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30 VISÃO 10 SETEMBRO 2020 E se a escola for um ninho de surtos? Entre os dias 14 e 17 de setembro, quase dois milhões de estudantes regressam às aulas. Vão encontrar uma escola muito diferente daquela que conheceram até aqui. Apesar das regras, os especialistas consideram inevitável o aparecimento de surtos da Covid-19. Afinal, poderão os estabelecimentos de ensino contribuir para uma segunda vaga da doença? VÂNIA MAIA

E se a escola for um ninho de surtos? · a usar máscara O horário das refeições deve ser desfasado para facilitar o distanciamento e evitar enchentes Os talheres e os guardanapos

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E se a escola for um ninho

de surtos?Entre os dias 14 e 17 de setembro, quase dois milhões de

estudantes regressam às aulas. Vão encontrar uma escola muito diferente daquela que conheceram até aqui. Apesar das regras, os especialistas consideram inevitável o aparecimento

de surtos da Covid-19. Afinal, poderão os estabelecimentos de ensino contribuir para uma segunda vaga da doença?

V Â N I A M A I A

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S1 metro

1 metro

1 metro

As novas regras da escola

As mãos têm de ser desinfetadas antes e

após as refeições

As recomendações estabelecidas pelo Ministério da Educação com o apoio da Direção-Geral da Saúde serão adaptadas a cada estabelecimento de ensino mas, quando voltarem às aulas, os estudantes vão encontrar uma realidade muito diferente

As portas e as janelas serão mantidas abertas para permitirem a circulação do ar e evitarem toques desnecessários, por exemplo, nos puxadores

Deve garantir-se um distanciamento de, pelo menos, 1 metro entre os alunos

Pode estar prevista a

possibilidade do serviço de

takeaway

A máscara só deve ser retirada quando se está efetivamente a comer

As mesas e as cadeiras serão desinfetadas entre as refeições

• As secretárias ficarão colocadas junto das janelas ou das portas da sala, respeitando a mesma orientação, de forma que os alunos não fiquem frente a frente• Deve ser atribuída uma sala de aulas por turma e cada aluno deve ter um lugar fixo

• As salas serão desinfetadas após a utilização de cada turma

• O uso de máscara é obrigatório em toda a escola, a partir do 2º Ciclo (5º Ano), incluindo dentro da sala de aula. Os alunos só estão dispensados de a usar quando estiverem a comer ou a praticar Educação Física

• Também os professores e todos os profissionais não docentes são obrigados a usar máscara

O horário das refeições deve ser desfasado para facilitar o distanciamento e evitar enchentes

Os talheres e os guardanapos passam a estar embalados

“Se os super-heróis usam sempre más-cara, tu também deves usar”, lê-se num cartaz à entrada do colégio internacio-nal St. Dominic’s, em Cascais, onde as aulas começaram logo no primeiro dia de setembro. O cartaz, ilustrado com o Batman, o Homem-Aranha e outras personagens mascaradas, alerta para uma das mudanças mais visíveis deste novo ano escolar, iniciado em contexto de pandemia: o uso obriga-tório de máscara a partir do 5º Ano, altura em que as crianças celebram, habitualmente, 10 anos. Mas as mu-danças estão longe de ficarem por aqui.

Agora, os pais ficam à porta e, assim que atravessam a entrada, os miúdos têm de limpar os pés num tapete desinfetante e de higienizar as mãos com álcool-gel. Os horários de entrada e de saída foram desfasados,

tal como os intervalos, e cada ciclo tem áreas distintas de lazer. Nas au-las, sentam-se em secretárias indivi-duais ou com divisórias de acrílico e, sempre que possível, permanecem na mesma sala. Estas e outras medidas foram adotadas de acordo com as recomendações do Ministério da Edu-cação e da Direção-Geral da Saúde e norteiam o regresso às aulas, tanto nos colégios privados como nas escolas públicas. Mas serão suficientes para evitar o descontrolo da pandemia?

A reabertura das escolas noutros países tem tido impactos díspares. Se na Dinamarca ou na Noruega não hou-ve sobressaltos, já Israel viu-se obri-gado a dar um passo atrás depois de o regresso às aulas ter provocado um pico de casos entre os mais jovens, que acabou por se estender à comunidade.

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Deve haver um gabinete de isolamento, com acesso a casa de banho, devidamente identificado. É para lá que serão encaminhados os casos suspeitos

As reuniões de pais poderão ser feitas à distância mas, no caso de serem presenciais, terão de ser individuais ou em pequenos grupos, respeitando o distanciamento e uso de máscara

As zonas que possibilitemo convívio, como a biblioteca ou as salas de informática, devem ter uma lotação limitada

Estarão definidos corredores de

circulação de forma a promover o

distanciamento e a evitar que os alunos

se cruzem

Todos devem desinfetar as

mãos à entrada da escola

• Os intervalos devem ter a menor duração possível e cada turma terá uma área de recreio atribuída

• Os alunos só devem ter contacto mais próximo com os colegas da sua própria turma

INFOGRAFIA MT/VISÃOFONTE DGS

Em França, bastaram quatro dias de aulas para serem encerrados 22 dos 60 mil estabelecimentos de ensino do país.

O CONTÁGIO INFANTILA ansiedade provocada pelo regresso às aulas obriga pais, alunos, profes-sores, mas também os cidadãos, em geral, a procurarem respostas sobre o papel dos mais novos na transmissão da doença. Recentemente, um estudo realizado pelo Hospital Geral de Mas-sachusetts, nos EUA, avançou com a possibilidade de as crianças terem mais carga viral do que se pensava e de desempenharem um papel im-portante na transmissão da Covid. “É preciso prudência na interpretação”, aconselha a pediatra Maria João Brito, responsável pela Unidade de Infeccio-logia do Hospital Dona Estefânia, em

Lisboa. “Este estudo considera indiví-duos dos zero aos 22 anos. Ora, aos 22 anos já não se é criança. A capacidade de contagiar deve ser analisada de acordo com o grupo etário. É muito diferente a transmissão secundária aos 3 ou aos 16 anos. Vários fatores podem influenciar, como o facto de os mais velhos terem mais recetores ACE2, aos quais se liga o vírus”, esclarece.

O menor número de recetores ACE2 dos mais novos pode ajudar a explicar o facto de serem menos atingidos pela doença. A Organização Mundial da Saúde estima que os menores repre-sentem entre 1% e 3% dos casos diag-nosticados ao nível mundial. Portugal soma cerca de cinco mil casos até aos 19 anos (8,7% do total) e regista apenas uma morte de um menor.

“Um estudante de 18 anos poderá

Portugal soma cerca de 5 mil casos até aos 19 anos, 8,7% do total, e regista apenas uma morte de um menor

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transmitir mais a doença do que um aluno de oito. Por isso, os mais velhos devem ser ainda mais responsáveis”, corrobora a presidente da Sociedade Portuguesa de Pediatria, Inês Azeve-do. Além disso, ter carga viral não é sinónimo de ter capacidade de trans-mitir a infeção a outras pessoas.

No início desta semana, foi apre-sentado um estudo sobre o impacto da reabertura das escolas na transmissão da doença, em Portugal. A investigação foi coordenada pela cientista Ganna Rozhnova, professora na Universidade de Utreque, na Holanda, e investiga-dora no Instituto de Biossistemas e Ciências Integrativas (BioISI) da Facul-dade de Ciências da Universidade de Lisboa, e contou com a participação de vários investigadores portugueses. As conclusões revelam que, se as escolas reabrissem sem as medidas de dis-tanciamento físico, uma segunda vaga seria altamente provável, mesmo que os restantes contactos sociais fossem reduzidos a metade. Por outro lado, o estudo também calcula que, se os contactos escolares forem reduzidos para metade, será possível evitar uma segunda vaga. A limitação da investi-gação é, precisamente, não ter tido em conta a eventual diferente suscetibili-dade à doença consoante a faixa etária, o que pode significar que estes cálculos se aplicam apenas ao pior cenário. Po-rém, mostram a evidente importância das medidas de proteção nas escolas, e na restante sociedade, para se evitar uma nova onda da Covid-19.

No entanto, uma vez infetadas, as crianças também são contagiosas. “O que sabemos é que transmitem o vírus, da mesma forma do que os adultos, mas, como têm uma respira-ção menos intensa, provavelmente não expelem partículas virais tão longe quanto os mais velhos”, exemplifica o virologista do Instituto de Higiene e Medicina Tropical, Celso Cunha. Como a doença se manifesta nor-malmente de forma ligeira nos mais novos, eles tossem menos, libertando menos gotículas contaminadas. Ra-zões que levam a pediatra Inês Aze-vedo a sublinhar a possibilidade de as crianças “parecerem ter um menor papel enquanto veículos de transmis-são do vírus, comparativamente com os adultos”, mas ainda não há certezas.

PERIGOSOS ASSINTOMÁTICOS Noutro estudo desenvolvido pelo Public Health England, o departamento de Saúde Pública do Reino Unido, ava-

Descubra as diferençasApesar dos vários sintomas em comum, existe forma de distinguir a Covid-19 de uma gripe e de um resfriado

INFOGRAFIA MT/VISÃOFONTE Organização Mundial da Saúde

COVID-19Comum

Comum

Por vezes

Por vezes

Por vezes

Por vezes

Por vezes

Por vezes

Por vezes

Raramente

Raramente

Raramente

-

RESFRIADORaramente

Leve

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Leve

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Comum

Comum

GRIPE ALERGIASComum

Comum

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Por vezes

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-

Por vezes

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Comum

Comum

Por vezes

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-

Por vezes

-

-

-

Comum

Comum*Por vezes nas crianças

SintomasFebre

Tosse seca

Perda de olfato e paladar

Falta de ar

Dores de cabeça

Dores musculares

Dores de garganta

Fadiga

Arrepios

Diarreia e vómitos

Dedos dos pés inchados

Nariz a pingar

Espirros

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Socializar é preciso Interagir com os pares é crucial para o bem-estar psicológico e emocional das crianças e seu desenvolvimento

“Distanciar e monitorizar os comportamentos dos mais pequenos, num constante estado de alerta, traz constrangimentos às crianças, gera mal-estar e danos no desenvolvimento da personalidade, como perturbações ansiosas e depressivas que dificultam a aprendizagem”, diz a psicóloga Ana Rita Dias, autora de uma carta aberta à Direção-Geral da Saúde (DGS), juntamente com Laura Sanches e Zulima Maciel. No documento, que contou com o apoio da Ordem dos Psicólogos, apela-se ao bom senso das autoridades, para que, ao garantirem a preservação da saúde física, não negligenciem a saúde psicológica e emocional das crianças, sob pena de se ter “outra pandemia no campo da saúde mental”. Lembrando que os agrupamentos criam as suas normas internas e podem adaptar as recomendações da DGS, sugere-se aos pais e profissionais que “expressem as suas inquietações e intervenham” em abono de uma escola saudável: “Os adultos podem voltar às memórias emocionais de tempos mais livres, as crianças não, vão interiorizar e formatar tudo isto.” A reforçar esta ideia, os estudos dos investigadores Ivone Patrão e Rui Miguel Costa: no confinamento, as crianças ficaram privadas da companhia dos pares e sentiram-se mais sós, e “as tecnologias não suprimem, por vezes até agravam, esse sentimento, pois o cérebro não recebe informação sensorial da presença física”, explica o investigador do ISPA – Instituto Universitário. Sem essa dimensão, “aumenta o risco de psicopatologia nas crianças e nos jovens, o que é grave para a sua vida futura”, conclui. O especialista em Psicologia Infantil José Morgado dá o exemplo do neto: com 7 anos, “é o primeiro a dizer que, este ano, não quer a escola do iPad” – ou não fosse indispensável “a proximidade física que permite a leitura do comportamento e enriquece a interação”. “Temos de ter uma política não obsessiva de gestão do risco, adotar medidas seguras na medida do possível e facilitar um bom mood, nas primeiras cinco semanas”, acrescenta. C.S.

“Os adultos podem voltar às memórias

tudo isto.”

emocionais de tempos mais livres, as crianças não, vão interiorizar e formatar

liou-se o número de casos registados em contexto escolar, ao longo do mês de junho, em Inglaterra. Num univer-so de 1,6 milhões de estudantes, foram detetados 30 surtos. Destes, 20 foram causados pela transmissão entre adultos ou de adultos para estudantes; apenas em seis situações foi um aluno que con-tagiou um adulto; e só em dois surtos a contaminação foi entre estudantes.

Ainda que se comprove que os mais novos têm uma menor capacidade de transmissão da doença, os que não apresentam sintomas também são motivo de preocupação. “Sabemos que existem algumas crianças assin-tomáticas ou com sintomas ligeiros, entre as que recebemos para rastreio, que se revelam casos positivos”, nota Inês Azevedo, também pediatra no Hospital de São João, Porto.

Uma investigação publicada na re-vista científica Nature Medicine esti-ma que a suscetibilidade à infeção, nos jovens até aos 20 anos, seja metade da registada nos adultos acima dessa ida-de. No mesmo estudo, que analisou os dados de seis países, concluiu-se que

Se houver um adulto infetado na família, o aluno não deve ir à escola até estar esclarecido se ele também foi infetado

Reorganização O St. Dominic’s, em Cascais, teve de reformular os espaços do colégio. Criou corredores de circulação e atribuiu áreas de recreio a cada ano letivo

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está muito dependente das nossas atitudes. Se conseguirmos proteger os grupos de risco, podemos acomodar um nível maior de infeções”, explica.

TESTES MAIS RÁPIDOSNesse sentido, Paulo Santos, investi-gador do CINTESIS – Centro de In-vestigação em Tecnologias e Serviços de Saúde da Universidade do Porto, considera fundamental valorizar mais os internamentos e a mortalidade do que o número absoluto de casos. “É expectável um aumento das infeções nas duas ou três semanas seguintes ao início das aulas, a questão será no que isso se irá traduzir. Se não causar doença grave nas crianças e se conse-guirmos proteger os grupos de risco, poderá não haver problema”, acredita.

Pedro Simas destaca a importân-cia da utilização de testes rápidos de diagnóstico, sobretudo ao nível da monitorização epidemiológica em contexto escolar. “São menos sensíveis, mas são mais fáceis de implementar. A colheita não é feita por zaragatoa, basta a saliva, e não exigem reagentes escassos no mercado”, nota. Este tipo de testes permite, por exemplo, ana-lisar rapidamente todas as amostras dos alunos de uma ou mais turmas ao mesmo tempo e, caso seja detetada a presença do vírus, avançar-se para a testagem individual para descobrir quem está infetado. O virologista su-gere a possibilidade de estes testes

apenas uma em cada cinco crianças desenvolve sintomas, enquanto aci-ma dos 70 anos os sinais da doença são evidentes em quase 70% dos ca-sos. Mas é cedo para afirmar que as crianças e os adolescentes são mais assintomáticos do que os adultos.

A infecciologista Maria João Brito sublinha que, se houver um adulto infetado na família, o aluno não deve ir à escola até estar esclarecido se ele também foi infetado. “Pode dar-se o caso de a criança estar assintomática e transmitir na mesma a doença”, alerta.

No final do mês passado, o pres-tigiado JAMA Pediatrics revelou um estudo sobre a prevalência de infeções assintomáticas por SARS-CoV-2 até aos 18 anos. Foram analisados cerca de 33 mil casos de crianças que se dirigiram a 25 hospitais norte-americanos por mo-tivos de saúde não relacionados com a pandemia. Os testes de rastreio mostra-ram que, apesar de não terem sintomas, 250 (cerca de 0,8%) estavam positivas. Ao mesmo tempo, encontrou-se uma correlação entre o aumento das infe-ções pediátricas assintomáticas nos hospitais e a multiplicação dos casos entre a população em geral.

Também o Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças, num relatório publicado em agosto, assinalou o facto de muitas crian-ças não desenvolverem sintomas da doença poder dificultar a identifica-ção de surtos nas escolas. O organis-mo responsável pela saúde na União Europeia defende que “as evidências existentes sugerem que a transmissão dentro das escolas tem sido incomum e, portanto, se o distanciamento físico, a higiene e as restantes medidas forem aplicados, é improvável que as escolas sejam ambientes de propagação mais eficazes do que as instalações ocupa-cionais ou de lazer”.

O virologista Pedro Simas admite que o impacto das escolas na disse-minação do vírus seja menor do que o de outros locais, mas reconhece-lhes importância ao nível epidemiológico: “Elas representam quase a população inteira, porque os miúdos têm con-tacto com os familiares e com outras pessoas e, depois, vão para as aulas.” No entanto, apesar de considerar ine-vitável o aumento do número de in-feções após o início das aulas, tal não tem de ser sinónimo de uma segunda vaga da doença. “É o vírus que depen-de de nós, não somos nós que depen-demos dele. Por isso, a segunda vaga

Ao contrário do continente, a Madeira decidiu testar os docentes e não docentes antes do início do ano letivo

Prevenção O uso de máscara só é obrigatório a partir do 2º Ciclo. O mais complicado será garantir o distanciamento entre os estudantes

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Ensino digitalDemonizado por uns e idealizado por outros, tem vindo a conquistar

o seu lugar na educação. Conheça os dois lados desta realidade e saiba como integrá-la melhor na vida académica

COMODIDADE E POUPANÇADispensa deslocações, e perdas

de tempo em transportes, e a adaptação a variáveis externas,

como ruído, interrupções, contacto prolongado com regras e hábitos

que não são os seus e que implicam, por isso, algum esforço e

gasto de energia.

AUTONOMIAAceder a programas e a

conteúdos, respeitando o seu ritmo de aprendizagem, voltar atrás sempre que precisar de

rever algum tópico ou dedicar-lhe mais atenção facilita a retenção do conhecimento e é uma boa

opção para quem prefere estudar sozinho e de forma autónoma.

APRENDIZAGEM CONTÍNUA

A exploração de ferramentas digitais permite atualizar

conhecimentos, seja individualmente seja em grupos

de partilha, com ganhos em literacia digital. Além disso,

possibilita a descoberta de métodos de estudo

preferenciais.

FLEXIBILIDADE Basta um computador e

um bom acesso à internet para conseguir ter à mão os conteúdos disponibilizados online, no local que quiser e no horário que definir para

estudar, ler documentos, tirar apontamentos, colocar dúvidas,

rever e enviar trabalhos.

ESTUDO PERSONALIZADOA dimensão presencial, ou o ensino na sala de aula, pode

trazer constrangimentos a quem, por questões de temperamento,

se sente pouco à vontade em grupo mas está familiarizado com

as tecnologias. A comunicação virtual e a possibilidade de

interagir individualmente com o professor por essa via podem

revelar-se úteis.

AUTODISCIPLINA Por ter menos horários

estruturados e menos orientação do professor, estudar à distância pressupõe uma maior motivação

e empenho do aluno para se organizar, tanto na condução do

estudo como na gestão do tempo.

INTERAÇÃO SOCIALInquérito da DECO a 537 pais

com filhos no 1º Ciclo mostrou que 84% das crianças tiveram saudades da escola e 91% dos amigos e colegas. “A relação

educativa tem aspetos de natureza psicoemocional que se perdem no ensino à distância”,

nota o professor José Morgado, do ISPA – Instituto Universitário.

APRENDIZAGEM PRÁTICAEm matérias complexas e técnicas que implicam

observação direta e experiência acompanhada, o registo

presencial é indispensável em qualquer grau de ensino, com destaque para os mais

pequenos e com necessidades especiais.

PERDA DA MOTIVAÇÃONem todas as crianças e jovens

conseguem ter o rendimento desejado sem a presença e

apoio presencial do professor, que tem um papel securitário e as estimula a progredir sem

se dispersarem ou desistirem a meio, em momentos desafiantes

da aprendizagem.

LITERACIA DIGITALPor mais aplicado que seja,

isso pode não bastar se o aluno ficar perdido na plataforma e for incapaz de se entender

com tutoriais e percalços informáticos. O uso consciente

da tecnologia também é essencial na hora de concentrar-se, sem olhar a notificações ou saltar do email para as redes

sociais e afins.

V A N T A G E N S D E S V A N T A G E N S

serem usados para rastrear, regular-mente, uma proporção representativa do número de pessoas que convivem no estabelecimento de ensino.

Ao contrário do continente, a auto-ridade regional de saúde do arquipé-lago da Madeira decidiu testar os pro-fissionais docentes e não docentes, do 1º Ciclo ao Ensino Secundário, antes do início do ano letivo. Ao todo, serão realizados sete mil testes de rastreio. Destes, quatro mil dizem respeito aos professores. “Como praticamente não temos transmissão comunitária ativa, decidimos testar os profissionais, já que cerca de 40% dos professores são pessoas que viajam do continente”, contabiliza o presidente do Instituto de Administração da Saúde e Assuntos Sociais da Madeira, Herberto Jesus.

O virologista Celso Cunha con-sidera a Madeira um bom exemplo. “Numa ilha, faz sentido testar antes do início das aulas, quando há pou-cos casos. Se se testar toda a gente que chega, pode-se detetar infeções antecipadamente e ter a comunidade escolar limpa”, nota. No continente, a realidade é bastante diferente: “Não faria sentido testar, porque existe transmissão na comunidade e há vá-rios surtos ativos, de um momento para o outro pode aparecer alguém infetado. Já para não falar na muito maior quantidade de gente.”

Também a pediatra Inês Azevedo consideraria “um absurdo” testar to-

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12 respostas para muitas dúvidasO regresso às aulas em tempos de pandemia implica novas regras que suscitam muitas dúvidas. Eis algumas respostas tão esclarecedoras quanto possível

O que acontece aos miúdos que vão para casa de quarentena preventiva? Ficam sem aulas? Ou há algum mecanismo previsto para que não se atrasem em relação aos outros?As escolas devem garantir o ensino à distância para alunos obrigados a ficarem em quarentena. Não estando doentes, os estudantes devem continuar a acompanhar a matéria e a manter o contacto com a escola, apesar de estarem em casa.

Como devem proceder os pais fora da escola? Manter grupos restritos de contacto? Evitar festas de anos? Privilegiar as famílias da mesma turma?O ideal é restringir os contactos da família às pessoas mais próximas para se reduzir a probabilidade de contágio, tal como as crianças devem limitar-se ao convívio com a sua turma. Também os professores e os trabalhadores não docentes devem diminuir o número de pessoas com quem interagem. Festas em espaços fechados e sem máscara representam um alto risco de contágio.

Como se deve proceder relativamente à roupa e aos sapatos?Apesar de representar um risco muito reduzido de transmissão, deixar o calçado à porta é uma medida de higiene que pode ser adotada independentemente da Covid-19. O vestuário pode ser lavado normalmente.

As crianças devem tomar imediatamente banho quando chegam a casa?Em vez de adiar a ida para o banho, esta pode passar a ser a primeira tarefa aquando do regresso a casa. É uma forma de se garantir a limpeza do ambiente doméstico.

Como devem funcionar os prolongamentos dentro da escola? Não misturando alunos de turmas diferentes? Criando novos espaços?Se houver crianças e jovens que pertençam à mesma turma, elas devem ser mantidas no mesmo grupo. Também lhes deve ser atri-buída uma zona específica onde podem desenvolver as suas atividades. Os objetos não devem ser partilhados e têm de ser desinfetados entre utilizações. Também deixa de ser permitido levar brinquedos ou outros bens de casa.

Há um caso positivo numa turma: o que se faz? Todos os alunos são testados ou só os que têm sintomas? Ficam todos de quarentena?Cabe à Autoridade de Saúde local avaliar o risco de contágio. Pode ser necessário encerrar uma ou mais turmas, uma área da escola ou, no limite, o estabelecimento de ensino. O rastreio dos contactos deve ser iniciado nas 12 horas seguintes à confirma-ção do caso. Aqueles que tenham sido considerados contactos de alto risco farão o teste de rastreio e ficarão em isolamento profilático. Os contactos de baixo risco ficarão sujeitos à monito-rização de sintomas, mas

continuarão a ir à escola, até indicação contrária das autoridades de saúde.

Há medição de temperatura obrigatória ao entrar na escola?A medição da temperatura não é obrigatória nem é recomendada pela Dire-ção-Geral da Saúde (DGS). Todos aqueles que fre-quentem estabelecimentos de ensino devem vigiar o seu estado de saúde, incluindo a temperatura. Se tiverem febre, não devem dirigir-se para a escola.

Se os pais estiverem contaminados em casa, as crianças ficam de quarentena? E se os pais estiverem apenas em isolamento profilático, devido a um caso positivo no seu local de trabalho, os filhos também têm de ficar em casa?Cabe à Autoridade de Saúde local avaliar o risco de contágio. De acordo com os especialistas, poderá ser prudente os pais não levarem os filhos à escola até estar esclarecida a eventual contaminação de um membro da família mais próxima.

Os testes e os trabalhos escritos podem ser um foco de contágio para os professores?O risco de contágio a partir do papel é residual, mas a aposta em meios digitais evita o contacto entre alunos e professores, por exemplo, no momento da recolha dos trabalhos.

Como serão as aulas de Educação Física?A DGS recomenda que se privilegiem atividades

ao ar livre, individuais ou em grupos reduzidos, que garantam o distanciamento de três metros entre os alunos. Os materiais não devem ser partilhados e têm de ser desinfetados entre utilizações. Os estudantes devem levar calçado exclusivamente para a prática da disciplina. É obrigatório o uso de máscara, exceto durante a prática efetiva de exercício físico. Muitas escolas tentaram colocar a disciplina no fim dos blocos horários, para se reduzir a utilização dos balneários, outras optaram pelo seu encerramento.

Os horários das aulas vão mudar?Para evitarem a concen-tração de alunos, várias escolas decidiram desfasar o horário de entrada e de saída e, até, dos interva-los. Algumas passaram a iniciar as aulas meia hora mais cedo, às oito da manhã, e terminarão meia hora mais tarde. Também há situações em que as tur-mas foram divididas entre os turnos exclusivamente da manhã ou da tarde. Ainda assim, a duração das aulas será a mesma.

Precisamos de desinfetar o material escolar todos os dias em casa?Só o material indispensável deve ser levado para a escola e, acima de tudo, não deve ser partilhado. Mais do que desinfetar os objetos, é fundamental lavar as mãos depois de tocar neles. Também é importante relembrar que as refeições não podem ser partilhadas, bem como, por exemplo, as garrafas de água.

O ideal é restringir os

há situações em que as tur-

A medição da temperatura

Aqueles que

para se reduzir a

da manhã ou da tarde.

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dos os alunos antes do início das aulas, até porque a prevalência da infeção nas crianças é muito reduzida. “O risco de doença grave nos mais novos é baixíssimo, o que deve tranquilizar os pais que devem estar mais preocu-pados com os avós”, afirma.

A ESCOLA NÃO É UMA ILHAO presidente do Colégio de Pediatria da Ordem dos Médicos, Jorge Amil Dias, aconselha especiais cuidados no convívio com os mais velhos: “Se no agregado familiar existirem mem-bros com particular risco, por idade ou por outras comorbilidades, devem aplicar-se com rigor as medidas de proteção em casa, tal como se andas-sem na rua.”

O médico de Saúde Pública Ber-nardo Gomes não descarta a possi-bilidade do aparecimento de dilemas éticos: “Poderão os pais ser obrigados a separarem os filhos dos avós? Po-derá ser prudente fazê-lo caso exista um surto na escola”, diz, ressalvando que, desde o início da pandemia, “ain-da não houve um exercício real com as escolas abertas”, já que foram dos primeiros locais a fechar e, quando reabriram, apenas acolheram uma pequena parte da comunidade escolar.

Os estabelecimentos de ensino de maior risco serão, provavelmente, aqueles que estão situados em contex-tos sociais vulneráveis: “Ficam em zo-

nas com limitações económicas, onde a densidade populacional é maior e se utilizam mais os transportes públicos, o que agrava o risco em escolas que já terão menos condições para adotarem medidas, como a do distanciamento. Mas são os miúdos destes locais que mais precisam de ir às aulas”, defende. No entanto, “as escolas de 2020 não são as mesmas de 2019, o contacto não é o mesmo, e o potencial epidémico também não”, nota.

A responsabilidade está longe de estar apenas do lado dos alunos e dos professores. “Se os adultos não se protegerem e alimentarem a infe-ção, a transmissão comunitária será intensa e as escolas vão sofrer”, afirma Bernardo Gomes. Obviamente, será mais seguro reabrir escolas em locais sem transmissão comunitária do que em zonas com focos de contágio. “É preciso sensibilizar os adultos que convivem com as crianças para serem cuidadosos. E os jovens também têm vida além da escola, daí o apelo ao seu sentido de responsabilidade. Festas sem máscara em espaços fechados são de grande risco. É provável que tenha-mos pequenos surtos nas escolas por causa deste tipo de eventos”, avança.

O especialista em Saúde Pública sugere a criação de mapas de risco pú-blicos, que permitam aos cidadãos sa-berem se estão numa zona com elevada transmissão na comunidade. Através de uma página na internet, por exemplo, seria possível identificar se determinada freguesia está verde, amarela ou verme-lha, de acordo com os dados fornecidos pelas autoridades de saúde. Este sistema poderia ajudar a controlar os ânimos perante um caso suspeito numa escola.

“Aquilo de que tenho mais medo é do medo”, admite Bernardo Gomes. “Vamos entrar permanentemente em alerta perante a possibilidade de um caso de Covid-19.” Poderá ser com-plicado distinguir a doença de outras infeções respiratórias, uma vez que os sintomas são semelhantes, o que poderá causar uma grande pressão sobre os serviços de saúde. A vacina da gripe poderá desempenhar um papel importante. Ao mesmo tempo que reduz a prevalência da gripe sa-zonal, diminui os casos suspeitos de Covid-19, libertando os serviços.

Que haverá casos da doença nas escolas, não há dúvidas, o seu poten-cial multiplicador é que é incerto. Nas palavras de Bernardo Gomes: “Todos temos a responsabilidade de devolver a liberdade às crianças.” [email protected]

O ónus não está apenas do lado dos estabelecimentos de ensino. Se a sociedade não se proteger, as escolas vão sofrer

Convívio Idealmente, os alunos só devem conviver com a sua turma para se limitar as possibilidades de contágio