da Reforma surgem por toda a parte, combatendo os abusos de natu-

reza religiosa. Antigos mestres de Atenas reencarnaram na Itália, espalhando nos

departamentos da pintura e da escultura as mais belas jóias do gênio e do senti-

mento. A Inglaterra e a França preparam-se para a grande missão democrática que

o Cristo lhes conferira. O comércio se desloca das águas estreitas do Mediterrâneo

para as grandes correntes do Atlântico, procurando as estradas esquecidas para o

Oriente. Jesus dirige essa renascença de todas as atividades humanas, definindo a

posição dos vários países europeus, e investindo cada qual com determinada res-

ponsabilidade na estrutura da evolução coletiva do planeta. Para facilitar a obra

extraordinária dessa imensa tarefa de renovação, os auxiliares do Divino Mestre

conseguem ambientar na Europa antigas invenções e utilidades do Oriente, como

a bússola para as experiências marítimas e o papel para a divulgação do pensa-

mento.

MISSÃO DA AMÉRICA

O Cristo localiza, então, na América as suas fecundas esperanças. O século

XVI alvorece com a descoberta do novo continente, sem que os europeus, de mo-

do geral, compreendessem, na época, a importância de semelhante acontecimento.

As riquezas fabulosas da Índia deslumbram o espírito aventureiro daquele tempo,

e as testas coroadas do Velho Mundo não entenderam a significação moral do

continente americano.

Os operários de Jesus, porém, abstraídos da crítica ou do aplauso do mun-

do, cumprem os seus grandes deveres no âmbito das novas terras. Sob a determi-

nação superior, organizam as linhas evolutivas das nacionalidades que aí teriam

de florescer no porvir. Nesse campo de lutas novas e regeneradoras, todos os espí-

ritos de boa-vontade poderiam trabalhar pelo advento da paz e da fraternidade do

futuro humano, e foi por isso que, laborando para os séculos porvindouros, defini-

ram o papel de cada região no continente, localizando o cérebro da nova civiliza-

ção no ponto onde hoje se alinham os Estados Unidos da América do Norte, e o

seu coração nas extensões da terra farta e acolhedora onde floresce o Brasil, na

América do Sul. Os primeiros guardam os poderes materiais; o segundo detém as

primícias dos poderes espirituais, destinadas à civilização planetária do futuro.

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O PLANO INVISÍVEL E A COLONIZAÇÃO DO NOVO MUNDO

Após a descoberta da América, grande esforço de seleção espiritual foi le-

vado a efeito no seio das lutas européias, no intuito de criar no Novo Mundo um

outro sentido de evolução.

Se os colonizadores da região americana, nos primeiros tempos, eram os

degredados ou os proscritos das sociedades européias, importa considerar que es-

ses colonos não vinham tão-somente das grandes capitais do antigo continente, na

exclusiva observância do plano material. Do mundo invisível, igualmente, parti-

ram caravanas inúmeras de almas de boa-vontade, que encarnaram nas terras no-

vas, como filhos daqueles degredados muitas vezes perseguidos pela iniqüidade

da justiça dos homens. A esses Espíritos mais ou menos adiantados, aliaram-se

numerosas entidades da Europa, cansadas das lutas inglórias de hegemonia e de

ambição, buscando a redenção no esforço construtivo de uma nova pátria em ba-

ses sólidas de fraternidade e amor, originando-se, desse modo, entre os povos a-

mericanos, sentimentos mais elevados, quanto à compreensão da comunidade

continental. Se reconhecemos na América a projeção espiritual da Europa, temos

de convir que se trata de uma Europa mais sábia e mais experiente, não só quanto

aos problemas da concórdia internacional e da solidariedade humana, como tam-

bém em todas as questões que significam os verdadeiros bens da vida.

APOGEU DA RENASCENÇA

Essa renascença, iniciada do Alto, clareou a Terra em todas as direções.

A invenção da imprensa facultava o mais alto progresso no mundo das i-

déias, criando as mais belas expressões de vida intelectual. A literatura apresenta

uma vida nova e as artes atingem culminâncias que a posteridade não poderia al-

cançar. Numerosos artífices da Grécia antiga, reencarnados na Itália, deixam tra-

ços indeléveis da sua passagem, nos mármores preciosos. Há mesmo, em todos os

departamentos das atividades artísticas, um pronunciado sabor da vida grega, an-

terior às disciplinas austeras do Catolicismo na idade medieval, cujas regras, aliás,

atingiam rigorosamente apenas quem não fosse parte integrante do quadro das au-

toridades eclesiásticas.

RENASCENÇA RELIGIOSA

A essas atividades reformadoras não poderia escapar a Igreja, desviada do

caminho cristão. O plano invisível determina, assim, a vinda ao mundo de nume-

rosos missionários com o objetivo de levar a efeito a renascença da religião, de

maneira a regenerar os seus relaxados centros de força. Assim, no século XVI, a-

parecem as figuras veneráveis de Lutero, Calvino, Erasmo, Melanchton e outros

vultos notáveis da Reforma, na Europa Central e nos Países Baixos.

Por ocasião dos primeiros protestos contra o fausto desmedido dos prínci-

pes da Igreja, ocupava a cadeira pontifícia Leão X, cuja vida mundana impressio-

nava desagradavelmente os espíritos sinceramente religiosos. Sob a sua direção

criara-se, em 1518, o célebre "Livro das Taxas da Sagrada Chancelaria e da Sa-

grada Penitenciaria Apostólica", onde se encontrava estipulado o preço de absol-

vição para todos os pecados, para todos os adultérios, inclusive os crimes mais

hediondos. Tais rebaixamentos da dignidade eclesiástica ambientaram as prega-

ções de Lutero e seus companheiros de apostolado. De nada valeram as persegui-

ções e ameaças ao eminente frade agostiniano. Alguns historiadores enxergaram

na sua missão uma simples expressão de despeito dos seus companheiros de co-

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munidade, em face da preferência de Leão X encarregando os Dominicanos da

pregação das indulgências. A verdade, contudo, é que o humilde filho de Eisleben

tornara-se órgão da repulsa geral aos abusos da Igreja, no capítulo da imposição

dogmática e da extorsão pecuniária. Os postulados de Lutero constituíram, antes

de tudo, modalidade de combate aos absurdos romanos, sem representarem o ca-

minho ideal para as verdades religiosas. Ao extremismo do abuso, respondia com

o extremismo da intolerância, prejudicando a sua própria doutrina. Mas o seu es-

forço se coroou de notável importância para os caminhos do porvir.

A COMPANHIA DE JESUS

Uma onda de claridades novas felicitava todas as consciências, mas os Es-

píritos tenebrosos e pervertidos, que mostraram ao europeu outras aplicações da

pólvora, além daquelas que os chineses haviam enxergado na beleza dos fogos de

artifício, inspiraram ao cérebro obcecado e doentio de Inácio de Loiola a fundação

do jesuitismo, em 1534, colimando reprimir a liberdade das consciências.

A Igreja, estendendo mão forte a essa idéia, inaugurava um dos períodos

mais tristes da história ocidental. O Tribunal da Inquisição, com poderes de vida e

morte nos países católicos, fez milhares e milhares de vítimas, ensombrando o

caminho dos povos. Espetáculos sangrentos e detestáveis verificaram-se em quase

todas as grandes cidades da Europa, os autos-de-fé acenderam horrendas fogueiras

do Santo-Ofício, por toda parte onde existissem cérebros que pensassem e cora-

ções que sentissem. Instituiu-se a devassa de todos os institutos sociais e a viola-

ção de todos os lares. Na Espanha, queimavam o infeliz na praça pública; na

França, tétrica noite causava pesadelos coletivos em matéria de fé; na Irlanda,

muitos "fiéis" faziam questão de levar ao altar de Jesus a vela feita da gordura dos

protestantes.

AÇÃO DO JESUITISMO

A Companhia de Jesus, de nefasta memória, não procurava conhecer os

meios, para cogitar tão-somente dos fins imorais a que se propunha.

Sua ação desdobrou-se por largos anos de treva, nos domínios da civiliza-

ção ocidental, contribuindo amplamente para o atraso moral em que se encontra o

"homem científico" dos tempos modernos.

Suas hordas de predomínio, de cupidez e de ambição não martirizaram a-

penas o mundo secular. Também os padres sinceros sofreram largamente sob a

sua preponderância nefasta. Tanto assim que, quando o papa Clemente XIV ten-

tou extingui-la, em 1773, com o seu breve "Dominus ac Redemptor", exclamava

desolado: - "Assino minha sentença de morte, mas obedeço à minha consciência."

Com efeito, em setembro de 1774, o grande pontífice entregava a alma a Deus, no

meio dos mais horrorosos padecimentos, vitimado por um veneno letal que lhe

apodreceu lentamente o corpo.

*

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O MUNDO NOVO DO RENASCIMENTO

MUDANÇAS À VISTA

Livro: História da Filosofia. Os Pensadores

Havia algo no ar. Um desejo, talvez. Ou uma necessidade. Um movimento

sutil na direção da mudança. Uma vontade coletiva de experimentar, descobrir,

transformar. Corria o século XIV, e na Europa – na Itália, a princípio – começou a

tomar forma aquilo que mais tarde o mundo conheceria como Renascimento.

Ávidas, as pessoas revisitavam os valores da Antigüidade clássica. Vascu-

lhavam velhos textos e redescobriam o ideal artístico do universo greco-romano.

Mas não se tratava de uma simples volta ao passado remoto. Acreditando-se her-

deiras das antigas tradições, essas pessoas começaram a produzir um mundo dife-

rente. Beneficiadas pelo desenvolvimento sem precedentes da ciência e da técnica,

lançavam-se aos mares, aventuravam-se para além das terras conhecidas e chega-

vam ao Novo Mundo – que passaria a integrar, na qualidade de colônia, o sistema

econômico e político da Europa.

Mas o Renascimento não é apenas a retomada da marcha triunfal da razão

e do espírito científico após a “longa noite medieval”, como muitas vezes foi ca-

racterizada, de modo simplista, a Idade Média. O que se denomina “ciência” no

Renascimento, embora prepare os fundamentos para a arrancada científica do sé-

culo XVII, guarda sinais do pensamento medieval, ao qual se somam elementos

do misticismo oriental e judaico. A astronomia e a astrologia, a química e a al-

quimia, a investigação da natureza e a magia permanecem juntas e assim cami-

nham.

A originalidade do Renascimento está em construir uma nova imagem do

mundo a partir da permanência de elementos do passado. É em nome do huma-

nismo que o homem, mesmo temeroso, começa a separar-se da grande ordem do

universo, para ser o seu espectador privilegiado. Mais do que isso, ele é o organi-

zador dessa ordem. No plano religioso, isso se traduz na Reforma, que não reco-

nhece intermediários – os padres ou o papa – na comunicação com Deus. O ho-

mem, e só ele, é responsável por seus atos, perante sua consciência e a divindade.

O fim do sonho cristão

Evidentemente, essa concepção abalou ainda mais o cristianismo, que via

ruir, nos novos tempos, seu sonho de unificar o mundo pela fé. “O papa e o impe-

rador vêem seus direitos ignorados”, lamentava em 1454 o futuro papa Pio II, re-

ferindo-se aos rumos tomados pela Europa cristã. A queda de Constantinopla, úl-

timo vestígio do outrora poderoso Império Romano, o fim da Guerra dos Cem

Anos (1337-1453) e a Peste Negra, que na época do conflito levou à morte um

terço da população européia, haviam deixado fortes marcas na vida social, política

e religiosa do velho continente.

Logo depois da guerra, as fronteiras de Inglaterra e França tornaram-se

mais nítidas. A monarquia nacional dos dois países se fortaleceu, assim como a-

conteceu com Portugal e Espanha. O poder, antes centrado na figura do papa,

concentrava-se cada vez mais nas mãos dos reis.

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O fortalecimento das monarquias nacionais correspondia ao enfraqueci-

mento da nobreza e da Igreja. Também representava a ascensão de uma nova clas-

se social, a burguesia, dedicada às finanças, ao comércio e à manufatura, e que

passou a apoiar política e economicamente a coroa em troca de proteção aos seus

negócios, cada vez mais dinâmicos e prósperos.

A classe dos burgueses, como o próprio nome indica, compunha-se inici-

almente dos habitantes dos burgos, isto é, fortificações de que surgiram as cidades

medievais. A partir do século X, muitas delas formaram as comunas, um modo de

organização social em que os cidadãos, livres das imposições do Império, do pa-

pado ou da nobreza, estabeleciam seu próprio destino. A principal atividade era o

comércio e a manufatura, organizados em corporações. Voltadas para gerar rique-

zas e não somente subsistência, como na vida rural, as comunas prosperaram e ne-

las se formaram famílias ricas e influentes – a burguesia propriamente dita -, que

passaram a viver dos serviços prestados pelos trabalhadores.

O papel da Itália

A Itália, que pela sua posição geográfica controlava o comércio no Medi-

terrâneo, era a mais rica das regiões. Ali nasceram o sistema de letras de câmbio e

de seguros, os bancos e outros mecanismos que tornaram mais ágil a atividade

mercantil. Foi também nessa península que as comunas desenvolveram-se em ci-

dades-Estado, o que impediu por séculos, ao contrário do que aconteceu em outros

países, a unificação nacional italiana. Tais cidades, embora formalmente democrá-

ticas, passaram a ser controladas, na prática, por poderosas famílias burguesas. Os

Visconti e depois os Sforza, em Milão, e os Médici, em Florença, eram os princi-

pais exemplos.

As cidades italianas, assim, reuniam as melhores condições para a emer-

gência do Renascimento. Sua riqueza permitia a contratação de sábios, filósofos,

cientistas e artistas. Além disso, a proximidade com Constantinopla fez com que a

Itália se tornasse o refúgio natural dos emigrados que fugiam da invasão turca. E

com eles chegou à península a rica tradição intelectual e cultural do Império Ro-

mano do Oriente, do qual faziam parte diversos textos gregos desconhecidos no

Ocidente.

A Itália era também a pátria do Império, o que favorecia um contato mais

direto com os valores do mundo romano que se queria ver renascer. Mais do que

isso, com sua longa história de vida autônoma e livre, distante das restrições reli-

giosas, morais e políticas da Idade Média, as cidades italianas formavam há tem-

pos um ambiente propício ao surgimento de uma nova classe, com um novo modo

de vida, uma nova mentalidade, uma nova maneira de conceber o mundo e o pró-

prio ser humano.

A DESCOBERTA DO HOMEM

“O Homem é o modelo do mundo”, disse um dia Leonardo da Vinci. Com

esta frase, ele, de certo modo, sintetizava o que eram o Renascimento e suas reali-

zações.

Um exemplo do alcance da promoção do homem encontra-se na mudança

na noção de tempo. Durante a Idade Média, a Igreja condenou o juro (“usura”).

Cobrar juros significava vender o tempo, que só a Deus pertence.

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Os mercadores, porém, tinham outra visão. Para eles, o tempo era um risco

do qual retiravam seus ganhos. Por isso, apesar das proibições da Igreja, princi-

palmente nas cidades italianas, os mercadores contabilizavam minuciosamente o

tempo, para calcular ganhos e perdas. O tempo, assim virou dinheiro e passou a

pertencer ao homem. Não por acaso, o relógio é uma invenção do Renascimento.

Esse exemplo indica a íntima relação entre a nova concepção do homem,

dono do tempo, e a classe dos mercadores, que vai constituir a burguesia. De fato,

os primeiros humanistas – aqueles que elaboram essa nova idéia de homem – são

burgueses e pessoas a eles associadas. A força que domina o tempo é também a

força da iniciativa, da habilidade, da inteligência, da audácia, sempre de caráter

pessoal. Por isso, o homem virtuoso dos renascentistas italianos está longe do par-

ticipante abstrato de uma única humanidade, como o concebia o pensamento hele-

nístico. Na nova ordem das coisas, o homem de virtú é aquele que tem capacidade

individual de saber escolher as ocasiões propícias para, ousadamente, transformar

o curso dos acontecimentos. No Renascimento, o homem é basicamente o indiví-

duo.

Essa valorização do indivíduo manifesta-se na busca da fama, uma noção

antiga e diametralmente oposta ao ideal medieval do homem anônimo que, despo-

jando-se das vaidades pessoais, coloca-se a serviço de Deus. Na escultura ou na

arquitetura do Renascimento, grande parte das obras serve para exaltar a fama

conquistada por muitas personalidades. Na literatura, proliferam os gêneros bio-

gráficos e autobiográficos, enquanto, na pintura, florescem o retrato e o auto-

retrato, com a identificação das pessoas representadas. O hábito de os artistas as-

sinarem suas obras também surge no Renascimento.

A valorização da criatividade

O artista, de certo modo, encarna o ideal de homem que o Renascimento

descobre. Desprezado desde a Antigüidade como executor de trabalho braçal – a-

tividade própria dos escravos e das camadas inferiores -, o artista, no Renascimen-

to, torna-se modelo da capacidade inventiva do homem de iniciativa. Audacioso,

inconformado com as circunstâncias a que se vê submetido, ele forja o próprio

mundo. Nessa medida, sua figura equivale à do homem de virtú, ativo, criativo e

empreendedor, e contrapõe-se à dos “especulativos” escolásticos, que, aos olhos

do Renascimento, pensam mas nada fazem.

Mais do que isso, o mundo que o artista cria ultrapassa a condição mortal e

efêmera do criador. Suas obras tendem à eternidade. Não é à toa que os artistas

renascentistas tenham preferido materiais menos corrosíveis pela ação do tempo e,

portanto, mais propícios à duração e à fama, como o óleo, na pintura, e o mármo-

re, na escultura.

Mas o artista não se limita ao ofício que o caracteriza. Se fosse mero “fa-

zedor de arte”, seria apenas artesão, isto é, trabalhador braçal, que continua des-

prezado. Ele não é apenas o executor da obra, mas seu idealizador. Isso significa

que deve dominar, além das técnicas indispensáveis ao ofício, todo um conjunto

de conhecimentos. Deve, por isso, ser um homem universal, que tudo sabe e que

tudo faz.

O retorno às humanidades

Além de associado a essa nova imagem do homem, o humanismo apresen-

ta outro significado, de caráter mais técnico: o estudo das humanidades. Studia

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humanitatis, na tradição que remonta a Cícero, indicam os estudos de valores con-

siderados essencialmente humanos – a “humanidade”, no sentido adotado pelo

pensamento helenístico. Nessa medida, referem-se à história, à poesia, à retórica,

à gramática e à filosofia moral, que, no ensino escolástico, eram relegadas a se-

gundo plano.

O próprio termo “renascimento” aplica-se inicialmente a essa revaloriza-

ção daquilo que o classicismo grego e romano havia exaltado. O grande promotor

desse humanismo no sentido técnico é Francesco Petrarca (1304-1374) responsá-

vel pela criação da noção de “tempos obscuros” para caracterizar a Idade Média,

que, a seu ver, era sinônimo de mundo bárbaro. Trata-se então de retornar ao bri-

lho da civilização antiga, a começar pela purificação da língua – o latim – tão cor-

rompida por influência de idiomas bárbaros. O mesmo propósito é buscado em re-

lação ao grego e ao hebraico, que, somados ao latim, formam o ideal de homo tri-

linguis, o homem trilíngüe ou poliglota.

O humanismo, no sentido técnico, compõe-se basicamente da gramática e

da filologia das línguas antigas, para depois imitar a literatura e as artes da Anti-

güidade. Isso, porém, não significa que o humanista tenha sido fiel a esse progra-

ma. O próprio latim de Petrarca não é o de Cícero ou Virgílio; muitos eruditos a-

tribuem à Antigüidade vários textos que se revelariam obra de épocas mais recen-

tes. Houve até, no século XVI, quem acrescentasse à famosa estátua da Loba, o

símbolo de Roma, os gêmeos Rômulo e Remo.

Reinventando a Antigüidade

Os humanistas, na verdade, idealizam a Antigüidade, reiventam-na, crian-

do, num certo sentido, o modelo que depois tratariam de imitar, principalmente

quanto à forma e ao estilo. Por isso, são menos atenciosos para o que dizem os

textos antigos do que para o modo como dizem. A polêmica suscitada em torno da

tradução de Ética a Nicômaco, de Aristóteles, é esclarecedora. Publicada pelo

chanceler de Florença, Leonardo Bruni (1370-1444), ela foi criticada pelo cardeal

Alonso Garcia, professor da Universidade de Salamanca. Para ele, o antigo tradu-

tor “não se limitou a traduzir os livros de Aristóteles do grego para o latim, mas

interpretou-o com tanto rigor quanto possível e não lhe teriam faltado a maior ele-

gância ou os mais belos ornamentos se tivesse querido utilizá-lo. (...) Mas o antigo

intérprete, que se preocupou sobretudo com a verdade filosófica, não quis orna-

mentos excessivos a fim de evitar os erros em que este [novo tradutor] caiu”.

No ensino, um novo enfoque

Por trás dessa aparente divergência técnica sobre a tradução há um fosso,

que separa o mundo medieval do renascentista e que se manifesta em concepções

conflitantes a respeito da educação, a começar pelo local do ensino. Se a escolás-

tica tinha como sede a universidade, o núcleo das humanidades são os colégios.

Destinados inicialmente a fornecer uma instrução preparatória - exatamen-

te as humanidades – a jovens carentes, os colégios, que proliferam no final da I-

dade Média, passam a atrair cada vez mais os estudantes de famílias ricas. A estes

não interessa um conhecimento especializado, como o que as universidades forne-

cem. O que se requer é a aquisição de um estilo: saber conversar, ser cortês, poli-

do e elegante, ter bons modos e, claro, apresentar uma boa formação cultural – re-

quisitos indispensáveis para que o jovem seja admitido na corte de ricas e podero-

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sas famílias. Por isso, proliferam os manuais sobre um bom comportamento. Um

dos mais adotados é O Cortesão, de Baldassare Castiglione.

Esse tipo de ensino, aparentemente fútil e frívolo, corresponde aos anseios

da burguesia, que, depois de ver consolidado seu domínio econômico, quer ser

admitida nos círculos aristocráticos, mesmo que para isso tenha de comprar títulos

de nobreza. Por isso, opõe-se às universidades, cujos “pedantismo” e “intelectua-

lismo”, de nada servem ao desejo de promoção social. “Nem todos são chamados

a serem legistas, físicos ou filósofos (...). Mas todos, tais como somos, fomos cri-

ados para viver em sociedade e para os deveres que esta vida implica”, escreve no

século XV o educador humanista Vittorino da Feltre.

A crença nos poderes astrais

O homem renascentista busca moldar o mundo à sua imagem e semelhan-

ça, como um empreendimento seu. Mas essa é também uma experiência dolorosa.

Ao descobrir a própria individualidade frente à ordem do mundo, ele não se con-

forta mais com a certeza medieval de uma vida cujos princípio e fim encontram-se

em Deus. O humanista continua a acreditar em Deus, mas Ele parece cada vez

mais indiferente ao mundo.

Orgulhoso de si, mas abandonado à própria sorte, esse homem procura rea-

tar com a ordem do mundo. Para isso, retoma as noções antigas de macrocosmo e

de microcosmo, que serviam para relacionar o ser humano ao universo. Na Idade

Média, o homem era concebido como um pequeno mundo (microcosmo) que,

como criatura de Deus, espelhava em si toda a Criação, o macrocosmo. A astrolo-

gia, embora condenada pela Igreja, era um instrumento para desvendar esse jogo.

No Renascimento, com o afrouxamento das restrições da Igreja, a astrolo-

gia conhece larga difusão, ainda mais porque o humanismo absorve elementos pa-

gãos que identificam os astros às divindades. Acredita-se que cada parte do mun-

do e do homem seja governada por um astro-deus, e nada se faz sem antes consul-

tar a posição dos corpos celestes.

Caso alguém seja bem-sucedido, é porque agiu num momento de conjun-

ção propícia dos astros. Isso significa a crença de que as pessoas podem se apro-

veitar das influências astrais. Em ocasiões favoráveis, é possível até mesmo con-

vocar as forças da natureza, valendo-se da magia. Nessa medida, a astrologia e a

magia tornam-se uma espécie de álibi da liberdade humana. Elas representam o

momento em que o homem, tornando-se senhor do mundo e de seu destino, ainda

se sente inseguro da própria liberdade. O pensamento renascentista irá nutrir-se

dessa condição ambígua do ser humano.

*

UM LUGAR DE HONRA PARA PLATÃO

Até o Renascimento, o Ocidente praticamente desconhecia Platão. O que

se sabia dele vinha mais dos comentários que se faziam a seu respeito do que das

poucas obras que haviam chegado à Europa. Mas alguns manuscritos gregos,

comprados em Constantinopla, mudaram esse cenário. Entre eles, levados a Flo-

rença em meados de 1430, estava nada mais do que a obra completa de Platão.

O impacto da descoberta foi imediato. Cosme, o Velho (1389-1464), da

poderosa família Médici, que então dominava a cidade, encomendou a tradução

dos Diálogos a Marsílio Ficino. A ele confiou também a fundação da Academia,

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um influente centro de filosofia renascentista. E a partir daí o pensamento tomou

um novo rumo. Se, na Idade Média, a escolástica incorporou o aristotelismo ao

cristianismo, no Renascimento a oposição a esses “tempos obscuros” fez-se a par-

tir dessa “reabilitação” de Platão.

Nicolau de Cusa e a verdade divina

O primeiro dos representantes desse platonismo, que pretende rejuvenescer

o cristianismo, libertando-o da aridez e dos impasses do aristotelismo escolástico,

é Nicolau de Cusa (1401-1464). Mas ele não consegue conhecer o Platão que os

manuscritos gregos mostram. Morre exatamente na época em que Ficino trabalha

na tradução dos Diálogos. Assim, seu platonismo remonta antes ao neoplatonismo

de Plotino, passando por Santo Agostinho e certos autores medievais. Como eles,

sua preocupação básica é a teologia e, nesse sentido, Cusa ainda participa do

mundo medieval. Mas sob outros aspectos é propriamente renascentista, como se

verá mais adiante.

Nascido em 1401 na cidade alemã de Cusa (Kues), Nicolau freqüenta vá-

rias universidades. Não se torna, porém, um teólogo universitário, mas membro da

hierarquia da Igreja. Cardeal e bispo de Brinxen, é depois nomeado vigário-geral

(governador) de Roma, sede do papado. Também participa ativamente das tentati-

vas de conciliação das várias seitas em que se divide o cristianismo de então.

Essa atitude já revela a preocupação renascentista com a tolerância religio-

sa. Mais do que isso, é a manifestação prática da teoria de Nicolau de Cusa sobre

a coincidência dos opostos. As diversas religiões, que a razão lógica separa em

seitas conflitantes, são, para ele, expressões aproximativas de uma mesma verdade

divina.

Isso acontece porque o procedimento racional, lógico, não é apropriado pa-

ra abordar as questões teológicas. Deus é inacessível à razão lógica. Para Cusa, a

filosofia aristotélica, inteiramente baseada no princípio lógico da não-contradição,

apenas consegue dar conta das realidades finitas do mundo da natureza. E quanto

a Deus, em sua realidade infinita? Entre o finito e o infinito há um abismo que o

conhecimento do tipo lógico é incapaz de ultrapassar, ainda mais porque no infini-

to há uma coincidência entre os opostos. Um curva, por exemplo, infinitamente

grande, não coincide, no limite, com uma reta?

É preciso que o homem reconheça os limites de sua capacidade de conhe-

cimento, ou, em outras palavras, de sua ignorância. Essa douta ignorância (ex-

pressão de Santo Agostinho que dá titulo à principal obra de Nicolau de Cusa) não

é apenas a confissão da impotência da razão humana. É também uma sabedoria

que percebe sua fraqueza – e que, socraticamente, sabe que nada sabe -, e disso

faz uma via de acesso a Deus.

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Mas como isso é possível, se Ele é infinito, a própria coincidência dos o-

postos? Do mesmo modo, responde Nicolau de Cusa, como um polígono se apro-

xima do círculo na medida em que seus lados vão se multiplicando ao infinito. A

douta ignorância consiste em formular infindáveis conjeturas sobre Deus, mesmo

sabendo de antemão que a compreensão total a seu respeito é impossível. Para Ni-

colau de Cusa, Deus, como o Uno de Plotino, envolve a totalidade do universo em

seus múltiplos aspectos, até mesmo contraditórios. Com isso, resgata-se a digni-

dade do homem, que é a imagem do divino e que resume, como microcosmo, a

unidade múltipla do macrocosmo.

A noção de infinito de Cusa, leva-o a uma surpreendente concepção do u-

niverso. Imagem de Deus, mas não idêntico a Ele, o universo não pode ser o divi-

no infinito, mas deve ser uma “espécie” de infinito, no sentido em que não apre-

senta nem começo nem fim. Não há então motivo para buscar um ponto central: a

Terra não está no centro do universo. Do mesmo modo, a clássica distinção entre

o supralunar e o sublunar perde o sentido. Não há mais hierarquias na ordem do

universo, e a Terra, tão nobre quanto os demais astros, também deve se mover.

Embora ignorada em sua época, essa concepção original do universo, ela-

borada sem o recurso da astronomia, rompe com a teoria aristotélico-ptolomaica,

que havia se tornado doutrina oficial da Igreja. Também nesse terreno um novo

mundo estava sendo descoberto.

Deus, Cabala e magia

É à dignidade humana que se voltam principalmente os platônicos renas-

centistas reunidos na Academia – centro de cultura dedicado às discussões e ao

estudo da filosofia, em Florença -, como Marsílio Ficino (1433-1499) e Pico della

Mirandola (1463-1494), este último autor de uma obra intitulada Discurso sobre a

Dignidade do Homem. Para eles, Platão mostra a capacidade de o ser humano ele-

var-se ao mundo inteligível e, assim, unir-se a Deus. Ficino arrisca até mesmo a-

firmar que o homem é “uma espécie de Deus”, posto no mundo para possuí-lo,

enquanto Mirandola considera que o homem, ao contrário de outras criaturas, não

recebeu do Criador nenhum lugar ou natureza que lhe fossem próprios e que, por

isso, encontra-se livre para se apoderar do mundo como achar melhor.

Essas idéias, que enaltecem a potência humana, associam-se à magia, à

tradição mística judaica (a Cabala) e à tradição supostamente egípcia (o herme-

tismo – qualidade do que é hermético, difícil de compreender, obscuro; doutrina esotérica basea-

da nos escritos atribuídos a inspiração do deus Hermes Trismegisto; na Idade Média e na Renas-

cença, doutrina oculta dos alquimistas.) das quais Ficino e Mirandola são adeptos. Para

eles, tais práticas constituem meios de o homem invocar as forças da natureza em

seu proveito. Para Ficino, que era padre, essa assimilação de elementos alheios ao

cristianismo não é de modo algum estranha. Tradutor de obras de Platão, de Ploti-

no e de textos místicos do hermetismo (atribuídos a um suposto Hermes Trisme-

gisto, do Egito Antigo), ele considera que nesses escritos encontra-se a prisca the-

ologia (teologia antiga ou primitiva) que, no fundamental, não diverge da doutrina

cristã. Do mesmo modo, escreve Pico della Mirandola: “Não há ciências que dê-

em mais certeza da divindade do Cristo do que a magia e a Cabala” – Conjunto de

comentários místicos e esotéricos judaicos de textos bíblicos e de sua tradição oral. A conse-

qüência dessa concordância entre o cristianismo e o paganismo é, de novo, sinal

da tolerância religiosa – um dos principais traços do humanismo renascentista -,

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que admite e respeita todas as religiões como manifestações particulares de uma

mesma revelação divina.

Pomponazzi e a autonomia da razão

Enquanto em Florença fervilha o platonismo renascentista, em Pádua cul-

tiva-se o aristotelismo. Mas o aristotelismo dos paduanos é bem distinto do da es-

colástica. Pietro Pomponazzi (1462-1525), figura central dessa nova corrente, não

procura justificar a fé. Declara que o dogma cristão da imortalidade da alma é in-

demonstrável e que os milagres não passam de fenômenos naturais, que só aos o-

lhos dos ignorantes aparecem como intervenção direta de Deus.

Mas, cauteloso, ele também admite que a fé contém a verdade, embora dis-

tinta da que a razão descobre. Com essa noção de doppia veritá (dupla verdade),

Pomponazzi desembaraça-se da fé para proclamar a autonomia da razão. A filoso-

fia e a ciência estão livres para investigar a natureza e sua relação com o homem,

que é tomado como fim em si mesmo.

Para ele, tudo aquilo que começa está destinado a terminar. “Tudo o que

teve começo (...) terá também os tempos marcados, isto é, uma fase de crescimen-

to, uma de equilíbrio e uma de decadência, embora muitas vezes isso não se apre-

sente perceptível, por exemplo, nas coisas que têm longa duração, como as coisas

inanimadas (...), as cidades, as religiões”, escreve. Com isso, ele chega à conclu-

são de que o cristianismo, como até então concebido, perde “força e vigor” (fase

de decadência) e também terá um fim – o que acaba se revelando quase uma pre-

visão.

*

A ARTE, SOB A INFLUÊNCIA DA FILOSOFIA

Desde Aristóteles, o espaço era visto como algo composto de regiões qua-

litativamente distintas, como indica a separação entre o supralunar e o sublunar.

Do mesmo modo, não se podiam confundir as regiões em cima e embaixo, frente

e atrás, direita e esquerda. Na arte, isso se manifestava na pintura medieval, que

hoje causa estranheza: tudo é desproporcional e “errado”.

O panorama se altera radicalmente no Renascimento. Entra em cena a

perspectiva, que representa a mudança no modo de ver o mundo. O espaço se re-

duz a três dimensões, que não têm qualidades distintas. Dependendo do ponto de

vista, a altura torna-se largura e vice-versa; não passam de relações numéricas.

Além disso, o infinito, esse grande problema dos antigos, torna-se representável

visualmente.

Retratar “corretamente” o mundo é concebê-lo segundo o modelo matemá-

tico, transformando-o em relações quantitativas e não mais em qualidades distin-

tas. E nisso, mais do que em outros domínios culturais da época, a arte já anuncia

a ciência moderna. Mas essa nova postura também significa que o mundo passa a

ser visto e construído a partir de um ponto de vista único, fixo e privilegiado: o

homem.

O caráter divino da pintura

A pintura, no Renascimento, é figura e espelho do mundo, também conce-

bido como um jogo de espelhos entre as partes e o todo. Desse modo, o artista,

que reproduz a natureza sobre a tela, dando forma à matéria, assemelha-se ao

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Demiurgo de Platão. Para Leonardo da Vinci (1452-1519), a pintura apresenta um

caráter divino que “faz com que o espírito do pintor se transforme numa imagem

do espírito de Deus”.

Para essa concepção também contribui a tradição hermética, inseparável

do platonismo renascentista, e que considera o olho a “janela da alma”, por meio

da qual o homem torna-se capaz de perceber o mundo. A pintura é esse olhar má-

gico que capta, fixa e eterniza na tela o mundo recriado e reordenado pelo artista.

Mas essa reordenação não se faz arbitrariamente. Espelho do mundo, a

pintura deve representar-lhe a ordem divina, que se manifesta, por exemplo, em

quadros que retratam as três Graças, tema caro à arte renascentista. Freqüente-

mente aparecem nuas – nada as encobre e oculta; elas não dissimulam, não enga-

nam. Revelam o verdadeiro caráter da liberalitas (liberalidade, isto é, generosida-

de) que, segundo Sêneca, apresenta três momentos: o dar-se, o receber-se e o vol-

tar-se a dar. Mais do que isso, e num sentido neoplatônico, elas simbolizam o mo-

vimento da emanação do Uno: a processão, pela qual o Uno transborda de si

mesmo; a conversão, que fixa a processão em hipóstases; e o regresso ao Uno, pe-

lo Amor que ele suscita.

É essa a bela ordem que o artista deseja recriar. Para isso, ele se vale da

matemática, a fim de buscar a “justa medida”, de inspiração pitagórica e platôni-

ca. Isso se observa no minucioso esquadrinhamento da tela em proporções preci-

sas e rigorosas, naquilo que se conhece como técnica da perspectiva, pela qual se

obtém um efeito de profundidade espacial do objeto retratado. Os cálculos para

chegar a isso são complexos, mas consistem basicamente em projetar a realidade

tridimensional numa tela plana, bidimensional, de modo que os objetos sejam re-

presentados em tamanho cada vez menor, proporcionalmente à distância que os

afasta do olhar do artista.

Por isso, a perspectiva também é um olhar. Ela reproduz na tela o campo

visual do olho humano, que esquematicamente forma uma pirâmide entre as ex-

tremidades do que é visto e o foco da visão. Tal foco é o ponto de vista, único e

fixo, a partir do qual o artista olha o mundo. Esse ponto corresponde na tela ao

ponto de fuga, também único e fixo, geralmente situado no centro do quadro, para

onde confluem todas as linhas que formam a perspectiva. Entre o quadro e o olhar

do artista (e o do observador da obra), entre o ponto de vista e o ponto de fuga, há

também um jogo de espelhos, que provoca a sensação de que a pintura representa

“corretamente” o mundo, em sua realidade verdadeira e objetiva.

A reinvenção do espaço

Essa sensação baseia-se em alguns pressupostos. Nos âmbitos estritamente

fisiológicos e ópticos, o campo visual não converge para um único ponto da reti-

na, pois o olho está em constante movimento. Por isso, há uma discrepância entre

a realidade que o artista vê e o modo como ele acredita representá-la “corretamen-

te”. A perspectiva é então uma entre tantas outras maneiras de retratar o mundo.

É, propriamente falando, uma invenção.

A perspectiva também inventa, como já foi dito, uma nova imagem do es-

paço. Porque projetar o mundo tridimensional num plano implica, antes de mais

nada, conceber o espaço como constituído de apenas três dimensões: comprimen-

to, largura e altura. Mas isso não basta. É preciso que essas dimensões sejam ex-

tensões homogêneas, não diferenciadas, em que cada uma das partes – por exem-

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plo, cada metro – é idêntica à outra. Só assim é possível estabelecer as proporções

entre as distâncias, pois tudo se reduz a uma medida comum. Por fim, essas di-

mensões devem ser infinitas: o ponto de fuga é o lugar em que as linhas se encon-

tram no infinito.

*

O AVANÇO DA CIÊNCIA E DA TÉCNICA

O artista do Renascimento, homem universal, levou longe sua sede de co-

nhecimento. Transformou-se também em engenheiro e técnico de grande capaci-

dade inventiva – e plenamente ciente de suas qualidades. Exemplo disso é a carta

que Leonardo da Vinci escreveu em 1482, em que solicita emprego a Ludovico, o

Mouro (1452-1508), da poderosa família dos Sforza, de Milão: “Já fiz planos de

pontes muito leves (...). Sou capaz de desviar a água dos fossos de um castelo cer-

cado (...). Conheço meios de destruir seja que castelo for (...). Sei construir (...)

galerias e passagens sinuosas que se podem escavar sem ruído nenhum (...)”.

A imagem que se tem do Renascimento acolhe essa autovalorização dos

artistas-engenheiros e faz, dessa, uma época de grande avanço técnico associado a

celebridades. A maioria dos esboços de engenhos, porém, não foi transformada

em artefato. Nem poderia, uma vez que eles eram tecnicamente inviáveis. Assim,

os carros de guerra, as máquinas voadoras, o tear mecânico deixados por Da Vinci

não saem do papel. O mesmo acontece com outros artistas-engenheiros, como Gi-

orgio Vasari (1511-1574), que inventa mecanismos para entreter festas.

Todas essas idéias, mesmo sem ser postas em prática, revelam um dado

importante do Renascimento: a curiosidade por autômatos, as “máquinas artifici-

ais”, de cuja fabricação o homem, fascinado, descobre-se capaz.

Inovações mudam estilos de vida

Muitos projetos, no entanto, são viáveis para a época. É o caso da melhoria

dos veículos de tração animal, com a introdução de jogo dianteiro móvel, de sis-

tema de suspensão ou de roda livre com eixo fixo. Mais notável foi o avanço da

navegação. É a construção de caravelas – junto com a invenção da bússola, o uso

do astrolábio ou de mapas mais precisos – que possibilita viagens cada vez mais

distantes, o que acaba levando ao Novo Mundo.

Na metalurgia, as inovações técnicas atingem desde o processo de extração

dos minérios até seu beneficiamento, por meio da fundição em alto-forno. Os ob-

jetos de ferro tornam-se comuns e, com isso, novos hábitos introduzem-se na vida

cotidiana – portas trancadas à chave e o uso de garfos à mesa são dois exemplos.

A metalurgia e a siderurgia também fornecem a matéria-prima para a fabricação

de relógios mecânicos – uma invenção do século XIV -, tão indispensáveis nessa

época em que o cálculo do tempo e os negócios caminham cada vez mais juntos.

O ferro também possibilita a invenção de máquinas que contribuem para a meca-

nização da indústria têxtil e o desenvolvimento da indústria de armamentos. A fa-

bricação de armas de fogo não só modifica a concepção de guerra – que deixa de

ser a “arte” do nobre cavaleiro – como também assegura a supremacia dos euro-

peus sobre os povos das novas terras conquistadas.

Todas essas melhorias técnicas são obras de pessoas anônimas, ou quase,

que modificam e aperfeiçoam realizações anteriores. O caso da imprensa, símbolo

da inovação técnica do Renascimento, não é diferente. Atribuído ao alemão Gu-

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tenberg (c. 1394-1468), o sistema de impressão por caracteres móveis é, na verda-

de, fruto de uma série de tentativas de adaptação de técnicas já empregadas pelos

chineses desde o século VII. O papel e a tinta para impressão também são inven-

ções chinesas.

Decifrando o mundo

Não que se deva desmerecer o gênio inventivo de famosos artistas-

engenheiros. Porém, mais do que algumas realizações espetaculares, sua contribu-

ição é a de ter superado o caráter meramente prático dos artesãos. Os homens do

Renascimento inventam e calculam. Com isso, mesmo concebendo engenhos irre-

alizáveis, apresentam já um método próximo do da ciência moderna. “A experiên-

cia”, diz Da Vinci, “não engana nunca; só erram vossos julgamentos, que prome-

tem a si mesmos resultados estranhos à nossa experimentação pessoal.”

Experiência é, em primeiro lugar, observação. O renascentista, que tanto

acredita no próprio olhar, é também um observador meticuloso da natureza. Em

Cordeiro Místico, célebre pintura dos irmãos flamengos Hubert e Jan van Eyck,

identificam-se mais de cinqüenta espécies vegetais. Da Vinci também deixou uma

série de desenhos de plantas e flores, com os quais ambientaria seus quadros. A-

lém disso, são famosas suas minuciosas descrições anatômicas do corpo e dos ór-

gãos humanos. No terreno da anatomia, destaca-se também o anatomista André

Vesálio (1514-1564), que introduziu novas técnicas de dissecação de cadáveres.

Mas o gosto pela observação é também a busca de segredos ocultos que

aproximem todas as coisas. Por acreditar que tudo se relaciona com o todo e suas

partes, o macrocosmo com o microcosmo, os renascentistas procuram o que há de

semelhante entre aquilo que existe. Os ramos das árvores e os chifres dos animais,

a tempestade e a apoplexia, os astros e o homem são apenas alguns exemplos.

Por isso, o médico e alquimista Paracelso (1493-1541) esforça-se em clas-

sificar as plantas que se assemelhem a cada parte do corpo humano, tentando com

isso descobrir remédios a cada um deles. Abrindo caminho para a quimioterapia e

a química, ele também realiza experiências terapêuticas com substâncias minerais,

pois considerava-se que a cada astro corresponde um mineral e um órgão. O que

se denomina “ciência”, no Renascimento, desenvolve-se com base nessa concep-

ção do universo, de que tudo se assemelha a tudo. Mas a semelhança não é apenas

física e visual. As várias relações de semelhança resumem-se na noção, tomada ao

pensamento helenístico, da “simpatia” e de seu oposto, a “antipatia”. Assim como

o Sol e a Luz iluminam o mundo, os dois olhos do rosto recebem a luz. O sol é

também simpático ao coração, pois ambos são essenciais à vida; aquele se identi-

fica com o ouro pelo brilho e pela preciosidade.

Desse modo, o que a “ciência” renascentista investiga não é a causa que

relaciona as coisas entre si, mas o significado comum que nelas se oculta. O mun-

do é essa relação de significados secretos, uma espécie de texto a ser decifrado – o

código são as próprias coisas, tomadas como signos. Os signos do horóscopo são

exatamente isso: contêm uma mensagem que veladamente anuncia a época da co-

lheita e do corte de cabelo, a ocasião propícia para os negócios e para a guerra, e

assim por diante.

Por tudo isso, o Renascimento, ao contrário do que se costuma imaginar,

não representa a grande arrancada inicial da ciência moderna, que, na verdade, te-

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ve de romper com essa concepção do mundo de semelhanças. Mas, aqui e acolá,

de um modo difuso, o Renascimento já prepara o terreno para essa ruptura.

Nas investigações da natureza – e apesar de ainda se conservar a teoria a-

ristotélica de quatro elementos (ar, fogo, terra e água) -, a observação e a experi-

encia, preconizadas por Da Vinci, fazem com que se retifiquem muitas fórmulas

tradicionais. O matemático Tartaglia (c. 1499-1557), ao estudar a balística, mostra

que a trajetória de um projétil não é retilínea, como supunha Aristóteles, mas cur-

vilínea, e que não há diferença entre o movimento “natural” e o “violento”. Na

mesma linha, Giambattista Benedetti (1530-1590) refuta a idéia aristotélica de que

os corpos “leves” e os “pesados” têm movimentos distintos.

Por trás dessas investigações há um considerável desenvolvimento da ma-

temática, a começar pela simplificação de sua linguagem: as letras do alfabeto

passam a ser empregadas na álgebra, e as frações decimais recebem uma notação

mais operacional (por exemplo, “34,51”, em vez de “3451/100”). Além disso, Ge-

rolamo Cardano (1501-1576) colabora com Tartaglia na resolução de equações de

terceiro e quarto graus e introduz no cálculo os números negativos, mesmo consi-

derando-os “não verdadeiros”.

A revolução do heliocentrismo

Decisiva também é a concepção, de inspiração pitagórico-platônica e anti-

aristotélica, de que a matemática se aplica ao estudo dos fenômenos físicos. Isso

desemboca na revolução de Copérnico.

Apesar de astrônomo, ele não se vale das observações dos astros. Prefere o

cálculo. Desse modo, chega à conclusão – já antevista por Nicolau de Cusa, mas

apenas conjeturalmente – de que o Sol encontra-se no centro das esferas celestes,

e que a Terra, por isso, gira em torno daquela estrela. Toda uma tradição é revira-

da de cabeça para baixo. O geocentrismo de Ptolomeu é substituído pelo heliocen-

trismo.

“E no centro de tudo permanece o Sol. Pois, quem, nesse templo esplêndi-

do, colocaria essa luminária em outro lugar melhor que esse, de onde ela pode i-

luminar tudo ao mesmo tempo? Em verdade, não é impróprio que alguns o cha-

massem a pupila do mundo; outros, o espírito do mundo, ou ainda outros, seu rei-

tor.” As palavras de Copérnico indicam a forte influência platônica e neoplatônica

sobre seu pensamento. Em Platão, o Sol é a metáfora do Bem, a Idéia suprema

que ilumina as demais; em Plotino e sua versão cristã, a Luz é a imagem da ema-

nação do Uno ou do Verbo divino; em outras interpretações, o Sol simboliza a In-

teligência (o “espírito do mundo”); e, por fim, na concepção renascentista, há uma

equivalência entre o Sol e o olhar. Como então não colocar o sol no centro do u-

niverso?

Nicolau Copérnico nasceu em 1473, na cidade polonesa de Torun. Estuda

em Cracóvia e depois em Bolonha, na época as duas únicas cidades cujas univer-

sidades mantinham a cátedra de matemática. Nomeado cônego, passa a residir em

Frauenburg, onde morre em 1543, no mesmo ano em que é publicada sua princi-

pal obra, Sobre as Revoluções das Órbitas Celestes, que sistematiza o heliocen-

trismo.

Apesar de tardiamente divulgada, essa teoria, ao que tudo indica, foi for-

mulada perto de 1515. Por que tão prolongado silêncio entre elaborar e publicar a

idéia? Prudência em vista das eventuais perseguições? Pode ser: Osiander, que es-

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creveu o prefácio à obra, tomou o cuidado de apresentar a teoria heliocêntrica co-

mo simples hipótese. Por outro lado, o próprio Copérnico escreve, nesse mesmo

livro: “A matemática é escrita para os matemáticos”. A frase mostra influência

dos pitagóricos, para quem a sabedoria deve ser um assunto acessível apenas aos

iniciados. De fato, em seus estudos, Copérnico leu não apenas Aristóteles e Pto-

lomeu, mas também todos os autores antigos que tratavam do universo – os pita-

góricos.

Também é de inspiração pitagórica e platônica a discordância de Copérni-

co em relação à astronomia da época, que concebia teorias cada vez mais comple-

xas para explicar o movimento dos astros. Em nome da ordem do universo, essas

teorias não faziam senão disseminar a desordem. Mas, e se o ponto de vista mu-

dasse? E se o Sol, tão caro aos renascentistas, fosse colocado no lugar central, su-

postamente ocupado pela Terra?

Essa inversão, verdade seja dita, não conseguiu simplificar muito as coisas

em relação às teorias anteriores, pois Copérnico concebia as órbitas dos astros

como circulares – outra influência do pensamento antigo. Por isso, sua teoria não

é, a rigor, heliocêntrica: segundo seus cálculos, que pressupõem o movimento cir-

cular, os planetas movem-se em torno de um ponto próximo ao Sol.

Apesar dessas imprecisões, a revolução copernicana é profunda. Sua teoria

implica que a Terra seja também dotada de movimento, como os demais astros; é,

por sinal, mais um dentre eles. Não há, então, como distinguir o supralunar do

sublunar. Além disso, para que os cálculos fossem compatíveis com o movimento

de certos astros, seria preciso conceber um universo, senão infinito, ao menos du-

as mil vezes maior do que o até então considerado.

O universo de Giordano Bruno

Mas... se a Terra não é o centro do universo, por que insistir num centro?

Se a hierarquia do mundo se rompe, para que buscar uma hierarquia? Por que não

haveria outros mundos, com outros sóis e outras vidas? Por que considerar o uni-

verso algo fechado e limitado – ou mesmo “ilimitado”, como timidamente conce-

beu Nicolau de Cusa? Por que não afirmar com todas as letras que o mundo é in-

finito, positivamente infinito?

As indagações são de Giordano Bruno. Ele, como Copérnico, permanece

nos limites do pensamento renascentista, mas um e outro, por suas descobertas e

indagações, abrem-lhes as brechas. Essa verdadeira revolução não se refere ape-

nas à astronomia. Abalam-se os valores religiosos, políticos e morais que, de certo

modo, tinham no geocentrismo um símbolo. Giordano Bruno pagaria caro por ta-

manha ousadia: em 1600 foi queimado vivo na fogueira da Santa Inquisição.

Considerado o grande mártir da ciência, Bruno não é propriamente um ci-

entista. Tampouco procura abrir caminho para a ciência, que mais tarde reconhe-

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ceria em sua figura um precursor. Ele é, sobretudo, mago e místico, seguidor da

tradição pseudo-egípcia de Hermes Trismegisto e da Cabala judaica. Deixa-se in-

fluenciar pela teoria copernicana por reconhecer nela a inspiração hermética –

Copérnico havia mencionado Hermes para caracterizar o sol como “Deus visível”

-, e não por causa do rigor das demonstrações matemáticas. Copérnico, diz Bruno,

“sendo mais um estudante de matemática do que da natureza, não a conseguiu pe-

netrar com suficiente profundidade”. O que faz de Bruno o mártir da ciência é, pa-

radoxalmente, aquilo que ele desenvolve quase em oposição aos aspectos propri-

amente científicos da obra de Copérnico.

Deus está na natureza

Giordano Bruno nasce em 1548, em Nola, perto de Nápoles. Em 1566, in-

gressa no convento dominicano de Nápoles, onde se doutora em teologia. Mas,

em 1576, acusado de heresia por duvidar da Santíssima Trindade, abandona o há-

bito e foge, iniciando uma vida errante. Roma, Genebra, França, Inglaterra, várias

cidades alemãs, Praga e novamente Itália são lugares onde Bruno propaga suas i-

déias, sempre se envolvendo em acirradas polêmicas. Em Veneza, por fim, é de-

nunciado por Giovanni Mocenigo, seu aluno, e entregue à Inquisição em 1592.

Levado a Roma, submetido a interrogatórios e a violentas torturas, recusa-se a re-

nunciar a suas idéias. Em 1600, é condenado à fogueira. Conta-se que antes da

execução cuspiu no crucifixo que lhe haviam estendido.

O que tanto inquieta a Igreja a ponto de condenar Bruno, se teorias seme-

lhantes à dele, de Nicolau de Cusa, ou o heliocentrismo de Copérnico, não a in-

comodaram tanto? É certo que a época mostra um endurecimento da Igreja, às

voltas com a proliferação incontrolável de seitas cristãs dissidentes. Mais do que

isso, porém, é preciso levar em conta que o pensamento de Bruno é franca e radi-

calmente anticristão – e a Igreja sabe disso.

Bruno acredita em Deus. Mas seu Deus não é transcendente, acima de to-

dos os seres e quase inacessível. Ao contrário, é imanente às coisas; encontra-se

em tudo e em todos. Deus é a natureza. “Assim, os crocodilos, os galos, as cebolas

e os nabos”, escreve Bruno, “jamais foram adorados por si mesmos, mas sim pe-

los deuses e divindades que existem nos crocodilos, nos galos e nas outras coisas,

cuja divindade era, é e será encontrada em diversos sujeitos (...) o que vale dizer:

a divindade que é altíssima, absoluta em si mesma e sem relação com as coisas

que produz.”

Deus é o princípio vital que anima o mundo e os seres. O mundo é esse ser

vivo e divino, e, se tudo se move – até mesmo a Terra e o que ela contém -, é para

assegurar a manutenção e a renovação constante da vida.

Porque Deus é infinito, a natureza que com Ele coincide deve também ser

infinita. E se o divino está em tudo, não há por que estabelecer hierarquias no uni-

verso, como o supralunar e o sublunar (A região terrestre ou mundo sublunar na qual vive

o homem é imperfeita, sujeita a mudanças e variações. A região celeste ou mundo supralunar é e-

terna). Tais distinções, segundo Bruno, foram criadas por “falsos Mercúrios”, isto

é, cristãos, a fim de aprisionar os homens numa condição humilhante, impedindo-

os de enxergar e de se elevar à verdadeira luz divina. Sem hierarquias, o universo

não se fecha mais em esferas celestes, mas abre-se ao infinito, uniforme e homo-

geneamente.

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Por isso, Bruno, mesmo sem saber, inaugura uma nova possibilidade para

o conhecimento. Embora seu pensamento seja animista, vendo vida em tudo, e a

despeito do menosprezo pela matemática, sua concepção de universo infinito e

homogêneo permite que se o calcule matematicamente. É como se a ciência, pelo

sacrifício de Bruno, se libertasse das noções que lhe impossibilitavam pensar ma-

tematicamente o mundo. A partir de então, ela já pode abrir o próprio caminho.

*

UM CENÁRIO DE LUZ E SOMBRA

Onde existe luz, também existe sombra. Assim, o Renascimento, que com

tanta intensidade acolhe a luz e a alegria da vida, pressente igualmente a presença

perturbadora das trevas.

Nas artes, Da Vinci é mestre na técnica de sfumato, na qual a claridade

vai-se tornando gradativamente obscura. Michelangelo (1475-1564), que segundo

Rafael “estava só como um carrasco”, é autor de Juízo Final, na Capela Sistina, a

mais célebre realização sobre o tema, muito comum na época. A busca da eterni-

dade pela fama convive com o peso do pecado, da morte, e com a sensação de in-

significância da vida. Macbeth, personagem de William Shakespeare (1564-

1616), murmura no famoso monólogo: “A vida é uma sombra errante, um pobre

ator que gesticula em cena por uma hora ou duas e depois não é mais ouvido.

Uma história contada por um idiota, cheia de bulha e fúria, que não significa na-

da”.

Na cena política imperam os conflitos. Na Itália, a guerra é uma constante.

No final do século XV, Carlos VIII, rei da França, invade Milão, Parma, Florença,

Roma e avança para Nápoles. É detido por tropas de uma coligação de cidades ita-

lianas. Seu sucessor, Luís XII, segue-lhe os passos, mas perde Nápoles para Fer-

nando de Aragão, rei da Espanha.

Em outras regiões da Europa a situação não é diferente. Na Inglaterra, os

conflitos entre as dinastias de York e de Lancaster desencadeiam a Guerra das

Duas Rosas (1455-1485). Também no século XV, e estendendo-se até meados do

XVII, eclodem na Alemanha, nos Países Baixos, na França e em outros locais as

guerras religiosas, associando diversos movimentos da Reforma protestante aos

mais variados interesses políticos e econômicos. A Igreja Católica, desmoralizada,

faz recrudescer a Inquisição, condenando aqueles que considera hereges e suas

obras.

*

Um príncipe maquiavélico

Nicolau Maquiavel é um observador atento desses tempos de luz e sombra.

Participa ativamente da conturbada vida política de Florença e, como embaixador,

examina os acontecimentos de outros países. Vê como os governos se mantêm e

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como são derrubados, e disso faz tema de reflexão. Não lhe interessa arquitetar

governos justos, mas imaginários. Prefere ver as coisas como são. Por isso, de cer-

to modo, sua conclusão é cruel: o objetivo supremo do governo é perpetuar-se no

poder, não importando os meios para atingir esse fim.

Nesse realismo político, considerações sobre justiça ou moral não têm vez.

“Assim”, escreve Maquiavel, “é necessário a um príncipe, para se manter, que a-

prenda a ser mau.” Mas, por trás desse maquiavelismo - palavra que passou a de-

signar ações inescrupulosas -, Maquiavel não deixa de apontar certos valores mo-

rais, ainda que os considere apenas meios eficazes para a manutenção do poder.

Algumas de suas afirmações são quase cínicas. Ele recomenda mentir, agir

com crueldade e até mesmo matar, de acordo com as necessidades do poder. Es-

creve que a bondade leva à ruína num ambiente calcado pela maldade. No fundo,

é como se dissesse: que posso fazer, se as coisas são assim? Não é à toa que mui-

tos vêem nessa atitude o início da ciência política, que, eximindo-se de emitir jul-

gamentos morais e éticos, limita-se a descrever friamente os mecanismos sombri-

os do poder.

É preciso levar em conta, porém, que a Itália, nos tempos de Maquiavel,

corresponde a suas análises. Reinos, principados, ducados e repúblicas rivalizam

entre si, em meio à presença sempre influente dos Estados pontifícios, sede do pa-

pado, ou das tropas estrangeiras. Além disso, muitos governantes agem despoti-

camente, e contra isso espalham-se conspirações e rebeliões; os condottieri, há-

beis chefes militares, vendem os serviços de seus soldados mercenários a quem

pague melhor, tornando-se eles próprios governantes. É o caso dos Sforza, de Mi-

lão.

Em Florença, onde Maquiavel nasceu em 1469, também reina a confusão.

Ali, quem governa de fato são os Médici, que, no entanto, são expulsos em 1494,

quando se reorganiza a república. Maquiavel ingressa na vida pública nesse perío-

do, e, como segundo chanceler, conhece os bastidores da política de Florença. Em

1512, porém, uma nova rebelião traz de volta os Médici, obrigando Maquiavel ao

exílio – ocasião em que ele escreveria O Príncipe, Discursos sobre a Primeira

Década de Tito Lívio e obras literárias como a comédia A Mandrágora. Os Médici

são novamente expulsos em 1527. Maquiavel, que por causa de suas convicções

republicanas esperava ser chamado de novo à vida política, cai, porém, no esque-

cimento. Desgostoso e doente, morre no mesmo ano.

Os fins justificam os meios

De certo modo, Maquiavel é vítima de seu “maquiavelismo”. Republicano,

dedica O Príncipe a seu perseguidor, Lourenço II, e Histórias Florentinas ao papa

Clemente VII, também da família Médici. Com a queda desta, saúda a república,

que não mais confia nele.

É então Maquiavel um oportunista fracassado? Talvez. Mas o último capí-

tulo de O Príncipe, que complementa a dedicatória a Lourenço II, é revelador. Ali

escreve: “Já está fedendo, para todos, este domínio de bárbaros. Tome, pois, a

vossa ilustre casa esta tarefa com aquele ânimo e com aquela fé com que se espo-

sam as boas causas, a fim de que (...) esta pátria seja enobrecida...”.

Há, então, “boas causas” em Maquiavel. Consistem no fim do “domínio de

bárbaros”, dos estrangeiros. Não apenas em Florença, mas em toda a Itália – o que

requer a unificação do país. O “maquiavelismo” de Maquiavel é, em primeiro lu-

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gar, isto: se os fins são as “boas causas”, que importa se os meios para atingi-las

são os Médici? São o que há de disponível.

O príncipe, porém, deve ser o grande protagonista. Precisa ser um homem

de virtú, aquele que, conhecendo as circunstâncias, é capaz de arrebatá-las a seu

favor, valendo-se da liberdade de que o homem dispõe. Mais do que isso, o prín-

cipe é aquele que não espera que a fortuna, a sorte, o “deixe governar”; esta “é

mulher e, para dominá-la, é preciso bater e contrariá-la”. Por isso, quando for pre-

ciso, o príncipe deve lançar mão da dissimulação e da violência, para resistir e

mudar o curso dos acontecimentos.

Mas para quê? Simplesmente para preservar o poder? Maquiavel, ao longo

da descrição de técnicas para a manutenção do poder, fornece várias pistas para

uma possível resposta. Recomenda, por exemplo, que “um príncipe deve gastar

pouco para não ser obrigado a roubar seus súditos”, mesmo que isso lhe valha a

fama de miserável, o que é sempre preferível a ser odiado pela população por co-

brar pesados impostos. Aconselha também que é melhor ser considerado cruel,

pois a tolerância é capaz de gerar “desordens, das quais podem nascer assassínios

ou rapinagem”, que “prejudicam todo um povo”. Além disso, afirma que o gover-

nante, para não ser derrubado, deve ser estimado e que, para isso, é preciso asse-

gurar e estimular o livre exercício das atividades dos súditos.

Em todos esses conselhos, a arte de se manter no poder coincide, no limite,

com o ideal de “bem governar”. Se é preciso manter o poder a qualquer custo, é

porque disso depende a coesão social, a unidade justa da vida coletiva. Maquiavel

vai mais longe: assegurar a vida coletiva, evitando desordens, é sobretudo perma-

necer ao lado do povo. Nesse sentido, afirma: “A um príncipe pouco devem im-

portar as conspirações se é amado pelo povo; mas quando este é seu inimigo e o

odeia, deve temer tudo e todos”. E, como se fornecesse a chave de seu pensamen-

to, também diz: “Não se pode honestamente satisfazer aos grandes sem injúria pa-

ra os outros, mas o povo pode ser satisfeito. Porque o objetivo do povo é mais ho-

nesto que o dos poderosos; estes querem oprimir, e, aquele, não ser oprimido”.

A utopia de Thomas Morus

Enquanto Maquiavel analisa friamente a realidade, outros pensadores re-

fugiam-se no sonho. Nas artes, proliferam temas como “fonte de Juventa”, que as-

segura a juventude eterna, ou o “jardim das delícias”, em que todos os prazeres

são possíveis. Os pobres imaginam o “país da Cocanha”, onde há um morro de

queijo parmesão gratinado e um rio de vinho branco.

Outros projetam sociedades ideais: as utopias. O iniciador desse gênero li-

terário é Thomas Morus (1478-1535), cuja obra denomina-se Utopia (isto é, “lu-

gar nenhum”). Nela, Morus descreve a organização social de uma ilha imaginária,

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onde não há propriedade privada nem injustiças ou perseguições, especialmente a

religiosa.

Na primeira parte do livro há uma reflexão sobre a situação social e políti-

ca da Inglaterra de então. Imensas áreas agrícolas são substituídas por pastagens,

entrando num processo progressivo de desertificação. Os agricultores, expulsos de

suas terras, vêem-se obrigados a vender a um preço vil aquilo que lhes resta. E,

sem locais para plantar, não têm de onde tirar seu alimento. Assim, sem alternati-

va, entregam-se ao roubo, o que os leva diretamente à prisão e à forca. Os que

procuram trabalho nada conseguem, uma vez que tudo o que sabem fazer é arar a

terra – algo inútil numa região transformada em pastagem.

Como se pode perceber, no tempo de Thomas Morus a Inglaterra mergu-

lhara numa situação desesperadora. De um lado, havia riqueza e corrupção; de ou-

tro, escassez e pobreza. Um panorama que contrasta violentamente com o da ilha

imaginada por Morus. Ali, o povo – não por acaso composto de agricultores – vi-

ve satisfeito. Não há propriedade privada; os bens pertencem a todos. (Hitlodeu, o

narrador da história, é taxativo ao afirmar que não haverá justiça ou desenvolvi-

mento social onde existir a propriedade particular e onde tudo for medido pelo di-

nheiro). Exercido pelos mais sábios, o governo, escolhido pelos habitantes da ilha,

coloca o bem público acima de tudo. As atividades de quem exerce o poder de-

vem ter total transparência. A tal ponto que os magistrados não podem fazer reu-

niões secretas para deliberar sobre assuntos públicos. Quem desobedecer ao pre-

ceito será punido com a morte.

Triste coincidência: Morus, que chegou a ser chanceler da Inglaterra, foi

condenado à morte por discordar da política do rei Henrique VIII contra o papa.

As outras utopias

Mas não é apenas Thomas Morus que se deixa envolver pelo sonho da so-

ciedade ideal. Outros o fariam, na tentativa de escapar ao menos pela imaginação

de uma realidade política e social opressiva. O dominicano Tommaso Campanella

(1558-1639) escreveu A Cidade do Sol, de inspiração platônica – a começar pelo

título. Nessa cidade feliz, governada pelo sacerdote Metafísico, também não há a

propriedade privada; tudo é de uso comum. O egoísmo inexiste e, por isso, não há

crimes. O trabalho é mínimo – quatro horas diárias -, mas a sociedade vive com

fartura.

Campanella, acusado de heresia, participou de uma conspiração ao lado da

população pobre da Calábria e, condenado à prisão perpétua, só foi libertado me-

diante petições ao papa.

A partir do século XVI, principalmente após a descoberta do Novo Mun-

do, e dos indígenas que ali viviam, a questão do “estado de natureza” e a do “bom

selvagem” estimulam os debates a respeito da melhor forma de organizar a socie-

dade e do que os homens precisam fazer para viver felizes.

*

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O COMPORTAMENTO HUMANO NA BERLINDA

François Rabelais. (1494-1553).

A abadia de Thélème é, no mínimo, diferente. Lá, homens e mulheres di-

videm o mesmo espaço. E, no lugar dos votos de castidade, pobreza e obediência,

existem outros, opostos: casamento, riqueza e liberdade. Além disso, nessa curio-

sa abadia não há regras. Ou melhor, há apenas uma: “Faça o que quiser”.

Não, não se está diante de outra ousada inovação do Renascimento. O

mosteiro de Thélème e suas liberalidades são obra da imaginação de François Ra-

belais. Um autor que, com seu espírito satírico, chegou a propor uma filosofia, a

“pantagruelista”. Ela consistiria em “uma certa alegria de espírito, temperada no

desprezo pelas coisas fortuitas”.

O humor, como se vê, é fundamental em Rabelais, que, por contraditório

que possa parecer, conheceu bem a vida monástica. Nascido por volta de 1494, foi

franciscano e depois beneditino. Abandonando a ordem, mas não a batina, estudou

medicina e obteve grande prestígio nessa área. Mas a fama maior viria com a pu-

blicação, em 1532, de Pantagruel, que, embora condenado como obsceno pelos

doutores da Universidade de Sorbonne, tornou-se muito popular. Seguem-se Gar-

gântua, que passou a ser o primeiro da série, depois completada com o Terceiro

Livro e o Quarto Livro. Há também um Quinto Livro, mas de autoria duvidosa,

por ter sido publicado muito após a morte de Rabelais, ocorrida por volta de 1553.

A obra desse francês, apesar de sua abadia às avessas, não é propriamente

utópica. Em meio à narração de divertidas façanhas dos dois gigantes – Gargântua

e Pantagruel -, Rabelais discorre sobre questões filosóficas; descreve a paisagem,

a vegetação e a anatomia; discute temas científicos, políticos e religiosos; e de-

monstra conhecimento de línguas, sem deixar de empregar expressões populares e

palavras consideradas “inferiores”.

Mas não se trata de uma ostentação pedante de erudição: tudo é motivo de

riso e divertimento. Se os fatos narrados ocorrem em locais imaginários, as paisa-

gens, os personagens, os incidentes e as discussões são muito familiares aos leito-

res da época. Com isso, Rabelais traça um amplo painel daqueles tempos. Padres,

juízes, médicos, filósofos, cientistas, ricos, mas também camponeses e pobres –

tudo e todos – são captados por seu olhar clínico, desvendando o ridículo e o gro-

tesco de suas maneiras, sem, contudo menosprezar o que neles houver de grandio-

so. Rabelais é “moralista”, aquele que analisa os mores, isto é, os costumes e as

maneiras dos homens.

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Montaigne e a debilidade da razão

(1533-1592)

Traçar o retrato do homem é também a especialidade de Montaigne, o pen-

sador que faz filosofia como quem conversa, a um canto da casa, com uma roda

de amigos. Em vez de lidar com temas abstratos – como a honestidade, a tirania, a

vaidade – usando linguagem de difícil compreensão, ele os observa à medida que

se desenvolvem nas ações concretas do cotidiano.

Um cotidiano feito por homens “estranhos” e “absurdos”, “monstros” mas

também “milagres”, imprevisíveis e que não cessam de mudar. O homem é verda-

deiro em sua contínua mutação; equívocas são as teorias e as convenções sociais e

políticas, que pretendem aprisioná-lo em uma única imagem.

Mas Montaigne não fala sobre o homem. Examina um homem, ele mesmo,

um francês nascido em 1533 numa família burguesa, a qual havia comprado um

título de nobreza – o de Senhor de Montaigne – e que, desgostoso das obrigações

públicas a que a sua condição social impunha, retirava-se, quando podia, em seu

castelo, para estudar, refletir e escrever, vindo a falecer em 1592. Por isso, escreve

em seus Ensaios: “Estudo a mim mesmo mais do que qualquer outra coisa, e esse

estudo constitui toda a minha física e a minha metafísica”.

Esse eu estudado não é, porém, pura alma ou razão. Tem sentimentos e é

também um corpo de carne e osso. A vida desse eu não é muito grandiosa; antes, é

cheia de aspectos medíocres e insignificantes ou mesmo contraditórios, mas é vi-

da, inteira. E exatamente porque o exame do eu abre-se para todas as experiências

da vida, ele não pode se isolar do mundo: “Estudar minha vida olhando-me na dos

outros” é a que se propõe Montaigne.

Por isso, sua obra, como a de Rabelais, é um rico exame de comportamen-

tos humanos, seja de personalidades antigas, seja de sua época, pessoas ilustres ou

humildes, em seus aspectos mais variados: tristeza, mentira, medo, amizade, mor-

te, doença, hábitos de se vestir ou de comer. E, perpassando esses temas, há uma

interrogação constante mas serena, sem desespero: “O que sei?”

*

A SUPREMACIA DA LOUCURA

Erasmo de Rotterdam. (1465-1536)

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“Sou eu mesma, como vedes; sim, sou eu aquela verdadeira dispenseira de

bens, a que os latinos chamam Stultitia e os gregos, Moria”, escreve Erasmo de

Rotterdam, em Elogio da Loucura. No caso, Loucura é uma deusa que se apresen-

ta como condutora das ações humanas. O que são a amizade e o amor, o casamen-

to, a guerra ou as artes senão insanidades? “É a Loucura que forma as cidades;

graças a ela é que subsistem os governos, a religião, os conselhos, os tribunais; e é

mesmo lícito asseverar que a vida humana não passa, afinal, de uma espécie de

divertimento da Loucura.”

Todos são loucos: médicos, alquimistas, advogados, negociantes, artistas,

sábios, gramáticos, filósofos, matemáticos, astrólogos, teólogos, monges, prínci-

pes, cardeais, bispos, o papa e até os loucos propriamente ditos. Como se brincas-

se a sério, Erasmo vai retratando os tipos humanos de sua época, denunciando-

lhes a mediocridade e a hipocrisia.

A crítica maior recai sobre a Igreja, sua hierarquia e suas instituições. Que

loucura é essa que faz os teólogos discutir eternamente as sutilezas sobre o misté-

rio divino ou que, em nome de Cristo, leva a Igreja a acumular riquezas e a decla-

rar guerra aos infiéis? Para que tantos rituais, tantas cerimônias quase teatrais, se o

mandamento de Cristo é tão-somente a prática da caridade?

Com essas considerações, Erasmo propõe o retorno da Igreja à simplicida-

de dos tempos iniciais, num sentido muito próximo às pregações de Lutero que,

por essa época, iniciava a Reforma protestante. Erasmo não se liga, contudo, a es-

se movimento: prefere permanecer na Igreja Católica, servindo-lhe de consciência

crítica. É como o bobo da corte, que diz a verdade aos reis, chegando até a “insul-

tá-los, a injuriá-los, sem que esses senhores do mundo se ofendam por isso ou se

aborreçam”, pois “só aos loucos os deuses concedem o privilégio de censurar e

moralizar sem ofender a ninguém”.

Por um cristianismo humanista

Erasmo, filho natural de um padre, nasce em cerca de 1465, na cidade ho-

landesa de Rotterdam. Faz seus primeiros estudos no colégio dos Irmãos da Vida

em Comum, onde conhece a cultura clássica, sua grande paixão. Em 1488, ingres-

sa na Ordem dos Agostinianos. Ordenado padre em 1492, mas incapaz de suportar

a vida monástica, abandona-a no ano seguinte, quando é nomeado secretário do

bispo de Cambrai, na França.

Em 1495, estuda teologia na Sorbonne, em Paris. Profundamente insatis-

feito com o ensino, entra em contato com humanistas franceses e começa a escre-

ver Colóquios. Ao mesmo tempo, prossegue a redação, já iniciada, de Antibárba-

ros, dura crítica à cultura escolástica e exaltação dos valores da Antiguidade clás-

sica.

Em 1499, viaja à Inglaterra. Torna-se grande amigo de Thomas Morus e

de outros humanistas, como John Colet (1467-1519), por intermédio dos quais

conhece os textos do platonismo florentino e principalmente da teologia bíblica e

patrística. Também descobre um escrito do humanista italiano Lorenzo Valla

(1407-1457), Anotações ao Novo Testamento, e encarrega-se de sua publicação.

A leitura de Valla convence Erasmo da necessidade de fundamentar toda

consideração teológica na crítica filológica do Novo Testamento, uma vez que sua

tradução latina mais coerente – a Vulgata, de São Jerônimo – é deficiente. Desse

modo, assume a tarefa de editar, ele mesmo, o texto grego do Novo Testamento e

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de traduzi-lo adequadamente para o latim. Ao mesmo tempo, escreve Elogio da

Loucura, dedicando a obra a Thomas Morus.

Nessa época, a fama e a autoridade de Erasmo encontram-se no apogeu.

Ele mantém correspondência com todo o mundo culto da Europa, com autoridades

políticas e religiosas, e é reconhecido, por detratores e admiradores, como o maior

representante do humanismo e dos anseios por uma reforma do cristianismo.

Em 1517, porém, as discussões sobre essa reforma são abaladas por um fa-

to novo: a radicalização do movimento reformador de Lutero, acompanhada de

uma reação também violenta por parte dos adversários. Erasmo procura permane-

cer à margem da disputa entre luteranos e católicos, mas, fustigado por ambos os

lados, cada qual tentando conquistá-lo à sua causa, decide intervir em 1524. Es-

creve Sobre o Livre-Arbítrio, atacando frontalmente as concepções de Lutero e

manifestando apoio à Igreja de Roma. A cristandade, no entanto, está irremedia-

velmente cindida. Erasmo morre em 1536, em Basiléia.

A vida como espelho dos Evangelhos

Embora sacerdote, Erasmo nada tem em comum com a imagem tradicional

de monge e de padre. A vida que levou, sua vasta cultura e as atividades que de-

senvolveu assemelham-no mais aos humanistas laicos que, como ele, formulavam

as mesmas críticas à instituição eclesiástica e à teologia. Erasmo chega a denunci-

ar que a vida monástica está distante da fé. Condena o clero, que pretende mono-

polizar o conteúdo da palavra de Deus, transformando-se em um estamento sepa-

rado dos fiéis e que reduz a religião a rituais e a outras manifestações exteriores.

Com isso, ela perde seu papel de atividade ética e espiritual. Erasmo propõe uma

reforma religiosa que restaure o cristianismo primitivo e autêntico, tornando pos-

sível a todos os cristãos uma vida baseada nos Evangelhos.

Ele dá o nome de philosophia Christi (“filosofia de Cristo”) a essa propos-

ta de reforma humanista e evangélica. A expressão serve para caracterizar o cristi-

anismo como herdeiro de toda a tradição filosófica pagã, que culmina em uma fi-

losofia, uma ética e uma forma de vida claramente formuladas por Cristo nos E-

vangelhos, e não em uma teologia dogmática e especulativa. Ser cristão é, assim,

esforçar-se em imitar Cristo na vida cotidiana e nas relações entre os homens; é

uma ética cujos princípios básicos são a caridade e o amor ao próximo.

Todos os traços que caracterizam o cristianismo medieval tornam-se se-

cundários: o retiro do mundo, os votos e a vida monástica, a religião exterior (que

ostenta a abstinência, a peregrinação, as bulas e as liturgias) e a formulação abs-

trata, inacessível, de artigos de fé. Erasmo também ataca os costumes dos mem-

bros da hierarquia eclesiástica, desde o papa até o último padre, como contrários

aos Evangelhos. A philosofia Christi, contra tudo isso, é uma religião de piedade e

de devoção interior.

Como o humanismo, a philosophia Christi também pressupõe uma con-

cepção otimista de Deus, do homem e da relação entre ambos. Deus é bondoso;

sua benevolência se mostra em Cristo e na graça que concede. Tal graça pode ser

propiciada pelas boas obras: é a prática evangélica, que todos podem realizar por

livre vontade, pois o homem é dotado de uma bondade natural. E isso se aplica

não apenas aos fiéis, mas também a todos os verdadeiramente filantropos. Os

cumpridores do preceito evangélico “amai-vos uns aos outros” devem ser conside-

rados cristãos de espírito, ainda que não tenham formalmente recebido o batismo.

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2 - REFORMA E CONTRA-REFORMA

O INÍCIO DA CONTESTAÇÃO

Livro: História da Filosofia. Os Pensadores.

Mergulhada em discussões teológicas, em cerimônias complexas e ostenta-

tórias, em exemplos de vida nada edificantes, cada vez mais afastado do povo, a

Igreja perde o rumo. Já não controla mais os reis, os fiéis aderem a movimentos

reformadores que pregam a desobediência, e, quando a própria Igreja procura se

reformar, já é tarde: a unidade do cristianismo está irremediavelmente perdida.

A idéia de reformar o cristianismo e os movimentos dissidentes que dela

resultam não é nova. Faz parte da história da Igreja. Mas foi a partir do Cisma do

Ocidente, nos séculos XIV e XV, quando foi colocada em questão a autoridade do

papa, que a desagregação da Igreja acentuou-se.

Na Inglaterra, John Wyclif (c. 1320-1384), teólogo de Oxford, vê no Cis-

ma do Ocidente (O Grande Cisma do Ocidente ou simplesmente Grande Cisma foi uma ruptura

que ocorreu na Igreja Católica de 1378 a 1417. As motivações deste cisma não foram de ordem

teológica mas sim política, resultado do fim do Papado de Avignon. O cisma terminou décadas

mais tarde no Concílio de Constança de 1414, com o papado restabelecido em Roma.) a ocasião

para a Igreja se livrar do papa. Considera absurda a pretensa supremacia do papa-

do sobre o poder temporal e chega a questionar sua ascendência também no terre-

no espiritual. Investe contra a hierarquia eclesiástica, considerando que a Igreja é

antes de tudo a assembléia invisível dos cristãos e não os diferentes níveis de po-

der dos padres, dos bispos e do papa, visíveis até em suas vestes.

Influenciado por essas idéias, o padre João Huss (1369-1415), da Boêmia,

também critica a hierarquia da Igreja, considerando o papado uma instituição hu-

mana. Excomungado, procura defender-se no Concílio de Constança, mas, conde-

nado, juntamente com a doutrina de Wyclif, é queimado vivo.

É preciso resistir à opressão

Esses movimentos, cujas idéias seriam retomadas pela Reforma protestan-

te, representam o anseio dos cristãos por uma participação mais ativa na vida reli-

giosa, a começar pelo acesso à leitura da Bíblia, até então só disponível em latim.

São também a maneira como se manifestam certos interesses políticos. Wyclif, no

início, recebe o apoio da Coroa inglesa, pois suas críticas ao papado prestam-se à

afirmação da autoridade do rei contra as pretensões da Igreja de controlar o poder

temporal. A separação entre a monarquia inglesa e o papado é consumada no sé-

culo XVI, por meio de um sutil subterfúgio: o divórcio do rei Henrique VIII, que

em seguida se casa com Ana Bolena. Excomungado em 1534, o rei logo se faz

proclamar chefe de uma nova Igreja, a anglicana, que, no entanto, pouco alteraria

os dogmas e os rituais católicos.

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O sentimento de emancipação nacional também anima os seguidores de

Huss. Logo após a execução deste, eles se revoltam contra o papado e o domínio

imperial, e conseguem a adoção de sua seita como religião oficial da Boêmia. Mas

a ala radical dos hussitas vai mais longe. Prega não apenas a reforma religiosa e a

emancipação nacional, mas também a transformação de toda a sociedade. Do

mesmo modo, na Inglaterra, as pregações de Wyclif motivam, em 1381, uma re-

belião dos camponeses de Essex. Só então a Coroa inglesa deixa de sustentar suas

doutrinas, a fim de obter apoio da Igreja à repressão ao movimento.

Esses exemplos revelam outra dimensão das doutrinas de Wyclif e Huss.

O retorno à mensagem simples do Evangelho, o fim da hierarquia, maior partici-

pação dos leigos, são ideais reformadores que liberam os desejos de justiça, igual-

dade e liberdade. E, com isso, surge uma nova noção: a do direito à resistência

contra a dominação e a opressão.

*

A REBELIÃO DE MARTINHO LUTERO

(1483-1546)

“Por que o papa não deixa vazio o purgatório num ato de santíssima cari-

dade (...), se com o funesto dinheiro destinado à construção da Basílica de Roma

(...) redime infinitas almas?”

O violento ataque de Martinho Lutero consta das suas 95 Teses, que afixou

à porta da igreja da cidade alemã de Wittenberg, em 1517. O alvo da crítica é ba-

sicamente a venda de indulgências – que livrariam os fiéis das penas do purgató-

rio – para arrecadar os fundos da construção da Basílica de São Pedro.

Embora o ponto de partida da Reforma seja a denúncia desses abusos da

Igreja, a divergência é mais profunda, como atestam as palavras de Lutero: “Que

crimes, que escândalos, que fornicações, estas bebedeiras, esta paixão pelo jogo,

todos estes vícios do clero! (...) São escândalos muito graves (...). (...) Mas, ai!, há

outro mal, outra peste, incomparavelmente mais malfazeja e mais cruel: o silêncio

organizado quanto à Palavra da Verdade, ou a sua adulteração (...)”.

Na verdade, ele insiste na questão dos abusos porque esse é o meio mais

eficaz de impressionar o público e conquistar sua adesão. Ganhar adeptos, para

Lutero, é crucial. Não apenas para fortalecer sua posição, mas principalmente

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porque levar a “palavra da verdade” a todos é a própria função do padre, como o é

transformar todos os homens em sacerdotes, pois a vida religiosa depende unica-

mente da consciência de cada um. Segundo essa concepção de “sacerdócio uni-

versal”, a hierarquia da Igreja deve ser abolida não tanto por cometer abusos, mas

porque não há intermediários entre o homem e Deus.

A Alemanha é um palco propício para a propagação das idéias de Lutero.

Embora pertença formalmente ao Sacro Império Romano-Germânico, ela é um

mosaico de Estados e cidades que buscam afirmar sua soberania. Isso se traduz

também nos anseios de rompimento com o papado, que cobra cada vez mais tribu-

tos desses Estados. Neles, os cavaleiros (representantes da pequena nobreza) o-

põem-se aos grandes proprietários, cuja maioria é formada por membros da Igreja.

Por fim, na parte mais baixa da hierarquia social, os camponeses ainda se encon-

tram submetidos aos laços medievais de servidão, que lhes impõem pesadas obri-

gações.

Nesse ambiente, as propostas de Lutero pelo sacerdócio universal dão

forma e expressão aos diversos anseios que se entrecruzam na sociedade alemã.

Não que sua pregação fosse mero disfarce de interesses políticos, sociais e eco-

nômicos. A Reforma é fundamentalmente de natureza religiosa, e o que leva Lute-

ro às suas obstinadas pregações são as questões da fé e da salvação.

O servo-arbítrio

Martinho Lutero nasce em 1483, em Eisleben, na Turíngia. Estuda na Uni-

versidade de Erfurt e, em 1505, ingressa na Ordem dos Agostinianos. Ordenado

padre em 1507, tempos depois passa a lecionar na Universidade de Wittenberg.

Ali conhece Karlsdadt, com quem formula os primeiros elementos da teologia da

Reforma.

Quando, a 31 de outubro de 1517, expõe publicamente suas idéias, nas 95

Teses, ainda não pensa em se separar da Igreja de Roma. Os acontecimentos, po-

rém, tornam inevitável o rompimento. Suas teses passam a ser amplamente discu-

tidas e Lutero radicaliza suas posições. Em 1520, queima em público a bula papal

que o ameaçava de excomunhão – o que se consumaria no ano seguinte. Ainda em

1521, a Dieta de Worms decreta-lhe o banimento do Império, mas Lutero, prote-

gido pelo príncipe Frederico da Saxônia, refugia-se no castelo de Wartburg.

O retiro dura pouco: em 1522, ele volta a Wittenberg para combater e ex-

pulsar Karlsdadt e seus seguidores. Contra esses “agitadores” argumenta que a fé

diz respeito à vida interior e que, em relação às autoridades constituídas, o homem

deve obediência e submissão – concepção que iria desenvolver com maior vee-

mência quando das guerras camponesas. A Reforma mal se iniciava e já tinha a

sua cisão.

Mas Lutero, ele mesmo, ousou desafiar uma das mais tradicionais autori-

dades constituídas, ao conclamar os cavaleiros a confiscar as propriedades da I-

greja. Por trás dessa contradição encontra-se, na realidade, o principal elemento da

teologia luterana. Agostiniano, Lutero exacerba a doutrina de Agostinho, segundo

a qual o homem só se salva mediante a graça divina, concedida apenas aos eleitos.

No caso de Agostinho, resta ao homem um pouco de liberdade (mesmo que seja a

de pecar), mas em Lutero sua ausência é completa.

O servo-arbítrio – expressão que dá título à obra de Lutero que, em 1525,

refuta violentamente a crítica a ele formulada por Erasmo em Sobre o Livre-

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Arbítrio – faz com que a salvação não dependa das ações do homem. Mais do que

isso, buscar a salvação mediante a prática de boas ações é pecar, pois transfere

presunçosamente para o âmbito humano o que cabe somente a Deus. Por isso a

venda das indulgências é escandalosa. Os papas negociam com um poder que não

lhes pertence. E, se só Deus salva, para que servem os papas e a hierarquia da I-

greja?

Com essa concepção pessimista, tão oposta à do humanismo, Lutero for-

mula a doutrina da justificação pela fé: o homem não se justifica por seus atos,

sempre exteriores, mas unicamente pela fé, ele deve esperar pela graça divina.

Nisso consiste a liberdade do cristão.

Quando Lutero morre, em 1546, sua doutrina já havia conquistado grande

parte da Alemanha. O ponto de partida dessa difusão foi a desobediência, em

1529, de seis príncipes e catorze cidades alemãs, que protestaram (daí o nome de

protestantes) contra a decisão do Império de reiterar o banimento de Lutero. A ali-

ança entre príncipes e Lutero estava selada.

Desde então, a história do luteranismo é a de conflitos com católicos e

com outras seitas reformadoras. Até no interior do próprio movimento luterano os

problemas se agudizam. Sua institucionalização, com o estabelecimento de uma

rígida doutrina, constitui uma Igreja oficial, do Estado, que, pela fórmula cuius

régio, eius religio (“a quem governa o país cabe impor a religião”), obriga todos

os súditos a seguir o culto. O ideal da Igreja invisível, unida unicamente pela fé,

convertia-se em seu oposto.

Münzer e o poder do povo

O individualismo religioso de Lutero é uma reação ao forte enraizamento

social da Igreja, que progressivamente foi adotando padrões mundanos de organi-

zação. Isso, em certo sentido, explica-se pelas necessidades políticas do papado,

que passa a ressaltar os rituais e as aparências em detrimento do conteúdo sobre-

natural da religião. A crítica de Lutero contém uma nostalgia das comunidades

cristãs primitivas, que interpretada por seus seguidores, resultaria logo em confli-

tos de ordem política, dada a estreita relação entre o poder temporal e o religioso,

característica comum na época.

Com Karlstadt (c. 1480-1541), companheiro de Lutero na Universidade de

Wittenberg, a contestação religiosa transforma-se em desobediência política e em

tumultos generalizados, só contidos pela intervenção direta do próprio Lutero, que

condena qualquer tentativa de modificar a ordem estabelecida.

Thomas Münzer – (1489-1525)

As insurreições, no entanto, eclodem por todos os lados. Thomas Münzer

(c. 1489-1525) prega o rompimento com os valores deste mundo para nele instau-

rar, aqui e agora, o reino de Deus. Isso se manifesta na recusa ao batismo das cri-

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anças (anabatismo), liberando-as de quaisquer compromissos, religiosos ou civis,

com a ordem existente. Para Münzer, a insurreição contra os ricos e poderosos,

que ocultam o verdadeiro significado do Evangelho, é um direito legítimo e sa-

grado.

Essas idéias revolucionárias desembocam, em 1525, nas chamadas guerras

camponesas, principalmente nas regiões da Saxônia e da Turíngia. Nelas, os cam-

poneses levantam-se não só contra a hierarquia da Igreja, mas também pelo fim da

opressão e da servidão, e chegam a tomar o poder em várias cidades. Mas Lutero

intervém novamente, exortando os nobres alemães à repressão: “Aqueles que têm

condições devem abater, matar e apunhalar (...), lembrando-se de que não há nada

mais venenoso, pernicioso e diabólico do que um sedicioso”.

Münzer foi preso, torturado e executado. A Reforma luterana seguiu os

caminhos que haviam criticado, tornando-se uma igreja institucionalizada, aliada

dos poderosos dos Estados alemães que a adotaram. Mas a via escolhida por

Münzer também florescia em esperanças, continuamente frustradas, e, no entanto,

sempre renovadas. Pois ele prometera: “O Povo será livre e somente Deus reinará

sobre ele”.

INTOLERÂNCIA E RIQUEZA EM NOME DE DEUS

João Calvino – (1509-1564)

João Calvino (1509-1564) leva às últimas conseqüências a doutrina lutera-

na do servo-arbítrio – e por isso mesmo afasta-se de Lutero – ao elaborar a teoria

da predestinação. Para ele, o homem está predestinado, antes mesmo da criação

do mundo. Ninguém pode auxiliá-lo: Igreja, sacramentos, sacerdotes, teólogos, in-

térpretes da Palavra. Nem mesmo a Palavra, pois só aos eleitos é dado compreen-

dê-la. Deus, cujos desígnios são insondáveis, é, por isso, inatingível.

Assim, são inúteis as instituições religiosas e os sacramentos, alguns dos

quais Lutero havia preservado. A divergência maior situa-se em relação à eucaris-

tia. Calvino, assim como Zwínglio (Huldrych Zwingli, mais conhecido por nós como Hul-

rico Zwínglio, nasceu em 01 de Janeiro de 1484, em Wildhaus, na Suíça. Seu pai era fazendeiro e

juiz. Zwínglio foi educado na Universidade de Viena, Berne e Basiléia sob os pés de grandes hu-

manistas. Em 1506 foi ordenado sacerdote e começou a estudar os escritos do humanista Erasmo.

Em 1515 mudou-se para Einsiedeln onde viu práticas erradas vindas de Roma, como a venda das

indulgências.), que o precedeu, considera, ao contrário de Lutero, que a presença do

corpo e do sangue de Cristo no sacramento do pão e do vinho é apenas simbólica.

Ao negar a realidade efetiva da eucaristia, Calvino expurga da religião o

que, a seus olhos, ainda persiste de magia e superstição, que muitos acreditam

meios de salvação. Também recusa a experiência mística, pela qual o homem en-

traria em comunhão com Deus. Para ele, Deus é a absoluta transcendência, ina-

cessível à razão e ao sentimento humanos.

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Com base nessas concepções, Calvino, instalado em Genebra, na Suíça,

transforma essa cidade na “Roma dos protestantes”. Dali partem incansáveis pre-

gadores para todos os cantos da Europa, inspirando o surgimento, por exemplo, do

presbiterianismo, fundado por John Knox (1505-1572), na Escócia, e de várias

seitas puritanas, na Inglaterra.

Mas Genebra é também a “Roma dos protestantes” porque é ali que Calvi-

no organiza a vida civil e política de acordo com a sua doutrina. Se Lutero reco-

mendava obediência ao poder constituído, com Calvino é a própria Igreja refor-

mada que se transforma em autoridade, não só religiosa como também política.

À primeira vista, parece estranho que uma teologia que isola o homem na

sua solidão tenha se prestado a organizar uma cidade. Isso, porém, é a conseqüên-

cia lógica da doutrina de Calvino. Para ele, o que está em questão não é a salva-

ção, uma vez que todos estão desde sempre ou eleitos ou condenados, mas a glori-

ficação de Deus, que não deve se restringir a um grupo de “especialistas”, confi-

nados em mosteiros. Se Calvino é contra a vida monástica é porque esta não deve

ser exclusividade de alguns, mas o cotidiano de todos, mesmo dos predestinados à

condenação. O ideal de sacerdócio universal chega ao limite: a sociedade inteira

deve ser um grande mosteiro.

A rigidez do Estado eclesiástico

Calvino nasce em Noyon, na região da Picardia, França, e estuda no colé-

gio Montaigu, de Paris. Estudou Direito em Orléans e em Bourges, época em que

adere às idéias da Reforma. Perseguido por tornar pública essa adesão, refugia-se

em Basiléia, Suíça, onde publica a primeira versão de sua obra principal, A Insti-

tuição de Religião Cristã.

Assume a liderança da Reforma suíça depois da morte de Ulrich Zwínglio

(1484-1531), pregador de Zurique e líder reformista. Em 1541, formula as Orde-

nanças Eclesiásticas, que servem como modelo para a organização sócio-política

de Genebra. Por esse documento, todos os cidadãos são obrigados a jurar fidelida-

de à Igreja reformada. O governo torna-se político-religioso.

De certa maneira, isso contraria outras correntes reformadoras, que pregam

a separação entre Estado e Igreja. Para Calvino, porém, controlar o poder civil por

meio de preceitos rigorosos de conduta moral e religiosa – como a proibição da

dança, do teatro e de jogos de azar – é passo fundamental no caminho que leva à

glorificação de Deus. A intolerância calvinista é enorme, e não poupa nem mesmo

os não-fiéis. Condena à morte, pela fogueira, os adversários.

Da religião ao capitalismo

Pelo calvinismo, cada homem deve executar seus afazeres – não apenas os

religiosos – de modo laborioso, para a glória de Deus, de quem é um instrumento.

Não se trata de buscar a salvação pelo trabalho, nem de realizar uma “contabilida-

de” em que um pecado pode ser redimido por um certo número de boas ações.

Tampouco se permite um “relaxamento” para compensar uma obra bem realizada.

A glorificação de Deus deve ser uma atividade permanente, sistemática e metódi-

ca – termo que, por sinal, daria nome à Igreja Metodista, fundada por John Wes-

ley (1703-1791), na Inglaterra.

Mas há quem trabalhe sistematicamente e seja bem-sucedido; outros não.

Para Calvino, isso deve ser sinal de que o bem-sucedido é um dos eleitos, pois é

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por intermédio destes que Deus se glorifica melhor. O trabalho não é a causa da

salvação, mas, se um homem se torna rico pelo trabalho, é porque a riqueza con-

quistada é um indício – mas não a certeza – da sua salvação. Deve-se evitar so-

mente o mau uso da riqueza, como o consumo perdulário, que afasta o homem do

trabalho.

Na prática, porém, a doutrina e Calvino seria entendida como permissão

para a busca da riqueza, em nome da glória de Deus. Esse dado, juntamente com a

restrição ao consumo, levaria à acumulação capitalista, como analisa Max Weber

em A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. “As restrições impostas ao

uso da riqueza adquirida só poderiam levar a seu uso produtivo como investimen-

to do capital”, escreve ele. Por outro lado, o “poder da ascese religiosa (...) punha

à sua disposição [do empreendedor burguês] trabalhadores sóbrios, conscientes e

incomparavelmente industriosos, que se aferraram ao trabalho como a uma finali-

dade de vida desejada por Deus. Dava-lhe, além disso, a tranqüilizadora garantia

de que a desigual distribuição da riqueza deste mundo era obra especial da Divina

Providência, que, com essas diferenças, e com a graça particular, perseguia seus

fins secretos, desconhecidos do homem”.

De um lado, a riqueza acumulada, que só pode ser empregada como capital

produtivo; de outro, o trabalhador dócil e resignado com a sua condição. A união

desses dois elementos, além da exigência da organização metódica e racional do

trabalho, acaba por levar ao capitalismo, que já se insinuava nas entrelinhas do

calvinismo e de outras doutrinas protestantes.

*

A REAÇÃO CATÓLICA

“Estar pronto para obedecer com mente e coração, deixando de lado todo

julgamento próprio, à verdadeira esposa de Jesus Cristo, nossa santa mãe, nossa

mestra infalível e ortodoxa, a Igreja Católica, cuja autoridade é exercida pela hie-

rarquia.”

Essa é a regra básica da Companhia de Jesus, fundada por Inácio de Loyo-

la (c. 1491-1556), e exprime a reação da Igreja Católica aos movimentos reforma-

dores. Mas a Companhia de Jesus não se limita a declarar a obediência irrestrita à

hierarquia eclesiástica. Também assimila a crítica dos reformadores quanto ao

despreparo do clero para levar a mensagem de Cristo aos fiéis, e passa a ministrar

uma sólida formação religiosa e teológica aos que ingressam na ordem.

Isso porque a principal missão desses soldados espirituais de Cristo é fazer

a pregação: Francisco Xavier parte para o Oriente, chegando até o Japão; Manuel

de Nóbrega e José de Anchieta vêm à colônia portuguesa do Brasil, enquanto ou-

tros jesuítas fundam várias missões nos domínios espanhóis da América do Sul

para organizar e catequizar os índios. Na Europa, os jesuítas contribuem para re-

conduzir várias regiões ao catolicismo.

Além dos jesuítas, outros setores da Igreja também participam desse mo-

vimento de revitalização católica. Desde os séculos XIV e XV proliferam as con-

frarias e as congregações, em que padres se misturam aos leigos para levar uma

vida religiosa em comum. A mais famosa delas se chama, por sinal, Irmãos da

Vida em Comum, e abandona o uso do latim na leitura da Bíblia, bem como nas

pregações.

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As próprias ordens religiosas também procuram se reformar, reforçando a

disciplina e voltando-se aos leigos pela prática da caridade e do ensino. Desse

modo, antigas ordens subdividem-se, dando origem a novas: um setor dos francis-

canos adota o nome de capuchinhos; na Espanha, Santa Tereza de Ávila (1515-

1582) e São João da Cruz (1542-1591) empreendem a reforma da ordem a que

pertenciam, fundando a Ordem dos Carmelitas Descalços.

O rigor do Concílio de Trento

Essa busca de reformar internamente o catolicismo, que ficaria conhecida

como Contra-Reforma, culmina com a convocação, em 1545, do Concílio de

Trento. De certo modo, essa foi a resposta do papado às incômodas propostas de

Lutero por um “concílio livre”, em que todos - protestantes e católicos, leigos ou

não – teriam o direito de voto. Nesse sentido, apesar de ter como objetivo declara-

do a unificação do cristianismo, o significado do Concílio de Trento é literalmente

a “contra-Reforma”, isto é, o enrijecimento da Igreja Católica contra os protestan-

tes.

De fato, o concílio – que se estenderia até 1563, com várias interrupções –

reafirma todos os sacramentos e dogmas ridicularizados pelo protestantismo. Con-

serva a crença na existência do purgatório, a proibição do casamento dos padres, a

devoção aos santos e às relíquias. A autoridade infalível do papa é mantida, assim

como o valor da tradição dos santos padres na interpretação da Bíblia.

Esse endurecimento também se verifica na instituição da Congregação do

Santo Ofício, que passa a centralizar as atividades da Inquisição, reprimindo não

só os protestantes, mas também a livre manifestação do humanismo renascentista.

Além disso, o Concílio de Trento cria a Sagrada Congregação do Índice, encarre-

gada de elaborar o Index Librorum Prohibitorum, um catálogo (ou “índice”) de

obras condenadas pela Igreja como contrárias à sua doutrina. Aos rigores dos cen-

sores não escaparia nem mesmo a defesa da fé católica professada por Erasmo de

Rotterdam.

Não que o Concílio de Trento tenha apenas adotado medidas restritivas e

repressoras. Se a interpretação da palavra divina permanece um encargo exclusivo

dos doutores da Igreja, e se a única versão autorizada da Bíblia continua a ser a

Vulgata de São Jerônimo, o concílio também percebe que, para se pôr frente à o-

fensiva protestante, os sacerdotes católicos precisam aprender a pregar. Para isso,

tomam-se várias medidas. A residência fixa dos padres e bispos torna-se obrigató-

ria, para que tenham contato mais íntimo com a comunidade dos fiéis. Criam-se

seminários em cada diocese, para melhor preparo dos sacerdotes. Publicam-se vá-

rios catecismos que complementam a missão de levar a mensagem evangélica aos

leigos.

Essa mensagem opõe-se radicalmente à dos protestantes. Contra a doutrina

do servo-arbítrio (Lutero) ou da predestinação (Calvino), o que o Concílio de

Trento promete é a salvação mediante a prática de boas obras, que dependem do

livre-arbítrio do homem. Em meio à intolerância extremada, a Igreja Católica, pa-

radoxalmente, passou, desse modo, a promover a “liberdade” do homem. Fixou-

lhe os limites, no entanto, no dogma religioso.

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ÉPOCA DE TRANSIÇÃO

AS LUTAS DA REFORMA

Livro: A Caminho da Luz. (Emmanuel)

Debalde a Dieta de Worms, em 1521, condenara Lutero como herege, le-

vando-o a refugiar-se em Wartburgo, porque as suas idéias libertárias acenderam

uma nova luz, propagando-se com a rapidez de um incêndio.

A Igreja começou a sofrer os golpes mais fortes e mais dolorosos, porque

alguns príncipes ambiciosos se aproveitaram do movimento das massas, confis-

cando-lhe bens preciosos. Numerosos camponeses, empolgados pelos direitos do

pensamento livre, iniciaram grande campanha contra a Igreja usurpadora, exigin-

do reformas agrárias e sociais, em nome do Evangelho.

De 1521 a 1555, os centros cultos europeus viveram momentos de angus-

tiosas expectativas nos bastidores da tragédia religiosa, mas, depois da Concordata

de Augsburgo, instituiu-se um regime da mais larga tolerância recíproca.

O direito do exame livre, porém, dividiu a Reforma em vários departamen-

tos religiosos, de acordo com a orientação pessoal de seus pregadores, ou das

conveniências políticas do meio em que viviam. Na Alemanha era o Protestantis-

mo, com os partidários dos princípios de Martinho Lutero; na Suíça e na França

era o Calvinismo e, na Escócia, a Igreja Presbiteriana. Na Inglaterra, a questão

veio a tornar-se mais grave. Henrique VIII, defensor extremado da fé católica, a

princípio, por conveniência de caprichos pessoais tornou-se o chefe do poder polí-

tico, assumindo a direção da Igreja Anglicana. Na França, os huguenotes (nome da-

do aos protestantes franceses durante as Guerras de Religião) se encontravam muito bem or-

ganizados, mas surgem as complicações de natureza política, e o gênio despótico

de Catarina de Médicis ordena a matança de São Bartolomeu, no intuito de elimi-

nar o almirante Coligny. O movimento sinistro, que durou 48 horas, começou em

24 de agosto de 1572, sofrendo a "Reforma" um dos seus mais amargos reveses.

Somente em Paris e subúrbios, foram eliminadas três mil pessoas.

Os mensageiros do Cristo deploram tão dolorosos acontecimentos, traba-

lhando por despertar a consciência geral, arrancando-a daquela alucinação de

morticínio e sangue, mas precisamos considerar que cada homem, como cada co-

letividade, pode cumprir seus deveres ou agravar suas responsabilidades próprias,

na esfera de sua liberdade relativa.

A INVENCÍVEL ARMADA

As lutas na Europa, em todo o século XVI, longe de colimar um fim, dila-

tavam-se em guerras tenebrosas, mergulhando os povos do Velho Mundo num ter-

rível círculo vicioso de reencarnações e resgates dolorosos.

Como se não bastassem as guerras religiosas, que trabalhavam o organis-

mo europeu desde muitos anos, surge a figura de um príncipe fanático e cruel, na

poderosa Espanha de então, complicando a existência política das coletividades

européias. As lutas de Filipe II, sucessor de Carlos V, prendiam-se, de algum mo-

do, aos problemas da Reforma protestante; mas, acima de tudo, colocava ele a sua

ambição e o seu despotismo. Animado com as vitórias sobre os turcos e os mu-

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çulmanos, procurou reprimir a liberdade política dos Países Baixos, encontrando a

mais heróica resistência. Suas atividades maléficas, mascaradas com a defesa do

Catolicismo, espalhavam-se por toda a parte, obrigando o plano espiritual a coi-

bir-lhe os imensuráveis abusos do poder. Foi assim que, havendo organizado a In-

vencível Armada, no ano de 1588, composta de mais de uma centena de navios

equipados com 2.000 canhões e 35.000 homens, a fim de atacar a Inglaterra sem

motivo que justificasse semelhante agressão, viu essa poderosa esquadra destruída

totalmente por uma tempestade aniquiladora. De conformidade com as providên-

cias do plano invisível, apenas aportaram às costas inglesas os espíritos pacíficos,

compelidos pela força a participarem da armada destruída, e que foram lá recebi-

dos generosamente, encontrando uma nova pátria.

Se Henrique VIII havia errado como homem, o povo inglês estava prepa-

rado para o cumprimento de uma grande missão, e ao mundo espiritual competia

trabalhar pela preservação dos seus patrimônios de liberdade política.

GUERRAS RELIGIOSAS

A Europa, não obstante o amparo e a assistência dos abnegados mensagei-

ros do Cristo, transportou-se ao século XVII no meio de lutas espantosas, agora

agravadas com as tenebrosas criações do Tribunal da Penitência. Quase se pode

afirmar que os únicos jesuítas dignos do nome de sacerdotes de Jesus foram aque-

les que vieram para as regiões desconhecidas da América, no cumprimento dos

mais nobres deveres de fraternidade humana, porque a quase totalidade da Com-

panhia, no Velho Mundo, mergulhou num oceano de tricas políticas, muitas vezes

rematadas em tragédias criminosas.

As guerras de natureza religiosa estavam longe de terminar, dada a rebel-

dia de todos os elementos, e foi com penosos esforços que os emissários do Alto

conduziram as coletividades européias ao Tratado de Westphalia, em 1648, conso-

lidando as vitórias do protestantismo, em face das imposições injustificáveis do

jesuitismo.

A FRANÇA E A INGLATERRA

A esse tempo, a França já se encontrava preparada para o cumprimento da

sua grande missão junto dos povos, e, sob a influência do plano invisível, cria-

vam-se os serviços benéficos da diplomacia. Nos bastidores da sua política admi-

nistrativa, firmavam-se os princípios do absolutismo no trono, mas a sua grande

alma coletiva, cheia de sentimento e generosidade, já vislumbrava o precioso es-

forço que lhe competia no porvir. Ao seu lado, a Grã-Bretanha caminhava, a pas-

sos largos, para as mais nobres conquistas humanas. Extinta, em 1603, a dinastia

dos Túdores, eleva-se ao trono o rei da Escócia, Jaime I. Desejando reviver os

princípios absolutistas, o descendente dos Stuarts inaugurou um período de nefas-

tas perseguições, o qual foi intensificado por seu filho Carlos I, cujas disposições

políticas se constituíam das mais avançadas tendências para a tirania. Rompendo

com o Parlamento e dissolvendo-o, vezes consecutivas, viu o povo da capital in-

glesa de armas na mão, em defesa dos seus representantes, ensejando uma guerra

civil que durou vários anos e só terminada com a ação de Cromwell, que, de acor-

do com o Parlamento, estabelece a República da qual se torna o "Lorde Protetor".

Cromwell era um espírito valoroso, mas, embriagado com o vinho sinistro do des-

potismo, foi também um ditador vingativo, fanático e cruel. Depois da sua morte,

em face da incapacidade política do filho, verifica-se a restauração do trono com

os Stuarts. O governo destes teria, porém, pouca duração, porque os ingleses, des-

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gostosos com a administração de Jaime II, e no seu tradicional amor à liberdade,

chamam Guilherme de Orange ao poder. O Parlamento redige a famosa declara-

ção de direitos, definindo a emancipação do povo e limitando os poderes reais, e-

levando-se ao trono Guilherme III com a revolução de 1688. A Inglaterra havia

cumprido um dos seus mais nobres deveres, consolidando as fórmulas do parla-

mentarismo, porque assim todas as classes eram chamadas à cooperação e fiscali-

zação dos governos.

REFÚGIO DA AMÉRICA

Considerando o movimento das responsabilidades gerais e isoladas, o pla-

no invisível, sob a orientação de Jesus, conduzia para a América todos os Espíri-

tos sinceros e trabalhadores, que não necessitassem de reencarnações ao mundo

europeu, onde indivíduos e coletividades se prendiam, cada vez mais, na cadeia

das existências de provações expiatórias.

Para o hemisfério do Novo Mundo afluíam todas as entidades conclama-

das à organização do progresso futuro. Muitas dessas personalidades haviam ad-

quirido o senso da fraternidade e da paz, depois de muitas lutas no antigo conti-

nente. Exaustas de procurar a felicidade nos limites estreitos dos sentimentos ex-

clusivistas, sentiam no íntimo as generosas florações de reformas edificantes,

compreendendo a verdadeira solidariedade, na comunidade universal. Foi por essa

razão que, desde os seus primórdios, as organizações políticas do continente ame-

ricano se tornaram, baluartes de paz e de fraternidade para o orbe inteiro. É que a

permanência no seu solo e nas luzes ocultas do seu clima social era considerada

por todos os Espíritos como uma bênção de Deus, em face das sucessivas inquie-

tações européias.

OS ENCICLOPEDISTAS

O século XVIII iniciou-se entre lutas igualmente renovadoras, mas eleva-

dos Espíritos da Filosofia e da Ciência, reencarnados particularmente na França,

iam combater os erros da sociedade e da política, fazendo soçobrar os princípios

do direito divino, em nome do qual se cometiam todas as barbaridades.

Vamos encontrar nessa plêiade de reformadores os vultos veneráveis de

Voltaire, Montesquieu, Rousseau, D'Alembert, Diderot, Quesnay. Suas lições ge-

nerosas repercutem na América do Norte, como em todo o mundo. Entre cintila-

ções do sentimento e do gênio, foram eles os instrumentos ativos do mundo espiri-

tual, para regeneração das coletividades terrestres. Historiadores há que, numa ca-

racterística mania de sensacionalismo, não se pejam de vir a público asseverar que

esses espíritos estudiosos e sábios se encontravam a soldo de Catarina II da Rús-

sia, e dos príncipes da Prússia, contra a integridade da França; mas, semelhantes

afirmativas representam injúrias caluniosas que apenas afetam os que as proferem,

porque foi dos sacrifícios desses corações generosos que se fez a fagulha divina

do pensamento e da liberdade, substância de todas as conquistas sociais de que se

orgulham os povos modernos.

A INDEPENDÊNCIA AMERICANA

As idéias nobilitantes dos autores da Enciclopédia e das novas teorias so-

ciais haviam encontrado o mais franco acolhimento nas colônias inglesas da Amé-

rica do Norte, organizadas e educadas no espírito de liberdade da pátria do parla-

mentarismo.

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O mundo invisível aproveita, desse modo, a grande oportunidade, delibe-

rando executar nas terras novas os grandes princípios democráticos pregados pe-

los filósofos e pensadores do século XVIII. E enquanto a Inglaterra desrespeita,

para com as suas colônias, o grande princípio por ela própria firmado, de que

''ninguém deve pagar contribuições sem as ter votado", os americanos resolvem

proclamar a sua independência política. Depois de alguns incidentes com a metró-

pole, celebram a sua emancipação em 4 de julho de 1776, organizando-se, poste-

riormente, a Constituição de Filadélfia, modelo dos códigos democráticos do por-

vir.

*

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3 - A FILOSOFIA MODERNA

A REORGANIZAÇÃO DA EUROPA

Livro: História da Filosofia. Os Pensadores

Conflitos religiosos, Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), o princípio cu-

ius régio eius religio estendido a todos os países... A França reduz o Império qua-

se à condição de um Estado a mais, entre tantos outros... A Suécia, protestante,

surge como uma nova potência, enquanto a Holanda e a Suíça são reconhecidas

como Estados independentes e soberanos.

Há um novo equilíbrio na Europa. E ele representa, sobretudo, a consoli-

dação da burguesia. A Holanda torna-se uma poderosa república de burgueses

comerciantes e financistas, que organizam sólidas empresas – a Companhia das

Índias Orientais e Companhia das Índias Ocidentais – que, após a decadência da

Espanha, passam a monopolizar o comércio marítimo.

Contra esse poderio holandês, a Inglaterra, em plena revolução iniciada em

1640, promulga o Ato de Navegação (1651), proibindo o transporte de importa-

ções inglesas em navios que não sejam seus ou de países produtores. É um indício

do capitalismo na Inglaterra: a burguesia lança as bases da indústria moderna, en-

quanto setores da nobreza se aburguesam, passando a explorar as terras de modo

capitalista.

Na França, a burguesia associa-se à Coroa, que busca se fortalecer e con-

centrar o poder. O rei afasta os nobres de várias funções do governo e recruta o

serviço dos burgueses, promovendo-os à condição de uma nova aristocracia – a

“nobreza de toga”. O resultado dessa aliança entre a burguesia e a monarquia é o

absolutismo, base da política agressiva da França, que no século XVII, sob Luiz

XIV, o Rei-Sol, transforma-se na maior potência da Europa.

É em meio a esse quadro que nasce e se desenvolve o pensamento moder-

no, marcado pela confiança na razão. Trata-se do “grande racionalismo”, como o

chamaria, no século XX, o filósofo francês Merleau-Ponty. Mas esse é um racio-

nalismo diferente daquele que vinha caracterizando o pensamento ocidental.

Desde a Grécia Antiga, a razão pôde pretender abarcar o mundo porque, de

certa forma, o próprio mundo era concebido como racionalmente ordenado e uni-

ficado. Nos tempos modernos, no entanto, essa imagem já não existe. Não há mais

a pólis, o Império ou uma Igreja única; a realidade apresenta-se dispersa, múltipla

e relativa. Cabe à razão a tarefa de reunificar o mundo, reproduzi-lo, representá-

lo.

O termo representação indica exatamente essa operação da razão: reapre-

sentar, tornar de novo presente. Mas “tornar de novo presente” a imagem unifica-

da do mundo é também destruir o que se apresenta como disperso e desconexo.

Por isso, a representação nega e ultrapassa a realidade visível e sensível, e produz

um outro mundo, racionalmente compreensível porque reordenado pela própria

razão.

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A importância do método

A matemática é o grande modelo desse racionalismo. Não que ela, propri-

amente dita, possa ser aplicada a toda espécie de investigação. Os pensadores mo-

dernos retomam o significado da expressão grega ta mathema, isto é, “conheci-

mento completo”, racional de ponta a ponta, de que a própria matemática é o e-

xemplo mais perfeito.

Tomar a matemática como modelo também significa dirigir a razão segun-

do determinados procedimentos precisos, como se faz na demonstração de um te-

orema. Para não errar – uma obsessão dos filósofos modernos – escrevem-se tra-

tados de método. A começar por Descartes, autor de Discurso do Método.

A insistência no problema do método é crucial, porque o mundo exterior

não mais fornece a garantia da certeza do conhecimento. Por isso, de nada adianta

buscar, como fizeram os renascentistas, as relações de semelhança e de simpatia

que unem secretamente as partes do mundo entre si e com o todo. A razão, e só

ela, pode servir a si própria como guia, critério e condição da certeza do conheci-

mento. A razão não tem mais em que se apoiar a não ser nela mesma, e por isso

precisa criar um método seguro.

É dessa razão solitária que deve partir a ordem do mundo. Conhecê-lo é

fornecer-lhe essa ordem. Mas isso também significa que o mundo e a razão são

coisas distintas, separadas, que só se relacionam na representação.

Mas mesmo essa relação é desigual: a razão antecede às coisas exteriores e

as subordina. É autônoma, livre, independente do mundo. É sujeito – e a palavra

latina subjectum indica aquilo que subsiste, “o que está colocado sob”, isto é, o

fundamento. A razão é precisamente o fundamento do mundo transformado em

objeto, objectum, ou seja, “aquilo que está colocado diante de” um sujeito, e que

só pode existir tendo como referência o sujeito. É a partir do pensamento moderno

que se pode falar propriamente em “sujeito do conhecimento” e “objeto do conhe-

cimento”. Mas isso irá acarretar uma série de dificuldades e controvérsias.

*

A CIÊNCIA VIRA A MESA

Numa cena de A Vida de Galileu Galilei, do dramaturgo alemão Bertolt

Brecht (1898-1956), o personagem que dá título à peça convida os doutores da

corte de Florença a observar o céu através do telescópio, a fim de verificar com

seus próprios olhos os satélites de Júpiter, que ele havia descoberto. Todos, po-

rém, se recusam a fazê-lo, e um deles argumenta: “Não seria o caso de dizer que é

duvidoso um telescópio no qual se vê o que não pode existir?”

Brecht, nessa peça, faz eco à idéia, muito comum, de que o nascimento da

ciência moderna se fez contra o aristotelismo, que, de especulação em especula-

ção, teria se afastado completamente da realidade. Observar os fatos sem idéias

preconcebidas é a palavra de ordem do novo pensamento científico.

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Francis Bacon (1561-1626)

Bacon: “saber é poder”

As idéias preconcebidas são ídolos, falsos deuses, que conduzem o intelec-

to humano ao erro, afirma Francis Bacon. É preciso descrever e classificar cada

espécie de ídolo para melhor afastar a sua interferência na investigação científica.

Mas eliminar os ídolos e observar os fenômenos de um modo isento ainda

não é suficiente. Isso porque os sentidos, de que depende a observação, freqüen-

temente enganam; por isso são também ídolos. Para evitá-los é necessário condu-

zir a observação por um método seguro e rigoroso. Nesse sentido, Bacon critica

nos antigos não tanto a ausência de observação mas as observações sem critérios.

Filho de um importante nobre da corte inglesa, Francis Bacon nasce em

1561, em Londres. Estuda Direito e em 1584 é eleito deputado da Câmara dos

Comuns. Obtém, por força de intrigas, diversos cargos influentes no reinado de

Jaime I, como o de procurador-geral, de fiscal-geral e de grande chanceler. Em

1621, acusado de aceitar suborno, é condenado e perde todos os cargos. Morre em

1626.

A ambição que marca a carreira política de Bacon também se manifesta

em seu pensamento. Ele quis fazer a reforma total da ciência e planejou uma vasta

obra sob o título geral, não menos ambicioso, de Grande Instauração. Desse pla-

no, no entanto, só desenvolveu uma pequena parte. Mas, ao denunciar os proce-

dimentos tradicionais da ciência, apontou-lhe novos rumos.

Em Novum Organum – que já no título se contrapõe ao “velho” Organon,

de Aristóteles -, ele critica os quatro ídolos responsáveis pelo insucesso da ciên-

cia. Os ídolos da tribo referem-se às imperfeições do intelecto, que levam os ho-

mens a acreditar ingenuamente nos dados dos sentidos ou em aspectos da realida-

de que lhes são convenientes. Os ídolos da caverna correspondem à predisposição

do intelecto de cada indivíduo, que, como os prisioneiros da alegoria da caverna,

de Platão, toma seu mundo particular pela verdadeira realidade. Os ídolos do foro

mostram os problemas da comunicação entre os homens: as palavras são tidas

como idênticas às coisas que designam e, além disso, raramente há um acordo so-

bre o que significam. Por fim, os ídolos do teatro apontam as doutrinas filosóficas

que, como o teatro, não passam de invencionices especulativas.

Contra esses ídolos, Bacon propõe o método experimental, conduzido por

método rigoroso. Assim, é preciso descrever todas as circunstâncias em que um

fenômeno ocorre. Mas isso não basta. É necessário, igualmente, avaliar os casos

em que o fenômeno não ocorre. É o exame detalhado dos diversos casos particula-

res e a relação entre eles que leva à conclusão geral, ou seja, ao conhecimento. A

esse procedimento denomina-se indução.

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Essa cuidadosa investigação, porém, tem outro objetivo além do aprimo-

ramento do conhecimento. A experiência, para Bacon, é sobretudo a possibilidade

de utilizar as forças da natureza para o proveito do homem. Assim, desvendar o

modo como os fenômenos ocorrem significa conhecer as possibilidades de mani-

pulá-los. Mais tarde, o desenvolvimento da ciência provaria que tinha fundamento

uma famosa expressão de Bacon: “Saber é poder”.

Nicolau Copérnico (1473-1543)

Copérnico e a “salvação dos fenômenos”

A disputa entre a ciência antiga e a moderna não é propriamente entre a

especulação e a observação. O geocentrismo de Ptolomeu, por exemplo, embora

siga à risca o pensamento aristotélico, não contraria os dados dos sentidos. A Ter-

ra de fato parece parada e são os astros que aparentemente giram ao seu redor.

Nesse sentido, Ptolomeu não fez mais do que “salvar os fenômenos”. Mas “salvar

os fenômenos” – e esse é o lema dos demais astrônomos – vai se tornando um

empreendimento cada vez mais complexo, na medida em que se acumulam os da-

dos da observação.

A revolução heliocêntrica de Copérnico é então uma nova tentativa de

“salvar os fenômenos” pelo deslocamento do centro do Universo para o Sol, em

vez da Terra. O que se “salva”, no entanto, não são mais os fenômenos observá-

veis (a partir da Terra), mas aqueles passíveis de cálculo. Ou melhor, deve ser sal-

vaguardada a possibilidade da inclusão de fenômenos num sistema de cálculos.

Johannes Kepler (1571-1630)

Kepler, da astrologia à astronomia

Johannes Kepler dedica-se exatamente a isso. Seus cálculos têm como ba-

se o heliocentrismo e como instrumento a matemática. O resultado são as “três

leis de Kepler”, das quais a primeira estabelece que o movimento de todos os pla-

netas descreve uma elipse, tendo o Sol, como um de seus focos. A idéia de movi-

mento circular, perfeito, dos corpos celestes, é quebrada.

Mas se Kepler formula o movimento elíptico dos planetas é para resgatar

ao Universo a ordem e a harmonia, que a trajetória circular já não conseguia asse-

gurar. Nesse sentido, o pressuposto básico continua sendo a perfeição do mundo.

A diferença é que isso não exige mais a figura do círculo. Agora, utilizam-se fór-

mulas matemáticas.

Até esse momento, não se concebia a aplicação da matemática à astrono-

mia, pois os objetos matemáticos eram considerados essencialmente distintos dos

da natureza. Kepler justifica o emprego da matemática com base na teologia neo-

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platônica. Sua solução da causa do movimento dos planetas fundamenta-se na

versão cristã do neoplatonismo: o Sol representa o Pai, que move os astros por in-

termédio do Espírito Santo. Para traduzir essa idéia em linguagem científica, basta

substituir essa causa motriz, dotada de vontade e inteligência, pela noção de força.

O resultado é a lei da gravitação dos corpos, que Newton formularia mais tarde.

Johannes Kepler nasce em 1571, na província austríaca de Württemberg.

Estuda em Tübingen, onde conhece a teoria de Copérnico. Pretende seguir a car-

reira religiosa, mas, por causa das dificuldades financeiras, aceita o cargo de pro-

fessor de matemática na Universidade de Graz. Em 1600 torna-se assistente do as-

trônomo Tycho Brahe (1546-1601), no observatório de Praga. Após a morte de

Brahe, é nomeado matemático oficial da corte, na qual exercia a função de astró-

logo. Em 1612, transfere-se para a cidade de Linz, onde leciona até 1626. Dois

anos depois, torna-se astrólogo da corte do príncipe Wallentein. Morre em 1630.

Galileu Galilei (1564-1642)

Galileu: nova concepção do mundo

Galileu generaliza a concepção de perfeição do mundo. Aplica-a a todos os

fenômenos físicos, celestes ou terrestres. O espaço, para ele, é um todo homogê-

neo, e o que aí ocorre pode ser determinado matematicamente. Mais do que isso,

para que ao mundo possa ser descrito de modo matemático é preciso que seja con-

cebido como um espaço homogêneo, indistinto.

A rigor, essa nova concepção do Universo, que fundamenta a ciência mo-

derna, contradiz, apesar do que ela mesma afirma, os dados da observação. Contra

a evidência observável de que, por exemplo, os corpos leves sobem e os pesados

caem, ela propõe que todos os corpos, indistintamente, movem-se da mesma ma-

neira. “Leve” ou “pesado”, “sublunar” ou “supralunar” são qualidades, que não

contam mais. A observação, na ciência moderna, significa eliminar dos objetos

todas as suas qualidades sensíveis, observáveis, empíricas, reduzindo-os a rela-

ções quantitativas. O mundo se transforma em números.

Em alguns casos, a própria observação é desnecessária. Galileu formula a

lei de inércia do seguinte modo: “Represento para mim um corpo lançado sobre

um plano horizontal em ausência de qualquer obstáculo: disso resulta (...) que o

movimento do corpo sobre esse plano será sempre uniforme e perpétuo, se o plano

se estender ao infinito”. Um plano horizontal e infinito, sem nenhum obstáculo,

simplesmente não existe, a não ser na imaginação. Por isso é representação: “Re-

presento para mim”. Na ciência moderna, o mundo apresenta-se “como se fosse”.

A noção geral de movimento muda de significado. Galileu o relativiza, de-

finindo-o como “deslocamento de uma coisa em relação a outra”. Ou seja, aquilo

que determina se um corpo está em movimento, ou não, é outro corpo, tomado

como referencial. E, se o movimento é relativo, não possui nenhuma finalidade

(que, para Aristóteles, era o repouso). A natureza não tem causa final. Nem pro-

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priamente as causas formal e material: os corpos não se distinguem pela matéria

de que são feitos e, se sua forma influi no movimento – uma certa quantidade de

ferro afunda ou não na água, dependendo de seu formato -, isso se reduz a rela-

ções matemáticas. Na natureza representada por Galileu só resta a causa motriz

(ou eficiente), conjunto de movimentos mecânicos incessantes das coisas, umas

em relação às outras.

Galileu Galilei nasce em 1564, na cidade italiana de Pisa, então sob a tute-

la de Florença. Estuda medicina, que logo abandona para dedicar-se à matemática.

Em 1589, ocupa a cátedra dessa disciplina na universidade de sua cidade e, a par-

tir de 1591, na de Pádua.

Nessa época, inicia suas investigações no campo da física, à qual já aplica-

va os cálculos matemáticos. Estende esse procedimento à astronomia – e para isso

contribui a notícia, em 1609, da invenção da luneta, na Holanda. Em pouco tem-

po, Galileu aperfeiçoa o alcance do instrumento e, a partir de janeiro de 1610,

passa a observar o céu todas as noites. Dois meses depois publica o resultado de

suas observações em Sidereus Nuncius (Mensageiro Celeste), relatando que a Via

Láctea é composta de inúmeras estrelas, que a superfície da Lua é montanhosa e

que ao redor de Júpiter giram satélites. Seguiram-se outras descobertas: os anéis

de Saturno, as fases de Vênus e as manchas solares.

Todas essas descobertas são tomadas como indícios de confirmação de he-

liocentrismo. A reação das autoridades eclesiásticas foi a condenação oficial da

teoria de Copérnico, com a inclusão de sua obra, em 1616, no Index de Livros

Proibidos. O próprio Galileu – que desde o final de 1610 servia na corte dos Mé-

dici, em Florença, como matemático e filósofo – é aconselhado a manter silêncio

a respeito de suas idéias.

Em 1623, porém, ao ver eleito o papa Urbano VIII, matemático e seu ami-

go pessoal, Galileu acredita ter-se aberto uma era de maior tolerância e liberdade.

Publica então O Ensaiador, obra polêmica em que, ao criticar as concepções de

um jesuíta a respeito dos cometas, também ridiculariza as teorias de Aristóteles.

Além disso, em 1632, após enfrentar recusas das editoras, publica Diálogo sobre

os Dois Maiores Sistemas do Mundo, comparando as teorias de Copérnico e de

Ptolomeu. Nesse mesmo ano é intimado pela Inquisição. Condenado em 1633, é

obrigado a renegar suas idéias: “Eu, Galileu Galilei (...) florentino, de setenta anos

de idade, (...) acusado de veementemente suspeito de heresia, isto é, de haver sus-

tentado e acreditado que o Sol está no centro do mundo e imóvel, e que a Terra

não está no centro, mas se move; (...) abjuro, amaldiçôo e detesto os citados erros

e heresias (...) e juro que no futuro nunca direi nem afirmarei, verbalmente nem

por escrito, nada que proporcione motivo para tal suspeita a meu respeito”.

Diz-se que, depois dessa retratação perante a Inquisição, Galileu proferiu

uma frase que se tornaria célebre: Eppur si muove (“e, no entanto, se move”). Se

ele o fez realmente, não importa. O fato é que, condenado à prisão domiciliar – na

qual permaneceu até a morte, em 1642 -, prosseguiu, em segredo, com suas inves-

tigações, e fez publicar, em 1638, Discursos e Demonstrações Matemáticas sobre

Duas Novas Ciências, obra que sistematiza sua teoria e que lançaria os fundamen-

tos daquilo que hoje se denomina ciência moderna.

*

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René Descartes (1596-1650)

DESCARTES: A VIDA É SONHO?

O que aconteceria se Galileu estivesse enganado? E se o mundo não exis-

tisse, ou não passasse de um sonho? Afinal, não somos muitas vezes surpreendi-

dos com sonhos que parecem reais? Temos condição de afirmar, com absoluta

certeza, que os fenômenos que a ciência pretende conhecer não são ilusões produ-

zidas durante um sono eterno? E se existisse um Deus todo-poderoso mas mali-

cioso, que tivesse como diversão enganar-nos sempre, fazendo-nos crer que o

mundo existe ou que os enunciados matemáticos são verdadeiros? Como então a-

plicar a matemática, que pode ser falsa, a um mundo que talvez nem mesmo exis-

ta?

Questões embaraçosas como essas povoam a mente do jovem René Des-

cartes, nascido em 1596 em La Haye, na região de Touraine, França, e desde 1606

estudante de letras no colégio jesuíta de La Fléche. Ávido leitor da tradição filosó-

fica, não encontra nos livros respostas a essas perguntas. Por isso, tudo o que es-

tuda lhe parece inútil. Até mesmo a matemática, que, segundo diz, admira “por

causa da certeza e da evidência de suas razões”, só é usada para servir às “artes

mecânicas”, não a algo “mais elevado”.

Assim, Descartes resolve abandonar as letras. “Resolvendo-me a não pro-

curar outra ciência, além daquela que se poderia achar em mim próprio, ou no

grande livro da vida, empreguei o resto da mocidade em viajar”, conta ele na pri-

meira parte de Discurso do Método. Em 1618, ingressa no exército de Maurício

de Nassau, da Holanda, e no ano seguinte nas tropas de Maximiliano de Baviera

(Alemanha). Como voluntário, mais observa o início da Guerra dos Trinta Anos (A Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) foi uma série de conflitos religiosos e políticos ocorri-

dos especialmente na Alemanha, nos quais rivalidades entre católicos e protestantes e assuntos

constitucionais germânicos foram gradualmente transformados em uma luta européia. Apesar de

os conflitos religiosos serem a causa direta do conflito, ele envolveu um grande esforço político da

Suécia e da França para procurar diminuir a força da dinastia dos Habsburgos, que governavam a

Áustria. A guerra causou sérios problemas econômicos e demográficos na Europa Central.) do

que dela participa. Mas aprende algo fundamental: os costumes mudam de povo

para povo. Por esse motivo, não é possível tomar como verdades as certezas ad-

quiridas pelo hábito. Isso o leva a outro caminho: estudar também a si próprio. A

partir daí o pensamento de Descartes se desenvolve de tal maneira que o século

XVII, marcado pela doutrina cartesiana, costuma ser caracterizado como “era do

método” – o método científico criado por René Descartes.

Penso, logo existo

“Por desejar ocupar-me somente com a pesquisa da verdade, pensei ser ne-

cessário (...) rejeitar como absolutamente falso tudo aquilo em que pudesse imagi-

nar a menor dúvida, a fim de ver se, após isso, não restaria algo em meu crédito

que fosse inteiramente indubitável.”

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Para não ter dúvidas, Descartes obriga-se até mesmo a forjar argumentos

que ponham em dúvida a certeza de uma ciência tão exata como a matemática.

Assim, cria a dúvida hiperbólica (exagerada), e lança mão da ficção do gênio ma-

ligno, um Deus cujo prazer é o de nos enganar. O ceticismo, que de tudo duvida,

chega com Descartes a uma formulação sistemática: não se trata mais de duvidar

por duvidar, mas de examinar criteriosamente todas as coisas, a fim de nelas des-

cobrir elementos sobre os quais possa recair alguma suspeita. O ceticismo de Des-

cartes é a dúvida metódica, isto é, uma dúvida conduzida por um método rigoroso.

O que pode restar dessa atitude? Nada a não ser o próprio ato de duvidar,

ou melhor, a certeza de que o pensamento duvida. Mas, para duvidar, esse pensa-

mento, o meu pensamento, deve existir. Do mesmo modo, para que o gênio ma-

ligno possa enganar, é preciso que exista algo que é enganado – o meu pensamen-

to. E não é possível também duvidar dessa conclusão? Nesse caso, a mesma con-

clusão se impõe com toda a força: se duvido que duvido, ainda continuo duvidan-

do. Deve, por isso, existir algo que duvida: o meu pensamento.

“Penso, logo existo”: a famosa fórmula do Discurso do Método resume a

primeira certeza inquestionável, que ressalta em meio a tantas dúvidas. Tal certe-

za, nessa medida, deve servir de modelo e de critério para outras certezas que pos-

sam eventualmente ser alcançadas: “Tendo notado que nada há no ‘eu penso, logo

existo’, que me assegure de que digo a verdade, exceto que vejo muito claramente

que, para pensar é preciso existir, julguei poder tomar por regra geral que as coi-

sas que concebemos mui clara e mui distintamente são todas verdadeiras”. Isso

significa que o critério da verdade é a evidência, dada pela intuição. O “penso, lo-

go existo” é uma idéia clara e distinta: clara, pois nela não há nenhuma sombra

que a obscureça; distinta, porque não se confunde com nenhuma outra idéia. Ver-

dadeiras, então, são também todas as outras idéias que se apresentem como claras

e distintas.

Mas que outras idéias, se elas estão sob a suspeita da dúvida? A própria

evidência do “eu penso” – que passou a ser designado pelo termo latino cogito – é

instável: a certeza de que “existo” só dura enquanto “eu penso”.

Além disso, o que significa exatamente essa existência do cogito? Se exis-

te (enquanto pensa), deve ser uma coisa, uma substância, isto é, algo que subexis-

te. É, então, esse “eu” que pensa uma coisa dotada de corpo, ou seja, o homem de

carne e osso? Não, não pode ser um corpo, pois o “eu penso” é uma idéia clara e

distinta que não se mistura a outras, como a de corpo. Não é corpo também por-

que sua existência é duvidosa: o gênio maligno ainda pode estar enganando que

exista o mundo e o corpo. Nessa medida, o “eu” que pensa, e que por isso existe

como coisa, só pode ser uma coisa que pensa: coisa pensante, res cogitans. “Nada

sou”, escreve Descartes em Meditações, “senão uma coisa que pensa, isto é, um

espírito, um entendimento ou uma razão”.

E Deus, existe?

O cogito, definido como uma consciência que, ao pensar sobre si mesma,

sabe que existe, está condenado à certeza solitária de si mesmo. É certo que tam-

bém pensa sobre o mundo, o corpo e os enunciados matemáticos, mas sem conse-

guir decidir se essas idéias são verdadeiras. Elas podem ser ilusões produzidas pe-

lo próprio cogito.

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Mas, entre as idéias presentes no cogito, uma se destaca: a idéia de Deus.

Em Meditações, Descartes afirma: “Pelo nome de Deus entendo uma substância

infinita, eterna, imutável, independente, onisciente, onipotente e pela qual eu pró-

prio e todas as coisas que são (se é verdade que há coisas que existem) foram cri-

adas e produzidas”. De onde vem tal idéia, se tudo o que existe deve ter uma cau-

sa? No caso dessa idéia, a sua causa não pode ser o cogito: “Eu não teria (...) a i-

déia de uma substância infinita (...) se ela não tivesse sido colocada em mim por

alguma substância que fosse verdadeiramente infinita”.

A idéia que o cogito tem de Deus é, nessa medida, o efeito de uma causa

que lhe é exterior. E, como “deve haver ao menos tanta realidade na causa quanto

em seu efeito”, à existência, no cogito, da idéia de Deus, só pode corresponder à

existência de fato de Deus. Ele é uma substância, mas distinta do cogito; é uma

substância infinita, res infinita. A essa prova da existência de Deus, Descartes a-

crescenta outra, muito semelhante à de Santo Anselmo: a existência é uma das

perfeições e, por isso, uma substância perfeita necessariamente deve existir de fa-

to.

Esse Deus seria o gênio maligno? Impossível. Se a causa da idéia de Deus

é o próprio Deus, essa idéia é como “a marca do operário impressa em sua obra”,

ou seja, guarda uma certa semelhança com a idéia das perfeições que Deus tem

em si mesmo. A causa verdadeira e perfeita não pode produzir um efeito que seja

um engano: o Deus bom e veraz não é o gênio maligno, e, se o cogito se engana,

isso se deve somente às imperfeições do entendimento, que podem ser atenuadas

por meio de um método rigoroso.

Destruído o fantasma do gênio maligno, dissipam-se uma a uma todas as

dúvidas. A certeza da existência do cogito não mais ocorre apenas enquanto “eu

penso”, pois é assegurada por Deus. A seu respeito, é possível formular uma idéia

clara e distinta, isto é, verdadeira, ao menos no que se refere a suas propriedades

geométricas. Eles se distinguem do cogito por ser dotados de extensão (largura,

comprimento e altura) e constituem a substância extensa, a res extensa.

Dos astros ao corpo humano

Descartes também faz estudos científicos. Viaja pela Europa até se fixar,

em 1628, na Holanda. Nesse mesmo ano, escreve Regras para a Direção do Espí-

rito, seu primeiro tratado sobre o método, inacabado, baseado em seus estudos

matemáticos. Além disso, realiza pesquisas sobre a óptica, investigando as lentes,

o olho humano, a luz e o fenômeno da refração, e sobre a anatomia, em particular

a circulação sangüínea. Desses estudos resulta Tratado do Mundo. Mas a obra,

concluída em 1633, não foi publicada: naquele ano, Galileu havia sido condenado

pelas idéias compartilhadas por Descartes...

Embora decidido a não mais escrever, Descartes, no entanto, publica, em

1637, Meteoros, Dióptrica e Geometria, contendo parte das idéias do livro auto-

censurado e precedidos de uma introdução: Discurso do Método. As concepções

metafísicas ali expostas – o cogito como a primeira certeza, e Deus como a garan-

tia da existência do mundo e da possibilidade de seu conhecimento – seriam reto-

madas, com muito mais argumentos, em Meditações sobre a Filosofia Primeira,

de 1641. Três anos depois, Descartes publica Princípios da Filosofia, em que a-

presenta uma síntese de suas concepções filosóficas e científicas.

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Por fim, também publica As Paixões da Alma, em que reexamina o tema,

já presente em outras obras, da relação entre a alma e o corpo. Estes são distintos

entre si: enquanto a alma é uma coisa que pensa, o corpo é uma coisa extensa, isto

é, matéria dotada de movimento, como uma máquina. Apesar disso, ambos coe-

xistem no homem, ou melhor, o homem é um composto de alma e corpo. Trata-se

então de verificar não como essa composição é possível – pois foi criada por Deus

todo-poderoso, cujos atos não requerem explicação -, mas como funciona. Para

Descartes, a união entre a alma e o corpo – que possibilita a relação do cogito com

o mundo – é dada por um órgão situado na parte inferior do cérebro: a glândula

pineal.

A matemática, ciência universal

Uma ciência que se pretenda universal deve fornecer um fundamento co-

mum e único a todas as ciências particulares. Deve haver, por isso, em todos os

ramos da ciência, um mesmo modo de investigar seus objetos específicos.

Essa ciência universal é a mathesis universalis, a matemática universal.

Esta, porém, não se confunde com as chamadas “matemáticas”, como a álgebra, a

aritmética ou a geometria, que são antes as manifestações mais perfeitas da pró-

pria mathesis universalis. Mas, por isso mesmo, o estudo das matemáticas serve,

segundo Descartes, como exercício preparatório à ciência universal.

As investigações matemáticas do próprio Descartes já indicam o caráter

desses “exercícios”. Nesse campo, sua principal realização é o que mais tarde re-

ceberia o nome de “geometria analítica”, isto é, a conversão de grandezas e de

propriedades geométricas em fórmulas algébricas. O quadrado e o cubo, por e-

xemplo, podem ser representados pelas expressões a e a, o que possibilita relacio-

ná-los num mesmo sistema de cálculo. Mas isso também significa que a ou a não

evocam necessariamente as figuras de quadrado e de cubo: são apenas quantida-

des de grandezas diferentes, reduzidas a uma mesma medida comum.

Reduzir a diversidade das coisas à medida comum, a fim de possibilitar a

relação entre elas e torná-las comparáveis, é um dos elementos da mathesis uni-

versalis. Para isso, segundo Descartes, é preciso dividir as partes de que se com-

põe um todo até chegar a um elemento simples, que sirva de medida. Esse proce-

dimento, denominado análise, verifica-se, por exemplo, na redução de equações

de grau superior a outras, mais simples.

Deve-se, em seguida, realizar a operação inversa: a síntese, pela qual o que

foi dividido é recomposto segundo uma ordem que vai, aos poucos, do simples ao

complexo. Por esse procedimento, que encadeia ordenadamente os elementos já

conhecidos, chega-se a um novo conhecimento. Mas também é preciso verificar

se essa série ordenada do simples ao complexo não omitiu nada, pois a ausência

de qualquer um dos elementos pode comprometer a conclusão. Essa verificação

de que nada foi omitido chama-se enumeração.

Resta, no entanto, uma dificuldade: como saber que a decomposição, reali-

zada pela análise, atingiu de fato o elemento mais simples? O critério é o da evi-

dência, dada pela intuição, de idéias claras e distintas, como é o caso do cogito e

dos princípios matemáticos, que não são passíveis de nenhuma dúvida (a não ser

que se aceite a existência do gênio maligno enganador). Tais idéias, como a do

próprio cogito, estão desde sempre presentes no cogito. São idéias inatas e, se não

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se apresentavam como evidentes, é porque se encontravam misturadas com outras,

antes de ser isoladas pela análise.

Essas regras, que fixam os procedimentos que todas as investigações cien-

tíficas devem seguir, constituem a própria mathesis universalis, o método científi-

co, de alcance universal, que, segundo o subtítulo definitivo de Discurso do Mé-

todo, serve “para bem conduzir a própria razão e procurar a verdade nas coisas”.

Os homens, senhores da natureza

Conhecer as coisas do mundo implica, então, estabelecer-lhe uma nova or-

dem que não exatamente aquela que os sentidos captam, mas a que a razão impõe.

No homem, por exemplo, os sentidos fornecem primeiro a existência do corpo,

mas a razão evidencia antes a certeza do cogito.

Como, porém, é possível o conhecimento do mundo (e do corpo), se o co-

gito que conhece e as coisas que são conhecidas são de naturezas distintas? Em

outras palavras, como encadear numa ordem de razões a coisa pensante (res cogi-

tans) e a coisa extensa (res extensa), se ambas não apresentam uma medida co-

mum? A única solução possível é transformar as coisas em idéias dessas coisas,

de tal modo que a cadeia de razões seja constituída pelo pensamento e as coisas

pensadas. Substituir a ordem “real” pela ordem das razões corresponde exatamen-

te a essa transformação das coisas em objetos do conhecimento.

A operação que converte as coisas em objetos é a representação, cujo su-

porte – isto é, o sujeito – é precisamente o cogito. A ciência é possível, pois basei-

a-se na certeza inabalável do cogito, que, tendo como guia seguro o método pro-

duzido a partir de si mesmo, reduz o mundo à sua medida. Mas, com isso, a iden-

tidade e a harmonia entre o mundo e o homem - buscadas desde a Antigüidade –

são rompidas. O homem torna-se sujeito, o “eu que pensa”, e o mundo, seu objeto.

Ele já pode pensar a si próprio como aquele que efetivamente reordena e reorga-

niza o mundo à sua maneira. Os homens se tornam, segundo o Discurso do Méto-

do, “como que senhores e possuidores da natureza”.

Descartes morre em 1650, um ano depois de publicar As Paixões da Alma

e de transferir-se para Estocolmo a convite da rainha Cristina, da Suécia, com

quem mantinha correspondência.

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RENÉ DESCARTES

(1596 – 1650)

Livro: Os Filósofos. J. Herculano Pires

Quando analisamos, em confronto, as figuras de Abelardo e de Descartes,

vemos que é possível estabelecer entre elas alguns paralelos curiosos. Não obstan-

te as profundas diferenças que os marcam, Descartes pode ser considerado, em

certo sentido, o sucessor de Abelardo. As diferenças começam no temperamento e

no tipo físico. As semelhanças, na origem aristocrática e na ligação com as armas.

Começam, apenas. Porque, se quisermos aprofundar umas e outras, veremos que

dos dois lados há muito que dispor.

Mas o que realmente os aproxima é a posição filosófica. São ambos, ho-

mens do futuro, irremediavelmente presos na armadilha do presente. E esse pre-

sente quer dizer a escolástica, enquanto o futuro a que eles se lançam, por inclina-

ção do espírito e por amplitude mental, é a época das luzes.

Descartes não era filho de senhor feudal, como Abelardo, mas seu pai era

conselheiro do Parlamento da Bretanha e senhor de propriedades rurais. Graças a

isso, o filósofo pôde dispor de uma herança regular em imóveis, que vendeu e

converteu em renda anual, para se dedicar ao estudo. Antes, no período que vai de

1604 a 1612, foi aluno dos jesuítas no Colégio de La Flèche. Quando deixou o co-

légio, não acreditava no que lhe haviam ensinado e queria verificar por si mesmo

a realidade das coisas. Vai a Paris, onde se demora pouco, pois logo se alista no

exército holandês. Participa, a seguir, sob as ordens do Duque da Baviera, da

Guerra dos Trinta Anos. Em 1620, participou do Cerco de Praga e da Batalha da

Montanha Branca.

Nascera Descartes no último dia de março de 1596, em La Haye, na Ture-

na. Sua mãe faleceu poucos dias depois, vítima de tuberculose. Herdou, assim,

não apenas os haveres do pai, mas também a doença da mãe, que o acabaria viti-

mando. Durante toda a vida lutou com a debilidade física. Uma tosse seca e uma

extrema palidez o acompanharam até os vinte anos. Não tinha, pois, a beleza apo-

línea de Abelardo, nem o seu temperamento romântico. Mas era mais corajoso e

sobretudo mais puro, de uma pureza espiritual que jamais lhe permitiria o drama

de Heloísa e a perfídia a Fulbert.

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Desde cedo o pai o chamava de filósofo, diante das incessantes perguntas

do menino sobre todas as coisas. Não era à toa que esse menino, ao deixar La

Flèche, perguntava a si mesmo se havia aprendido alguma coisa. E para verificar,

resolve deixar os livros de lado e ler diretamente no grande livro do mundo, se-

gundo suas próprias expressões. Sua carreira militar, se é que se pode chamá-la

carreira, terminou em 1621, depois da Campanha da Hungria.

Mas das suas andanças militares ainda há o que nos interessa. Ao alistar-se

no exército holandês, Descartes ficou sob as ordens do Príncipe Maurício de Nas-

sau, que tão bem conhecemos, por sua ligação histórica com o nosso país. Foi en-

tão acusado de servir aos protestantes. Nesse período, goza dois anos de trégua,

que passa em Breda, de 1617 a 1619.

Nassau gostava de cercar-se de sábios, e estavam em moda os torneios ci-

entíficos. Os sábios de Breda, como mais tarde se dirá, entre eles os matemáticos

Dordrecht e Bechmann, propõem questões difíceis aos colegas. Descartes inter-

vém e resolve as questões com tal facilidade, que os assombra, alcançando assim

os seus primeiros êxitos no mundo dos sábios, a que realmente pertence, por inali-

enável direito espiritual.

Descartes deixa o serviço de Nassau em julho de 1619 e segue para Franc-

forte, onde assiste à coroação de Fernando II, imperador da Alemanha. É depois

que se alista na Baviera e participa da Campanha da Boêmia. Estamos no inverno

de 1619, um inverno histórico, da mais alta importância na história do pensamen-

to. Descartes se encontra solitário e se refugia na sua estufa, para meditar. Essa

meditação o leva a compreender que já leu bastante no grande livro do mundo, e

que agora deve pô-lo de lado, porque há outro livro, muito mais importante, para

ser lido e estudado: o do seu próprio espírito, o livro de si mesmo.

Nesse recolhimento hibernal Descartes vai ter, como Paulo na estrada de

Damasco, a revelação do seu destino. Diriam certos psicólogos modernos, sempre

prontos a aplicar seus esquemazinhos de matéria plástica aos grandes fatos do es-

pírito, que Descartes teve alucinações ou entregou-se a delírios voluntários. Diri-

am os teólogos que ele recebeu a graça, mas não soube se fazer digno dela.

A verdade é que no dia 10 de novembro de 1619, em seu retiro de Ulma, o

jovem René Descartes chega ao momento decisivo da sua vida. Primeiro, é toma-

do por um período de agitações tão intensas, que o seu cérebro parece incendiar-

se. O Abade Baillet, seu maior biógrafo, diz que ele, por fim, “se entregou a uma

espécie de entusiasmo, dispondo de tal maneira do seu espírito já cansado, que o

pôs em estado de receber as impressões dos sonhos e das visões”.

Foi nesse estado que Descartes se deitou e adormeceu, sobrevindo-lhe na-

da menos de três sonhos. Mas estes sonhos já lhe haviam sido preditos pelo de-

mônio, que a exemplo do que se passava com Sócrates o advertira de coisas por

acontecer. Esse demônio ou gênio, diz Descartes, de maneira confusa, devia ter-se

criado no seu próprio íntimo. Era, pois, uma entidade que se confundia com a sua

própria consciência. Entretanto, não era esta. Seu aparecimento se dera precedido

de um fenômeno que pode ser taxado de visionário ou metapsíquico, dependendo

da disposição mental do observador. O certo é que Descartes viu uma grande luz,

tão intensa que mal pôde suportá-la, e essa luz foi seguida “do projeto de uma ci-

ência admirável”.

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Tão intensos foram esses fatos, que Descartes chegou a aceitar que havia

sido inspirado pelo Espírito da Verdade. Sua mente se esclareceu, a respeito de

todos os problemas que o preocupavam. Pôde ver então, nitidamente, que podia

pulverizar a falsa ciência dogmática que lhe haviam impingido, para criar uma

nova. Sentiu-se profundamente emocionado e rogou a Deus que o amparasse, que

o confirmasse na idéia de um método para a boa direção do entendimento. Rogou

também a Nossa Senhora do Loreto que o protegesse, e fez uma promessa, que

mais tarde cumpriu – o que mostra a seriedade e a importância de todos esses fa-

tos –, de uma peregrinação ao seu santuário.

Esse visionário, entretanto, é o fundador da filosofia moderna. É o homem

que abrirá uma brecha definitiva no arcabouço da velha escolástica, rasgando no-

vas perspectivas ao pensamento. Sua amizade com a Rainha Cristina e a Princesa

Elisabete, da Suécia, é bem conhecida. A rainha conseguiu, afinal, levar Descartes

para Estocolmo.

No outono de 1649 ele embarcava num navio de guerra, enviado especi-

almente para buscá-lo. Foi recebido na corte com todas as honras. Deram-lhe apo-

sentos magníficos e largas possibilidades de estudo. Mas Descartes já chegava ao

termo de sua vida.

A 11 de março de 1650, com 54 anos, depois de nove dias de doloroso so-

frimento, faleceu. Seus assistentes mostraram-se admirados com sua resignação, e

Chanut escreveu a Périer estas palavras emocionantes: “A 11 de março último

perdemos M. Descartes. Choro ainda ao vos escrever, pois a sua doutrina e o seu

espírito estavam ainda abaixo de sua candura, de sua bondade e da inocência de

sua vida”.

ENTRE DOIS MUNDOS

Durante toda a sua vida, que vai de 1596 a 1650, na fase de transição da

ordem feudal para a ordem burguesa, do mundo medieval europeu para o mundo

moderno, Descartes será obrigado a manter-se numa posição difícil. Mais do que

Abelardo, ele sentirá o vazio das fórmulas que tem de seguir, e muitas vezes per-

guntará a si mesmo se de fato elas são vazias ou um gênio maligno o engana.

Mais do que Abelardo, sentirá a atração do futuro, mas compreenderá que não o

pode alcançar.

Para sustentar essa posição, não se escravizando ao passado, que no caso é

o próprio presente, nem se aventurando a um futuro que ainda mal se delineia aos

seus olhos, vê-lo-emos numa batalha constante. Máxime Leroy nos dá bem uma

idéia dessa luta: “Descartes escapa; se esconde; dissimula um segredo; em toda a

sua vida, preocupa-se com as cifras; pretende, mesmo, escrever à Princesa Palati-

na, usando esse meio de segurança”.

Até os quarenta anos, não publicara nenhuma obra. Desde 1626 trabalhava

num tratado, as famosas Regras Para a Direção do Espírito, exposição minuciosa

do seu método de pesquisa da verdade. Eram as regras resultantes da memorável

noite de 10 de novembro de 1619, destinadas à construção de uma ciência admi-

rável. Mas as Regras lhe pareciam, ora demasiado extensas, ora demasiado minu-

ciosas. Além disso, não lhe parecia certo apresentar as regras sem demonstrar pre-

viamente a sua validade. O mundo dos cânones absolutos, das verdades feitas, não

receberia sem remoques aquelas novas regras.

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Em 1626, começa a escrever as suas Meditações Metafísicas, para provar a

existência de Deus e a distinção entre a alma e o corpo humanos. Interrompe-as,

porém, para trabalhar no Tratado do Mundo e da Luz. Sua imaginação se exalta,

seu espírito percebe os lindes luminosos de um novo universo, que está bem pró-

ximo, e no entanto tão distante. Como Tântalo, curtirá a sede, em desespero.

Num momento de entusiasmo, escreve ao seu amigo e confidente, o Padre

Nersene, dizendo que, com o Tratado pretende “dar um mundo ao Mundo”. Em

1633 conclui essa obra, em que expõe, em linguagem acessível a todos – a lingua-

gem da época das luzes -, as leis naturais e alguns fenômenos da terra e do céu.

Está prestes a publicá-lo, quando surge a notícia da condenação de Galileu, em

Roma, pelo Tribunal do Santo Ofício.

Esse episódio é dos mais significativos, na sua biografia. Galileu fora con-

denado por afirmar, com base na teoria heliocêntrica de Copérnico, que a Terra

gira ao redor do sol. Tremenda heresia para o mundo escolástico, embora os pró-

prios pré-socráticos já houvessem percebido isso. Ora, no Tratado do Mundo e da

Luz, Descartes afirmava a mesma coisa. E o fazia de tal maneira, que não podia

retirar a afirmação herética, sem prejuízo da estrutura e do sentido da obra.

André Cresson comenta a situação do filósofo e conclui: “Descartes prefe-

re não publicar o tratado, para não atrair a cólera da Igreja”. Leroy penetra mais

fundo no momento angustioso: “Temeroso, assustado, ele abandona o seu Mundo

e fala mesmo em queimar o manuscrito. O desencorajamento é profundo, mas o

seu gênio é mais forte. E ele volta ao trabalho, mas a um trabalho menos perigoso,

desta vez sobre o método.”

A 8 de junho de 1637, em Leida, aparece afinal a primeira obra de Descar-

tes. É o Discurso do Método. Vem seguido dos trabalhos que demonstram a efici-

ência das novas regras: Dióptrica, os Meteoros e a Geometria. O Discurso é um

resumo do seu anterior tratado das regras, numa exposição mais clara do método.

Descartes o publica em francês e não em latim. Deseja atingir o povo, formar opi-

nião além do círculo estreito dos doutos. A obra sai anônima. Todos sabem, po-

rém, a sua procedência. E o fato de tê-la escrito em francês não representa apenas

uma tentativa de sondagem de opinião. É mais do que isso. É parte da tarefa de

demolição dos velhos cânones. Descartes rompe a praxe erudita de escrever Filo-

sofia em latim. Inaugura a nova era, prestigiando a língua nacional francesa. Com

essa audácia, podemos dizer que Descartes arriscou um pé no mundo futuro.

Ninguém, talvez, mais que o medievalista Gilson, compreendeu melhor o

drama do filósofo: “A partir do momento em que a divulgação da sua física lhe

parece perigosa, senão impossível, Descartes é um filantropo, diante de uma hu-

manidade que ele quer beneficiar e que se recusa a receber o seu benefício. Por

uma singular inversão da ordem, ele se vê obrigado a oferecer aos homens, com

mil precauções, e quase se desculpando, aquilo que eles deviam implorar-lhe co-

mo o maior dos bens. Mas por uma contradição mais singular ainda, esse gênio al-

tivo se vê obrigado a implorar aos homens a graça de deixá-lo trabalhar tranqüilo,

pela felicidade deles”.

Outros não tiveram e não têm essa compreensão do drama de Descartes.

Acusaram-no de poltrão, de hipócrita, de monge travestido. Leroy o considera um

homem que “viveu mascarado depois dos 21 anos”. A verdade é que ele usou de

cautela, e muitas vezes de habilidade, mas sustentando sempre os seus ideais re-

formistas. Sabia que era inútil enfrentar o mundo e ser por ele devorado. Nunca se

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viu maior consciência da tarefa a cumprir, e da necessidade absoluta de cumpri-la,

senão em seu sucessor Espinosa.

Cuidava da saúde e poupava as forças, para realizar a sua obra, e usava o

bom senso para não prejudicá-la com provocação inútil da intolerância imperante.

Lembrando que, durante o século XVII, houve um fortalecimento do Absolutismo

em França, Porter assinala: “Na vida do filósofo, em 1619, foi queimado em Tolo-

sa o conhecido humanista Vanini”. Ora, Vanini pertencia ao grupo dos chamados

libertinos, a que Descartes esteve ligado, como veremos mais adiante.

Galileu condenado, Vanini queimado. Demonstrações de brutal intolerân-

cia por todos os lados. O próprio Descartes sentia a hostilidade incessante em seu

redor. Nem mesmo no mundo dos sábios havia sabedoria. Os cânones estabeleci-

dos pareciam fechar as consciências em verdadeiras carapaças de ferro. Mesmo na

Holanda, então considerada país da liberdade, a filosofia cartesiana não é bem re-

cebida.

Na Academia de Utreque desencadeia-se uma verdadeira luta entre Régio,

discípulo de Descartes, e o teólogo Vétio. Este chega ao extremo da tentativa de

agressão corporal ao filósofo, que reprova com acusações nada teológicas, ou pelo

menos nada religiosas, atingindo-lhe inclusive a reputação pessoal. O Senado de

Utreque, como informa Cresson, vê-se obrigado a intervir no caso, suspendendo o

curso de Régio.

Além desses incidentes em Utreque, surgem outros em Leida, onde a pró-

pria Universidade acusa Descartes de blasfemo. A intolerância escolástica ruge ao

seu redor como um mar enfurecido. O embaixador de França tem de intervir para

salvá-lo de maiores conseqüências. O filósofo percebe que nem mesmo na Holan-

da pode viver em paz. Terá de redobrar de cautela, de usar cada vez mais o bom

senso, para não dar um passo em falso, não precipitar as coisas.

De nada valeria ser condenado. O que ele deseja é destruir o mundo de fal-

so saber que o rodeia. Se acontecer o contrário, se esse mundo o destruir ou o inu-

tilizar, a causa estará perdida. A única maneira de vencer é realizar a sua obra, é

provar com o seu trabalho que tudo está errado. É necessário, pois, que se poupe,

se resguarde. Seus olhos estão voltados para o futuro. Descartes adota um sistema

de mudanças contínuas. Ora está em La Haye, ora em Egmont-du-Hoef, ora em

Le Crévis. Torna-se mais arredio, mergulha mais fundo no seu trabalho.

Em 1644 vai publicar os Princípios e está cheio de esperanças. O Padre

Mesland lhe prometera expor a sua metafísica em Paris. Era, sem dúvida, uma

grande oportunidade. As vestes sacerdotais do amigo serviriam de resguardo aos

possíveis perigos. Mas eis que Mesland é enviado ao Canadá, do outro lado do A-

tlântico, e exatamente “por causa da estreita relação que mantinha com M. Des-

cartes”.

Até os amigos correm perigo. Ele vai se tornando uma espécie de leproso,

de que todos devem fugir. O seu contato torna os outros imundos, sujeitos a con-

denações, a punições. Mas em meio a tudo isso, apenas um pensamento o sustém:

é preciso prosseguir, concluir a obra, realizar a sua tarefa. Terrível insistência, que

o eleva à altura dos iluminados e quase o coloca entre os fanáticos. Talvez por is-

so não se casou, evitando compromissos que o embaraçariam, embora tenha tido

uma filha em condições obscuras, mas sem nenhuma espécie de crime.

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Cresson nos relata ainda um episódio bastante significativo. Em 1647,

Descartes vai a Paris, porque lhe fizeram a promessa de uma pensão. Lá chegan-

do, percebe logo que cometera uma imprudência. Apesar de toda a sua cautela, es-

sas coisas ainda aconteciam. Ele mesmo escreve que os responsáveis pela sua ida

não queriam senão ver o seu rosto. E acrescenta “... de maneira que estou inclina-

do a crer que eles só me queriam ter em França como um elefante ou uma pantera,

por causa da raridade, e não porque eu pudesse ser útil a qualquer coisa”.

O FILÓSOFO ESPADACHIM

Se Abelardo utilizava táticas de cavalaria para conquistar o mundo do seu

tempo, vamos encontrar em Descartes a habilidade, a cautela e a audácia do espa-

dachim. Péguy disse que Descartes conduzia o seu pensamento como uma espada.

E assim era, realmente. No Colégio de La Flèche, o aluno René du Perron não a-

prendera apenas as disciplinas intelectuais, mas também as maneiras de um gentil-

homem, ao gosto da época.

A propósito, escreve Barié: “Descartes se preparou em La Flèche em todos

os exercícios físicos em moda, especialmente na esgrima, sobre a qual escreverá

mais tarde um tratado, como também se tornou hábil na comédia e no ballet, então

em voga...”

A Arte da Esgrima, segundo informa Baillet, teria sido um dos primeiros

trabalhos de Descartes. O manuscrito desapareceu, mas o biógrafo o menciona de

maneira segura, acrescentando que “a maior parte das lições dadas por Cartésio,

nesse tratado, são apoiadas em sua própria experiência pessoal”. Leroy critica a

biografia de Baillet, chamando-a de lenda de São Descartes, mas respeita os seus

dados objetivos.

Barié faz ironia, advertindo que Descartes aparece, na obra do bom abade,

dotado de todas as virtudes possíveis. Mas, por sua vez, critica os exageros da

censura de Leroy. A verdade é que, não obstante os entusiasmos e o excesso de

afeição de Baillet, os episódios da vida de Descartes, por ele relatados, não são

postos em dúvida, pelo menos de maneira séria.

Isso nos autoriza a lembrar um episódio curioso, contado por Baillet. A-

contece que Descartes se achava na Dinamarca, de partida para a Holanda. Em-

barcou num batel que deveria deixá-lo na Frigia Oriental. Em pleno mar, percebeu

que os homens da equipagem combinavam assaltá-lo. Supunham que ele só falas-

se francês, pois somente nessa língua o tinham ouvido falar, e sabiam-no estran-

geiro. Descartes pôde, assim, acompanhar toda a trama, em silêncio, como se nada

percebesse. De repente, sacou da espada e, segundo a expressão do abade, “falan-

do na própria língua deles, num tom que os assustou, ameaçou trespassá-los no

mesmo instante, se ousassem agredi-lo”.

O que hoje pode nos parecer fantástico, nesse episódio, era natural e co-

mum na época. Por outro lado, não devemos esquecer-nos de que Descartes fazia,

nesse tempo, a sua carreira militar. Havia combatido, assistido a batalhas, partici-

pado de aventuras guerreiras. Seu físico pouco favorável e sua saúde periclitante

nunca o impediram de agir segundo os impulsos da mocidade. E podemos mesmo

dizer que, em certas ocasiões, ele se esquecia das regras de prudência. Suas rela-

ções com os libertinos é um exemplo disso, e principalmente o episódio, que mui-

to serviu para as acusações e calúnias dos adversários, de haver hospedado, em

sua casa na Holanda, Valle du Debarreau, o príncipe dos dissolutos e dos ateus.

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Esses momentos de imprudência, se de certa maneira comprometem o seu

programa de cautela e bom senso, servem, por outro lado, para contestar as acusa-

ções de covardia que lhe fizeram. Leroy desmente a lenda da impassibilidade do

filósofo. Sua descrição incisiva do temperamento de Descartes merece ser trans-

crita: “Ele é nervoso. Tem o nosso nervosismo. É irritável. Digamos, numa pala-

vra, que ele é apaixonado”. Nada mais justo que esse temperamento impulsivo,

apesar de controlado por um raciocínio poderosamente organizado, levasse para a

arena filosófica a sua habilidade e a sua audácia de espadachim.

Para não passarmos violentamente do espadachim ao filósofo, coloquemos

entre ambos o escritor, que é um dos mais representativos da literatura francesa.

Barié teve o cuidado de verificar a permanência de expressões típicas da arte de

esgrima na correspondência de Descartes. Aliás, já acentuamos a maneira por que

Descartes entrou no terreno literário, com a publicação do Discurso. Verdadeiro

golpe de esgrima. Escondendo-se no anonimato e “desfechando” o tratado em

francês, Descartes, por assim dizer, atacou e se defendeu.

Quanto às expressões, Barié observa: “Retornam sempre mesmo no Des-

cartes maduro, e ao tratar de assuntos puramente científicos, expressões que são

próprias de quem tem familiaridade com a arte de esgrima: alguns geômetras de

Paris quiseram servir-lhe de padrinhos, ou como são aqueles que se recusam a

bater-se em duelo contra os que não consideram da sua mesma classe social. Tra-

ta-se de expressões de cartas a Mersene. Barié comenta: “Ninharias, mas frases

que, entretanto, não se encontram com freqüência, na literatura filosófica, e menos

ainda na Matemática”.

No Discurso, como nas demais obras, podemos anotar passagens seme-

lhantes, como estas: ... posso dizer que não passam de seqüências e dependências

de cinco ou seis principais dificuldades que superei, e que conto como outras tan-

tas batalhas, em que tive a sorte do meu lado.

Ou ainda: Não receio mesmo dizer que penso não ter necessidade de ga-

nhar senão mais duas ou três semelhantes, para chegar ao termo dos meus inten-

tos.

Frases assim, imagens e expressões incomuns na literatura filosófica e ci-

entífica, principalmente da época, podem ser colhidas em quantidade nos textos

cartesianos, demonstrando a constante da influência da esgrima no estilo do filó-

sofo.

Leroy escreveu um livro curioso, mas injusto, ou pelo menos falso em suas

conclusões, Descartes, le Philosophe au Masque, em que apresenta o filósofo co-

mo mascarado. Barié assinala que Descartes é ali apresentado “como um grande

cientista, um grande filósofo, mas também um grande impostor”. Para Leroy,

Descartes tinha sempre “um pensamento oculto por trás da fronte”. Mas o próprio

Leroy adverte: “Descartes se sente em perigo e se defende como pode”. Noutro

trecho afirma, contra a sua própria tese: “Dados estes fatos, podemos assegurar,

mesmo a priori, que será falsa toda imagem do filósofo que pretenda reduzi-lo a

um traço essencial”.

Não, Descartes não era um mascarado. Já o vimos no caso de suas ligações

com os libertinos, de suas imprudências e audácias. E é ele mesmo, numa carta a

Régio, quem coloca muito bem o problema, nestes termos: “Aprovo o que tem a

prudência de calar, em certas ocasiões, e não dar a público tudo o que pensa. Mas

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escrever, sem necessidade, qualquer coisa contrária aos seus próprios sentimentos,

e querer persuadir a esse respeito os leitores, considero uma baixeza e um verda-

deiro crime”. Leroy entende que este trecho confirma a sua tese. Mas parece evi-

dente que não. Descartes apenas reafirma o seu princípio de prudência, ao mesmo

tempo que define o seu conceito de sinceridade filosófica e literária.

A ESGRIMA FILOSÓFICA

Admitindo-se a posição sincera e leal de Descartes, numa contingência

histórica bastante complexa, não será difícil compreender-se a série de dificulda-

des da sua luta. Descartes começa pela dúvida, não a metódica, que só mais tarde

aparecerá, mas a intuitiva. Ele duvida da solidez e da veracidade dos conhecimen-

tos que lhe deram em la Flèche. Aliás, Gilson é de opinião que a dúvida e o pró-

prio método de Descartes começaram a nascer ainda no interior do colégio. É essa

dúvida que o leva a pôr os livros de lado, para correr mundo e ver as coisas com

os seus próprios olhos.

A seguir, Descartes percebe a ilusão dos sentidos. Também o livro do

mundo o pode enganar, como tem enganado a tantos. Mas o curioso é que ele não

põe em dúvida aquilo que é a própria base do mundo falso em que se encontra: a

fé. Landormy entende que se trata de timidez, mas admite que o filósofo seja sin-

cero. O que nos parece é que Descartes, cujo temperamento espiritual ficou bem

demonstrado no caso da memorável noite dos sonhos, possuía arraigado sentimen-

to religioso. Sua dúvida, portanto, não podia atingir esse ponto de certeza que ha-

via em seu espírito, e que também se esclareceu no cogito.

Começa aí sua primeira dificuldade filosófica. De que maneira resolverá

ele a situação. De um lado, está a incerteza de todas as coisas; de outro lado, a cer-

teza da fé. O filósofo-espadachim não faz mais do que se pôr em guarda. Firma os

pés em terreno conhecido, aceitando a divisão escolástica de duas hipóstases de

verdade, e conclui: “... as verdades reveladas estão acima da nossa inteligência, e

não ousarei submetê-las à fragilidade dos meus raciocínios”. Atitude perfeita do

espadachim consciente, que delimita o seu campo de ação, medindo com os olhos

o alcance de seus golpes.

Alia-se, porém, a esse gesto prático, alguma coisa de irônico, que parece

brotar-lhe do subconsciente, e justifica as desconfianças de Leroy. Ele afirma, e

vemos sem querer um sorriso voltaireano em seus lábios, que “há homens, e há

aqueles que são mais do que homens”. Aos primeiros, aos quais ele pertence,

compete construir laboriosamente o conhecimento. Os outros recebem a revelação

divina.

Mas com essa atitude, com esse mettre em garde de esgrimista, que ainda

não é senão preparação para a luta, Descartes já fez o que Abelardo não consegui-

ra nem poderia conseguir: separou a Filosofia da Teologia, rompeu a subordina-

ção escolástica. Dali por diante, embora respeitando aqueles que são “mais do que

homens” e possuem a ciência revelada, o filósofo cuidará da sua tarefa terrena

com inteira liberdade. A Ciência, por sua vez, poderá desenvolver-se livremente,

nas mãos dos “homens simplesmente homens”, enquanto os problemas da Religi-

ão continuarão nas mãos dos “mais do que homens”.

Feita, porém, essa separação. Descartes se encontra numa situação perigo-

sa. Pôs-se habilmente em guarda e delimitou com segurança o seu campo de ação,

mais lhe falta a espada. Como esgrimir agora? Sim, pois a Filosofia e a Ciência,

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sem a base da Revelação, flutuam no vácuo. Tudo é incerto ao seu redor. Resta-

lhe a fé, é verdade, mas esta nada tem mais a ver com os problemas da razão e do

sensível. A fé lhe dá somente a segurança do transcendente, daquilo que não lhe

compete. Descartes deve pois encontrar a sua espada, para continuar esgrimindo.

E para encontrá-la, traça conscientemente o caminho da dúvida metódica.

Acusá-lo-ão de fingir que duvida. Como pode duvidar, se conserva no co-

ração a certeza da fé? Mas é o próprio Descartes quem coloca o problema, em sua

meditação primeira: “Eis por que penso que não farei mal se, tomando com pro-

pósito deliberado um sentimento contrário, eu me engano a mim mesmo e finjo

por algum tempo que todas essas opiniões são inteiramente falsas e imaginárias,

até que, enfim, tendo igualmente equilibrado os meus preconceitos antigos e no-

vos, de maneira que eles não façam pender a minha opinião mais de um lado que

do outro, meu julgamento não seja mais dominado por maus usos e desviado do

caminho reto que o pode conduzir ao conhecimento da verdade”. Como se vê, o

que importa é descobrir o “caminho reto”, seguro, límpido, sem sombras de dúvi-

das e enganos. Um espírito arbitrário poderá sustentar que isso é fingimento. Mas

um espírito sensato compreende o método do filósofo e a sua posição.

Toda a cultura tradicional se assentava em hipóteses, em suposições, em

afirmações dogmáticas. O mundo da Escolástica era o mundo da certeza absoluta

em todos os setores. A certeza, porém, vinha do passado e da revelação. As Escri-

turas e Aristóteles, eis as fontes da certeza, ou pelo menos as suas bases princi-

pais.

Descartes sabia que na estrutura de certezas desse mundo havia, de fato,

muito coisa certa. Mas como discernir essas coisas, se estavam misturadas a tantos

erros? Sua atitude, segundo, aliás, uma de suas próprias imagens, foi a do homem

sensato que, para separar num cesto as coisas úteis das inúteis, põe todas elas para

fora. Era mesmo necessário fingir que duvidava de tudo, para que tudo fosse sub-

metido à verificação.

A RECONSTRUÇÃO DO MUNDO

Assim, pela dúvida metódica, Descartes consegue destruir não somente o

mundo da Escolástica, mas o próprio mundo exterior, em todos os seus pormeno-

res. E embora guardando um respeito cauteloso pelo transcendente acaba invadin-

do também a área sagrada, para submetê-la ao critério da dúvida. Nem mesmo

Deus escapará desse dia de juízo.

Descartes começa por duvidar do conhecimento obtido através dos senti-

dos, pois é evidente que os sentidos nos enganam a respeito de muitas coisas. Du-

vida, depois, das percepções, dos juízos, e afinal da própria razão, pois verifica

que em todos esses campos podemos enganar-nos. É assim que não podemos ter

certeza de nada, nem mesmo da existência das coisas exteriores, da existência do

mundo. Mas depois da negação geral, uma coisa subsiste, único ponto de certeza

em meio às ruínas do Cosmos: Se eu duvido, eu não posso pelo menos duvidar

que duvido; e se duvido é porque penso; e se penso é porque existo.

Por esse processo, Descartes chega à sua fórmula básica: Cogito, ergo

sum: penso, logo existo. O cogito se torna então uma área de certeza, o ponto em

que Arquimedes poderia firmar a alavanca para mover o mundo. Descartes se fir-

ma nesse ponto. Mas, com isso, se encontra isolado.

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Tem certeza de sua própria existência, mas não tem nenhuma outra. Há um

abismo entre o ser que pensa no centro do cogito, e o universo exterior.

Como solucionar o problema da passagem do eu para o Universo? Descar-

tes mergulha no cogito, aprofunda-o, pois não há outro caminho a seguir. E é no

próprio cogito que ele de repente se surpreende diante de Deus. Descobre assim,

que não está sozinho. Deus está com ele. Dessa constatação lógico-psicológica

podemos partir para a conseqüência teológica de que Deus está no Homem, ou

como dizem os místicos, se oculta no mais profundo da criatura.

Mas o que interessa a Descartes não é isso. É, pelo contrário, reconstruir a

Ciência na base da certeza. A primeira certeza foi atingida, com a evidência da e-

xistência individual. Dessa, surgiu a segunda, que é a existência de Deus. Veja-

mos melhor como isso acontece: posso enganar-me a respeito de tudo, inclusive

do meu corpo, supondo que o possuo e na realidade não o possuindo; mas não

posso enganar-me, de maneira alguma, quanto à realidade de que estou pensando,

pois do contrário não haveria pensamento. Há, pois, no pensamento, uma verdade

intrínseca, que se impõe por si mesma, que é evidente. Essa será a primeira regra

do método: só aceitar o que é evidente.

Resta saber como foi que Descartes descobriu Deus no cogito. É que o

pensamento, sendo verdadeiro, também a sua autoconsciência terá de sê-lo. Ora, o

pensamento conhece a si mesmo e sabe que é imperfeito, entretanto abriga uma

idéia de perfeição, que não se encontra nele mesmo. Essa idéia é a do Ser Supre-

mo, que tem de existir como fundamento do ser pensante. Ela é tão evidente quan-

to a existência do próprio pensamento.

Descartes desenvolve então a teoria das provas da existência de Deus. A

primeira prova, como vimos, é a idéia da perfeição, existente no cogito; a segunda

é a própria evidência da existência da alma; a terceira é o princípio de causalida-

de, que, aplicado, às duas primeiras, demonstra logicamente a existência de Deus.

Mas há uma quarta prova, chamada argumento ontológico, e que tem suas raízes

em Santo Anselmo. É a idéia de Deus em si mesma, por sua própria evidência, e-

xistente no Homem. Da mesma maneira por que a idéia do triângulo implica a e-

xistência de suas propriedades geométricas, a idéia de Deus implica a existência

da suprema perfeição.

E assim, a passagem do eu para o Mundo está assegurada. Provada a exis-

tência de Deus, chegamos à fonte e raiz da realidade, verificando ao mesmo tem-

po que ela é interior e exterior. A verdade procede naturalmente de Deus, pois é

uma conseqüência de sua própria e necessária perfeição. Surge ainda uma hipóte-

se duvidosa: se Deus quisesse nos iludir, ele poderia enganar-nos quanto a uma

realidade falsa. Nesse caso, porém, ele não seria Deus, mas um Gênio Maligno.

Este é um dos golpes mais impressionantes do espadachim, hipótese da

mais pura esgrima intelectual, e que se destina a salvar, ao mesmo tempo, a per-

feição de Deus e a retidão do pensamento humano. Pois se Deus é perfeito, não

pode abrigar imperfeição. Ele é a garantia da certeza da nossa faculdade de co-

nhecer. Basta que usemos bem essa faculdade, e teremos a certeza da realidade.

Está assim reconstruído o mundo da certeza. Agora, sim, podemos afirmar

que existimos, que Deus existe e que o mundo existe. Mas o Universo reconstruí-

do apresenta algumas dificuldades sérias, que vão constituir a problemática da es-

cola cartesiana. A principal dificuldade, a fundamental, resulta do dualismo dessa

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concepção do mundo. Existem naturalmente dois mundos justapostos, um do pen-

samento e outro material. Descartes os chama: res cogitans e res extensa, ou, coi-

sa pensante e coisa extensa. São as substâncias do mundo.

Entretanto, essa dualidade se mostra rígida. Não há permeabilidade em sua

estrutura. Não há passagem de uma substância para outra. O pensamento será

sempre pensamento, a matéria sempre matéria. Descartes se consola com o fato de

ambas as substâncias se encontrarem em Deus, e também no Homem, que por seu

pensamento pode conhecer e analisar a matéria. Mas o problema subsistirá e vai

tentar soluções futuras.

Pierre Gassend, o epicurista, lembrará que o mundo epicureano não apre-

sentava essa dificuldade, e proclamará que o Atomismo é mais coerente e mais ci-

entifico que a doutrina das substâncias inconciliáveis. Pascal se rebelará contra o

racionalismo absolutista de Descartes, proclamando os direitos do coração. Geu-

linx, discípulo holandês de Descartes, procura resolver o problema das substân-

cias, e Nicolas Malebranche faz o mesmo. Ambos recorrem à fonte comum das

substâncias, Deus, como o meio de ligação entre elas. Surge, porém, a pergunta

embaraçosa: Deus pode conter matéria em sua perfeição? Malebranche recorre ao

platonismo: em Deus não há matéria, mas as idéias das coisas materiais.

O Cartesianismo exerceu, entretanto, influência decisiva nos rumos do

pensamento. Realmente superou o mundo escolástico e abriu as portas da mais

completa renovação espiritual e intelectual da Humanidade. Descartes conseguiu a

vitória desejada. Suas incongruências, como acentua Bertand Russel, foram tão

fecundas como os seus acertos. Os problemas criados pela sua filosofia a salvaram

de se anquilosar em novo escolasticismo. Descartes, o filósofo-espadachim, tor-

nou-se o pai do mundo moderno. Não somente a Ciência e a Filosofia contempo-

râneas decorrem do seu pensamento, tão dificilmente construído num mundo hos-

til, mas a própria estrutura da nossa civilização se enraíza nele.

Tem ainda, o Cartesianismo, a seu favor – um dos maiores acontecimentos

da história do pensamento: Espinosa. Esse reelaborador do sistema cartesiano está

para Descartes como Aristóteles para Platão. Começou atacando o problema das

substâncias, para demonstrar a impossibilidade da equação cartesiana.

A substância, afirmou Espinosa, só pode ser uma. Não há nem pode haver

mais de uma, pois então não seriam independentes, e com isso não seriam subs-

tâncias. A matéria e o pensamento são apenas atributos da substância única. E tan-

to Descartes como os ocasionalistas já haviam intuído isso, quando falavam da u-

nião das substâncias em Deus.

Espinosa é o sistematizador do Panteísmo. Deus, substância única, é o

próprio Universo. Pensamento e matéria são atributos eternos e infinitos dessa

substância. Os seres e as coisas são afecções ou modos dos atributos. Assim, o

Homem, por seu corpo, é um modo da res extensa, e por seu pensamento, um mo-

do da res cogitans.

A teoria do paralelismo dos atributos resolve o problema da interação.

Alma e corpo, por exemplo, são modalidades paralelas da substância, através dos

seus atributos. Mas a realidade única e absoluta é a de Deus, substância infinita.

Espinosa o afirma no seu tratado, Ética, extraordinário monumento que encerra a

sua doutrina: “Além da substância e dos modos, nada existe, e os modos nada

mais são do que as afecções dos atributos de Deus”.

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Blaise Pascal. (1623-1662)

PASCAL: A RAZÃO É FRÁGIL

Livro: História da Filosofia. Os Pensadores

“Não posso perdoar Descartes; bem quisera ele, em toda a sua filosofia,

passar sem Deus, mas não pôde evitar de fazê-lo dar um piparote (Pequena pancada

com a cabeça do dedo médio ou do indicador, que, momentaneamente apoiados ao polegar, dele se

soltam com força) para pôr o mundo em movimento: depois do que, não precisa mais

de Deus.”

Esse violento ataque é de Blaise Pascal e consta da sua obra póstuma, Pen-

samentos. É quase como afirmar que Descartes é trapaceiro: Deus só foi invocado

para servir de avalista de uma concepção do mundo que o cogito, abandonado a si mesmo, era incapaz de sustentar. Matemático e físico, mas também fervoroso cris-

tão que segue o jansenismo – um movimento católico fundado pelo holandês Cor-

nélio Jansênio, suspeito de heresia -, Pascal baseia-se em suas práticas científicas

e religiosas para criticar as pretensões do racionalismo cartesiano.

Filho de um alto magistrado e encarregado dos impostos, Blaise Pascal

nasce em 1623 em Clermont-Ferrand, França. Segundo sua irmã, Gilberte, aos 12

anos ele consegue deduzir sozinho, sem nenhum conhecimento prévio, as 32 pro-

posições geométricas de Euclides. A afirmação é duvidosa, mas o talento científi-

co precoce de Pascal é inegável. Aos 16 anos, escreve Ensaio sobre as Cônicas (Cônica: Geom. Intersecção de um cone do segundo grau com um plano que não contém o vérti-

ce); aos 19, projeta a “máquina aritmética” (a primeira calculadora mecânica); aos

23, passa a investigar o fenômeno da pressão atmosférica e interessa-se pelo jan-

senismo.

A doutrina formulada por Jansênio (1585-1638) retoma com rigidez o pen-

samento de Santo Agostinho, segundo o qual a salvação depende unicamente da

graça divina, concedida apenas aos eleitos. Na França, os jansenistas, sob a dire-

ção de Saint-Cyran (1581-1643), sediam-se na abadia de Port-Royal, nas proximi-

dades de Paris, onde se consagram ao retiro espiritual e ao ensino. Seu principal

adversário são os jesuítas e sua doutrina do livre-arbítrio, adotada oficialmente pe-

la Igreja. Por isso, vários papas condenam sucessivamente o jansenismo, vendo

nele uma perigosa heresia, comparável ao protestantismo. Além disso, a atitude

jansenista de indiferença frente ao mundo – decorrente de sua teologia da graça –

faz com que a monarquia francesa veja nesse movimento um germe de insubordi-

nação. Em 1637 o abade Saint-Cyran é preso. Diante dessas perseguições, Port-

Royal passa à ofensiva, contando para isso com um polemista implacável: Pascal.

Publicada entre 1656 e 1657, a série de Cartas Provinciais, de Pascal, é

uma contundente defesa do jansenismo. Mais do que isso, ele ataca violentamente

os jesuítas, ridicularizando-lhes os costumes e os malabarismos retóricos para jus-

tificar qualquer situação. Mas a condenação definitiva do jansenismo pelo papa

Alexandre VII obriga-o a se calar. Dedica-se então a escrever Apologia da Religi-

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ão Cristã, cujos fragmentos seriam publicados postumamente sob o título Pensa-

mentos.

O coração tem razões...

“O coração tem suas razões, que a razão não conhece.” A frase de Pensa-

mentos, freqüentemente tomada como um indicativo da oposição entre a razão e o

sentimento, nada tem a ver com a idéia que a tornou famosa. Na verdade, as “ra-

zões do coração” não se referem aos sentimentos, mas aos princípios, como os da

geometria, que não são demonstráveis. Escapam à razão, mas não os admitir como

verdades impossibilitaria qualquer raciocínio.

Por ter realizado cuidadosas pesquisas científicas, Pascal sabe que certos

conhecimentos não se obtêm pela dedução, numa cadeia de razões a partir de al-

guns princípios, mas pelos resultados de experimentos. Sabe também que para ca-

da tipo de problema deve-se elaborar um método adequado, e não utilizar um úni-

co método.

Isso significa que a mathesis universalis não tem nada de universal e que a

sua validade só se aplica à matemática. Autor de importantes obras nesse campo –

como os estudos sobre o cálculo de probabilidades -, Pascal conhece bem os pro-

cedimentos dessa ciência e reconhece a evidência de suas demonstrações. Mas is-

so nada tem a ver com o “bom-senso”, que Descartes acredita estar presente em

todos os homens. Ao contrário, segundo Pascal, a maioria das pessoas não possui

o “espírito de geometria” e, por “falta de hábito”, não se volta para os princípios

matemáticos, que são “palpáveis, mas afastados do uso comum”.

O que é “do uso comum” são os princípios do “espírito de finura”, que re-

quer apenas “boa vista”, capaz de, “num instante, ver a coisa num só golpe de vis-

ta, e não pela marcha do raciocino”. A cadeia de razões, que progride segundo a

ordem e a medida, não se presta a esse espírito de finura de pessoas “sutis”. Estas

“não podem ter a paciência de descer até os primeiros princípios das coisas espe-

culativas e de imaginação, que nunca viram no mundo e que estão completamente

fora de uso”.

Como se não bastasse o fato de a matemática não poder se pretender o

modelo de conhecimento ou o exemplo mais perfeito da mathesis universalis, o

que dizer das idéias claras e distintas, as únicas que Descartes admite como fora

de qualquer dúvida e sobre as quais constrói a cadeia de razões? São realmente

inquestionáveis ou não passam de idéias-limites, que devem ser aceitas como evi-

dências, já que a razão é impotente para demonstrá-las? Nesse caso, as idéias cla-

ras e distintas indicam a força da razão que delas tudo deduz, mas a sua fraqueza,

por assentar-se sobre bases indemonstráveis: “Ardemos no desejo de encontrar

uma plataforma firme e uma base última e permanente para sobre ela edificar uma

torre que se erguerá até o infinito; porém, os alicerces ruem e a terra se abre até o

abismo”.

Além disso, que certeza pode haver no espírito humano, perturbado “pelo

primeiro barulho que se faça em volta dele? Não vos espanteis se não raciocina

bem agora; uma mosca zumbe aos seus ouvidos: é o bastante para torná-lo inca-

paz de conselho. (...) Poder das moscas: ganham batalhas, impedem nossa alma de

agir, comem-nos o corpo”, diz Pascal. E acrescenta: “Como gosto de ver essa so-

berba razão humilhada e suplicante!”

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Mas Pascal não é irracionalista. Se critica o “espírito da geometria”, de uso

limitado e que, além disso, se apóia sobre princípios frágeis, é para nele denunciar

a extrema presunção do ser universal, fonte de todas as certezas. Que mal há em

não conseguir a universalidade ou em não obter a completa certeza das coisas?

A própria geometria supõe que o espaço seja divisível ao infinito. Mas é

tão certo que essa idéia de divisão ao infinito seja clara e distinta? Ela não é, ao

contrário, inteiramente obscura, incompreensível e inconcebível? No entanto, é

necessária. Não tanto porque seja verdadeira – isso não podemos saber -, mas por

servir à geometria, que a utiliza em suas demonstrações, estas sim evidentes. Em

suma, para provar a força da matemática não é preciso a pretensão de que nela tu-

do é certo e verdadeiro.

O místico que fazia ciência

É comum dividir-se a biografia de Pascal numa primeira fase, a do cientis-

ta, e numa segunda, a do “místico-religioso” seguidor do jansenismo, retirado do

mundo. Na realidade, porém, Pascal nunca abandonou a ciência. Em 1658, em

plena “fase mística”, realizou estudos geométricos sobre a ciclóide. Tampouco se

afastou completamente do mundo: em 1662, no ano de sua morte, abriu uma em-

presa de linha regular de carruagens para vários passageiros, pioneiro sistema de

ônibus urbano. O cientista e o “místico” coexistem, ou melhor, há em Pascal um

pensamento original que se nutre desses dois aspectos de sua vida, ao mesmo

tempo que lhes dá fundamentação.

Um exemplo do método científico de Pascal é a famosa investigação sobre

a pressão atmosférica, inspirada em uma experiência realizada em 1644 por Evan-

gelista Torricelli (1608-1647). Segundo essa experiência, o mercúrio, colocado

num tubo fechado em uma das extremidades e virado em uma cuba também con-

tendo mercúrio, desce até um certo nível, que se mantém sempre constante. Por

que o mercúrio não desce mais? E o que contém o espaço aparentemente vazio en-

tre a extremidade do tubo e a coluna de mercúrio, se nada ali foi introduzido? À

primeira questão, Torricelli formulou a hipótese de que a pressão do peso do ar

sobre a superfície do mercúrio na cuba contrabalançaria o peso do mercúrio no

tubo, equilibrando a coluna naquele nível. A segunda questão, porém, ficaria sem

resposta: Aristóteles já havia estabelecido que “a natureza tem horror ao vácuo”;

por isso, aquele espaço deveria conter algo. Mas o quê?

Pascal encarrega-se de examinar essas questões. Se o espaço vazio conti-

ver um vapor, como sustentavam alguns, então a coluna do líquido deve ser tanto

mais baixa quanto mais volátil for a substância empregada, devido à pressão do

vapor que exala. Pascal testa o vinho e a água, e os resultados não confirmam a

hipótese: a coluna do vinho, mais volátil do que a água, é mais alta.

E se a hipótese do peso do ar for correta? Nesse caso, o nível da coluna

deve ser tanto mais baixo quanto maior for a altitude em que a observação se rea-

lize, pois em lugares elevados o peso do ar deve ser menor. Realizada a experiên-

cia, em 1648, na planície e no alto de uma montanha, a hipótese é confirmada: no

alto da montanha, a coluna de mercúrio é mais baixa.

Registrados em obras como Novas Experiências sobre o Vácuo, Tratado

do Equilíbrio dos Licores e Tratado da Gravidade da Massa de Ar, esses experi-

mentos abrem caminho para o uso do barômetro – instrumento baseado no tubo de

Torricelli – na medição da altitude e das condições meteorológicas. Também i-

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nauguram a hidrostática, que analisa a pressão dos fluidos em geral. Além disso,

mostram como a explicação de certos fenômenos não pode ser deduzida de prin-

cípios, numa cadeia de razões. Em experimentos desse tipo, o “espírito de geome-

tria” de nada vale, é preciso o “espírito de finura” para perceber que para determi-

nado problema existem certos procedimentos – e só esses.

Mas Pascal não á um apressado adepto da certeza. Para ele, a única certeza

é a evidência da falsidade, como ocorreu na hipótese da presença de vapor no es-

paço do tubo. Mas dessa constatação não decorre necessariamente a confirmação

da hipótese do vácuo. Ela é apenas mais provável do que supor a existência de um

misterioso corpo. Mesmo quando a experiência confirma a hipótese, isso não sig-

nifica a certeza da verdade, mas que ela é mais provável, pois as outras conduzem

a absurdos.

O mesmo critério aplica-se às questões religiosas. A transmissão do peca-

do original, por exemplo, é incompreensível, mas “sem esse mistério, o mais in-

compreensível de todos, somos incompreensíveis a nós mesmos”. Como compre-

ender o homem – situado entre o infinito e o nada, ser contraditório que reúne fra-

queza e grandeza – a não ser pela doutrina que afirma a existência do homem no

estado de graça e sua queda posterior? Certamente, o pecado original não é uma

idéia clara e evidente, ao contrário. Mas é preciso admiti-lo como provável para

que a condição humana adquira sentido.

Esses argumentos não pretendem provar a existência de Deus, que está

sempre oculto. O que Pascal propõe é antes um convite para experimentar esse al-

go provável. Já que Deus se esconde, por que não admitir por princípio a sua exis-

tência e viver de acordo com esse princípio, isto é, de modo cristão?

Se o homem apostar na inexistência de Deus e perder, o castigo será a

condenação eterna. Mas, se apostar na existência de Deus e perder, na verdade

nada perderá. E, se ganhar a aposta, o lucro será infinito, pois se ganha a vida e-

terna. Por que esperar, então? Pascal conclama: “Apostai, pois (...), sem hesitar”.

A condição humana, para Pascal, é limitada e precisa reconhecer-se assim.

Esse é, talvez, um dos momentos em que aparece com mais nitidez a relação in-

dissociável entre o cientista e o religioso. O que é o homem? “Nada”, diz Pascal,

“em relação ao infinito; tudo em relação ao nada; um ponto intermediário entre

tudo e nada (...). Conheçamos, pois, nossas forças; somos algo e não tudo; o que

temos de ser priva-nos do conhecimento dos primeiros princípios que nascem do

nada; e o pouco que temos de ser impede-nos a visão do infinito.”

Que altivez auto-suficiente é então essa, a do homem e sua razão, que pre-

tende abarcar todas as coisas e até mesmo arvorar-se em demonstrar a existência

de Deus? É preciso que se admita a limitação do homem e que se reconheça que,

para ele, Deus é completamente incompreensível, está e sempre estará oculto. Por

isso, Pascal não faz metafísica nem teologia: os princípios e Deus não são conce-

bíveis, muito menos passíveis de demonstração.

Estranha defesa da fé, caso se leve em conta que toda a tradição cristã pro-

curava provar a existência de Deus. Mas, ao mostrar as insuficiências da razão, ao

apontar para as limitações do homem, Pascal restitui a força da fé: é preciso crer,

não compreender. E, por não ser demonstrável, o conteúdo da fé é uma aposta:

“Incompreensível? Nem tudo o que é incompreensível deixa de existir”.

*

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Nicolas Malebranche (1638-1715)

MALEBRANCHE: A RAZÃO É DEUS

Livro: História da Filosofia. Os Pensadores

Se Pascal apostava num “Deus dos cristãos” contraposto ao “Deus dos fi-

lósofos”, Malebranche radicaliza as posições e unifica as duas visões de Deus

numa só. A razão é Deus, e Deus é racional. A investigação científica vai do sim-

ples ao complexo, numa cadeia de razões, porque a ordem e a medida são também

o modo pelo qual Deus criou o mundo.

Na verdade, Malebranche procura identificar o pensamento cartesiano ao

cristianismo. Mas, para isso, depura do pensamento de Descartes aspectos alheios

ao cristianismo, de modo a reafirmar a doutrina cristã. As noções de “visão em

Deus” e de “causa ocasional” cumprem uma função fundamental nesse esforço.

Nicolas Malebranche, membro de uma família nobre, nasce em 1638, em

Paris. Recebe uma rígida educação religiosa. Estuda filosofia e teologia na Sor-

bonne. Em 1660, ingressa na Congregação do Oratório e, em 1664, ordena-se sa-

cerdote. Conta-se que nesse mesmo ano, ao ler Tratado do Homem, de Descartes,

foi tomado de tamanha emoção que se “converteu” à filosofia. Desde então dedi-

cou-se aos estudos e escreveu obras como Da Investigação da Verdade, em três

volumes, Tratado da Natureza e da Graça, Tratado Moral, Tratado do Amor de

Deus e outras, que provocaram acirradas e prolongadas polêmicas, envolvendo te-

ólogos e cartesianos. Morre em 1715.

Em sua busca da conciliação entre a razão e a fé, a filosofia e o cristianis-

mo, ele desloca o centro do pensamento de Descartes do cogito para Deus. Para

Malebranche, as idéias claras e distintas – as únicas que podem verdadeiramente

constituir o conhecimento – equivalem-se às idéias no sentido platônico: são mo-

delos. O conhecimento sobre uma coisa não é, então, o conhecimento direto dessa

coisa, mas da idéia que a representa.

A idéia do corpo como coisa extensa, que não se confunde com a alma, é

um exemplo. Só podemos conhecer este ou aquele corpo (limitação da extensão)

porque temos antes a idéia de extensão. E se são os corpos que delimitam a exten-

são, essa idéia prévia só pode ser a de extensão infinita. A idéia de infinito, po-

rém, jamais poderia ser representada pelo cogito, que é finito. Além disso, a pró-

pria alma não pode ser conhecida. Mesmo assim, concebemos as idéias como dis-

tintas da alma. Desse modo, se o cogito é incapaz de representar a idéia de infini-

to, mas a compreende como distinta da alma, essa idéia, então, só pode estar em

Deus. A alma conhece as coisas por meio de suas idéias somente na medida em

que se une a Deus. Conhecer o mundo é aproximar a alma das idéias que Deus

contém na sua essência – e nisso consiste a teoria do conhecimento pela visão de

Deus.

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A supremacia de Deus também se manifesta na teoria de Malebranche so-

bre o movimento. Qual é a causa do movimento, se a idéia de extensão – que de-

fine os corpos – não contém a de movimento? Ela só pode estar fora do corpo, em

Deus. Descartes já havia formulado a concepção de que Deus é a causa eficiente

(ou motriz) de todo movimento, mas, para dar conta dos movimentos incessantes,

teve de admitir que Deus renova a todo momento a sua ação sobre o mundo. Para

Malebranche, porém, isso é inaceitável. O Deus da ordem e da medida, de verda-

des perfeitas e eternas, apenas estabelece leis universais e imutáveis; nunca pode-

ria ser causa de movimentos particulares. Se estes ocorrem é porque são variações

(mas não mudanças) dessas leis em casos particulares. São ocasiões em que elas

se manifestam. Cada movimento se explica pela causa ocasional, que, no entanto,

obedece às leis universais e divinas.

O alcance da doutrina da causa ocasional é duplo. De um lado, ao mostrar

que as causas de cada movimento estão subordinadas às leis universais, ela asse-

gura a própria universalidade da ciência, sem o que só haveria conhecimentos par-

ticulares de coisas particulares. De outro lado, recusando às coisas a possibilidade

de ser a causa de seu movimento, novamente confirma a soberania de Deus todo-

poderoso sobre suas criaturas.

O engano dos homens

Qual é a origem do engano dos homens? Malebranche aborda essa ques-

tão, propriamente metodológica, em âmbitos teológicos e cristãos. Conclui que há

duas fases na condição humana: antes do pecado original e depois dele. Antes do

pecado, a alma, apesar de unida ao corpo, estava mais associada a Deus, e por isso

havia o predomínio do entendimento, que colocava os sentidos e a imaginação a

Seu serviço. Depois do pecado, no entanto, verifica-se exatamente o contrário: a

alma afasta-se de Deus e se une mais ao corpo, tornando-se dependente deste. Os

sentidos, a imaginação e as paixões, nessa medida, desviam o entendimento para

coisas particulares e não para as idéias universais que estão em Deus.

O método que evita tais erros coincide então com a moral cristã. No plano

moral, deve-se abandonar as inclinações da alma que a fazem serva do corpo e di-

rigi-la para o bem universal, perfeito e imutável, isto é, a ordem. Do mesmo mo-

do, o conhecimento verdadeiro só pode ser alcançado se a alma recuperar a ordem

natural, isto é, sua união com Deus, afastando-se do corpo. “O amor à ordem”, es-

creve Malebranche, “não é apenas a principal das virtudes morais, mas é a única

virtude; é a virtude-mãe, fundamental, universal.”

As regras do método que decorrem do “amor à ordem” não são muito dife-

rentes das de Descartes. Malebranche propõe que só devem ser admitidas como

certas as proposições que apareçam “tão evidentemente verdadeiras”, de tal modo

que não as aceitar seria fazer mau uso da liberdade de escolha. Além disso, pres-

creve, como Descartes, a delimitação clara de um problema, a sua divisão em par-

tes, a eliminação do desnecessário, a procura de idéias que sirvam de medida co-

mum e a progressão do simples ao complexo.

Em outros aspectos, porém, Malebranche afasta-se do pensamento cartesi-

ano. Para ele, as únicas idéias claras e distintas são as de extensão e de número, o

que significa que as demonstrações racionais só são possíveis na física e na ma-

temática. Além disso, a alma – o cogito – também perde o privilégio de ser a pri-

meira idéia clara e distinta. Ela é, ao contrário, algo bem obscuro. “A alma mes-

ma”, afirma Malebranche, “não se conhece de modo nenhum; só tem o sentimento

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de si mesma e de suas modificações.” Desqualificando o cogito, ele reitera a ne-

cessidade da união da alma com Deus, que não é apenas a garantia das certezas do

cogito. Se este consegue chegar a algumas verdades é porque o faz pela visão em

Deus, pois só Deus contém em sua essência todas as idéias verdadeiras.

*

BARUCH ESPINOSA (1632-1677)

ESPINOSA: DEUS É NATUREZA

Livro: Historiada Filosofia. Os Pensadores

A grande virada da filosofia, na época, é dada por Espinosa. Seu pensa-

mento acarretou-lhe críticas, censura pública, excomunhão, banimento. A tudo ele

resistiu. Não abriu mão, nem mesmo por um momento, da liberdade de pensar, fa-

lar, escrever. Teve a “ousadia” de demonstrar, contra as idéias correntes, que a

imagem de um Deus senhor e soberano, superior a tudo e separado de todos

(transcendente), origina e justifica o poder político que submete e domina os ho-

mens.

Em Tratado Teológico-Político, Espinosa submete a Bíblia a uma rigorosa

crítica, baseada na análise gramatical da língua hebraica e na história do povo ju-

deu. A conclusão é a de que o conteúdo bíblico não se refere à verdade, mas ape-

nas estabelece os preceitos da conduta humana, o que reduz o esforço da teologia

a nada. Por exemplo, se Deus tivesse realmente se revelado a Moisés, os Dez

Mandamentos conteriam a verdade eterna e não a lei de apenas um povo.

Mas, mesmo admitindo o valor prático da religião, Espinosa vai mais lon-

ge e examina o significado histórico desses preceitos. No caso de Moisés, os Dez

Mandamentos possibilitariam a unificação de ex-escravos, fugidos do Egito, como

um povo que se acreditou “eleito” e que imaginou se submeter a um poder acima

dos homens.

A esses argumentos, que desvendam a natureza do poder político-

religioso, Espinosa associa uma concepção sobre Deus, o homem e o mundo ex-

posta principalmente em Ética (“demonstrada à maneira dos geômetras”, diz o

subtítulo, tamanho é seu rigor). Para Espinosa, conceber Deus como um ser trans-

cendente significa separar Deus e o mundo como duas substâncias distintas. E isso

é impossível pela própria definição de substância, que não admite nenhuma outra

substância a não ser Deus. O mundo, então, só pode ser constituído de infinitos

modos dos atributos que estão em Deus. Em outras palavras, Deus é causa, mas

causa imanente: causa e efeito estão em Deus.

Como então entender a relação entre causa e efeito? Certamente, não como

Criação: Deus não é um ser imperfeito e carente que precisou criar o mundo com

a finalidade de alcançar sua maior glória. Conceber Deus como Criador e causa

final do mundo é projetar as carências humanas na esfera divina. É imaginar um

Deus à imagem e à semelhança do homem e de suas imperfeições.

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Contra a idéia de Criação e de causa final, Espinosa propõe a de produção.

Deus, causa de si, livre e imanente, produz a si mesmo e, com isso, todas as coi-

sas, que são modos de seus infinitos atributos. Isso não se dá no tempo, pois ima-

ginar um antes e um depois da produção é concebê-la como Criação. A autopro-

dução de Deus efetiva-se na eternidade, fora do tempo e sempre atual.

Na produção, a causa e o efeito não são exteriores entre si, mas duas faces

complementares e simultâneas de uma mesma atividade produtora. Para Espinosa,

por exemplo, a definição de circunferência – tradicionalmente tida como conjunto

de pontos eqüidistantes do centro – toma a figura como já dada, exterior ao inte-

lecto, e apenas descreve uma de suas propriedades. A verdadeira definição deve

conter a essência, isto é, a causa. Assim, a circunferência (ou o círculo) é, como se

faz com um compasso, a “figura descrita por uma linha com uma extremidade fixa

e outra móvel”. Disso se deduzem todas as propriedades dessa figura, inclusive a

da eqüidistância dos pontos ao centro. Nessa definição, o ato de produzir e o pro-

duto não se separam.

Essa relação imanente, não separada, entre a causa e o efeito, chama-se

expressão. O produto expressa o produtor, e este se exprime no produto. Da mes-

ma maneira, Deus produz na extensão e no pensamento – os dois atributos conhe-

cidos da substância -, efeitos que são, cada qual no seu modo, expressões de sua

autoprodução.

Com isso, Espinosa dá solução à grande dificuldade de Descartes. Para es-

te, uma vez que a res cogitans (alma) é essencialmente distinta da res extensa

(corpo), o conhecimento só era possível pela representação, que converte as coisas

em idéias dessas coisas. Mas, para isso, Descartes também teve de elaborar uma

complicada teoria sobre a relação entre a alma e o corpo humanos.

Para Espinosa não é preciso nada disso. A noção de expressão assegura

que pensar ordenadamente é conhecer a ordem necessária das coisas. Além disso,

a própria relação, no homem, entre a alma e corpo, explica-se como relação ex-

pressiva. O corpo e a alma expressam-se mutuamente e constituem a unidade i-

manente do homem.

Aquilo que é contrário à imanência Espinosa dá o nome significativo de

servidão. A separação entre a causa e o efeito cria uma hierarquia que faz o efeito

depender da causa. É o que ocorre com os homens, quando neles se produzem e-

feitos cuja causa imaginam ser externa. A idéia de um Deus transcendente, criador

e soberano, a quem o homem deve obediência, é exatamente um exemplo político

dessa servidão. Nesta, a liberdade só pode existir como algo negativo: a desobedi-

ência.

Para Espinosa, porém, a liberdade define-se positivamente. Na qualidade

de modo, o homem também expressa, como causa adequada, a causa livre, auto-

produtora de Deus. Ser causa adequada significa conhecer clara e distintamente

que os efeitos verificados no homem (e fora dele) decorrem de sua natureza que,

por sua vez, é um modo necessário da natureza divina. Nessa medida, o homem é

também autoprodutor (causa adequada) de suas ações. A liberdade não é mais a

desobediência a uma autoridade transcendente, mas a obediência à necessidade

imanente da natureza divina.

Por isso, Espinosa reivindica a liberdade de pensamento e de expressão

contra as condenações e a censura de autoridades que lhe são exteriores e trans-

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cendentes. A respeito, escreve a filósofa brasileira Marilena Chauí: “Se pensar é

agir, pondo-se no movimento imanente das idéias verdadeiras, pensar já é prática

da liberdade”.

“Herege e sacrílego”, mas livre

Filho de imigrantes judeus de origem hispano-portuguesa, que se transferi-

ram para a Holanda por causa das perseguições religiosas, Baruch (ou Bento, em

português) de Espinosa nasce em Amsterdam, em 1632. Educa-se segundo a tra-

dição judaica, mas também recebe influências de correntes dissidentes do judaís-

mo, da escolástica, do platonismo renascentista e do cartesianismo, o que o afasta

cada vez mais da ortodoxia. Por esse motivo, em 1656 é acusado de “horrível he-

resia e sacrilégio” e excluído da comunidade judaica de Amsterdam – cidade que

também tem de abandonar. Desde então, vive em várias cidades holandesas, ga-

nhando a vida como polidor de lentes, ao mesmo tempo que estuda e escreve.

Longe da comunidade judaica, Espinosa integra-se à sociedade holandesa,

calvinista e burguesa, livre e tolerante. Mas essa tolerância tem seus limites: de

todas as obras de Espinosa, apenas duas (Princípios da Filosofia Cartesiana e seu

apêndice, Pensamentos Metafísicos) puderam ser publicadas. Tratado Teológico-

Político circulou anonimamente, e Ética só seria publicada após a morte do autor,

em 1677, em Haia.

Sua defesa intransigente da liberdade revela-se também na recusa do con-

vite para lecionar na Universidade de Heidelberg: “Creio que teria de deixar de

promover a filosofia se me dedicasse a ensinar os jovens. Além disso, não sei a

que limites teria de sujeitar a liberdade de filosofar, para que não parecesse dese-

jar subverter a religião estabelecida”. Essa precaução, porém, não lhe poupou a

fama de filósofo maldito. Judeu e ateu, para os cristãos, e herege excomungado,

para a comunidade judaica, Espinosa, mesmo vivendo na “liberal” Holanda, car-

regou esses estigmas por toda a vida. Mas sem jamais renunciar à liberdade de

pensamento.

Um pensamento que, para ele, dispensa o cogito de Descartes. “(...) não

podemos pôr em dúvida as idéias verdadeiras pelo fato de que talvez exista algum

Deus enganador (...)”, escreve. Um gênio maligno, mesmo que existisse, não seria

capaz de fazer duvidar, por exemplo, que a soma dos ângulos internos do triângu-

lo é igual a dois retos. Em outras palavras, “para a certeza da verdade não preci-

samos de nenhum outro sinal senão ter uma idéia verdadeira”.

Se as idéias verdadeiras são claras e distintas por elas mesmas, não reque-

rem a garantia de um Deus bom e veraz, como havia imaginado Descartes. Nessa

medida é que a certeza do cogito é dispensada. É inútil imaginar que, se duvido,

penso, e que, se “penso, logo existo”, pois, diz Espinosa, “não é necessário, para

que eu saiba, que saiba que sei”.

Mais do que isso, a certeza do cogito, que, segundo Descartes, nasce da

dúvida, é equivocada. Para Espinosa, a dúvida só conduz ao erro, pois ela existe

“por outra idéia que não é tão clara e distinta”. Por isso, “alguém proceder corre-

tamente, investigando o que se deve investigar primeiro, não interrompendo ja-

mais a concatenação das coisas (...), nunca terá senão idéias certíssimas, isto é,

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claras e distintas, pois a dúvida nada mais é que a suspensão da alma (...). Donde

se vê que a dúvida sempre nasce do fato de serem as coisas investigadas sem or-

dem”.

Espinosa separa-se de Descartes exatamente porque com este compartilha

a exigência do método que prescreve a ordem, e a cadeia de razões. Se a dúvida é

a falta de ordem, ela não pode ser o ponto de partida, nem tampouco o cogito, que

decorre da dúvida.

A ordenação metódica deve partir de uma idéia da qual tudo se deduz, mas

que, por isso mesmo, não é deduzida de nenhuma outra. Tal idéia corresponde à

substância, que, segundo Ética, principal obra de Espinosa, é “o que existe em si e

por si e por si é concebido, isto é, aquilo cujo conceito não carece do conceito de

outra coisa do qual deva ser formado”.

Mas a substância de Espinosa não é o Deus da religião. “Por Deus enten-

do”, diz o filósofo, “o ente absolutamente infinito, isto é, uma substância que

consta de infinitos atributos, cada um dos quais exprime uma essência eterna e in-

finita.” Atributo da substância designa aquilo que constitui a sua essência, e infini-

tos atributos é tudo. Isso inclui a extensão. Escândalo: Deus é também extensão,

que tradicionalmente era atributo do corpo e da matéria! Mas, declara Espinosa,

“desconheço a razão pela qual a matéria seria indigna da natureza divina”.

E se Deus, por definição, contém todos os atributos, então, da “necessida-

de da natureza divina devem resultar coisas infinitas em número infinito de mo-

dos”. Deus é a causa primeira e eficiente de todas as coisas. Mas isso não significa

que seja o Criador, pois, sendo Deus a única substância, nada pode existir fora de-

le. É por isso que a extensão não pode ser uma substância exterior a Deus, mas um

de seus infinitos atributos.

Todas essas considerações conduzem a uma surpreendente conclusão:

“Tudo o que existe, existe em Deus, e sem Deus nada pode existir nem ser conce-

bido”. Deus é a causa do mundo, mas o mundo existe em Deus, que é, por isso,

causa imanente, isto é, causa que produz efeito em si mesma. Em outras palavras,

Deus é o mundo: “Deus, ou seja, Natureza” (Deus sive Natura). Novamente o es-

cândalo: Espinosa é suspeito de panteísmo, que vê Deus em tudo.

Livre e sem livre-arbítrio

Mas entre Deus como causa de si e Deus como efeito de si há diferenças.

Ao primeiro, Espinosa dá o nome de Natura naturans (Natureza naturante) e, ao

segundo, de Natura naturata (Natureza naturada). A Natureza naturante é “o que

existe em si e é concebido por si, ou, por outras palavras, aqueles atributos da

substância que exprimem uma essência eterna e infinita, isto é, Deus, enquanto é

considerado causa livre”. A Natureza naturada, por sua vez, é “tudo aquilo que re-

sulta da necessidade da natureza de Deus (...), isto é, todos os modos dos atributos

de Deus”.

De um lado, causa livre e atributos da substância; de outro, resultado da

necessidade da natureza divina e modos dos atributos de Deus. Em que consiste

essa diferença? O termo “modo” (modus) designa as modificações, ou as “afec-

ções” da substância, isto é, “o que existe noutra coisa pela qual também é conce-

bido”. A água, por exemplo, apresenta-se e é concebida de várias maneiras, mas

estas são apenas modos de uma mesma coisa, a água. A diversidade das coisas

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corresponde então à diversidade dos modos, que, como afecções dos atributos da

substância, não têm existência por si, mas decorrem de Deus e existem em Deus.

Por isso, tudo o que existe, existe como resultado necessário da natureza

divina. Ser necessário (ou coagido) significa, para Espinosa, “o que é determinado

por outra coisa a existir e a operar de certa e determinada maneira”. Por essa defi-

nição, somente Deus não é necessário: é a única causa livre.

Mas causa livre não significa que Deus possa ter deixado de dar existência

a alguns modos dos seus atributos. Espinosa é radicalmente contrário à noção de

livre-arbítrio, pois, para ele, ser livre significa “o que existe exclusivamente pela

necessidade da sua natureza e por si só é determinado a agir”. Deus não tem o li-

vre-arbítrio para fazer com que a soma dos ângulos internos do triângulo deixe de

ser igual a dois retos – fazê-lo seria contrariar a necessidade da sua natureza -,

mas é livre porque essa necessidade não depende de nenhuma causa que lhe seja

exterior.

O mundo como Natureza naturada, constituído de modos dos atributos da

substância, é, por isso, infinito, eterno, imutável e inteiramente determinado pela

necessidade da natureza divina. Isso significa que as leis da natureza são constan-

tes e necessárias, inteiramente racionais. Conhecer as leis é conhecer pela causa, e

causa é razão: “Causa, ou seja, razão” (causa sive ratio), diz Espinosa.

Mas qual é a possibilidade de o homem alcançar o conhecimento dessas

leis? Natureza naturada, o homem é corpo e alma, que são modos finitos de dois

atributos conhecidos de Deus: a extensão e o pensamento. E se a alma é um modo

do pensamento de Deus, então a “alma humana é uma parte da inteligência divi-

na”. Nessa medida, “todas as idéias, enquanto se referem a Deus, são verdadei-

ras”. As idéias falsas – que Espinosa também denomina “inadequadas e confusas”

– só ocorrem quando não se referem a Deus, isto é, na medida em que se ignora

sua verdadeira causa.

Um exemplo de idéia inadequada e confusa é a de liberdade: “Os homens

enganam-se”, diz Espinosa, “quando se julgam livres, e esta opinião consiste ape-

nas em que eles têm consciência das suas ações e são ignorantes das causas pelas

quais são determinados”. Do mesmo modo que havia negado o livre-arbítrio em

Deus, Espinosa critica a idéia de vontade livre dos homens. E como poderia ser

diferente, se só Deus é causa livre, mas livre porque existe e age pela necessidade

de sua natureza?

Mas Espinosa também condena a noção de liberdade porque esta e outras

idéias inadequadas fazem do homem escravo das paixões. Amor e ódio, esperança

e temor são paixões que nascem de idéias inadequadas, cujas causas não são co-

nhecidas clara e distintamente e que, por isso, aparecem como situadas fora do

homem, dominando-o. De certo modo, isso é inevitável: é da natureza do ser (e do

homem) o esforço “por perseverar no seu ser”, e, nesse esforço – que Espinosa

denomina conatus -, o homem imagina coisas que possam favorecer ou desfavo-

recer a sua conservação, às quais associa as idéias de alegria ou de tristeza. Quan-

do a alma imagina uma causa externa da alegria, nasce o amor; o ódio, ao contrá-

rio, é o resultado da associação da idéia de tristeza a uma causa imaginada como

externa. As demais paixões também nascem da mesma maneira.

As paixões podem ser positivas, quando aumentam o conatus, ou negati-

vas, quando o enfraquecem. Por isso, se é impossível ao homem desembaraçar-se

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das paixões, ele pode, ao menos, valer-se das paixões positivas, principalmente o

amor, para ampliar o conatus, isto é, afirmar-se mais e mais como a causa (ade-

quada) dos efeitos que ocorrem nele e fora dele.

Afirmar-se como causa adequada é também conhecer clara e distintamente

as coisas, formando a seu respeito idéias adequadas, que existem em Deus de mo-

do necessário: “A alma compreende que todas as coisas são necessárias e que são

determinadas a existir e a operar por um encadeamento infinito de causas; e, por

conseguinte, nessa mesma medida consegue sofrer menos por parte dos afetos que

nascem destas coisas”. Conhecer as causas é compreender que as coisas imagina-

das como exteriores não passam de idéias inadequadas.

Nisso consiste, segundo Espinosa, a verdadeira liberdade: conhecer a cau-

sa necessária das coisas e agir de acordo com essa necessidade. A liberdade é o

conhecimento da necessidade; e o amor intelectual de Deus, um amor que é do in-

telecto e não da imaginação.

Nos passos da democracia

A liberdade assim definida é também o fortalecimento do conatus. O cho-

que entre cada conatus, isto é, a luta entre os homens por sua autopreservação e

por estender a outros o seu domínio, dá origem ao Estado. Produto dessa violência

entre os homens, o Estado também é violência, que busca frear os conflitos na so-

ciedade. Mas disso surge uma nova luta, entre o conatus do Estado e o dos indiví-

duos, e que pode desembocar em tiranias e revoluções. Diante disso, como estabe-

lecer o equilíbrio?

Não se trata de buscar um Estado racionalmente ideal, pois a essência do

Estado é a violência e nada tem a ver com a razão. Por isso, o que importa é des-

crever as condições da estabilidade do Estado, levando em conta que este se ba-

seia em dois desejos opostos: o de autopreservação e o de domínio. Num extremo,

o desejo de autopreservação, isto é, de segurança, faz com que o governante rece-

ba todos os poderes. Em outro, o desejo de dominar produz um governo em que

todos sejam governantes e, por isso, livres. Que conjunto de instituições equacio-

naria segurança e liberdade?

Numa monarquia, por exemplo, o rei não pode estar só, pois isso fortalece-

ria grupos que ameaçariam a própria segurança. Ele deve então buscar o apoio do

povo, concedendo-lhe eleições e, principalmente, armas. E, como a censura pode

gerar descontentamentos e rebeliões, o governante deve assegurar a liberdade de

expressão, cuja condição básica é a separação entre o Estado e a religião.

Participação do povo mediante eleições e formação de exército popular;

separação entre Estado e religião; liberdade de pensamento e de expressão: esses

elementos, na realidade, minam as bases da própria monarquia e de qualquer outro

regime baseado no governo de poucos. Estado seguro e livre: o que Espinosa im-

plicitamente esboça é a democracia.

*

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Gottfried Wilhelm Leibniz

(1646-1716)

LEIBNIZ E A BUSCA DA HARMONIA

Livro: História da Filosofia. Os Pensadores

Seria possível conciliar as diferenças existentes no mundo? Leibniz acredi-

tava que sim. Por isso, procurava encontrar harmonia entre elementos aparente-

mente díspares: o mundo natural e o mundo moral, a causa eficiente e a causa fi-

nal, o corpo e a alma, Platão e Aristóteles, a escolástica e o racionalismo de inspi-

ração cartesiana. A busca da harmonia era quase uma obsessão, que o levou à ma-

temática, à física e, daí, à metafísica. Desse modo, ele acabou trilhando um cami-

nho que foi do cálculo infinitesimal à descrição da lei divina que rege o universo.

Interessante é observar que harmonia era algo inexistente na Alemanha de

1646, quando nasce Gottfried Wilhelm Leibniz, em plena Guerra dos Trinta Anos (A Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) foi uma série de conflitos religiosos e políticos

ocorridos especialmente na Alemanha, nos quais rivalidades entre católicos e protestantes e

assuntos constitucionais germânicos foram gradualmente transformados em uma luta européia.

Apesar de os conflitos religiosos serem a causa direta do conflito, ele envolveu um grande esforço

político da Suécia e da França para procurar diminuir a força da dinastia dos Habsburgos, que

governavam a Áustria. A guerra causou sérios problemas econômicos e demográficos na Europa

Central). O conflito termina oficialmente em 1648, pelos Tratados de Vestfália,

mas resulta na dispersão da Alemanha em centenas de Estados, cada qual profes-

sando um dos credos rivais – catolicismo, luteranismo e calvinismo -, que enco-

brem os mais diversos interesses políticos e econômicos. Em meio às ruínas pro-

vocadas pela guerra, Leipzig, cidade natal de Leibniz, é uma das poucas que man-

têm certa estabilidade econômica.

Filho de um professor universitário, Leibniz desde cedo lê obras filosófi-

cas na biblioteca do pai. Aos 15 anos de idade, ingressa na Universidade de Leip-

zig. Depois transfere-se para as de Iena e Altdorf. Nesta última, em 1666, obtém o

título de doutor.

Embora convidado a lecionar em Altdorf, Leibniz prefere seguir carreira

política e diplomática. Consegue ser admitido na corte do arcebispo de Mogúncia,

que em 1672, o encarrega de uma missão diplomática na França. Ali, conhece as

principais figuras do mundo intelectual da época, como Malebranche e o jansenis-

ta Arnaud, e estuda escritos matemáticos de Pascal, que tiveram certa influência

na formulação do cálculo infinitesimal, em 1676. (O Cálculo Diferencial e Integral,

também chamado de cálculo infinitesimal, ou simplesmente Cálculo é um ramo importante da

matemática, desenvolvido a partir da Álgebra e da Geometria, que se dedica ao estudo de taxas de

variação de grandezas (como a inclinação de uma recta) e a acumulação de quantidades (como a

área debaixo de uma curva ou o volume de um sólido). Onde há movimento ou crescimento e onde

forças variáveis agem produzindo aceleração, o cálculo é a matemática a ser empregada).

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Nesse mesmo ano, aceita o cargo de bibliotecário do duque de Hanôver, e,

a serviço deste, realiza várias missões diplomáticas, às quais associa um sonho

pessoal: reunificar os cristãos, harmonizando e conciliando o protestantismo e o

catolicismo. Tais tentativas, porém, dão em nada. No final da vida, Leibniz, que

havia acumulado grande prestígio e influência nos meios políticos e científicos de

toda a Europa, cai no esquecimento. Quando de sua morte, em 1716, em Hanôver,

apenas a Academia das Ciências de Paris presta-lhe homenagem.

Paralelamente às obrigações político-diplomáticas, Leibniz desenvolve

intensas atividades científicas e de caráter filosófico. Contribui para a criação de

condições institucionais de pesquisa e de difusão da ciência, fundando, em 1682, a

publicação Acta Eruditorum e, em 1700, a Sociedade de Ciências de Berlim, da

qual foi presidente. Também foi membro da Royal Society, de Londres, a

principal sociedade científica da época, e manteve uma rica correspondência com

várias personalidades do mundo científico e filosófico de seu tempo.

Esses esforços associam-se ao ideal de Leibniz: o de harmonizar todo o

conhecimento humano em um vasto sistema de “enciclopédia universal”, projeto

que já aparecia em Dissertação sobre a Arte Combinatória, de 1666. Nesta obra,

Leibniz preconizava a aplicação da análise combinatória na constituição de uma

“característica universal”, ou seja, uma espécie de alfabeto que, pela combinação

de caracteres, possibilitaria não apenas expor toda a ciência até então acumulada

como também descobrir novos conhecimentos.

De certo modo, esse ideal ficou prejudicado por polêmicas em que Leibniz

se envolveu, principalmente com os amigos de Isaac Newton, que reivindicavam

para esse físico e matemático inglês a primazia de ter formulado o cálculo infini-

tesimal. Hoje sabe-se que Newton, anos antes de Leibniz, havia chegado a conclu-

sões semelhantes às do “rival”, sem no entanto as divulgar. Por outro lado, en-

quanto a fórmula de Newton destinava-se a suas investigações astronômicas e a-

presentava, por isso, um alcance limitado, a de Leibniz era universal e exprimia-se

por um sistema de notação empregado até hoje.

Esse episódio mostra a dificuldade (ou a impossibilidade) da constituição

de uma “ciência universal”, e não apenas por razões teóricas. Mas Leibniz, mes-

mo abandonando a utopia da “característica universal”, nunca deixou de buscar

uma explicação sistemática e coerente da totalidade das coisas – preocupação

constante em todos os seus escritos. A maioria, porém, permaneceria inédita por

muito tempo. Foram poucas as obras que o próprio Leibniz publicou: pequenos

ensaios como Discurso de Metafísica (1686) e A Monadologia (1714), ou tratados

de maior fôlego, como Novos Ensaios sobre o Entendimento Humano (1701-

1704) – crítica a Ensaios sobre o Entendimento Humano, do filósofo inglês John

Locke -, e Ensaios de Teodicéia (1710).

Da física à metafísica

“Suponhamos, por exemplo, que alguém lance ao acaso muitos pontos so-

bre o papel (...). Digo que é possível encontrar uma linha geométrica cuja noção

seja uniforme e constante segundo uma certa regra, de maneira a passar esta linha

por todos estes pontos e na mesma ordem em que a mão os marcara.”

Palavras de Leibniz, para quem o método consiste não tanto em raciocinar

ordenadamente, mas em buscar a ordem inscrita nas coisas. Isso, porém, é feito

como no cálculo infinitesimal (ou diferencial e integral), de que Leibniz foi um

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dos formuladores: dada uma curva, é possível calcular a sua direção a partir de

qualquer um de seus pontos, pois estes exprimem, cada um em si, o conjunto.

A rigor, não é o ponto que exprime o todo de uma curva, mas a tangente,

que é uma linha. Para Leibniz, a linha não se define como o conjunto de infinitos

pontos; é formada de linhas infinitamente pequenas, isto é, linhas infinitesimais.

Isso significa que na geometria não há grandeza última, indivisível. Do mesmo

modo, a natureza: “Cada porção da matéria”, escreve Leibniz, “pode ser concebi-

da como um jardim cheio de plantas e como um lago cheio de peixes. Mas cada

ramo de planta, cada membro de animal, cada gota de seus humores é ainda um

jardim ou um lago”.

A realidade é, então, um todo contínuo, sem interrupções, que não se esgo-

ta em alguma de suas partes, por ínfimas que sejam. Não há, portanto, o vazio, e

Leibniz, que nisso segue Descartes, não admite a existência do vácuo. Mas, exa-

tamente porque esse todo pode ser subdividido em partes, Leibniz, ao contrário de

Descartes, não considera a extensão como substância. Esta, por definição, deve

ser simples, isto é, sem partes, enquanto a extensão sempre pode ser concebida

como formada de partes, que, por sua vez, contêm partes ainda menores e assim

indefinidamente.

A extensão também não pode ser substância, pois, se assim fosse, ficaria

inexplicável o próprio objeto da física: o movimento. Este havia sido deduzido,

por Descartes, como um dos atributos da res extensa, e equivaleria ao desloca-

mento de um corpo que, chocando-se com outro, o substitui. A direção do movi-

mento seria definida instantaneamente no momento desse choque e, neste, a quan-

tidade do movimento – que Descartes identificou com a noção de força – seria

sempre constante.

Para Leibniz, porém, essa concepção é inaceitável. Isso porque, segundo o

princípio da continuidade da realidade, não pode haver uma alteração instantânea

do movimento. Num choque, cada ínfima parte do corpo deve perder gradativa e

sucessivamente o movimento até readquiri-lo em sentido oposto. Além disso,

Descartes confunde a quantidade do movimento com a força – o que Leibniz mos-

tra indicando a diferença entre os movimentos de dois corpos em queda livre (cal-

culados de acordo com a lei de Galileu) e sua força. A constância não está na

quantidade do movimento, mas na força (que se expressa na fórmula mv, sendo m

a massa e v, a velocidade).

A distinção entre força e movimento é fundamental, mesmo porque, a ri-

gor, “o movimento (...) não é coisa inteiramente real, e, quando vários corpos mu-

dam de situação entre si, é impossível determinar (...) a qual dentre eles se deve

atribuir o movimento ou o repouso”. A força, ao contrário, é “mais real”: atributo

do corpo, é ela a causa interna do movimento. O corpo, por isso, não se define a-

penas como extensão e seus atributos – tamanho, figura e movimento. É também

dotado, interiormente, de uma força dinâmica.

Com essas considerações, Leibniz passa da física à metafísica. Para ele, a

força, na medida em que se distingue dos atributos corpóreos e geométricos, é um

princípio metafísico sobre o qual se apóia a própria física. A força é a “primeira

enteléquia” – termo empregado por Aristóteles para designar a perfeição de uma

coisa, atualizada por uma atividade que lhe é intrínseca e própria.

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Mas atividade própria exatamente a quê, se os corpos podem ser subdivi-

didos em partes? É preciso, então, supor a substância, a unidade sem partes e in-

divisível, de que tudo é composto e agregado. E, como “na Natureza nunca há

dois seres perfeitamente idênticos”, é também preciso conceber uma multiplicida-

de de substâncias, cada qual com qualidades distintas, de modo que a agregação

delas resulte em seres individuais também distintos. Enquanto Espinosa supunha

apenas uma substância (Deus) e Descartes, três (Deus, res cogitans e res extensa),

Leibniz propõe um número infinito de substâncias, a que dá o nome de mônadas

(do grego monas, isto é, “unidade”).

O mundo completo das mônadas

Indivisíveis, sem partes, as mônadas não podem ser materiais. São, então,

da ordem espiritual; são idéias e expressam (ou representam – Leibniz não distin-

gue a expressão da representação). Mas expressam o quê? Leibniz responde: “E,

assim como a mesma cidade parece outra e se multiplica perspectivamente sendo

observada de diversos lados, o mesmo sucede quando, pela infinita quantidade das

substâncias simples, parece haver outros tantos universos diferentes, que, no en-

tanto, são apenas as perspectivas de um só, segundo os diferentes pontos de vista

de cada mônada”. Desse modo, cada mônada expressa a totalidade das coisas se-

gundo os pontos de vista; é, portanto, “um espelho vivo e perpétuo do universo”.

O mundo físico e corporal é, então, composto de representações das mônadas.

O ato pelo qual as mônadas representam o universo chama-se percepção.

Esta, porém, não é fixa: cada mônada tende para representações perfeitas, e o

princípio interno (a força) que provoca tal tendência recebe o nome de apetência.

As mônadas distinguem-se entre si por graus diferentes de perfeição da percepção,

que as distribuem em uma série hierarquizada, desde as “mônadas nuas”, em que

as representações são confusas, até as “superiores”, em que a percepção é acom-

panhada de apercepção, isto é, de auto-representação ou consciência.

Cada mônada é “como um mundo completo” e, além disso, dotada de uma

força dinâmica que a faz tender para a perfeição da representação. Isso significa

que as mônadas são propriamente enteléquias, “pois contêm em si uma certa per-

feição, e têm uma suficiência a torná-las fontes de suas ações internas”. Em outras

palavras, as mônadas são independentes entre si, isto é, cada uma delas não sofre

nenhuma ação exterior da outra. Por isso, diz Leibniz numa célebre frase: “As

mônadas não têm janelas por onde qualquer coisa possa entrar ou sair”.

Fechadas em si mesmas, incomunicáveis entre si e incapazes de agir uma

sobre a outra, as infinitas mônadas, porém, constituem uma série ordenada de

graus de perfeição. Cada mônada, segundo a famosa imagem usada por Leibniz, é

como um relógio que marca a mesma hora que os demais, mesmo funcionando

independentemente. Ou então é como a linha infinitesimal que exprime a linha de

uma curva em sua totalidade, embora esta não possa ser conhecida por estender-se

até o infinito.

Mas a idéia de relógios que marcam a mesma hora ou de linhas que ex-

primem o todo impossível de conhecer, requer que algo tenha ajustado os relógios

ou que possua conhecimento da linha como um todo. Esse algo não pode ser uma

substância entre outras mônadas, pois estas representam o universo de um ponto

de vista particular e, por isso, finito. Cada uma delas também tende ao máximo

grau de perfeição que lhe é possível, mas isso também significa que são imperfei-

tas. E seres finitos e imperfeitos não são capazes de ordenar as infinitas mônadas.

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Essa ordenação, que se faz segundo o que Leibniz denomina harmonia

preestabelecida, só pode ser criada por uma substância infinita e perfeita, que con-

tenha como infinitas representações as percepções de todas as mônadas. Essa

substância deve ser separada das outras. Mais do que isso, deve ser a criadora das

mônadas, que dela dependem. Deus é o nome dado a essa substância infinita, per-

feita, criadora de todas as coisas e da harmonia preestabelecida.

*

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Thomas Hobbes (1588-1679)

HOBBES, O HOMEM SEM ILUSÕES

Que ninguém se engane: os homens não são irmãos. Ao contrário, são i-

nimigos, capazes de matar um ao outro. O homem, na verdade, é o lobo do ho-

mem.

Nem por isso, porém, a humanidade obrigatoriamente, exterminará a si

mesma. Há uma alternativa, que pode instituir a paz e mantê-la. E é precisamente

essa saída que se desenha na obra de Thomas Hobbes.

A “devoradora” natureza humana – ou o homem no estado de natureza –

constitui o ponto de partida das reflexões políticas desse inglês nascido em 1588

em Westport, próximo a Malmesbury, no condado de Wiltshire. Aquele era um

tempo marcado pela revolução. O Parlamento inglês, na qualidade de representan-

te do povo, disputa o poder com o rei, negando-lhe o aumento de impostos e o

comando do exército – o que desemboca na guerra civil (1642-1648). Em 1649, o

rei Carlos I é decapitado, ao mesmo tempo que se proclama a República (Com-

monwealth), levando Oliver Cromwel ao governo, com plenos poderes.

Eis o fundo da reflexão de Hobbes. Ele se nutre desses acontecimentos a

fim de examinar a natureza do Estado, em qualquer tempo e lugar. Não é à toa

que, no final de Leviatã, haja a seguinte conclusão: “E assim cheguei ao fim de

meu discurso sobre o governo civil e eclesiástico, ocasionado pelas desordens dos

tempos presentes, sem parcialidade, sem servilismo, e sem outro objetivo senão

colocar diante dos olhos dos homens a mútua relação entre proteção e obediência,

de que a condição da natureza humana e as leis divinas (...) exigem um cumpri-

mento inviolável”.

Para Hobbes, a origem do poder político e do Estado deve ser procurada

não em Deus, mas na natureza, mesmo que esta seja o resultado da criação divina.

Define a natureza como corpos em movimento, inteiramente descritos por leis

mecânicas – e nada além disso. Não há, então distinção entre corpo e alma, como

pretendia Descartes: a coisa pensante é, antes de mais nada, coisa, que deve ser

corpórea, um “corpo sutil” também submetido a leis mecânicas.

O próprio conhecimento não foge a esse rígido mecanicismo. Segundo

Hobbes, o movimento dos objetos exteriores ao homem afeta os órgãos dos senti-

dos, que o transmitem aos nervos, estes ao cérebro, e, depois, ao coração. Neste se

produz uma reação voltada para o exterior, e disso resulta a sensação, que não é o

próprio objeto, mas sua aparência ou ilusão.

A sensação permanece mesmo quando o objeto exterior deixa de afetar os

sentidos, pois o movimento tende a se conservar. A sensação que perdura, no en-

tanto, vai diminuindo, pois é obscurecida por novas sensações. “Esta sensação

diminuída”, afirma Hobbes, “quando queremos exprimir a própria coisa (isto é, a

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própria ilusão), denomina-se imaginação (...); mas, quando queremos exprimir a

diminuição e significar que a sensação é evanescente, antiga e passada, denomina-

se memória.”

O homem pode evitar a diminuição e a perda das sensações com o uso de

um instrumento: a linguagem. Embora sejam meras convenções, as palavras ser-

vem para fixar a imaginação e a memória, além de possibilitar a comunicação en-

tre os homens. A linguagem também possibilita realizar as operações de associa-

ção e de decomposição dos elementos da imaginação e da memória, cujo resulta-

do é o conhecimento. Este, no entanto, depende inicialmente das sensações: “(...)

não há”, declara Hobbes, “nenhuma concepção no espírito do homem que primei-

ro não tenha sido originada, total ou parcialmente, nos órgãos dos sentidos”.

A sensação e a imaginação também constituem a origem de certos movi-

mentos internos, que Hobbes denomina “voluntários”. Por exemplo, andar, falar

ou lutar requerem, antes de se manifestar, um pensamento - e, portanto, uma ima-

ginação – que indique o sentido do movimento a ser dado. Esse início do movi-

mento voluntário, embora imperceptível, já é, por si, movimento: é conatus, es-

forço.

Quando o esforço se volta para algum objeto, chama-se apetite ou desejo,

e o movimento contrário é aversão. Amor e ódio, alegria e tristeza, esperança e

medo – em suma, todas as paixões – são modos diferentes de considerar os mo-

vimentos de desejo e de aversão.

O que aparece como objeto do desejo é denominado bom, e o da aversão,

mau. Mas essas palavras, acrescenta Hobbes, “são sempre usadas em relação às

pessoas que as usa”, e, por isso, o “bem e o mal são nomes que significam nossos

apetites e aversões, os quais são diferentes conforme os diferentes temperamentos,

costumes e doutrinas dos homens”. Assim, bem e mal propriamente não existem:

não há objetos que sejam bons ou maus por si mesmos.

O grande teórico da soberania

Thomas Hobbes estuda em Oxford, onde se forma em 1608. Nesse mesmo

ano torna-se preceptor de um filho do futuro conde de Devonshire, o que lhe pos-

sibilita prosseguir os estudos e conhecer a França, a Alemanha e a Itália. Após o

casamento de seu aluno, trabalha como secretário de Francis Bacon. Visita nova-

mente a França em 1629 e, depois, em 1634, quando passa a freqüentar o círculo

do padre Mersenne, amigo de Descartes. Vai também à Itália, onde conhece Gali-

leu.

Nessa época, já é um pensador maduro e projeta um sistema filosófico

completo, composto de três partes: Corpus, que trataria dos corpos em geral; Ho-

mo, sobre o corpo humano em estado natural; e Civis, abordando o corpo político,

isto é, o homem em sociedade.

Em 1640, quando se agrava o conflito entre o rei Carlos I e o Parlamento,

um manuscrito circula na Inglaterra: Elementos da Lei, obra que mais tarde seria

subdividida em Natureza Humana e Sobre o Corpo Político. O autor é Hobbes,

que, desse modo, antecipava as duas últimas partes de sua doutrina e condenava a

divisão dos poderes pretendida pelo “partido parlamentar”. Temendo represálias,

ele se refugia na França.

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No exílio, compõe a maior parte de suas obras. A pedido de Mersenne, es-

creve algumas das “Objeções” a Meditações Metafísicas de Descartes, publica

Sobre o Cidadão e, em 1651, Leviatã, ao mesmo tempo que prepara Sobre o Cor-

po, a primeira parte de sua doutrina. Além disso, torna-se preceptor do futuro rei

Carlos II, que restauraria a monarquia em 1660. Antes disso, volta à Inglaterra,

em 1652. Morre em 1679.

No final da vida, Hobbes escapa por pouco da condenação de ateísmo. Na

França, por essa mesma suspeita, sua relação com a corte monárquica, também no

exílio, é difícil. Para o “partido parlamentar”, Hobbes é monarquista – versão que

mais tarde evolui para a de um dos principais teóricos do absolutismo. Na verda-

de, porém, Hobbes é o grande teórico da soberania – a “saída” que ele constrói na

tentativa de ver resolvidos os conflitos característicos do estado de natureza.

Para Hobbes, todos os homens se igualam em suas paixões, isto é, no es-

forço de satisfazer o desejo e de afastar o indesejável. Mesmo as eventuais dife-

renças de força física ou de inteligência não devem ser levadas em conta: “(...) o

mais fraco tem força suficiente para matar o mais forte, quer por secreta maquina-

ção, quer aliando-se com outros (...)”.

Esse exemplo é significativo, pois revela a natureza da igualdade: os ho-

mens são iguais como inimigos. Isso porque todas as “ações voluntárias e as incli-

nações dos homens não tendem apenas para conseguir, mas também para garantir

uma vida satisfeita”, e essa garantia é, no limite, a eliminação dos obstáculos ao

desejo, isto é, o aniquilamento e a morte do outro. O estado de natureza é o estado

de “guerra de todos contra todos”.

Mas a própria guerra, que é fruto do desejo de segurança para a autopre-

servação de cada um, é também fonte de insegurança generalizada e de medo da

morte. Isso faz com que os homens procurem, pela razão, os meios para melhor

afastar o medo e assegurar a autopreservação. Esses meios racionais são o que

Hobbes denomina leis de natureza, e a primeira delas afirma: “Que todo homem

deve esforçar-se pela paz, na medida em que tenha esperança de consegui-la, e ca-

so não a consiga pode procurar e usar todas as ajudas e vantagens da guerra”. Na

natureza, a paz só é buscada quando se apresentar mais vantajosa do que a guerra.

Para selar a paz, os homens devem, de acordo com a segunda lei de natu-

reza, “renunciar a seu direito a todas as coisas”, desistindo, cada um, de ser obstá-

culo à autopreservação do outro. Essa renúncia mútua é o contrato, e a promessa

de seu cumprimento chama-se pacto. Todas as demais leis de natureza – cumprir o

pacto, castigar quem não o cumpre – deduzem-se dessas considerações.

Um monstro em favor da paz

Mas essa paz, ditada apenas pelo medo da morte, é instável, pois sempre

corre o risco de se desfazer, uma vez dissipado o medo. É preciso então um poder

e uma vontade mais fortes do que os homens para obrigá-los à paz. De quem seria

tamanho poder, se todos são iguais por natureza? A solução é sair da natureza,

instituindo um homem artificial.

Isso se faz por um novo pacto, dessa vez definitivo, “de um modo que é

como se cada homem dissesse a cada homem: Cedo e transfiro meu direito de go-

vernar-me a mim mesmo a este homem, ou a esta assembléia de homens, com a

condição de transferires a ele teu direito, autorizando de maneira semelhante todas

as tuas decisões”. Nesse pacto, a renúncia é total a favor desse homem artificial,

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que passa a concentrar todas as forças, todas as vontades e todos os poderes de

cada homem, transformando-os em uma só força, uma só vontade, um só poder,

que são de um único corpo, artificial: o corpo político, isto é, o Estado.

Hobbes sabe que esse Estado é monstruoso. Compara-o ao monstro bíblico

Leviatã – nome que dá título à sua principal obra. Mas o Estado é um monstro não

tanto pelo poder absoluto que detém sobre os homens – aspecto do pensamento de

Hobbes que, segundo muitos intérpretes, justificaria o absolutismo. O que há de

monstruoso no Estado é seu caráter artificial: quem o ocupa pode ser um homem

ou vários deles, mas não na qualidade de indivíduos naturais, pois são antes de

mais nada representantes de uma única vontade consolidada pelo pacto entre to-

dos. O Estado está acima dos indivíduos, mas como criação destes e como sua re-

presentação.

É certo que o Estado detém o poder ilimitado, monopolizando o recurso à

violência. Mas a violência do Estado é distinta da situação de guerra no estado de

natureza, pois seu objetivo é evitar a guerra, garantindo paz e segurança. O Estado

representa, nessa medida, o fim do estado de natureza e a inauguração da socieda-

de civil.

É também certo que, nessa passagem, o homem perde a liberdade natural

de que dispunha. Mas esta era fonte de guerra e do medo da morte. A instituição

do Estado é então a superação do medo pela esperança, a garantia da segurança e

do direito à vida. E o que se encontra na base disso tudo senão a idéia de sobera-

nia?

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John Locke (1632-1704)

LOCKE: CRIME E CASTIGO

Livro: História da Filosofia. Os Pensadores

A análise que John Locke faz do homem é bem mais condescendente do

que a de Hobbes. Na verdade, Locke está para a chamada Revolução Gloriosa de

1688, assim como Hobbes está para a guerra civil e a efêmera República inglesa.

Para Hobbes, o que importa é a soberania indivisível que garanta a paz, e não se

ela é representada por Carlos I, com pretensões absolutistas, ou por Cromwell,

com poderes quase ditatoriais. Mas Locke é testemunha de acontecimentos poste-

riores.

A restauração da monarquia como solução de compromisso entre a Coroa

e o Parlamento não eliminou o conflito entre ambos; Jaime II, irmão e sucessor de

Carlos II, é deposto em 1688. O trono é entregue a Guilherme de Orange e à sua

esposa Maria, mas sob a condição de que se submetam ao Parlamento. Era o iní-

cio da monarquia constitucional, tal como existe até hoje, consagrando a divisão

de poderes e a supremacia do Parlamento. O pensamento político de Locke é qua-

se como o programa dessa “Revolução Gloriosa” – “gloriosa” porque vitoriosa

sem que o país tivesse de passar por uma nova guerra civil.

John Locke nasce em Wrington, perto de Bristol (Somerset), em 1632. Es-

tuda em Oxford, preparando-se para a carreira religiosa, mas seus interesses logo

se voltam para a medicina e ele passa a colaborar com as pesquisas do médico

Thomas Sydenham (1624-1689). Em Oxford, conhece o químico Robert Boyle

(1627-1691), precursor da teoria de elementos químicos. Em 1667, torna-se médi-

co particular e conselheiro político de lorde Ashley, futuro conde de Shaftesbury,

que se destacaria no Parlamento como líder da oposição ao rei Carlos II. O conde,

por causa das acusações de traição, refugia-se na Holanda, destino que Locke,

também perseguido, seguiria em 1683. Em 1689, após a “Revolução Gloriosa”,

Locke retorna à Inglaterra.

As novas condições políticas permitem-lhe publicar, em 1690, duas de su-

as principais obras: Dois Tratados sobre o Governo Civil e Ensaio acerca do En-

tendimento Humano. Também escreve Alguns Pensamentos Referentes à Educa-

ção (1693) e Racionalidade do Cristianismo (1695). Enquanto cuida da publica-

ção dessas obras, Locke assume cargos públicos, como o de comissário da Câma-

ra de Comércio. Também é convidado a servir como embaixador em Brandenbur-

go, mas recusa o posto. Morre em 1704.

Experiência, fonte do conhecimento

Para ele, a experiência é a única fonte das idéias. Elas não são inatas. Uma

criança sabe, por experiência, que “doce não é amargo”, e só mais tarde pode che-

gar (ou não) à conclusão geral de que “é impossível para uma mesma coisa ser e

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não ser”. Se é assim, o que dizer dos princípios morais, também tidos como ina-

tos, mas que dependem dos costumes e das conveniências, isto é, da experiência?

Nesse sentido, Locke é empirista. Para ele, a mente humana é, no início,

algo como um “gabinete ainda vazio”, um “papel branco” – uma tábula rasa -, que

aos poucos é preenchido pelos dados da experiência.

Mas a noção de experiência não se refere apenas à sensação dada aos ór-

gãos dos sentidos por coisas exteriores. Caso se limitasse a isso, haveria na mente

apenas um agregado caótico de idéias oriundas da sensação, mas não o conheci-

mento. É preciso então que a mente realize certas operações a partir dessas idéias.

A experiência interior (reflexão), pela qual a mente percebe suas próprias opera-

ções, também é fonte de idéias – como as de pensamento, raciocínio, dúvida -,

embora estas não se refiram às coisas exteriores e sim a essas atividades interio-

res.

O conhecimento é o resultado das operações que a mente realiza com as

idéias, tanto da sensação como da reflexão, procurando perceber o acordo ou o

desacordo entre elas. “De fato, quando sabemos que branco não é preto, o que fa-

zemos além de perceber que estas duas idéias não concordam?” Para que isso seja

melhor esclarecido, Locke realiza um complexo e minucioso exame de todos os

tipos de idéias e de operações da mente. Também dedica particular atenção à lin-

guagem, pois as palavras, na condição de sinais artificiais das idéias, constituem

um instrumento indispensável ao conhecimento.

O resultado desse exame é a classificação dos tipos de conhecimento e a

demarcação das possibilidades e dos limites de cada um. O conhecimento intuiti-

vo, pelo qual “a mente percebe o acordo ou o desacordo de duas idéias imediata-

mente por elas mesmas”, é o que proporciona o grau máximo de certeza e evidên-

cia. Quem pode duvidar da proposição como “branco não é preto”? E, se tenho a

sensação das coisas exteriores e a reflexão das operações interiores da mente, co-

mo não ter a evidência e a certeza de que “eu existo”?

Mas, quando o acordo ou o desacordo entre duas idéias não é imediato e

evidente por elas mesmas, é preciso relacioná-las a outras idéias. Esse é o conhe-

cimento demonstrativo, cujo modelo clássico é a matemática. Mas, para Locke, as

questões morais e a existência de Deus também constituem objeto desse tipo de

conhecimento. Na moral, as idéias, embora não sejam inatas, são criações da pró-

pria mente, isto é, representam apenas a si mesmas e não algo que lhes seja exte-

rior, do mesmo modo como as idéias de círculo ou de triângulo, na matemática,

prescindem da existência real dessas figuras.

Assim como não há idéias inatas, também não há o poder inato suposta-

mente conferido por Deus a um só indivíduo. Se os homens decidiram se unir e

constituir a sociedade civil, essa decisão tem origem na experiência, que os levou

à conclusão de que seria melhor obedecer a um governo do que correr os riscos do

estado de natureza.

Do estado de natureza ao corpo político

Para ele, os homens, por natureza, são livres, iguais e independentes. Mas

liberdade não é licenciosidade, pois todos estão sujeitos à lei de natureza, isto é, á

razão: cada um é livre para dispor de seu corpo, mas ninguém deve abusar dessa

liberdade para prejudicar os demais. Nem há por que atentar contra a liberdade

dos outros, pois, no estado de natureza, a terra e seus frutos são abundantes e sufi-

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cientes para a sobrevivência de cada um. Se a todos está assegurada a preserva-

ção, como alguém pode cobiçar o que é dos outros?

Locke afirma que a lei de natureza autoriza a matar um agressor, do mes-

mo modo como se mata um lobo ou um leão. Para ele, a agressão tem um caráter

insensato e irracional. Quem a pratica são homens que, abandonando os “princí-

pios da natureza humana” e renunciando à razão, tornam-se “depravados”. Por

causa desses homens contrários à razão e à natureza – e não por influência destas

últimas – inicia-se o estado de guerra.

Por isso, Locke, ao examinar o estado de natureza, não se detém na descri-

ção de uma eventual vida paradisíaca e feliz. O que lhe importa nesse estado é o

direito que cada um tem de fazer valer a lei de natureza: quem prejudica o outro é

transgressor dessa lei, um criminoso, e todos os homens têm o direito de castigá-

lo, isto é, de condená-lo à morte e a outras penas menores.

De um lado, o transgressor da lei que se declara em estado de guerra. De

outro, o guardião e executor da lei, que, por isso, tem o direito de guerra de casti-

gar o malfeitor. O criminoso e a vítima inocente: não se trata de “guerra de todos

contra todos”, mas de alguns (contrários à razão) contra os demais (dotados de ra-

zão). No estado de guerra assim descrito, a paz não pode ser alcançada por um a-

cordo, mas pela rendição do criminoso e, mais do que isso, pela reparação dos da-

nos causados. Se é o transgressor que inicia a guerra, esta, no entanto, só termina

quando o último dos criminosos for castigado.

Na prática, isso perpetua o estado de guerra. A evidência da lei de natureza

não previne que ela seja ignorada ou desprezada, e o criminoso sempre pode pros-

seguir. O castigo tampouco impede a reincidência do criminoso. Além disso, num

estado em que todos são juízes e executores da lei em causa própria, como evitar o

julgamento parcial, a sentença injusta e o castigo excessivo?

Tantos são os inconvenientes desse estado que os homens decidiram re-

nunciar à sua liberdade natural, principalmente ao direito de executar a lei de na-

tureza com as próprias mãos, entregando-o ao corpo político formado nesse mes-

mo ato de renúncia. Esse é o pacto que dá origem à sociedade ou política (que

Locke também denomina comunidade), isto é, um único corpo, político, represen-

tado pelo governo.

De acordo com o pacto firmado, o governo pode ser de um só indivíduo ou

de vários. O que importa é sua finalidade: a de concentrar o direito de julgar e de

castigar os criminosos, de modo a assegurar a toda a comunidade e a cada um de

seus membros, a segurança, o conforto e a paz.

Para isso, o governo desdobra-se em vários poderes. O principal é o Poder

Legislativo, isto é, o de estabelecer leis fixas para que todos possam conhecê-las.

Mas tais leis não podem ser mais do que especificações da lei de natureza, pois foi

para seu melhor cumprimento que os homens decidiram, pelo pacto, unir-se em

comunidade. O Legislativo não deve aplicar e executar as leis, para não legislar

em causa própria. Em princípio, portanto, o Poder Legislativo deve ser distinto do

Poder Executivo.

Outro é o Poder Federativo, pelo qual a sociedade, na condição de um úni-

co corpo, relaciona-se com outras comunidades ou homens que não aderiram ao

pacto, declarando-lhes guerra ou paz e estabelecendo alianças e intercâmbios de

todo tipo. Esse poder, embora teoricamente distinto do executivo, não é, na práti-

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ca, separado deste, pois não convém que essas duas forças estejam sob comandos

diferentes. Isso pode gerar desordem e ruína.

Esses poderes não são ilimitados. Os poderes executivo e federativo su-

bordinam-se ao legislativo, que tem seu poder limitado pela lei de natureza. Além

disso, o legislativo deve sua origem ao pacto entre os homens, que, por maioria,

consentiram em atribuir-lhe o poder de estabelecer leis. Sem esse consentimento

da maioria não há lei, legítima e válida, mas apenas arbitrariedade.

Por isso, Locke é adversário ferrenho do absolutismo. Para ele, o monarca

absoluto, cujo poder não tem limites nem se baseia no consentimento, não partici-

pa da sociedade: encontra-se fora dela, no estado de natureza, e, pior, com os re-

cursos de que dispõe, declara guerra aos homens. Em tal situação, não há lei a não

ser a de natureza, que autoriza a castigar o agressor. A rebelião contra o absolu-

tismo é legítima, e isso abre a possibilidade do pacto para inaugurar a verdadeira

sociedade.

Para Hobbes, o estado de natureza, em que a liberdade de cada um não tem

limites, era sinônimo de guerra. Por isso, os homens, pelo medo da morte e em

busca da paz, selavam o pacto e instituíam um poder ilimitado, que ao menos lhes

assegurasse o direito à vida. O que estava em jogo era guerra e paz, sendo a paz

preferível à liberdade. Mas, para Locke, a questão é a de crime e castigo. O estado

de natureza, em que a liberdade de um indivíduo não pode, pela razão, prejudicar

o outro, significaria paz, não fossem os “depravados”. Estes devem ser castigados,

e somente pela renúncia à liberdade natural – por um pacto, que concentre em um

só corpo político o direito de estabelecer leis e penas, e, também, o de punir – é

que se pode, contra os criminosos, assegurar a paz e o gozo da liberdade.

*

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SEGUNDA PARTE

DO ILUMINISMO

(de BERKELEY até HEGEL)

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1 - O SÉCULO DAS LUZES

Iluminar, ilustrar, esclarecer, fornecer as luzes: a Luz, metáfora da razão

desde Platão, torna-se no século XVIII – o Século das Luzes – a grande palavra de

ordem. Na Inglaterra, na Itália, na França e na Alemanha, proliferam idéias em

seu nome, que, se não se agrupam em um só movimento, têm a mesma intenção:

combater o seu oposto, as trevas e o obscurantismo, seja ele filosófico, religioso,

moral ou político.

NEWTON E A TEORIA GERAL DO UNIVERSO

Livro: História da Filosofia. Os Pensadores

Newton retratado por Godfrey Kneller 1689

(1643-1727)

A peste assolava a Europa, espalhando morte e medo. Casas eram abando-

nadas, estabelecimentos comerciais cerravam suas portas, multidões tentavam fu-

gir das regiões mais atingidas. Na Inglaterra, a Universidade de Cambridge entrou

em recesso. Corria o ano de 1665, e o estudante Isaac Newton decidiu buscar re-

fúgio em sua cidade natal.

Abençoado retiro. Foi exatamente nessa época, e dentro desse panorama

social tenebroso, que Newton desenvolveu a base do que viria a ser a grande revo-

lução da física. Mais tarde, em 1687, ao publicar Princípios Matemáticos da Filo-

sofia Natural, ele consegue realizar aquilo que, segundo Pablo Rubén Mariconda,

professor de filosofia da Universidade de São Paulo, é o grande objetivo da pes-

quisa científica de seu tempo: a construção de uma teoria física unificada, pela

qual torna-se possível explicar todos os fenômenos da natureza.

Essa teoria, que recebe o nome de teoria da gravitação universal, mostra

que o universo físico está sujeito à mesma lei de gravitação e às mesmas leis de

movimento. Isso significa que todos os objetos ou fenômenos físicos encontrados

numa região do universo têm alguma influência sobre os outros, localizados em

regiões diferentes. O universo, assim, forma um sistema cósmico, em que as par-

tes estão interligadas. Nesse sentido, a teoria da gravitação representa a síntese

matemática das realizações científicas (mais precisamente, mecânicas e astronô-

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micas) de Copérnico, Galileu, Brahe e Kepler – e a isso se costuma chamar síntese

newtoniana.

Segundo Newton, as leis do movimento reduzem-se a três. A lei da inércia

estabelece que qualquer corpo permanece indefinidamente em repouso ou em mo-

vimento retilíneo, a menos que sofra uma ação externa. A segunda lei prescreve

que a aceleração de um corpo é proporcional à força externa que a provoca, com

direção e sentido iguais aos dessa força. A terceira é a lei da ação e reação, se-

gundo a qual a toda ação corresponde uma reação igual e em sentido contrário.

Dessas leis se segue uma fórmula geral: um corpo atrai outro na razão direta de

suas massas e inversamente proporcional ao quadrado da distância que os separa.

Essa é síntese da teoria da gravitação universal.

Mas o que vem a ser gravitação? Que um corpo atue sobre outro, num

choque, é fácil compreender. Como, porém, explicar uma força que se exerce a

distância? Alquimista (alquimia: nome dado à química medieval, que se empenhava em bus-

car a pedra filosofal, capaz de transformar em ouro ou prata todos os outros metais, e a Panacéia e

o Elixir da Longa Vida, capazes de curar todas as enfermidades; A pedra filosofal (ou mercúrio

dos filósofos) era o principal objetivo dos alquimistas. Segundo a lenda, era um objeto que poderia

aproximar o homem de Deus. Com ela o alquimista poderia transmutar qualquer metal inferior em

ouro, como também obter o Elixir da Longa Vida, que permitiria prolongar a vida indefinidamen-

te. O trabalho relacionado com a pedra filosofal era chamado pelos alquimistas de "A Grande O-

bra" ("Opus Magna").) influenciado pela tradição do hermetismo (hermetismo: doutrina

esotérica baseada nos escritos atribuídos à inspiração do deus Hermes Trimegisto; na Idade Média

e na Renascença, doutrina oculta dos alquimistas), Newton concebe a atração entre os cor-

pos como relação de simpatia. Ao mesmo tempo, porém, evita considerações me-

tafísicas sobre a causa dessa atração simpática: para ele, basta que se determine a

equação matemática que descreve tal relação entre os corpos.

Como mera descrição dos fenômenos observáveis, a teoria da gravitação

também não dá conta da origem das coisas. O movimento dos astros, por exem-

plo: a posição e a velocidade de cada um são de tal ordem que a atração mútua en-

tre eles os faz girar em órbitas elípticas, perfeitamente calculáveis. Mas, se a posi-

ção e a velocidade não fossem essas, os corpos celestes entrariam em choque uns

com os outros por causa da própria atração gravitacional. Qual, então, a origem

dessa disposição dos astros que assegura o equilíbrio de seu movimento? A res-

posta escapa ao âmbito da física. Newton, que evita a metafísica como fonte de

explicação das causas e das origens, é, por isso, levado diretamente à teologia:

Deus criou o Universo e deu-lhe o impulso inicial.

Nascido em 1642 em Woolsthorpe, Lincolnshire, Newton já era uma per-

sonalidade consagrada quando da publicação, em 1704, de Óptica, obra que suce-

deu Princípios Matemáticos. Em 1689 foi eleito membro do Parlamento; em

1695, nomeado diretor da Casa da Moeda; em 1703, tornou-se presidente da Ro-

yal Society. Sua importância na história da ciência é fundamental. Todo o desen-

volvimento posterior da física não fez senão confirmar a exatidão das leis desse

homem que, pouco antes da morte (em 1727), dedicou-se principalmente a assun-

tos teológicos. Essas leis só seriam suplantadas (mas não invalidadas) no século

XX pela teoria da relatividade e pela mecânica quântica.

A lógica da filosofia experimental

Newton, de certo modo, conclui o programa racionalista da mathesis uni-

versalis. Mas, para isso, ele percorre um caminho inverso ao do racionalismo.

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Duvida, como Locke, da evidência de idéias tidas como inatas; tomá-las como

ponto de partida é raciocinar por hipóteses.

Contra isso, Newton usa a arma do empirismo. “Tudo o que não é deduzi-

do dos fenômenos”, diz, “deve ser chamado uma hipótese; e as hipóteses, quer

metafísicas ou físicas, quer de qualidades ocultas ou mecânicas, não têm lugar na

filosofia experimental. Nessa filosofia as proposições particulares são inferidas

dos fenômenos, e depois tornadas gerais pela indução”.

Mas, precisamente por isso, a realização do programa racionalista pelo a-

vesso, isto é, por via empirista, também impõe um limite à mathesis universalis.

Na ciência total e completa de Newton estão insinuadas, muitas vezes, concepções

metafísicas que ele não explicita, fiel a seu projeto de manter-se apenas no âmbito

dos fenômenos, tratados com rigor matemático. A ciência dissocia-se metodologi-

camente da metafísica.

O ideal de mathesis universalis, então, fracassa exatamente ao se realizar.

A partir de Newton, o mundo pode ser explicado de modo sistemático e universal,

desde que esse sistema universal permaneça restrito ao mundo físico dos fenôme-

nos.

Locke já havia advertido sobre os limites do entendimento humano. Mas o

que os pensadores do século XVIII fazem é tomar essa advertência de Locke e a

ciência universal (dentro de certos limites) de Newton como sinais de libertação

do peso da exigência de tudo explicar numa cadeia de razões. Ramificam-se as in-

vestigações, sem a preocupação de esclarecer tudo. O Iluminismo também fala em

nome da razão – a luz -, mas esta já não é mais a recriação da razão divina prees-

tabelecida. A razão torna-se uma aventura humana: a capacidade de descobrir.

*

George Berkeley (1685-1753)

BERKELEY: NA CONTRA CORRENTE

Livro: Historiada Filosofia. Os Pensadores

George Berkeley é um homem religioso. E impõe a si mesmo a missão de

glorificar Deus. Opõe o senso comum das pessoas simples às discussões metafísi-

cas dos filósofos porque vê, nessas intermináveis controvérsias, o risco do ceti-

cismo, que, para ele, ameaça a religião e a fé. De certo modo, Berkeley está na

contracorrente de seu tempo.

Ele, porém, não é um nostálgico sonhando com o passado. Para se contra-

por aos que denomina “filósofos de ninharias”, não recorre à tradição nem aos ar-

gumentos de autoridade, mas aos temas, aos raciocínios e à linguagem dos pró-

prios adversários. Nessa medida, também participa das inquietações da época, que

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procuram novos modos de reflexão, e que, para isso, ajustam contas com a metafí-

sica tradicional.

De origem inglesa, George Berkeley nasce em Kilkenny, Irlanda, em

1685. Aos 15 anos, ingressa no Trinity College, em Dublin, ordenando-se sacer-

dote da Igreja Anglicana em 1710. Nesse ano, publica Tratado sobre os Princí-

pios do Conhecimento Humano, sua principal obra, e, em 1713, Três Diálogos en-

tre Hilas e Filonous, em que expõe sua doutrina de modo mais acessível.

Em 1728, após uma série de viagens, instala-se na colônia de Rhode Is-

land, na América do Norte. Dali, pretendia organizar um colégio missionário nas

Bermudas. Mas, sem obter recursos, retorna à Inglaterra em 1731. Três anos de-

pois, é nomeado bispo de Cloyne, na Irlanda. Morre em 1753, deixando uma série

de obras polêmicas, como Sobre o Movimento (1721), contra Newton e Leibniz, e

Alciphron ou Filósofo das Ninharias (1732), uma denúncia dos chamados “livres-

pensadores”, que só aceitam, da religião, o que estiver de acordo com a razão.

Para ele, os filósofos criam apenas dúvidas e incertezas. “Parece-me que a

maior parte, senão todas as dificuldades que até agora detiveram os filósofos e

barraram o caminho do conhecimento, nós as provocamos, levantando a poeira e

depois queixando-nos de não ver”, diz. “Poeira”, no caso, é a suposição da exis-

tência da matéria como substância, isto é, uma coisa que subsiste por si, indepen-

dentemente da alma e exterior a esta. Isso acarreta a intrincada discussão sobre a

natureza da relação entre a matéria e a alma (Descartes e os racionalistas), e, no

limite, a posição que admite que há na matéria um “não-sei-quê” inacessível ao

conhecimento (Locke) – o que já é um passo para o ceticismo.

Se os filósofos se embaraçam com tais questões é porque consideram que

as idéias abstratas, sobre as quais discutem, referem-se a coisas reais. Mas, a rigor,

essas idéias não existem, a não ser na linguagem: é somente como nome que, por

exemplo, a palavra “homem” pode existir sem indicar nenhuma particularidade

desse ou daquele homem. Ao confundir a idéia, o nome e a coisa, os filósofos

buscam esse “não-sei-quê” do homem isento de qualidades sensíveis, sempre em

vão.

E para que tanta complicação? A maioria dos homens não precisa de nada

disso para viver; acredita no que sente e percebe, e isso lhe basta. Para eles, a ope-

ração de abstração é uma atividade muito difícil. “Um bom pedaço de pão sensí-

vel”, declara Berkeley por intermédio de seu personagem Filonous, “daria a meu

estômago muito maior regalo do que dez mil vezes essa mesma porção daquele

pão insensível, ininteligível, mas real, de que me tendes falado.”

O “pão sensível”, as coisas sensíveis são as que existem. E existir é ser

percebido, ou seja, ser idéia. O equívoco dos filósofos foi ter imaginado a matéria,

uma substância exterior à percepção, fazendo dessa ficção objeto de suas investi-

gações. E encontram dificuldades e dúvidas porque discutem a respeito do que

simplesmente não existe.

Esse imaterialismo de Berkeley, porém, não contradiz exatamente o senso

comum, que ele pretende resgatar contra os filósofos? Não é perfeitamente possí-

vel pensar em uma árvore solitária, plantada num lugar isolado, onde não há nin-

guém para percebê-la? Para Berkeley, pensar em uma árvore nessa situação já é

atribuir-lhe a existência como idéia de árvore isolada. Quando se discute a exis-

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tência de uma coisa, ela existe porque se pensa nela; a questão não se pensa, a

questão da existência nem se coloca.

Como ser percebido, esse ser não existe por si, não é substância. Ele existe

na dependência de outra coisa, que também deve ser existente: o espírito (ou al-

ma, mente). Essa é a verdadeira e única substância, enquanto as idéias, isto é, os

seres percebidos só existem como objetos desse sujeito. Em outras palavras, as i-

déias são passivas, mas o espírito é ativo e dotado de vontade; é a causa das idéi-

as. Por exemplo, eu quero mover o dedo, e o resultado dessa vontade é o movi-

mento do dedo que percebo.

Há, porém, idéias que não resultam da vontade do espírito, como as de ár-

vore, de mesa. Essas idéias devem, por isso, ter causa fora do espírito. Mas, como

não há nada além de seres percebidos e do ser que percebe, elas só podem ter sido

causadas por outro espírito: Deus. Ele é a causa de todas as idéias, daquilo a que

se costuma dar o nome de natureza do mundo. As chamadas leis da natureza, nes-

sa medida, correspondem à ordem pela qual Deus tornou suas idéias perceptíveis

aos espíritos finitos, isto é, os homens.

Uma árvore num local deserto existe, mesmo quando ninguém pensa nela,

como idéia de Deus. Um astro ainda não descoberto e de que nenhum homem po-

de, por isso, ter idéia, existe pela mesma razão. O mundo e as coisas que o consti-

tuem têm existência real como coisas sensíveis, isto é, idéias de Deus perceptíveis

aos homens. Não há de que duvidar, e o senso comum, que não se perde nas inú-

teis especulações dos filósofos, jamais se engana: percebe o mundo tal como é.

A abstração não existe

A influência do empirismo de Locke e de Newton é óbvia em Berkeley,

para quem “é uma loucura (...) desprezar os sentidos; sem eles, o espírito não pode

atingir nenhum saber, nenhum pensamento”.

Loucura, então, é acreditar que há coisas e idéias dissociadas dos sentidos.

E essa crítica atinge até mesmo Locke, para quem a mente humana realiza a ope-

ração de abstração, que consiste em separar, das idéias das coisas, os aspectos par-

ticulares. Abstraindo, por exemplo, a estatura, a cor da pele etc. de homens parti-

culares obtém-se a idéia abstrata de homem. Mas pergunta Berkeley, é realmente

possível conceber um homem abstrato sem uma certa estatura, sem uma cor da pe-

le e assim por diante? O movimento pode ser pensado abstratamente, sem levar

em conta um corpo que se move em linha reta ou curva e a uma determinada ve-

locidade, rápida ou lenta?

O que dizer então da distinção, estabelecida pelos cientistas e por Locke,

entre qualidades secundárias (cor, cheiro, sabor etc.), que constituem os dados dos

sentidos, e qualidades primárias (extensão, forma, solidez etc.), inerentes às coisas

e independentes dos sentidos? Por exemplo, a extensão: como ela seria indepen-

dente dos sentidos se um corpo pequeno para o homem pode parecer grande para

um animal minúsculo? Pode-se, porém, argumentar que isso corresponde apenas à

extensão sensível e não à extensão real, absoluta, que abstrai as variações dos sen-

tidos. Mas, nesse caso, a extensão absoluta também não passa de uma idéia abstra-

ta que, a rigor, não existe.

A água de uma bacia pode ser quente ou fria, de acordo com quem a per-

cebe. Um objeto que para um animal é duro pode ser mole para outro, mais forte.

O que para uns é doce, é amargo para outros. Quente e frio, duro e mole, doce e

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amargo só podem existir como percepção do sujeito que percebe – a que Berkeley

dá o nome de mente, espírito, alma ou eu. Mas e o calor do fogo, que todos perce-

bem como quente, a ponto de dele afastar a mão? Mesmo nesse caso, o “quente”

está na mente e não no fogo, assim como a dor provocada na pele por um alfinete

não pode existir no alfinete mas somente no espírito.

Isso não significa que, por exemplo, o fogo exista independentemente do

calor, isto é, fora da mente. Como pensar em fogo sem levar em conta que ele é

quente? Fogo em si, independentemente da percepção, não existe; o fogo só existe

na mente como percepção e idéia. Do mesmo modo, todas as coisas: não há nada

exterior à mente. Esse est percipere et percipi: ser é perceber e ser percebido. Para

Berkeley tudo se reduz à percepção e à mente que a percebe. Por que, então, dis-

cutir em vão sobre uma suposta natureza intrínseca das coisas, que não se dá aos

sentidos? Melhor fazer como as pessoas comuns, para quem o mundo é exatamen-

te o que sentem e percebem.

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BERKELEY

Livro: Os Filósofos. José Herculano Pires

A História da Filosofia dá-nos às vezes a vertigem do mito de Sísifo (Os

deuses tinham condenado Sísifo a empurrar sem descanso um rochedo até ao cume de uma monta-

nha, de onde a pedra caía de novo, em conseqüência do seu peso. Tinham pensado, com alguma

razão, que não há castigo mais terrível do que o trabalho inútil e sem esperança) que Camus a-

plicou à condição humana. De Pitágoras aos nossos dias, os filósofos rolam conti-

nuamente a pesada pedra pela encosta da montanha, até o cume, e lá chegando ela

se despenha de novo. Mas quando a encaramos na irredutível dualidade dos seus

problemas fundamentais, ela nos lembra a águia de Prometeu (Após Zeus ter retirado

o fogo aos Humanos, Prometeu secretamente devolveu-o por formas ocultas, enganando mais uma

vez Zeus. Quando este descobriu que tinha sido enganado, a sua cólera foi terrível. Criou Pandora,

a fonte da queda dos Humanos e acorrentou Prometeu a uma montanha. Para agravar o castigo, to-

dos os dias uma águia atacava Prometeu e arrancava-lhe o fígado. Como Prometeu era imortal, o

fígado voltava a nascer todas as noites e voltava a ser arrancado pela águia num tormento que pa-

recia interminável. O castigo de Prometeu terminou quando Hércules se colocou simbolicamente

no seu lugar, e reconciliou-se com Zeus), transformada também numa imagem alada do

desespero. É como se a águia, para atingir o fígado do herói que roubou o fogo do

céu, tivesse de atravessar uma série de desfiladeiros, entre as montanhas do Cáu-

caso. Entalada nas rochas de uma garganta, mal escapa dali para cair imediata-

mente nas tenazes de outra.

Não se trata de um mito ou de uma simples alegoria. Platão tinha razão: há

coisas que não se podem explicar senão através do poder expressivo das imagens.

A partir de Pitágoras, que arrancava o pensamento do mundo órfico (O Orfismo era

uma religião de mistérios no antigo mundo grego, difundido a partir dos séculos VII e VI a.C. Seu

fundador teria sido o poeta Orfeu, que desceu ao Hades –Inferno - e retornou. Os órficos também

reverenciam Perséfone (que descia ao Hades a cada inverno e voltava a cada primavera) e Dioniso

ou Baco (que também desceu e voltou do Hades). Como os mistérios de Elêusis, os mistérios órfi-

cos prometiam vantagens no além-vida. Esses cultos de mistérios, que prometiam uma vida me-

lhor após a morte, parecem ter influenciado o início do cristianismo) para levá-lo à luz da ra-

zão, a Filosofia é como a águia presa entre as rochas da razão e da fé. Depois ve-

mo-la a se debater entre a imutabilidade eleática e a instabilidade heraclitiana.

E a tortura continua, através dos séculos: Sócrates e Protágoras a seguram

entre a verdade e a dúvida; Platão a prende na dialética do inteligível e do sensí-

vel; Aristóteles a comprime entre forma e matéria; os neoplatônicos e os medie-

vais novamente a prendem entre a razão e a fé; Descartes a entala no desvão das

suas substâncias; Espinosa a encrava entre a substância e os atributos; Locke a en-

rosca novamente entre o sensível e o inteligível, mas em garganta ainda mais es-

treita que a platônica; e Berkeley, por fim, tentando libertá-la, prende-a outra vez

na vertigem de um desfiladeiro que se eleva até o céu, entre a mente de Deus e a

frágil mente humana.

Dessas alturas, a águia atônita vai lançar-se no abismo agnóstico de Hume,

para continuar depois entre as gargantas das categorias kantianas, da dialética he-

geliana e marxista, do Espaço e Tempo bergsonianos (Para Bergson, a vida interior é de

natureza temporal e não espacial. Na psique, a multiplicidade qualitativa dos estados psicológicos

se modifica o tempo todo numa sucessão contínua e solidária; se algo parece solidificar-se e frag-

mentar-se é porque se representa, ilusoriamente, a consciência como se existisse num tempo ho-

mogêneo e espacial. Na raiz do problema está a confusão que se faz entre tempo e espaço quando

não se percebe que os estados psicológicos e toda vida psíquica são de natureza exclusivamente

temporal. A partir dessa confusão, tem-se a representação de um eu superficial e de uma multipli-

cidade quantitativa dos estados psicológicos como se fossem de natureza física, como o fez a psi-

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cofísica, porque se concebe a vida psíquica existindo num ilusório tempo espacial.), do Ser e do

Nada sartreanos, e assim até o infinito. Sim, porque não há esperança de liberta-

ção para essa águia indomável. A cada novo arranco no espaço, uma nova gargan-

ta a espera.

Berkeley é um momento curioso nessa cadeia de desesperos. Ainda bas-

tante jovem, parece querer libertar a Filosofia de suas terríveis contradições, atra-

vés de um golpe genial, mas temerário. O resultado foi o que já vimos acima: pre-

cipitou a águia às maiores alturas, para lançá-la depois no mais pavoroso abismo.

Só os jovens podem fazer dessas loucuras. Tanto assim que Berkeley, depois da

sua audácia juvenil, tornou-se um bispo anglicano, tipicamente prudente, e como

diz maldosamente Bertrand Russel, “trocou a Filosofia pela água de alcatrão, a

que atribuía maravilhosas propriedades medicinais”.

Em geral, ao tratar-se do sistema de Berkeley, costuma dizer-se que é a fi-

losofia de um bispo. Mas a verdade é que o filósofo só se tornou Bispo de Cloyne

em 1734, quando suas obras principais já estavam escritas há muito: Ensaio Sobre

Uma Nova Teoria da Visão, em 1709; Tratado Sobre os Princípios do Conheci-

mento Humano, em 1710; Três Diálogos Entre Hilas e Filonous, em 1713; e

mesmo Alcifron, já de segunda importância, em 1732. Somente Siris, onde a luz

ardente de Berkeley treme nos seus últimos lampejos, aparece em 1744, como

produto eventual de seus ócios no bispado de Cloyne, ou de suas viagens constan-

tes entre Londres e a sede da diocese. Toda a sua força Berkeley a gastou na teme-

rária façanha da juventude. Mas a façanha bastou para inscrever o seu nome, de

maneira definitiva, na história torturada do pensamento moderno.

Berkeley, tanto por seu extremado idealismo, quanto pela sua audácia e

mesmo pelo aspecto formal de sua obra, é uma espécie de redemoinho platônico

na correnteza do pensamento filosófico. Sua maneira de redigir tratados técnicos,

como para o ensino escolar da doutrina, e diálogos em estilo poético, para a sua

divulgação, mostra a legitimidade de sua linhagem platônica. Depois do curioso

episódio de Plotino, seríamos tentados a dizer que Berkeley é um novo avatar (en-

carnação) do mestre da Academia, prolongando uma sucessão temporal e seme-

lhante à do Buda através dos Lamas do Tibete.

Seja como for, a luz de Platão, embora atenuada pela distância, se renova

na juventude do futuro Bispo de Cloyne. E somente assim, remontando-se ao sol

ateniense, que projeta sua luz através da escarpa da História, podemos compreen-

der o papel desse jovem irlandês que proclama, entre as sombras da caverna do

empirismo inglês, a realidade suprema e única do mundo das idéias.

Com Francis Bacon, a Filosofia havia encontrado na Inglaterra de Jaime I

o caminho perdido da Escola de Mileto. Voltava à Física, em busca do poder so-

bre o mundo sensível. Bacon repeliu a ciência demonstrativa de Aristóteles, como

estéril e responsável pela estagnação do conhecimento no mundo artificial da Es-

colástica, e proclamou o valor renovador da indução, como método fecundo da

conquista do real. Ao velho Organum aristotélico opunha audaciosamente o seu

Novum Organum Scientiarum. Thomas Hobbes desenvolve a tese de Bacon, pro-

curando explicar de maneira definitiva que todo o processo do conhecimento de-

pende da sensação. Como vemos, a Filosofia continua a se debater na dualidade

platônica do inteligível-sensível.

A linhagem empirista, que se inicia com Bacon, desenvolve-se com John

Locke, filósofo em que o critério sensório atinge a mais acabada expressão. Locke

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afirma que o saber humano deriva da experiência imediata, cujos sinais vão sendo

gravados na alma como os traços da escrita numa tabula rasa (lousa em branco),

ou numa folha em branco. Esse objetivismo extremo vai resultar, entretanto, num

extremo subjetivismo, pelo processo de abstração de que se formará o conheci-

mento. Porque a mente reelabora os dados do sensível, joga indefinidamente com

os sinais gravados pela sensação, e através da memória, dos processos associati-

vos e comparativos, e por fim da generalização abstrata, constrói o seu próprio

mundo. A mente é como um demiurgo platônico: encontrando a matéria do mun-

do, constrói com ela um novo universo.

Locke percebe o perigo e procura salvar-se através dos princípios raciona-

listas de substância e causa, formulando a teoria das causas primárias e secundá-

rias: percebemos nos objetos as suas qualidades reais de grandeza, extensão, for-

ma, movimento, etc., mas as sensações nos dão outra série de percepções, que de-

pendem da estrutura dos nossos órgãos sensoriais, e não dos objetos. São estas as

qualidades secundárias, de ordem subjetiva: a cor, o sabor, o som, o odor, etc.

Voltamos assim à dualidade fatal em que se debate o pensamento filosófico.

É então que surge Berkeley. E formula a pergunta que precipita Locke no

perigo de que ele tentara fugir. Esse dualismo de objetivo e subjetivo, de causa e

efeito, de substância e predicado, não contraria o próprio postulado fundamental

do Empirismo, enunciado por Locke em seu Essay, de que não conhecemos as

coisas imediatamente, mas apenas pelas idéias que delas possuímos? Admitido as

qualidades primárias, Locke admitira um conhecimento direto do mundo exterior.

O empirismo de Locke ficou abalado em seus fundamentos.

Se podemos conhecer diretamente as coisas externas, então o nosso conhe-

cimento não é conseqüente das idéias. E como podemos conciliar a contradição

que resulta da comparação entre um conteúdo de consciência e uma realidade ex-

terior? Berkeley se socorre de seus conhecimentos de ótica, para mostrar que as

qualidades primárias de Locke não oferecem nenhuma garantia de realidade. Pelo

contrário, são tão variáveis quanto as secundárias. Basta vermos o problema da

extensão. Não sabemos, por nossa experiência diária, que a extensão das coisas

varia na proporção da distância em que as vemos? Assim, a própria extensão é

uma qualidade subjetiva, uma idéia, e não uma realidade exterior. A solidez, a

forma, o movimento, dependem todos da nossa percepção. São qualidades subje-

tivas.

A conseqüência dessas afirmações de Berkeley é a negação da matéria. A

única realidade está na mente. Pois o próprio Locke não disse que só podemos co-

nhecer através das idéias? Ora, se assim é, como falar de coisas que existem fora

da mente? As idéias são a única realidade, pois constituem a nossa única forma de

conhecer. Berkeley se torna então mais realista que o rei, mais platônico do que

Platão. Sustenta que não podemos deduzir das idéias a existência de coisas exteri-

ores.

Dessa maneira, Berkeley parece cair novamente na situação de isolacio-

nismo em que Descartes se encontrara dentro do cogito. E o curioso é que a única

saída possível vai ser exatamente a de Descartes. Para não ficar prisioneiro de si

mesmo, vivendo isolado no mundo das próprias idéias, Berkeley vai ter de apelar

para Deus. É nesse momento que ele atira a Filosofia à mais alta garganta da His-

tória, e se liberta do isolamento, fazendo-a prisioneira de uma espantosa dualidade

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subjetiva: a mente divina e a mente humana, em silencioso colóquio na eternida-

de.

EXISTIR É SER PERCEBIDO

Analisando o conteúdo do conhecimento, vemos que ele é apenas um co-

nhecimento do conteúdo da consciência. Nossa experiência, pois, não é das coisas

exteriores, mas das idéias. Disso resulta uma conseqüência importante: a existên-

cia das idéias é a sua própria percepção, ou aquilo que Berkeley chama o ser per-

cebido. De tal maneira que: “Toda a abóboda celeste e tudo quanto a terra contém,

numa palavra, todas as coisas que compõem a gigantesca estrutura do mundo, tu-

do isso não tem subsistência, sem uma consciência cognoscente: seu Ser (esse) é

ser percebido ou conhecido”.

Berkeley antecipa, assim, em face do empirismo de Locke, a atitude de

Marx em referência à dialética de Hegel. Inverte os termos da gnosiologia de

Locke, como Marx inverteu os da dialética. Mas, também, com relação ao episó-

dio marxista, a atitude de Berkeley é inversa. Marx dizia ter posto em pé a dialéti-

ca hegeliana, quando na verdade a virou de cabeça para baixo, mergulhando-a na

matéria. O filósofo irlandês, sim, virou de cabeça para cima a doutrina de Locke,

levantando-a do chão para erguê-la até as nuvens, ou ainda além.

Por outro aspecto de sua doutrina, Berkeley é para Locke o que Espinosa é

para Descartes. Tomou em suas mãos as duas substâncias cartesianas de Locke e

transformou-as na substância única espinosiana, dando-lhe também duas espécies

de atributos, como logo mais veremos. Tenhamos cuidado, porém, nestes parale-

los, que servem para nos orientar, mas não devem ir muito além disso. Há profun-

das diferenças entre a substância espinosiana e a berkeleyana.

Para Locke, as sensações provindas da matéria eram a essência do pensa-

mento, e a matéria, por isso mesmo, a força exterior que agia sobre o espírito,

dando-lhe os elementos do conhecimento através da experiência. Daí o Empiris-

mo. Para Berkeley, tudo se passa ao contrário: se o conhecimento vem da sensa-

ção como de fato vem, não é a matéria que o produz, mas o espírito, pois só ele é

capaz de perceber. Assim, o espírito não só produz o conhecimento, como produz

a própria matéria. Pois, como vimos, existir é ser percebido.

Essa negação absoluta da matéria coloca o problema da existência ou não

do mundo exterior em Berkeley. A impressão que se tem é a de que o filósofo não

admite o mundo, só admite a mente. Esta mente percebe, e assim cria a existência.

Mas percebe o quê, se nada existe além dela ou fora dela? É a impressão que dei-

xam, ainda hoje, vários resumos da doutrina de Berkeley. E é por isso que, duran-

te muito tempo, o filósofo foi considerado como simples curiosidade filosófica,

autor de um sistema artificial e engenhoso, sem maiores conseqüências na história

do pensamento. De tal maneira, que a descoberta de Berkeley, da coerência e da

importância da sua doutrina, é fato recente na história filosófica. Foi muito fácil

explicar-se a atitude berkeleyana como conseqüência de sua posição eclesiástica.

Mas com essa facilidade furtou-se ao pensamento um dos capítulos mais emocio-

nantes da sua história, que felizmente está sendo restabelecido em toda a sua

grandeza.

A verdade é que Berkeley, negando a matéria, não nega a existência do

mundo exterior. E o que é mais curioso, como aliás já entrevimos acima, não nega

nem mesmo a extensão. Embora, para ele, como para Espinosa, a substância seja

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apenas uma, podemos dizer que o problema da substância extensa subsiste no seu

pensamento, como subsistiu no Espinosismo, em forma de atributo. O que ele não

admite, e com isso se coloca admiravelmente no centro do pensamento moderno,

é a dualidade, ou mais precisamente, o Dualismo. Seu pensamento é o avanço pa-

ra o Monismo, e num processo indiscutivelmente coerente. Acentua muito bem

González Vicén: “... seu pensamento é um momento essencial da dialética do es-

pírito europeu, numa de suas direções especificamente modernas”.

Para que isso possa se tornar claro, temos de colocar primeiro o problema

fundamental do Empirismo. Se o conhecimento é de origem empírica, vem da ex-

periência, através das sensações – admitida essa tese, que é a de Locke -, então é

indispensável saber o que é que percebemos. Para Locke, esse problema foi resol-

vido simplesmente com a aceitação da substância extensa, da existência de coisas

fora da mente, mas de natureza diferente e oposta à da mente. Locke aceitou, as-

sim, o postulado baconiano da realidade objetiva. E justificou-o com os próprios

resultados da experiência, afirmando que, se podemos operar sobre as coisas exte-

riores, com base em nossas percepções, obtendo os resultados previstos em nossos

cálculos, como acontece na vida prática e na pesquisa científica, isso prova que

podemos captar o real e a sua própria forma de ser.

Berkeley não aceita essa solução simplista. Na verdade, Bacon e Locke

não construíram sobre o terreno sólido da Filosofia, mas sobre a areia movediça

da opinião comum. Essa aceitação do mundo exterior com fundamento na prática

é a do homem vulgar, é a de toda gente, mas não a do filósofo. Este deve pergun-

tar como pode haver o trânsito do objetivo para o subjetivo. Como se pode sincro-

nizar, por assim dizer, coisas heterogêneas como a matéria e o pensamento.

Berkeley entende que isso é impossível, pois, segundo afirma: “uma idéia

só pode ser semelhante a outra idéia, da mesma maneira por que uma cor ou uma

forma só podem ser semelhantes a outra cor e outra forma”. A confusão de Bacon

e de Locke provém, pois, de um erro, que é a teoria da abstração. As chamadas “i-

déias abstratas”, que seriam imagens gerais das coisas que afetam nossos sentidos,

e seu uso na linguagem, são a fonte do engano, que levou os empiristas a formula-

rem a tese contraditória da existência do mundo material, e portanto da própria

matéria.

A verdade é que não percebemos idéias de objetos, mas sensações isola-

das, que unificamos na mente porque a experiência nos mostra que elas estão

sempre juntas, e a esses conjuntos damos então certos nomes. A um conjunto de

sensações que habitualmente recebemos denominamos maçã ou laranja, a outro

conjunto denominamos pedra, e a outro denominamos árvore. Mas nada nos auto-

riza a afirmar que existem essas coisas numa realidade exterior, como objetos de

natureza diversa da percepção ou do nosso conteúdo mental.

É, com efeito, uma opinião extranhamente dominante entre os homens –

diz Berkeley, no seu Tratado do Conhecimento -, a de que casas, montanhas, rios,

numa palavra, todos os objetos sensíveis, possuem uma existência natural ou real,

distinta do seu ser percebido pelo entendimento. E acrescenta: Se examinarmos

com atenção esta crença, talvez cheguemos à conclusão de que, no fundo, sua o-

rigem está na doutrina das idéias abstratas. Pode, com efeito, chegar a abstração

de alguma sutileza maior, do que a de distinguir a existência dos objetos sensíveis

do seu ser percebido, concebendo-a como existente fora da percepção?

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Compreendemos assim que Berkeley não estava simplesmente jogando

com palavras, inventando uma doutrina fantasiosa, engendrando um sistema en-

genhoso, mas realmente procurando a solução de um problema fundamental do

conhecimento. E quando entendemos bem a sua posição, admiramo-nos da facili-

dade com que tantos opositores, e tantos críticos do Empirismo, ainda hoje, não

vacilam em dizer que Berkeley defendia apenas a sua religião e a sua posição e-

clesiástica. Os leitores encontrarão essa perfídia a todo momento. Mas a obra de

Berkeley é o maior desmentido a essas aleivosias. Seu sistema é uma construção

teórica de impressionante coerência, marcando de fato um dos momentos funda-

mentais do desenvolvimento do pensamento europeu.

O “erro fatal” – como o chama Berkeley – das generalizações abstratas,

levou os homens ao “erro geral” da concepção da matéria como substância. Res-

saltamos novamente o platonismo de Berkeley: os homens estão, em face de sua

percepção das sensações, como os escravos da caverna diante das sombras proje-

tadas na parede. Confundem as silhuetas com a realidade. Vejamos um argumento

curioso. O que é a extensão? Não é uma idéia? Então, como pode existir fora da

mente uma substância inerte?

Assim também é muito fácil dizermos que há uma idéia geral de mesa, que

constitui uma abstração das sensações que as mesas objetivas nos dão. Mas quem

nos assegura que existem essas mesas objetivas, uma vez que a nossa única via de

conhecimento são as próprias idéias? A única coisa que podemos afirmar, coeren-

temente, é que existem feixes de sensações que percebemos com a forma de me-

sas. E se, na prática, lidamos com esses feixes como se lidássemos com mesas, is-

so não prova nada a favor da objetividade das mesas. Da mesma maneira por que

o fato de os escravos da caverna lidarem com as sombras, como se elas fossem re-

ais, não prova a realidade das sombras, mas apenas o engano dos escravos.

Berkeley analisa com aguda penetração essa posição enganosa: “enquanto

despendemos os maiores esforços para conceber a existência de coisas exteriores,

o que fazemos, durante todo o tempo, é contemplar as nossas próprias idéias”. A

mente se ilude a si própria, quando supõe que pode conceber coisas que existam

“sem serem pensadas, ou sem a mente”. É verdade que percebemos continuamen-

te uma sucessão de coisas, um mundo de sensações. Há de haver, portanto, uma

causa desse fato.

Berkeley não pode fugir do dilema de causa e efeito, ou de substância e

causa. Mas uma vez que a substância não é a matéria, e uma vez que não pode ser

de natureza estranha ou contrária à natureza da mente, então se torna claro que só

há uma solução: a causa das idéias é uma substância ativa incorpórea, ou espíri-

to.

A LINGUAGEM DE DEUS

Chegado a esse momento decisivo da sua perquirição, Berkeley realmente

parece passar do plano da Filosofia para o da Mística. Mas os que o julgaram des-

sa maneira precipitaram-se lamentavelmente. Porque é agora, mais do que nunca,

que ele vai provar o seu extraordinário vigor filosófico, a sua capacidade de andar

nas bordas do abismo, sem mergulhar nas suas profundidades insondáveis.

Gonzague Truc entende que a Filosofia, condenada a jamais solucionar os

seus problemas, só pode levá-los à solução de uma instância final e superior, que é

a Mística. Mas Berkeley não pensou assim. Apesar de tudo o que disseram dele,

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enganados por uma posição religiosa, o filósofo irlandês procurou solucionar filo-

soficamente os problemas da Filosofia.

Estabelecido que a causa das idéias é uma substância ativa incorpórea, ou

espírito, Berkeley assinala que existem duas categorias de idéias. Separa-as em

dois gêneros, como Locke fez com as qualidades. Na primeira série estão as idéias

provenientes da sensação, que são mais nítidas, fortes, bem ordenadas e duráveis;

na segunda, as que provêm da reflexão ou memória. As condições diferentes des-

sas duas categorias são suficientes para revelar-lhes a origem, e de certa maneira

confirmarem a tese berkeleyana. As idéias da primeira categoria são mais fortes e

duráveis porque provêm da substância espiritual exterior, da mente incorpórea que

as transmite ao homem, e que só pode ser o Espírito Supremo ou Deus.

Mas não é a Teologia, nem a Mística, que resolve este problema, e sim a

Filosofia. Porque a Teologia envereda pelos caminhos da revelação, apoiada no

dogma, e a Mística se entrega à iluminação da fé. Mas Berkeley não chega à sua

solução por nenhum desses caminhos. Ele a atinge através da razão, pelo trabalho

árduo da reflexão filosófica. Assim como Descartes encontrou a Deus no cogito,

de maneira filosófica, e não teológica ou mística, assim Berkeley encontra Deus

na sensação. Isto pode provar, ou pelo menos sugerir, que por qualquer das nossas

vias de percepção podemos chegar a Deus: quer mergulhando em nós mesmos,

como Descartes, quer mergulhando no mundo sensório, como Berkeley.

Estamos, pois, diante de um universo duplo, como o de Locke, constituído

por um mundo interior e outro exterior, mas por uma substância única, a espiritu-

al, que liga na sua homogeneidade indissolúvel as duas categorias de idéias. Nos-

so universo berkeleyano é inteiramente mental: de um lado, temos a nossa mente,

com as suas idéias fracas e instáveis; de outro, a mente divina, com suas podero-

sas idéias, tão fortes e estáveis que chegamos a criar a seu respeito a ilusão de

uma substância estranha e material.

Deus pensa, e o mundo existe. Nós percebemos o mundo, as suas idéias, e

as repensamos em nossa mente. Mas nada disso é fictício. O mundo mental não é

menos real que o material. Pelo contrário, é infinitamente mais real, pois é o ver-

dadeiro mundo. As leis naturais, descobertas pela Ciência, não precisam ser revo-

gadas. Elas existem. São as leis da ordem ideal na qual Deus nos apresenta as suas

idéias. Só precisamos aprofundar o assunto, para dar a essas leis o seu verdadeiro

sentido, reconhecer-lhe a natureza espiritual.

Assim estabelecida a unidade espiritual do Cosmos, Berkeley vai agora es-

tabelecer o mais extraordinário diálogo que se possa imaginar. Ibn Kaldun dizia

que Deus ouve as nossas palavras e os nossos silêncios. Berkeley mostrará que

Deus nos fala pelo silêncio das coisas. Nesse mundo espiritual sem sombras, de

que a Filosofia baniu as silhuetas ilusórias da caverna platônica, Deus a mente su-

prema, usa uma linguagem de signos, para falar à mente dos homens. Nossos ór-

gãos sensórios são como receptores telegráficos, cuja função é captar os sinais da

misteriosa linguagem.

Berkeley estuda minuciosamente o assunto em seu Ensaio Para Uma No-

va Teoria da Visão, e volta a desenvolvê-lo no Tratado. Então nos oferece esta

mecânica divina da transmissão dos signos, que vale ao mesmo tempo por um

primor de raciocínio e um salmo à grandeza de Deus:

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As idéias de visão e de tato constituem duas espécies completamente dis-

tintas e heterogêneas. As primeiras são signos e prognósticos das segundas. As

idéias de visão são a linguagem pela qual o Espírito, regente supremo, do qual

dependemos, nos informa das idéias de tato, que imprimirá em nós, caso provo-

quemos este ou aquele movimento em nossos corpos.

A distinção entre as idéias de visão e tato levam Berkeley a propor a revi-

são do conceito de Geometria como ciência abstrata. Pelo contrário, trata-se de

uma ciência baseada em realidades concretas, entendendo-se sempre o concreto

como realidade espiritual. Isso se prova quando examinamos o problema da dis-

tância, pois vemos então que a extensão revelada pela visão é variável e impreci-

sa, diferindo segundo as circunstâncias, as disposições orgânicas e outros fatores.

Somente a extensão revelada pelo tato é permanente e comporta medidas fixas.

Assim, os objetos visíveis se apresentam a nós com duas dimensões ou

magnitudes diferentes, com duas espécies de extensão: a visual e a tátil. Essa apa-

rência nos é sugerida “por certas idéias visíveis e certas sensações que acompa-

nham a visão, as quais, entretanto, em sua própria natureza, não têm nenhuma es-

pécie de semelhança ou relação com a distância ou com as coisas situadas a dis-

tância”. Verificado isso, Berkeley conclui: “Só uma conexão ensinada pela expe-

riência faz que aquelas idéias e sensações signifiquem para nós e nos sugiram a

distância e as coisas situadas a distância, da mesma maneira por que as palavras

de cada idioma nos sugerem as idéias que elas representam”.

Malebranche havia estabelecido a doutrina da participação da nossa mente

nas idéias de Deus. Berkeley aceita a tese, mas lhe dá uma forma diferente. Trans-

forma a “visão de Deus”, de Malebranche, na própria “existência em Deus”, do

apóstolo Paulo. Podemos dizer que Berkeley volta diretamente a Platão, supri-

mindo a fase intermediária do pensamento agostiniano, que serve de fundamento a

Malebranche. E afasta também de sua doutrina o artifício das causas ocasionais,

pelo qual é Deus que se insere em nós para que possamos nos mover. Berkeley

escapa ao misticismo de Malebranche para repensar o problema das relações entre

Deus e o Homem em termos filosóficos, dentro do mais estrito rigor lógico.

Graças a essa posição, Berkeley pode tratar do mundo exterior como real-

mente exterior. Alguns autores vêem nisso uma contradição e condenam o filóso-

fo por crimes que ele não cometeu. Padovani, por exemplo, entende que “por mo-

tivos práticos, morais e religiosos, ele conserva no seu empirismo os conceitos de

substância, causa e espírito, isto é, os conceitos de substância e causa espiritual”.

A essa crítica do Padre Padovani, opõe-se a do materialista Posner, que acusa

Berkeley de incoerente, por não ter reconhecido “como única realidade do mundo,

o indivíduo que discorre sobre ele”. Como vemos, partindo de posições opostas,

Padovani e Posner acusam Berkeley porque ele não caiu na tautologia, nem no so-

lipsismo. Berkeley entende que toda a realidade é do espírito, mas não do seu es-

pírito; entende que não há causa diferente do efeito, o que seria absurdo.

Vejamos como ele mesmo responde a essas críticas:

Quando digo que os corpos não têm existência fora da mente, seria enten-

der-me mal, se cressem que me refiro a esta ou àquela mente singular, sendo que

na verdade me refiro a toda mente, qualquer que ela seja.

Em suas respostas às objeções de seus contemporâneos, Berkeley insiste

no esclarecimento de que o seu sistema não implica a derrogação das conquistas

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da ciência materialista, ou uma tentativa de perturbá-la. Bastaria a essa ciência re-

nunciar à matéria, substituindo, para o seu próprio bem, para maior clareza de

seus conceitos e maior eficiência de suas pesquisas, essa noção errônea por outra,

como a de espírito ou mesmo a de idéia tátil. Neste ponto, Berkeley antecipou as

mais recentes concepções da física moderna, que transformam o nosso universo

material num universo energético. Compton, físico-nuclear, chega mesmo a supor

que as descobertas contemporâneas nos levam a perceber alguma coisa por trás da

energia, e que essa coisa se assemelha muito ao pensamento.

O que poderia parecer contraditório em Berkeley é a sua afirmação de que

a extensão não existe fora da mente, e que esta é inextensa. Mas Berkeley sustenta

que a extensão é uma idéia. Ora, as idéias são próprias da mente. Conseqüente-

mente, explica-se a existência da extensão no inextenso. Isto se assemelha um

pouco à solução dada pelos ocasionalistas ao problema da existência de matéria

em Deus: o que n´Ele existiria não seria mais do que o princípio imaterial da ma-

téria.

Mas Berkeley não cai na mesma posição, pois afirma a existência da ex-

tensão como realidade ideal, e não apenas como princípio ideal de uma realidade

estranha. “As idéias impressas nos sentidos – diz ele – são coisas reais, ou que re-

almente existem”. E vai mais longe, lembrando que as nossas noções atuais de

matéria e extensão decorrem de um vício de interpretação da realidade. Por causa

desse mesmo vício, consideramos abstrato o mundo ideal, que na realidade é o

próprio mundo em que vivemos.

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David Hume (1711-1776)

O ABISMO DE HUME

Livro: Os Filósofos. J. Herculano Pires.

Berkeley entende ainda que a concepção “viciada” de matéria como subs-

tância extensa é a responsável pelo Ceticismo. A suposição, diz ele, de que exis-

tem coisas exteriores, no sentido de oposição às do pensamento, tem dado motivo

aos argumentos do Ceticismo. Sua explicação é clara:

Enquanto atribuirmos existência real a coisas não-pensantes, distintas do

seu ser percebido, não somente nos será impossível conhecer com evidência a na-

tureza de algum ser real não-pensante, senão até mesmo saber se ele existe.

Vem daí encontrarmos filósofos que desconfiam dos seus sentidos e duvi-

dam da existência do céu e da terra, de tudo o que vêem e sentem, inclusive dos

seus próprios corpos. E depois de todo o seu trabalho e de todos os seus esforços

mentais, vêem-se forçados a confessar que não podemos chegar a nenhum conhe-

cimento evidente ou provado da existência de coisas sensíveis.

Mas um terrível escocês, David Hume, apresentando-se como continuador

do Empirismo, vai demonstrar que também do absolutismo espiritualista berkele-

yano podemos chegar ao Ceticismo. E, com isso, ele encerrará o episódio empiris-

ta. Encravará o carro de Bacon numa rua sem saída. E, como já dissemos atrás,

lançará a águia desesperada da Filosofia, não mais numa garganta estreita, mas

num profundo abismo. Dali, só o gênio de Kant a poderá retirar, para lançá-la de

novo nos rumos angustiados do seu destino, entre os desfiladeiros do futuro.

Hume aplica à substância espiritual de Berkeley argumentos semelhantes

aos que serviram ao irlandês para destruir a substância material de Locke. E mos-

tra que a substância berkeleyana não é mais resistente que a outra. Além disso, a-

taca também o princípio de causalidade, que Berkeley deixara de pé, e de que até

mesmo se servira.

Para Hume, não existe substância, mas apenas séries de idéias simples, que

chamamos por essa vazia denominação. Os pensamentos nada mais são do que

agregados de idéias simples, e estas, por sua vez, cópias ou reflexos vagos das

sensações.

O que são as idéias simples, ele as explica dizendo que partem das impres-

sões simples, diretas, das coisas. As idéias complexas são misturas de impressões

simples. Tudo depende das impressões, pois basta ver que um cego de nascença

não tem idéia de cores. O que sabemos, portanto, vem exclusivamente da experi-

ência, e é desta também que deduzimos, por força do hábito, a chamada lei de

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causalidade. Vemos as coisas se sucederem e entendemos que umas procedem das

outras, mas nada nos assegura que assim seja de fato.

No tocante à idéia do Eu, entende Hume que se trata de simples equívoco.

Não havendo impressão do Eu, também não pode haver a sua idéia. O Eu não é

nada além de um agregado de estados de consciência, de representações: um feixe

de percepções. Os homens, portanto, são apenas “feixes de percepções, as quais se

sucedem umas às outras com inconcebível rapidez, mantendo-se num fluxo perpé-

tuo”.

Bertrand Russel entende que essa conclusão é importante, por libertar a

Metafísica dos resíduos da noção de substância, e a Teologia, do conhecimento da

alma, e por mostrar, na análise do conhecimento, que a categoria de sujeito e de

objeto não importam. Windelband lembra que Hume omitiu essa idéia sobre o Eu,

enunciada no Tratado da Natureza Humana, ao reelaborar sua doutrina nos En-

saios, mas jamais se retratou dela.

O ceticismo de Hume abre assim um abismo a que a Filosofia se lança, no

momento mesmo em que a corrente empirista chega ao fim do seu desenvolvi-

mento. Windelband entende que a melhor denominação para o sistema de Hume

seria o de Ceticismo Empirista. Com isso se salvam os aspectos positivos de sua

filosofia, que realmente constitui um grandioso sistema. Hume nega a possibilida-

de da Metafísica, mas também põe em dúvida a possibilidade das ciências empíri-

cas, preferindo o caminho de um probabilismo empírico para a continuidade da

experiência científica. Nega a possibilidade de harmonia entre a razão e a fé. Nega

a possibilidade de qualquer elaboração de uma religião científica. Admite, entre-

tanto, que o mundo oferece a impressão de ser dirigido por uma inteligência su-

prema, e concede que nela se possa crer, mas apenas crer. Essa concessão prag-

mática será talvez o gérmen da religião prática de Kant, e muito mais tarde, dos

princípios do pragmatismo americano sobre o mesmo problema.

É curioso vermos a maneira por que a filosofia inglesa na era moderna, a

partir do entusiasmo renovador de Bacon, se precipita no abismo negativista que

se abre com Hume. Do alegre sensualismo do homem que subitamente descobrira

a arma da experiência, para dominar o mundo, proclamando que “saber é poder”,

vemo-la correr para o utilitarismo egoísta de Hobbes, deslizar para o materialismo

contraditório de Locke, subir inesperadamente a rampa do sensualismo angélico

de Berkeley, e então, como num balanço de trampolim, atirar-se ao torvelinho ne-

gativista de Hume.

Desse torvelinho, tanto mais perigoso pela profundidade do gênio que o

produz, só um anjo a poderá salvar. Mas esse anjo não está na Inglaterra. Embora

de ascendência escocesa, encontra-se na Prússia, e é dali que virá. (Nossa nota:

Emmanuel Kant é esse anjo).

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AS INVESTIGAÇÕES DE HUME

Livro: História da Filosofia. Os Pensadores

David Hume nasce em Edimburgo, na Escócia, em 1711. Faz estudos jurí-

dicos na Universidade de Edimburgo, mas sem pretensão de seguir a carreira. En-

tre 1734 e 1736, vive na França, onde escreve Tratado da Natureza Humana, com

que esperava obter fama. Publicada em 1739, a obra, no entanto, não causou o

impacto esperado.

Embora desgostoso, ele continua a escrever. Em 1741, publica Ensaios

Morais e Políticos, abordando em pequenos textos os mais variados assuntos, in-

clusive os de sua época; em 1748, é editado Ensaios Filosóficos sobre o Entendi-

mento Humano, sua principal obra, que receberia o título definitivo de Investiga-

ções acerca do Entendimento Humano a partir da segunda edição, de 1751. Ainda

nesse ano, publica Investigação sobre os Princípios da Moral, e, em 1752, Dis-

cursos Políticos.

Hume leva adiante o programa empirista de não admitir hipóteses. Locke

já havia descartado a possibilidade de conhecer a substância, mas conservou o

“não-sei-quê”. Berkeley sustentou que a única substância é o espírito. Mas a

mesma objeção que ele faz a respeito da existência da substância material pode

também ser levantada contra a existência do espírito. E é isso que Hume faz.

O que é o espírito, ou eu? Como pode ser substância, isto é, aquilo que é

estável, imutável, sempre idêntico a si mesmo, se o que percebemos desse eu são

apenas impressões e idéias em constante variação? Certamente, continuaremos

empregando palavras como “espírito”, “mente”, “eu” para designar esse fluxo de

diversas impressões e idéias; mas o espírito, no sentido de substância, não existe.

Com a destruição dessa última hipótese de substância, Hume chega ao extremo do

programa empirista.

Se não existe o eu no sentido metafísico, há, no entanto, a natureza huma-

na. Ela, que não é substância, refere-se às maneiras pelas quais as idéias são natu-

ral e espontaneamente associadas pela mente. O que importa, nessa medida, é in-

vestigar tais modos de associação de idéias.

Essa investigação é um verdadeiro inquérito – a palavra inglesa enquiry

traduz-se tanto por “investigação” como por “inquérito”. Hume pergunta sobre

“qual a natureza de todos os nossos raciocínios sobre os fatos”. A resposta é: “eles

se fundam na relação de causa e efeito”. Nova pergunta: “qual é o fundamento de

todos os nossos raciocínios e conclusões sobre essa relação?”. Resposta: “a expe-

riência”. Mas “qual é o fundamento de todas as conclusões derivadas da experiên-

cia?”.

A questão é decisiva. “Os filósofos”, desafia Hume, “que se dão ares de

sabedoria superior e suficiência, têm uma tarefa difícil quando se defrontam com

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pessoas com disposições inquisitivas, que os desalojam de todos os esconderijos

em que se refugiam (...)”. O que era ingenuamente explicado como relação de

causa e efeito, ou, na incerteza desta, como evidências da experiência, torna-se pe-

lo inquérito objeto de suspeita.

Como sabemos, por exemplo, que o fogo é causa do calor? Pela experiên-

cia? Ela, porém, nunca revela que “há fogo, portanto calor”, mas apenas “há fogo

e calor”. Fogo, calor e todos os fatos são exteriores entre si. Neles, não há nada in-

terior e intrínseco que os relacione necessariamente um a outro. A relação de cau-

salidade é uma crença, baseada no hábito, que se expressa por meio de palavras

como “portanto”, “logo”, “porque”.

Crença, mas não ficção: ambas se produzem pela imaginação, e, no entan-

to, as idéias em que se acredita são mais vivas e fortes do que as da ficção. A

crença é ainda mais viva quando apoiada na experiência repetida de fatos seme-

lhantes que, pelo hábito, produz a sensação de que os fatos naturais ocorram com

regularidade. Isto também permite que se acredite na repetição dos mesmos fatos

em experiências futuras. O caráter necessário e universal das leis da natureza ba-

seia-se nessa crença da regularidade da natureza.

Nas questões morais e políticas também prevalecem a prática e a observa-

ção, isto é, a experiência. Para Hume, os preceitos da conduta humana não se de-

duzem de algum suposto Bem em si, mas se referem apenas às paixões humanas,

sempre variáveis, que buscam o prazer e rejeitam o desprazer.

Mas isso não significa que os valores morais sejam inteiramente relativos:

“Reconheço que (...) a virtude é acompanhada de maior paz de espírito do que o

vício e encontra uma recepção mais favorável pela sociedade. Tenho consciência

de que, segundo a experiência passada da humanidade, a amizade é a principal a-

legria da vida humana e a moderação a única fonte de tranqüilidade e felicidade”.

Os valores podem variar de pessoa para pessoa, de sociedade para sociedade, de

época para época, mas algo permanece sem grandes alterações: exatamente a na-

tureza humana.

Com essa noção, Hume indica que os homens associam idéias e acreditam

nessa associação por força do hábito, ou costume. E este não é a repetição de ex-

periências semelhantes por parte de um único indivíduo, mas de muitos. Expres-

sões como “recepção mais favorável da sociedade” ou “experiência passada da

humanidade” apontam para o aspecto coletivo do costume. Por isso, se tenho um

prazer só meu, mas que os outros reprovam porque contraria ao costume, passo a

duvidar desse prazer íntimo e exclusivo.

De nada adianta perguntar qual a origem desse costume. Talvez tenha exis-

tido, muito antigamente, um contrato social originário, pelo qual os homens con-

sentiram em se unir em sociedade, instituindo certos valores como morais e justos.

Mas, daqueles tempos para cá, houve tantas mudanças de governos – quase todas

pela força da usurpação ou da conquista -, que é impossível que tal contrato ainda

tenha validade e autoridade. Já nascemos numa família, numa sociedade, num re-

gime político, num sistema jurídico – e o costume estava dado.

Para Hume, então, a questão do poder político desloca-se radicalmente: a

hipótese do contrato é interessante, mas é mera hipótese; o que importa é que o

governo saiba manter o costume, que é a base da crença de que os valores da jus-

tiça e da virtude de uma sociedade se associam ao prazer de seus membros. O

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problema do governo não é, para Hume, de legitimidade e de representatividade,

mas de credibilidade.

“O costume é, pois, o grande guia da vida humana”, diz Hume. Com essa

conclusão, destroem-se todos os raciocínios – científicos, religiosos, morais ou

políticos – baseados em hipóteses. Sem o apoio da experiência, eles se tornam

dogmáticos. Não à toa, Kant, mais tarde, irá afirmar que Hume o fez despertar de

seu “sono dogmático”.

Idéias, cópias das impressões

Para Hume não há, na mente humana, nada que não tenha se originado na

percepção. Esta se subdivide em duas espécies. As mais vivas são impressões, que

aparecem na mente “quando ouvimos, vemos, sentimos, amamos, odiamos, dese-

jamos ou queremos”. As mais fracas são idéias (ou pensamentos), que são cópias

das impressões e, por isso, menos vivas. Por exemplo, é fácil compreender muito

bem o que significa dizer que uma pessoa está amando, mas “nunca posso con-

fundir esta idéia com as desordens e as agitações reais da paixão”.

As idéias abstratas, como a de substância, são as mais pálidas cópias das

impressões, confundem-se com outras idéias e, frequentemente, as palavras que as

designam não significam nada. Elas não podem jamais servir de ponto de partida

para o conhecimento e a certeza.

Para Hume, o conhecimento só pode ser resultado da associação de idéias,

isto é, da conexão de várias impressões por meio de suas cópias, formando idéias

complexas. Essa associação não se faz a esmo. Até mesmo no maior dos devanei-

os, uma idéia se liga a outra obedecendo a alguns princípios.

Por exemplo, vemos um retrato e logo pensamos no retrato, pois as idéias

se associam por semelhança. A idéia de ouro evoca a de amarelo (e outras), pois

elas estão próximas (ou contíguas) e entram em conexão por contigüidade, Uma

menção a um ferimento é seguida de idéia de dor, e estas idéias se relacionam

como causa (ferimento) e efeito (dor) pelo princípio de causalidade. De acordo

com Hume, todos os casos de associações de idéias reduzem-se a esses três prin-

cípios.

Como objetos da razão, isto é, da investigação humana, as associações de

idéias classificam-se em relações de idéias e relações de fato. As primeiras cor-

respondem às ciências matemáticas, cujas idéias, imediatamente perceptíveis, são

claras e distintas. Suas proposições, por isso, são demonstradas pela “simples ope-

ração do pensamento e não dependem de algo existente em alguma parte do uni-

verso”.

Outro é o caso da relação de fatos, a que correspondem todas as associa-

ções de idéias por causalidade. Aqui, o que conta não é o encadeamento lógico

das idéias, mas a experiência: quem nunca tenha sofrido um ferimento não poderá

jamais lhe associar a idéia de dor, pois na idéia de ferimento não há nada que con-

duza racional e necessariamente à de dor. Causa e efeito são eventos distintos e

não há nenhum termo intermediário que os una em uma relação necessária; cada

vez que algo nos feriu tivemos também a impressão de dor. No entanto, temos

certeza dessa relação de causa e efeito, e, mais do que isso, também prevemos que

o ferimento sempre será – como sempre foi – a causa da dor. O que autoriza essa

previsão?

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Mais: como sempre, o Sol nasceu hoje; amanhã também nascerá. Para

Hume, essa certeza não se fundamenta em nenhum raciocínio ou demonstração,

tampouco em intuição – isto é, em todas as operações mentais tradicionalmente

admitidas como as únicas válidas para o verdadeiro conhecimento racional. E o

que dizer então dessa certeza sobre o futuro, se dele nem sequer podemos ter ex-

periência?

A certeza só pode ser uma crença. Vimos o Sol nascer ontem e hoje, e dis-

so formamos a crença de que nascerá amanhã e sempre. Mas em que se baseia a

crença? Para Hume, a resposta é apenas uma: na repetição de experiências seme-

lhantes, isto é, no hábito (ou costume). Habituamo-nos a sentir dor quando nos fe-

rimos e acreditamos que a mesma experiência se repita em todas as ocasiões se-

melhantes. O mesmo ocorre com todas as afirmações sobre relações de fato, que

constituem as ciências da natureza.

O ceticismo torna-se inevitável: o conhecimento científico, que sempre

pretendeu guiar-se pela razão e pela evidência da intuição e da demonstração para

estabelecer relações de causa e efeito, tem bases não-racionais, como a crença e o

hábito.

Mas, para Hume, isso não altera as coisas. A certeza persiste, mesmo que

agora se saiba que ela não tem bases racionais. “Não temos necessidade de recear

que esta filosofia (...) solape os raciocínios da vida diária e estenda suas dúvidas

até o ponto de destruir toda ação como também toda especulação. A natureza

manterá eternamente seus direitos e prevalecerá sobre todos os raciocínios abstra-

tos”, afirma o filósofo.

*

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GIAMBATTISTA VICO

(1668-1744)

VICO E AS IDADES DO HOMEM

Livro: História da Filosofia. Os Pensadores

Giambattista Vico (1668-1744), natural da cidade italiana de Nápoles, in-

troduz a abordagem histórica nas investigações filosóficas. Filosofia e história de-

vem caminhar juntas para conquistar a “história ideal eterna” – uma Nova Ciên-

cia, expressão que dá título à principal obra de Vico.

O instrumento dessa investigação é a filologia (Ciência que estuda uma língua

através de seus textos), que, a partir da comparação de materiais de linguagem deixa-

dos pelos povos – mitos, fábulas, poemas e narrativas da tradição popular -, re-

constitui os modos de viver e de sentir dos homens. Disso resultam os princípios

do que Vico denomina “história universal”: todos os povos passam por três está-

gios (ou idades), cada qual correspondendo a uma forma de organização social,

política e jurídica.

A primeira idade é a dos deuses: os homens, pelo temor às forças da natu-

reza – que a imaginação identifica com divindades -, refugiam-se em abrigos.

Formam-se as famílias e certas regras de convivência baseadas em rituais religio-

sos, e acredita-se viver sob o governo direto dos deuses. A linguagem é muda, isto

é, feita de gestos, sinais e caracteres.

A idade seguinte é a dos heróis, em que as famílias se unem formando a

aristocracia, que domina o restante da população. Cria-se o direito baseado na re-

ligião, fundam-se as cidades, e o modo de expressão dessa vida é a linguagem

simbólica, repleta de imagens e metáforas (metáfora: figura de linguagem que consiste em

transpor o significado de um termo –ou enunciado – para outro termo – ou enunciado – em virtude

de uma analogia ou de uma comparação subtendida. Ex. lábios de rubi, que pressupõe a compara-

ção ‘lábios vermelhos como rubi’, assim como nervos de aço, vontade de ferro), como na poe-

sia de Homero.

A idade dos homens é a última, e nela impera finalmente a razão. O gover-

no assume a forma de república popular ou de monarquia, ambas assegurando a

igualdade de direitos para todos. As leis são racionais, e a linguagem se baseia em

vocábulos convencionados. Mas, como aconteceu em Roma, os vícios degeneram

os homens, e a história encerra um ciclo para reiniciar outro. Segundo Vico, a his-

tória é marcada pela eternidade de corsi e ricorsi, isto é, de cursos e de suas repe-

tições.

Contra Descartes, Vico sustenta que o conhecimento não se forma apenas

de idéias claras e distintas – o que só se verifica na matemática. E se esta apresen-

ta tamanho grau de certeza, isto se deve antes ao fato de ser inteiramente criada

pelo homem. Para Vico, só o que foi criado ou feito pode ser conhecido pelo cria-

dor: o verdadeiro (verum) e o feito ou fato (factum) coincidem. Por isso, a histó-

ria, o conhecimento dos feitos humanos, tem pleno direito de existir como ciência.

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2 - O ILUMINISMO FRANCÊS

A REPÚBLICA DAS LETRAS

Livro: Historiada Filosofia. Os Pensadores.

Eles se autodenominam les philosophes, “os filósofos”. Ou cidadãos livres

e iguais da “república das letras” – todos são escritores -, o que anula as diferen-

ças da sociedade real francesa, dividida em estados. Voltaire é de origem burgue-

sa, assim como Diderot, La Mettrie e outros; D’Alembert é filho ilegítimo de um

general; Holbach e Montesquieu pertencem à nobreza; Condillac ordenou-se pa-

dre para nunca exercer o sacerdócio; e Rousseau, filho de um modesto relojoeiro,

não tem condição social definida. Procuram a fama, a glória – meios para ser ad-

mitidos no fechado círculo de le monde (“o mundo”), a elite sócio-cultural dessa

França estratificada (dividida em camadas sociais) -, e, claro, uma renda, já que muitos

não têm outros recursos a não ser o ofício de escrever. E escrevem muito, sobre os

mais diversos assuntos: Enciclopédia é a grande obra de todos eles (ou quase),

também chamados, por isso, de “enciclopedistas”.

Mas nessa busca de sucesso não fazem concessões, não bajulam os pode-

rosos. Ao contrário, escrevem para um público novo de não-especialistas, a quem

pretendem lançar as “luzes”, mesmo que isso signifique abalar os valores estabe-

lecidos. Por sinal, são, na maioria, anti-religiosos. Não exatamente ateus – alguns

o são -, mas consideram a religião, que se impõe pela autoridade de seus dogmas,

o símbolo máximo do obscurantismo.

Por essas ousadias, são perseguidos, encarcerados e muitos partem para o

exílio; suas obras são censuradas e queimadas em praça pública, mas, editadas fo-

ra da França, circulam de mão em mão como panfletos clandestinos. Les philoso-

phes tornam-se sinônimo de subversão e pornografia por defender e praticar a li-

berdade de pensamento, de que resulta uma nova concepção do mundo e do ho-

mem.

A vida é simples matéria

Para esses admiradores de Locke, o mundo não se reduz a números e figu-

ras geométricas, mas é antes o espetáculo observável de natureza, que inclui seres

vivos. Nesse sentido, Georges-Louis Leclerc de Buffon (1707-1788), autor de

História Natural, desenvolve uma exaustiva classificação do reino animal em es-

pécies, isto é, grupos de seres fisiologicamente semelhantes e que se reproduzem

por acasalamento. Também estabelece semelhanças entre as espécies, distribuin-

do-as em uma série contínua – o que já prenuncia a teoria da evolução de um or-

ganismo para outro. Mais do que isso, Buffon analisa a formação da vida como

resultado de processos químicos e físicos da matéria, e, desse modo, dispensa a

noção de natureza como criação divina, realizada de acordo com uma providência

ou finalidade.

Mas o mundo sem finalidade não seria um amontoado de acasos? “Destru-

ir o acaso”, responde Julien Offroy de la Mettrie (1709-1751), “não é provar a e-

xistência de um ser supremo, uma vez que pode haver outra coisa que não seja

nem acaso, nem Deus, e por tal coisa eu entendo a Natureza.” Esta dispõe os seres

em uma cadeia contínua, desde a matéria inanimada até o homem, cuja alma é

também matéria. Desse modo, La Mettrie, autor de O Homem-Máquina, defende

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um materialismo que considera a natureza uma máquina composta de inúmeros

mecanismos, dotados de uma força dinâmica inerente à matéria.

A ciência como linguagem

Se tudo é natureza, o que são a mente humana e as idéias? A essa questão

se dedica Étienne Bonnot de Condillac (1715-1780), que, mesmo sem ser propri-

amente materialista, não se preocupa com a natureza do espírito, mas com a for-

mação das idéias.

Para isso, em seu Tratado das Sensações, Condillac imagina uma estátua

dotada, inicialmente, apenas do sentido do olfato, e que sente o aroma de uma ro-

sa. A estátua ocupa-se então com a sensação desse cheiro – é a atenção. Se a sen-

sação persistir mesmo tendo desaparecido a rosa, a estátua tem memória; caso ela

perceba a diferença entre a sensação da memória e a da presença da rosa, tem-se a

comparação; e a percepção da diferença do cheiro da rosa dos demais é o juízo. A

estátua também distingue o cheiro agradável do desagradável, e isso se chama i-

maginação; ela pode sentir a necessidade daquele cheiro agradável de que se lem-

bra e tem então desejo; a persistência deste é paixão e assim por diante.

A mente é composta apenas de sensações transformadas – no caso, do

cheiro da rosa -, que têm origem nos sentidos, e, por isso, o que Locke denomina-

va idéias de reflexão, referentes às operações internas da mente, a rigor não existe.

O conhecimento é o conjunto das sensações provindas dos cinco sentidos e fixa-

das pela linguagem; a ciência é, então, uma “linguagem bem-feita”, em que cada

palavra tem o mesmo significado que corresponde a um grupo de sensações.

Salve o prazer!

Essa postura empirista também é adotada por Claude-Adrien Helvétius

(1715-1771), para quem tudo no homem se explica por sua “sensibilidade física”.

Mas para ele, autor de Sobre o Espírito e Sobre o Homem, a questão é explicar as

diferenças entre os homens, se tal “sensibilidade física” é igual para todos. A res-

posta é a educação: cada meio, cada sociedade, valoriza certos aspectos da ativi-

dade humana, dirigindo as paixões para esses valores. Nesse sentido, a religião

educa os homens segundo determinadas paixões, que só atendem aos interesses

particulares da casta dos sacerdotes. É preciso então uma nova educação que for-

me os homens de acordo com o interesse público, isto é, o máximo de felicidade

para todos e o mínimo de dor para cada indivíduo.

Também para Paul Heinrich Thiry, barão de Holbach (1723-1789), a reli-

gião é um meio de manter o domínio sobre os homens. Em O Sistema da Natureza

ele defende teses materialistas: as matérias distinguem-se umas das outras por

propriedades qualitativamente diferentes, e compõem todos os seres, cuja série

ordenada é a natureza. Em tal série não há nenhuma causa final – mera supersti-

ção inventada por sacerdotes -, e se os homens buscam certos valores como fim é

porque desejam o prazer e rejeitam a dor. Para Holbach, a religião, que impede a

realização do prazer, é antinatural; o que importa é, contra isso, reorganizar e re-

formar a sociedade de tal maneira que cada um possa sentir prazer em desejar o

bem-estar dos outros.

A ousadia do conhecimento

Por esses caminhos diversos, cada um a seu modo, les philosophes redefi-

nem o homem. Ele faz parte da natureza, mas a observação mostra que é um ser

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capaz de modificar o seu curso; é o fruto do meio e, no entanto, pode ser trans-

formado pela educação, pelas Luzes, e capaz de reformar a própria sociedade.

Sem providência divina, sem causa final sobrenatural, ele é senhor de seu destino.

Ao interpretar esse período, Kant, que representaria o auge e a superação

do Iluminismo alemão, dirá, no final do século, respondendo á pergunta formula-

da no título de uma de suas obras – O que é o Iluminismo?: “A saída do homem

de sua minoridade, pela qual ele próprio é responsável. Minoridade, isto é, inca-

pacidade de se servir de seu entendimento sem a direção de outrem, minoridade

pela qual ele é responsável, uma vez que a causa reside não em defeito do enten-

dimento, mas numa falta de decisão e coragem em se servir dele sem a direção de

outrem. Sapere aude! [Ousai saber!] Tem a coragem de te servir de teu próprio

entendimento. Eis a divisa das Luzes”.

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François-Marie Arouet

(21 de Novembro de 1694, Paris - 30 de Maio de 1778, Paris)

VOLTAIRE, O PANFLETÁRIO

Livro: História da Filosofia. Os Pensadores.

“Esmaguemos os fanáticos e patifes, suas hipócritas declamações, seus mi-

seráveis sofismas, a história mentirosa, o amontoado de absurdos. Não permita-

mos que os possuidores de inteligência sejam dominados pelos que não a têm – e

a geração futura nos deverá a razão e a liberdade.”

A conclamação é de Voltaire. Sua palavra de ordem é Écrasez l’infâme!,

esmagar o infame (ou a infame, isto é, a Igreja). Agitador e panfletário, ele é o

principal propagandista das Luzes.

Voltaire é o pseudônimo de François Marie Arouet, nascido em Paris, em

1694. Não quer ser advogado, como deseja o pai; pretende ser escritor famoso, pa-

ra o que não lhe falta talento nem ambição. Precocemente passa a escrever versos

e é admitido em salões literários mantidos por ricos burgueses. Em 1717 é encar-

cerado na prisão da Bastilha, por causa de uma sátira ofensiva ao duque de Orlé-

ans, então regente da França. Novamente preso em 1726 por envolver-se num

conflito com um nobre, só foi libertado com a condição de exilar-se na Inglaterra.

Para Voltaire, a “ilha da razão” – como denominaria o país que o recebeu

– torna-se um grande modelo. Ali, conhece as obras de Locke e de Newton, e o

sistema de governo inglês o fascina. Escreve Cartas Inglesas (ou Cartas Filosófi-

cas), obra publicada em 1734, já de volta à França. O livro é logo condenado co-

mo subversivo, e Voltaire, receoso de nova prisão, retira-se para o castelo da mar-

quesa de Châtelet, uma nobre culta, sua amante. Aos poucos retoma os contatos

com Paris e, por intermédio de madame Pompadour, a favorita do rei Luís XV, é

admitido na corte como historiógrafo oficial, sendo eleito membro da Academia

Francesa em 1746.

A marquesa de Châtelet morre em 1749. No ano seguinte, Voltaire transfe-

re-se para a corte do rei Frederico II da Prússia, mas, três anos depois, um desen-

tendimento com o protetor obriga-o a novo exílio. Em 1755, instala-se em Gene-

bra, na Suíça. Ali conclui obras como O Século de Luís XIV e artigos para a Enci-

clopédia. Mas, em 1758, é considerado indesejável na capital do calvinismo. Es-

tabelece-se então em Ferney, na fronteira da França com a Suíça.

Ferney tem hoje o nome de Ferney-Voltaire, tamanha foi a influência do

filósofo na comunidade local. A cidade se torna um verdadeiro quartel-general pa-

ra Voltaire. Mesmo proibido de entrar em Paris, dali ele coordena as atividades

dos “fiéis” de sua “Igreja” (como gosta de dizer), intervém em favor das vítimas

da intolerância religiosa, escreve obras como Tratado sobre a Tolerância e Dicio-

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nário Filosófico. Finalmente, em 1778, reingressa triunfalmente em Paris, quando

da apresentação de Irene, uma de suas várias peças teatrais. Morre meses depois

Contra a intolerância e o fanatismo

Entre sério e sarcástico, Voltaire trava o seu combate. Cândido, persona-

gem de um romance com esse mesmo nome, é expulso de um castelo de Vestfália

– uma réplica do “melhor dos mundos possíveis”, de Leibniz. E viaja. Aos pou-

cos, livra-se das idéias preconcebidas (isto é, dos preconceitos). Aprende a ver e a

sentir o mundo – que, cheio de violências e incongruências, não é o melhor dos

lugares. Mas também não é pior do que o castelo, com suas certezas ilusórias. É

apenas o mundo, que se dá aos sentidos.

Tampouco é caótico; apresenta regularidade e uniformidade – as leis da

natureza – que podem ser descritas cientificamente. Tal ordem deve ter uma cau-

sa, e, por isso, Voltaire acredita na existência de um ente “mais potente do que eu,

nada mais”. Assim, ele não vê sentido em tantas controvérsias sobre a essência de

Deus. “E de que é que isso me serviria” Se o soubesse, seria mais justo? Seria me-

lhor marido, melhor pai, melhor patrão, melhor cidadão?” As questões metafísicas

e teológicas não são apenas equivocadas: são inúteis.

Não são inofensivas, porém. O que é a metafísica de Leibniz senão a legi-

timação do mal e do castigo como elementos indispensáveis para a constituição do

“melhor dos mundos possíveis”? E o que dizer de Pascal, para quem a miséria

humana decorre do pecado original, o que justifica a condenação do pecador?

Leibniz ou Pascal dão cobertura à intolerância e ao fanatismo, que, em nome de

Deus e da fé, promovem a censura, a perseguição e a condenação à morte dos ad-

versários.

Contra isso, diz Voltaire: “O homem não é maldoso; torna-se mau tal co-

mo se torna doente”. O mal deixa de ser uma questão metafísica e teológica para

assumir uma dimensão humana. Além disso, o que é tido como mal não deixa de

ter sua utilidade. O amor-próprio – que para Pascal afasta o homem de Deus – as-

segura a conservação da humanidade. E como existiriam as sociedades se não fos-

sem as paixões, como o orgulho de governar? “A inveja obrigou a preguiça a des-

pertar e afiou o gênio de todo aquele que viu seu vizinho poderoso e feliz. Assim,

pouco a pouco, só as paixões reuniram os homens e tiraram do seio da Terra todas

as artes e todos os prazeres.”

A história é a cadeia de acontecimentos em que os homens, por suas pai-

xões e necessidades, constroem livremente seu mundo, criando as sociedades e os

governos, e desenvolvem a economia, as técnicas, as ciências e as artes. Para Vol-

taire, a história é a história do progresso, que avança à medida que os homens vão

se esclarecendo pelas luzes da razão.

Por isso ele luta contra a religião, a teologia, a metafísica, os dogmas, a

superstição, os preconceitos, o fanatismo, a intolerância. Põe-se a favor da tole-

rância, o único meio, a seu ver, de combater esses obstáculos do progresso. Conto,

romance, poesia, peças teatrais, estudos históricos e “textos filosóficos” são as

armas de Voltaire, que, por vezes, mostra-se apressado e até incoerente em seus

raciocínios.

Mas que importa? “O século XVIII”, diz Merleau-Ponty, “é o melhor e-

xemplo de um tempo que não se exprime bem em sua filosofia. Seus méritos estão

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alhures: em seu ardor, em sua paixão de viver, saber e julgar: em seu ‘espírito’.”

Esse comentário vale principalmente para Voltaire.

*

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Denis Diderot (1713-1784)

DIDEROT, CONTRA O “SISTEMA”

Denis Diderot (1713-1784), ex-estudante da Universidade de Paris, não

tem ocupação regular. Boêmio, vive na miséria, realizando trabalhos esporádicos

como professor e tradutor. Em 1746, porém, sua sorte começa a mudar. É contra-

tado por uma editora francesa para traduzir do inglês a Cyclopaedia, de Ephraim

Chambers, mas consegue fazer com que esse plano seja substituído por outro,

muito mais interessante: a obra seria inteiramente reescrita. Colaboradores não lhe

faltam: Voltaire, Montesquieu, Rousseau, o barão de Holbach, só para citar os

mais famosos. O matemático Jean Le Rond d’Alembert (1717-1783), seu amigo,

seria o co-editor.

Em 1751, aparece o primeiro volume da obra, que mais tarde tornar-se-ia

famosíssima: a Enciclopédia. O texto passa por censuras e proibições, e grande

parte das edições circula de maneira clandestina. Muitos colaboradores, entre eles

D’Alembert e Voltaire, abandonam os trabalhos. Mas Diderot vai até o fim e, em

1772, vê distribuídos os últimos volumes. A obra sintetiza as Luzes: trata de filo-

sofia, ciências, artes, política, economia, geografia e técnicas, entre outros temas,

totalizando dezessete volumes de texto e onze de ilustrações, além de vários su-

plementos.

A Enciclopédia rendeu dinheiro à editora, mas não a Diderot. Ele perma-

neceu pobre e só no final da vida conseguiu certa estabilidade, graças à proteção

de Catarina II, imperatriz da Rússia e grande admiradora dos enciclopedistas, em

particular de Diderot.

Na Enciclopédia, o verbete “filosofia” define o filósofo como “um homem

que quer agradar e se tornar útil”, isto é, um homem de bem. Para isso, ele “não

vê pelos olhos dos outros e só se rende à convicção que nasce da evidência”. Deve

também combater o “espírito sistemático”, que “constrói planos e forma os siste-

mas do universo, aos quais quer seguidamente ajustar, bem ou mal, os fenôme-

nos”.

Esse filósofo poderia ser Diderot. Ele, de fato, não escreve nenhum tratado

sistemático. Seu pensamento, como o de Voltaire, está disperso em romances, pe-

ças de teatro, ensaios sobre a arte e textos filosóficos. “Apressemo-nos em tornar

a filosofia popular. Se quisermos que os filósofos caminhem para a frente, apro-

ximemos o povo do ponto onde se encontram os filósofos”, propõe.

Também é avesso ao “espírito do sistema”, pois, como muitos outros ilu-

ministas, considera absurda a pretensão de explicar tudo numa cadeia de razões de

idéias claras e distintas. Contra essas especulações estéreis, a arma do empirismo,

a evidência da experiência sensível: “Uma boa observação”, diz Diderot, “vale

mais do que cem teorias”.

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A observação revela uma realidade bem distinta daquela descrita pela ma-

thesis universalis cartesiana. Uma gota de água contém uma infinidade de seres, e

o homem não é a unidade que os filósofos lhe atribuíram – é formado de vários

órgãos, “moléculas” e inúmeras partes ainda menores. “Não há”, escreve Diderot

em O Sonho de D’Alembert, “nada de preciso na natureza... (...) Toda coisa é mais

ou menos uma coisa qualquer, ‘mais ou menos terra, mais ou menos água, mais

ou menos ar, mais ou menos fogo; mais ou menos de um reino ou de um outro...

portanto, nada é da essência de um ser particular... (...) E vós, falais de essências,

pobres filósofos!”

A natureza produz a si mesma

O modelo do mundo é a biologia e não mais a matemática. Assim, asseme-

lha-se ao universo descrito por Leibniz. Mas sem essências nem substâncias espi-

rituais, as mônadas. Estas são substituídas pela matéria, dotada de uma força in-

trínseca que a faz mover-se. Desse movimento surgem as combinações da matéria

que, ao longo de milhões de anos, formam os embriões, os seres vivos, a sensibi-

lidade, a inteligência e a cultura.

Nesse materialismo evolucionista não há lugar para a providência divina.

Como que antecipando a teoria transformista de Lamarck (1744-1829), diz Dide-

rot: “Os órgãos produzem as necessidades, e reciprocamente as necessidades pro-

duzem os órgãos”, isto é, a natureza produz a si mesma, corrigindo seus defeitos e

eliminando os seres inviáveis. Um cego de nascença, por exemplo, aprende a

“ver” com o tato, enquanto os monstros, essas aberrações da natureza, são elimi-

nados por não ter condições de subsistir. A ordem e a perfeição do mundo, apon-

tadas pela religião como prova da existência de um ser supremo, não passam da

forma atual dessa autoprodução da natureza.

Diderot sabe que essa concepção – exposta, entre outras obras, em Pensa-

mentos Filosóficos e Pensamentos sobre a Interpretação da Natureza – é ainda

uma suposição. Não é à toa que a sua versão mais acabada apareça como um ima-

ginário sonho (de D’Alembert).

Para Diderot, a religião, com seus dogmas e doutrinas intolerantes, é uma

das principais fontes do mal.

Fazer o bem é natural ao homem, contanto que por “bem” não se entenda

algo tão abstrato como o que a teologia e a metafísica prescrevem. “Queres sa-

ber”, diz Oru, um nativo de Taiti, em Suplemento à Viagem de Bougainville, “(...)

o que é bom ou mau? Apega-te à natureza das coisas e das ações; a tuas relações

com teu semelhante; á influência de tua conduta sobre tua utilidade particular e o

bem geral.”

A religião, que obriga a certas regras em nome do supremo Bem, é antina-

tural. Todos compreendem racional e naturalmente que ser bom é praticar ações

agradáveis e úteis para si e para os outros. Castigos e prêmios têm como finalida-

de educar os homens segundo as leis da natureza. “E fazei que o bem dos particu-

lares fique tão estreitamente ligado ao bem geral que um cidadão não possa quase

prejudicar a sociedade sem prejudicar a si mesmo; assegurai à virtude sua recom-

pensa, como assegurastes à perversidade seu castigo (...)”

O homem pode ser bom e feliz, contanto que se liberte das imposições das

autoridades religiosas, metafísicas, filosóficas ou políticas que teimam em contra-

riar a natureza e a razão. Mas seguir as leis da natureza não significa tornar-se seu

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prisioneiro. Pois a razão não é apenas a imitação da natureza, mas a capacidade de

criação. “Iluminai os vossos objetos de acordo com o sol de cada um de vós, que

não é o da natureza; sede discípulos do arco-íris, não o seu escravo”, aconselha

Diderot.

Como outros iluministas, ele critica teorias e práticas consagradas, colo-

cando-se na posição do “outro”. Assim, o sonho delirante de D’Alembert é o ou-

tro da metafísica racionalista; o cego, o outro do vidente, o que confunde a evi-

dência dos sentidos com a certeza da razão.

*

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Charles Loms de Secondat, barão de Montesquieu (1689-1755)

AS LEIS DE MONTESQUIEU

Livro: História da Filosofia. Os Pensadores

O objetivo de Charles Loms de Secondat, barão de Montesquieu (1689-

1755), é claro: destacar e analisar em separado o aspecto propriamente político e

social do homem. “Não se deve de modo algum estatuir pelas leis divinas o que

deve sê-lo pelas leis humanas, nem regulamentar pelas leis humanas o que deve

ser feito pelas leis divinas”, escreve ele, estabelecendo a separação entre a religião

e a política. Montesquieu, assim, quer demarcar o domínio próprio da política e de

sua ciência, que não se confunde com o da religião ou o da moral: “Pretendi so-

mente mostrar como todos os vícios políticos não são vícios morais, e como todos

os vícios morais não são vícios políticos”. Para muitos que o interpretam, ele i-

naugura a sociologia política.

Para Montesquieu, as religiões, os valores morais e os costumes devem ser

analisados não em si mesmos, mas na sua relação com os diversos modos de or-

ganização das sociedades. É preciso também verificar as relações que tais socie-

dades mantêm com os dados naturais, como o clima e o solo.

Nas regiões frias, por exemplo, as “fibras” do corpo comprimem-se, au-

mentando a força e a energia do homem; nas regiões quentes ocorre o inverso, e

por isso seus habitantes são mais fracos e covardes. O clima frio da Europa é pro-

pício para a formação de Estados livres, enquanto na Ásia, mais quente, só os

grandes impérios despóticos, como o da China, podem assegurar a estabilidade e a

unidade da população “efeminada” e “indolente”.

Hoje, esse tipo de análise seria considerado ridículo e preconceituoso. Mas

nisso Montesquieu participa dos preconceitos do seu tempo, e mesmo contra sua

vontade: os relatos dos viajantes, em que se baseia e acredita, estão carregados de

uma visão preconceituosa. Em todo caso, Montesquieu não avalia o chamado

“despotismo asiático” segundo critérios morais ou religiosos. Procura, antes, ana-

lisar o modo como se organiza esse espírito geral tão peculiar aos olhos de um eu-

ropeu.

“Muitas coisas governam os homens: o clima, a religião, as leis, as máxi-

mas do governo, os exemplos das coisas passadas, os costumes, as maneiras, re-

sultando disso a formação de um espírito geral.” Estudar o homem em uma socie-

dade é, então, analisar seu espírito geral. Por sinal, a principal obra de Montesqui-

eu, publicada em 1748, denomina-se Do Espírito das leis. (Seu primeiro trabalho,

Cartas Persas, de 1721, ridiculariza os costumes franceses, na pele de dois persas

em visita a Paris.)

Para ele, o que importa não é julgar os governos existentes, mas compre-

ender a natureza e o princípio de cada espécie de governo. A natureza do governo

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republicano consiste no fato de que o poder soberano pertence ao povo como um

todo (democracia) ou a uma parcela dele (aristocracia). Seu princípio, isto é, as

paixões humanas que o nutrem e o fazem agir, é a virtude, definida como “amor à

pátria”. Só esse amor pelo bem coletivo pode impedir a desagregação da república

por interesses particulares.

A natureza da monarquia é a de que “um só governa, mas de acordo com

leis fixas e estabelecidas”. Nela, o princípio não é a virtude, mas a honra, isto é, o

amor que cada indivíduo tem pelo Estado a que pertence. Na monarquia, as leis

fixam e ordenam os Estados de tal forma que a busca da realização de ambições

de cada um concorre para o bem comum.

Também no despotismo governa uma só pessoa, mas “sem obedecer a leis

e regras”. Sob o déspota, a população inteira reduz-se à escravidão, e, por isso, o

princípio que anima esse tipo de governo só pode ser o medo.

A organização social e as leis que regulamentam cada um desses três tipos

de governo não são frutos do mero capricho dos governantes. Não podem contra-

riar os respectivos princípios sob o risco de destruir suas próprias naturezas. Por

isso, Montesquieu examina minuciosamente a adequação das leis em relação à na-

tureza, ao princípio e ao espírito geral de cada sociedade e governo. A educação,

por exemplo, deve ser primordial na república, para formar cidadãos virtuosos; no

despotismo, porém, ela se limita a “introduzir o medo no coração”, valendo-se de

noções religiosas. O luxo deve ser coibido na república, mas é necessário na mo-

narquia e no despotismo. A condição das mulheres também varia conforme a na-

tureza e o princípio de cada governo.

A própria liberdade só pode ser definida em função de cada governo e de

suas leis: “A liberdade”, afirma Montesquieu, “é o direito de fazer tudo o que as

leis permitem”. Trata-se, então, de verificar em que condições é possível o máxi-

mo de liberdade – e aí Montesquieu, sempre cuidadoso em permanecer “neutro”

em sua análise, revela suas preferências políticas.

Para ele, em qualquer Estado há três tipos de poder: o legislativo, o “poder

executivo das coisas que dependem do direito das gentes” (o executivo propria-

mente dito) e o “executivo das leis que dependem do direito civil” (o judiciário).

Tais poderes, que correspondem a funções do Estado, podem ser articulados de

várias maneiras. Se cada poder agir por sua própria conta, não há como impedir as

arbitrariedades: é o mínimo de liberdade.

No extremo oposto, cada poder interfere nos demais em questões bem de-

finidas, como o veto do executivo às decisões do legislativo, a prestação de contas

do executivo perante o legislativo ou certas prerrogativas deste em relação ao ju-

diciário. Não se trata, portanto, de “separação” e “independência” dos três poderes

– como mais tarde o pensamento liberal iria reinterpretar Montesquieu -, mas da

combinação entre eles de modo a limitar-se mutuamente, formando um equilíbrio.

O modelo desse equilíbrio é o governo da Inglaterra. Para Montesquieu, é essa

“monarquia moderada”, a forma de governo que propicia o maior grau de liberda-

de, e, por isso, de prosperidade.

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JEAN-JACQUES ROUSSEAU (1712-1778)

ROUSSEAU, O CAMINHANTE SOLITÁRIO

Livro: História da Filosofia. Os Pensadores

“Para conhecer os homens, é preciso vê-los agir. No mundo dos salões nós

os ouvimos falar, eles mostram seus discursos e escondem suas ações; mas na his-

tória elas são desmascaradas e nós os julgamos a partir dos fatos.” O mascaramen-

to do ser pelo parecer, manifesto nos salões do século XVIII, choca profundamen-

te o jovem Rousseau, que chega a Paris em 1741, oriundo da província de Gene-

bra. E a aversão pela hipocrisia reinante na vida social da época é tamanha que irá

marcar toda a sua obra. Talvez não tenha sido só por esse motivo, mas o fato é

que Rousseau usará sempre, em todas as suas obras, um único título: cidadão de

Genebra.

Jean-Jacques Rousseau nasce em Genebra, na Suíça, em 1712. Perde a

mãe ao nascer e é criado pelo pai, Isaac Rousseau, homem um tanto excêntrico,

descendente de uma família calvinista de relojoeiros, de origem francesa. Aos 7

anos, Rousseau lia com o pai romances deixados por sua mãe e obras como Vidas

Paralelas, de Plutarco, que desde o século XVI era tido como um manual de ci-

vismo pelos republicanos. Mais tarde, Rousseau diria que Plutarco foi um dos

poucos autores que realmente estimou.

Aos 10 anos, é confiado ao pastor Lambercier, com quem permanece du-

rante dois anos e tem suas primeiras noções de latim. Depois disso, torna-se a-

prendiz de um gravador, que o maltrata. Aos 16 anos, foge e leva uma vida erran-

te, passando por muitas privações.

Para tentar escapar à fome, procura o auxílio da Senhora Warens, em An-

necy. Converte-se ao catolicismo e torna-se amante da protetora. Depois, para ga-

nhar a vida, trabalha como gravador, secretário, lacaio. Resolvido a adquirir uma

sólida cultura, começa a ler metodicamente. Estuda música, e, após uma tempora-

da na casa do Senhor Le Maître, no inverno de 1729-30, passa a se apresentar co-

mo professor de música. Em 1740, encontra-se em Lyon como preceptor dos fi-

lhos do Senhor de Mably, irmão dos filósofos Gabriel Mably e Condillac. No ano

seguinte, vai para Paris, onde pretende fazer fortuna com um método de notação

musical que inventou e deseja registrar na Academia das Ciências. Seus planos fa-

lham: o método é considerado complicado demais. Rousseau, no entanto, desco-

bre um amigo: Denis Diderot, então um jovem escritor, tão desconhecido como

ele. Em pouco tempo, começa a freqüentar os salões. Escreve uma ópera, As Mu-

sas Galantes, que consegue fazer representar na Ópera de Paris. O amigo Diderot

encomenda-lhe artigos sobre música para a Enciclopédia e seu relacionamento

com os filósofos enciclopedistas amplia-se.

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Em 1745, liga-se a Thérèse Levasseur, uma criada. O casal tem cinco fi-

lhos, todos entregues, logo após o nascimento, a orfanatos. (No fim da vida, Rous-

seau, que se casa com Thérèse, justifica-se alegando que não pôde assumir os fi-

lhos por ser pobre e doentio.)

Durante o verão de 1749, quando se dirigia ao castelo de Vincennes para

visitar o amigo Diderot, que havia sido encarcerado depois da publicação de Car-

ta sobre os Cegos, acusado de ateísmo, Rousseau toma conhecimento de uma

questão proposta pela Academia de Dijon e resolve concorrer ao prêmio. Vence o

concurso e publica seu primeiro texto filosófico, Discurso sobre as Ciências e as

Artes (1750). A repercussão da obra obriga Rousseau a polemizar com adversários

de suas teses. Torna-se, com isso, célebre. Pouco depois, escreve a ópera O Adivi-

nho da Aldeia e Carta sobre a Música Francesa. Recusa, orgulhosamente, uma

pensão real. Durante uma curta viagem a Genebra, volta á fé protestante, que ha-

via abjurado na juventude.

A pedido de Diderot, escreve em 1755 um importante trabalho para a En-

ciclopédia, o Discurso sobre a Economia Política, no qual aprofunda suas teses,

passando do plano moral para o político. No mesmo ano, publica o célebre Dis-

curso sobre a Origem e Fundamentos da Desigualdade entre os Homens, também

apresentado à Academia de Dijon, mas que, ao contrário do primeiro Discurso,

não foi premiado, apesar de sua maior importância. Em 1756, Rousseau passa a

morar no Ermitage, uma enorme casa em Montmorency, colocada à sua disposi-

ção pela Senhora d’Épinay.

Nesse retiro, começa a escrever o romance epistolar A Nova Heloísa, com

o qual iria obter enorme prestígio. Na primeira parte do livro, desenvolve o tema

da paixão, que, se faz sofrer, também enriquece; e recrimina as convenções soci-

ais que impedem Julie, a heroína, de se casar com Saint-Preux por causa da condi-

ção social do amante. Vai além: denuncia a posição humilhante da mulher na so-

ciedade de seu tempo. Na segunda parte, opõe à corrupção da aristocracia das ci-

dades a vida simples do campo. A natureza, vista pelo autor como viva e rica, é

tomada como confidente, como fonte de inspiração.

Em 1757 Rousseau deixa o Ermitage e instala-se em Montlouis, onde

permanece durante cinco anos. Vive, então, o período mais fértil de sua carreira:

termina A Nova Heloísa, escreve a Carta a D’Alembert sobre os Espetáculos

(1758), publica Emílio e Do Contrato Social, ambos em 1762. Consideradas ofen-

sivas às autoridades, essas obras são incineradas e ordena-se a prisão do escritor.

Rousseau tem de sair às pressas de Paris, refugiando-se em Neuchâtel, então sob o

domínio de Frederico II da Prússia.

Do exílio, escreve Carta a Cristophe de Beaumont, defendendo Emílio, e

Cartas Escritas da Montanha. Em 1764, a pedido de Matteo Bottafuoco, prepara

o Projeto de Constituição para a Córsega. Pouco depois, começa a escrever Con-

fissões, em que procura explicar, em mais de mil páginas, aspectos de sua vida e

de sua obra.

Depois que sua casa em Neuchâtel é atacada por fanáticos, dirige-se para a

ilha de Saint-Pierre, onde também não pode permanecer. Sabendo de sua difícil si-

tuação, o filósofo David Hume oferece-lhe refúgio na Inglaterra. Os delírios per-

secutórios de que sofria Rousseau, no entanto, logo o fazem desentender-se com o

anfitrião.

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Ele volta à França, onde passa a viver isolado. Casa-se, em 1767, com

Thérèse Levasseur, com quem vivera praticamente toda a vida. A pedido do conde

Wielhorski, que pretendia incrementar reformas políticas em seu país, escreve

Considerações sobre o Governo da Polônia (1771).

Em 1776, sua saúde, que andara abalada, melhora e ele começa a escrever,

com mais tranqüilidade, Os Devaneios do Caminhante Solitário. A convite do

marquês de Girardin, muda-se para o castelo de Ermenonville, ao norte de Paris,

em maio de 1778. Passa os dias perambulando pelo parque do castelo, estudando

e catalogando plantas. Na manhã de 2 de julho, sente-se mal e, em seguida, falece.

Um contrato social legítimo

“O homem nasce livre, e por toda a parte encontra-se a ferros. O que se crê

senhor dos demais não deixa de ser mais escravo do que eles. Como adveio tal

mudança? Ignoro-o. Que poderá legitimá-la? Creio poder resolver esta questão.”

Ao colocar em pauta a questão da legitimidade do pacto que os homens fi-

zeram para sair do estado de natureza e inaugurar o estado civil, Rousseau adota,

já neste primeiro parágrafo do capítulo I de sua principal obra, Do Contrato Soci-

al, uma postura polêmica em relação aos pensadores políticos que o precederam,

especialmente Hobbes e Locke.

Os filósofos do século XVII, preocupados em combater a origem divina

dos reis, elegeram a passagem do estado de natureza para a sociedade civil como

uma questão nuclear. Para Rousseau, no século seguinte, ela é decisiva e minucio-

samente desenvolvida no Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desi-

gualdade entre os Homens. Permanece como pressuposto em Do Contrato Social.

Teria sido graças a uma sucessão de acasos que o homem saiu do estado de natu-

reza, no qual era livre e vivia muito bem, para se tornar escravo.

O contrato que teria possibilitado a saída do homem do estado de natureza,

tal qual imaginaram Hobbes ou Locke, não é legítimo; constitui uma burla na qual

os homens nunca deveriam ter consentido: “(...) os pobres só tendo a perder a li-

berdade cometeram uma grande loucura ao conceder, voluntariamente, o único

bem que lhes restava, para nada ganhar em troca”. Rousseau não aceita a tese de

Hobbes de que o contrato põe fim ao estado de guerra e garante a segurança, nem

a de Locke, que atribui ao contrato a garantia do usufruto da propriedade privada.

Será de um contrato legítimo que Rousseau irá tratar em Do Contrato Social, ou

seja, um contrato em que a vontade geral se apresente como soberana e no qual a

liberdade, entendida como o dom mais precioso do homem, seja preservada.

Para fundamentar sua crítica á sociedade, Rousseau irá se inspirar na natu-

reza, como outros já haviam feito. Na interpretação que faz de seus antecessores,

percebe o mesmo deslize que identificara nos salões: o falar serve muito mais para

esconder do que para revelar a verdade. Os juristas e até mesmo os filósofos que

trataram do estado de natureza transportaram para lá o homem civilizado com su-

as paixões degeneradas, com seus vícios. Rousseau fará uma crítica radical a essas

interpretações e, a partir do homem natural, desenvolverá, hipoteticamente, sua

história, para poder compreender como o homem chegou ao estado atual de cor-

rupção.

Contra o despotismo, a liberdade civil

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Rousseau explica, em Do Contrato, a saída do estado de natureza apelando

para uma hipótese: os homens teriam chegado a um ponto em que os obstáculos à

sua conservação sobrepujaram as forças de que cada indivíduo dispõe para man-

ter-se. Não têm outra saída, portanto, a não ser se unir, para juntar suas forças.

Mas, como a força e a liberdade de cada indivíduo são os instrumentos primordi-

ais de sua conservação no estado de natureza, a solução prevista leva a um impas-

se: como empenhá-las sem prejudicar e sem negligenciar os cuidados que a si

mesmo cada um deve? Para resolver a questão e efetuar o pacto, o homem precisa

encontrar “uma forma de associação que defenda e proteja a pessoa e os bens de

cada associado com toda a força comum, e pela qual cada um, unindo-se a todos,

só obedece, contudo, a si mesmo, permanecendo assim tão livre quanto antes”.

Esse pacto exige a alienação total de cada associado, com todos os seus di-

reitos, à comunidade. Mas “cada um dando-se a todos não se dá a ninguém”, e re-

cebe o equivalente a tudo o que alienou e maior força para conservar o que tem.

Todos ganham e ninguém perde, e o homem deixa o estado de natureza para in-

gressar na sociedade civil, em que são necessárias regras para a sobrevivência.

No momento mesmo em que se efetua o pacto, ou ato de associação, for-

ma-se um corpo moral e coletivo, o corpo político, constituído por todos os mem-

bros que participaram da assembléia fundadora. O corpo político ganha, também

por conseqüência imediata do ato de fundação, sua unidade, sua vida e sua vonta-

de. Torna-se uma pessoa pública como a antiga pólis e passa a ser chamado de Es-

tado, quando passivo; Soberano, quanto ativo; e Potência, quando comparado a

seus semelhantes (outros Estados). Os associados, por sua vez, recebem o nome

de cidadãos, enquanto participantes da autoridade soberana; súditos, enquanto

submetidos às leis do Estado; e povo, quando recebem designação coletiva.

A passagem do estado de natureza para o estado civil determina no homem

notáveis mudanças. Precisa, por exemplo, substituir o instinto pela justiça, atribu-

indo às suas ações uma moralidade que lhe faltava no estado de natureza. Vê-se,

então, forçado a adotar outros princípios e a consultar a razão antes de ouvir as

próprias inclinações. Perde a liberdade natural (que era limitada pela força do in-

divíduo), mas ganha em troca a liberdade civil e a propriedade de tudo o que pos-

sui. A única restrição acontece quando sua vontade particular, movida por interes-

ses egoístas, choca-se com a vontade geral, que é o fundamento da soberania e se

expressa nas leis.

Rousseau acredita ser necessária uma inteligência superior, capaz de avali-

ar todas as paixões humanas e não participar de nenhuma – ou seja, que não per-

tença à nossa natureza e ao mesmo tempo a conheça a fundo -, para descobrir as

melhores regras para a sociedade. “Seriam necessários deuses para dar lei aos

homens”, afirma. Como isso não é possível, Rousseau cerca-se de muitos cuida-

dos para delinear o perfil do legislador, limitando seu poder no interior do Estado.

Por exemplo, o legislador não pode, como tal, participar da soberania, nem se

converter em magistrado.

Rousseau considera a legislação tão importante porque ela confere movi-

mento (governo) e vontade (leis) ao corpo político – o contrato, sem isso, seria le-

tra morta. Assim, o corpo artificial do Estado encontra no artifício do governo e

das leis o instrumento adequado para sua conservação – que é seu fim último.

*

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A REVOLUÇÃO FRANCESA

Costuma-se analisar a Revolução Francesa como a revolução burguesa por

excelência. O movimento teria levado a burguesia ao poder político, a fim de se

desembaraçar da monarquia absolutista e do Antigo Regime – que, após ter favo-

recido a consolidação da posição econômica burguesa, transformaram-se em obs-

táculos a seu livre desenvolvimento. Para isso, a burguesia teria contado com o

apoio de outras camadas do “terceiro estado” – camponeses e setores pobres das

cidades (os chamados sans-culottes) -, além de parcelas do clero e da nobreza.

Mas, por isso, é obrigada a disputar o poder com esses aliados, o que explicaria as

oscilações da revolução.

A burguesia também possuiria um programa político: os ideais das Luzes,

resumidos no lema “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”. Estas três palavras sig-

nificariam a fraternidade entre os burgueses para conquistar a liberdade de empre-

endimento em igualdade de condições, sem os monopólios ou privilégios que e-

ram concedidos pelo rei a certos grupos.

Não há dúvida de que alguns aspectos do pensamento iluminista autorizam

essa identificação com a burguesia. Que os ideais revolucionários se nutrem das

Luzes também é fato: “Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direi-

tos”, diz o Artigo 1º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, votada

em agosto de 1789 pela Assembléia Constituinte. “A finalidade de toda associa-

ção política”, prossegue o documento, “é a conservação dos direitos naturais e

imprescritíveis do homem. Esses direitos são: a liberdade, a prosperidade, a segu-

rança e a resistência à opressão.”

Mas os iluministas reconheceriam os revolucionários como herdeiros? A

maioria deles – senão todos – temia as agitações políticas, que tendem a se tornar

incontroláveis, e preferia que a difusão das Luzes se fizesse de cima para baixo,

por um “déspota esclarecido”. Nesse sentido, a influência das Luzes sobre a Revo-

lução Francesa é menos uma herança do que uma apropriação: são os revolucioná-

rios que se reivindicam herdeiros das Luzes, a fim de justificar e legitimar suas

práticas – que, por sinal, ramificam-se em várias direções.

Uma delas pode ser considerada burguesa: “Sendo a propriedade”, diz a

Declaração dos Direitos, “um direito inviolável e sagrado, dela ninguém pode ser

privado (...)”. A igualdade proclamada nesse mesmo documento encontra seu li-

mite na propriedade. Diz Antoine Barnave (1761-1793), um dos líderes da As-

sembléia Constituinte: “Um passo a mais na linha da igualdade será a destruição

da propriedade”.

Mas para os comunistas – e esta palavra já começa a ser empregada -, a i-

gualdade deve ser real, o que só se alcança pela extinção da propriedade privada.

Nesse sentido, em 1797, Gracchus Babeuf (1760-1797) organiza uma insurreição,

a Conjuração dos Iguais, duramente reprimida. Mesmo antes, o igualitarismo en-

contra-se difuso entre os sans-culottes. Nesses tempos de guerra e penúria, eles

reivindicam o tabelamento dos gêneros de primeira necessidade, mesmo que isso

restrinja a liberdade dos especuladores, agiotas e exploradores. Liberdade é a livre

organização do povo para vigiar e punir esses “inimigos do povo”, o que também

requer um governo forte.

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O “despotismo da liberdade”

“Talvez seja chegada a hora de organizar temporariamente o despotismo

da liberdade para esmagar o despotismo dos reis”, declara Jean-Paul Marat (1743-

1793), ao propor em 1793 a criação do Comitê de Salvação Pública, órgão encar-

regado de enviar à Convenção Nacional as reivindicações populares e de denunci-

ar os supostos “inimigos do povo”. Como tal, torna-se sinônimo do terror.

“Despotismo da liberdade”: essa expressão paradoxal resume um dos

grandes dilemas da Revolução Francesa. Liberdade é do povo, pois este, sendo

soberano, detém a autonomia e a autodeterminação, e não pode sofrer restrições.

Interpretado à maneira de Rousseau, isso significa que o povo, que encarna a von-

tade geral, deve governar diretamente, sem intermediários. Como então justificar

o governo da Convenção Nacional, formada por representantes eleitos, se o pró-

prio Rousseau afirmava que “a soberania não pode ser representada”?

Os jacobinos – facção considerada seguidora de Rousseau e que domina o

Comitê de Salvação Pública – afirmam a identidade entre o povo e a Convenção.

Esta é soberana porque o povo a elegeu por sufrágio universal; o povo é soberano

porque governa por intermédio de seus representantes. O que deve ser evitado a

todo custo é, então, o rompimento dessa identidade, ou seja, o surgimento de um

poder independente do povo e que passe a agir por conta própria. Tal poder pode

ter a melhor das intenções, mas, separado do povo, tende a realizar seus interesses

particulares, pondo em risco a vontade geral e a liberdade popular. Por isso, afir-

ma Saint-Just (1767-1794), um dos líderes jacobinos: “O governo é revolucioná-

rio, mas as autoridades não o são intrinsecamente; (...) se agissem revolucionari-

amente por elas mesmas, eis a tirania, eis a infelicidade do povo”.

Contra esse risco, o Terror, a vigilância contínua para identificar e conde-

nar qualquer suspeito. O resultado é a violência generalizada, que, em nome da li-

berdade, leva à guilhotina tanto os deputados da Convenção, como os membros

das organizações populares, e, por fim, os próprios jacobinos que haviam patroci-

nado do Terror.

As teorias, na prática

Hoje, pode-se concluir que o desfecho da Revolução foi a consolidação da

sociedade burguesa e o desenvolvimento da economia capitalista. Mas é possível

afirmar que ela continha desde o início esse resultado? No decorrer do movimen-

to, as noções de liberdade e de igualdade não tinham apenas um significado bur-

guês (livre concorrência em igualdade de condições), mas receberam diversas in-

terpretações, a que corresponderam as mais variadas práticas políticas. A revolu-

ção foi se constituindo nesse entrechoque de propostas e tentativas de realizá-las,

e, nesse sentido, é um produto da ação livre dos homens.

Saint-Just já confessava: “A força das coisas nos conduz talvez a resulta-

dos que não pensávamos jamais”. Tanto quanto a experiência da liberdade, a revo-

lução é também a constatação da defasagem entre os propósitos, elaborados com

maior ou menor grau de racionalidade, e seus resultados. Os homens da época já

tomavam consciência de que havia, para além de seus ideais, vontades e ações,

uma força maior – a “força das coisas” -, que se impunha com uma necessidade

rigorosa.

A própria palavra “revolução” encobre esse paradoxo entre liberdade e ne-

cessidade. “Revolução” é, no início, um termo astronômico: indica o movimento

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cíclico e necessário dos astros, que se completa quanto estes retornam a seu ponto

de origem. Na linguagem política, “revolução” significava o retorno a uma ori-

gem, a restauração de algo que se perdeu ou se corrompeu. Rousseau emprega a

palavra nesse sentido astronômico.

Com a Revolução Francesa, porém, a palavra passou a designar a inaugu-

ração, pela ação dos homens, de uma nova era, essencialmente distinta da anterior

– e não foi à toa que os revolucionários insistiram em estabelecer um novo calen-

dário, em que se contavam os anos a partir da data da proclamação da República.

Mas, ao mesmo tempo, a palavra conservou o significado de um movimento ne-

cessário, irresistível, que foge ao controle da vontade dos homens.

A Revolução Francesa torna-se desde então o modelo e o exemplo mais

dramático de uma nova concepção de história, que aparece como terreno da reali-

zação da liberdade humana, capaz de criar o novo. Mas essa liberdade é também

cega, e, no final das contas, o que prevalece é a força irresistível e necessária da

história.

Como compreender essa dimensão da realidade, tão humana e no entanto

tão sobre-humana, em que a necessidade aparece como a outra face da liberdade,

e na qual as teorias e os ideais experimentam a prova da prática? A história, a par-

tir de então, torna-se um dos temas de que se nutrirá o pensamento ocidental.

Marie Jean Antoine Nicolas Caritat

Marquês de Condorcet (1743-1794)

CONDORCET, O ÚLTIMO PHILOSOPHE

Livro: História da Filosofia. Os Pensadores

“Comparando a tendência dos espíritos (...) com o sistema político dos go-

vernos, podia-se facilmente prever que uma grande revolução não podia deixar de

acontecer; e não era difícil julgar que só pudesse ser conduzida de dois modos: ou

acontecia que o povo estabelecesse ele mesmo aqueles princípios da razão ou da

natureza (...); ou que os governos se apressassem em preveni-lo, e regulassem o

seu caminho sobre o da sua opinião. (...) A corrupção e a ignorância dos governos

tornaram preferível o primeiro meio; e o triunfo rápido da razão e da liberdade re-

dimiu o gênero humano.”

Em outras palavras, a Revolução Francesa, do modo como se realizou, era

inevitável, pois foi a manifestação do progresso do espírito humano. Esse balanço,

que também anuncia uma concepção de história, é de Condorcet, considerado o

último dos philosophes.

Marie Jean Antoine Nicolas Caritat, marquês de Condorcet, nasceu em Ri-

bemont, na Picardia, França, em 1743. Foi aluno dos jesuítas, ferrenhos adversá-

rios das Luzes, mas isso não o impediu de se aproximar dos círculos iluministas.

Tornou-se amigo de D’Alembert e participou da Enciclopédia. Protegido do mi-

nistro Turgot (1727-1781), também enciclopedista, foi nomeado diretor da Casa

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da Moeda, defendendo nessa condição a liberdade de comércio e o fim da escra-

vidão.

O ministério Turgot caiu em 1786, sem conseguir realizar a reforma tribu-

tária de que havia sido incumbido. Três anos depois, o rei convocaria os Estados

Gerais... e veio a Revolução.

Nessa situação, era praticamente impossível permanecer simplesmente i-

luminista. Condorcet participou ativamente da Revolução e, em 1791, foi eleito

deputado à Assembléia Legislativa. Ali, propôs, entre outras coisas, o voto femi-

nino, o direito dos ateus e a reforma do ensino, defendendo a escola pública, gra-

tuita e laica, isto é, totalmente desvinculada da religião - proposta que seria adota-

da quase um século depois.

Era a oportunidade de pôr em prática as Luzes: a instrução propiciaria a li-

berdade dos homens, retirando-os do domínio das autoridades (políticas e religio-

sas), o que também contribuiria para promover a igualdade. Além disso, a educa-

ção, que esclarece os homens, seria um antídoto contra a tirania.

“A perfectibilidade do homem é realmente infinita; os progressos dessa

perfectibilidade, agora independentes da vontade daqueles que desejariam detê-

los, não tem outros limites que os da duração do globo em que a natureza nos lan-

çou.” Essa marcha do progresso é a história, e seu curso é inevitável, irreversível.

“Sem dúvida, esses progressos poderão seguir um ritmo mais ou menos rápido,

mas serão contínuos, e jamais retrógrados (...).”

Condorcet não foi o primeiro a formular essa concepção de história, base-

ada na idéia de progresso. Outros iluministas – entre eles Turgot, autor de Quadro

Filosófico dos Progressos Sucessivos do Espírito Humano – já haviam concebido

a história como a História do progresso da razão (ou das Luzes). Mas foi ele o ú-

nico a testemunhar, no centro dos acontecimentos, o que supôs ser a prova da rea-

lização desse progresso – a Revolução. Para Condorcet, é a Revolução que, como

resultado da obra dos homens, tornou realidade a razão, a liberdade e a igualdade.

Quando foi eleito à Convenção Nacional, Condorcet votou pela condena-

ção do rei, mas não à guilhotina. Fazia parte dos girondinos, facção que os jacobi-

nos consideravam “inimiga do povo”. Acusado de traição, fugiu. Escreveu então

Esboço de um Quadro Histórico dos Progressos do Espírito Humano, publicado

postumamente, em que desenvolveu sua concepção de história. Preso em 1794,

acabou morrendo, não se sabe se por exaustão ou suicídio. Em todo caso, foi víti-

ma da História, em cujo progresso tanto havia apostado.

*

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137

A REVOLUÇÃO FRANCESA

FRANÇA NO SÉCULO XVIII

Livro: A Caminho da Luz (Espírito. Emmanuel)

A independência americana acendera o mais vivo entusiasmo no ânimo

dos franceses, humilhados pelas mais prementes dificuldades, depois do extrava-

gante reinado de Luís XV.

O luxo desenfreado e os abusos do clero e da nobreza, em proporções es-

pantosas, haviam ambientado todas as idéias livres e nobres dos enciclopedistas e

dos filósofos, no coração torturado do povo. A situação das classes proletárias e

dos lavradores caracterizava-se pela mais hedionda miséria. Os impostos aniqui-

lavam todos os centros de produção, salientando-se que os nobres e os padres es-

tavam isentos desses deveres. Desde 1614, não mais se haviam reunido os Esta-

dos-Gerais, fortalecendo-se, cada vez mais, o absolutismo monárquico.

De nada valera o esforço de Luís XVI convidando os espíritos mais práti-

cos e eminentes para colaborar na sua administração, como Turgot e Malesherbes.

O bondoso monarca, que tudo fazia para reerguer a realeza de sua queda lamentá-

vel, em virtude dos excessos do seu antecessor no trono, mal sabia, na sua pouca

experiência dos homens e da vida, que uma era nova começava para o mundo po-

lítico do Ocidente, com transformações dolorosas que lhe exigiriam a própria vi-

da.

Reunidos em maio de 1789 os Estados-Gerais, em Paris, explodiram os

maiores desentendimentos entre os seus membros, não obstante a boa-vontade e a

cooperação de Necker, em nome do Rei. Transformada a reunião em Assembléia

Constituinte, precedida de numerosos incidentes, inicia-se a revolução instigada

pela palavra de Mirabeau.

ÉPOCA DE SOMBRAS

Derrubada a Bastilha em 14 de julho de 1789 e após a célebre Declaração

dos Direitos do Homem e do Cidadão, uma série de reformas se verifica em todos

os departamentos da vida social e política da França.

Aquelas renovações, todavia, preludiavam os mais dolorosos acontecimen-

tos. Famílias numerosas aproveitavam a trégua, buscando o acolhimento de países

vizinhos, e o próprio Luís XVI tentou atravessar a fronteira, sendo preso em Va-

renas e reconduzido a Paris.

Um mundo de sombras invadia as consciências da França generosa, cha-

mada, naquela época, pelo plano espiritual, ao cumprimento de sagrada missão

junto à Humanidade sofredora. Cabia-lhe tão-somente aproveitar as conquistas in-

glesas, no sentido de quebrar o cetro da realeza absoluta, organizando um novo

processo administrativo na renovação dos organismos políticos do orbe, de acordo

com as sábias lições dos seus filósofos e pensadores.

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Todavia, se alguns Espíritos se encontravam preparados para a jornada he-

róica daquele fim de século, muitas outras personalidades, infelizmente, espreita-

vam na treva o momento psicológico para saciar a sede de sangue e de poder. Foi

assim que, depois de muitas figuras notáveis dos primórdios revolucionários, sur-

giram espíritos tenebrosos, como Robespierre e Marat. A volúpia da vitória gene-

ralizou uma forte embriaguez de morticínio no ânimo das massas, conduzindo-as

aos mais nefastos acontecimentos.

CONTRA OS EXCESSOS DA REVOLUÇÃO

A Revolução Francesa, desse modo, foi combatida imediatamente pelas

outras nacionalidades da Europa, que, sob a orientação de Pitt, Ministro da Ingla-

terra, sustentaram contra ela, e por largos anos, uma luta de morte.

A Convenção Nacional, apesar das garantias que a Constituição de 1791

oferecia à pessoa do Rei, decretou-lhe a morte na guilhotina, verificando-se a exe-

cução aos 21 de janeiro de 1793, no local da atual Praça da Concórdia. Em vão,

tenta Luís XVI justificar sua inocência ao povo de Paris, antes que o carrasco lhe

decepasse a cabeça. As palavras mais sinceras afluem-lhe aos lábios, suplicando a

atenção dos súditos, numa onda de lágrimas e de sentimentos que lhe burburinha-

vam no coração, não obstante a sua calma aparente. Renovam-se as ordens aos

guardas do cadafalso e rufam os tambores com estrépito, abafando as suas afirma-

tivas.

A França atraía para si as mais dolorosas provações coletivas nessa torren-

te de desatinos. Com a influência inglesa, organiza-se a primeira coligação euro-

péia contra o nobre país.

Mas, não somente nos gabinetes administrativos da Europa se processa-

vam providências reparadoras. Também no mundo espiritual reúnem-se os gênios

da latinidade, sob a bênção de Jesus, implorando a sua proteção e misericórdia pa-

ra a grande nação transviada. Aquela que fora a corajosa e singela filha de Do-

mrémy volta ao ambiente da antiga pátria, à frente de grandes exércitos de Espíri-

tos consoladores, confortando as almas aflitas e aclarando novos caminhos. Nu-

merosas caravanas de seres flagelados, fora do cárcere material, são por ela con-

duzidos às plagas da América, para as reencarnações regeneradoras, de paz e de

liberdade.

O PERÍODO DO TERROR

A lei das compensações é uma das maiores e mais vivas realidades do U-

niverso. Sob as suas disposições sábias e justas, a cidade de Paris teria de ser, ain-

da por muito tempo, o teatro de trágicos acontecimentos. Foi assim que se instalou

o hediondo tribunal revolucionário e a chamada junta de salvação pública, com os

mais sinistros espetáculos do patíbulo. A consciência da França viu-se envolvida

em trevas espessas. A tirania de Robespierre ordenou a matança de numerosos

companheiros e de muitos homens honestos e dignos. Erradamente, Carlota Cor-

day entregou-se ao crime na residência de Marat, com o propósito de restituir a li-

berdade ao povo de sua terra e expiando o seu ato extremo com a própria vida.

Ocasiões houve em que subiram ao cadafalso mais de vinte pessoas por dia, mas

Robespierre e seus sequazes não tardaram muito a subir igualmente os degraus do

patíbulo, em face da reação das massas anônimas e sofredoras.

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A CONSTITUIÇÃO

Depois de grandes lutas com o predomínio das sombras, conseguem os

gênios da França inspirar aos seus homens públicos a Constituição de 1795. Os

poderes legislativos ficavam entregues ao "Conselho dos quinhentos" e ao "Con-

selho dos anciães", ficando o poder executivo confiado a um Diretório composto

de cinco membros.

Estabelece-se dessa forma uma trégua de paz, aproveitada na reconstrução

de obras notáveis do pensamento. Os centros militares lutavam contra os propósi-

tos de invasão de outras potências européias, cujos tronos se sentiam ameaçados

na sua estabilidade, em face do advento das novas idéias do liberalismo, e os polí-

ticos se entregavam a uma vasta operosidade de edificação, vingando nesse esfor-

ço as mais nobres realizações.

Contudo, a França, depois dos seus desvarios de liberdade, estava ameaça-

da de invasão e desmembramento. Povos existem, porém, que se fazem credores

da assistência do Alto, no cumprimento de suas elevadas obrigações junto de ou-

tras coletividades do planeta. Assim, com atribuições de missionário, foi Napole-

ão Bonaparte, filho de obscura família corsa, chamado às culminâncias do poder.

NAPOLEÃO BONAPARTE

O humilde soldado corso, destinado a uma grande tarefa na organização

social do século XIX, não soube compreender as finalidades da sua grandiosa

missão. Bastaram as vitórias de Árcole e de Rívoli, com a paz de Campoformio,

em 1797, para que a vaidade e a ambição lhe ensombrassem o pensamento.

A expedição ao Egito, muito antes de Waterloo, assinalava para o mundo

espiritual a pouca eficácia do seu esforço, considerado o espírito de orgulho e de

imperialismo que predominou nas suas energias transformadoras. Assediado pelo

sonho de domínio absoluto, Napoleão foi uma espécie de Maomet transviado, da

França do liberalismo. Assim como o profeta do Islã pouco se aproximara do E-

vangelho, que a sua ação deveria validar, também as atividades de Napoleão pou-

co se aproximaram das idéias generosas que haviam conduzido o povo francês à

revolução. Sua história está igualmente cheia de traços brilhantes e escuros, de-

monstrando que a sua personalidade de general manteve-se oscilante entre as for-

ças do mal e do bem. Com as suas vitórias, garantia a integridade do solo francês,

mas espalhava a miséria e a ruína no seio de outros povos. No cumprimento da

sua tarefa, organizava-se o Código Civil, estabelecendo as mais belas fórmulas do

direito, mas difundiam-se a pilhagem e o insulto à sagrada emancipação de outros,

com o movimento dos seus exércitos na absorção e anexação de vários povos.

Sua fronte de soldado pode ficar laureada, para o mundo, de tradições glo-

riosas, e verdade é que ele foi um missionário do Alto, embora traído em suas

próprias forças; mas, no Além, seu coração sentiu melhor a amplitude das suas

obras, considerando providencial a pouca piedade da Inglaterra que o exilou em

Sta. Helena após o seu pedido de amparo e proteção. Santa Helena representou

para o seu espírito o prólogo das mais dolorosas e mais tristes meditações, na vida

do Infinito.

ALLAN KARDEC

A ação de Bonaparte, invadindo as searas alheias com o seu movimento de

transformação e conquistas, fugindo à finalidade de missionário da reorganização

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do povo francês, compeliu o mundo espiritual a tomar enérgicas providências con-

tra o seu despotismo e vaidade orgulhosa. Aproximavam-se os tempos em que Je-

sus deveria enviar ao mundo o Consolador, de acordo com as suas auspiciosas

promessas.

Apelos ardentes são dirigidos ao Divino Mestre, pelos gênios tutelares dos

povos terrestres. Assembléias numerosas se reúnem e confraternizam nos espaços,

nas esferas mais próximas da Terra. Um dos mais lúcidos discípulos do Cristo

baixa ao planeta, compenetrado de sua missão consoladora, e, dois meses antes de

Napoleão Bonaparte sagrar-se imperador, obrigando o papa Pio VII a coroá-lo na

igreja de Notre Dame, em Paris, nascia Allan Kardec, aos 3 de outubro de 1804,

com a sagrada missão de abrir caminho ao Espiritismo, a grande voz do Consola-

dor prometido ao mundo pela misericórdia de Jesus-Cristo.

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O SÉCULO XIX

DEPOIS DA REVOLUÇÃO

Livro: A Caminho da Luz (Emmanuel, Espírito)

Afastado Napoleão dos movimentos políticos da Europa, adotam-se no

Congresso de Viena, em 1815, as mais vastas providências para o ressurgimento

dos povos europeus.

A diplomacia realiza memoráveis feitos, aproveitando as dolorosas experi-

ências daqueles anos de extermínio e de revolução. Luís XVIII, conde de Proven-

ça, irmão de Luís XVI, é reposto no trono francês, restabelecendo-se naquela

mesma época antigas dinastias. Também a Igreja é contemplada no grande inven-

tário, restituindo-se-lhe os Estados onde fundara o seu reino perecível.

Um sopro de paz reanima aquelas coletividades esgotadas na luta fratrici-

da, ensejando a intervenção indireta das forças invisíveis na reconstrução patri-

monial dos grandes povos.

Muitas reformas, porém, se haviam verificado após os movimentos san-

guinolentos iniciados em 89. Mormente na França, semelhantes renovações foram

mais vastas e numerosas. Além de se beneficiar o governo de Luís XVIII com as

imitações do sistema inglês, vários princípios liberais da Revolução foram adota-

dos, tais como a igualdade dos cidadãos perante a lei, a liberdade de cultos, esta-

belecendo-se, a par de todas as conquistas políticas e sociais, um regime de res-

ponsabilidade individual no mecanismo de todos os departamentos do Estado. A

própria Igreja, habituada a todas as arbitrariedades na sua feição dogmática, reco-

nheceu a limitação dos seus poderes junto das massas, resignando-se com a nova

situação.

INDEPENDÊNCIA POLÍTICA DA AMÉRICA

A maioria dos povos do planeta, acompanhando o curso dos acontecimen-

tos, procurou eliminar os últimos resquícios do absolutismo dos tronos, aproxi-

mando-se dos ideais republicanos ou instituindo o regime constitucional, com a

restrição de poderes dos soberanos.

A América, destinada a receber as sagradas experiências da Europa, para a

civilização do futuro, busca aplicar os grandes princípios dos filósofos franceses à

sua vida política, caminhando para a mais perfeita emancipação. Seguindo o e-

xemplo das colônias inglesas, os quatro vice-reinados da Espanha procuraram lu-

tar pela sua independência. No México os patriotas não toleraram outra soberania

além da própria e, no Sul, com a ação de Bolívar e com as deliberações do Con-

gresso de Tucumã, em 1816, proclamava-se a liberdade política das províncias da

América Meridional. O Brasil, em 1822, erguia igualmente o seu brado de eman-

cipação com Pedro I, sendo digno de notar-se o esforço do plano invisível na ma-

nutenção da sua integridade territorial, quando toda a zona sul do continente se

fracionava em pequenas repúblicas, atento à missão do povo brasileiro na civiliza-

ção do porvir.

ALLAN KARDEC E OS SEUS COLABORADORES

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O século XIX desenrolava uma torrente de claridades na face do mundo,

encaminhando todos os países para as reformas úteis e preciosas.

As lições sagradas do Espiritismo iam ser ouvidas pela Humanidade sofre-

dora. Jesus, na sua magnanimidade, repartiria o pão sagrado da esperança e da

crença com todos os corações.

Allan Kardec, todavia, na sua missão de esclarecimento e consolação, fa-

zia-se acompanhar de uma plêiade de companheiros e colaboradores, cuja ação

regeneradora não se manifestaria tão-somente nos problemas de ordem doutriná-

ria, mas em todos os departamentos da atividade intelectual do século XIX. A Ci-

ência, nessa época, desfere os vôos soberanos que a conduziriam às culminâncias

do século XX. O progresso da arte tipográfica consegue interessar todos os nú-

cleos de trabalho humano, fundando-se bibliotecas circulantes, revistas e jornais

numerosos. A facilidade de comunicações, com o telégrafo e as vias férreas, esta-

belece o intercâmbio direto dos povos. A literatura enche-se de expressões notá-

veis e imorredouras. O laboratório afasta-se definitivamente da sacristia, intensifi-

cando as comodidades da civilização. Constrói-se a pilha de coluna, descobre-se a

indução magnética, surgem o telefone e o fonógrafo. Aparecem os primeiros sul-

cos no campo da radiotelegrafia, encontra-se a análise espectral e a unidade das

energias físicas da Natureza. Estuda-se a teoria atômica e a fisiologia assenta ba-

ses definitivas com a anatomia comparada. As artes atestam uma vida nova. A

pintura e a música denunciam elevado sabor de espiritualidade avançada.

A dádiva celestial do intercâmbio entre o mundo visível e o invisível che-

gou ao planeta nessa onda de claridades inexprimíveis. Consolador da Humanida-

de, segundo as promessas do Cristo, o Espiritismo vinha esclarecer os homens,

preparando-lhes o coração para o perfeito aproveitamento de tantas riquezas do

Céu.

AS CIÊNCIAS SOCIAIS

O campo da Filosofia não escapou a essa torrente renovadora. Aliando-se

às ciências físicas, não toleraram as ciências da alma o ascendente dos dogmas ab-

surdos da Igreja. As confissões cristãs, atormentadas e divididas, viviam nos seus

templos um combate de morte. Longe de exemplificarem aquela fraternidade do

Divino Mestre, entregavam-se a todos os excessos do espírito de seita. A Filosofia

recolheu-se, então, no seu negativismo transcendente, aplicando às suas manifes-

tações os mesmos princípios da ciência racional e materialista. Schopenhauer é

uma demonstração eloqüente do seu pessimismo e as teorias de Spencer e de

Comte esclarecem as nossas assertivas, não obstante a sinceridade com que foram

lançadas no vasto campo das idéias.

A Igreja Romana era culpada de semelhantes desvios. Dominando a ferro e

fogo, conchegada aos príncipes do mundo, não tratara de fundar o império espiri-

tual dos corações à sua sombra acolhedora. Longe da exemplificação do Nazare-

no, amontoara todos os tesouros inúteis, intensificando as necessidades das mas-

sas sofredoras. Extorquia, antes de dar, conservando a ignorância em vez de espa-

lhar a luz do conhecimento.

A TAREFA DO MISSIONÁRIO

A tarefa de Allan Kardec era difícil e complexa. Competia-lhe reorganizar

o edifício desmoronado da crença, reconduzindo a civilização às suas profundas

bases religiosas.

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Atento à missão de concórdia e fraternidade da América, o plano invisível

localizou aí as primeiras manifestações tangíveis do mundo espiritual, no famoso

lugarejo de Hydesville, provocando os mais largos movimentos de opinião. A fa-

gulha partira das plagas americanas, como partira igualmente delas a consolidação

das conquistas democráticas.

A Europa busca ambientar as idéias novas e generosas, que encontram o

discípulo no seu posto de oração e vigilância, pronto a atender aos chamamentos

do Senhor. Numerosos cooperadores diretos da sua tarefa auxiliam-lhe o esforço

sagrado, desdobrando-lhe as sínteses em gloriosos complementos. O orbe, com as

suas instituições sociais e políticas, havia atingido um período de grandiosas

transformações, que requeriam mais de um século de lutas dolorosas e remissoras,

e o Espiritismo seria a essência dessas conquistas novas, reconduzindo os cora-

ções ao Evangelho suave do Cristianismo.

PROVAÇÕES COLETIVAS NA FRANÇA

Cumpre-nos assinalar as dolorosas provas da França, depois dos seus ex-

cessos na Revolução e nas campanhas napoleônicas. Depois das revoluções de

1830 e 1848, mediante as quais se efetuam penosos resgates por parte dos indiví-

duos e das coletividades, surge a guerra franco-prussiana de 1870. A grande nação

latina, por causas somente conhecidas no plano espiritual, é esmagada e vencida

pela orgulhosa Alemanha de Bismarck, que, por sua vez, embriagada e cega no

triunfo, ia fazer jus às dores amargas de 1914 -1918.

Paris, que assistira com certa indiferença às dores dos condenados do Ter-

ror, comparecendo aos espetáculos tenebrosos do cadafalso e aplaudindo os o-

pressores, sofre miséria e fome em 1870, antes de cair em poder dos impiedosos

inimigos, em 28 de janeiro de 1871. As imposições políticas do imperador Gui-

lherme, em Versalhes, e as amarguras coletivas do povo francês nos dias da derro-

ta, significam o resgate dos desvios da grande nação latina.

PROVAÇÕES DA IGREJA

Aproximando-se o ano de 1870, que assinalaria a falência da Igreja com a

declaração da infalibilidade papal, o Catolicismo experimenta provações amargas

e dolorosas.

Exaustos de suas imposições, todos os povos cultos da Europa não enxer-

garam nas suas instituições senão escolas religiosas, limitando-se-lhes as finalida-

des educativas e controlando-se-lhes o mecanismo de atividades.

Compreendendo que o Cristo não tratara de açambarcar nenhum território

do Globo, os italianos, naturalmente, reclamaram os seus direitos no capítulo das

reivindicações, procurando organizar a unidade da Itália sem a tutela do Vaticano.

Desde 1859, estabelecera-se a luta, que foi por muito tempo prolongada em vista

da decisão da França, que manteve todo um exército em Roma para garantia do

pontífice da Igreja. Mas a situação de 1870 obrigara o povo francês a reclamar a

presença dos guardas do Vaticano, triunfando as idéias de Cavour e privando-se o

papa de todos os poderes temporais, restringindo-se a sua posse material.

Começa, com Pio IX, a grande lição da Igreja. O período das grandes

transformações estava iniciado, e ela, que sempre ditara ordens aos príncipes do

mundo, na sua sede de domínio, iria tornar-se instrumento de opressão nas mãos

dos poderosos.

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Observava-se um fenômeno interessante. A Igreja, que nunca se lembrara

de dar um título real à figura do Cristo, assim que viu desmoronarem-se os tronos

do absolutismo com as vitórias da República e do Direito, construiu a imagem do

Cristo-Rei para o cume dos seus altares.

*

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3 - A ALEMANHA SOB AS LUZES

A AUFKLÄRUNG

Livro: História da Filosofia. Os Pensadores

Ao contrário do que aconteceu com a França, a Alemanha não viveu uma

revolução. Para Hegel, filósofo da primeira metade do século XIX, isso se deveu

ao fato de que os alemães “estavam reconciliados com a realidade”. Ali, inexistia

a inadequação entre os princípios universais da razão e a realidade política – ina-

dequação que exigiria, como na França, uma solução violenta. Na Alemanha, se-

gundo Hegel, o protestantismo já havia conciliado a liberdade interior com o

mundo exterior, e o Estado expressava a universalidade da razão por intermédio

de um rei, Frederico II.

O que Hegel faz é justificar à sua maneira o “despotismo esclarecido” des-

se rei, que teria propiciado a irradiação das Luzes na Alemanha. De fato, Frederi-

co II (1712-1786) faz de seu reino um grande centro cultural e político da Europa.

Cerca-se de iluministas franceses, entre eles Voltaire, protege artistas, patrocina as

ciências e promove uma série de medidas para o desenvolvimento econômico.

Mas a Alemanha, propriamente, não existe ainda. É um aglomerado de Es-

tados. Mesmo a Prússia de Frederico II, embora tenha se tornado uma das princi-

pais potências, não passa de um entre esses Estados. Nessa condição, a “universa-

lidade do pensamento”, apontada por Hegel, longe de estar conciliada com a rea-

lidade alemã, é uma universalidade abstrata, que só existe no pensamento, como a

própria Alemanha – que é, antes, uma realidade cultural.

Trata-se, no entanto, de uma cultura que ainda espera realização. Até

mesmo a língua alemã é desprezada nos meios cultos, que preferem o latim ou o

francês. É preciso, então, formar e emancipar a cultura alemã, a começar pela

promoção da língua. A reivindicação iluminista da liberdade de pensamento pas-

sa, na Alemanha, pela liberdade de pensar e de se expressar em alemão. Nesse i-

dioma, Iluminismo se diz Aufklärung, isto é, esclarecimento, elucidação – e como

esclarecer e elucidar os homens a não ser na língua da grande maioria?

*

Chistian Wolff (1679-1754)

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O racionalismo de Wolff

Pioneiro nesse sentido, Christian Thomasius (1655-1728) escreve em ale-

mão um programa de curso para a Universidade de Leipzig. As universidades, por

sinal, tornam-se o principal centro do Aufklärung. Para isso, contribui a ação pe-

dagógica de Christian Wolff (1679-1754), professor de Halle e autor de obras em

alemão, que seriam adotadas no ensino da filosofia. Ele também fixa a linguagem

filosófica em alemão e propõe uma classificação dos diversos ramos que com-

põem a filosofia.

Wolff define a filosofia como “ciência de todas as coisas possíveis”, isto é,

de tudo o que não for contraditório. Por isso, ela é em primeiro lugar ontologia, o

estudo do ser e das proposições que se possam formular a seu respeito, obedecen-

do ao princípio lógico de não-contradição. Segue-se a cosmologia, o estudo do

mundo, que seria, na opinião de Wolff, formado de substâncias simples, dotadas

intrinsecamente de forças dinâmicas.

Essas idéias, que retomam o pensamento de Leibniz, são formuladas por

uma cadeia de demonstrações. Nesse sentido, Wolff e a Aufklärung que o seguiu

aproximam-se mais do racionalismo do século XVII do que do empirismo que a-

nimou as Luzes da França. De fato, para Wolff, o conhecimento empírico, apesar

de indispensável, ocupa um lugar inferior ao conhecimento teórico puro, uma vez

que a verdade dos dados empíricos é apenas provável.

O surgimento da estética

Examinar essa dimensão empírica das sensações, tão desprezada pelo ra-

cionalismo, é o que propõe Baumgarten, criador da palavra estética, que se define

como “ciência do conhecimento sensível” e investiga, nesse plano do conheci-

mento, o que há de mais análogo à razão: a beleza. A obra de arte – esse objeto

singular em que se manifesta a beleza – torna-se desde então um tema específico

de reflexão filosófica. É o que desenvolve Winckelmann, que elabora uma con-

cepção de história da arte, entendida como modos sucessivos de manifestação da

beleza, cujo modelo mais perfeito são as obras da Antigüidade clássica.

Na verdade, há muito a filosofia se preocupa com a arte. Sócrates já inco-

modava os atenienses com a embaraçosa pergunta “o que é o belo?”, e Platão, ao

fazer do mundo (sensível) uma cópia das Idéias, propunha uma reflexão sobre a

arte como imitação. Aristóteles é o autor de Poética, em que discute a natureza da

criação artística, em particular da tragédia. No Renascimento, arte e filosofia pra-

ticamente coincidem. No Século das Luzes, na França, a discussão sobre arte não

é um assunto secundário: Voltaire escreve sobre o “gosto”, tema também aborda-

do por Montesquieu em seu único verbete escrito para a Enciclopédia, e Diderot

dedica algumas obras à análise da pintura e do teatro.

Mas é na Alemanha que surge a estética, a começar pelo nome: Aesthetica

(do grego aistesis, isto é, sensação), termo criado por Alexander Gottlieb Baum-

garten. Nascido em Berlim, capital da Prússia, em 1714, ele estudou na Universi-

dade de Halle e ali passou a lecionar a partir de 1738. Dois anos depois, foi desig-

nado professor em Frankfurt an der Oder, onde morreria em 1762. Deixou obras

como Metafisica e Ética Filosófica, muitas delas adotadas como manuais no ensi-

no de filosofia, e, principalmente, Estética, em dois volumes, publicados em 1750

e 1758.

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Baumgarten concorda com Wolff, seu professor em Halle, a respeito da

natureza inferior do conhecimento sensível. Neste, ao contrário do que ocorre no

conhecimento lógico, não há certezas inquestionáveis e necessárias. Mas nem por

isso Baumgarten descuida dessa forma de conhecimento lógico, não há certezas

inquestionáveis e necessárias. Mas nem por isso Baumgarten descuida dessa for-

ma de conhecimento, que, para ele, apresenta à sua maneira um grau de perfeição,

embora não seja idêntica à de uma demonstração lógica. Nesse sentido, é análoga

à razão, e, como esta, deve ter suas regras próprias.

O conhecimento sensível é, então, uma das vias de acesso à verdade. Não a

verdade universal que a razão desvenda por demonstrações, mas aquela que os

procedimentos racionais não conseguem alcançar: a verdade das coisas particula-

res. A arte capta a unidade perfeita – a beleza – de um objeto; é, por isso, o co-

nhecimento vivo dessas coisas singulares e únicas, que constituem o mundo vivo

que se dá aos sentidos.

O belo como reflexão filosófica

Baumgarten, no entanto, aborda a arte apenas no que se refere às formas

de conhecimento. O desenvolvimento da estética como reflexão sobre a arte pro-

priamente dita cabe a Johann Joachim Winckelmann, que nasceu em Stendal, na

Prússia, em 1717. Estudou em Halle, onde Baumgarten ministrava aulas sobre es-

tética, e, depois, na Universidade de Iena. Em 1748, tornou-se bibliotecário do

conde de Büneau, e, nessa condição, estudou a cultura da Antigüidade clássica, ao

mesmo tempo que passava a participar do círculo dos artistas da corte. Em 1755,

publicou Reflexões sobre a Imitação das Obras Gregas na Pintura e na Escultu-

ra, e, no mesmo ano, transferiu-se para Roma, a capital da arte clássica.

Ali, sob a proteção de membros da alta hierarquia da Igreja, realizou um

vasto levantamento de obras da Antigüidade, viajando por várias regiões da Itália.

Em 1768, chegou a Trieste com a intenção de embarcar para a Grécia. Mas foi as-

sassinado por um certo Francesco Archangeli, que pretendia roubar-lhe as posses.

Por que o fascínio pela arte da Antigüidade clássica, em particular da Gré-

cia? Que as obras dessa época são belas não há dúvida: ao contemplá-las, todos

experimentam o sentimento de beleza. Tal sentimento, porém, não pode ser de-

monstrado, pois é dado pela intuição sensível, e, nesse sentido, a beleza é indefi-

nível. Mas isso não significa que ela não possa ser explicada.

“A imitação do belo na natureza”, escreve Winckelman, “refere-se ou a

um objeto único, ou reúne traços sugeridos por diversos objetos particulares e de-

les faz um todo único. O primeiro procedimento se limita a fazer uma cópia seme-

lhante, um retrato (...). O segundo é o caminho que leva ao belo universal e a ima-

gens ideais deste belo: é este que seguiram os gregos.” A superioridade da arte

clássica encontra-se nessa distinção entre a imitação artística como mera cópia e

como imagem do ideal do belo. Cada obra de arte, apesar de ser um objeto singu-

lar e único, apresenta-se como realização do universal.

Mas por que os gregos? Para Winckelmann, que se interessa por aquilo

que a arte contém de universal, não importam as “maneiras” particulares de cada

artista individual, mas o estilo de uma época e de uma civilização, que se manifes-

ta em um conjunto de obras. O estilo é um fato artístico, mas o é na medida em

que se refere à totalidade da vida de um povo em seus múltiplos aspectos (geográ-

ficos, sociais, políticos, morais).

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Por isso, os gregos. Na Grécia, segundo Winckelmann, o clima era propí-

cio para exercícios físicos de jovens desnudos, pois lhes embelezavam o corpo.

Tal prática era incentivada pelos costumes que, num clima de liberdade e de i-

gualdade políticas, valorizavam a virtude. Os sentimentos eram serenos, sem ar-

roubos, mas também vigorosos e elevados – “nobre simplicidade e calma grande-

za”, segundo a célebre fórmula de Winckelmann -, o que se expressava na arte

clássica. O que poderia haver de mais belo?

A arte, então, relaciona-se com a história de um povo, de uma civilização,

de uma época. Por isso, ela também tem sua história, que partilha com a do povo

de que é expressão. Para Winckelmann, ao contrário de vários iluministas que

conceberam a história sempre progressiva da razão, tal história apresenta começo,

desenvolvimento, apogeu, decadência e fim, como aconteceu com a civilização

grega da Antigüidade e com seus sucessivos estilos artísticos. O belo artístico,

nessa medida, só pode surgir quando a civilização a que corresponde está no apo-

geu.

Na decadência – e o exemplo, sempre grego, corresponde ao período hele-

nístico -, os valores se corrompem. A virtude da pólis e a cidadania se perderam, e

os homens se recolhem na sua individualidade e em assuntos privados. Os ricos

ostentam luxo e riqueza. Na arte, o estilo torna-se artificialmente rebuscado e exa-

gerado.

É o que acontece, segundo Winckelmann, na sua época. Nela, predominam

o academicismo, com suas regras sufocantes, e o rococó, com o excesso de orna-

mentos requintados e figuras humanas exageradamente contorcidas para expressar

algum sentimento. Também há o que seria chamado “maneirismo”, em que os ar-

tistas procuram marcar sua individualidade com um “estilo próprio”, sua “manei-

ra”. Tudo isso pode ser “bonito”, mas não é jamais belo: não há mais o belo uni-

versal.

Mas exatamente a decadência e o fim anunciam um novo começo, pois a

arte pode se revigorar. Isso, porém, só será possível quando os homens recupera-

rem o que os gregos tiveram, na interpretação de Winckelmann, como ideal: uma

vida social, política e moral baseada na virtude, na “nobre simplicidade e calma

grandeza”. O lema de Winckelmann, “imitar os gregos clássicos”, não é apenas

um programa para a arte. É um projeto de construção de uma vida livre e bela.

*

Gotthold Ephraim Lessing (1729-1781)

Lessing: arte e religião

Livro: História da Filosofia. Os Pensadores

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Também Lessing, dramaturgo e um dos principais pensadores da

Aufklärung, faz da estética um de seus temas centrais. Ele se insurge contra a tra-

dição, estabelecida pelo poeta latino Horácio, de ut pictura poesis (a poesia, como

a pintura), segundo a qual a pintura – a “poesia muda” – teria a mesma natureza

que a da arte poética. Para Lessing, isso é inaceitável: a poesia, formada de sons e

palavras sucessivas, descreve, por isso, movimentos no tempo, isto é, as ações,

enquanto a pintura (e a escultura), feita de formas e cores, só pode representar ob-

jetos dados simultaneamente, os corpos. Por isso, a pintura não deve pretender

expressar movimentos bruscos e emoções violentas, do mesmo modo como a poe-

sia deve renunciar à descrição de cenas e paisagens.

Gotthold Ephraim Lessing nasceu em 1729, em Kamenz, pequena locali-

dade da Saxônia. Filho de um pastor protestante, ingressa na Universidade de

Leipzig em 1746 para estudar filosofia e teologia. Dois anos depois, deixa a uni-

versidade para radicar-se em Berlim, onde, com o reinado de Frederico II e a pre-

sença de Voltaire, imperava uma atmosfera iluminista. Começa a estudar Leibniz

e Espinosa, e produz seus primeiros trabalhos de caráter teológico, como Pensa-

mentos sobre os de Herrnhuttrer, O Cristianismo Racional e Sobre a Origem da

Religião Revelada, além de sua primeira obra teatral importante (Miss Sara Samp-

son) e suas Cartas sobre a Literatura Contemporânea, nas quais censura a sub-

missão à literatura francesa e aponta os autores ingleses, especialmente Shakespe-

are, como mais próximos do “gênio” alemão.

Entre 1760 e 1765, trabalha em Breslau como secretário de um general

prussiano. Dedica-se, então, ao estudo da literatura cristã dos primeiros séculos, e

escreve Laocoonte, no qual delineia os “limites entre a pintura e a poesia”, mos-

trando que uma e outra possuem modos de expressão próprios e distintos entre si.

Depois de uma rápida passagem por Berlim (1765-67), quando escreve

Minna von Barnhelm, transfere-se para Hamburgo. Seu objetivo é criar um teatro

nacional alemão; trabalha como crítico e orientador de teatro. Fruto dessa ativida-

de é sua Dramaturgia de Hamburgo e Como Representavam a Morte os Antigos.

A partir de 1774, começa a publicação de Fragmentos de um Anônimo (o-

bra inédita de Reimarus, na qual este autor defendia a religião natural dos ataques

de materialistas e cristãos). Por causa dessa publicação, Lessing envolveu-se nu-

ma acirrada polêmica com o pastor luterano Goeze.

No fim da vida, apresenta duas de suas mais importantes obras, o drama

Nathan, o Sábio (1779) e A Educação do Gênero Humano (1780). Morre em

1781, quando se encontrava no centro do “debate sobre o panteísmo”, provocado

pela divulgação de suas idéias sobre Espinosa.

Na Alemanha, marcada pelo protestantismo, as Luzes não se voltam contra

a igreja, mas procuram verificar se a razão e a revelação são incompatíveis, como

afirmava Lutero. Para Lessing, não há incompatibilidade entre a razão e a revela-

ção, mas elas devem ser tomadas como manifestações da verdade em momentos

distintos da humanidade. A razão corresponde à fase atual, em que o homem, de

modo autônomo, procura a verdade. Não importa que tal busca nunca se realize

plenamente. Vale mais esse esforço em pensar livremente e tornar públicas as i-

déias, sem recorrer às autoridades. Essa é a atitude do autêntico Aufklärung, o

homem esclarecido. “Talvez minhas idéias sejam sempre um tanto díspares, ou

que até pareçam se contradizer entre si”, escreve por isso Lessing, “basta que se-

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jam idéias em que os leitores encontrem material que os incite a pensar por eles

mesmos.”

*

IMMANUEL KANT (1724-1804)

KANT E O JULGAMENTO DA RAZÃO

Livro: História da Filosofia. Os Pensadores

Numa época de revisão geral, em que valores são contestados, reavaliados,

substituídos e muitas vezes recriados, a crítica tem papel preponderante. Essa, de

fato, é uma das principais características das Luzes, que, recusando as verdades

ditadas por autoridades, submetem tudo ao crivo da crítica. Entretanto, ninguém

foi tão longe, nesse aspecto, quanto Kant, que colocou a própria razão sob julga-

mento. Mais do que isso, com ele a crítica assume um sentido preciso e se torna

uma atitude sistemática.

Radical, Kant não poupa a metafísica, que pretendeu construir uma con-

cepção completa sobre Deus, a alma e o mundo. Nesta, a situação é de impasse.

Proliferam doutrinas, cada uma sustentando a sua “verdade”, mas que se perdem

no dogmatismo, isto é, em raciocínios sobre idéias produzidas apenas pela razão,

sem indagar se a própria razão tem capacidade para isso. Por isso, Kant recomen-

da aos pretendentes a metafísicos: “É incontornavelmente necessário pôr de lado

provisoriamente seu trabalho, considerar tudo o que aconteceu até agora como não

acontecido e antes de todas as coisas formular primeiramente a pergunta: se algo

como a metafísica é simplesmente possível”.

Suspender a investigação até que se decidam questões preliminares – é o

que a crítica exige. Pois criticar é pôr em crise: em grego, krisis significa ato de

distinguir, separar e decidir. Por isso, Kant propõe que a razão “estabeleça um tri-

bunal que, ao mesmo tempo que assegure suas legítimas aspirações, rechace todas

as que sejam infundadas, e não o fazendo mediante arbitrariedades, mas segundo

suas leis imutáveis”. Nesse tribunal, a própria razão encontra-se no banco dos

réus. Mas é a razão, também, o juiz, pois só ela tem competência para o autojul-

gamento.

Os empiristas já haviam criticado a pretensão da metafísica, mas o resulta-

do, como em Hume, foi o ceticismo. Além disso, o dogmatismo e o ceticismo co-

incidem ao menos em um aspecto fundamental: ambos falam de coisas. Mas, en-

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quanto o dogmatismo tem a certeza sobre as coisas, o ceticismo faz delas o resul-

tado da crença baseada no hábito.

Kant supera essas duas alternativas, que no fundo se reduzem a uma só,

com sua famosa “revolução copernicana”. Assim como Copérnico, que para supe-

rar os impasses – a crise – da astronomia concebeu o modelo heliocêntrico, inver-

tendo o geocentrismo, Kant inverte a questão tradicional da metafísica: em vez de

procurar conhecer as coisas, é preciso examinar antes o próprio conhecimento e

suas possibilidades.

Com essa inversão, ele propõe um campo de investigação, que denomina

transcendental. Por esse termo, o pensamento escolástico designava tudo o que

pudesse ser dito a respeito de um sujeito, mas sem que nada fosse acrescentado a

esse mesmo sujeito. Por isso, para Kant, “transcendental” refere-se ao que já está,

desde sempre, contido no sujeito – no caso, o sujeito do conhecimento.

Trata-se então de analisar esse sujeito na sua pureza, isto é, sem acrésci-

mos que, como tais, são-lhe necessariamente posteriores. O que é posterior (a pos-

teriori) ao sujeito é experiência sensível (ou empírica), e, por isso, a investigação

transcendental deve examinar o sujeito puro, a priori, isto é, anterior a toda e

qualquer experiência. Tal exame é indispensável para verificar se o sujeito puro,

por si só, é capaz do conhecimento a priori, independentemente da experiência,

pois é exatamente isso que a metafísica pretende realizar. “Denomino transcen-

dental”, define Kant, “todo conhecimento que em geral se ocupa não tanto com

objetos, mas com nosso modo de conhecimento de objetos, na medida em que este

deve ser possível a priori.”

O conhecimento formula-se por proposições ou juízos. Uma proposição do

tipo “A é A” ou “A não é não-A”, que obedece tão-somente ao princípio lógico de

não-contradição, é um juízo a priori, pois não depende de nenhuma experiência.

Mas esses juízos – que Kant chama de juízos analíticos – apenas analisam o que já

estava dito. Nada acrescentam ao conhecimento.

Os juízos sintéticos, ao contrário, ampliam o conhecimento, pois realizam

sínteses, isto é, a composição ou unificação de vários elementos. Assim é o juízo

do tipo “esta flor é vermelha”, em que se acrescenta ao sujeito (“esta flor”) um

predicado (“vermelha”) que ele não continha. Nesse exemplo, o juízo sintético

depende da experiência sensível e é, portanto, a posteriori. Mas esse conhecimen-

to ampliado refere-se apenas a um sujeito singular (“esta flor”); não apresenta ca-

ráter universal nem necessário.

Haveria juízos universais e necessários, como os analíticos, e que também

ampliassem o conhecimento, como os sintéticos? Tais juízos seriam sintéticos a

priori, formulados independentemente da experiência empírica. São, no entanto,

possíveis?

A matemática, por exemplo. Acreditou-se que sua universalidade e sua ne-

cessidade se devessem ao fato de seus juízos serem todos analíticos. Mas, se as-

sim fosse, não haveria nenhum acréscimo de conhecimento, o que é refutado pelo

evidente progresso da matemática.

Uma proposição como “7 + 5 = 12”, é, sem dúvida, universal e necessária.

Mas seria analítica? Ou seja, “12” já estaria contido na expressão “7 + 5”? Essa

expressão designa a união de “7” e “5”, mas, por mais que seja decomposta anali-

ticamente, o resultado é sempre “união de 7 e 5”, jamais “12”. Em outras palavras,

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“12” é um acréscimo e independe de qualquer experiência sensível; a proposição

“7 + 5 = 12” só pode ser um juízo sintético a priori.

Kant fornece outro exemplo: “A linha reta é a (distância) mais curta entre

dois pontos”. “Linha reta” refere-se a uma qualidade e nada diz sobre a grandeza

(quantidade). Há, portanto, um acréscimo (“mais curta”) à expressão “linha reta”,

e isso é obtido de modo universal e necessário, sem que seja preciso medir empi-

ricamente as distâncias de retas compreendidas entre infinitos grupos de dois pon-

tos. Os juízos sintéticos a priori são, então, possíveis.

Para Kant, o conhecimento começa com a experiência, mas nem por isso

origina-se nela. Isso porque a experiência pressupõe o sujeito como condição de

sua possibilidade, sem o que a palavra “experiência” nem teria sentido. O sujeito,

então, deve apresentar capacidades ou faculdades que possibilitem a experiência e

o próprio conhecimento.

A primeira dessas faculdades é a sensibilidade, definida como “a capaci-

dade (receptividade) de obter representações mediante o modo como somos afeta-

dos por objetos (...)”. Na sensibilidade, essas representações se dão de modo ime-

diato pela intuição. Esta é empírica quando se referir às sensações, isto é, aos efei-

tos causados na sensibilidade ao ser afetada pelos objetos. Mas e antes disso?

“Mediante o sentido externo (uma propriedade da mente)”, diz Kant, “re-

presentamo-nos objetos fora de nós e todos juntos no espaço (...)” Por isso, não é

possível intuir um objeto a não ser representando-o no espaço, exterior ao sujeito

(“fora de nós”). Mas o espaço não é fruto da abstração de dados empíricos, como

propunha o empirismo. Para este, há, por exemplo, “esta casa”; imaginando, por

abstração, que ela não exista, resta o lugar – o “espaço” – que ocupava. Mas, para

Kant, mesmo esse lugar pressupõe o espaço “fora de nós”. Sem isso, como repre-

sentar os próprios lugares em que se situam os objetos da intuição empírica? O

espaço, portanto, é a condição a priori de possibilidade da intuição empírica.

Raciocínio semelhante pode ser feito a respeito do tempo. “A simultanei-

dade ou a sucessão nem sequer se apresentariam à percepção se a representação

do tempo não estivesse subjacente a priori. Somente a pressupondo pode-se re-

presentar que algo seja num e mesmo tempo (simultâneo) ou em tempos diferen-

tes (sucessivo)”. O tempo é, então, uma representação imediata que, como o espa-

ço, torna possíveis as intuições empíricas; como tal, só pode ser uma intuição pu-

ra.

Da intuição ao conceito

Kant desenvolve essas questões em Crítica da Razão Pura, sua obra mais

célebre – escrita, como as demais, na cidade prussiana de Königsberg, onde ele

nasceu, em 1724, e onde veio a falecer, em 1804. Nesses oitenta anos, Kant ja-

mais saiu da terra natal. Estudou na universidade local e ali lecionou, chegando a

assumir o cargo de reitor. Conta-se que foi excelente professor.

A evolução do pensamento kantiano até sua forma acabada foi lenta. A

Crítica da Razão Pura, escrita após vários textos considerados “pré-críticos”, só

apareceu em 1781, e sua versão definitiva em 1787. Nesta obra decisiva, Kant já

anuncia que seu propósito é “não a ampliação dos próprios conhecimentos, mas

apenas sua retificação (...)”. Esse objetivo também aparece em Prolegômenos a

Qualquer Metafísica Futura que Possa Vir a Ser Considerada como Ciência, em

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1783, em que ele retoma os principais aspectos da obra anterior, mas dando-lhes

uma nova forma de exposição.

Segue-se a Fundamentação da Metafísica dos Costumes, de 1785, em que

Kant não aborda de imediato a filosofia moral (a “metafísica dos costumes”), mas

sua fundamentação. No caso, essas bases, consolidadas, destinam-se à Crítica da

Razão Prática, de 1788, que também não estabelece a classificação dos deveres

(morais) do homem, mas antes os “princípios de sua possibilidade, de sua exten-

são e limites”. Finalmente, a Crítica do Juízo, de 1790, busca a unidade entre as

duas Críticas anteriores, isto é, entre a teoria e a prática, o universal e o particular,

a necessidade e a liberdade. A chamada “filosofia crítica” de Kant tem como ali-

cerce estas três Críticas, sobre as quais se erguem várias outras obras, como partes

de um único edifício que permaneceria inacabado.

Na primeira das Críticas, Kant afirma que o conhecimento só pode provir

da intuição, que representa o objeto de modo imediato, e dos conceitos, com os

quais as representações são pensadas. No conhecimento empírico, as intuições

empíricas representam objetos, e os conceitos a que correspondem são unificados

em juízos sintéticos a posteriori. Mas de onde provêm os conceitos na matemática

dita “pura”, que prescinde da intuição empírica?

A resposta só pode ser uma: mediante a construção de conceitos. “Cons-

truir um conceito”, diz Kant, “significa apresentar a priori a intuição que lhe cor-

responde”. Tal intuição pura é possível, como prova a intuição pura do espaço e

do tempo. É também possível intuir partes do espaço, sem que para isso seja ne-

cessário “preenchê-lo” com sensações. A partir dessa intuição, que é a priori, po-

de-se construir, por exemplo, o conceito de triângulo e, de intuição em intuição,

proceder à síntese dos vários conceitos construídos, acrescentando novos conhe-

cimentos sobre o triângulo.

Se, desse modo, os conceitos da geometria são construídos a partir da intu-

ição do espaço, a “aritmética constrói seus conceitos de números através da adição

sucessiva de unidades no tempo (...)”. Ambas as ciências, portanto, são constituí-

das de juízos sintéticos a priori, o que possibilita tanto o acréscimo de conheci-

mento quanto a universalidade e a necessidade de suas proposições.

Do conceito à experiência

O espaço e o tempo, como condições a priori de possibilidade da intuição

empírica, constituem a receptividade que define a sensibilidade. São como “recep-

táculos”, ou seja, puras formas, que previamente, não contêm nada. O conteúdo

(ou a matéria), isto é, aquilo que corresponde à sensação, só pode provir a poste-

riori e é ordenado segundo certas relações – as do espaço e do tempo. Por isso, o

objeto só pode ser intuído no tempo e no espaço e constitui-se naquilo que Kant

denomina fenômeno, isto é, “objeto indeterminado de uma intuição empírica”.

“Objeto indeterminado” porque aparece na sensibilidade como múltiplo:

diversas representações são dadas juntas no espaço e no tempo, de modo sucessi-

vo. Determinar o objeto é ligar (sintetizar), numa certa unidade, as diversas repre-

sentações desse múltiplo. Na proposição “o calor dilata os corpos”, por exemplo,

as representações “calor” e “dilatação dos corpos” são ligadas num juízo.

Mas se o objeto dado na intuição empírica é indeterminado, então a sínte-

se, que o determina, não pode estar nele. Nem na sensibilidade, pois é nesta que o

objeto indeterminado aparece como tal, no espaço e no tempo. A síntese, portanto,

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pressupõe uma faculdade do sujeito do conhecimento cuja ação seja exatamente a

de sintetizar.

Essa faculdade é o entendimento, que Kant define como “faculdade de

pensar”. O pensamento é o conhecimento mediante conceitos, que são sintetizados

por juízos. Estes não se formulam ao acaso, mas de acordo com certas regras e

princípios da lógica, como tais, são dados a priori; são condições de possibilidade

dos próprios juízos.

Kant, na “Analítica Transcendental” da Crítica da Razão Pura, enumera

todas as formas possíveis de juízo segundo sua função. Os juízos podem se referir

à quantidade e são universais, particulares ou singulares; em relação à qualidade,

são afirmativos, negativos ou infinitos e assim por diante. Tal enumeração é pos-

sível a priori, pois os juízos não apresentam nenhum conteúdo empírico e refe-

rem-se apenas à forma do entendimento.

Dadas as formas possíveis de juízo, pode-se também estabelecer a priori

os possíveis conceitos que os juízos formulam. Esses conceitos – por exemplo,

substância, causa, necessidade, realidade etc. – são puros, e Kant os denomina ca-

tegorias. Sem estas seria impossível “compreender algo do múltiplo na intuição,

isto é, pensar um objeto dela”.

A proposição “o Sol aquece a pedra”, por exemplo, unifica as intuições

empíricas “Sol” e “aquecimento da pedra”. A partir dessas intuições, apenas, só

seria possível formular o que Kant denomina “juízo da percepção”: “o Sol brilha e

a pedra se aquece”. É preciso então que outro elemento, a priori, subordine as in-

tuições empíricas para que sejam pensadas. No caso, esse elemento a priori é a

categoria de causa. “O Sol aquece a pedra” implica uma relação de causalidade, e

isso só pode ser pensado mediante o conceito de causa.

Isso esclarece a possibilidade da física como ciência. Ela é constituída a

partir de categorias do entendimento e formula leis da natureza – por exemplo,

“tudo o que acontece é sempre predeterminado por uma causa segundo leis cons-

tantes” -, que são juízos sintéticos a priori e, por isso, sempre universais e neces-

sários. O múltiplo da intuição empírica é então pensado sob tais categorias e leis,

que o subordinam e sintetizam por uma ação do entendimento, a subsunção.

Em outras palavras, não é a experiência que torna possível os conceitos a

que correspondem os objetos da física. Ao contrário, são os conceitos (puros do

entendimento) que tornam possível toda a experiência. Propriamente falando,

“experiência” não se refere à sensação causada quando a sensibilidade é afetada

por um objeto, mas àquilo que se torna possível pelo entendimento, que é, por is-

so, seu autor. Do mesmo modo, “objeto da experiência” corresponde ao fenômeno

– “o objeto indeterminado de uma intuição empírica” – que pode ser determinado

e subsumido sob regras a priori e categorias do entendimento.

A possibilidade do conhecimento objetivo ou da objetividade do conheci-

mento é, portanto, dada pelo entendimento, que determina o campo da experiência

possível e de seus objetos, cuja totalidade se chama natureza. A física é a ciência

da natureza porque determina a priori seus próprios objetos, sobre os quais for-

mula juízos universais e necessários.

Por tudo isso, o sujeito do conhecimento é legislador: ele torna possível a

representação (no espaço e no tempo) do fenômeno; impõe, a este, determinações

que o constituem como objeto da experiência, subsumindo-o a leis da natureza; e

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legitima o conhecimento desse objeto como universal e necessário. “A razão tem

que ir à natureza”, diz Kant, “(...) não porém na qualidade de um aluno que se

deixa ditar tudo o que o professor quer, mas na de um juiz nomeado que obriga as

testemunhas a responder às perguntas que lhes propõe.” Também nesse sentido a

razão é tribunal.

Idéias puras: simples ilusões

Mas se o objeto da experiência é apenas o que o sujeito constitui como tal,

o que é, antes disso, o objeto em si mesmo? A resposta é impossível. Pois só se

pode conhecer o que aparece ao sujeito como fenômeno, isto é, o múltiplo no es-

paço e no tempo e que é subsumido sob categorias. A coisa em si – que Kant de-

nomina númeno (do grego noumenon), em oposição a fenômeno – não pode ser

conhecida, pois está aquém de toda a experiência possível.

Não seriam, no entanto, possíveis os juízos sintéticos a priori sobre a coisa

em si? Essa é a pretensão da metafísica. E é o que ela faz, concebendo idéias que

não se referem a nenhuma experiência. A capacidade de conceber idéias é a facul-

dade da razão propriamente dita, cuja ação é sintetizar as categorias do entendi-

mento.

Para que as representações do entendimento sejam reunidas em uma uni-

dade – pois sem isso não haveria síntese -, é preciso pressupor a condição de pos-

sibilidade de tal unidade, isto é, o sujeito do conhecimento. Mas qual seria a con-

dição de possibilidade desse sujeito? Só poderia ser outro sujeito, mas já sem con-

dições, um incondicionado, que subsiste em si e por si: uma substância, que a me-

tafísica denomina alma. Ou então a causa – sob esse conceito, o entendimento liga

um objeto a outro, possibilitando o conhecimento de um acontecimento; a partir

disso, a razão concebe a série completa de causas e acontecimentos, isto é, o

mundo. Finalmente, a razão também pode conceber uma condição incondicionada

de todos os possíveis (alma ou mundo): Deus. Essas são as idéias puras da razão

propriamente dita, e Kant as examina com minúcia na “Dialética Transcendental”

de sua Crítica da Razão Pura.

Kant define a “dialética” como “uma lógica da ilusão”. De fato, a razão

tem a “ilusão de tomar a possibilidade lógica do conceito (já que ele não se con-

tradiz a si mesmo) pela possibilidade transcendental das coisas (...)”. É o que o-

corre com a idéia metafísica de alma. O sujeito, que não se confunde com nenhum

“eu” individual e empírico, é apenas a condição formal de conhecer algum objeto

como substância, e, como tal, não pode ser substância. É forma (lógica) do conhe-

cimento e não seu conteúdo; é sujeito transcendental.

Tal ilusão conduz também ao que Kant denomina “antinomias da razão

pura”, em que os juízos se contradizem em teses e antíteses, sem que uma e outra

apresentem falhas lógicas de raciocínio. Pode-se então afirmar racionalmente que

o mundo tem um limite no espaço e no tempo, ou, ao contrário, que é ilimitado;

que cada substância que o compõe reduz-se a partes simples, ou que tudo é com-

posto; que nele há uma causa última sem causa – causa livre ou liberdade -, ou

que o mundo é inteiramente regido por causas necessárias; que existe um ser ab-

solutamente necessário como causa do mundo, ou que tal ser não existe. Do mes-

mo modo, todas as provas da existência de Deus enfrentam dificuldades seme-

lhantes.

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As idéias puras da razão são ilusões, pois pretendem transformar o trans-

cendental em transcendente (aquilo que ultrapassa toda experiência possível). O

transcendental – as formas da intuição (espaço e tempo) e do entendimento (cate-

gorias) – é apenas a forma da objetividade e não o próprio objeto; é vazio de con-

teúdo e nada significa em si. A ilusão da razão consiste em conferir a priori um

significado a esse vazio, transformando-o em um objeto transcendente, fora do al-

cance da experiência possível. A metafísica, então, não é nem sequer falsa ou fic-

tícia: é propriamente ilusão, esse vazio do não-conhecimento, que é produzido pe-

lo uso ilegítimo dos conceitos. É por tal ilegitimidade que a metafísica deve ser

condenada no tribunal da razão.

Mas, segundo Kant, “nossa capacidade cognitiva [de conhecimento] sente

uma necessidade bem mais alta do que simplesmente soletrar fenômenos segundo

uma unidade sintética para poder lê-los como experiência (...)”. Em outras pala-

vras, o que deve ser condenado não são os metafísicos, que foram levados a con-

ceber suas doutrinas por essa necessidade inerente à própria razão, mas o mau u-

so, ilegítimo, da razão, o que os levou à pretensão de constituir a metafísica como

ciência.

As necessidades da razão, no entanto, não são necessariamente as do co-

nhecimento, isto é, as de ordem teórica. Elas se situam antes na esfera da ordem

prática, e a metafísica, no fundo, propõe certas regras morais. Por que então per-

manecer na ilusão da possibilidade de uma ciência, em vez de tomar as idéias da

razão não mais como conhecimento, mas como idéias reguladoras da prática dos

homens? “Crítica” também significa escolha: no caso, um novo ponto de vista pa-

ra abordar a metafísica.

*

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IMMANUEL KANT (1724-1804)

Livro: Os Filósofos. J. Herculano Pires.

O anjo prussiano que vai salvar a Filosofia do abismo agnóstico de Hume

nasceu do pietismo alemão (Pietismo foi um movimento surgido no final do século XVII du-

rante o Luteranismo, como oposição à negligência da ortodoxia luterana para com a dimensão pes-

soal da religião. Foi importante na influência do Protestantismo e do Anabatismo. O Pietismo

combinava o Luteranismo do tempo da reforma (como o Calvinismo) e o Puritanismo, enfatizando

a piedade do indivíduo e uma vigorosa vida cristã). Viveu numa das épocas mais intensas

da História; mas como os anjos não partilham as aflições e das ambições huma-

nas, permaneceu confinado em seu torrão natal, a cidade de Koenigsberg. Dali as-

sistiu, solitário, às batalhas do seu tempo; a Guerra dos Sete Anos (A Guerra dos Se-

te Anos foram conflitos internacionais que ocorreram entre 1756 e 1763, durante o reinado de Luís

XV, entre a França, a Áustria e seus aliados (Saxônia, Rússia, Suécia e Espanha), de um lado, e a

Inglaterra, a Prússia e Hannover, de outro. Vários fatores desencadearam a guerra: a preocupação

das potências européias com o crescente prestígio e poderio de Frederico II, o Grande, Rei da

Prússia; as disputas entre a Áustria e a Prússia pela posse da Silésia, província oriental alemã, que

passara ao domínio prussiano em 1742 durante a guerra de sucessão austríaca; e a disputa entre a

Grã-Bretanha e a França pelo controle comercial e marítimo das colônias das Índias e da América

do Norte.), a Revolução Francesa e o início da conquista do mundo por Napoleão. E

dali também assistiu ao incêndio filosófico que lavrava lá fora, principalmente na

Inglaterra e na França, assinalando a época das luzes. Foi, aliás, atingido em cheio

pelos clarões do Iluminismo, e sem sair de onde estava, tornou-se ao mesmo tem-

po a sua mais alta expressão e o seu capítulo final.

Essa curiosa posição de Emmanuel Kant lembra o episódio, que muito o

preocuparia, no qual o seu xará Emmanuel Swedenborg, sem sair da mesa de um

jantar em Gotenburg, veria o incêndio de sua própria casa e de todo o quarteirão,

em Estocolmo, a trezentas milhas de distância. Swedenborg viu e relatou o que

via, com perfeita exatidão, e teve como testemunhas nada menos de dezesseis pes-

soas, que com ele jantavam. Kant, de seu retiro em Koenigsberg viu também o in-

cêndio que lavrava a distância, e soube dominá-lo melhor do que as pessoas que

se encontravam mais próximas.

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A vidência de Swedenborg devia exercer grande influência na vida do filó-

sofo. Swedenborg era um dos homens mais instruídos do seu tempo, e escreveu

uma cosmologia fantástica, baseada em suas experiências de vidente. Kant foi um

dos poucos leitores desse livro, e tomou a cosmologia do vidente como ponto de

partida e de confronto para a crítica da metafísica tradicional. Considerava Swe-

denborg “realmente sublime” – e é bom lembrar que sublime, para Kant, tem uma

significação especial – e acreditava que todos os planetas são habitados, como en-

sinava o vidente.

Vemos assim que Kant, na época das luzes, aparece ligado a dois movi-

mentos anti-racionais: o Pietismo e o Swedenborguismo. Ao primeiro ele se liga

pelo nascimento e pela formação. Seu pai era um seleiro de origem escocesa, e a

família, luterana, seguia o movimento pietista de reavivamento religioso, iniciado

pelo pastor Spener. A mãe do filósofo uma boa e fervorosa mulher, exerceria

grande influência no seu espírito, começando por levá-lo ao Colégio Fredericia-

num, dirigido pelo Prof. Schultz, onde Kant aprenderia a mais rígida disciplina

moral e religiosa.

O anjo pietista foi assim preparado para enfrentar o abismo agnóstico de

Hume e dele salvar a águia torturada da Filosofia. Swedenborg é o socorro empí-

rico a essa dogmática religiosa. Nele, Kant terá a oportunidade de encontrar, ape-

sar de seus vôos de imaginação, uma base de fatos, e portanto de experiências

concretas para reforçar a sua formação espiritual.

É graças a essa conjugação do Pietismo com a influência de Swedenborg,

que Kant irá salvar a Filosofia do agnosticismo (Doutrina que considera o absoluto ina-

cessível ao espírito humano e que preconiza a recusa de toda solução aos problemas metafísicos.

As bases filosóficas do agnosticismo foram assentadas no século XVIII por Immanuel Kant e Da-

vid Hume, porém só no século XIX que o termo agnosticismo seria formulado. Seu autor foi o bi-

ólogo britânico Thomas Henry Huxley - avô paterno do escritor Aldous Huxley (autor do romance

distópico Admirável Mundo Novo) - numa reunião da Sociedade Metafísica, em 1876. Ele definiu

o agnóstico como alguém que acredita que a questão da existência ou não de um poder superior

(Deus) não foi nem nunca será resolvida.) de Hume, mas é graças às influências iluminis-

tas que ele não a lançará novamente no abismo oposto, o do dogmatismo metafísi-

co. O Iluminismo o envolveu na Universidade de Koenigsberg, através de sua

forma alemã, o racionalismo leibniziano. Seu professor de Filosofia, Martin Knut-

zen, era discípulo de Wolff, que por sua vez o era de Leibniz. Assim, a primeira

grande influência filosófica sobre Kant é exercida pelo monadismo leibniziano.

Mas, na própria Universidade, Kant irá sofrer o impacto do iluminismo in-

glês, através de seu professor de Física, Teske, que o inicia no naturalismo de

Newton (A heurística – uma regra que ajuda a procurar algo - de seguir pelo que já se conhece é

muito antiga, mas a heurística de preferir uma explicação naturalista é recente. Newton postulou

que a Terra atraía a Lua e a Lua atraía a Terra. Mas como explicar que um objeto inanimado con-

seguisse agarrar e puxar outro a uma distância tão grande? Para Newton era Deus que o fazia. Não

só tratava da gravitação universal, mas também dava um jeitinho de vez em quando para evitar que

todas aquelas atracções descambassem em caos. A física de Newton era assumidamente sobrenatu-

ral). A seguir o naturalismo de Rousseau (... Mas seria um grave erro confundir o "natura-

lismo" de Rosseau com o dos filósofos das luzes. Na realidade, a moral e a filosofia de Rosseau,

tais como se encontram em seu romance A Nova Heloísa (1761) e na Profissão de fé do Vigário

saboiano, peça mestra do Emílio (1762), recaem nos temas do espiritualismo mais tradicional. É

certo que a profissão de fé do Vigário suscitou as iras dos poderes públicos e das igrejas constituí-

das. A obra será solenemente queimada, um mês apenas após sua publicação, em Paris e em Ge-

nebra. O arcebispo de Paris condená-lo-á em célebre ordenação (perseguido por toda parte, Rosse-

au só encontra refúgio na Inglaterra, junto a Hume, com quem, aliás, se desentenderá pouco de-

pois). É censurado por escolher a religião natural (aquela que o homem encontra no próprio cora-

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ção) e rejeitar a religião revelada. Não há dúvida de que ele declara que todas as religiões são boas

e que cada crente pode conseguir a salvação na sua (o que é contrário ao que, na época, era pensa-

do nas igrejas católicas e protestantes) dominará o seu espírito, e o agnosticismo de Hu-

me (Bases históricas. A definição de Huxley viria possibilitar diferentes concepções do agnosti-

cismo. O propriamente filosófico seria o que limita o conhecimento ao âmbito puramente racional

e científico, negando esse caráter à especulação metafísica. Tais concepções, que podem ser ras-

treadas já nos sofistas gregos, tiveram formulação precisa, no século XVIII, nas teses empiristas

do inglês David Hume, que negava a possibilidade de se estabelecer leis universais válidas a partir

dos conteúdos da experiência, e no idealismo transcendental do alemão Immanuel Kant, que afir-

mou que o intelecto humano não podia chegar a conhecer o númeno ou coisa-em-si, isto é, a es-

sência real da coisa. O positivismo lógico do século XX levou ainda mais longe essas afirmações,

negando não só que seja possível demonstrar as proposições metafísicas, mas também que elas te-

nham significado).o assustará de tal maneira que, segundo sua própria expressão, o

acordará do sono dogmático, para uma atitude crítica em face ao problema do co-

nhecimento.

O Criticismo é, pois, a forma acabada da filosofia moderna. Kant conse-

guiu enfeixar em seu método as constantes fundamentais do pensamento moder-

no, que, a partir da revolução cartesiana, se opunha ao dogmatismo escolástico e a

toda a metafísica tradicional. A impotência revelada por esse pensamento, diante

dos formidáveis enigmas que se sobrelevavam à razão, é subitamente transforma-

da em espantosa energia, nas mãos desse pequenino e metódico, solitário e desco-

nhecido pensador da Prússia Oriental.

Descartes se contentara com a descoberta do cogito, dando por resolvido o

problema do Ser e do Mundo; Espinosa aceitara o dogma cartesiano, procurando

apenas aperfeiçoá-lo; Bacon se deixara empolgar pelas possibilidades da ciência

experimental, reduzindo a Filosofia a uma questão de busca do poder (saber?);

mas já em Locke e Berkeley o impulso baconiano se transforma em fecundo tateio

na estrutura do conhecimento, para afinal encontrar em Hume, apesar de seus as-

pectos negativos, uma colocação exata do Empirismo.

Não obstante, o Empirismo se tornava, ao mesmo tempo, uma confissão de

impotência. O Eu cartesiano voltava a descobrir a sua irremediável solidão. Isola-

do no cogito, era obrigado a reconhecer de novo a sua impossibilidade de se co-

municar, quer com o exterior, quer com o próprio Deus. Kant descobre, porém,

que ao pensamento moderno faltava aquilo que ele mais desejava e proclamava: a

liberdade de pensar. O pensamento moderno se iludira a si mesmo, criara o seu

próprio dogmatismo, e por isso caíra num círculo vicioso.

Descartes e Bacon haviam tido a intuição da necessidade fundamental: o

método. Mas se contentaram com a formulação de regras. Kant irá direto ao alvo.

Criará o verdadeiro método, reintegrará a Filosofia no seu legítimo campo de a-

ção, submeterá o pensamento e o seu processo, a função mental e a sua estrutura,

ao rigor da análise crítica.

O Iluminismo se opunha ao obscurantismo medieval. O Racionalismo se

opunha ao dogmatismo escolástico. O Empirismo se opunha aos delírios da Meta-

física. Mas Kant, no seu retiro de Koenigsberg, como novo Descartes isolado no

fundo do cogito, percebe que todas essas posições são apenas periféricas. Falta-

lhes, na verdade, conteúdo. Falta-lhes a verdadeira compreensão do problema

fundamental, que é o do como conhecemos e até onde podemos conhecer. Sem es-

se conhecimento, o próprio conhecimento é impossível.

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Daí o agnosticismo de Hume. O grande escocês compreendera o impasse

do pensamento moderno, chegara aos limites da experiência e da razão, e dera a

última volta na chave do conhecimento.

Mas Kant descobre o segredo da fechadura. E é por isso que a sua filosofia

crítica reabrirá a porta e acenará ao pensamento com as mais amplas perspectivas

futuras. Curioso notar-se como o Homem avança aos poucos, tateando, muitas ve-

zes voltando atrás e retomando caminhos perdidos, no campo do pensamento.

Locke, por exemplo, voltou aos sofistas, ao sustentar que nada existe no intelecto

que não tenha passado pelos sentidos. Leibniz, entretanto, levantou uma objeção

socrática, ao advertir: menos o intelecto. E somente em Kant essa advertência vai

adquirir a plenitude de sua significação.

A História nos apresenta, às vezes, certas semelhanças, que bem justificam

o aforismo (sentença, axioma, máxima, provérbio) de que ela se repete. Kant não é so-

mente o filósofo solitário de Koenigsberg, porque é também o filósofo difícil, ne-

buloso, obscuro. Windelband assinala que nele não se encontra, ao contrário dos

demais pensadores, “uma idéia teórica básica”, que servisse de chave para a porta

central do gigantesco edifício do seu sistema. Tudo isso nos lembra, numa distân-

cia de milênios, a figura de Heráclito, o obscuro, tão isolado em Éfeso quanto o

próprio Kant, em sua cidade natal; tão difícil de compreender quanto ele, tão dado

à linguagem oracular – como acentua Burnet – quanto o filósofo prussiano aos ro-

deios metafísicos. Até mesmo o interesse de Kant por Swedenborg tem qualquer

coisa das ligações de Heráclito com os oráculos. E o perpétuo fluir do Universo

não é, por acaso, um despertar do “sono dogmático” para a constante reavaliação

das coisas?

O leitor pode estranhar que esse filósofo obscuro tenha realizado o que

chamamos atrás: a forma acabada da filosofia moderna. Mas a estranheza desapa-

recerá, se pensar que a filosofia moderna é um intermúndio, uma fase de transi-

ção, em que tanto encontramos a clareza das proposições matemáticas da filosofia

atual, quanto a nebulosidade das disputas teológicas medievais. No próprio Des-

cartes, que proclamou a república das idéias claras e distintas, ainda encontramos

os resíduos do império nebuloso da Teologia.

Kant assimila em seu mundo filosófico o império e a república, para tritu-

rá-los no moinho impiedoso da crítica, deles extraindo apenas a essência. E desse

imenso trabalho de moleiro é que vai sair a mais fina essência da filosofia alemã,

com o idealismo de Fichte, Schelling, e, por último, Hegel, este Proteu filosófico,

espécie de moderno Protágoras, de cuja dialética tanto sairão a esquerda como a

direita, balizando a história contemporânea.

O MUNDO MORAL

Emmanuel Kant nasceu em Koenigsberg, a 22 de abril de 1724. Já vimos

que descendia de uma família de operários, de origem escocesa. A pobreza famili-

ar não o impediu de seguir a carreira intelectual, e muito contribuiu para isso a po-

sição pietista da família. Kant encontrou apoio na ordem religiosa, para ingressar

na escola e tentar a carreira eclesiástica. No Colégio Fredericianum, em que ini-

ciou seus estudos, aprofundou-se, antes de mais nada, no conhecimento do mundo

moral, submetendo-se à rigorosa disciplina espiritual, que o prepararia para a rea-

lização futura de sua grande obra filosófica.

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Em 1740, Kant entra para a Universidade de Koenigsberg, a fim de estudar

Teologia. Sua mãe desejava ardentemente que o filho se tornasse um grande teó-

logo. Mas é ali que o vemos encontrar-se ao mesmo tempo com Knutzen, que o

inicia em Leibniz, e com Teske, que o familiariza com Newton. Em 46 vemo-lo

abandonar a Universidade, renunciando para sempre à carreira eclesiástica, para

dedicar-se ao magistério.

A princípio, durante nove anos, dedica-se ao ensino particular. Ao mesmo

tempo, aprofunda-se de tal maneira no estudo das ciências naturais, que parece

destinado a tornar-se um cientista. Escreve seu primeiro trabalho: Pensamentos

Sobre a Verdadeira Avaliação das Forças Vivas, e em 55 lança a sua famosa His-

tória Geral da Natureza e Teoria do Céu, obra que contém a chamada teoria

Kant-Laplace (Pierre Simon, Marquis de Laplace (Beaumont-en-Auge, 23 de março de 1749

— Paris, 5 de março de 1827) foi um matemático, astrônomo e físico francês que organizou a as-

tronomia matemática, sumarizando e ampliando o trabalho de seus predecessores nos cinco volu-

mes do seu Mécanique Céleste (Mecânica celeste - 1799-1825). Esta obra-prima traduziu o estudo

geométrico da mecânica clássica usada por Isaac Newton para um estudo baseado em cálculo, co-

nhecido como mecânica física), superando a mecânica celeste de Newton e projetando-

se no futuro.

Ainda em 55, Kant apresenta sua tese de doutoramento: um tratado sobre o

fogo. A polarização heraclitiana a que nos referimos atrás se acentua neste mo-

mento. Mas Kant revela novamente o seu gênio, antecipando conquistas modernas

da Ciência, com suas indagações sobre os imponderáveis. Mais tarde, publica sua

Monadologia Física, logo seguida por um pequeno trabalho intitulado Novo Con-

ceito do Movimento do Repouso.

O isolamento filosófico de Kant não quer dizer misantropia (que tem hor-

ror à criatura humana; aversão à sociedade). Ele viveu o seu tempo, ligado aos

homens e aos seus problemas. Tornou-se mesmo uma espécie de oráculo moder-

no, em cuja palavra os contemporâneos buscavam a explicação e a orientação para

os momentos críticos. Quando, por exemplo, o terremoto de Lisboa abalou o

mundo, com profundas repercussões em toda a Europa, Kant escreveu dois traba-

lhos sobre o fato.

A vida de Kant apresenta assim uma curiosa dualidade. O solitário de Ko-

enigsberg não vive em solidão. Afastado dos grandes centros culturais, da convi-

vência dos grandes pensadores da época, ele convive com os seus concidadãos,

partilha-lhes as preocupações, as angústias e as alegrias. Na Guerra dos Sete A-

nos, Koenigsberg foi ocupada pelos russos. Em 1758, vagou-se uma cátedra da

Universidade local, mas o general russo que dominava a cidade não permitiu que

o filósofo a ocupasse. Só em 1770, convidado ao mesmo tempo para ocupar ca-

deiras em Erlanger e Iena, o que mostra o seu triunfo além dos limites da terra na-

tal, Kant é também nomeado para a sua cadeira, de Koenigsberg. Inicia, então, o

seu ensino na cadeira e a sua nova filosofia.

Todo o transcorrer de sua existência nos parece hoje admiravelmente sere-

no e ordenado. Kant parece haver planejado a sua vida nos mínimos detalhes, tra-

çando um esquema de que não se afastou, nem mesmo sob o fascínio da glória,

com que muitas vezes lhe acenaram do exterior. É conhecida a anedota segundo a

qual os moradores de Koenigsberg acertavam o relógio, pela sua passagem nas

ruas, em seus passeios invariáveis.

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Sua atitude perante a vida é a de um perfeito estóico (firme, senhor de si mes-

mo, inabalável, impassível, austero. Estoicismo: doutrina filosófica da Antigüidade, fundada por

Zenão, que condicionava a felicidade a uma atitude de coragem impassível diante da dor e do

mal). Certa vez, quando o Ministro Wollner intensificava a censura religiosa na

Prússia, Kant foi proibido de ensinar a sua filosofia. Tranqüilamente esperou que

o tempo corresse, e quando, em 1797, a proibição foi levantada, o filósofo já esta-

va alquebrado, mas tinha em mãos o que oferecer ao mundo. Desde 1770 ele tra-

balhava incansavelmente na sua obra, e mesmo sob a tirania não deixou um só

instante de construí-la.

Sua grande obra, Crítica da Razão Pura, apareceu em 1781. Mas tão gran-

de confusão causou nos espíritos, que Kant teve de publicar, dois anos mais tarde,

uma explicação da obra, sob o título Prolegômenos a Toda Metafísica Futura.

(Prolegômenos: preâmbulo, preliminar, prólogo, introdução). Em 1787 Kant lançou a se-

gunda edição da Crítica da Razão Pura, mas de tal forma refundida, que iria sus-

citar dali por diante verdadeira polêmica filosófica sobre o valor de uma e de outra

edição. As diferenças, assinaladas por Schelling, Jacobi, Schopenhauer e Rosen-

kranz, relacionam-se entretanto, como assinala Windelband, com o desenvolvi-

mento de pensamentos apenas enunciados na primeira edição, e a que Kant deu,

mais tarde, a amplitude que julgava necessária.

De 1785 a 1795, num decênio, portanto, Kant publicou numerosas obras,

completando o seu vasto sistema filosófico. Dessas obras se destacam a Crítica da

Razão Prática, em 1788; a Crítica do Juízo, em 1790; O Começo Provável da

História Universal, em 1786; O Fim de Todas as Coisas, em 1794; e Projeto Fi-

losófico Para Uma Paz Perpétua, em 1795.

Com este projeto, Kant se apresenta como o profeta da Federação Mundi-

al, prevendo a reunião dos Estados Livres num organismo superior, cuja principal

finalidade é a proibição da guerra entre os povos. Já no fim da vida, e presencian-

do o fracasso da Revolução Francesa com o império do Terror, Kant procura, en-

tretanto, salvar a fé na Razão, cujo domínio mundial se imporia através de um go-

verno internacional que agisse segundo os seus ditames. Esta obra tornará Kant

um dos condenados do Nazismo, na Alemanha dos nossos dias.

Vemos assim que a razão kantiana não é apenas a razão pura, mas tam-

bém a razão prática, porque não basta o raciocínio para assegurar a felicidade

humana, mas é também necessário o sentimento. Kant, o racionalista, não se afas-

ta de Kant, o sentimentalista. As heranças pietista e swendenborguista exerceram

poderosa influência em toda a sua vida. O mundo de Kant, portanto, não apenas o

mundo em que ele vive, mas, num admirável exemplo de coerência entre teoria e

prática, também o seu mundo filosófico, é sobretudo um mundo moral. As leis da

Moral regulam esse mundo, como as leis físicas regulam o mundo material.

O pensador solitário de Koenigsberg, que por um lado se polariza no tem-

po e no espaço com o pensador solitário e obscuro de Éfeso, por outro lado sinto-

niza o seu espírito agudo com o de Sócrates, e, como este, prefere não deixar Ate-

nas, para poder viver melhor e mais intensamente a sua vida moral, no seu mundo

moral.

Pode parecer estranho que o mundo moral de Kant, na realidade da sua e-

xistência, tenha sido o mundo do celibatário. Mas não parece que o foi de maneira

proposital. Consta que, pelo menos duas vezes, o filósofo pretendeu casar-se. En-

tretanto, como nada fazia sem primeiro pensar fundamente a respeito, não chegou

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a consumar essa pretensão. Justifica-se assim o adágio: quem pensa não casa. E a

verdade é que, mesmo solteiro, levou a vida metódica e pura do mais honesto pai

de família.

Ao falecer, a 12 de fevereiro de 1804, próximo dos 80 anos, não pediu

mais luz, como Goethe, nem recomendou que seguissem os seus dogmas, como

Epicuro. Apenas, com a tranqüilidade do homem que cumpriu o seu dever e reali-

zou a sua obra, exclamou: “Es ist gut”, ou seja, “Está bem”. E realmente estava.

O PROBLEMA DO CONHECIMENTO

Já vimos que Kant havia descoberto o vazio das oposições filosóficas, no-

tando que faltava, às doutrinas opostas, um verdadeiro conteúdo. Todas elas, por

assim dizer, lutavam no vácuo. O Racionalismo, por exemplo, tornara-se tão

dogmático quanto a Escolástica: a partir da suposta realidade do pensamento, re-

construíra toda a Metafísica, sem primeiro provar aquela realidade, estudar a sua

Natureza e examinar o problema de suas relações com o mundo das coisas. O

Empirismo, por sua vez, voltara às teorias protagóricas do conhecimento, pondo

toda a sua ênfase no problema das relações entre o pensamento e as coisas, mas

não conseguira estabelecer a validade das coisas. Assim, estabelecera também

uma forma de dogmatismo, que alcançara sua expressão acabada no extremado

mentalismo de Berkeley, para afinal encontrar o beco sem saída do agnosticismo

de Hume. Tudo isso, porque ambos não tinham conteúdo. Partiam de suposições e

não de verificações. Kant se propõe a descobrir a maneira de encher o continente

vazio do Empirismo, e é por isso que meditará e escreverá a sua Crítica da Razão

Pura.

Leibniz havia percebido esse problema, quando fez a advertência socráti-

ca, que supõe inevitavelmente um sorriso nos lábios: menos o intelecto. Sim, pois

nada existe no intelecto sem que tenha passado pelos sentidos, como queria Loc-

ke, mas é evidente que, para isso, existia o intelecto. A proposição de Locke e a

advertência de Leibniz são o golpe de florete e o seu contragolpe, no duelo entre o

Empirismo e o Racionalismo.

Kant vai ser o juiz desse duelo, e começa por avisar que, para as sensações

se harmonizarem e se organizarem no intelecto, este deve possuir alguma coisa.

Não será, por certo, a simples tabula rasa do Empirismo, nem a misteriosa subs-

tância pensante do Cartesianismo. O que será, então? Para Kant, é a consciência,

ou seja, o plano interior em que se processa a relação da experiência, a relação do

sujeito com o objeto do conhecimento. Eis, pois as duas formas vazias, do Racio-

nalismo e do Empirismo. De um lado, a consciência, e de outro a experiência.

É na forma da consciência que a matéria das sensações vai ser organizada,

e por assim dizer, fundida. Mas essa forma geral contém, no seu interior, as for-

mas diversas da experiência. E as duas formas primárias da experiência são as ca-

tegorias do espaço e tempo, ou seja, as intuições de espaço e tempo. Nessas for-

mas, toda a experiência é modelada. As sensações se acomodam nessas categori-

as, e adquirem a unidade e a estabilidade necessárias para que se realize o proces-

so do conhecimento, da maneira semelhante à da água que se acomoda nos recipi-

entes. Espaço e tempo não são, pois, fatos exteriores, mas formas a priori do pen-

samento, pelas quais a consciência modela a realidade exterior, graças às sensa-

ções.

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A forma da consciência não é apenas receptiva, mas também ativa, uma

vez que constrói a realidade com os dados dos sentidos. Assim, o espírito imagina

o mundo exterior, ou seja, elabora uma imagem desse mundo, com as sensações

que dele recebe, mas servindo-se de suas próprias categorias, de suas formas re-

ceptivas. Entretanto, não existe o problema do extremo subjetivismo, que levaria

ao solipsismo (solipsismo: do lat. solus, só + ipsis, mesmo; concepção segundo a qual o eu in-

dividual, de que se tem consciência, com suas modificações subjetivas, constitui a única realidade

existente de que se tem certeza), pois as formas da consciência não são individuais, mas

comuns aos seres pensantes.

Realmente, a consciência se manifesta por duas maneiras diversas. A pri-

meira, é a da reflexão subjetiva, através da qual cada indivíduo se identifica a si

mesmo, diferençando-se dos outros. A segunda, é a reflexão profunda, pela qual

os seres pensantes se identificam como tal e se comunicam entre si. Esta maneira

é a que Kant chama consciência normal, ou seja, normativa, pois contém a lei ge-

ral ou a norma universal dos juízos. É nessa maneira da consciência que temos a

visão ou intuição do espaço e tempo.

Essas duas maneiras da consciência correspondem também a duas manei-

ras de relações entre sujeito e objeto, ou seja, a duas espécies de juízos: os analíti-

cos e os sintéticos. Os juízos analíticos são aqueles em que sujeito e objeto se con-

fundem, se identificam, como a consciência subjetiva no processo da auto-

reflexão. Os juízos sintéticos são aqueles em que o objeto se acrescenta ao sujeito,

pela operação de síntese do juízo.

Pelo que acabamos de examinar, vemos logo que o instrumento do conhe-

cimento é o juízo sintético. Isso quer dizer que conhecemos por um processo de

síntese. Porque, de fato, o processo de análise, na exposição kantiana, não permite

transição. O pensamento auto-reflexivo só se conhece a si próprio. Se a consciên-

cia só possuísse essa maneira de ser, a auto-reflexiva, não haveria conhecimento,

e conseqüentemente, nem Filosofia. Mas como a consciência possui também a se-

gunda maneira, que podemos chamar de perceptiva ou comunicativa, então existe

o conhecimento e conseqüentemente o problema da sua natureza, que temos de

resolver.

Kant entende, assim, que o problema fundamental, na crítica do processo

do conhecimento, é o de se saber como são possíveis os juízos sintéticos. Entre-

tanto, se estes juízos dependem, não apenas da experiência sensível ou das sensa-

ções, como queriam os empiristas, mas também, e fundamentalmente, das condi-

ções a priori da própria mente, o que temos de saber é como são possíveis os juí-

zos sintéticos a priori.

Já vimos que a consciência possui duas formas fundamentais de modela-

gem da experiência sensível, que são as intuições inatas, universais, de espaço e

tempo. Vimos também como essas formas recebem e modelam a matéria das sen-

sações, dando-lhes unidade e estabilidade. E eis descoberto o grande momento em

que o mundo nasce dentro de nós, a gênese psíquica ou espiritual do Universo.

Esse processo genético começa pelo aparecimento do objeto.

Mas como se dá esse aparecimento? Precisamente através da modelagem

das sensações nas formas conscienciais de espaço e tempo. A multiplicidade, a va-

riedade instável e inapreensível das sensações, esse fluir constante e rápido dos re-

flexos das coisas em nossa sensibilidade, esse fluxo imponderável é amoldado pe-

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la nossa imaginação nas categorias de tempo e espaço. Então, elas se ordenam e se

estabilizam, adquirem seqüência e forma, tornam-se objetivas.

Vemos, pois, que o objetivo não é propriamente o que está fora de nós,

mas o que, dentro de nós, em nossa consciência, adquire espacialidade e tempora-

lidade. Criamos, pois, o nosso mundo, não um mundo individual para cada um de

nós, mas o mundo geral dos seres pensantes, graças às leis gerais do pensamento.

E ao mesmo tempo que verificamos isso, temos de compreender que existe uma

irredutível dualidade em nosso processo cognitivo. Porque de um lado estão os

objetos, essas elaborações da nossa consciência, e de outro lado estão as coisas

que provocaram ou produziram as sensações de que nos servimos, para a nossa

modelagem mental. Enfim: de um lado estão os fenômenos, que são as aparências

das coisas reais, aquilo unicamente que percebemos e podemos perceber; e de ou-

tro lado estão os númenos, as coisas em si, existindo fora das modalidades de es-

paço e tempo da nossa consciência.

Mas espaço e tempo não são as únicas formas pelas quais passamos a ma-

téria das sensações, como já vimos. Existem ainda as categorias ou conceitos a

priori, pelas quais modelamos a experiência. Kant as divide em doze e as dispõe

em quatro séries de três: 1 – os conceitos de quantidade que são: unidade, plurali-

dade e totalidade; 2 – os conceitos de qualidade, que são: realidade, negação e

limitação; 3 – os conceitos de relação, que são: substância-e-acidente, causa-e-

efeito e reciprocidade; 4 – os conceitos de moralidade, que são: possibilidade, e-

xistência e reciprocidade.

São essas as leis universais do processo cognitivo. Todos os seres pensan-

tes aplicam-nas ao material da experiência, isto é, os dados da sensação, e com e-

las constroem o mundo que conhecemos e no qual vivemos. Quando, entretanto,

queremos aplicar as intuições de espaço e tempo, ou as categorias, a coisas que

não podemos experimentar, caímos infalivelmente nas antinomias, que nos levam

ao erro e à confusão.

Entre os exemplos de antinomia dados por Kant está o da afirmação e ne-

gação das limitações do mundo. Quando dizemos que o mundo tem um início

temporal e uma limitação espacial, chocamo-nos com a idéia contrária, de que o

mundo é infinito no tempo e no espaço. Por esse mesmo motivo, não podemos a-

plicar nossas intuições e nossas categorias a Deus, à imortalidade e à liberdade.

Porque essas coisas não são percebidas pelos sentidos, não constituem conceitos

intelectuais, mas são idéias de razão.

Isso quer dizer que o intelecto é uma faculdade da consciência, que modela

os conceitos e nos dá o conhecimento, e a razão é outra faculdade, que se relacio-

na com as idéias puras, os númenos, as coisas em si, inacessíveis à experiência.

Eis uma nova dualidade com que a Crítica se defronta. Um novo aspecto da natu-

reza antinômica do processo cognitivo, essa natureza de que Hegel irá derivar

mais tarde as leis de contradição do seu sistema dialético.

Essa distinção entre intelecto e razão corresponde ao velho dualismo de

corpo e alma, e nos leva de volta ao mito platônico da caverna. Mas é evidente

que Kant a colocou em termos claros e precisos, anulando os motivos de confu-

são, as imprecisões, que a tornavam objeto de disputas intermináveis e negações

tão infundadas quanto as afirmações a que se opunham.

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Já dissemos que as incompreensões em torno da Crítica da Razão Pura le-

varam Kant a escrever o Prolegômenos a Toda Metafísica Futura. As incompre-

ensões continuam, apesar dos Prolegômenos. Há mesmo quem veja contradições

em Kant, por entender que o filósofo destruiu Deus, a imortalidade da alma e o li-

vre-arbítrio humano, naquele livro, para depois os admitir na Crítica da Razão

Prática. Há também quem o apresente como um demolidor arrependido, que ha-

bilmente reconstrói o mundo destruído das certezas morais.

Devemos precaver-nos contra essas fáceis interpretações ou engenhosas

maquinações. Kant é um pensador admiravelmente coerente. Quando surpreen-

dermos nele uma incoerência, desconfiemos antes do nosso próprio senso, e exa-

minemos melhor o problema.

Realmente, para Kant, como vimos, Deus não pode ser compreendido nas

limitações de espaço e tempo das nossas básicas intuições intelectivas, nem apre-

endido pelas categorias mentais. Nem a imortalidade da alma ou o princípio de li-

berdade podem caber nessas medidas do intelecto. Porque nem Deus, nem a imor-

talidade, nem a liberdade são entidades fenomênicas, perceptíveis através dos sen-

tidos orgânicos por meio das sensações. Em vez de sombras na parede da caverna,

defrontamo-nos aí com idéias, com realidades pertencentes ao mundo da luz, para

o qual os nossos olhos mortais se mostram cegos. Essas são, na realidade, coisas

em si, númenos, que escapam ao intelecto, uma vez que este só opera no plano dos

fenômenos.

Há, pois, o racional e o intelectivo, equivalentes ao inteligível e ao sensível

platônico. A Ciência, ou o conhecimento, aquilo enfim que entendemos pela nossa

capacidade de perceber e dominar o mundo, e que despertou em Bacon a ambição

do supremo domínio da Natureza, nada mais é que a ordenação do sensível dentro

das leis fundamentais da consciência. Mas fora e além, acima mesmo do sensível,

do mundo fenomênico, existe a realidade que escapa ao poder da Ciência, exata-

mente por não ser sensível.

É com isto e por isto que Kant se torna o que se costuma chamar “o funda-

dor do idealismo alemão”. E é por isso que ele, como um anjo, mergulha no abis-

mo de Hume e salva a Filosofia do Agnosticismo, librando (equilibrando) suas a-

sas para os novos vôos ao longo do eterno desfiladeiro das contradições humanas.

A RAZÃO PRÁTICA

Uma das coisas que impressionam em Kant, e que muito concorrem para

torná-lo mais obscuro e difícil, é a constante inversão que ele faz de nossos con-

ceitos habituais. Mas, por outro lado, esse aspecto formal serve para reafirmar o

sentido revolucionário de sua doutrina. O próprio Kant se incumbiu de mostrar es-

se sentido, considerando-se, na Filosofia, em posição idêntica á de Copérnico na

Ciência.

Quando ouvimos falar de razão pura e razão prática, imaginamos que, na

primeira, devemos pairar no plano da pura abstração, e na segunda, no plano do

concreto. E assim é, de fato, mas não da maneira habitual por que entendemos

abstrato e concreto. A razão pura, segundo a própria definição de Kant, é “a fa-

culdade de conhecer mediante princípios a priori”, o que vale dizer que é o nosso

intelecto em função de apreender o concreto. A razão prática é a nossa faculdade

de orientar a ação segundo os imperativos da consciência moral.

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Na Crítica da Razão Pura, Kant investiga o problema do conhecimento

como forma de experiência sensível ou de relação entre o sensível e o inteligível.

Na Crítica da Razão Prática, investiga o problema da moral como exigência da

natureza espiritual do Homem. Não é de admirar, como se vê, que os seus con-

temporâneos se tenham aturdido. Kant nos dirige a palavra como se falasse do O-

limpo, vendo as coisas de cima para baixo, enquanto as vemos de baixo para ci-

ma. É um deus que se dirige aos homens. Por isso, precisamos atentar bem nos

seus termos, a fim de não entendermos o contrário do que ele diz.

Assim, em vez de partir da razão pura ou teorética para a Metafísica, Kant

vai partir da razão prática. É exatamente quando trata das puras idéias, das abstra-

ções mentais com que construímos a nossa teoria da realidade, que o filósofo anda

ombro a ombro com os homens. E é quando trata da ação, da atividade prática, da

vida cotidiana, que ele arranca os homens da vida prática para elevá-los ao empí-

reo. Temos às vezes vontade de identificá-lo como o gênio maligno de Descartes,

tal a habilidade com que o vemos jogar ao inverso com os nossos conceitos e as

nossas posições habituais.

O homem que, na razão pura, nos aparece como um ser submetido a leis

inflexíveis, preso ao sensível, semelhante ao escravo platônico no fundo da caver-

na, vai encontrar a sua libertação quando estudamos a razão prática. Porque veri-

ficamos, então, o que nos mostra a nossa própria vida cotidiana, que não estamos

apenas sujeitos às leis físicas do sensível, pois há outras leis que agem em nós e

que nos dirigem em nossas ações. Essas leis não têm a rigidez, a irrevogabilidade

das leis naturais que regulam os fenômenos. São como ordens, diretrizes, manda-

mentos inscritos em nossa consciência, e aos quais devemos seguir, não para ser-

mos felizes ou gozarmos de prazer, nem tampouco para contribuirmos para o bem

comum ou coisa semelhante, mas apenas porque é necessário que os sigamos. A

obediência, nesse caso, não é obrigatória, mas voluntária. A moral, pois, não de-

corre de simples obediência a essas leis, mas de conformação com elas, de sua a-

ceitação espontânea por nós.

Kant chama a essas leis: imperativos. Sim, são imperativos de nossa cons-

ciência, de nossa vontade, do mais profundo do nosso ser, imperativos da própria

natureza humana. Por isso, são universais, existem em todos os homens. Há dois

tipos de imperativos: os hipotéticos e os categóricos. Os primeiros são teleológi-

cos, objetivam um fim, um resultado prático: são os que nos conduzem no exercí-

cio da habilidade, ou mesmo no exercício moral, mas com um objetivo. A moral

epicuriana, por exemplo, era construída sobre essa forma de imperativo: sê equili-

brado para seres feliz. Os segundos, porém, não comportam nenhuma finalidade

extrínseca, pois são a sua própria finalidade. Estes, sim, constituem o verdadeiro

fundamento moral. São categóricos porque se impõem através do dever, ou do

senso do dever, de maneira clara e terminante, independentes de qualquer promes-

sa de recompensa, e devem ser livremente aceitos pela vontade. Suas característi-

cas são a necessidade e a universalidade. Independem do indivíduo e da raça, do

local e do tempo. Estão acima das imposições do sensível. Pertencem ao inteligí-

vel platônico ou ao racional kantiano. Superam a razão pura e as formas do co-

nhecimento. Agem, afinal, como determinações da natureza espiritual, fora do

tempo e do espaço.

Partindo, assim, da vida rotineira, da ação normal do homem, dos proble-

mas comuns da sua conduta, Kant reconstrói o princípio da liberdade e vai tam-

bém reconstruir os de imortalidade e da existência de Deus. Todos os filósofos,

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antes dele, fizeram o contrário. Qualquer um de nós, ao pensar sobre Metafísica,

segue o caminho clássico, derivando desta os princípios morais. Mas Kant faz ou-

tro caminho. É da moral, dos costumes humanos, da conduta do Homem na vida

comum, que ele vai tirar a sua metafísica. E embora partindo de bases aparente-

mente tão frágeis, sua moral é imperativa e universal, supera a fragilidade humana

para se erguer sobre o mundo como um reino de leis eternas.

Mais tarde, na época do desenvolvimento entusiástico da Sociologia, essa

moral metafísica será submetida a dura prova. Com as medidas precárias do co-

nhecimento empírico, os homens tentarão provar que não existe o imperativo ca-

tegórico, e que a moral, afinal, não passa de puro convencionalismo, na base de

interesses imediatistas. Logo mais, porém, pensadores mais profundos porão em

dúvida essa nova tentativa de aniquilamento da concepção do Homem como ser

moral. As próprias investigações sociológicas dos costumes dos povos, as pesqui-

sas antropológicas e etnológicas, acabarão mostrando a existência de um senso

moral de natureza universal, que pode sofrer, aqui e ali, deturpações na sua apli-

cação, mas no fundo de todas as normas coincidem no propósito único da morali-

dade. E Bergson escreverá um dos mais belos tratados de Ética do nosso tempo,

para mostrar a diferença entre moral fechada ou de grupo e moral aberta ou uni-

versal. Kant, pois, sairá vencedor.

Mas como exprimiremos as regras de moral, se elas são apenas imperati-

vos da razão, situados fora do plano do conhecimento, que pertence ao intelecto?

Kant resolve o problema sem dificuldades, pois esses imperativos agem na condu-

ta e portanto operam no plano da experiência. Através da conduta, que é fenomê-

nica, podemos traçar as regras da moral, que são expressas numa tríplice formula-

ção do imperativo categórico, e que podemos traduzir assim:

Age sempre de tal maneira que a norma da tua conduta possa ser trans-

formada em regra universal.

Age sempre encarando a Humanidade como um fim, e nunca como um

meio, tanto na tua pessoa como na dos outros.

Age como um ser autônomo, como um ser racional que é expressão indivi-

dual do humano universal, norma de si mesmo.

A autonomia do ser, ressaltada nesta última formulação, revela ao mesmo

tempo a responsabilidade e a dignidade do homem. Kant explica que a vontade é

livre e autônoma, aceitando as leis que impõe a si mesma, de acordo com a idéia

do Bem. Como se vê, voltamos a Platão, embora de maneira kantiana. É a idéia do

Bem, não o bem individual ou convencional, que dirige a vontade. Aliás, neste

ponto, encontramos um misto platônico-aristotélico, pois a idéia do Bem age so-

bre a vontade como o Deus de Aristóteles, por simples atração.

Mas o importante é que a partir do imperativo categórico somos obrigados,

por necessidade lógica, a admitir toda a Metafísica (Ramo da Filosofia que investiga as

causas primeiras e os primeiros princípios do ser). Porque não podemos admitir a autono-

mia de um ser, atraído pela idéia do Bem, e que ao mesmo tempo seja perecível.

Essa própria atração implica um desígnio de realização, que a morte frustraria. Por

outro lado, a liberdade se impõe como condição da própria realização moral. E a

existência de Deus se torna tão necessária, nesse universo moral revelado pelo es-

tudo da razão prática, como o Bem Supremo para Platão e Aristóteles.

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Deus, afinal, é a norma suprema, o modelo a que o ser humano aspira, e ao

mesmo tempo a garantia de sua realização moral. O sistema ético de Kant, expos-

to nos Fundamentos da Metafísica dos Costumes, completa assim a Crítica da

Razão Prática, e através dele nos reintegramos na tradição filosófica, mas de ma-

neira nova, com inteira reconstrução de suas bases metafísicas.

A conclusão da Filosofia Crítica nos é dada na Crítica do Juízo, publicada

em 1790, dois anos após a publicação da Crítica da Razão Prática e nove anos

após o lançamento da Crítica da Razão Pura. O próprio Kant, numa carta a Rei-

nhold, esclarece que nesse último livro do seu sistema consegue completá-lo, des-

cobrindo “uma outra espécie de princípios a priori, diversos dos precedentes”. E

acrescenta:

Porque as faculdades do espírito são três: a cognitiva, o sentimento de

prazer e desprazer, e a volitiva. Os princípios a priori da primeira eu os encontrei

na crítica da razão pura (teorética), e os da terceira, na crítica da razão prática.

Eu procurava também os da segunda, e embora a princípio considerasse impossí-

vel encontrá-los, o procedimento sistemático, que me levara a descobrir no espí-

rito humano as três faculdades referidas, colocou-me sobre essa via. Assim, admi-

to agora três partes na Filosofia, tendo cada uma os seus próprios princípios a

priori, que podemos especificar, determinando com certeza os limites do conhe-

cimento possível, da seguinte maneira: Filosofia Teorética, Teleologia e Filosofia

Prática, das quais a segunda é por certo a mais pobre de fundamentos a priori.

A Crítica do Juízo, portanto, que aparece na ordem prática da construção

do sistema como o seu acabamento, na verdade representa o seu centro, ou seja,

teoricamente está situada entre as duas primeiras críticas. Se a primeira resolvia o

problema dos conhecimentos a priori, e a segunda a dos desejos a priori, a tercei-

ra, que teoricamente será a segunda, vai tratar dos sentimentos a priori. Mas, ao

tratar dessa nova série de princípios apriorísticos, Kant não apenas descobre uma

nova região da mente, como também encontra a solução desejada para o problema

do dualismo do seu sistema.

A Filosofia Crítica não deixará para os pósteros, como aconteceu com o

Cartesianismo, a unificação das suas substâncias. O mundo racional e o mundo

sensível, que se mostraram irredutivelmente separados – a razão percebendo idéi-

as e o intelecto percebendo sensações e formulando conceitos – mostram-se, en-

tretanto, unidos na ação, na conduta humana. Kant havia encontrado uma solução

provisória, que lembra a moral provisória de Descartes, subordinando um mundo

ao outro. Mas é na Crítica do Juízo que ele vai encontrar a solução definitiva.

O juízo é o nexo natural entre as categorias e as representações sensíveis, a

relação natural entre a razão e o intelecto. Não se trata, pois, de uma invenção ar-

bitrária, mas do encontro, da descoberta mesma do nexo, do ponto de unificação

do universo kantiano. Na terceira parte da introdução à Crítica do Juízo, Kant ex-

plica esse problema. Depois de mostrar que a Natureza é submetida à legislação

do intelecto, enquanto o mundo racional ou das coisas em si à legislação da ra-

zão, acentua:

Mas na família das faculdades cognitivas superiores existe ainda um ter-

mo médio, entre o intelecto e a razão. Esse termo médio é o Juízo, do qual pode-

mos presumir, por analogia, que possua também, senão a sua própria legislação,

pelo menos um princípio próprio, que age segundo as leis, e que de qualquer ma-

neira seria um princípio a priori puramente subjetivo. Um princípio que, embora

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não tivesse domínio sobre nenhum campo objetivo, poderia entretanto ter algum

território próprio, constituído de tal maneira que apenas esse princípio fosse vá-

lido nele.

Encontramos ainda em Kant algumas expressões estranhas, que devem ser

explicadas. Há um momento em que a Filosofia Crítica se torna Filosofia Trans-

cendental, porque é encarada como a tentativa de transcender o mundo da experi-

ência sensível, para explicar a própria estrutura do espírito e as suas funções. Nas

divisões dessa Filosofia Transcendental encontramos a Estética Transcendental,

que trata das formas primárias de percepção, nas coordenadas intuitivas do espaço

e do tempo; a Lógica Transcendental, que estuda as formas do pensamento em si,

isoladas do mundo sensível; a Analítica Transcendental, parte da Lógica, que es-

tuda os componentes a priori dos conceitos, ou seja, as formas mentais sem as

quais as sensações “seriam cegas”, na expressão de Kant, ou não teriam sentido; e

a Dialética Transcendental, também parte da Lógica, que investiga os motivos da

ilusão pela qual a razão pura acredita poder tratar dos problemas transcendentes a

ela própria.

Temos assim uma visão mais ou menos geral, ou melhor, generalizada, do

pensamento de Kant. Muitos o acusaram de haver cometido crimes que nunca lhe

passaram pela mente: Hein o apontou como assassino de Deus; muitos teólogos o

condenaram como instrumento do Diabo; Frederico da Prússia o proibiu de conti-

nuar “solapando e destruindo doutrinas fundamentais” do Cristianismo, e mais

tarde Lenine o acusou de tentar conciliar materialismo e idealismo. Não obstante,

Engels reconheceu-lhe o mérito de “abrir a primeira brecha na metafísica dos sé-

culos XVII e XVIII”, e foi dele que nasceram a dialética hegeliana e a dialética

marxista, por mais que os marxistas o reneguem, como ideólogo burguês e incon-

seqüente.

Kant realizou sozinho uma obra gigantesca, resolvendo contradições que

pareciam insanáveis na filosofia do seu tempo. As contradições que, em geral, são

apontadas no seu sistema, decorrem da incompreensão dos comentadores. Esse

pequeno e metódico anjo prussiano, que nasceu do sentimentalismo pietista, sal-

vou o mundo do caos do Ceticismo, não por um passe de mágica, mas pelo poder

penetrante da cogitação filosófica. E não tentou conciliações impossíveis, nem ar-

ranjos arbitrários ou soluções circunstanciais, mas descobriu os nexos necessários,

entre as partes aparentemente contraditórias da realidade. E realizou, por fim, uma

verdadeira façanha de tipo grego, não filosófica, mas heróica, admiravelmente

homérica, ao ligar o espírito e a matéria por meio apenas do Juízo.

*

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171

Johann Gottlieb Fichte (1762-1814)

O SABER ABSOLUTO DE FICHTE

Livro: História da Filosofia. Os Pensadores

Johann Gottlieb Fichte era considerado pelos contemporâneos um filósofo

difícil, obscuro. Embora não negasse as dificuldades de seu sistema, Fichte sem-

pre reagiu às tentativas de classificá-lo apressada e inadequadamente. Muitos de

seus textos apresentam passagens polêmicas.

Durante sua vida, o filósofo publicou apenas uma parte do que escreveu:

Crítica de Toda Revelação (1792), Contribuição para a Retificação dos Juízos do

Público sobre a Revolução Francesa (1793), Sobre o Conceito da Doutrina-da-

Ciência (1794), Lições sobre o Destino do Sábio (1794), Fundamentos do Direito

Natural (1796) e Sistema da Moral (1798), entre outros.

Alguns de seus textos ficaram famosos pelo impacto provocado em seus

contemporâneos. É o caso de O Fundamento de Nossa Crença em uma Divina

Providência, que lhe valeu a acusação de ateísmo e a perda da cátedra de filosofia

na Universidade de Iena, e dos Discursos à Nação Alemã, motivados pela invasão

napoleônica no inverno de 1807-08. Entusiasta da Revolução Francesa, ele de-

nunciou Napoleão como traidor dos ideais revolucionários de liberdade.

Como outros filósofos alemães do século XVIII, Fichte expôs o seu pen-

samento no magistério universitário – em Iena e, depois, em Berlim. Após sua

morte, ocorrida em 29 de janeiro de 1814, seu filho Immanuel Hermann Fichte,

organizou uma edição completa de suas obras (1845), na qual se destacam as ver-

sões da doutrina-da-ciência.

Fichte se empenhou por “elevar a filosofia à condição de ciência”, como

muitos outros já haviam tentado antes dele. Mas as filosofias que precederam a

doutrina-da-ciência (nome que atribui à filosofia científica para marcar sua dife-

rença) são por ele consideradas, quando muito, apenas esboços preliminares. E,

assim como não é obrigatória a todos os homens a dedicação às ciências, o mesmo

valeria para a filosofia, que requer “uma liberdade de espírito, um talento e uma

dedicação que apenas se encontram em poucos”. O que não quer dizer, evidente-

mente, que todo aquele que “pretende ter uma formação espiritual universal” não

deva saber o que é filosofia, apesar de não tomar parte em suas investigações. Fi-

chte acredita que “todo homem de boa formação deveria no mínimo, saber o que a

filosofia não é, o que ela não visa e o que ela não é capaz de realizar”. Sugere,

portanto, a identificação dos limites da doutrina-da-ciência em relação a outros

domínios.

Embora a doutrina-da-ciência se eleve acima da visão natural das coisas e

do entendimento comum, ela tem sua base firmada no domínio deste último, e

parte sempre dele. É nesse domínio que o homem dotado de instrumentos sensori-

ais sãos adquire uma provisão de conhecimentos, de fatos e de experiências. Tam-

bém é capaz de renovar os dados da percepção imediata livremente, meditar sobre

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eles e, mantendo o diverso da percepção em confronto, procurar as igualdades e as

diferenças dos dados singulares. Basta, portanto, que tenha o entendimento habi-

tual sadio para que seu conhecimento se torne mais claro, determinado e utilizá-

vel. Essa meditação – ou qualquer outra – não faculta, porém, a criação de novos

objetos.

Não temos, portanto, nada de verdadeiro e real, a não ser a experiência,

que é acessível a todos; nada para a vida, a não ser o entendimento comum. “Nada

tem valor e significado incondicionados, a não ser a vida; todo o demais, pensa-

mento, invenção, saber, só tem valor na medida em que, de uma maneira qual-

quer, se refere ao que é vivo, parte dele e visa a refluir para ele.”

A vida nos dá o que é efetivo e não-efetivo. Efetivo é tudo aquilo que nos

arrebata, que nos faz esquecer de nós mesmos em certas determinações. No repre-

sentar, no trazer de novo à consciência algo já vivido, distinguimos o ato de repre-

sentar (efetivo), aquilo que está sendo lembrado. Haveria, portanto, certas deter-

minações primeiras e fundamentais, que experimentamos como efetivas. Mas te-

mos a capacidade de nos desvencilhar dessas determinações e atingir uma forma

superior de vida e de efetividade. Podemos, por exemplo, pensar-nos e captar-nos

como conscientes naquela consciência fundamental. Isso constituiria, para Fichte,

a “segunda potência da vida”, caso se considere a outra, a efetiva, como “primei-

ra”. Seria possível, ainda, distinguir uma “terceira” potência, e assim sucessiva-

mente, até infinito. Mas não seria possível encontrar algo semelhante aquém da

“primeira” sem cair no “reino do não-ser”. É na esfera da primeira potência, como

a esfera das determinações fundamentais de nossa vida, que Fichte vai encontrar o

elo da doutrina-da-ciência (a potência suprema da consciência, o saber do saber)

com aquilo que se convencionou chamar realidade ou experiência.

(...)

*

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173

4 - ROMANTISMO E IDEALISMO

O SENTIMENTO VENCE A RAZÃO

Livro: História da Filosofia. Os Pensadores

Final do século XVIII e início do XIX: à sombra da Aufklärung, desenvol-

ve-se na Alemanha (e em outras regiões da Europa) uma nova forma de sensibili-

dade e de valores artísticos. Surge o romantismo, cuja versão conceitual é o idea-

lismo, a busca filosófica da totalidade.

Tudo começou com o Sturm und Drang, revolução literária que a intelec-

tualidade alemã viveria a partir de 1770, aproximadamente. “E assim, nós, os a-

lemães, ficávamos cada dia mais descontentes. (...) Seguíamos ao acaso mil cami-

nhos desviados e tortuosos, e era assim que se preparava de diversos lados essa

revolução literária da Alemanha (...)”, diz Goethe, que foi, ao lado de Herder, S-

chiller e outros, uma das figuras centrais do movimento.

“Tempestades e ímpeto” é uma das traduções possíveis de Sturm und

Drang – expressão que dá título a uma peça teatral de Maximilian Klinger (1752-

1831), e que passaria a designar esse movimento de jovens poetas alemães. “Pré-

romantismo” é outro nome para classificar a corrente literária, que, para muitos, é

sinônimo de misticismo, de exaltação das forças da natureza e da vida, e de valo-

rização do instinto e do sentimento em detrimento da razão. O Sturm und Drang

seria, então, “irracionalista”, que reage violentamente contra a aridez racionalista

da Aufklärung.

Mas se o Sturm und Drang enaltece o sentimento contra a razão, também a

Aufklärung não deixou de reabilitar a sensibilidade, destinando-lhe um campo

próprio de investigação: a estética. E a crítica de Kant, reorientando a razão para

seu uso prático, não legitima um campo inacessível ao conhecimento? Nesse

campo, que é o da moral e dos fins últimos do homem, o bem é simbolizado, se-

gundo Kant, pelo belo, esse objeto do prazer puro.

Há, então, uma certa afinidade entre a Aufklärung e o Sturm und Drang,

como se as luzes daquela contivessem faces escuras. Fichte escreve a Schiller,

comentando a peça A Filha Natural, de Goethe: “Clara como a luz e, como ela,

insondável, em cada uma de suas partes contraindo-se vivamente em absoluta u-

nidade e ao mesmo tempo espraiando-se pela infinidade, como ela”. Também há,

por isso, uma comunicação entre a Aufklärung e o Sturm und Drang: Lessing e

Winckelmann são influências decisivas para os jovens poetas alemães, e até hoje

hesita-se em classificar personalidades, como Herder, em um ou outro movimen-

to. Ambos florescem quase simultaneamente, como que envoltos em uma mesma

“atmosfera”.

Transformar um povo em nação

A Alemanha, que nessa época ainda não passa de uma idéia, constitui tal

“atmosfera”. Goethe diz “nós, os alemães”, “nossa maneira de sentir”, “nossa na-

tureza própria”, e com isso faz eco, por exemplo, a Lessing, que havia reafirmado

a “força do nosso sentimento” – no caso, contra a influência da dramaturgia fran-

cesa. “Se considerarmos atentamente o que faltava à poesia alemã”, diz também

Goethe, “reconheceremos que era um fundo, e um fundo nacional.”

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174

Buscar o que pode ser considerado peculiar aos alemães, um “fundo na-

cional” para transformar esse povo em nação é o propósito do Sturm und Drang.

Um dos principais precursores dessa busca é Friedrich Gottlieb Klopstock (1724-

1803), autor de A Messíada e Odes, e que descreve em A Batalha de Armínio a lu-

ta desse antigo guerreiro germânico contra os invasores romanos. Do mesmo mo-

do, muitos outros procuram na tradição popular da Alemanha, com seus deuses,

mitos e heróis lendários, o “fundo nacional” para suas obras.

A inspiração na tradição popular tem também uma justificação estética,

formulada por Johann Georg Hamann (1730-1788), conhecido como “o Mago do

Norte”. Para ele, “a poesia é a língua materna do gênero humano”, o que significa

que a linguagem primitiva – da qual a tradição popular é reminiscência – expres-

sava a livre comunhão do homem com as forças vivas e mágicas da natureza, e e-

ra, por isso, bela e autenticamente poética.

A partir dessas considerações, os poetas do Sturm und Drang lêem apaixo-

nadamente Rousseau – não o teórico do Contrato Social, mas o do “bom selva-

gem” ainda não corrompido por convenções da sociedade, livre na sua rudeza de

sentimentos robustos e viris. Também traduzem, adaptam e imitam Shakespeare,

cujas obras lhes parecem um antídoto contra as sufocantes regras das academias.

Mas o grande modelo, revelado principalmente por Winckelmann, é a Grécia An-

tiga, identificada com a “infância da humanidade” e, portanto, com a época poéti-

ca por excelência. Para a geração Sturm und Drang, Roma Antiga apenas imita os

gregos, que – estes sim – realizaram obras plenas de vigor e frescor, livres e since-

ras.

Assim como a Grécia clássica correspondeu à juventude da humanidade, a

Alemanha é uma nação jovem, a ser formada, rebelde e até mesmo rude, mas pu-

ra, autêntica. Numa época em que ela era considerada “bárbara”, sem o “refina-

mento”, o “bom gosto” e a “elegância” da França, esses poetas ostentam orgulho-

samente a sua própria “barbárie”.

Mas o que fazer com essa rebelde irreverência? A Alemanha é apenas uma

região dividida em vários Estados, muitos dos quais governados despoticamente,

sem liberdade de ação. Se houvesse guerras – como iria acontecer com as inva-

sões napoleônicas -, seria possível despertar o guerreiro germânico cantado por

Klopstock, mas na falta delas só resta esse cantar. “Essa atividade”, declararia

Goethe, “que não sabia onde se aplicar, precipitou-se como uma torrente na litera-

tura. Já que não se podia agir, escreveu-se, lutou-se violentamente nos romances e

nos dramas.”

*

Johann Gottfried Herder (1744-1803)

HERDER, À PROCURA DA ALMA ALEMÃ

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“O poeta”, escreve Herder, “é o criador da nação em sua volta.” Ele dá aos

homens “um mundo para ver, e mantém suas almas na mão para conduzi-los a es-

se mundo”. O poeta é o gênio – ideal almejado por artistas e estetas do final do

século XVIII. Kant, por exemplo, em sua Crítica do Juízo, havia definido o gênio

como “talento (dom natural) que dá a regra à arte” e que, por isso não se sujeita a

nenhuma regra que lhe seja exterior; é livre e autônomo em sua capacidade legis-

ladora. Para Herder, porém, gênio não é um indivíduo, mas um povo inteiro.

A poesia está no povo, na sua linguagem espontânea, primitiva. Herder es-

creve, ao imaginar o nascimento da linguagem: “Se as folhas da árvore fazem

descer sobre o pobre solitário sua frescura sussurrante, se o zéfiro geme refres-

cando-lhe as faces, ele tem muito interesse em conhecer esses seres benéficos e

sentir-se-á inclinado a nomeá-los (...). A árvore chamar-se-á o sussurrante; o zéfi-

ro, o fremente; o riacho, o murmurador”. O que é isso senão poesia? O povo é po-

eta, é ele que cria seu mundo, tornando-o nação; o artista é aquele que projeta em

obras o valor dessa criação coletiva.

Por isso, Herder pesquisa, coleta e comenta lendas, mitos, narrativas, can-

ções e versos antigos legados pela tradição popular. Não lhe importa se esse mate-

rial é pouco “refinado”, até mesmo grosseiro, com o emprego de dialetos e termos

considerados obscenos. Seu objetivo é apreender a alma, o gênio de cada povo,

aquilo que faz com que um povo seja o que é.

Mas essa busca pelo povo concreto – contraposto à abstrata “natureza hu-

mana” dos iluministas – também não deixa de ser uma idealização. O que Herder

procura é, em última análise, aquilo que ele pretende que o povo seja. Essa atitude

talvez tenha contribuído para que Herder, como tantos outros, se tornasse vítima

de uma impostura: ele acreditou encontrar em Ossian, um antigo poeta celta, o e-

xemplo do gênio de um povo. Mas Ossian nunca existiu. Foi uma invenção do es-

cocês James Macpherson (1736-1796), que assim forneceu a toda uma geração

exatamente o que esta desejava encontrar: um povo mítico e ideal.

Linguagem, história, Humanität

Johann Gottfried Herder nasce em Mohrungen, pequena cidade da Prússia

Oriental, em 1744. Estuda grego, latim e hebraico, iniciando-se na leitura de auto-

res clássicos e de poetas alemães, como Klopstock e Lessing. Em 1762, passa a

estudar teologia na Universidade de Königsberg, onde assiste, entusiasmado, às

aulas de Kant – o que, porém, não o impediria mais tarde de divergir do antigo

mestre em Uma Metacrítica da Crítica da Razão Pura (1799). De fato, mais deci-

siva para a formação do pensamento de Herder foi sua amizade com Hamann, que

o levou a abordar a linguagem, além de influenciá-lo na elaboração da sua con-

cepção de história – a de que os aspectos não-racionais também determinam a vi-

da dos homens e dos povos.

Em 1764, Herder assume um posto na escola da catedral da cidade de Ri-

ga. Cinco anos depois, empreende uma longa viagem a Paris, de que resultaria um

de seus primeiros escritos: Diário de Minha Viagem. De volta à Alemanha, em

1770, conhece Lessing e Goethe. Em 1776, por intermédio deste e do poeta Chris-

toph Martin Wieland (1733-1813), tradutor de Shakespeare, obtém o cargo de su-

perintendente da Igreja Luterana na cidade de Weimar. Ali morre em 1803.

Sua obra é marcada pela dispersão de temas, apresentados de modo frag-

mentário. Seu primeiro escrito, de 1767, chama-se, por sinal, Sobre a Nova Lite-

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ratura Alemã: Fragmentos, em que se destaca a questão da linguagem – “instru-

mento, receptáculo, substância da literatura” -, tema que seria retomado em En-

saio sobre a Origem da Linguagem, de 1772. Com essas obras, Herder faz da lin-

guagem um tema filosófico, e nisso concorda com seu amigo Hamann, para quem

“a linguagem é o único órgão e critério da razão”.

Segundo Herder, a linguagem não é apenas um instrumento da comunica-

ção, mas também o próprio pensamento em ato. O conhecimento não se separa da

forma lingüística em que se expressa, e por isso a linguagem também constitui o

limite, ainda que móvel, do pensamento. Além disso, para Herder, a linguagem

não se organiza apenas segundo princípios racionais. As palavras irradiam a capa-

cidade de comunicação para os domínios mais amplos da vida e das forças que a

integram, modificam-na e a expressam.

Herder recusa tanto o ponto de vista teológico, segundo o qual a lingua-

gem é uma criação de Deus, como a interpretação naturalista de Condillac, que

considerava a linguagem o resultado da imitação dos sons dos animais. Estes não

podem jamais desenvolver o complexo sistema de comunicação e de significação,

que é um produto do progresso histórico. Precisamente porque os homens vivem

no universo histórico, e não no meramente natural, é preciso algo mais do que o

instinto animal. O homem, rodeado de objetos históricos, que são a sua própria

criação, necessita da inteligência e da reflexão, sem as quais não haveria a percep-

ção nem o desdobramento desse mesmo mundo histórico.

Desse modo, já nas primeiras línguas, não há apenas nomes que expressam

determinados conceitos, mas também verbos, que manifestam a ação do homem

sobre o mundo natural, transformando-o em cultura. Essa é a razão, segundo Her-

der, pela qual a linguagem se constitui não apenas como manifestação das formas

que refletem necessidades e desejos dos homens na luta para a criação de seu es-

paço próprio, mas também como um âmbito em que se depositam as experiências

humanas, conferindo homogeneidade e memória a cada povo.

A investigação da linguagem proposta por Herder é, então, inseparável de

uma concepção de história, exposta em obras como Outra Filosofia da História

para a Educação da Humanidade (1774) e, principalmente, Idéias sobre uma Fi-

losofia da História da Humanidade (1784-91). Herder critica os pensadores ilu-

ministas, que conceberam a história como progresso de um homem abstrato, sem-

pre dotado de uma mesma natureza.

Contra tal abstração, nas Cartas para a Promoção da Humanidade (1793-

97), Herder afirma que as palavras “homem” (em alemão, Mensch) e “humanida-

de” (Menschheit) tornaram-se vazias de sentido e que seria preciso substituí-las

por uma nova: Humanität. Esse neologismo traduz-se também como “humanida-

de”, mas não no sentido de Menschheit. Para Herder, Humanität designa aquilo

que é exclusivo ao homem, mas que deve ser modelado e desenvolvido, sem o que

apenas restariam a animalidade e a brutalidade. Humanität é a expressão concreta

da história humana, que se particulariza no tempo por ações e impulsos. Do mes-

mo modo, a história, define Herder, é “um saber do que existe, não daquilo que,

de acordo com certas intenções profundas e misteriosas do destino, poderia exis-

tir”.

A história, nessa medida, constitui-se desses esforços dos homens que, em

cada época, em cada lugar, e de modo concreto, buscam tornar-se Humanität, ma-

nifestando-se como povos particulares. Não se trata do progresso do homem em

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geral, mas da sucessão dos povos, cada qual com sua peculiaridade e força. Ao

progredir e atingir a plenitude, eles também entram em declínio. O tempo impede

a eternização da plenitude.

*

Johann Wofgang von Goethe (1749-1832)

GOETHE, A DEMONÍACA FORÇA DA VIDA

Fausto, já velho, reconhece que todos os conhecimentos que havia acumu-

lado foram em vão. Invoca o diabo Mefistófeles e com ele sela um pacto: vende-

lhe a alma em troca de rejuvenescimento, e com isso viola o mandamento divino.

Mas, por fim, obtém a redenção, graças a seus próprios esforços e méritos.

Nesse enredo de Fausto, uma das principais obras de Goethe, o persona-

gem principal é como o Prometeu da mitologia grega, que se rebela contra os deu-

ses, mas como diz Goethe, “pode criar e produzir a despeito de seres superiores

(...)”, pois manifesta “essa resistência pacífica, plástica, paciente se fosse necessá-

rio, que reconhece a potência superior, mas desejaria igualar-se a ela”. Fausto ou

Prometeu já não são como Werther – outro personagem célebre de Goethe -, que

se desespera e se suicida por um amor impossível.

Sofrimentos do Jovem Werther, romance que Goethe escreve ainda jovem,

é uma das obras representativas do Sturm und Drang e da revolta desesperada, ju-

venil, do movimento – conta-se que a leitura do texto teria ocasionado muitos sui-

cídios. Goethe, porém, logo superaria essa “época literária”, como ele mesmo diz,

“de tão glorioso e tão deplorável renome, na qual uma multidão de moços talento-

sos se exibiram com todo o ardor e toda a presunção dessa idade, e, pelo emprego

de suas forças, causaram muito prazer e fizeram grande bem, e, pelo abuso, mui-

tos sofrimentos e muito mal. (...)”. Ele também se afasta do que é genuinamente

germânico para proclamar a retomada do ideal clássico de “humanidade univer-

sal”, cuja expressão seria a Weltliteratur (literatura universal).

Goethe confessava não possuir um “órgão apropriado para a filosofia”.

Mas esse reconhecimento se refere à incapacidade e ao desagrado que ele nutria

por reflexões e exposições sistemáticas, abstratas. Na verdade, sua obra oferece

em muitas ocasiões a síntese entre a poesia e a filosofia, na qual o conteúdo filo-

sófico não se isola da forma poética em que se expõe, do mesmo modo como essa

forma deve em grande medida sua força à significação conceitual. Goethe é um

exemplo de “poeta-filósofo”, cujo pensamento não se expressa em conceitos abs-

tratos, mas em forma imediata, intuitiva, sensorial, reivindicando do leitor uma

disposição similar.

Johann Wolfgang von Goethe nasce em Frankfurt am Main, em 1749. De

1765 a 1767 realiza estudos jurídicos na Universidade de Leipzig e, depois, em

Estrasburgo, onde conhece Herder. A influência deste foi decisiva: Goethe afasta-

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se do modelo francês de literatura e passa a partilhar das inquietações dos jovens

poetas alemães – nasce o Sturm und Drang. Nessa época, já de volta a Frankfurt,

ele formula sua concepção da humanidade e do universo. Também escreve obras

como Prometeu, Ganimedes e Urfaust, esboço do que seria Fausto.

Em 1775, transfere-se para Weimar, e chega a ocupar o posto de ministro

de Estado. Ali, combina as tarefas administrativas na corte de Carlos Augusto

com a atividade literária, além de realizar estudos científicos nas mais variadas á-

reas: mineralogia, geologia, botânica, zoologia e anatomia. Nesses anos, o entusi-

asmo do Sturm und Drang entra em declínio, e Goethe assume novas posições li-

terárias. Seu ideal clássico seria reforçado durante a viagem à Itália, entre 1786 e

1788. Tomado de um novo impulso para a criação literária, ele escreve obras co-

mo Ifigênia em Táuride e Torquato Tasso, além de tratados científicos como A

Metamorfose das Plantas.

Em 1794, conhece Schiller, com quem estabelece uma fecunda amizade.

Juntos escrevem Xenien. Schiller o leva a ler Kant, além de convencê-lo a retomar

projetos literários engavetados. Assim, em 1796, apareceria Os Anjos de Aprendi-

zagem de Wilhelm Meister, e em 1808 a primeira parte de Fausto. Seguiram-se

outras, como Afinidades Eletivas (1809), a autobiografia Poesia e Verdade (1811-

31) e Os Anos de Peregrinação de Wilhelm Meister (1821). Goethe morre em

1832. No ano seguinte, seria publicada a segunda parte de Fausto.

Só o universo vence o homem

Goethe nunca esteve em completa sintonia com as Luzes. De modo sinto-

mático, é um ferrenho crítico de Newton, modelo do Iluminismo. Para Goethe, a

luz branca é algo mais puro do que a mera soma de todas as cores, e a escuridão é

o oponente da luz, não simplesmente a sua ausência. As cores, então, seriam o re-

sultado dessa luta entre a luz e a escuridão, o que, para Goethe, é perfeitamente

verificável pela visão.

Assim também é a natureza, não a que se oculta por trás das equações ma-

temáticas, mas a que se dá à visão. Para Goethe, a visão e a comparação dos dados

observáveis permitem concluir intuitivamente que a natureza se apresenta como

uma forma viva, cujas partes convergem para o todo. Ele visualiza nos seres exis-

tentes as formas primitivas (ou protoformas) que os engendram, impulsionadas

por um dinamismo próprio. Tal força criadora manifesta-se como movimentos

opostos de contração e expansão, a primeira fixando as formas em tipos, e a se-

gunda ultrapassando-lhes os limites. Desse processo, que é o de formação e de

transformação (ou metamorfose), resultam a diversidade e a unidade da natureza.

Em tal unidade da diversidade e diversidade na unidade, cada parte estabe-

lece com outra relações mútuas que não são meramente de ordem mecânica de

causa e efeito. São relações de simpatia e antipatia, que Goethe, um aficionado da

magia, da astrologia e da alquimia, denomina “afinidades eletivas” - expressão

que dá título a um de seus romances. “Eu buscava”, diz ele, relatando sua própria

experiência, “libertar-me interiormente de toda influência estranha, observar o

mundo exterior com amor e deixar que todos os seres agissem sobre mim, cada

um a seu modo (...). Daí resultou um maravilhoso parentesco com cada objeto da

natureza e um acordo íntimo, uma harmonia tão perfeita com o conjunto, que toda

alteração (...) me afetava profundamente.”

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Nessa concepção, que mescla aspectos do pensamento de Espinosa, Leib-

niz, Kant (da Crítica do Juízo) e outros, a relação entre os opostos é fundamental.

Luz e escuridão, contração e expansão, e, na ação moral do homem, o bem e o

mal – esses opostos, como os dois movimentos do coração, constituem a força di-

nâmica da vida. Tal força, essa “coisa que não se manifesta senão por contradi-

ção”, é o que Goethe denomina demoníaco. “Essa coisa”, prossegue Goethe, “não

era divina, visto que parecia irracional; não era humana, uma vez que não possuía

inteligência; nem diabólica, porque era benéfica; nem angélica, pois que muitas

vezes se manifestava como maldosa. Assemelhava-se ao acaso por não mostrar

nenhuma coerência, e tinha um certo ar de Providência por denotar um encadea-

mento.”

O demoníaco também se manifesta nos homens, dotados de uma força ar-

rebatadora. “Nada pode vencê-los senão o próprio universo, com o qual travaram

a luta.” A eles se aplica, segundo Goethe, o dito latino Nemo contra Deum nisi

Deus ipse (“Ninguém contra Deus a não ser o próprio Deus”). Diante dessa força

que dirige o universo, e por isso mesmo temível, Goethe confessa: “Procurei fur-

tar-me a esse ser (...) refugiando-me, segundo o meu costume, por trás de uma fi-

gura” – Fausto, Prometeu e tantos outros personagens. Mas esse ser temível não

seria ele próprio? (Nota de José Fleurí: Goethe descreve um homem extraordinário, que se

nega a venerar deuses ou estar sob submissão de alguém. A partir de então Prometeu ficou conhe-

cido como uma importante figura no Romantismo. Pela negação à submissão divina, e por criar

um personagem pronto para viver em liberdade sem nenhuma repressão, Goethe criou uma figura

compatível com a ideologia de Karl Marx, que passou a considerar Prometeu como seu herói favo-

rito. Além dos românticos, Prometeu também era um homem modelo de Marx).

*

Johann Christoph von Friedrich von Schiller (1759-1805)

SCHILLER: DA ARTE À LIBERDADE

Johann Chistoph von Friedrich von Schiller nasce em Marbach (Württem-

berg), em 1759. A partir de 1773, estuda na escola militar do Duque Carl-Eugen,

famosa por sua disciplina férrea. Nesse período escreve a peça Os Bandidos – um

manifesto pela liberdade no mais puro espírito de Sturm und Drang -, que, ence-

nada em 1782, desagradaria ao duque. Schiller foge de Württemberg e, de cidade

em cidade, prossegue suas atividades literárias, escrevendo obras como Intriga e

Amor (1784) e Dom Carlos (1787).

Em 1787, instala-se em Weimar, onde se torna amigo de Goethe. Entre

1789 e 1799, vive em Iena, assumindo o posto de professor de história da univer-

sidade local. Depois, volta a residir em Weimar. Morre em 1805, deixando várias

obras, como Maria Stuart (1800), a trilogia Wallenstein (1796-99) e Guilherme

Tell (1804), além de tratados como Cartas sobre a Educação Estética do Homem

(1795).

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Schiller, como tantos outros de sua geração, foi um entusiasta da Revolu-

ção Francesa. Mas a realização da liberdade que ela prometia degenerou-se no

Terror, e Schiller abandona as ilusões revolucionárias. Para ele, os homens ainda

não estavam preparados para a liberdade. Na Alemanha – a comparação é inevitá-

vel -, a situação é bem pior: o povo é rude e grosseiro, e a aristocracia, mesquinha

e sem nenhuma grandeza. Nessa situação, uma revolução na Alemanha é impossí-

vel e mesmo indesejável, pois só redundaria em desordens.

É preciso então educar o homem para a liberdade – e essa é a tarefa da ar-

te. Schiller, seguindo Kant, concebe o homem como participante tanto do mundo

sensível como do inteligível e, portanto, como dominado por paixões, desejos e

inclinações materiais, mas também dotado de autonomia da vontade pura, que só

obedece á lei moral e formal. Sensível e inteligível, matéria e forma, necessidade

e forma – entre esses opostos é possível, segundo Schiller, um jogo, de caráter lú-

dico, que os reconcilie. O objeto desse jogo é o belo, que dá ao mundo sensível a

forma da moralidade. A arte, nessa medida, prenuncia a possibilidade da realiza-

ção da liberdade no mundo da necessidade, sensível.

Na Grécia Antiga, essa harmonia entre os opostos – em suma, entre o ho-

mem e o mundo – manifestava-se imediata e espontaneamente, ou, na terminolo-

gia de Schiller, de modo ingênuo. Era uma época feliz, em que o homem convivia

com os deuses e a natureza, sem obedecer cegamente às paixões ou à necessidade

das leis naturais, nem simplesmente à sua vontade, mas num jogo de autêntica li-

berdade.

Esse tempo, porém, se perdeu. A harmonia entre o homem e o mundo se

rompeu; os próprios homens se recolheram em suas individualidades. A unidade

já não se dá imediatamente, mas de modo mediato, isto é, mediante o trabalho re-

flexivo da consciência e a expressão estética. Para Schiller, assim é sua época, di-

lacerada. A arte deve criticar essa situação. O modelo é o mundo grego, cuja in-

genuidade, porém, não é mais possível recuperar. Uma nova harmonia deve ser

conquistada – e expressá-la é a tarefa educativa da arte. A arte, que não pode mais

ser ingênua, deve ser o que Schiller denomina sentimental. Outros dariam à pro-

posta o nome de romântico.

*

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FRAGMENTOS DO ABSOLUTO

“Imenso e inesgotável é o mundo da Poesia, como o reino da viva natureza

em animais, plantas e criações de toda espécie, forma e cor. (...) O ponto de vista

de cada um a seu respeito será verdadeiro e bom, na medida em que também seja,

ele, Poesia. Como porém sua poesia é limitada, justamente porque é sua, do mes-

mo modo a perspectiva que dela possui não pode suportar, sem dúvida porque ele

sabe, sem saber, que nenhum homem é apenas um homem, mas pode e deve ser

também, ao mesmo tempo, verdadeira e efetivamente toda a humanidade. Por is-

so, o homem, seguro de que se irá reencontrar, volta-se sempre, de novo, para fora

de si mesmo, para obter o complemento de sua mais funda natureza nas profunde-

zas de outrem. O jogo do partilhar e do aproximar-se é a ocupação e a força da vi-

da, uma vez que a completude só existe na morte.”

Este trecho de Diálogo sobre a Poesia, de Friedrich Schlegel (1772-1829),

é quase um manifesto do Romantismo. Foi publicado em 1800, na revista Athena-

eum – porta-voz desse movimento literário -, editada em Iena pelo autor do texto e

por seu irmão August Wilhelm (1767-1845). Em torno desses irmãos e da revista

reuniram-se vários jovens, entre eles o poeta Friedrich von Hardenberg (1772-

1801), mais conhecido sob o pseudônimo de Novalis, e o filósofo Friedrich Schel-

ling (1775-1854). O grupo de Iena dispersou-se logo após a morte de Novalis,

mas o Romantismo contaminaria outras cidades alemãs – haveria ainda os grupos

de Berlim e de Heidelberg -, ao mesmo tempo que surgiam manifestações literá-

rias similares em outras regiões da Europa, principalmente na Inglaterra e na

França.

O que é Romantismo? Na origem, “romântico” referia-se à paisagem e aos

locais que ambientavam os romances. Goethe empregava o termo nesse sentido e,

no entanto, cada vez mais apegado a seu peculiar classicismo, logo passaria a

combater o movimento que crescia sob esse nome, caracterizando-o como “en-

fermo”. Mas muitos poetas tidos como românticos também apresentam aspectos

classicistas, o que dificulta a classificação.

Muitos deles, além disso, consideram-se herdeiros de Werther, o persona-

gem suicida de Goethe: “O ato filosófico genuíno”, escreve Novalis, “é [o] suicí-

dio; tal é o real começo de toda filosofia, nessa direção vai todo o carecimento do

novato filosófico, e somente esse ato corresponde a todas as condições e caracte-

rísticas da ação transcendental”. A associação inusitada entre o “transcendental” e

o suicídio revela não apenas a influência de Goethe, mas também a retomada, pe-

los românticos, de temas da Aufklärung, mesmo que de um modo já quase irreco-

nhecível e fragmentário.

O título de um texto de Novalis é, por sinal, Fragmentos ou Tarefas de

Pensamento. Para ele, essa é a forma que revela aquilo que ainda não pode ser di-

to por inteiro: “Como fragmento”, diz, “o imperfeito aparece ainda do modo mais

suportável (...) e no entanto tem alguns pontos de vista notáveis para dar”. O que

não pode ser dito ainda – e que talvez nunca o seja – é a harmonia e a unidade en-

tre o mundo sensível e o mundo inteligível, a necessidade da natureza e a liberda-

de do homem. Mas essa reconciliação num todo – a totalidade, o infinito, o abso-

luto, o que Schlegel denomina Poesia – é um ideal cuja realização é sempre pos-

tergada. Como poderia ser diferente se o homem é limitado e finito?

Por isso, fragmentos: não há outro meio de fazer vislumbrar a totalidade na

própria finitude. É exatamente nessas “frases [que] são átomos”, como disse Frie-

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drich Schlegel, que fulgura o absoluto. “Um fragmento”, escreve esse mesmo au-

tor, “tem de ser igual a uma pequena obra de arte, totalmente separado do mundo

circundante e perfeito em si mesmo como um porco-espinho.” Não por acaso, esse

romantismo praticamente só produz obras inacabadas.

A reflexão pela linguagem

Essa busca fragmentária e irrealizada do absoluto é também a busca da

forma de expressá-lo, pois é na expressão que ele se mostra. Nesse sentido, Her-

der já apontava que pensar e falar não se separam, e tal concepção seria retomada

por Wilhelm von Humboldt (1767-1835), amigo de Goethe e Schiller e fundador,

em 1809, da Universidade de Berlim. Para Humboldt, a linguagem é o que distin-

gue o ser humano de outros seres da natureza: há, no homem, uma forma inerente

de linguagem, uma atitude espiritual em relação a si mesmo e ao mundo, que se

manifesta e se realiza na história como línguas particulares de cada povo concreto

e real.

Na linguagem insinua-se o absoluto. Por isso, a linguagem deve ser depu-

rada de tudo o que é pessoal e subjetivo. Os românticos ingleses, entre eles Willi-

am Wordsworth (1770-1850) e Samuel Taylor Coleridge (1772-1834), procuram

uma linguagem popular, que possa ser compartilhada por todos. John Keats

(1795-1821), representante da “segunda geração romântica”, vai além e propõe a

total supressão da subjetividade e da identidade do próprio poeta. “Um poeta”, es-

creve, “é a coisa mais impoética de tudo o que existe, porque não tem identidade:

está continuamente substituindo e recheando algum outro corpo.”

O Romantismo, no entanto, é geralmente tido como “emocional”, “senti-

mental” e “subjetivo”, exalando fantasias mórbidas de castelos medievais mal-

assombrados, paisagens lúgubres, sombras, ruína e morte. Mas “sentimental” sig-

nificava para Schiller o ato da reflexão pelo qual o sujeito, ao voltar-se para si

mesmo, se reconcilia com a harmonia da totalidade. Nesse sentido, o “sentimen-

tal” do Romantismo é, ao menos em seu propósito inicial, a busca da reflexão pela

linguagem, para fazer aparecer uma realidade que excede a própria realidade mor-

na do cotidiano. O fantástico, o fantasmagórico, a morte – “uma vitória sobre si”,

uma “auto-superação”, no dizer de Novalis – são imagens dessa reflexão.

Mas, na medida em que o absoluto se refugia na linguagem, como não

pensar que ele não passa de uma invenção de quem fala, do sujeito, ou, antes, da

imposição da própria linguagem ao sujeito da fala? Como ignorar que o absoluto

na linguagem é o absoluto da linguagem e que ela é o próprio sujeito? “O que se

passa com o falar e escrever”, confessa Novalis, “é propriamente uma coisa malu-

ca; o verdadeiro diálogo é um mero jogo de palavras. Só é de admirar o ridículo

erro: que as pessoas julguem falar em intenção das coisas (...) Mas, e se eu fosse

obrigado a falar? E se esse impulso a falar fosse o sinal da instigação da lingua-

gem, da eficácia da linguagem em mim? (...).”

A filosofia encontra a poesia

Johann Christian Friedrich Hölderlin

(1770-1843)

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Clássico ou romântico? Enquadrar Hölderlin nesses rótulos é correr o risco

de empobrecer o pensamento deste poeta-filósofo, cujas idéias se expressam me-

lhor em poesia do que em cerrados argumentos lógicos e sistemáticos.

Johann Christian Friedrich Hölderlin nasceu em 1770. Freqüentou os se-

minários protestantes de Denkendorf e de Mulbronn, ingressando, em 1788, no de

Tübingen, onde se tornaria amigo de Schelling e de Hegel. Ali, estudou Kant e

Rousseau, escreveu seus primeiros Hinos e apresentou, para obter o título de dou-

tor, uma breve História das Belas-Artes na Grécia. Nesta obra é visível a influên-

cia do clima intelectual predominante naquele seminário, então marcado pelo ide-

al clássico, pelas leituras de Platão e Kant e pela obra de Espinosa.

Em 1793, Hölderlin abandonou a carreira eclesiástica e, recomendado por

Schiller, tornou-se preceptor em uma cidade próxima a Iena. Logo transferiu-se

para Weimar, onde conheceu Herder e Goethe, e, depois, em Iena, assistiu às au-

las de Fichte. Em 1796, passou a trabalhar como preceptor na família do banquei-

ro Gontard, em Frankfurt am Main, onde reencontrou Hegel. Nessa época, conclu-

iu o romance Hyperion ou o Eremita na Grécia e começou a escrever o drama A

Morte de Empédocles. Mas, em 1798, teve de abandonar a cidade, por ter sido

descoberta sua paixão por Suzanne, esposa de Gontard. Mesmo longe, ele iria lhe

escrever numerosas cartas, idealizando-a como “Diotima” [importante persona-

gem do diálogo O Banquete, de Platão, e que ajuda Sócrates a entender o amor]

em seus poemas.

Desde então, Hölderlin levou uma vida errante, viajando por várias cida-

des alemãs, além de Suíça e França. Por volta de 1803, começou a apresentar sin-

tomas de transtornos psíquicos e alucinações. Nos momentos de lucidez, trabalhou

na tradução de obras de Sófocles e na preparação de um volume de poemas sob o

título Cantos Noturnos; também escreveu Patmos, O Pão e o Vinho e O Arquipé-

lago. Em 1806, foi internado em uma clínica, e, a partir do ano seguinte, passou a

viver como pensionista na casa de um carpinteiro, em Tübingen. Ali permaneceu

até a morte, em 1843.

Para Hölderlin, o eterno encarna-se no tempo, mas a temporalidade limita,

e produz a dor e o dilaceramento. Como manifestação da physis, dessa natureza

criadora, o homem é infinito, mas individualizado, é finito e ilimitado por outras

existências. Como então buscar no temporal e no finito a conexão com o eterno e

o infinito? No entanto, o homem tem o anseio da infinitude e a força para se unir à

totalidade. Hölderlin também conhece o universo de maneira global e harmônica,

mas, antes de mais nada, considera-o belo. Por isso, ele busca a fórmula do Uno-

Todo – a unidade do cosmos com a divindade e o homem, o que ele denomina

Vereinigungsphilosophie (“filosofia unitária”, numa tradução aproximada) – na

categoria estética da beleza, que deve supor e implicar a liberdade e a moralidade.

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Nem a razão nem o entendimento podem fundir as dissonâncias entre o eu

e o mundo objetivo, entre o eu limitado e os ilimitados anseios da totalidade. Se

em algum lugar se pode encontrar a união, tal lugar é a Beleza: o Uno é o Belo

que se manifesta como um todo na variedade das diferenças. Tal Uno-Totalidade

se vive e se apreende na existência estética. Se a filosofia pode compreendê-la, is-

so só se dá depois, como interpretação dessa experiência. Por isso, diz Hölderlin,

“a poesia é o princípio e o fim da filosofia”.

Essa experiência estética existiu na Grécia Antiga – e Hölderlin, seguindo

Winckelmann, considera que a arte e a filosofia só poderiam ter nascido entre os

gregos. Mas, para ele, o que até então foi dito a respeito é apenas uma solução te-

órica. É preciso ir além, dar plasticidade e ação á solução do Uno-Todo mediante

a Beleza, como fizeram os gregos. Profundo conhecedor do mundo grego e do he-

rói trágico, é a isso que Hölderlin se propõe na tragédia A Morte de Empédocles.

O trágico é a vida cindida do eu. E em Heráclito e Empédocles, antigos fi-

lósofos pré-socráticos, Hölderlin identifica a concepção de que a vida é luta contí-

nua. Mas com eles também aprende que há harmonia na luta, e com Timeu, de

Platão, que as almas individuais estão em conexão com a alma do mundo. Então,

a única maneira de se assemelhar à suprema Beleza do ato criador dos deuses en-

contra-se em atingir a fusão com a natureza mediante o ato da vontade do eu. De

acordo com a lenda, assim fez Empédocles: atirou-se ao vulcão Etna para mistu-

rar-se ao fogo e, desse modo, elevar-se aos deuses.

*

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Friedrich Wilhelm Joseph von Schelling

(1775-1854)

SCHELLING E A FILOSOFIA DA IDENTIDADE

O pensamento de Schelling é um permanente recomeçar, uma busca obsti-

nada de apreender e expor o absoluto. É como se ele assumisse a instabilidade da

própria filosofia, que – como apontaria Heidegger em nossos dias – vê cumprido

seu objetivo exatamente “quando seu final vem a ser e permanece o que era seu

início: a pergunta”.

Friedrich Wilhelm Joseph von Schelling nasceu em Leonberg, Württem-

berg, em 1775. Aos 15 anos de idade foi admitido no seminário protestante de

Tübingen, onde conviveu com Hölderlin e Hegel. Inspirados pela Revolução

Francesa, os três procuraram constituir uma filosofia da liberdade, cujo manifesto

seria O Mais Antigo Programa Sistemático do Idealismo Alemão, escrito por um

deles. Mas, para Schelling, essa filosofia já se encontra esboçada em Fichte e na

sua exaltação da espontaneidade incondicionada e livre do eu – e para mostrá-lo

escreve Do Eu como Princípio da Filosofia (1795).

Para Schelling, o eu formulado por Fichte poderia ser o absoluto, pois na

egoidade está compreendido o não-eu, o mundo. Mas a posição de Fichte é unila-

teral: não leva em conta o que a ciência da época experimenta nas áreas de quími-

ca, eletricidade e magnetismo, o que para Schelling é indício da presença de for-

ças e potências criadoras na natureza.

Há em Schelling, porém, outra influência. No panorama cultural alemão da

época predomina a chamada “disputa do espinosismo”, suscitada por Jacobi. Este

havia declarado que Espinosa é a filosofia, esta é sistema, e o sistema rege-se pela

necessidade, isto é, pela negação da liberdade. Como então realizar a filosofia da

liberdade, se esta também se pretende “saber absoluto”, cuja forma é a do siste-

ma?

E se fosse possível conceber a filosofia da liberdade como “sistema de li-

berdade”? Para Schelling, tal possibilidade está dada na doutrina-da-ciência de Fi-

chte: a auto-afirmação do eu livre não apenas não se opõe ao sistema como forne-

ce-lhe o princípio incondicionado ao se pôr como sujeito, que é absoluto na medi-

da em que todo objeto é posto por ele.

Mas Schelling acentua, nesse eu absoluto, mais o absoluto do que o eu. Pa-

ra ele, considerar o eu como transcendental – como princípio da unidade entre su-

jeito e objeto – não é suficiente, ainda que isso supere as limitações do eu empíri-

co. É preciso conceber o absoluto como propriamente absoluto, isto é, à maneira

de Espinosa, como substância. Nesse sentido, nas Cartas Filosóficas sobre o

Dogmatismo e o Cristianismo (1795), Schelling afirma que, embora do ponto de

vista prático, o criticismo (idealismo de Fichte) seja superior ao dogmatismo (rea-

lismo de Espinosa), este não pode ser refutado do ponto de vista teórico – o que

exige a síntese entre ambos.

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Natureza e liberdade

O distanciamento de Schelling em relação a Fichte acentua-se com a ela-

boração de uma “filosofia da natureza” ou “física especulativa”, exposta pela pri-

meira vez em Idéias para uma Filosofia da Natureza (1797) e desenvolvida em

obras como Sobre a Alma do Mundo (1798) e Primeiro Esboço de um Sistema de

Filosofia Natural (1799). Essa Naturphilosophie, como ficou conhecida, consoli-

da a fama de Schelling, que, aos 23 anos, é nomeado professor da Universidade de

Iena, cidade em que participaria do círculo romântico.

A Naturphilosophie situa-se na perspectiva aberta por Leibniz e Kant (da

Crítica do Juízo) e opõe à visão mecanicista uma concepção organicista e teleoló-

gica: a natureza é contemplada como uma totalidade orgânica, que, pela polarida-

de das forças em oposição, vai dando lugar a distintos estágios de um desenvol-

vimento progressivo. Tais estágios são marcos da emergência, na consciência hu-

mana, do “espírito latente” – momentos de uma “pré-história do eu”, do passo do

inconsciente ao consciente, da manifestação do sujeito a partir do objeto. Nesse

sentido, Schelling inverte a filosofia transcendental de Fichte.

Mas, em Sistema do Idealismo Transcendental (1800), Schelling realiza

uma nova inversão, agora na filosofia da natureza. Ele procede à construção do

objeto a partir do sujeito, associando a cada estágio do desenvolvimento da auto-

consciência a produção necessária do objeto correspondente. Assim, geram-se

progressivamente tanto a natureza (parte teórica do sistema) como o mundo da li-

berdade, isto é, o direito e o Estado (parte prática), culminando com a concepção

da obra de arte como síntese entre a natureza e a liberdade.

Schelling entende a filosofia transcendental e a filosofia da natureza como

“complementares”. Isso pressupõe que é possível percorrer o caminho em duas di-

reções, isto é, construir a unidade do sujeito-objeto a partir tanto de um pólo como

de outro. “É necessário”, diz por isso Schelling, “que a natureza seja o espírito vi-

sível, e o espírito, a natureza invisível.”

Considerar assim, no entanto, é mais um problema do que uma solução.

De fato, se a unidade complementar entre sujeito e objeto não é meramente pres-

suposta, então ela deve ter sido posta no mesmo ato de autoposição do eu, que se

conhece a si própria como autoconsciência. Esta – e com ela a filosofia transcen-

dental – é, por isso, a condição de possibilidade e de legitimidade da Naturphilo-

sophie, que, desse modo, se subordina àquela, como Fichte não se cansava de re-

petir.

A solução que Schelling dá a esse impasse é a chamada “filosofia da iden-

tidade”, formulada pela primeira vez em Exposição de Meu Sistema de Filosofia

(1801). Trata-se agora de abandonar definitivamente a perspectiva fichteana, des-

vinculando o eu do absoluto. Este é a razão, a identidade ou indiferença de sujeito

e objeto, liberdade e natureza, infinito e finito.

Tal identidade – o Uno-Todo – está subjacente à cisão sujeito-objeto e a

cada ser finito particular. Sejam A o sujeito e B o objeto: todo ser finito pode en-

tão ser descrito como A = B, e a hierarquia dos seres se estabelece segundo o pre-

domínio quantitativo de um ou outro termo. Assim, a série A = +B determina o

âmbito da natureza, enquanto a série +A = B, o do espírito.

Ao resolver assim a separação entre o sujeito e o objeto como mera dife-

rença quantitativa, o próprio Schelling reconhece a persistência de um problema:

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não há passagem do infinito para o finito; se o Uno-Todo é identidade (A = A),

como entender a diferença, que determina a pluralidade dos seres finitos e particu-

lares?

O “fundo sem fundo”

Com a filosofia da identidade culmina a época gloriosa de Schelling. A

partir de então, sua figura é obscurecida pela de Hegel, que se torna seu rival. Em

1803, Schelling transfere-se para a Universidade de Würzburg; depois, em 1806,

abandonando o ensino, passa a viver em Munique. Em 1809, aparece sua última

grande obra publicada em vida: Investigações Filosóficas sobre a Essência da Li-

berdade Humana, precedida de Filosofia e Religião (1804). Cada vez mais incli-

nado à religião, ele busca solucionar os problemas pendentes, associando-os à re-

tomada da questão da liberdade.

Esse tema deve ser abordado não formalmente, como no idealismo, mas de

modo “real e vivo”, como uma “faculdade do bem e do mal”. Com isso, o que S-

chelling pretende é solucionar o problema da diferença – a pluralidade dos seres

finitos – introduzindo-a no interior da própria identidade absoluta. Esta é agora

denominada Deus, que tem nele mesmo a diferença entre sua existência e seu fun-

damento, sua natureza. Diferença na identidade, esse fundamento se destaca do

próprio Deus: é o “fundo sem fundo”, o mundo sensível e finito, o homem e sua

liberdade – em suma, o mal. Mas, alcançada essa situação, é possível o bem, isto

é, o regresso ao absoluto.

Essa talvez seja sua resposta a Hegel, que por outras vias também havia in-

troduzido a diferença no absoluto. Por sinal, Schelling, que desde 1820 voltara a

lecionar em Erlangen e, depois, em Munique, foi, em 1841, encarregado pelo go-

verno prussiano de combater os chamados “jovens hegelianos” na Universidade

de Berlim.

Em vão. Suas aulas não obtinham a repercussão desejada. Ele continuou

escrevendo, mas sem publicar. Essas seriam obras póstumas, que hoje suscitam

polêmica. Schelling morreu em 1854.

*

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Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831)

HEGEL E A CONSTRUÇÃO DA REALIDADE

A revolução abala a França. No seminário de Tübingen, alguns jovens, lei-

tores de Rousseau, acompanham-na com interesse. Têm do movimento uma visão

idealizada, que desmorona quando o Terror assume o poder.

Um desses jovens chama-se Georg Wilhelm Friedrich Hegel, de 20 anos.

Apesar da decepção com o desenrolar dos acontecimentos na França, ele nunca

negaria a grandeza histórica da revolução, que influenciaria suas reflexões sobre o

curso da história. O movimento francês, assim como a civilização grega, o Impé-

rio Romano, as mudanças advindas da revelação cristã e da Reforma protestante,

são, para Hegel, meios de compreender o presente. E, para explicá-lo, é preciso

dar conta de suas contradições.

Contradições não faltam àquela época. Saudada como a instauração da ra-

zão e da liberdade, como a realização da autonomia pregada nos ideais do Ilumi-

nismo, a Revolução Francesa transforma-se rapidamente no Terror e, depois, no

imperialismo militarista de Napoleão Bonaparte. Os resultados do movimento a-

cabam por negar seus ideais. Por quê? Como eles se articulam, do ponto de vista

histórico? A questão intriga Hegel. E é o ponto de partida de seu sistema filosófi-

co.

Hegel nasce em 1770, em Stuttgart, no seio de uma família modesta, cujos

antepassados haviam fugido à perseguição católica de outra província alemã.

Tem, durante a maior parte da vida, graves problemas materiais. Aos 18 anos, in-

gressa no seminário protestante de Tübingen, onde conhece Schelling e Hölderlin,

iniciando uma amizade que duraria vários anos. Não se torna pastor; prefere ser

preceptor, primeiro em Berna, na Suíça, onde permanece de 1793 a 1796, e, de-

pois, em Frankfurt, de 1797 a 1800. Nesse período, escreve suas primeiras obras,

que só seriam publicadas postumamente, entre elas A Positividade da Religião

Cristã e O Espírito do Cristianismo e seu Destino.

Em 1801, ano em que publica Diferença entre os Sistemas de Fichte e de

Schelling, tomando o partido do ex-colega, torna-se professor da Universidade de

Iena. Em 1806, o exército napoleônico invade a cidade, e Hegel, cuja casa é sa-

queada, foge, salvando alguns pertences, entre os quais o manuscrito de Fenome-

nologia do Espírito, publicada no ano seguinte. Em 1808 e 1816 publica, em duas

partes, a Ciência da Lógica, e, neste último ano, obtém o cargo de professor da

Universidade de Heidelberg. Ali permanece até 1817, quando se transfere para a

Universidade de Berlim, ao mesmo tempo que publica a Enciclopédia das Ciên-

cias Filosóficas.Em Berlim, desenvolve uma intensa atividade docente, minis-

trando cursos cujas compilações constituem grande parte de sua obra: Filosofia do

Direito, Filosofia da Religião, Filosofia da História, História da Filosofia e Esté-

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tica. Em 1821, publica Princípios da Filosofia do Direito. Morre dez anos depois,

de cólera, durante uma epidemia da doença.

O real como processo

O esforço de Hegel, segundo Franklin Leopoldo e Silva, professor de filo-

sofia da Universidade de São Paulo, concentra-se num objetivo muito claro: a

compreensão do presente a partir da explicação do sentido do desenvolvimento

histórico. “A filosofia hegeliana caracteriza-se, nessa medida, por um intenso

compromisso com a realidade”, escreve Silva. Mas o que é a realidade? Ela se ca-

racteriza justamente por seu aspecto mutável em todos os níveis, principalmente

no histórico. Uma das questões iniciais do projeto de Hegel é avaliar até que pon-

to os conceitos formulados por distintos sistemas filosóficos dão conta desse di-

namismo, ou, ao contrário, dividem-no em blocos estanques que se mantêm imó-

veis. Pois a mudança – que a filosofia, de modo geral, denomina devir – sempre

foi considerada apenas sob o aspecto dos resultados, isto é, aquilo que manifesta a

relativa estabilidade do real em cada momento que se apresenta para o nosso co-

nhecimento.

Esse, porém, não é o ponto que mais interessa a Hegel. Interessa-lhe con-

siderar o aspecto de processo que a mobilidade do real envolve. Para ele, é preciso

explicar principalmente a articulação, ou seja, as condições de modificação e o

sentido que as mudanças apresentam em todos os aspectos da realidade, desde a

percepção sensível até as revoluções políticas. Compreender a realidade significa

entender o modo como esse processo transcorre e, se possível, as leis que o re-

gem.

O sentido que esse processo adquire está primeiramente vinculado à apre-

ensão consciente do devir por um sujeito que se situa perante ele e, ao mesmo

tempo, dele faz parte. Essa apreensão é, em si, um processo, que se realiza na tra-

jetória da consciência ao desenvolver a tarefa de compreender o mundo e a si pró-

pria.

A obra em que Hegel procura expor essa trajetória é a Fenomenologia do

Espírito (1807), o primeiro livro em que seu sistema aparece plenamente delinea-

do. O objetivo da obra é compreender as etapas pelas quais a consciência, que ini-

cialmente apreende o mundo, encontra a si mesma nesse processo de apreensão e,

revelando-se na especificidade dessa relação, reencontra-se finalmente na totali-

dade, que abarca tanto o sujeito como o objeto.

A pretensão de Hegel é, portanto, atingir o absoluto, isto é, a inserção

consciente do espírito na totalidade. Em outras palavras, a consciência, ao se a-

firmar como distinta daquilo de que originariamente fazia parte, e após percorrer

um trajeto marcado por todas as contingências históricas, concretas, reencontra-se

novamente nesse todo, mas agora de modo consciente: da indistinção anterior em

relação à totalidade, a consciência passa para a ciência da própria totalidade. Re-

solve-se então a oposição que resultava da primeira afirmação da consciência ante

a totalidade.

Mas, para chegar a essa conclusão, é preciso que a consciência tenha cum-

prido todas as etapas de seu trajeto. Só então a reflexão pode refazê-lo no plano da

especulação. Por isso, a tarefa da Fenomenologia do Espírito é essencialmente re-

trospectiva.

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Para Hegel, há uma indistinção primitiva em que a consciência e as coisas

se confundem. Mas disso surge o primeiro momento da trajetória da consciência,

em que esta se afirma perante o todo. Esse é o momento de uma primeira objeti-

vação, ainda no nível da percepção, pela qual a coisa é simplesmente sentida, mas

sentida como objeto por uma consciência. Essa afirmação da consciência é tam-

bém a negação, por ela, da totalidade indiferenciada: a consciência se põe como

aquilo que percebe e, nessa medida, como distinto do que é percebido.

As sensações, no entanto, referem-se apenas ao aqui e agora; elas se suce-

dem umas às outras, negando-se mutuamente. Uma sensação como ‘é dia’ é logo

negada por ‘é noite’. Essa insuficiência das sensações para identificar a coisa é

superada mediante a evolução da percepção para a representação intelectual. O

aqui e agora é então substituído pela determinação conceitual, que não sofre vari-

ações, como acontece com as sensações. O resultado dessa superação é a elabora-

ção de leis, que regem os fenômenos.

As ciências da natureza, então, constituem-se pela negação dos dados sen-

síveis, que são ultrapassados em proveito de determinações gerais. Essa é a etapa

em que reina o entendimento, ou seja, a constituição do conhecimento possível, de

acordo com a finitude e os limites da consciência naquele momento. A consciên-

cia, como sujeito de um conhecimento, que é principalmente a constatação das

leis da natureza, reconhece a si mesma como pólo constituinte dessa legalidade.

Ela é então aquilo que Hegel denomina consciência em si, que, como tal, se opõe

à indistinção inicial – o em si. Descartes, Newton e Kant podem ser tomados co-

mo ilustrações do apogeu dessa fase.

“A dialética do senhor e do escravo”

Nesse processo de constituição da consciência de si, a consciência também

constitui os objetos para si, reconhecendo-os como seus. Ela então se descobre

como uma instância que pode desejar apropriar-se dos objetos, quaisquer que se-

jam. O que melhor ilustra esse momento é a experiência da vida social, pois dese-

jar é sempre desejar ser reconhecido pelo outro, testar a minha força em relação a

ele.

Aqui se situa a passagem mais famosa da Fenomenologia do Espírito e um

dos mais conhecidos da filosofia de Hegel: a chamada ‘dialética do senhor e do

escravo’. O senhor é senhor porque é vitorioso e assim realiza seu desejo de ser

reconhecido como tal pelo escravo, sobre o qual tem poder de vida e morte. Mas a

relação senhor-escravo é, como toda relação, dinâmica, e o escravo não é um ele-

mento meramente passivo. É a consciência do escravo que reconhece o senhor

como tal; este, por isso, necessita do outro para afirmar-se e se manter como se-

nhor. O escravo, dependente em princípio do senhor. O escravo, torna-se senhor

da consciência de seu próprio amo.

Essa relação ilustra o impasse da liberdade subjetiva – uma liberdade que

só pode ser desfrutada graças à dominação do outro. Dependente do outro, a li-

berdade subjetiva nega essa dependência para se manifestar, desinteressando-se

pelo mundo objetivo. E compensa a perda do mundo objetivo interiorizando-se na

subjetividade do eu. Esse subjetivismo – a liberdade apenas do eu interior – gera o

que Hegel denomina consciência infeliz.

Historicamente, esta aparece no âmbito do estoicismo e, em geral, na Idade

Média, coincidindo com um sentimento religioso agudo de desvinculação do

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mundo. O subjetivismo também produz o formalismo moral, cujo exemplo maior

é a moral kantiana, que enseja a separação e o impasse entre o pensar e o agir. O

homem, dividido, em parte estranho a si próprio, é prisioneiro da angústia por

pressentir que deveria estar onde não está. É necessário que uma etapa posterior

venha reconciliar o espírito consigo mesmo para que ele possa reconhecer-se em

toda a sua plenitude.

Essa etapa, a terceira na trajetória descrita pela Fenomenologia do Espíri-

to, ocorre quando o espírito reencontra o em si, mas num plano superior. Pois, o

espírito, percorrendo toda a sua trajetória – que é a sua própria história -, também

passou pela prova da práxis, da ação concreta. Isso faz com que esse reencontro

não seja um mero retorno à indistinção vazia, mas uma reconciliação com o em si

já carregado de significação concreta. O que era oposição entre a consciência de si

e o mundo torna-se síntese, e o espírito passa a ser em si e para si, superando a

consciência subjetiva, mas permanecendo sujeito, agora absoluto.

Em outras palavras, o absoluto é o resultado de um processo histórico rico

de contradições, pelo qual o espírito foi se manifestando. A arte e a religião foram

formas, ainda que incompletas, dessa revelação do absoluto, maneiras de tornar o

espírito presente no pensamento e na vida dos homens. Mas, para Hegel, cabe à fi-

losofia conferir expressão autêntica à expansão plena do espírito, realizando sua

vocação absoluta de abarcar a totalidade.

Nessa trajetória, percebe-se a presença de um elemento que move a histó-

ria do espírito, mas que os sistemas filosóficos sempre consideraram um caminho

proibido para a constituição da verdade: a contradição. No plano da percepção,

quando a consciência busca romper com a indistinção de uma totalidade em si, é o

jogo da afirmação e da negação que a leva a procurar a identidade conceitual. Pois

no nível da percepção e da sensação as determinações não somente mudam, mas

se contrariam: antes era dia e agora é noite; o que estava parado agora se move; o

que era pequeno torna-se grande; o que existia desapareceu.

Mas como uma coisa pode tornar-se outra se não trouxer de alguma forma,

em si, aquilo em que se transformará? Se algo pode tornar-se o contrário do que

foi é porque a estrutura da realidade comporta a negação no próprio cerne de tudo

o que se afirma como existente. Existir, então, é negar-se para tornar-se outro; é

um processo de transformação no qual a negação desempenha um papel decisivo.

O homem, a natureza e a história constituem existências reais trabalhadas pelo

negativo. Na filosofia de Hegel ecoa a velha idéia de Heráclito: a realidade é o

movimento dos contrários.

Esse tornar-se outro não segue um caminho aleatório: é um processo orde-

nado do qual é possível extrair a estrutura formal, ou a lógica, a que obedece.

Não, evidentemente, uma lógica do tipo tradicional, baseada na oposição inconci-

liável da afirmação e da negação. Pois, se assim fosse, a realidade não encontraria

as formas que nascem da própria contradição entre os opostos.

A contradição, portanto, não significa duas posições imóveis frente a fren-

te. Como a negação brota da própria afirmação, elas mantêm entre si uma relação

dinâmica, de enfrentamento. Este é produtivo, pois dele deriva uma terceira forma

que, como produto da contradição, só existe por causa das forças que antes se o-

punham. Por isso, essa terceira forma de realidade conserva os opostos ao mesmo

tempo que os supera, diferenciando-se deles.

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A lógica tradicional, binária, é a lógica da imobilidade, pois exige a opção

ou pela afirmação ou pela negação, excluindo uma terceira possibilidade, isto é, a

de considerá-las partes de um processo. A lógica de Hegel, no entanto, contém

três elementos: a afirmação (a tese), a negação (a antítese) e a síntese, que resulta

da negação da negação. O último termo, uma dupla negação, é também outra a-

firmação, mas engendrada pelo confronto dos dois termos anteriores. Hegel cha-

ma essa estrutura lógica de dialética.

“A razão, princípio de tudo”

O termo ‘dialética’ havia sido empregado por Platão e Aristóteles. Para o

primeiro, ele significa o confronto ou a comparação de opiniões por meio do dia-

logo, para que dessa relação nasça a verdade. Para Aristóteles, significa a ascen-

são do sensível ao inteligível por meio da comparação das formas particulares

sensíveis, para atingir a generalidade da verdade. Na Idade Média, a dialética tor-

na-se disputatio, isto é, um confronto de opiniões, por vezes meramente retórico,

em que a produção do melhor argumento para vencer o adversário passa a ser vis-

to como fim em si. O sentido que Hegel atribui à dialética assemelha-se mais ao

de Platão, pois inclui a idéia de superação de opiniões opostas para encontrar a

verdade.

Mas a dialética, para Hegel, não é apenas uma lógica ou um método. É

certo que Hegel é autor da Ciência da Lógica (1812-16), o que poderia levar a su-

por que ele tenha exposto nessa obra o método empregado na Fenomenologia do

Espírito. Mas a dialética hegeliana é antes uma teoria do ser, uma ontologia. Não

é apenas a maneira ‘correta’ de pensar a realidade e sim a própria estrutura da rea-

lidade em todos os seus aspectos. Como ele mostra na Fenomenologia do Espíri-

to, as diferentes etapas da consciência engendram-se por negação das anteriores,

sendo o espírito, no sentido absoluto, a síntese entre o em si indiferenciado, ante-

rior à percepção, e o para si, isto é, a consciência subjetiva. Dialético é, então, o

próprio espírito, não o modo de pensá-lo.

Na verdade, o método de Hegel, como indica o título de sua primeira

grande obra, é fenomenológico, que consiste simplesmente no estudo dos fenô-

menos, isto é, daquilo que aparece para ser percebido, pensado e tomado como

objeto de reflexão. Mas fenômeno, para Hegel, não é aquilo que Kant opunha à

coisa em si, isto é, o lado aparente de uma realidade cuja essência não poderia ja-

mais ser desvendada. Segundo Hegel, o fenômeno é dado em sua integridade, es-

sência e aparência em absoluta continuidade. Desse modo, o estudo dos fenôme-

nos é o estudo das coisas em sua totalidade, tal como experimentada pelo pensa-

mento, e não uma abordagem parcial da realidade.

Mas a experiência dos fenômenos inclui algo que a velha lógica não acei-

tava: o devir, o incessante processo de transformação. Por isso, a exposição da di-

alética, extremamente árida, realizada na Ciência da Lógica, não se restringe aos

aspectos formais do conhecimento. É uma exposição da estrutura do real e de seu

movimento, tal qual se revelam a um pensamento atento ao encadeamento dos fe-

nômenos.

A dialética também não é um método, no sentido de um esquema para a

interpretação dos fenômenos e de suas formas de ocorrência. O sistema de articu-

lação dos fenômenos não é concebido separadamente da realidade. Ao contrário, é

esta, abordada enciclopedicamente, que impõe ao filósofo a única estrutura possí-

vel para a compreensão do real.

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Nesse sentido, as diversas ciências e manifestações culturais, incluindo a

própria filosofia, não são campos para ao exercício da dialética. Compõem a rea-

lidade natural e cultural dialeticamente articulada por si mesma, cabendo ao filó-

sofo, pela reflexão e pela retrospecção, recuperar para o pensamento esses conte-

údos, assim estruturados. A lógica é imanente ao real, na medida em que este é es-

sencialmente lógico no sentido dialético. A Ciência da Lógica não é, pois, o ma-

nual que ensinaria como impor racionalidade às coisas, o triunfo da razão sobre os

objetos. A realidade, adequadamente compreendida, já é razão, como afirma a

famosa frase de Hegel: ‘O que é racional é real, e o que é real é racional’.

A Ciência da Lógica é, então, ciência no pleno sentido: ciência do absolu-

to. Este é razão. Fichte e Schelling já o haviam intuído, mas se apegaram a uma

determinada configuração do absoluto, fixando-o em uma forma. O absoluto, po-

rém, é orgânico, um todo articulado. A Ciência da Lógica trata de expor essa arti-

culação no nível abstrato, isto é, independentemente dos conteúdos, mas sem es-

quecer que o concreto habita cada um de seus momentos – e nisso a exposição se-

gue um caminho diverso de Fenomenologia do Espírito.

Esta obra havia buscado o absoluto em suas exteriorizações: o percurso foi

necessário, pois a consciência tinha de sair de si para se reencontrar, finalmente,

como espírito, encontrando neste o absoluto. Em outras palavras, reencontrou-se

como razão, estabelecendo então a diferença entre consciência e razão, pois esta

se manifesta em tudo, até mesmo nos seres primitivos e inorgânicos. Isso os ro-

mânticos, entre eles Schelling, já haviam intuído, mas sem a devida explicitação.

Para Hegel, a razão é o princípio das coisas e, como tal, não é a ‘noite escura’ im-

penetrável ao pensamento. Pois o pensamento humano é também razão, e basta

que ele desça à sua profundidade para captar a razão e, assim, o absoluto.

A Ciência da Lógica, de certo modo, inverte o percurso: ela é a exposição

sistemática do absoluto e de seus desdobramentos, e, nesse sentido, é também me-

tafísica. Como na Fenomenologia do Espírito, encontra as mesmas configurações

do espírito absoluto, mas sem se ocupar com o caráter fenomênico de suas mani-

festações. O que importa agora é esclarecer em profundidade o ser de cada uma

delas.

O que é então o ser do absoluto? Não se trata de algo que o homem conce-

be, como pensaram as filosofias ainda prisioneiras da separação entre sujeito e ob-

jeto, conceito e coisa, para afirmar a identidade do absoluto. Mas autoconceber-se

significa ser sujeito. Para Hegel, no entanto, não se trata mais de um sujeito que se

põe como exterior a seu objeto, e sim de um sujeito que se reencontra pelo lado

objetivo, incorporando o objeto em uma totalidade que ultrapassa a oposição.

Por isso, a Ciência da Lógica – a ciência por excelência – não é saber de

outra coisa, de algum objeto, mas saber de si: o espírito reconhecendo-se como to-

talidade e, pela reflexão, reconciliando consigo próprio. ‘A idéia absoluta’, diz

Hegel no final dessa obra, ‘é o único objeto e conteúdo da filosofia’.

“Construindo a liberdade”

Para que o espírito retorne a si na autoconsciência do absoluto, deve se ex-

plicitar este ‘único conteúdo’ nos vários momentos do autodesvelamento, que

constituem as produções culturais: a ciência natural, a arte, a religião e a filosofia.

É preciso examiná-las, pois são esses conteúdos culturais concretos que preen-

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chem o arcabouço abstrato do percurso do espírito, revelado em Ciência da Lógi-

ca.

A Enciclopédia (1817) é a retomada da marcha do espírito em seu proces-

so de realização pelo conhecimento, até que este se revele como autoconhecimen-

to. Hegel não pretende organizar uma síntese do saber; interessa-lhe mostrar a es-

trutura do pensamento aplicado a seus diversos objetos, o estatuto dos conceitos

que foram produzidos, os sentidos da organização da atividade humana, o caráter

da ordem social e a relação entre a história e as manifestações culturais. Em tudo

está presente a estrutura dialética que permite compreender a ordem necessária do

desenvolvimento.

Na Enciclopédia, Hegel retoma os resultados de reflexões anteriores e an-

tecipa investigações ainda em curso. Assim, na primeira parte, trata da lógica co-

mo introdução aos conteúdos da ciência, que serão depois desenvolvidos. A se-

gunda parte refere-se à filosofia da natureza, e nela Hegel procura sistematizar di-

aleticamente o trabalho dos físicos e dos cientistas naturais, explicitando suas

construções teóricas e tentando compreender filosoficamente os caminhos trilha-

dos pela ciência, os obstáculos enfrentados, as mudanças e o desenvolvimento da

concepção sobre a natureza. Estuda primeiro a mecânica em seu sentido matemá-

tico; em seguida, a física à luz dos processos dinâmicos; e, finalmente, o que de-

nomina ‘física orgânica’, que inclui temas da biologia e da geologia.

A terceira parte da Enciclopédia trata da filosofia do espírito e é nela que

se revela mais claramente a estrutura dialética do desenvolvimento cultural. Ali,

Hegel procura entender o devir do homem e das sociedades humanas, isto é, o

processo de construção da liberdade. Primeiro, o espírito se afirma como indivi-

dualidade e nessa condição desfruta da liberdade: é uma individualidade livre.

Mas a liberdade não pode ser desfrutada apenas subjetivamente, no nível do para

si. Ela só adquire sentido no plano da intersubjetividade, em que os indivíduos in-

teragem.

A família é a primeira negação da individualidade e, ao mesmo tempo, a

realização do indivíduo na interação. Mas, ainda assim, a família se particulariza,

pois tem interesses próprios a defender contra outros. É somente no Estado, sínte-

se da individualidade e da coletividade, que se pode assegurar a verdadeira reali-

zação do indivíduo. Nele, os interesses familiares se anulam, ao mesmo tempo

que a liberdade individual, negada pela família, é recuperada e assegurada pelo di-

reito. Desse modo, o espírito subjetivo torna-se espírito objetivo mediante a inser-

ção do indivíduo na sociabilidade regida pela legalidade do Estado - expressão e

garantia da verdadeira liberdade.

A realização do espírito

Mas a esfera do histórico e do social não esgota as manifestações da cultu-

ra. O espírito também procura se encontrar na arte e na religião, que expressam,

cada uma em seu nível, o saber. Na arte, o saber se configura como expressão sen-

sível do espírito. O homem liberta-se de sua sujeição natural, da finitude entendi-

da como submissão à natureza. O espírito vê-se livre para criar, e essa criação

manifesta uma disposição para o absoluto.

Mas a arte, em diferentes graus, é ainda dependente da matéria. Na escul-

tura, arte simbólica por excelência, a liberdade do espírito encontra o limite no

material bruto que tem de burilar. Também na arquitetura, a expressão está em

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grande parte condicionada pela resistência da matéria. A liberdade já é bem maior

na música e na pintura, em que o grau de abstração permite ao espírito uma ampla

variabilidade de formas expressivas. Mas é no domínio da palavra que se realiza a

liberdade expressiva da arte: a palavra não é som ou grafia, mas o sentido que vei-

cula. Na palavra atinge-se o grau máximo de abstração, e o alcance das constru-

ções espirituais é praticamente infinito, pois não são tolhidas pelo elemento sensí-

vel em que se apóiam.

Ainda assim, a arte é um momento do espírito, em que este procura se a-

dequar ao elemento sensível – pedra, cor, som e mesmo a palavra – para expressar

o saber. Por isso, a arte se realiza na exterioridade: o espírito ainda está fora de si

e, em tal momento, encontra a sua realização no objeto.

A religião, ao contrário, corresponde à dimensão do sujeito: a relação com

a divindade é uma propriedade subjetiva. Isso, porém, não se manifesta de modo

imediato em todas as religiões. Nas mais primitivas, o culto aos ídolos ou às for-

ças da natureza mascara a dimensão subjetiva. Mesmo na religião grega, a relação

com o divino está mesclada com o elemento estético, sensível e exterior.

Mas o desenvolvimento histórico vai se encarregando de realizar o que a

religião é em essência: contato íntimo com a divindade, experiência pessoal de

comunicação com o transcendente. O judaísmo caminha nessa direção ao cultuar

um Deus que se revela sem imagens, e o cristianismo manifesta claramente esse

teor subjetivo da experiência religiosa. Mas o livre impulso da subjetividade para

Deus se realiza, segundo Hegel, no protestantismo: neste, a religião desveste-se de

seu caráter ritualístico, tornando-se efetivamente uma experiência íntima de co-

municação com a divindade, o que faz do amor a Deus uma possibilidade real in-

tegrada na prática humana.

Mas exatamente por se realizar na subjetividade, a religião não permite ao

espírito a integração plena no absoluto, que ainda é buscado como transcendência

e como destino, não como realidade. Por isso, a religião é também um momento –

e, como tal, provisório – do espírito. É o que na lógica corresponde ao para si. A

totalidade, o absoluto, no entanto, não pode ser para si. É preciso que uma última

etapa venha realizar a síntese entre o em si, imerso na exterioridade (a arte) e o

para si recolhido na subjetividade (a religião).

A efetiva atualização do espírito, o pensamento verdadeiramente em ato,

mostra que a subjetividade e objetividade são alternativas provisórias. A verdade é

inseparável do processo de constituição do verdadeiro. É a filosofia que torna pre-

sente a história em sua totalidade, realizando a síntese entre a exterioridade e a in-

terioridade. Tudo emana do espírito e para ele reflui, não porque o tempo, a histó-

ria e a ação sejam ilusões, mas porque tudo isso nada mais era do que o espírito

procedendo à constituição de sua própria idéia. “A idéia eterna, em si e por si, (...)

se produz (...) eternamente como espírito absoluto.”

*

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TERCEIRA PARTE

FILOSOFIA ESPÍRITA

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J. Herculano Pires

FICHA DE IDENTIFICAÇÃO LITERÁRIA

J. HERCULANO PIRES, nasceu em 25/09/1914 na antiga província de Avaré, no Estado

de São Paulo e desencarnou em 09/03/1979, filho de José Pires Corrêa e de Da. Bonina Amaral

Simonetti Pires. Fez seus estudos em Avaré, Itai e Cerqueira César. Revelou sua vocação literária

desde que começou a escrever. Aos 16 anos publicou seu primeiro livro, Sonhos Azuis (contos) e

aos 18, o segundo livro Coração (poemas livres e sonetos). Já colaborava nos jornais e revistas das

cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro. Foi um dos fundadores da União Artística do Interior.

Mudou-se para Marília em 1940 onde adquiriu o jornal Diário Paulista e o dirigiu durante 6 anos.

Com José Geraldo Vieira, Zoroastro Gouveia, Osório Alves de Castro, Nichemja Sigal, Anathol

Rosenfeld e outros promoveu, através do jornal, um movimento literário na cidade e publicou Es-

tradas e Ruas (poemas) que Érico Veríssimo e Sérgio Millet comentaram favoravelmente. Em

1946 mudou-se para São Paulo e lançou seu primeiro romance, O Caminho do Meio, que mereceu

criticas elogiosas de Afonso Schimidt, Geraldo Vieira e Wilson Martins. Repórter, redator, secre-

tário, cronista parlamentar e critico literário dos Diários Associados onde manteve, também, por

quase 20 anos, a coluna espírita com o pseudônimo de Irmão Saulo. Exerceu essas funções na Rua

7 de Abril por cerca de trinta anos. Em 1958 bacharelou-se em Filosofia pela Universidade de São

Paulo, e pela mesma Universidade licenciou-se em Filosofia tendo publicado uma tese existencial:

O Ser e a Serenidade. Autor de oitenta e um livros de Filosofia, Ensaios, Histórias, Psicologia, Es-

piritismo e Parapsicologia sendo a sua maioria inteiramente dedicada ao estudo e à divulgação da

Doutrina Espírita, e vários de parceria com Chico Xavier. Lançou, recentemente, a série de ensaios

Pensamento da Era Cósmica e a série de romances de Ficção Científica e Paranormal. Foi diretor-

fundador da Revista de Educação Espírita publicada pela Edicel. Em 1954 publicou Barrabás que

mereceu Prêmio do Departamento Municipal de Cultura de São Paulo em 1958, constituindo o

primeiro volume da trilogia Caminhos do Espírito. Em 1975 publicou Lázaro e, com o romance

Madalena, editado pela Edicel em maio de 1979, a concluiu.

Ao desencarnar, deixou prontos vários originais os quais vêm sendo publicados pelas Edi-

toras Paidéia e Edicel.

*

1 - INTRODUÇÃO À FILOSOFIA ESPÍRITA

J. HERCULANO PIRES

Livro Introdução à Filos. Espírita. Ed. FEESP, 2ª. ed., 1993

PERFIL DA FILOSOFIA ESPIRITA

Introdução

Uma introdução à Filosofia Espírita exige longa pesquisa de suas raízes

nas coordenadas da evolução humana: o tempo e o pensamento. A História da Fi-

losofia é um continuum, que nasce da primeira indagação do homem sobre a Na-

tureza e depois sobre a vida e sobre ele mesmo. Da Magia à Religião e desta à Fi-

losofia o pensamento se desenrola numa seqüência ininterrupta de formulações

pessoais que se encadeiam em processo dialético. Não existe a seqüência tantas

vezes apresentada de Magia-Religião-Ciência-Filosofia. O que realmente existe é

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um paralelismo de ação mental que parte da primeira tomada de consciência do

Mundo pelo homem. Na primeira paralela temos a seqüência Magia-Religião, que

se desenvolve no plano da afetividade. Na segunda paralela temos a seqüência

Experiência-Ciência-Filosofia, que se desenvolve no plano da razão. Entre as du-

as, interligando o fluido do sentimento e da razão, temos a faixa de terra da práxis,

onde o homem opera desenvolvendo a sua capacidade de manusear as coisas e os

seres. Desse manuseio nasce o complexo do Conhecimento, delta em que vão de-

saguar as correntes paralelas para a fusão que dará forma ao dualismo Cultura-

Civilização.

Kerchensteiner caracterizou com clareza os dois elementos desse comple-

xo com sua teoria da Cultura Subjetiva e Cultura Objetiva. A primeira é o acúmu-

lo de conhecimentos abstratos de um aglomerado social isolado por contingências

geográficas. A segunda é o acervo de obras materiais produzido por esse aglome-

rado. O desenvolvimento da Técnica vai superando no tempo as distâncias dos a-

glomerados humanos e promovendo as aproximações que determinam a fusão das

culturas isoladas num sistema cultural único, já em vias de conclusão em nosso

tempo.

Ernst Cassirer mostrou como as culturas desaparecidas concentram-se nas

obras materiais que produziram, das quais renascem ao toque de novas culturas,

como aconteceu no Renascimento. Os resíduos válidos de antigas e superadas cul-

turas são então incorporados a novos sistemas culturais. A seqüência aparente-

mente interrompida se restabelece e a acumulação cultural se agiganta, gerando a

Tragédia da Cultura, pois o enorme acervo transcende a capacidade de assimila-

ção da mente humana e determina a fragmentação das especializações. Arnold

Toynbee assinalou a relação entre Religião e Civilização, que se caracteriza no

desenvolvimento dos ciclos culturais. A teoria dos ciclos vem de longe e teve

grande voga entre os gregos. Cada ciclo é uma fase do desenvolvimento cultural,

que se encerra para dar início a outro. Do ciclo das Civilizações Agrárias surgiu

ciclo gigantesco das Civilizações Orientais, massivas e teocráticas, que se fechou

na Pérsia, projetando as suas conquistas na Grécia, onde surgiram as civilizações

antípodas de Esparta e Atenas. Roma herdou e desenvolveu ao máximo espólio

espartano, em mistura com o florescimento da democracia ateniense, tipicamente

filosófica. Plotino deu seqüência ao platonismo, tentou realizar a campanha italia-

na do sonho da República de Platão. Mas o ciclo da civilização greco-romana

chegava ao fim. Duas novas civilizações lutavam para definir-se asfixiadas pelo

poder romano: a Judaica, na Ásia, e a Celta, na Europa.

Foi então que surgiu a Síntese Cristã, infiltrando-se na Europa com seus

princípios renovadores, minando o Império Romano em suas bases e encontrando

ressonância na Cultura Celta, dominante nas Gálias. O Cristianismo iniciava um

novo ciclo, que iria desenvolver-se penosa, mas rapidamente, graças à dinâmica

social dos seus princípios. O esplendor da Filosofia Grega deixaria na sombra os

princípios do Celtismo. Mas Aristóteles já havia advertido que os celtas era o úni-

co povo filósofo do mundo. Dois milênios passariam na estruturação dos primór-

dios da Civilização Cristã, impregnada de resíduos greco-romanos e judeus. Mas

as sementes do Druidismo, religião dos celtas, aguardavam no chão da Europa o

momento propício à sua germinação. Coube a Allan Kardec um nome druida —

revelar a sintonia celta-cristã e anunciar o nascimento de um novo ciclo. Rejeitado

pela cultura dominante, como fora Cristo em seu tempo, Kardec enfrentou os po-

deres da época e proclamou o advento da Era Espírita. Elaborou os seus funda-

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mentos, apoiado nas bases tríplices da Ciência, da Filosofia e da Religião. A Filo-

sofia Espírita definiu-se como o fulcro de um novo ciclo da evolução humana.

Não se trata de um fato ocasional ou isolado, mas do resultado de todo o processo

histórico do pensamento, ou da razão, como queria Hegel, em seu desenrolar na

temporalidade.

*

DO INDIVÍDUO COMO REPRESENTAÇÃO COLETIVA

Na tribo ou na horda, nas civilizações agrárias ou nas civilizações teocráti-

cas, o indivíduo é apenas uma peça da engrenagem social. Funciona segundo as

exigências do meio, guiado pelas forças operantes da estrutura sócio-cultural. De-

nis de Rougemont demonstrou como essas forças determinam a sujeição absoluta

do indivíduo à estrutura. Quando ele se reconhece dotado de características pró-

prias, realizando-se na transcendência horizontal da relação social, destaca-se da

massa. Corre então o risco da excomunhão. Mas se dispuser de estrutura individu-

al suficientemente unificada (personalidade) poderá elevar-se sobre o meio, inici-

ando a fase da transcendência vertical. Nesse caso ele se projeta como uma forma

de representação coletiva. Será então o chefe, o líder, o guia, integrando o grupo

dirigente da comunidade, a sua inteligência. Mas assim mesmo estará freado pelos

condicionamentos sociais, terá de fazer concessões à moral social, aos sistemas

estabelecidos, às crenças vigentes, ao contexto geral da tradição. Se quiser sobre-

por-se a esses fatores poderá ser esmagado pela pressão da massa, traduzida nas

sanções institucionais. Foi o caso de Sócrates, como foi o caso de Jesus.

Nas civilizações sócio-cêntricas do passado, que se desenvolviam isoladas,

esse processo de representação coletiva, que na tribo se dividia entre o cacique e o

pagé — o primeiro representando o poder humano, o segundo o poder espiritual,

fundiu-se na síntese do Rei-Deus, sagrado e ungido para dirigir e defender o povo.

A reação natural à rigidez dessa institucionalização perigosa se fez sentir no cam-

po das manifestações paranormais, através de profetas, oráculos e pitonisas. João

Batista degolado por ordem de Herodes é talvez o símbolo mais vigoroso da pro-

fecia social como revolta contra a sagração artificial dos reis-deuses. Mas a repre-

sentação coletiva atingiu o seu ponto máximo na figura do Messias — o sol fe-

cundador das messes após as agruras do inverno, segundo a tese mitológica. Os

messias eram os salvadores e ao mesmo tempo os vingadores, os que vinham sal-

var os humildes e castigar os poderosos. Investidos da sagração divina pelo pró-

prio Deus, centralizavam na sua individualidade privilegiada, os poderes da Terra

e do Céu. Os seus ensinos constituíam uma revelação divina, pela boca desses a-

rautos falava o próprio Deus.

Kardec analisou esse processo e definiu as revelações messiânicas como

pessoais e locais, típica das civilizações isoladas, dirigidas a uma comunidade de-

terminada em sua localização geográfica. Nos fins do ciclo de isolamento, quando

a síntese sócio-cultural greco-romana tentava abranger o mundo e criava condi-

ções novas de vida, o messias judeu, Jesus de Nazaré - que mais tarde seria desig-

nado, significativamente, pelo nome do messias grego: Cristo, apresentou-se ainda

como revelador pessoal e local, mas já abrindo perspectivas, em seus ensinos, pa-

ra a universalidade que caracterizaria o desenvolvimento do Cristianismo, rom-

pendo ao mesmo tempo o sócio-centrismo judeu e as pretensões romanas de he-

gemonia. A reação, tanto judaica quanto romana, foi esmagadora, mas não conse-

guiu deter o fluxo natural da evolução humana. A Igreja Cristã, formada segundo

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os modelos judaico e pagão, por força das determinantes históricas, apresenta-se

então como curiosa síntese do Templo de Jerusalém e do Capitólio. A Cadeira de

São Pedro substitui, ao mesmo tempo, a Cadeira de Moisés e o Trono de César. O

Deus-Pai de Jesus se reveste das características de Júpiter Capitolino e Roma vol-

ta a dominar o mundo. O Bispo de Roma transforma-se na representação coletiva

das massas bárbaras convertidas ao Cristianismo. Na figura do Papa concentram-

se os poderes da Terra e do Céu.

Entretanto, no milênio medieval o processo dialético prossegue lento e se-

guro. Um mundo novo está fermentando nas querelas absurdas e uma nova reve-

lação está sendo elaborada nas suas entranhas psíquicas.

A Filosofia Grega inflama o pensamento cristão, despertando-o para a

compreensão dos poderes do homem, do valor intrínseco do ser humano. O dog-

ma da encarnação humana de Deus, reflexo das teorias egípcias e indianas do ava-

tar búdico, produz efeitos contraditórios. De um lado, reforça temporariamente o

conceito do homem-deus do passado; de outro lado, desperta a atenção dos pensa-

dores para os poderes divinos do homem. A subversão vai se confirmar nessa li-

nha com o desenvolvimento do Humanismo. A Ciência renascerá das cinzas de

Aristóteles e o homem se fará o revelador racional dos mistérios encobertos pela

mística religiosa.

As revelações pessoais e locais estão definitivamente superadas. Os messi-

as do passado tornam-se místicos ignorantes, incapazes de revestir-se dos poderes

da representação coletiva. A Revolução Francesa proclamará a supremacia da ra-

zão sobre todo o passado fideísta. Kardec poderá então distinguir dois tipos de re-

velação, ambos divorciados da mística e do mistério: a revelação científica, feita

pelos pesquisadores dos mistérios da Natureza, e a revelação espiritual, feita atra-

vés da mediunidade e da pesquisa dos fenômenos paranormais, das condições do

mundo supra-sensível. A partir desse momento as revelações pessoais, locais ou

não, não terão nenhum sentido. A verdade não pertence a ninguém em particular,

a nenhum profeta, messias ou vidente. É um patrimônio comum, ao alcance de to-

dos os que se esforçam para descobri-la. A revelação é coletiva.

O indivíduo como representação coletiva existiu e funcionou nas dimen-

sões do passado, como exigência natural de um mundo fechado em si-mesmo, in-

capaz de superar os condicionamentos sócio-mesológicos de cada civilização iso-

lada, entregue às suas próprias forças. No mundo novo que surgiu da abertura

cristã, tendo por paradigma a especulação ateniense e por bússola a mensagem ra-

cional do Evangelho, não há mais lugar para a autoridade individual no tocante à

problemática da verdade, que brota do real-em-si e não das interpretações indivi-

duais, sujeitas a condicionamentos desconhecidos. Nenhum indivíduo transforma-

do em representação coletiva e nenhum colégio de iluminados por sabedoria infu-

sa pode decretar a verdade. A Filosofia dedutiva e sistemática do passado cedia

lugar à lógica indutiva, liberta das predeterminações arbitrárias dos sistemas.

*

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2 - FILOSOFIA E ESPIRITISMO

J. Herculano Pires e Virgínia

I – O QUE É FILOSOFIA?

É comum ouvir-se de pessoas que não aceitam o Espiritismo a afirmação

de que a Filosofia Espírita não existe. Conhecido professor brasileiro de Filosofia

chegou a declarar numa entrevista à imprensa brasileira que “O Livro dos Espíri-

tos” nada tem de filosófico. A mesma coisa acontece com o Marxismo. Papini es-

forçou-se, em toda a sua vida, para provar que Marx era um economista, e, portan-

to, não devia ser confundido com um filósofo. Como se um economista não pu-

desse e até mesmo não precisasse de filosofar. Sartre, pelo contrário, considera o

Marxismo a única Filosofia do nosso tempo. As opiniões são contraditórias, mas

isso não nos deve impressionar, pois opiniões não passam de palpites, de pontos

de vista individuais, sujeitos às idiossincrasias de cada um. E Pitágoras, o criador

do termo Filosofia, já afirmava que a Terra é a morada da opinião. Mais tarde,

Descartes advertiu que o preconceito e a precipitação, dois vícios comuns da es-

pécie humana, prejudicam o juízo e impedem a descoberta da verdade.

Um filósofo, um professor de filosofia, um pensador honesto e até mesmo

uma simples criatura de bom-senso não podem negar a existência da Filosofia Es-

pírita, a menos que não saibam o que essa palavra significa. Muito menos negar a

natureza filosófica de “O Livro dos Espíritos”, que é um verdadeiro tratado de Fi-

losofia. Veja-se, por exemplo, como Yvonne Castellan, que não é espírita, encara

esse livro em seu estudo sobre o Espiritismo. Consulte-se o “Dicionário Técnico e

Científico de Filosofia”, de Lalande. E leia-se o admirável ensaio de Gonzales So-

riano, desafiadoramente intitulado “El Espiritismo es la Filosofia”.

São muitas as definições de Filosofia, mas a que subsiste como essencial é

ainda a de Pitágoras: “Amor da Sabedoria”. Daí a exatidão daquele axioma: “A

Filosofia é o pensamento debruçado sobre si mesmo.” Eis a descrição perfeita de

um ato de amor: a mãe se debruça sobre o filho porque o ama e deseja conhecê-lo.

A sabedoria é filha do pensamento, que a embala em seus braços, alimentando-a e

fazendo-a crescer. Assim, o objeto da Filosofia é ela mesma, não está fora, no ex-

terior, mas dentro dela. Podemos defini-la como a relação entre o pensamento e a

realidade. Essa a razão de Gonzales Soriano afirmar que o Espiritismo é a Filoso-

fia. Relação, aliás, que ele demonstra filosoficamente em seu livro. O Espiritismo

é, segundo sua definição, “a síntese essencial dos conhecimentos humanos aplica-

dos à investigação da verdade.” É o pensamento debruçado sobre si mesmo para

reajustar-se à realidade.

*

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202

II – O QUE É ESPIRITISMO?

Respondida a pergunta sobre Filosofia devemos tratar ligeiramente da na-

tureza do Espiritismo. E nada mais necessário do que isso, porque nada mais des-

conhecido em nosso mundo do que ele. Fala-se muito em Espiritismo, mas quase

nada se sabe a seu respeito. Kardec afirma, na introdução de "O Livro dos Espíri-

tos”, que a força do Espiritismo não está nos fenômenos, como geralmente se pen-

sa, mas na sua “filosofia”, o que vale dizer na sua mundividência, na sua concep-

ção da realidade. Mas de onde vem essa concepção? Como foi elaborada?

Os adversários do Espiritismo desconhecem tudo a respeito e fazem tre-

menda confusão. Os próprios espíritas, por sua vez, na sua esmagadora maioria

estão na mesma situação. Por quê? É fácil explicar. Os adversários partem do pre-

conceito e agem por precipitação. Os espíritas, em geral, fazem o mesmo: formu-

laram uma idéia pessoal da Doutrina, um estereótipo mental a que se apegaram. A

maioria, dos dois lados, se esquece desta coisa importante: o Espiritismo é uma

doutrina que existe nos livros e precisa ser estudada. Trata-se, pois, não de fazer

sessões, provocar fenômenos, procurar médiuns, mas de debruçar o pensamento

sobre si mesmo, examinar a concepção espírita do mundo e reajustar a ela a con-

duta através da moral espírita.

Assim, temos alguns dados: o Espiritismo é uma doutrina sobre o mundo,

dá-nos a sua interpretação e nos mostra como nos devemos conduzir nele. Mas

como nasceu essa doutrina, em que cabeça apareceu pela primeira vez? Dizem

que foi na de Allan Kardec, mas não é verdade. O próprio Kardec nos diz o con-

trário. Os dados históricos nos revelam o seguinte: o Espiritismo se formou len-

tamente através da observação e da pesquisa científica dos fenômenos espíritas,

hoje, parapsicologicamente, chamados de fenômenos paranormais. Os estudos ci-

entíficos começaram seis anos antes de Kardec, nos Estados Unidos, com o famo-

so caso das irmãs Fox em Hydesville. Quando Kardec iniciou as suas pesquisas na

França, em 1854, já havia uma grande bibliografia espírita, com a denominação

de neo-espiritualista, nos Estados Unidos e na Europa. Mas foi Kardec quem apro-

fundou e ordenou essas pesquisas, levando-as às necessárias conseqüências filosó-

ficas, morais e religiosas.

“O Livro dos Espíritos” nos oferece a súmula do trabalho gigantesco de

Kardec. Mas se quisermos conhecer esse trabalho em profundidade temos de ler

toda a bibliografia kardeciana: os cinco volumes da codificação doutrinária, os vo-

lumes subsidiários e mais os doze volumes da Revista Espírita, que nos oferecem

o registro minucioso das pesquisas realizadas na Sociedade Parisiense de Estudos

Espíritas. E precisamos nos interessar também pelos trabalhos posteriores de Ca-

mille Flammarion, de Gabriel Dellane, de Ernesto Bozzano, de Léon Denis (que

foi o continuador e o consolidador do trabalho de Kardec).

Veremos, assim, que Kardec partiu da pesquisa científica, originando-se

desta a Ciência Espírita; desenvolveu, a seguir, a interpretação dos resultados da

pesquisa, que resultou na Filosofia Espírita; tirou, depois, as conclusões morais da

concepção filosófica, que levaram naturalmente à Religião Espírita. É por isso que

o Espiritismo se apresenta como doutrina de tríplice aspecto. A Ciência Espírita é

o fundamento da Doutrina. Sobre ela se ergue a Filosofia Espírita. E desta resulta

naturalmente a Religião Espírita. Muitas pessoas se atrapalham com isso e per-

guntam: “Como uma doutrina pode ser ao mesmo tempo, Ciência, Filosofia e Re-

ligião?” Mas essa pergunta revela a ignorância do processo gnoseológico. Porque,

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na verdade, o conhecimento se desenvolve nessa mesma seqüência e em todas as

formas atuais de conhecimento repete-se o processo filogenético.

No Espiritismo, porém, esse processo aparece bem preciso, bem marcado

por suas fases sucessivas, entrosadas numa seqüência lógica. Podem alguns críti-

cos alegar que Kardec não partiu da pesquisa, mas da crença. Alguns chegam a a-

firmar que foi assim, que ele já acreditava nas comunicações espíritas antes de i-

niciar o seu trabalho de investigação. Mas essa afirmação é falsa, a suposição é

gratuita. Basta uma consulta às anotações íntimas de “Obras Póstumas” e às bio-

grafias do mestre para se ver o contrário. Quando lhe falaram pela primeira vez

em mesinhas falantes, Kardec respondeu como o fazem os céticos de hoje: “Isso é

conversa para fazer dormir em pé”. Só deixou essa atitude cética depois de consta-

tar a realidade dos fenômenos. Então pesquisou, aprofundou a questão e levou-a

às últimas conseqüências, como era, aliás, de seu hábito, do seu feitio de investi-

gador. Charles Richet lhe faz justiça (embora discordando dele) em seu Tratado

de Metapsíquica.

Encarando a obra de Kardec pelo seu aspecto científico, sem os preconcei-

tos que têm impedido a sua justa avaliação, ela nos parece inatacável. Alega-se

que o seu método de pesquisa não era científico, mas foi ele o primeiro a explicar

que não se podiam usar na pesquisa psíquica os métodos das ciências físicas. O

desenvolvimento da Psicologia provaria, mais tarde, que Kardec estava com a Ra-

zão. Hoje, as pesquisas parapsicológicas o confirmam. No tocante ao aspecto filo-

sófico, o desenvolvimento atual das investigações mostram a posição acertada do

Espiritismo como doutrina assistemática, “livre dos prejuízos de espírito de siste-

ma”, como declara “O Livro dos Espíritos”, utilizando a conjugação dos métodos

indutivo e dedutivo para o esclarecimento da realidade em seu duplo sentido: o

objetivo e o subjetivo. A Filosofia Espírita se apresenta como antecipação das

conquistas atuais do campo filosófico e abertura de perspectivas para o futuro.

*

III – A TRADIÇÃO FILOSÓFICA.

A Filosofia Espírita se apresenta naturalmente integrada na tradição filosó-

fica. Foi por isso que Kardec colocou, sobre o título de “O Livro dos Espíritos”, a

indicação: “Filosofia Espiritualista”. Em “O Evangelho Segundo o Espiritismo”

ele indica Sócrates e Platão como precursores do Cristianismo e do Espiritismo,

sendo este o desenvolvimento histórico daquele. Mas podemos ir mais longe, de-

monstrando as múltiplas relações da Filosofia Espírita com as mais significativas

escolas filosóficas do passado. Na verdade, a Filosofia Espírita se apresenta, para

o investigador imparcial como o delta natural em que desemboca no presente toda

a tradição filosófica. Essa convergência, porém, não se faz de súbito, não é um

“arranjo”, como pretendem os adversários gratuitos do Espiritismo. Podemos ver

“com os olhos” o processo de convergência delinear-se na própria História da Fi-

losofia. Dos pitagóricos (com sua simbiose espiritual traduzida na doutrina da me-

tempsicose), aos jônicos (com sua busca da origem única, da substância originá-

ria), aos eleatas (com a procura do Ser em seu sentido absoluto), até Plotino (o

neoplatonismo investigando a “alma-viajora”), passando pela contribuição da

doutrina de forma e matéria, de Aristóteles (antecipação da teoria espírita do pe-

rispírito), chegamos ao Renascimento. E é nesta fase que a confluência se define:

primeiro com a rebelião de Abelardo, preparando o advento de Descartes; depois,

com este, o pai do pensamento moderno, que escreveu o “Discurso do Método”

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sob inspiração do Espírito da Verdade; a seguir com Espinosa, que fez da “Ética”

um livro precursor (em estrutura, substância e ligações históricas) de “O Livro dos

Espíritos”.

A tradição histórica é o terreno vasto e profundo em que podemos desco-

brir as raízes da Filosofia Espírita. Mas, como vimos, essa tradição se prolonga até

o mundo moderno que começou no Renascimento e veio findar na guerra de

1914-18. E depois, no mundo contemporâneo, reencontramos as conotações filo-

sóficas do passado. No mundo moderno podemos lembrar as figuras centrais de

Hegel e Kant, o primeiro com sua dialética da idéia (evolução do princípio espiri-

tual através da matéria) e o segundo com sua teoria do númeno e do fenômeno e

sua crítica da razão (correspondentes à teoria espírita da alma e matéria e a crítica

da fé em Kardec). Na atualidade, as principais escolas filosóficas apresentam rela-

ções evidentes com a Filosofia Espírita. Estudaremos essas relações no prosse-

guimento deste trabalho. Mas convém destacar, desde logo, o paralelismo da cor-

rente filosófica característica do pensamento atual com o Espiritismo. Paralelismo

tanto mais evidente quanto se apresenta no tempo e no espaço (contemporaneida-

de), no método de abordagem dos problemas filosóficos (o enfoque ontológico e-

xistencial), e na procura da compreensão racional (humana e não teológica) da

problemática da existência. É a corrente das Filosofias da Existência, que surgiu

na mesma época do Espiritismo; na Europa, na mesma posição assistemática (Ki-

erkegaard e sua aversão aos sistemas), com o mesmo processo de abordagem do

Ser (através do ser humano na existência) e a mesma busca de transcendência na

interpretação da natureza humana ou essência do ser.

Mas acontece com o Existencialismo o que Kardec assinalou no tocante às

ciências materiais: o paralelismo com o Espiritismo vai até o limite da conceitua-

ção da “existência”. Depois desse limite o Espiritismo prossegue sozinho, investi-

gando e aprofundando o problema das relações interexistenciais, que abre possibi-

lidades de comprovação das antigas intuições sobre as existências múltiplas do

ser. No Espiritismo essas intuições, que desde a antiga metempsicose egípcia,

adotada pelos pitagóricos, até a ressurreição judaica e a teoria católica de ressur-

reição da carne se mantiveram no plano sobrenatural, transformam-se em concei-

tos racionais comprovados pela experiência e a investigação científica.

Chegamos, assim, a um ponto de contato da Filosofia Espírita com o pan-

teísmo de Espinosa, que é o da negação do sobrenatural. A Filosofia Espírita não é

panteísta, o que está explícito em “O Livro dos Espíritos”. Mas isso não impede

que haja entre Espinosa e Kardec a concordância no tocante ao sobrenatural. Para

a Filosofia Espírita o sobrenatural, segundo a concepção vigente até nossos dias, é

apenas “o natural ainda não conhecido”, pois tudo quanto existe pertence à Natu-

reza e tudo quanto estiver além da Natureza não é acessível ao nosso conhecimen-

to (posição paralela à do criticismo kantiano). Esse conceito de Natureza no Espi-

ritismo é um dos mais significativos da Filosofia Espírita e a coloca numa posição

de vanguarda perante o pensamento contemporâneo. Quando as ciências atuais se

viram obrigadas a adotar a expressão “paranormal”, como substitutiva da expres-

são “sobrenatural”, nas investigações sobre a natureza humana, nada mais fizeram

do que seguir a orientação firmada pelo pensamento espírita há mais de um sécu-

lo.

Como se vê, desta simples exposição inicial, é inegável a natureza de sín-

tese da Filosofia Espírita. Ela representa um daqueles momentos de confluência

de todas as conquistas culturais do homem para um delta comum, a que se refere

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Arnold Toynbee nos seus estudos sobre o desenvolvimento das civilizações. Ernst

Cassirer, filósofo alemão contemporâneo, em seu ensaio “A Tragédia da Cultu-

ra”, analisa o processo de evolução cultural do homem através das civilizações

sucessivas, demonstrando que as conquistas essenciais de cada época são transmi-

tidas à outra por meio de concretizações, de formas sintéticas de expressão. O Es-

piritismo, como afirmaram Kardec, Léon Denis, Sir Oliver Lodge, Gustave Geley

e Gonzales Soriano, entre outros, é a síntese cultural do nosso tempo. A Filosofia

Espírita sintetiza em sua ampla e dinâmica conceituação todas as conquistas reais

da tradição filosófica, ao mesmo tempo que inicia o novo ciclo dialético da nova

civilização em perspectiva.

*

IV – TEORIA ESPÍRITA DO CONHECIMENTO: Como Conhece-

mos? O que conhecemos? O processo gnoseológico.

1. - Como conhecemos? Já vimos que o problema do conhecimento é bá-

sico em Filosofia. Pois se esta tem por objeto a Sabedoria, o que vale dizer o nos-

so saber, aquilo que sabemos, é claro que o conhecimento e a maneira pela qual o

adquirimos é de importância fundamental em toda a indagação filosófica. Por isso

a Teoria do Conhecimento é uma das partes mais complexas e mais debatidas da

Filosofia, em todos os tempos. Na Filosofia Espírita ela assume uma importância

ainda mais profunda, pois a pergunta “Como conhecemos?” implica a relação es-

pírito-corpo. E essa relação exige a definição dos seus componentes, envolvendo

as perguntas “o que é espírito?” e “o que é corpo?”.

Mas antes dessas questões há outra, relacionada com os próprios elemen-

tos do ato de conhecer. A tradição filosófica nos mostra duas posições clássicas

diante desse problema: a platônica ou socrático-platônica, que envolve a questão

da reminiscência, das idéias inatas, e a sofística ou empírica que se refere apenas

aos nossos sentidos. Há entre esses dois campos, numerosas escolas e subescolas,

mas para o nosso propósito bastam essas duas linhas fundamentais, que permane-

cem válidas em nossos dias e representam as pontas do dilema de conhecer. Nes-

sas duas linhas, a resposta à pergunta “Como conhecemos?” é dada pela seguinte

contradição: 1a.) “Conhecemos pelo espírito”; 2

a.) “Conhecemos pelos sentidos”.

O primeiro a dar uma resposta conciliatória, ao que parece, foi Aristóteles com a

sua teoria dos dois espíritos do homem: o formativo e o receptivo. Esta dualidade

é resolvida pela Filosofia Espírita de maneira dialética, como veremos.

Os elementos do conhecer podem ser definidos como a razão e o sensó-

rio. Nesses dois elementos encontramos os seus respectivos instrumentos, que po-

demos chamar os instrumentos do conhecer. Na razão encontramos os conceitos

ou idéias, que Sócrates foi o primeiro a descobrir (escondidos atrás das palavras) e

que Kant chamaria mais tarde de categorias. No sensório encontramos as sensa-

ções, que na Psicologia atual podemos chamar de percepções. Assim, o conhecer

é um ato de relação. O conhecedor, que é o homem, se põe em relação com algu-

ma coisa, percebe essa coisa e procura identificá-la. Mas identificá-la com o que?

Com os conceitos ou idéias, com as chamadas categorias da razão, que não estão

nos sentidos mas no espírito. Essa identificação é o próprio ato de conhecer. Cap-

tamos pela vista uma forma à distância. Ela nos parece um cavaleiro. Identifica-

mos a forma visual com a idéia ou conceito de um cavaleiro. Mas, ao nos aproxi-

marmos, verificamos que se trata de uma pedra com forma de cavaleiro: refaze-

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mos a identificação automaticamente. É assim que um objeto captado pelos nos-

sos sentidos pode enganar-nos, mas a verificação da razão corrige o erro.

Estão aí os dois espíritos da teoria de Aristóteles. O primeiro é o espírito-

formativo, que para Aristóteles era a própria alma humana procedente do mundo

espiritual, não sujeita às influências do mundo exterior. O segundo é o espírito-

receptivo, uma espécie de matéria em que se imprimem as sensações do mundo

exterior, segundo Aristóteles. Isto implica a teoria aristotélica da forma e matéria.

As formas do mundo exterior se imprimem na matéria dos sentidos e dão forma a

essa matéria. Mas na Filosofia Espírita não é assim. Os sentidos são apenas ins-

trumentos de captação. E esses instrumentos pertencem à condição existencial do

homem encarnado, do homem no mundo. O homem é um composto de espírito e

corpo. O corpo é o escafandro de que o espírito se serve para mergulhar nas pro-

fundidades da matéria. Quando deixamos o escafandro os seus instrumentos não

funcionam. Quando deixamos o corpo os seus instrumentos morrem.

Para a Filosofia Espírita, portanto, a dualidade de espíritos da teoria aristo-

télica não existe. O homem é essencialmente um espírito. Assim, o espírito é a

substância do homem e o corpo o seu acidente. A percepção é uma faculdade do

espírito e não do corpo. É o escafandrista que vê através dos vidros do escafandro

e não este que vê pelos seus vidros. A contradição das teorias platônica e sofística

do conhecimento se resolve numa síntese funcional. Essa contradição ainda existe

na Filosofia atual. Podemos representá-la pela teoria racional de Kant e a empírica

ou sensorial de Locke: a escola racional e empírica do conhecimento. A síntese

funcional é a que nos oferece a reunião do racionalismo e do empirismo num sis-

tema de funções. Esse sistema é o processo vital do homem, ou seja, um espírito

encarnado, uma razão prisioneira da rede sensorial, funcionando em relação ao

mundo através dessa rede.

A percepção, segundo a Filosofia Espírita, é uma faculdade geral do espíri-

to, que abrange todo o seu ser. Veja-se o ensaio teórico sobre as sensações dos es-

píritos, em “O Livro dos Espíritos”. O espírito não percebe através dos órgãos,

não vê pelos olhos nem ouve pelos ouvidos. Vê e ouve por todo o seu ser. Somen-

te quando sujeito ao corpo, tem a sua percepção reduzida ao organismo sensorial.

Mas, apesar disso, a sujeição corpórea não é absoluta. O espírito, mesmo encarna-

do, extravasa dos limites sensoriais e tem percepções extra-sensoriais. Essa a

grande “descoberta” da Parapsicologia, que, segundo o próprio prof. Rhine: “só é

nova para a Ciência”. Sim, pois os homens sabem, desde todos os tempos, que

podem ver sem os olhos e perceber sem os sentidos em todos os campos da per-

cepção.

Mas se os homens podem ver sem os olhos, hão de ver também coisas não

visíveis para os olhos. Eis a questão, diria Shakespeare. E essa questão nos leva de

volta à teoria das reminiscências de Sócrates e Platão. Que teoria é essa? A de que

os nossos espíritos, ou seja, nós mesmos, antes de encarnarmos neste mundo já

conhecíamos muitas coisas. Esse conhecimento está dentro de nós na forma de

reminiscência, de lembrança amortecida pela carne. Por isso Sócrates inventou a

maiêutica, o processo de tirar o conhecimento das profundezas do ignorante co-

mo se tira água do poço. E Platão ensinou, com o famoso mito da caverna, que na

terra somos apenas sombras, as projeções passageiras e irreais de nós mesmos,

dos nossos espíritos, que na realidade vivem acima da matéria, transcendem a ela.

E hoje, os parapsicólogos mais esclarecidos, mais conseqüentes consigo mesmos

– como o casal Rhine, os profs. Soal, Carington, Price, Tichner e outros -, afir-

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mam que a mente e o pensamento não são materiais, pertencem a outro plano da

natureza, a outro plano da complexa estrutura do Universo. A teoria espírita do

conhecimento tem a sanção das últimas conquistas científicas.

Mas voltemos ainda aos instrumentos do conhecimento para tratarmos

de um deles, que é para a Filosofia Espírita de muita importância. Trata-se da i-

déia ou conceito de espírito. Todas as especulações foram feitas para explicar a

existência desse conceito. Conhece-se a teoria da projeção anímica, de Feuerbach,

adotada pelo Marxismo: “Não foi Deus quem criou o homem, mas o homem

quem criou Deus”, a teoria animista de Taylor; a teoria da imaginação primitiva,

de Spencer, que o seu discípulo Ernesto Bozzano ampliou para torná-la espírita. E

é em Bozzano “Popoli Primitivi e Manifestazione Supernormale” que vamos en-

contrar a resposta espírita a todas essas hipóteses imaginosas. O conceito de espí-

rito é uma categoria lógica, semelhante às de espaço e tempo, que o homem de-

senvolveu com a experiência sensível. As pesquisas científicas da Metapsíquica,

da chamada Ciência Psíquica Inglesa, da antiga Parapsicologia alemã e da atual

Parapsicologia, ao lado das investigações clássicas e modernas da Ciência Espírita

confirmam essa teoria. Não foi da imaginação primata (incapaz de tal abstração)

que surgiu o conceito de espírito, mas dos fenômenos de aparições, de materiali-

zações e de todos os tipos de manifestações paranormais.

2. - O que conhecemos? O espírito é, pois, o conhecedor, é o princípio in-

teligente da Natureza, cuja faculdade perceptiva se desenvolve através de fases

sucessivas. Primeiro, temos a sensibilidade vegetal; depois, a perceptibilidade a-

nimal; por fim, a inteligência humana. Uma frase célebre de Léon Denis resume

todo esse processo milenar: “A alma dorme na pedra, sonha no vegetal, agita-se

no animal e acorda no homem.” O conceito de alma foi estudado por Kardec na

introdução de “O Livro dos Espíritos”. A Filosofia Espírita define a alma como o

espírito encarnado. O princípio inteligente, quando manifestado na matéria, pro-

duz a vida, segundo o nosso restrito conceito de vida. Assim, ele anima a matéria,

é a ânima dos latinos, a alma das coisas e dos seres. No homem, a alma é o espíri-

to que anima o corpo. Quando o homem morre, sua alma volta ao estado de espíri-

to, liberta-se da função de alma. Não existem almas do outro mundo, pois estas,

na verdade, são espíritos.

Mas o que é que o conhecedor conhece, o que é que conhecemos através

da nossa faculdade perceptiva e da nossa capacidade intelectiva? Há o conheci-

mento das coisas exteriores e o das coisas interiores. Há a percepção objetiva, que

estabelece a relação sujeito-objeto, e a percepção subjetiva, que faz do sujeito o

seu próprio objeto. Isso quer dizer, em termos epistemológicos (na teoria das ci-

ências) que há Ciência e há Filosofia. Como já vimos, a Ciência investiga os obje-

tos exteriores, a Filosofia investiga a si mesma, é o pensamento debruçado sobre

si mesmo. Podemos retornar às explicações de Platão: há o mundo sensível e o

mundo inteligível. Temos acesso ao sensível por meio da percepção, captamos,

sentimos, percebemos as coisas exteriores. Temos acesso ao inteligível por meio

da razão e da intuição. São essas as duas faces da realidade. O verso e o reverso

da moeda com que pagamos o direito de saber.

Desde o tempo dos gregos a nossa Civilização Ocidental vem se debatendo

entre esses dois campos do conhecimento. Hoje, temos o mundo dividido em duas

partes: numa se desenvolve o pensamento materialista como ideologia oficial dos

Estados; noutra, o pensamento espiritualista na mesma posição. Nem uma nem

outra dessas formas de pensamento, dessas sistematizações do conhecimento,

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conseguiu trazer nem poderá trazer ao homem a solução dos seus problemas. A

Filosofia Espírita se coloca entre ambas e nos oferece a solução dialética, nos ter-

mos da velha e boa dialética de Hegel, mostrando o equívoco desse divisionismo

artificial e anunciando o advento da compreensão global da realidade.

Espírito e matéria, ensina a Filosofia Espírita, são os dois elementos cons-

titutivos do universo. Sobre ambos paira o poder unificador que é Deus. Essa, diz

“O Livro dos Espíritos”, é a trindade universal. Mas a realidade não se fecha ape-

nas nesse tríptico, nesse esquema geral. Ela é una em essência, mas é múltipla nas

suas manifestações. A lei cósmica é a da diversidade da unidade. Querer reduzir o

real a um dos seus aspectos, o materialista ou o espiritualista, é simples utopia. A

própria História da Filosofia nos mostra a impossibilidade de uma interpretação

esquemática da realidade. Os esquemas das diversas escolas filosóficas serviram

apenas de muletas do pensamento, em sua busca da verdade. Hoje, os filósofos

compreendem que as escolas servem como pontos de observação, como posições

estratégicas e não como trincheiras definitivas no campo de batalha do conheci-

mento. Não mais se formulam grandes sistemas. A época dos sistemas passou. A

sistemática foi substituída pela problemática: importam os problemas, não as ex-

plicações conclusivas.

A Filosofia Espírita foi uma antecipação dessa nova atitude filosófica. Na

mesma época em que surgiam os dois últimos grandes sistemas filosóficos: o Po-

sitivismo de Augusto Comte e o Marxismo, os Espíritos diziam a Kardec que era

necessário apresentar ao mundo uma Filosofia racional, “livre dos prejuízos do

espírito de sistema”. E lhe davam as linhas mestras do novo pensamento através

do processo dinâmico do diálogo, que hoje está consagrado em todo o mundo. A

forma de perguntas e respostas de “O Livro dos Espíritos”, às vezes considerada

antiquada por alguns espíritas sequiosos de novidades, é hoje a forma preferida

para a busca de soluções em todos os setores das atividades humanas. O diálogo é

a maiêutica de Sócrates e a dialética de Platão e de Hegel ressuscitadas em nosso

tempo. É o instrumento mais prático de conhecimento no plano social. E foi atra-

vés dele que surgiu a Filosofia Espírita, no diálogo mediúnico de Kardec com os

Espíritos.

A mediunidade se apresenta como a oportunidade do diálogo paranormal.

A palavra paranormal é simplesmente uma substituta da palavra sobrenatural.

Classifica o fenômeno natural inabitual a que se referia Richet. Na proporção em

que os homens avançam na evolução espiritual o diálogo mediúnico se integra na

normalidade. Quando Sócrates dialogava com o seu daimon (demônio ou espírito

protetor) ou quando Joana D’Arc dialogava com as suas vozes, ou quando Abra-

hão Lincoln (à maneira do patriarca bíblico) dialogava com os Espíritos na Casa

Branca, em Washington, não estavam fora da Natureza nem de normalidades. Só

a ignorância das leis naturais que regem a comunicação interexistencial (a comu-

nicação mediúnica entre os diferentes planos de existência) levou os homens a tra-

tarem o assunto com prevenção e excesso de superstição. O diálogo mediúnico

que fez a Donzela de Orléans a empunhar a espada e salvar a França, que levou

Sócrates a impulsionar o conhecimento, que fez Lincoln assinar a lei de libertação

dos escravos nos Estados Unidos, que orientou Mackenzie King no governo do

Canadá, e assim por diante, levou Kardec a formular a Doutrina Espírita e ofere-

cer ao mundo a maior síntese filosófica de todos os tempos, que é a Filosofia Es-

pírita.

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3. – O processo gnoseológico. Aplicada ao Espiritismo, na avaliação da

totalidade da Doutrina, a Teoria Espírita do Conhecimento nos mostra essa dou-

trina como a última fase de um processo gnoseológico que abrange toda a evolu-

ção humana. Kardec explica, no cap.I de “A Gênese”, os motivos do aparecimento

do Espiritismo em meados do século passado (XIX). Era necessário o desenvol-

vimento das Ciências, a superação racional dos estágios anteriores da evolução,

para que o homem se tornasse capaz de compreender o problema espírita. O pro-

cesso gnoseológico iniciado na era tribal se desenvolve através das fases anímica,

mágica, mítica, mística ou religiosa, atingindo a científica ou racional e passando,

então, à psicológica ou espírita.

Lembremo-nos rapidamente da lei dos três estados da evolução gnoseoló-

gica segundo Augusto Comte. Temos primeiro, o estado teológico em que tudo se

explica pela intervenção dos deuses; a seguir, o estado metafísico das explicações

abstratas (o ópio faz dormir porque tem a virtude dormitiva); e depois, o estado

positivo em que predominam as Ciências. Kardec acrescentou a essa teoria, por

sugestão de um leitor da “Revista Espírita” (Veja-se o n. de abril de 1858) o esta-

do psicológico iniciado pelo Espiritismo. Vemos hoje o acerto desse acréscimo.

As ciências psicológicas dominam o mundo atual e já se abriram para o futuro a-

través da investigação parapsicológica. A Humanidade avança, segundo a obser-

vação de Simone de Beauvoir, que não é espírita, “num constante devir”. O ho-

mem se liberta da matéria, emancipando-se como espírito.

Mas o Espiritismo não é apenas a fase derradeira do processo gnoseológi-

co em que nos encontramos como componentes da Humanidade terrena. Ele apre-

senta também, em si mesmo, as características de um processo gnoseológico es-

pecial. A Teoria do Conhecimento nos mostra que as fases sucessivas do conhecer

se repetem no desenvolvimento do Espiritismo. Através do seu aspecto científico

ele nos oferece a captação sensorial do mundo fenomênico, dessa faixa da Nature-

za em que o espírito se manifesta no sensível, e a captação extra-sensorial do inte-

ligível, da realidade espiritual. Através da Filosofia Espírita, nos mostra a inter-

pretação racional do Universo e do Homem numa visão integral. Através da Reli-

gião Espírita, - moral, normativa e jamais ritual, sacramental, destituída de resí-

duos mágicos – determina a orientação adequada, no plano existencial, à nossa

conduta em face da realidade ampla que conseguimos descortinar.

Assim, a Teoria Espírita do Conhecimento explica, ao mesmo tempo, o

problema do conhecer em sua expressão mais simples e em sua expressão mais

complexa. Aprendemos, graças a ela, que o processo gnoseológico é uma conquis-

ta e uma integração. Conquistando pelo conhecimento progressivo o saber espíri-

ta integramo-nos na realidade multidimensional da era cósmica. Não pensamos

mais em termos geocêntricos, organocêntricos ou antropocêntricos e, por isso

mesmo, não vivemos mais apegados a temores e superstições. O Espiritismo nos

confere a emancipação espiritual de cidadãos do Cosmos. Pertencemos à Huma-

nidade Cósmica.

*

V – FIDEÍSMO CRÍTICO – KARDEC E A CRÍTICA DA FÉ

VERSUS KANT E A CRÍTICA DA RAZÃO.

A Teoria Espírita do Conhecimento nos levou da simples sensação até à

captação da realidade espiritual. O Espiritismo, como síntese de todo o progresso

espiritual da Humanidade, repete, em seu desenvolvimento, o processo filogenéti-

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co do conhecer. O Espiritismo aparece, assim, como um novo ser da família do

conhecimento. À maneira das crianças que repetem, em sua vida intra-uterina, o

processo da evolução animal, o Espiritismo reinicia a descoberta do mundo no

campo fenomênico através da sensação e da percepção, passando pelo desenvol-

vimento racional para atingir o plano metafísico da fé. Mas a fé espírita apresenta-

se como raciocinada e, portanto, proveniente do raciocínio. É uma filha da razão,

e, não obstante, tem como pai o sentimento.

Se nos lembrarmos de que a razão, no plano existencial, procede da sensa-

ção, veremos que a imagem do processo filogenético se justifica. Para Kant a ra-

zão era um sistema de princípios universais e necessários, que organizava os da-

dos da experiência sensível. Era o espírito humano, dotado do poder de discernir e

disciplinar as sensações, que organizava o conhecimento a partir das categorias

racionais. Para os neokantianos atuais, na corrente do Relativismo Crítico de Oc-

tave Hammelin e René Hubert, as categorias da razão se formam na experiência,

são as próprias experiências sensoriais transformadas em elementos dinâmicos do

psiquismo. Na Filosofia Espírita esses elementos são apriorísticos, segundo en-

tendia Kant, mas como potencialidades. A experiência sensível os desenvolve e

atualiza, transforma a potência em ato.

Vemos assim que a sensação excita e desenvolve a razão, mas esta é que

dá sentido à sensação. O princípio inteligente universal possui os germes da ra-

zão, que a experiência sensorial faz desabrochar. No cap. “Progressão dos Espíri-

tos”, de “O Livro dos Espíritos”, itens 114 a 127, vemos que a evolução espiritual

(semelhante ao desenvolvimento psíquico das crianças) parte do geral indiferenci-

ado (indiferenciação psíquica) para a diferenciação progressiva dos reinos vegetal,

animal e hominal, atingindo neste a plena individualização e buscando conscien-

temente a perfeição. Os espíritos humanos aparecem no plano existencial dotados

de inteligência (capacidade de captar o nexo das coisas e das idéias), de livre-

arbítrio (liberdade de escolha) e da missão (obrigação a cumprir) a desenvolver

na ordem universal ou na harmonia do Universo, aperfeiçoando-se moralmente

para se aproximarem de Deus. Isso nos mostra o conhecimento como um processo

que vai do finito (o plano fenomênico ou sensorial) ao infinito (Deus) de maneira

que sensação, razão e intuição aparecem como simples fases (de desenvolvimento

sucessivo mas coexistentes no dinamismo espiritual) da evolução dos seres.

Razão e Fé constituem, portanto, elementos essenciais do espírito, conju-

gados em torno de um eixo que é a Vontade. Esta, a Vontade, se representa pelo

livre-arbítrio, o princípio da liberdade, sem o qual a Razão de nada serviria e a

Fé não teria sentido. Vê-se claramente a natureza sintética do Espiritismo. Todas

as antinomias, todas as contradições se resolvem numa visão mais ampla do pro-

blema universal. O racionalismo e o empirismo, o positivismo e o idealismo, o

materialismo e o espiritualismo, o ontologismo e o existencialismo, e assim por

diante, encontram o seu delta comum numa visão gestáltica ou global do Univer-

so. Não há motivo para as intermináveis disputas a respeito de Razão e Fé, pois

ambas pertencem à própria substância do ser, que desprovido de uma delas já não

poderia ser.

Fé e Razão estão implícitas na própria destinação dos seres e a Razão se

desenvolve, ao mesmo tempo, apoiada na Fé e buscando a Fé. Vice-versa, a Fé

serve de apoio à Razão e nela encontra o meio de se desenvolver. Para a demons-

tração desse sincronismo a Filosofia Espírita teve de cumprir a tarefa de explicar a

Fé. Isso levou Kardec a realizar a crítica da Fé, como Kant se vira obrigado, para

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superar as divergências do empirismo e do racionalismo, a realizar a crítica da

Razão. Kardec não faz um trabalho sistematicamente filosófico porque o seu obje-

tivo não é fundar um sistema novo de Filosofia, mas oferecer ao mundo “uma Fi-

losofia Racional, livre dos prejuízos do espírito de sistema”, como já tivemos o-

portunidade de ver. Mas a sua crítica da Fé penetra na raiz do problema. Depois

de mostrar que ela pertence à própria essência do ser, estuda o processo de sua

manifestação. Psicologicamente (itens 960 a 962 do L.E.) a fé se apresenta como

“o sentimento inato de justiça” que todas as criaturas humanas possuem. Senti-

mento que se apóia na “idéia inata de Deus”, nessa certeza intuitiva que faz do

homem uma criatura naturalmente religiosa, a ponto de nunca haver existido uma

tribo ou um povo ateu. Assim, sociologicamente a Fé se manifesta como um ele-

mento de ligação social, o cimento que embasa as estruturas da sociedade e se

concretiza nas instituições religiosas. Gnoseologicamente a Fé se traduz na Lei de

Adoração, lei natural que dirige todo o processo da evolução humana, individual e

coletiva, e que só aparece definida e estudada em “O Livro dos Espíritos”.

No Cap. XIX de “O Evangelho Segundo o Espiritismo” Kardec estuda os

aspectos imanente e transcendente da Fé. O imanente é o que ele chama a Fé hu-

mana, que consiste na “confiança na realização de alguma coisa, a certeza de atin-

gir um fim”. O transcendente é a fé religiosa. O homem tem fé em si mesmo, na

sua força, na sua inteligência, na sua capacidade. Mas tem fé, também, no seu des-

tino, nas forças sobrenaturais e em Deus. Em todos os estágios de sua manifesta-

ção, desde as eras primitivas até os nossos dias, a Fé se justifica pela Razão. Mas

somente na era espírita, no momento em que o Espiritismo desvenda novas pers-

pectivas à compreensão humana, a fé se confirma pela explicação racional e se

demonstra de maneira científica. A Fé cega do passado se transforma, então, na Fé

racional e raciocinada do Espiritismo.

A posição crítica de Kardec, em relação à Fé, assemelha-se à de Kant em

relação ao problema da Razão. Ambos procuram tirar a Filosofia de um impasse.

No século dezoito esse impasse se referia à natureza e aos limites do conhecimen-

to. Ao dogma metafísico da Razão como elemento único do conhecimento, e ao

dogma empirista que colocava as sensações nessa mesma posição, sucedera o ag-

nosticismo de Hume, para quem todo conhecimento se tornava impossível e toda

verdade ilusória. Kant se propõe a realizar uma crítica profunda da Razão e con-

segue chegar a uma síntese parcial do processo gnoseológico, superando a contra-

dição racional-empírica. Recorre à Ética e nela se apóia para superar as contradi-

ções e oferecer uma nova base à Metafísica destruída pela época das luzes. Kant

restabelece o valor da Razão e reconstrói os fundamentos da Fé. A natureza moral

do homem lhe oferece os elementos necessários à vitória sobre Hume. De Kant

para frente, a existência de Deus se torna uma verdade moral que não depende dos

sofismas racionais. Mas a fé, reduzida ao campo ético, fica exposta às controvér-

sias que logo mais se travarão sobre o próprio valor da Moral e que, ainda hoje

conturbam o mundo filosófico.

O grande problema do século dezenove era o da validade da fé. Kardec en-

frenta esse problema com a simplicidade do bom-senso cartesiano. Não necessita

de entrar na arena das grandes especulações. Dispõe de duas armas excelentes: o

bom-senso e a pesquisa científica. O bom-senso lhe oferece o melhor da conquista

kantiana: a liberdade de julgar, que prova a natureza transcendente do Homem. A

pesquisa científica lhe assegura a prova positiva e até mesmo material dessa trans-

cendência. Fica, pois, dispensado dos circunlóquios infindáveis da argumentação

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filosófica. É com essas duas armas que ele responde ao desafio do século. E com

elas realiza a crítica necessária, que completa a especulação kantiana, provando a

validade universal da fé.

A crítica de Kardec reveste-se das exigências fundamentais do chamado

espírito-crítico: é genética ou externa, examinando a origem e a manifestação ob-

jetiva da Fé no plano social; e é ontológica ou interna, investigando a substância e

o significado da Fé em si mesma, como um fato subjetivo. Nada falta, pois, à sua

crítica da Fé para ser filosoficamente válida. No item 4 (Questão 4) de “O Livro

dos Espíritos”, encontramos a afirmação da existência de Deus como necessidade

lógica. A Filosofia Espírita reafirma o postulado cartesiano: “A idéia de Deus está

no homem como a marca do obreiro na sua obra.” E completa o pensamento de

Descartes de que: “Tirar Deus do Universo seria como tirar o Sol do nosso siste-

ma solar”, com o célebre postulado kardeciano: “Todo efeito inteligente tem uma

causa inteligente, e a grandeza da causa corresponde à grandeza do efeito.”

A posição espírita no tocante ao problema da Fé está hoje suficientemente

confirmada pela investigação filosófica. O Relativismo Crítico, essa corrente neo-

kantiana a que já nos referimos, estabelece o primado moral das exigências da

razão no campo do conhecimento. A primeira dessas exigências, para o conheci-

mento do Universo e o desenvolvimento moral do homem é a existência de Deus.

A segunda é a Fé em Deus, a confiança interna, intuitiva, no seu poder e na sua

providência, não como uma entidade pessoal, antropomórfica, mas como “a intui-

ção de uma Presença e a identificação a essa Presença”, segundo a expressão final

de Hubert em “Esboço de Uma Doutrina da Moralidade”. Por outro lado, a Fé es-

pírita não se enquadra num sistema dogmático e ritual: o seu ambiente natural e

necessário é o da liberdade moral. Para Kardec, como para seu mestre Enrico Pes-

talozzi, a religião verdadeira é a Moralidade, a que leva o homem, não à santidade

convencional, mas à sua realização como ser moral. Kant e os neokantianos dizem

o mesmo.

O pecado de Kant foi o da dicotomia no plano do conhecimento, negar à

Razão a possibilidade da metafísica. Essa posição estimulou, em nossos dias, al-

guns pensadores que procuram manter-se no campo do empirismo, entendendo

que as ciências não podem ir além do sensível. Mas é tão insustentável esse argu-

mento que os próprios filósofos materialistas o têm recusado. John Lewis, filósofo

marxista inglês, afirma em seu livro “Ciência, Fé e Ceticismo”, que tal argumento

implica a rejeição da realidade objetiva das próprias leis e teorias científicas. Wi-

lhelm Dilthey, o famoso filósofo historicista alemão, estuda a formação da cons-

ciência metafísica do Ocidente a partir dos gregos, passando pela Idade Média e

eclodindo na Renascença, para concluir que o método experimental das ciências

se fundamenta na Fé.

Um trabalho de Alfred North Whitehead, “A Ciência e o Mundo Moder-

no”, põe água na fervura demonstrando que toda a nossa estrutura científica se a-

licerça numa fé ingênua e jamais demonstrada. Se a religião parte do pressuposto

da existência de Deus, de que tanto zombam alguns cientistas, a verdade é que a

Ciência faz o mesmo, partindo do pressuposto da ordem universal. Essa ordem,

por sua vez, exige um poder mantenedor, uma força ou um conjunto de forças que

garanta o controle e a regularidade permanente das funções criadoras e renovado-

ras da Natureza. O que Kardec chamou de “sentimento intuitivo da existência de

Deus”, o filósofo Whitehead chama de “convicção instintiva”. Os termos se equi-

valem, mas a expressão de Kardec é mais adequada. Ouçamos Whitehead: “Em

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primeiro lugar, não pode haver Ciência viva se não estiver difundida a convicção

instintiva de uma ordem das coisas e, em particular, de uma ordem da Nature-

za.” E acrescenta: “Usei intencionalmente a palavra instintiva.” Referindo-se ao

agnosticismo da filosofia de David Hume, lembra Whitehead que a Ciência o re-

peliu e continuou apegada à fé na ordem universal, sem o que voltaríamos à Idade

Média.

Uma passagem curiosa de Whitehead nos lembra o Evangelho. Escreve e-

le: “A fé científica se manteve à altura das circunstâncias e aplainou tacitamente a

montanha filosófica.” É uma confirmação histórica e científica de que a fé remove

montanhas. Ai das Ciências se assim não fosse! E Whitehead confirma a seguir a

teoria de Dilthey: “Minha explicação é que a fé na possibilidade da Ciência, origi-

nada antes da teoria científica moderna, é um derivado inconsciente da teologia

medieval”. Teríamos de voltar a Dilthey para lembrar que em seu livro “O Ho-

mem e o Mundo” ele considera a Idade Média como um longo período de trei-

namento da Razão, durante o qual fermentou na Europa o racionalismo iluminista

que deveria eclodir no Renascimento e dar início ao mundo moderno.

Dessa maneira, a Ciência aparece no Renascimento como uma reação da

Teologia Medieval contra si mesma. Por isso, Descartes surge como o continua-

dor de Abelardo, cujo racionalismo é levado pelo cartesianismo “sob inspiração

do Espírito da Verdade” (segundo as declarações do próprio filósofo) às últimas

conseqüências. Os pressupostos metafísicos da ordem universal e das conexões de

causa e efeito não puderam ser abandonados nem mesmo pelo Positivismo e o

Materialismo Dialético, pois sem esses pressupostos seria impossível qualquer

conhecimento e voltaríamos ao agnosticismo destruidor de Hume. A fé científica

permitiu o desenvolvimento das Ciências e continua a sustentá-la.

E podemos ir além, acrescentando que neste momento, quando um foguete

cósmico é lançado no espaço (façanha que tem servido para novas e ingênuas es-

peranças de parte dos negadores sistemáticos), o poder da Fé se confirma e se de-

monstra. Por outro lado, o lançamento de um foguete é um ato de submissão a

Deus. Pois o que faz a inteligência humana para conseguir essa realização, senão

curvar-se ante a realidade das leis universais e obedecer rigorosamente a essas

leis, sob pena de acabar numa catástrofe?

A Filosofia Espírita não é dicotômica, não divide a realidade em duas par-

tes, não abre um abismo entre matéria e espírito. Pelo contrário, sua posição é

monista, sua cosmovisão é global. As leis naturais, físicas, psíquicas, morais ou

metafísicas são todas leis de Deus. A fé humana do vendedor que confia em si

mesmo, a Fé científica do sábio que confia na ordem universal, a Fé mística do

crente que confia no seu santo ou no seu Deus são todas manifestações de uma

mesma lei, que é estudada em “O Livro dos Espíritos” como Lei de Adoração.

Essa lei universal levou Pierre Gaspar Chaumette a entronizar a bailarina Candeil-

le no altar da Catedral de Notre Dame como a Deusa Razão; fez o filósofo positi-

vista Augusto Comte cair de joelhos ante a deusa Clotilde de Vaux; obrigou Marx

e Engels a proclamarem a classe operária como o Messias da redenção socialista;

e só encontrou, apesar de tudo isso, na Filosofia Espírita a sua análise, a sua críti-

ca e a sua explicação racional.

*

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VI — ONTOLOGIA ESPÍRITA

O problema do ser empolga toda a História da Filosofia e podemos consi-

derá-lo como o elo que mantém a união do pensamento religioso com o filosófico.

Deixando de lado a Filosofia mística do Oriente, que pertence ainda à fase do sin-

cretismo gnoseológico, na qual a Filosofia e Religião formam um todo confuso,

podemos situar o início da cogitação ontológica de Pitágoras. Dele passamos às

escolas em contradição dos Eleatas e dos Jônios, atravessamos a era helenística,

em que Plotino se destaca no neo-pitagorismo considerando o Ser como a "alma

viajora do Infinito", passamos pela Idade Média em que a mística volta a impreg-

nar o pensamento filosófico, pelo Renascimento em que se repete com Descartes

o episódio pitagórico, pelo Mundo Moderno em que o problema do Ser vai ser

posto em questão e chegamos à época atual, ao Mundo Contemporâneo, em que o

Ser se apresenta novamente dominando a Filosofia.

A Filosofia Espírita integra-se perfeitamente nessa tradição filosófica. E

cumprindo a sua função de síntese esclarece, como vimos no caso de Fé e Razão,

o sincretismo das fases místicas, mostrando o Ser como o Centro natural de todo o

processo do conhecimento. A contradição eleata-jônica, que ainda hoje domina o

mundo filosófico, encontra a sua solução dialética na Filosofia Espírita. Bem sa-

bemos que esta afirmação é da mais alta gravidade, mas podemos assegurar que já

seria um lugar comum se os filósofos que imperam no pensamento atual houves-

sem examinado sem prevenções a questão espírita. Infelizmente, como escreveu

Kardec há mais de cento e vinte anos, ainda hoje podemos repetir que os homens

eminentes no campo do saber assumem às vezes atitudes bastante pueris, deixan-

do de lado questões importantes por motivos puramente circunstanciais.

O Ser, para Pitágoras, era representado pelo número 1. E a inefável unida-

de pitagórica, geralmente considerada como a substância numérica da realidade.

Pitágoras, como acentuou Bertrand Russel, é o primeiro filósofo e também o pri-

meiro homem em que Fé e Razão se definem como um par. A Matemática é o

processo racional de que ele se serve para esclarecer os problemas da fé no campo

da mística. De um lado, Pitágoras é um órfico (ligado à tradição de Orfeu na his-

tória religiosa dos gregos) e de outro lado é um jônico (ligado ao desenvolvimento

das pesquisas fisicas de Tales, na Jônia). Assim, nele se fundem a concepção de

Zenão de Eléia e Parmênides (escola eleata) do Ser como imóvel, uma esfera sem

qualquer movimento (porque a esfera é a figura geométrica da perfeição e o não-

movimento é a imagem ideal da perfeição), e a concepção de Tales de Mileto, do

Ser como incessante movimento, a que Heráclito, de Éfeso, dava a condição de

constante devir, de renovação infinita. Definindo o Ser como a Unidade, o Núme-

ro Um, Pitágoras o considerava imóvel. Mas admitindo que essa imobilidade po-

dia sofrer abalos, dava-lhe a possibilidade de agitar-se. E era assim que ele expli-

cava a gênese do Universo: um estremecimento de Um produz o Dois e desenca-

deia a Década, o número 10 que representa o Universo.

O Ser teológico da Mística se transforma assim no Ser racional da Filoso-

fia e se multiplica numa infinidade de seres. Os números são infinitos e o infinito

matemático representa a natureza infinita do Universo. Na Filosofia mais recente

voltamos a encontrar a posição pitagórica. Para Sartre, o criador do Existencialis-

mo Ateu, o Ser é uma espécie desses ovóides de que nos falam os livros de André

Luiz (influência eleata), uma consciência fechada em si-mesma, envolta numa es-

pécie de membrana limbosa (segundo a própria expressão sartreana em L'etre et le

Néant), mas que se projeta na Existência (influência pitagórica) saindo de sua i-

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mobilidade e seu isolamento para existir. E nas demais correntes da Filosofia con-

temporânea o Ser continua na posição de problema fundamental. No marxismo e

no neopositivismo é o ser humano o que importa. E o que é o ser humano, senão a

projeção pitagórica do Ser único e a projeção sartreana do mistério limboso? As-

sim, o Ser é sempre, em qualquer sistema ou concepção, o mistério do Um e do

Múltiplo.

Na Filosofia Espírita esse mistério se aclara através da revelação e da co-

gitação. A revelação, como vimos, pode ser humana ou divina. No caso é divina,

pois reservamos para o campo humano a expressão clássica da técnica filosófica:

a cogitação. Os Espíritos revelaram a existência do Ser pela comunicação mediú-

nica (e a provaram pela fenomenologia mediúnica), mas os homens confirmaram

essa existência pela cogitação, pela pesquisa mental do problema. Todos conhe-

cemos a expressão de Descartes, Cogito, ergo sum; penso, logo existo. Kardec

não repetiu Descartes, mas acrescentou um verbo novo ao pensar, ampliando o

conceito da presença de Deus no homem. Podemos interpretar assim a posição de

Kardec: Sinto Deus em mim, logo existo. É o que vemos no cap. 10 de "O Livro

dos Espíritos", onde a questão é assim colocada no item 6: “O sentimento intuiti-

vo da existência de Deus que trazemos em nós seria efeito da educação e o produ-

to de idéias adquiridas?”

A resposta dos Espíritos é esta: "Se assim fosse, porque

os vossos selvagens teriam também esse sentimento”?

A essas duas perguntas, a esse duelo que travou com os Espíritos, Kardec

acrescenta no comentário ao mesmo item: "Se o sentimento da existência de um

Ser supremo fosse apenas o produto de um ensino, não seria universal e só existi-

ria, como as noções científicas, entre os que puderam receber o ensino”.

O concei-

to espírita de Deus, portanto, como todos os nossos conceitos, se origina no plano

do sentimento, da afetividade humana. O homem, primeiramente, sente que Deus

existe. É o caso do selvagem, que Feuerbach acusou de medroso (criando Deus

pela imaginação aterrorizada diante da Natureza) e que Spencer dotou de uma ca-

pacidade de abstração mental inaceitável, tanto numa apreciação psicológica, co-

mo antropológica e histórica. Primeiro sentimos, depois pensamos. Há um livri-

nho de Emmanuel, "Pensamento e Vida”,

recebido psicograficamente, por Chico

Xavier, que explicará bem esse processo para aqueles que desejarem conhecê-lo

do ponto de vista espírita.

Talvez agora se torne mais clara a nossa afirmação anterior que a Fé per-

tence à própria substância do Ser. Ao criar os seres (ou Espíritos) Deus lhes im-

primiu sua marca, segundo Descartes, e essa marca é a idéia de Deus, inata no

homem. Mas Kardec se refere a um sentimento intuitivo que precede à idéia e esse

sentimento é que representa a verdadeira marca do obreiro em sua obra. Assim,

primeiro sentimos Deus e depois pensamos nele. O Ser está em nós por essa intui-

ção, mas nós também somos seres. Cada criatura humana é um ser espiritual, mas

é também um ser físico ou um ser corporal. Esse problema do Ser físico, hoje co-

locado pela chamada Ontologia do Objeto, é puramente verbal e portanto abstrato

no plano da Filosofia atual. Mas na Filosofia Espírita é um problema concreto e

suscetível de verificação experimental. Encontramo-lo no item 605.a de "O Livro

dos Espíritos", que assim o coloca: "Se o homem não possui uma alma animal,

que por suas paixões o rebaixe ao nível dos animais, tem o seu corpo, que fre-

qüentemente o rebaixa a esse nível, porque o corpo é um ser dotado de vitalidade,

que possui instintos, mas não inteligentes, limitados aos interesses de sua conser-

vação.

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Nas experiências de exteriorização da sensibilidade e da motricidade reali-

zadas pelo Cel. Albert de Rochas, diretor do Instituto Politécnico de Paris, foi

possível constatar-se a realidade desse ser vital, que os antigos conheciam mas

tomavam por uma espécie de alma humana, como vemos a partir dos gregos.

Também em experiências de desdobramento mediúnico e em sessões de materia-

lização e efeitos físicos vários observadores reconheceram materialmente a exis-

tência de uma espécie de corpo fluídico mais denso e pesado que o perispírito, que

ao retirar-se do corpo material do médium embaraçava o perispírito e ao mesmo

tempo deixava o corpo carnal em estado de morte aparente. É o chamado corpo

vital de certas doutrinas espiritualistas antigas, um ser que realmente corresponde

à natureza animal do nosso corpo e é o responsável direto pelas nossas funções

vegetativas. Assim, a Filosofia Espírita satisfaz as exigências atuais de ligação do

pensamento filosófico com os dados da investigação científica, o que, aliás, cons-

titui uma de suas características fundamentais.

O ser, portanto, não é apenas o Espírito, é também o perispírito e o corpo

vital. Isso a partir do desencadeamento da Década, ou seja, da multiplicação do

Ser único ou supremo que é Deus. Existe uma idéia geral de Ser, um conceito do

Ser que foi bem definido em Aristóteles e na Bíblia. Para Aristóteles, o Ser “é a-

quilo que é”. Na Bíblia é Deus quem fala, embora figuradamente, e se explica:

“Eu sou o que é”. Esse conceito desce do plano divino para o humano em Descar-

tes, quando verifica, no cogito que ele é porque pensa. Mas o próprio Descartes

volta ao conceito divino ao afirmar a existência de Deus no homem, ao encontrar

essa existência no fundo do Cogito, ou seja, da sua cogitação filosófica. Então,

Deus é e se afirma na intuição cartesiana de Um Ser supremo, como se afirma no

sentimento intuitivo kardeciano. Parmênides, eleata, dizia que o pensamento do

Ser é o próprio Ser. E o Ser, para ele, era uma esfera pensante (a esfericidade cor-

respondendo à perfeição) mas como pensante, era ativo em si mesmo. Isso nos

lembra a afirmação de Aristóteles de que Deus é o ato puro, ou seja, o Ser absolu-

to em que todas as potencialidades se encontram atualizadas, realizadas em ato.

Na Filosofia Espírita o conceito do Ser abrange todas as categorias daquilo

que é, concordando, portanto com o pensamento filosófico antigo e moderno. Mas

ela tem as suas peculiaridades. A definição do Ser supremo, por exemplo, nos é

dada no item 1.0 de "O Livro dos Espíritos" da seguinte maneira: "Deus é a inte-

ligência suprema, causa primária de todas as coisas." Houve quem considerasse

essa definição como antropomórfica, pois a inteligência é característica do ho-

mem. Essa crítica peca por ignorância: ignora que no Espiritismo o homem é cria-

ção de Deus e reflete no finito os seus atributos infinitos. Antes de pertencer ao

homem, a inteligência é de Deus. Mas vejamos as proposições que surgem dessa

definição: Deus é apresentado como inteligência porque é a causa de efeitos inte-

ligentes; esses efeitos constituem todo o Universo e todos os seres; a inteligência é

o aspecto de Deus mais acessível a nossa compreensão e mais suscetível de verifi-

cação para nós no plano fenomênico ou existencial. No comentário ao item 5,

Kardec explica: "Para crer em Deus é suficiente lançar os olhos às obras da Cria-

ção. O universo existe; tem, portanto, uma causa. Duvidar da existência de Deus

seria negar que todo efeito tem uma causa e avançar que o nada pode fazer algu-

ma coisa."

Na resposta à pergunta 14 de "O Livro dos Espíritos", quando Kardec in-

siste numa definição mais completa de Deus, vemos a seguinte afirmação dos Es-

píritos: "Deus existe, não o podeis duvidar e isso é o essencial." Não precisamos

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examinar o resto da resposta, pois o exame desta simples sentença coloca-nos em

várias pistas. São três proposições que surgem dessa afirmação: 1a.) A afirmação

de Deus como realidade absoluta e fundamental; 2.a) A afirmação da existência

de Deus, que coloca Deus no plano existencial, como realidade concreta e acessí-

vel aos nossos sentidos; 3a.) A afirmação da impossibilidade de se negar Deus,

que não apenas é mas também existe, e de cujo ser e existir somos partícipes.

A primeira proposição é “Deus existe”, mas se desdobra logicamente em

duas, afirmando primeiro a realidade de Deus como Ser e a seguir afirmando a e-

xistência de Deus. Deus como Ser é essência, como existência se projeta no plano

fenomênico. Essa dedução provém do aspecto existencial do Espiritismo, formu-

lado independentemente das chamadas Filosofias da Existência, mas contemporâ-

neo delas. O existir de Deus é visível na Natureza, no Universo com suas leis:

"Para crer em Deus é suficiente lançar os olhos às obras da Criação". Isto levou

alguns teólogos a acusarem o Espiritismo de panteísmo, mas o próprio “Livro dos

Espíritos" trata do assunto, repelindo por antecipação a acusação dos teólogos. A

existência de Deus é reconhecida pelas religiões positivas como imanência. Ora, a

imanência de Deus na Natureza é a sua própria existência, é a sua forma de existir

no plano fenomênico. Se o Espiritismo for panteísta, todas as religiões superiores

também o são, e isso de maneira irrevogável.

A terceira proposição é a de que não podemos duvidar da existência de

Deus. Ela reforça as duas anteriores. Não podemos duvidar da existência de Deus

porque ela implica a nossa própria existência e a do Universo em que existimos.

Negar Deus seria negar a nós mesmos e negar a toda a realidade que nos cerca.

Mas a Filosofia Espírita nos mostra também que não podemos ir além na afirma-

ção dessa realidade suprema. Temos os nossos limites: somos Espíritos encarna-

dos em corpos animais, submetidos a uma experiência sensorial que restringe a

nossa percepção e o nosso entendimento. Falta-nos um sentido, diz o item 10 de

"O Livro dos Espíritos", para podermos penetrar a natureza íntima de Deus. A

tentativa de "entrar num labirinto" para explicar o que nos é inexplicável só pode-

ria levar-nos ao engano e estimular o nosso orgulho. Entretanto, como vimos pela

afirmação do item 10, o Espiritismo não é agnóstico. A Filosofia Espírita é evolu-

cionista e sustenta que o homem chegará a compreender Deus em maior amplitu-

de e profundidade, na proporção em que desenvolver as suas potencialidades espi-

rituais.

Mas quando descemos do Ser supremo para os seres múltiplos que povo-

am o universo o problema se torna mais fácil. Compreendemos sem dificuldade

que Deus cria os seres com os elementos constitutivos do Universo. A imagem

simbólica do Gênese: “Deus criou o homem do limo da terra”

adquire um sentido

profundo e grave. A expressão bíblica se nimba de luz e poesia. Não é mais um

absurdo nem uma infantilidade: é a expressão de um processo cósmico de criação.

Deus não faz o homem de barro num sentido vulgar, mas é do barro da terra, atra-

vés da ação progressiva das suas leis que Ele arranca no correr dos milênios os se-

res da matriz do não-ser. Os Espíritos são os seres múltiplos e finitos que Deus

cria com o barro simbólico do princípio inteligente, envolvidos na ganga do fluido

universal e do princípio material. São como sementes mergulhadas na terra para

germinar.

Mas a ontologia espírita, como todas as demais, implica ainda os proble-

mas de essência, existência e forma. Os dois primeiros desses problemas obrigam-

nos a uma referência histórica. O essencialismo filosófico sofreu um abalo em

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nossa época com o desenvolvimento do existencialismo. As chamadas Filosofias

da Existência encaram as coisas em sua realidade imediata, ao contrário do clássi-

co procedimento dos essencialistas que buscam a substância das coisas. Na verda-

de, trata-se de um simples método de abordagem do problema filosófico. Mas na

Filosofia Espírita encontramos a síntese dessas posições. Os seres têm essência e

essa essência se desenvolve através da evolução: é o princípio inteligente. Essa

essência se reveste de formas diversas no processo evolutivo: a variedade infinita

dos seres forma uma gigantesca escala que as Ciências distribuem em numerosas

classificações de espécies, tanto na Mineralogia quanto na Botânica, na Zoologia

e na Antropologia. Essência e forma constituem a existência. Tudo o que existe se

constitui de uma essência que toma determinada forma e se reveste de matéria. A

forma, como Aristóteles já descobrira, não pertence à matéria, mas dela se apossa

para amoldá-la. Procede de um elemento intermediário: o fluido universal, que em

suas modificações diversas se apresentava como magnetismo, eletricidade, princí-

pio vital. Lemos no item 27 de "O Livro dos Espíritos": “Ele se coloca entre o es-

pírito e a matéria; é fluido, como a matéria é matéria, suscetível, em suas inume-

ráveis combinações com esta e sob a ação do Espírito, de produzir infinita varie-

dade de coisas, das quais não conheceis mais que ínfima parte”.

Essa expressão: “é fluido, como a matéria é matéria" mostra que a deno-

minação de fluido tem um sentido hipostásico. Espírito, fluido e matéria são as

hipóstases (ou as faixas) do real. A realidade ontológica reflete a realidade cósmi-

ca. No ser humano essa realidade se apresenta no complexo espírito, perispírito e

matéria. Entre os dois últimos existe ainda o fluido vital, como já vimos. Toda es-

sa complexidade, entretanto, é simplesmente a expressão pluralista de um monis-

mo fundamental. A essência é que tudo domina. Ela é a realidade última. Mas só

através da existência conseguimos atingi-la. Temos de penetrar as capas existen-

ciais do ser para encontrá-lo na sua realidade essencial. É por isso que o Espiri-

tismo tem o seu aspecto existencialista: vivemos na existência, evoluímos através

das existências sucessivas, vemos todas as coisas na perspectiva existencial, mas

buscamos em tudo a sua essência, pois sabemos que somente nela iremos encon-

trar o real.

A ontologia espírita oferece-nos uma visão dialética das coisas e dos seres.

Aprendemos que a realidade aparente é ilusória (como a própria Física hoje nos

mostra), mas que é também necessária para chegarmos à realidade verdadeira. O

ser humano está no ápice da escala evolutiva existencial. Acima dele se abrem as

perspectivas de outra existência, a dos Espíritos que superaram o domínio da ma-

téria e que as religiões chamam anjos, devas, arcanjos e assim por diante. Esses

Espíritos conservam sua individualidade após a morte do corpo e a conservam a-

través da evolução nos mundos superiores. Só a parte formal é perecível: o corpo

e o perispírito. A essência do Espírito é indestrutível, pois representa a atualiza-

ção das potencialidades do princípio inteligente, uma construção ou criação de

Deus para fins que ainda ignoramos. Como a essência é a mesma em todos os Es-

píritos, encarnados e desencarnados ou encarnados em mundos inferiores ou supe-

riores, a comunicabilidade dos Espíritos é uma lei universal, regida por princípios

naturais, como os de afinidade, justiça e amor. Essa lei de comunicabilidade mos-

tra na prática o absurdo da teoria existencial da incomunicabilidade proposta por

Kierkegaard. As dificuldades da comunicação humana decorrem do estágio evolu-

tivo da Terra, mas já estão sendo superadas por todas as formas de desenvolvi-

mento material e psíquico, particularmente pelo desabrochar progressivo da per-

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cepção extra-sensorial, no processo de aprimoramento mediúnico do homem ter-

reno.

Um problema difícil é o da transição do princípio inteligente para o reino

hominal, após a evolução nos reinos inferiores. Em "O Livro dos Espíritos" Kar-

dec se esquivou a esse problema, embora os Espíritos o tenham colocado em al-

gumas passagens. É em A Gênese, o volume final da Codificação, que ele resolve

enfrentá-lo através de comunicações com Galileu, dadas na Sociedade Parisiense

de Estudos Espíritas pelo médium Camille Flammarion. Ali se define, no n:° 19

do cap. VI do referido livro, como uma iluminação divina esse momento decisivo.

O Espírito então recebe, com o livre-arbítrio e a consciência, a noção dos seus al-

tos destinos. E a comunicação acentua: “Unicamente a datar do dia em que o Se-

nhor lhe imprime na fronte o seu augusto selo o Espírito toma lugar no seio da

Humanidade.”

Há uma espécie de seres que não figura na ontologia espírita: a dos seres

condenados para sempre ou voltados eternamente ao mal. A Filosofia Espírita não

admite essa concepção aberrante da justiça e do amor de Deus. Há diversidades no

processo de evolução dos Espíritos, em virtude do livre-arbítrio, indispensável ao

desenvolvimento da responsabilidade espiritual. Mas não há nem pode haver seres

maus por natureza, pois isso estaria em contradição com o princípio da criação de

todos os seres por Deus. Durante um século o Espiritismo foi acusado de demoní-

aco por negar a existência de espíritos eternamente maus. Agora, a própria teolo-

gia católica se modifica em suas bases para, graças a alguns pensadores corajosos,

aproximar-se da concepção espírita. É conhecido o livro revolucionário de Gio-

vanni Papini sobre o Diabo e suas conclusões favoráveis à posição espírita. Menos

conhecida é a posição do padre Teilhard de Chardin, que não avançou tanto como

Papini mas acabou afirmando que o condenado não fica excluído da ordem divina.

Aliás, em linhas gerais, Chardin é uma espécie de aproximação conceptual do Es-

piritismo, um referendum católico à Doutrina Espírita.

A escala espírita que figura em "O Livro dos Espíritos", a partir do n.°

100, oferece-nos um esquema ontológico da evolução do homem. Não se trata,

como lembra Kardec, de um esquema rígido, mas de uma simples classificação

em linhas gerais, para orientação dos estudiosos. Encontramos ali as diversas or-

dens e graus dos Espíritos, encarnados e desencarnados, com que nos defrontamos

neste mundo. E uma classificação espiritual que tem a sua aplicação psicológica

no tocante aos encarnados, oferecendo-nos uma curiosa tipologia que muito nos

auxiliará nas relações sociais. A Psicologia Espírita, hoje em desenvolvimento,

mostrará a validade e o interesse da escala espírita na orientação dos estudos de

tipologia e caracteriologia. Como se vê, andam enganados os que pensam que o

Espiritismo é uma espécie de fuga à realidade. Além de mostrar-nos as dimensões

ocultas do real, ele nos oferece possibilidades de maior compreensão e controle da

realidade aparente ou existencial que enfrentamos na vida terrena.

*

VII - EXISTENCIALISMO ESPIRITA

A natureza existencial da Filosofia Espírita se revela na sua ecstase, ou se-

ja, na sua posição dentro do mundo, enfrentando os problemas do homem na exis-

tência. Por isso mesmo o Espiritismo não pode ser confundido com o Existencia-

lismo, mas não há dúvida que encontramos na sua investigação ontológica uma

fase existencialista. E é essa fase que chamamos Existencialismo Espírita, a arena

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filosófica em que o Espiritismo se defronta com o Existencialismo protestante de

Kierkegaard, com o Existencialismo Católico de Gabriel Marcel, com o Existen-

cialismo ateu de Jean Paul Sartre e assim por diante, armado dos mesmos instru-

mentos conceptuais e colocado na mesma posição de pesquisa das diversas cor-

rentes existenciais da Filosofia Contemporânea.

Nicola Abbagnano, existencialista italiano, entende que as Filosofias da

Existência podem ser divididas em três grupos, tomando-se como critério o senti-

do e o emprego que dão à categoria filosófica do possível. Esta categoria implica

todas as possibilidades do homem como um Ser na Existência. Abbagnano estabe-

lece a seguinte divisão: a) — Grupo da impossibilidade do possível, formado por

Kierkegaard, Martin Heideggar, Karl Jaspers e Jean Paul Sartre, como figuras ex-

ponenciais; b) — Grupo da necessidade do possível, com Louis Lavelle, Rene Le

Senne e Gabriel Marcel; c) — Grupo da possibilidade do possível, iniciado pelo

próprio Abbagnano. Embora o grupo (a) constitui a área espiritualista, o Existen-

cialismo Espírita se aproxima mais da posição de Abbagnano, dadas as relações

evidentes dessa posição com a natureza científica da conceituação existencial es-

pírita.

Tentemos uma explicação deste problema. Para o primeiro grupo as possi-

bilidades humanas são irrealizáveis; para o segundo grupo são realizáveis, e mais

do que isso, necessariamente se realizam graças ao Absoluto, ao Transcendente

que supera a Existência (aceitação dos conceitos metafísicos do Ser e do Valor

numa perspectiva religiosa); para o terceiro grupo, as possibilidades são o que são,

ou seja, possíveis em si-mesmas, de maneira que não podem tornar-se impossí-

veis, nem apresentar-se como necessidades. A frustração de um possível não o a-

nula, pois ele continua como possível, da mesma maneira por que uma hipótese

pode ser submetida a uma experiência negativa, mas continuar válida e posterior-

mente se comprovar. A posição de Abbagnano representa uma síntese, uma solu-

ção dialética dos impasses em que caíram os dois grupos anteriores. E por isso

mesmo se aproxima da posição espírita.

Ao mencionar a ecstase da Filosofia Espírita estamos reconhecendo nela

uma estrutura ontológica. A Filosofia Espírita é um Ser conceptual, como todos os

sistemas filosóficos, mas livre dos prejuízos do espírito de sistema, porque sua es-

trutura é dinâmica e aberta, sem nenhuma ossatura dogmática. Expliquemos: os

dogmas da Filosofia Espírita são princípios de

razão e não postulados de fé, são os

filamentos de uma estrutura lógica e por isso mesmo flexíveis. Assim, podemos

discernir nessa estrutura as suas hipóstases ou regiões ontológicas: 1.°) a ecstase,

no sentido berkeleyano de relação inicial, em que o ser permanece fechado em si-

mesmo; é o momento em que a Filosofia Espírita nasce do sensível, do concreto,

pelo processo científico da indução, a partir do exame dos fenômenos; o momento

em que ela se fecha na existência como um ser no mundo; 2.°) — a ecstase em

que ela se abre na própria indução em direção à transcendência, na formulação de

seus princípios metafísicos; 3.°) — a ecstase, em que ela se define como uma no-

va concepção do Ser, uma nova cosmovisão, que partiu de um ponto existencial

terreno para abranger todo o Universo.

Assim, o que chamamos de Existencialismo Espírita é a Filosofia Espírita

da Existência, a parte dessa Filosofia que encara o homem no mundo, da mesma

maneira que o ser aí a que se referia Heidegger. Até o aparecimento do Espiritis-

mo o pensamento espiritualista era platônico: admitia o pressuposto de uma reali-

dade metafisica da qual decorria toda a realidade física. O Espiritismo assumiu a

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posição aristotélica: buscar na realidade concreta a sua essência possível e dela

partir para as induções metafísicas. "O Livro dos Espíritos" começa com a afirma-

ção da existência de Deus, mas já vimos que essa existência se prova na própria

existência do mundo, que Deus pode ser encontrado num simples lançar de olhos

sobre a natureza. Temos de figurar Kardec-educador, a estudar o ser humano para

poder educá-lo; Kardec-magnetizador, a estudar a influência magnética do homem

e entre os homens para poder conhecê-los melhor; Kardec-cientista, a observar os

fenômenos físicos em sessões mediúnicas e posteriormente a investigar os pro-

blemas do desprendimento espiritual durante o sono, numa série de experimenta-

ções rigorosamente controladas, para podermos compreender a posição existencial

do Espiritismo na abordagem do problema do Ser.

Os problemas comuns das Filosofias da Existência são precisamente os

problemas espíritas: o Homem como um ser no mundo; a Existência como uma

forma peculiar da vivência humana, uma atualização absoluta (segundo Bochens-

ki) e um constante refazer-se no tempo; o ser humano como um projeto que atra-

vessa a Existência, que nela aparece feito (a facticidade humana se constituindo de

subjetividade, afetividade e liberdade), de maneira que o homem é um ser atirado

ao mundo com o nascimento, para avançar em direção à morte, através do deses-

pero, da angústia, da dor. As Filosofias da Existência procuram resolver esses

problemas pela investigação fenomenológica, a partir dos dados do existir, que é,

na verdade, a própria vivência do mundo. Essa vivência se caracteriza pela per-

cepção da fragilidade humana que gera o desespero e a angústia do homem. Nas

correntes espiritualistas, como em Marcel, a angústia é substituída pela esperança

conferida pela fé, mas essa solução metafisica não consegue repercutir nos demais

pensadores. Heidegger considera o homem como ser para a morte, mas essa defi-

nição pessimista é atenuada pela sua afirmação de que o ser se completa na morte.

Toda essa temática existencial está presente na Filosofia Espírita. Bastaria

lembrarmos, por exemplo, o livro famoso de Léon Denis, um clássico do pensa-

mento espírita e continuador da obra de Kardec, intitulado "O Problema do Ser,

do Destino e da Dor”, para vermos como a posição existencial da Filosofia Espí-

rita se entrosa na corrente existencial da atualidade. Mas "O Livro dos Espíritos",

contemporâneo das obras de Kierkegaard, o iniciador dessa moderna corrente fi-

losófica, já coloca os problemas existenciais de maneira precisa, como veremos a

seguir.

Comecemos pelo problema da facticidade. Com o nascimento, o homem

aparece feito no mundo. Sua Facticidade se compõe do seu corpo e do seu psi-

quismo (corpo e espírito), de sua afetividade e sua liberdade (sua capacidade de

percepção e seu livre-arbítrio) e esta facticidade está carregada de possíveis, das

possibilidades que irão se desenvolver na existência. O homem parte, como uma

flecha, do ventre materno para o berço, deste para a vivência do mundo (atraves-

sando a existência como um projétil) para atingir o seu alvo na morte. Numa

perspectiva puramente existencial o homem, na sua facticidade, não tem mais do

que possibilidades, mas estas possibilidades vão se atualizar na existência, nos

limites permitidos pelas circunstâncias. Não há, portanto, uma essência no ho-

mem, considerado o homem como o existente, mas apenas possibilidades. Sartre

define a essência do homem como um suspenso na sua existência, pois a essência

humana vai ser elaborada através da sua vivência no mundo. Essa essência, por-

tanto, só se completa com a morte, com o fim da existência. Isto nos lembra a i-

mortalidade memorial do Positivismo de Comte. O que o homem fez na existência

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é que constitui a sua essência. Com a morte o homem se acaba e sua essência

permanece no mundo como um simples fato cultural. Não obstante, a vida do ho-

mem é uma paixão inútil, um esforço constante de superação, de transcendência.

O animal vive, mas o homem existe, e esse existir se caracteriza pela paixão, pelo

impulso de transcendência conscientemente dirigido. Só existe o homem que se-

gue esse impulso.

É fácil compreender que as filosofias da Existência, à maneira do que Kar-

dec dizia das Ciências, avançam paralelas ao Espiritismo até certo ponto e depois

se detêm, perplexas diante do mistério. O momento em que elas se detêm é o li-

miar da interexistência, esse intermúndio em que o ser se completa na morte, mas

no qual se passam também fatos da mediunidade. É nesse momento que o Exis-

tencialismo se transcende a si-mesmo para transformar-se em Interexistencialis-

mo. A Filosofia Espírita da Existência não se limita ao existir no mundo, como um

fato simplesmente fenomênico, mas graças ao conceito de mediunidade oriundo

da investigação científica objetiva e nela desenvolvido descobre o existir no in-

termúndio (que os gregos já conheciam como o existir dos deuses) e descobre a-

inda o suceder das existências no mundo como um processo palingenésico ineren-

te a toda a Natureza (que os gregos também conheciam).

Assim, a Filosofia Espírita, em sua ecstase existencial, ilumina os proble-

mas obscuros do Existencialismo. A facticidade misteriosa se explica pelo fazer

anterior do Ser, através do desenvolvimento do princípio inteligente e sua proje-

ção na existência como ser humano. Atravessando a existência, como um projétil

(o projeto existencial) o homem completa na morte não o seu próprio Ser, mas o

ser do corpo que chegou aos limites de suas possibilidades, nem a sua própria es-

sência, mas apenas a essência de uma existência, através da vivência das experi-

ências necessárias ao seu atualizar progressivo.

Para a Filosofia Espírita o corpo não é uma instância ontológica, mas uma

instância existencial. Da existência material o ser passa para a existência espiritu-

al, mudando de instância existencial: substitui o corpo fisico pelo corpo energético

do perispírito. E na existência espiritual encontramos ainda o problema existencial

da facticidade com todas as suas implicações. O Espírito aparece feito no plano

espiritual, dotado de um corpo que foi elaborado anteriormente, de um psiquismo

que se desenvolveu na vivência mundana, com sua afetividade e sua intelectuali-

dade preparadas nas existências sucessivas e consumadas na derradeira existência

material. Não obstante, e até por isso mesmo, a existência espiritual é uma trans-

cendência da existência material, é o momento em que a síntese do em-si e do pa-

ra-si, que Sartre considera impossível, se realiza no em si-para-si, ou seja, na e-

xistência espiritual que, para os gregos, era divina e os levava a chamar os Espíri-

tos de deuses.

Mas o conceito de mediunidade ilumina também a existência terrena, dan-

do-lhe uma nova dimensão. O existente ou homem no mundo adquire a condição

espírita de interexistente ou homem no intermúndio. O avanço das Ciências Psico-

lógicas está comprovando essa realidade já demonstrada pelo Espiritismo e sus-

tentada pela Filosofia Espírita. A descoberta da percepção extra-sensorial provou

que os rígidos limites existenciais não correspondem à realidade existencial. Há,

na própria existência terrena, corporal, mundana, uma realidade psíquica superan-

do e envolvendo a realidade puramente vital do homem. E quando Heidegger se

refere ao ser no mundo, como Mitsein (ser com outros, o ser social) e à Mitdasein,

ou coexistência (vida social), temos de acrescentar a esses dois conceitos a dimen-

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são mediúnica das testemunhas de que falava o apóstolo Paulo, dos outros espiri-

tuais que nos envolvem e, portanto, da convivência espiritual que experimentamos

através da existência.

Para a Filosofia Espírita da Existência o existente se define pela mediuni-

dade. Esta consiste na faculdade normal (nem sobrenatural nem paranormal) de

percepção extra-sensorial e, portanto, de comunicação com os existentes do inter-

múndio. A dinâmica e a mecânica dessa comunicação são estudadas em "O Livro

dos Médiuns", que é um desenvolvimento dos problemas mediúnicos de “O Livro

dos Espíritos”. O existente atualiza as suas possibilidades mediúnicas que lhe am-

pliam a consciência de si-mesmo e da sua natureza existencial, através do desen-

volvimento mediúnico, que não é apenas o sentar-se à mesa de sessões para rece-

ber espíritos, mas principalmente aguçar a visão espiritual, entendendo-se por vi-

são todo o complexo da percepção extra-sensorial. Esse aguçamento equivale a

um transcender dos limites existenciais, pois é um liberar progressivo da percep-

ção global do espírito, um escapar da prisão sensorial orgânica para outras dimen-

sões da realidade. O existente, com essa atualização dos seus possíveis espirituais,

torna-se um interexistente, um ser no intermúndio. Mas o intermúndio não é um

conceito espacial e sim um conceito hipostásico, não é quantitativo, mas qualitati-

vo. A intuição grega dos deuses se converte na realidade espírita dos Espíritos e a

do intermúndio espacial na realidade do intermúndio psíquico.

O interexistente não é apenas intuição, nem apenas hipótese, ou formula-

ção teórica. Pelo contrário, o interexistente é uma realidade histórica, antropológi-

ca, que podemos encontrar em todos os tempos e lugares. Foram interexistentes os

videntes e profetas de todas as épocas, os xanãs e pagés das tribos selvagens, os

oráculos, as pitonisas, os taumaturgos de todas as religiões. São interexistentes os

médiuns e os paranormais de hoje, os gênios de todas as épocas, os fundadores e

propagadores de religiões. A História da Filosofia oferece-nos as figuras de Sócra-

tes, Platão, Plotino, Descartes e Bergson como interexistentes. Na História da Psi-

cologia temos o caso recente de Karl Jung. Na História Política e Militar as figu-

ras de Joana D'Arc, Abraão Lincoln, Makenzie King (do Canadá), Lord Dowding

(Comandante da RAF na defesa de Londres durante a última guerra mundial), e

assim por diante. Os casos famosos de Francisco Cândido Xavier e José Pedro de

Freitas (Arigó) foram objeto de estudos numerosos, inclusive um estudo do pri-

meiro como interexistente, publicado no livro "Chico Xavier, quarenta anos no

mundo da mediunidade", de Roque Jacintho. O conceito espírita de interexistente

se comprova na realidade histórica e na realidade cotidiana das nossas próprias e-

xistências, quando não em nós mesmos.

O problema da comunicação, que a partir de Kierkegaard o Existencialis-

mo colocou de maneira dramática — Kierkegaard rompeu o noivado porque não

podia comunicar-se nem mesmo com a noiva, considerando como única forma de

comunicação a do homem com Deus (o outro, segundo sua expressão) — esse

problema é amplamente resolvido pela Filosofia Espírita da Existência. A comuni-

cação é uma categoria filosófica do Espiritismo que tem amplitude cósmica. Ve-

mos em "O Livro dos Espíritos" que o fluido universal é o veículo do pensamento,

assim como o ar é o veículo da palavra. O homem pode comunicar-se às maiores

distâncias. Daí a validade da prece, que é forma de comunicação. As experiências

atuais de telepatia à distância confirmaram essa tese espírita, a ponto de levarem

os cientistas soviéticos, materialistas, a se empenharem nas pesquisas telepáticas.

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O aguçamento da visão espiritual pelo desenvolvimento mediúnico impli-

ca um problema filosófico de comportamento. A Filosofia Espírita da Existência

coloca esse problema em termos de moralidade. Opõe-se assim aos sistemas ori-

entais de desenvolvimento artificial das faculdades psíquicas, por entender que es-

ses sistemas perturbam o equilíbrio existencial do homem. Só a moralidade, a

evolução moral do ser e, portanto, o desenvolvimento de suas potencialidades es-

pirituais pode permitir à criatura humana o aguçamento de sua visão espiritual.

Cada existência é um processo condicionado pelas anteriores e pela preparação do

Ser no mundo espiritual. Tem o seu plano e os seus limites, sendo estes determi-

nados pelo grau de desenvolvimento real do Ser e pelos compromissos que o liga

às circunstâncias terrenas. Qualquer tentativa de fuga a esses determinismos exis-

tenciais — o que pode ser feito em virtude do livre-arbítrio — atenta contra o e-

quilíbrio moral do Ser. Assim, a Filosofia Espírita da Existência revela mais uma

vez sua natureza de síntese do Conhecimento: coloca-se entre as posições contrá-

rias ao edonismo materialista ou existencialista, de um lado, e do absenteísmo re-

ligioso ou místico, de outro lado, postulando a obediência às leis naturais, o que,

no caso da concepção existencial, equivale ao respeito pela existência e seus fins.

*

VIII — COSMOSSOCIOLOGIA ESPÍRITA

A Filosofia Espírita foi a primeira a apresentar uma concepção cosmosso-

ciológica de ordem científica. Emile Durkheim trataria mais tarde de um tipo de

cosmossociologia anímica ao referir-se às cidades gregas do período arcaico, em

que deuses e homens conviviam em estreita comunhão com a Natureza (L'Evolu-

tion Pédagogique en France, v.I, págs. 138-9), e René Hubert esclarece: "As cida-

des gregas. estão ainda muito próximas de suas origens culturais para haverem

rompido o complexo de interações que ligam a vida social e a vida cósmica, bem

como a vida psíquica individual e a vida social; o indivíduo forma corpo com a

cidade e esta com o meio que a envolve; as divindades politeístas simbolizam ao

mesmo tempo as grandes forças da Natureza.

(Traité de Pédagogie Générale)

págs. 24 e 25). Mas é no Espiritismo que a Cosmossociologia se define como uma

realidade nova, marcando um avanço decisivo no processo do Conhecimento. Não

se trata apenas da relação simbólica da fase mitológica, mas de uma relação posi-

tiva que se afirma em termos concretos e se confirma na investigação científica.

Os críticos e adversários do Espiritismo, que em geral o desconhecem, não

vacilariam em contestar essa afirmação, recusando às pesquisas espíritas o caráter

científico. Mas já agora teriam de enfrentar também as conclusões da Ciência em

outros campos, como o da Física, onde os conceitos evoluíram para uma verdadei-

ra Parafísica; da Astronomia, onde a teoria da pluralidade dos mundos habitados

entrou para o domínio das possibilidades incontestáveis; da Biologia, onde o pro-

blema da vida rompeu a estreiteza da concepção organocêntrica; da própria Teo-

logia, que passou a admitir, sob a influência científica, além da existência dos se-

res invisíveis a possibilidade de outras humanidades planetárias; e particularmente

da Psicologia, que através das pesquisas parapsicológicas acabou provando cienti-

ficamente as relações humanas pela percepção extra-sensorial e admitindo a exis-

tência de entidades extrafísicas em relação com o nosso plano. Assim, as investi-

gações espíritas e as provas que apresentam no tocante às possibilidades cosmos-

sociológicas estão hoje referendadas pelo desenvolvimento das Ciências. Negá-las

e contestá-las com apoio em conceitos científicos superados é simplesmente recu-

sar-se a aceitar as novas dimensões culturais do nosso tempo.

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Mas, para uma exposição metodológica do problema, devemos partir de

um exame geral da Cosmologia Espírita. E a primeira verificação que temos a fa-

zer é a da existência de uma Cosmogonia Espírita, uma teoria genética do Cosmos

que se enraíza na concepção bíblica. Os três primeiros capítulos de "O Livro dos

Espíritos

nos apresentam essa parte cosmogônica de tipo religioso, que nem por

isso, entretanto, se afasta do campo filosófico. Pelo contrário, enquadra-se perfei-

tamente na tradição filosófica e nas fases históricas mais recentes da Filosofia.

Encontramos a afirmação de que o Universo foi criado por Deus no item 37 do

cap. III. A seguir, nos itens 38 e 39, os esclarecimentos possíveis dessa criação,

que resumimos no seguinte: Deus criou o Universo pela sua vontade e os mundos

se formam pela condensação da matéria espalhada no Espaço.

Temos assim mais uma prova da natureza sintética do Espiritismo, no sen-

tido de síntese histórica segundo a teoria de Arnold Toynbee a que já nos referi-

mos. Toda a cosmogonia bíblica se encerra nesta simples afirmação: Deus criou o

Universo pela sua vontade. E, logo mais passamos à Cosmologia científica, que

começa por esse esclarecimento, hoje confirmado pela própria Física nuclear: os

Mundos se formam pela condensação de matéria. Daí por diante, a Cosmologia

Espírita se desenvolve na linha puramente científica, apresentando os seis dias da

Criação como seis períodos geológicos, a formação dos seres vivos como um pro-

cesso evolutivo, a figura bíblica de Adão e Eva como simples alegoria, o apareci-

mento do homem em diversos pontos da Terra (o que determinou a variedade das

raças), e o Universo como um sistema de mundos habitados de acordo com as

condições específicas de cada um. Tudo isso hoje admitido no campo das teorias

científicas. O cap. III se encerra com a explicação do dilúvio bíblico como uma

catástrofe parcial e local, o que foi posteriormente confirmado pelas pesquisas ar-

queológicas de Sir Charles Leonard Woolley no delta do Tigre e do Eufrates.

O cap. IV, que encerra a primeira parte de "O Livro dos Espíritos", é dedi-

cado aos problemas, ontológicos que já estudamos. A segunda parte ou Livro II se

inicia com os problemas da origem e desenvolvimento espiritual do Homem, pas-

sando logo a seguir ao campo da Sociologia Espírita que começa no plano espiri-

tual. Isso porque o Homem é primeiramente Espírito e o Mundo Espiritual é o

verdadeiro, "normal e primitivo", do qual deriva o Mundo Corporal. É assim que

passamos insensivelmente da Cosmogonia à Cosmologia e desta à Sociologia. A

escala espírita, simples esquema de classificação tipológica dos Espíritos, em seu

processo evolutivo, que começa no item 100 de "O Livro dos Espíritos”, é ao

mesmo tempo um elemento da Ontologia, da Psicologia, da Caracteriologia e da

Sociologia Espíritas. Podemos aplicá-las tanto aos Espíritos em sua vida espiritual

quanto aos homens ou Espíritos encarnados no Mundo Corporal.

Abrem-se no cap. II do Livro II as perspectivas da Sociologia Espírita em

toda a sua amplitude. Compreendemos então a razão de Emmanuel haver declara-

do, em "O Consolador", que "O Espiritismo é o iniciador da Sociologia". Real-

mente, aquilo que podemos chamar de Sociologia num sentido lato só apareceu

até agora nas páginas de "O Livro dos Espíritos". Porque somente esse livro nos

propõe toda a extensão e complexidade do fato social e ao mesmo tempo nos

mostra que esse objeto (como queria Durkheim que ele fosse encarado) é um ob-

jeto cósmico e não apenas terreno. A Sociedade Humana se projeta no infinito e

se desdobra em sucessivas estruturas espirituais, angélicas, arcangélicas etc., rom-

pendo até mesmo o conceito esferocêntrico ainda dominante em nossos dias (o da

possibilidade de vida apenas em esferas planetárias) como resíduo do velho geo-

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centrismo. Porque os Espíritos vivem não somente nas existências planetárias,

como a nossa, mas no Espaço, ou seja, nas amplidões do Infinito, em hipóstases

do Universo que não podemos sequer chamar de regiões, pois na verdade não sa-

bemos como são, que aspecto apresentam.

Assim, a Sociologia Espírita entranha-se na própria ordem cósmica. Um

fato social terreno está ligado ao Universo, determinado por leis universais. É,

portanto, um fato cósmico. Há duas ordens de fenômenos que nos permitem veri-

ficar esse entrosamento no próprio mundo sensorial: a palingenesia e a mediuni-

dade. A primeira (que não é apenas reencarnação, pois não se aplica somente à

vida orgânica) mostra-nos aquilo que "O Livro dos Espíritos" afirma constante-

mente: tudo se encadeia no Universo. Verificamos através dela que tudo desapa-

rece e reaparece, ou seja, que tudo se faz, se desfaz e se refaz, no eterno suceder

das coisas e dos seres, como Heráclito já havia intuído, mas não em forma cícli-

ca, em inútil e constante repetição, mas num processo de desenvolvimento regido

pela lei de evolução. É o que vemos nesta admirável frase do fim do item 540 do

L. E: "Tudo se encadeia na Natureza, desde o átomo primitivo até o Arcanjo, pois

ele mesmo começou pelo átomo.

A segunda ordem fenomênica acima referida, a mediúnica, mostra-nos a

unidade fundamental do Universo e a sua diversidade instrumental. O fato social

terreno é de ordem instrumental, ocorre no campo das relações corporais (os cor-

pos como instrumentos do Espírito). Mas esse fato é produzido pelos Espíritos e

regido pela lei da mediunidade, lei básica das relações espírito-matéria em todo o

Universo. Além disso, as leis universais de afinidade, justiça e amor estão impli-

cadas nele e o determinam. Uma consulta ao Livro III de "O Livro dos Espíritos"

dedicado ao estudo das Leis Morais, poderia ajudar-nos a esclarecer a natureza

cósmica dos mais diversos fatos sociais terrenos. A lei física de causa e efeito a-

plica-se no plano moral como lei de ação e reação, a lei cármica das religiões in-

dianas. A lei universal da migração de Espíritos, da transferência de Espíritos de

um mundo para outro, segundo a necessidade, projeta os antecedentes do fato so-

cial a distâncias inimagináveis.

Os fins da vida social são os mesmos, no Mundo Espiritual e no mundo

Corporal: o desenvolvimento das potencialidades do Espírito, a sua realização

moral. A palingenesia tem verso e reverso: nascemos e renascemos nos dois pla-

nos. As existências sucessivas são portanto intercaladas: a cada existência corpo-

ral sucede uma espiritual. E nessas duas existências as relações sociais constituem

formas necessárias da evolução espiritual: na existência corporal as relações soci-

ais são objetivas e condicionadas ao processo de exteriorização do Espírito; na e-

xistência espiritual as relações são subjetivas e. sua interiorização condiciona o

aproveitamento da experiência corporal. Exemplo: na existência corporal a exteri-

orização do Espírito determina a sua ligação com outros e estabelece os laços de

família, que resumem os elementos de aglutinação da sociedade, os liames sociais

(itens 773 a 775 do L.E.). A família se constitui em célula básica da sociedade.

Mas os antecedentes da ligação familial continuam a determinar ações e reações

em cadeia, que se manifestam nos interesses objetivos: os interesses psicológicos

estudados pela Psicologia comum. Na existência espiritual a interiorização do Es-

pírito determina o confronto do seu comportamento existencial terreno com os

fins da vida social, que na sua consciência estão marcados em forma de exigências

morais. Esse confronto irá determinar o seu destino, as suas condições existenciais

em nova encarnação.

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A individualização do princípio inteligente é um processo psicocêntrico.

Todo o psiquismo se concentra progressivamente na formação da consciência, na

definição do Ser. O Ser, uma vez determinado, é um ego, uma unidade psíquica,

segundo vemos no item 92 do L.E., comentário de Kardec. Essa unidade, pela

própria necessidade de manter-se integrada, é egocêntrica e portanto egoísta. A

socialização é um processo de descentralização psíquica, não no sentido de desa-

gregação mas de expansão das potencialidades do ego, que se abre na vida social

como a semente ao germinar ou a flor que desabrocha. Essa a razão porque a cari-

dade é o princípio espírita da vida social: através dela o homem se abre para os

outros, o egoísmo se transforma em altruísmo. No plano sociológico podemos es-

quematizar esse processo da seguinte maneira:

O selvagem isolado é o Narciso da lenda que ama a si mesmo. Esse amor

(Adão gozando sozinho o Paraíso) entretanto não lhe basta. A sua insatisfação o

leva à procura de um objeto exterior que é arrancado por Deus do seu próprio Ser

(Eva tirada da sua costela durante o sono, um sonho que se concretiza, uma poten-

cialidade que se atualiza). Surge assim a primeira família e dela o primeiro clã. As

ligações sociais se ampliam na tribo, na raça, na nação. Forma-se o primeiro orga-

nismo gregário e o egoísmo se transforma em sócio-centrismo. Mas desenvolve-se

a Civilização: com ela, o gregarismo se transforma em sociabilidade. O indivíduo

gregário se torna um ser social e as relações sociais o levam à expansão e atuali-

zação de suas potencialidades morais. O ser social atinge pouco a pouco a pleni-

tude do ser moral. Mais um pouco e ele se liberta da roda palingenésica dos renas-

cimentos, tornando-se um Ser Espiritual. Toda essa seqüência pode ser observada

na Escala Espírita.

A Sociologia Espírita, abrangendo todo esse processo de desenvolvimento

ontológico, pode ser dividida em duas partes: a Parassociologia e a Cosmossocio-

logia. Trata-se de uma divisão puramente metodológica que tentaremos explicar

da seguinte maneira:

PARASSOCIOLOGIA é a parte da Sociologia Espírita que trata das rela-

ções sociais na existência corporal. Divide-se em:

1) Psicossociologia Anímica — Estudo do processo de interação social pe-

las relações psíquicas de natureza anímica: funções sociais da chamada percepção

extra-sensorial hoje estudada pela Parapsicologia.

2) Psicossociologia Mediúnica — Estudo do processo de interação social

pelas relações psíquicas de natureza mediúnica: funções sociais da mediunidade,

ação dos Espíritos sobre os Homens e vice versa, determinando mudanças nas re-

lações sociais.

COSMOSSOCIOLOGIA é a parte da Sociologia Espírita que trata das re-

lações sociais na existência espiritual. Divide-se em:

1) Metassociologia — Estudo das relações sociais de ordem espiritual, que

tanto se processam na vida de vigília como durante o sono, com o desprendimento

do Espírito e sua participação na vida espiritual ou sua atividade oculta ou osten-

siva na própria vida corporal.

2) Astrossociologia — Estudo das relações sociais de ordem espiritual en-

tre os diversos Mundos: migrações de Espíritos, manifestações de Espíritos de ou-

tros planetas na Terra e vice-versa, possibilidade da percepção anímica ou extra-

sensorial nas relações interplanetárias e interespaciais em geral.

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A Parassociologia está bem exposta em "O Livro dos Espíritos" nos Caps.

VIII e IX do Livro II.

A cosmossociologia se encontra nos caps. IV, V e VI do Livro II. Os caps.

X e XI do mesmo Livro II completam a Cosmossociologia Espírita estudando as

ocupações e missões cósmicas dos Espíritos e as suas atividades telúricas na vida

planetária.

O "Livro dos Médiuns "é o compêndio básico para o estudo dos vários ti-

pos de relações da Parassociologia e da Cosmossociologia.

O "Evangelho Segundo o Espiritismo" é o código moral da vida espírita e

portanto o livro em que os princípios normativos da Sociologia Espírita se encon-

tram definidos e explicados.

O problema das relações interplanetárias, hoje colocado pelas pesquisas

astronáuticas, figura no cap. III da primeira parte de "O Livro dos Espíritos", itens

55 a 58, sob o título de "Pluralidade dos Mundos". O astrônomo Camille Flamma-

rion, que era médium psicógrafo e trabalhava com Kardec na Sociedade Parisien-

se de Estudos Espíritas publicou uma obra sobre o mesmo assunto. As relações as-

tronáuticas, entretanto, só poderão efetivar-se entre Mundos semelhantes quanto à

densidade física de sua constituição. Na pergunta 56 "O Livro dos Espíritos" co-

loca o problema da diferença da constituição física dos diversos planetas, e conse-

qüentemente da diferença dos organismos corporais de seus habitantes. Nada im-

pede, entretanto, que os Mundos mais diversos se comuniquem entre si pelas vias

mediúnicas, pois o Espírito é sempre o mesmo em toda parte.

Os Mundos nascem e morrem. Lemos no item 41 do L. E. “Deus renova os

Mundos, como renova os seres vivos." A Escala dos Mundos nos mostra que eles

evoluem. E o item 185 do L. E. esclarece: "Os Mundos também estão submetidos

à lei do progresso. Todos começaram como o vosso, por um estado inferior, e a

própria Terra sofrerá uma transformação semelhante, tornando-se um paraíso ter-

restre quando os homens se fizerem bons." Assim, os Mundos formam uma cole-

tividade cósmica. Estão ligados entre si pela rede das leis universais, pelas inces-

santes comunicações dos Espíritos através do Cosmos, pelas migrações individu-

ais e coletivas dos seres no processo evolutivo. O item 176 do L. E. afirma: "To-

dos os mundos são solidários".

A solidariedade dos Mundos é uma decorrência natural da unidade e orga-

nicidade do Cosmos. A concepção espírita do Universo é monista. Há na Terra

muitos homens, em diversos graus de evolução (item 176.a) que nela se encon-

tram pela primeira vez, e nem por isso se diferenciam dos outros. O Espírito hu-

mano é um só e tem a flexibilidade necessária para conformar-se, em cada Mun-

do, às suas exigências e ao seu tipo específico de cultura. Dessa maneira não há

razão para os temores que certas pessoas revelam no tocante à possibilidade de

criaturas de outros planetas invadirem a Terra. Na verdade, elas estão constante-

mente invadindo, como nós, os terrícolas, também invadimos outros Mundos. A

Humanidade é cósmica e as leis universais equilibram a sua distribuição nos dife-

rentes Mundos.

As distâncias espaciais, como antigamente as distâncias entre os continen-

tes na Terra, só podem ser vencidas por criaturas que tenham alcançado elevado

grau de evolução. As naves interplanetárias que chegarem à Terra só podem ser

tripuladas por criaturas de uma civilização superior à nossa. É o nosso primarismo

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que nos leva a imaginar invasões interplanetárias destruidoras. À proporção que

superamos os nossos conflitos na Terra nos tornaremos mais aptos a compreender

a harmonia do Universo, a unidade espiritual das criaturas e a solidariedade dos

Mundos. Então estaremos em condições de receber os nossos irmãos de outros

planetas, que poderão trazer-nos, como fazemos hoje entre os países civilizados,

as contribuições de suas diferentes culturas para enriquecerem a nossa.

*

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230

BIBLIOGRAFIA

EMMANUEL (Espírito). Psicografia de Francisco Cândido Xavier. A

Caminho da Luz. Federação Espírita Brasileira. RJ. 20ª. edição. 1994.

OS PENSADORES. História da Filosofia. Nova Cultural. SP. 1999.

PIRES, J. Herculano. Os Filósofos. Edições FEESP, 1ª. edição. 2000.

Introdução à Filosofia Espírita. Edições FEESP, 2ª.

edição, 1993.

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231

CONTRA-CAPA

SELECIONAR TEXTO.

*

PRIMEIRA DOBRA DO LIVRO

Ou contra-capa

DADOS BIOGRÁFICOS

Dados biográficos do autor

José Fleurí Queiroz, nascido na cidade de Buri-SP, aos 16/10/1941 é Audi-

tor Fiscal da Receita Federal do Brasil, aposentado em 1991; bacharel em Ciên-

cias Contábeis e Atuariais pela Faculdade de Ciências Econômicas de São Paulo –

Fundação Álvares Penteado (1966); bacharel em Direito pela Faculdade FKB, de

Itapetininga (1973). Pós-graduado em Direito Penal – lato sensu -, pela FMU-SP –

Faculdades Metropolitanas Unidas – (1996); Mestre em Filosofia do Direito e do

Estado – scricto sensu -, pela PUC-SP – Pontifícia Universidade Católica –

(1998). Advogado criminalista e professor universitário, a partir de 1998, nas ca-

deiras de Direito Penal, Instituições de Direito Público e Privado, Filosofia Geral,

Filosofia do Direito e do Estado, Filosofia e Ética Profissional, nas Faculdades de

Direito de Itapetininga-SP (FKB) e de Administração de Itapeva-SP (FAIT).

*

JOSÉ FLEURÍ QUEIROZ

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PRIMEIRA DOBRA DO LIVRO

Na qualidade de Mestre em Filosofia do Direito e do Estado (PUC-SP, 1998), Pós-

graduado em Direito Penal – Especialização – (FMU-SP, 1996), Advogado Criminalista, Auditor

Fiscal da Receita Federal do Brasil (aposentado, 1991), espírita atuante desde 1975 (de 1975 a

1990, junto à Federação Espírita do Estado de São Paulo, na capital paulista), dirigente do Liceu

Allan Kardec (ainda embrião) e do Centro Espírita ‘Sinhaninha’, ambos em Buri-SP, e tendo já

lançado os seguintes livros: 1) A Educação Como Direito e Dever à Luz da Filosofia e do Direito

Natural (Dissertação de Mestrado – 2.003); 2) Código de Direito Natural Espírita (2.006); 3) Sui-

cídio É Ou Não É Crime? (2.007); 4) Ciência Médica e Medicina Espírita – Mediunidade Curado-

ra (2.009); 5) Pena de Duração Indeterminada (2.009), todos pela mesma Editora Mundo Jurídico,

Leme-SP, colocamo-nos sob o dever peremptório de dar prosseguimento à divulgação da maravi-

lhosa Doutrina Espírita, através dos expoentes já fartamente mencionados, que sublimaram a figu-

ra incomparável de ALLAN KARDEC, cuja obra, tendo por fundamento os ensinos de JESUS

CRISTO, jamais será superada.

*