ebock_livro_integralidade_saude_(2)

Embed Size (px)

Citation preview

  • Projeto Grfi co e Diagramao | Diogo Cesar

    Reviso Geral | Os Autores

    Reviso Ortogrfi ca | Afonso Henrique Novaes Menezes

    Impresso e Acabamento | PRINTPEX Grfi ca e Editora

    TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. Proibida a reproduo total ou parcial, por qualquer meio ou pro cesso, especialmente por sistemas grcos, microflmicos, fotogrcos, reprogrcos, fonogrcos e vdeogr cos. Vedada a memorizao e/ou a recuperao total ou parcial em qualquer sistema de processamento de dados e a incluso de qualquer parte da obra em qualquer programa jusciberntico. Essas proibies aplicam- se tambm s caractersticas grcas da obra e sua editorao.

    Catalogao na fonte:Bibliotecria Joselly de Barros Gonalves, CRB4-1748

    Avenida Guararapes, 1647 | Centro, Petrolina - PE CEP: 56302-000Fone: (0xx87) [email protected]

    Rua Acadmico Hlio Ramos, 20 | Vrzea, Recife - PE CEP: 50.740-530 Fones: (0xx81) 2126.8397 | 2126.8930 | Fax: (0xx81) 2126.8395www.ufpe.br/edufpe | [email protected] | [email protected]

    I61 Integralidade e sade : epistemologia, poltica e prticas de cuidado / Alexandre Franca Barreto, (org.) Recife : Ed. Universitria da UFPE, 2011.

    [192] p.

    Vrios autores.Inclui referncias bibliogrficas.ISBN 978-85-7315-962-2 (broch.)

    1. Sade pblica. 2. Teoria do conhecimento. 3. Poltica de sade. 4. Medicina integrativa. 5. Matria mdica vegetal. 6. Homeopatia. 7. Acupuntura. 8. Biodana. I. Barreto, Alexandre Franca (Org.).

    614 CDD (22.ed.) UFPE (BC2011-151)

  • 715

    31

    53

    75

    97

    109

    Sumrio

    Introduo Integralidade e Sade: Epistemologia, Poltica e Prticas de cuidadoAlexandre Franca Barreto

    Captulo 1 Observador e observvel: estreitos laos de estados que criamos Letcia M. Oliveira

    Captulo 2 Sade: entre Cincia, Doena e Mercado: Reflexesepistemolgico-crticasMarcelo L. Pelizzoli

    Captulo 3 Prticas integrativas e complementares no SUS: Ampliao do acesso a

    prticas de sade e resolubilidade do Sistema Angelo Giovani Rodrigues; Carmem De Simoni; Marcos Antnio Trajano; Tiago Pires de Campos

    Captulo 4 Cidadania no cuidado: um ensaio sobre os caminhos de se (re)pensar a

    integralidade nas Prticas Integrativas e Complementares em Sade Roseni Pinheiro; Felipe Rangel Machado e Francini Lube Guizardi

    Captulo 5 Desafios para a implantao da Fitoterapia no Sistema nico de SadeAmanda Leite Guimares, Ana Paula de Oliveira, Jackson Roberto Guedes da Silva Almeida

    Captulo 6 Homeopatia Martha Maria de Souza Guimares e Nadja Maria Ferreira Cavalcanti

  • Captulo 7 Unidade mente-corpo: A Anlise Bioenergtica como um caminho para o

    cuidado integral sadeAlexandre Franca Barreto; Anne Crystie da Silva Miranda; Carine da Silva Oliveira Lima; Carla Janne da Silva Souza.

    Captulo 8 Medicina Tradicional Chinesa/Acupuntura: Uma contribuio com impacto

    positivo sade no Vale do So Francisco Dulce Dantas Lima Ribeiro; Israel Jos da Silva Filho.

    Captulo 9 Vivncia no Ncleo Temtico de Prticas Teraputicas com Abordagem em

    Acupuntura: Um relato de experincia. Josyvera Maria Ribeiro Barbosa e Magna Vanessa Rodrigues da Silva

    Captulo 10 Biodanza: Outra construo possvel Ren de Sousa Moura

    Sobre os Autores

    129

    151

    169

    175

    185

  • 77

    Introduo

    Integralidade e Sade:

    Epistemologia, Poltica e Prticas de cuidado

    Alexandre Franca Barreto

    Esta publicao fruto de um esforo coletivo de profissionais, educadores, pesquisadores dedicados ao campo da sade e suas relaes com o cuidado e a existncia humana.

    O livro Integralidade e Sade: Epistemologia, Poltica e Prticas de cuidado, traz reflexes introdutrias sobre diversas possibilidades de ser/fazer sade. Esta uma primeira obra coletiva de professores e estudantes da Universidade Federal do Vale do So Francisco (UNIVASF), profissionais de sade do semi-rido nordestino (pioneiros em prticas integrativas de cuidado) que congregam o Laboratrio de Estudos, Pesquisas e Prticas em Integralidade atualmente a principal ao deste Grupo est no desenvolvimento de um Ncleo Temtico de Prticas Teraputicas no Vale do So Francisco que se caracteriza como um componente curricular dos cursos de graduao da UNIVASF, envolvendo ativi-dades de ensino, pesquisa e extenso com elementos multi, inter e trasdisciplinares.

    Esta publicao tambm contou com a importante colaborao de interlo-cutores deste grupo que apresentam consistente produo no cenrio nacional, seja por sua histria de produo cientfica neste campo, seja pela sua partici-pao profissional na consolidao de polticas pblicas pautadas na integra-lidade. Alm disso, recebemos o financiamento do Ministrio da Educao, vinculado ao Programa de Extenso Universitria (PROEXT), o que possibi-litou a impresso desta edio.

    Com o desenvolvimento tecnolgico do ltimo sculo, a cincia muitas vezes se reduziu ao aprimoramento de ferramentas e instrumentos para melhor manipular o mundo e os objetos, com isto nos desprendemos da sensibilidade, da empatia e de valores fundamentais para uma convivncia sadia e sustentvel.

  • 88

    No contexto da sade, esta crise planetria tem como uma de suas expres-ses a farmacodependncia. Nunca houve antes no mundo tantas pessoas com dependncia crnica de medicamentos para garantir sua vida, mesmo em tenra idade. Assim como no Brasil estamos consumindo cada vez mais substancias qumicas como itinerrio habitual dos cuidados mdicos e de sade, temos feito um uso abusivo tambm das substncias qumicas em nossa alimentao, h dois anos ocupamos o lugar de maiores consumidores de agrotxicos do mundo.

    O auxlio desta tecnologia bioqumica, ao contrrio do que imaginvamos, em muitos casos teve como nus o prejuzo real em nossa qualidade de vida, por fatores diversos: fragilidade de vnculos sociais/afetivos; limitada capaci-dade reflexiva e de autoconhecimento; hbitos e prticas nocivas a si e ao meio ambiente, e; emergncia de novas doenas e quadros patolgicos.

    Os/as autores/as deste livro esto em dois espaos importantes, instituies de formao de profissionais de sade/pesquisadores (universidades) e servios pblicos de sade (na ateno e gesto); deste lugar que surgem nossas princi-pais preocupaes e desafios. E para estas pessoas e instituies que desejamos prioritariamente ser interlocutores com esta publicao.

    J se foi o tempo no qual um profissional de sade estudava astrologia, alquimia, filosofia, religio, fsica, biologia e tantos outros campos necessrios para olhar o sujeito que demanda cuidado de maneira ampla e integrativa. Ainda assim, muitos dos conhecimentos de sade/cuidado faziam parte da tradio de culturas sendo bens inalienveis, onde os/as cuidadores/as eram reconhecidos por sua sabedoria, capacidade de acolhimento, amorosidade e profunda ateno e cuidado em uma relao baseada nas trocas recprocas de bens e afetos.

    O processo de mercantilizao das profisses e servios de sade caminhou ao lado do utilitarismo e do pragmatismo do conhecimento sobre a sabedoria humana (cincia), bem como do saber de si e do outro (relao humana), empo-brecendo nossos currculos de formao e prtica profissional. Vivemos em um mundo onde estamos conectados com qualquer lugar do globo, temos acesso a culturas diversas e estamos em constante troca de conhecimento entre pases, etnias e geraes.

    O Brasil tem uma constituio sui generis por conta de sua multicultura-lidade com patrimnio cultural invejvel por qualquer outro pas do globo, contudo tem enormes desafios na efetivao do reconhecimento, legitimao e respeito diversidade. Por que no valorizar esta diversidade de conhecimento como um campo aberto a construes e aprimoramento da tica humana e do ato de cuidar? Esta uma indagao que fazemos continuamente.

    Nossos currculos, ainda carentes de abertura, restringem anos de formao em uma mesma linguagem acadmica importada de grandes centros que muitas

  • 99

    vezes limitam nossa cincia a um conhecimento pragmtico, reprodutor, julgador, fragmentado e pouco efetivo diante de nossos desafios sociais.

    Pensar a sade de maneira inovadora nos faz olhar o passado e reconhecer nosso presente com viso justa e potencializadora. Nosso caminho de aprofundar reflexes sobre integralidade e prticas/sistemas de cura no hegemnicos surge como possibilidade de criar fissuras em nossos aparatos institucionais, legiti-mando o espao para inventividade amparada por uma tica do cuidado e pela valorizao do potencial humano.

    Esta produo, longe de estar isolada, comunga de um movimento que vem consistentemente surgindo nas ltimas seis dcadas. H em curso uma reviso paradigmtica no contexto do fazer cincia e produzir conhecimento, como tambm dentro do campo da sade e das prticas de educao/formao, gesto e ateno. O nmero de publicaes, documentos tcnicos internacionais e pol-ticas pblicas sensveis a esta viso tem se solidificado, apontando sabiamente os limites do modelo teraputico dominante.

    Porm, reafirmamos que estamos em uma zona de conflito, vivemos uma crise humanitria mundial, milhares de pessoas morrem, tem sua cidadania negada a cada dia, por escolhas e direes avessas a princpios ticos e sociais que deveriam sustentar qualquer prtica humana. Assim, nossa forma de combate a instaurao de um dilogo sincero, amoroso e profundamente implicado.

    Nosso livro apresenta uma diviso entre trs grandes temticas (epistemo-logia, poltica e prticas de cuidado); esta diviso meramente didtica, pois acreditamos que cada um dos captulos enseja estes trs elementos em seu corpo, apesar de nossa v cincia muitas vezes no enxergar que o ato de cuidar do outro nutre uma epistemologia ou prtica poltica, da mesma forma que se debruar no estudo do conhecimento tambm pode ser feito de vrias formas e com isso ensejar prticas diversas.

    Na parte Epistemologia, o primeiro captulo intitulado Observador e obser-vvel: estreitos laos de estados que criamos, a autora faz um passeio histrico no mundo do pensamento, com uma escrita transdisciplinar, ela nos faz ques-tionar profundamente em que tempo-espao estamos, qual realidade observamos e criamos. Estas provocaes so sustentadas pela busca de uma cincia potica, aliada da natureza que se resigna a sua condio de incertezas e limites diante do espetculo da vida. A cincia (como produtora de conhecimento) desta maneira, ao invs de ser um instrumento tcnico da verdade (produzindo realidades frag-mentrias e duras), um meio tico da sabedoria (contemplando realidades em potencia e beleza).

    O segundo texto desta parte do livro chama-se Sade: entre Cincia, Doena e Mercado - Reflexes epistemolgico-crticas. Este captulo um convite lcido a uma reflexo profunda de nossa condio de sade, amparado em um trip

  • 1010

    (epistmolgico, poltico-institucional e tico), somos conduzidos a repensar a cincia da sade, a conduo poltica de nossas prticas e as prticas de cuidado humano. Atravs de uma crtica contundente ao nosso modelo cartesiano-meca-niscista atrelado a reserva de mercado, valorizao da doena e desconsiderao do cuidado humano, somos levados a pensar em uma prtica de sade integra-tiva que seja sustentada por uma epistemologia sistmica-compreensiva atrelado a efetivao da cidadania e uso de prticas energticas, simblicas e psquicas amparadas pela valorizao do saber tradicional e de recursos naturais, no inva-sivos e sustentveis.

    Em seguida, passamos para a unidade de Poltica, o captulo 4 do livro aborda as Prticas Integrativas e Complementares (PICs) no Sistema nico de Sade (SUS); ele traz um panorama histrico do desenvolvimento desta rea temtica da poltica pblica de sade dedicada a ofertar cuidado sob a gide de sistemas de cura complexos. Conhecer a evoluo histrica das PICs nos auxilia a perceber os significativos avanos ocorridos neste contexto, bem como sina-liza desafios reais e dilemas atuais para o processo de institucionalizao de um modelo de cuidado que adote prticas integrativas de forma eficaz, produtiva e profundamente humanizada.

    O Captulo posterior intitulado Cidadania no cuidado: um ensaio sobre os caminhos de se (re)pensar a integralidade nas Prticas Integrativas e Complementares em Sade uma evocao da prxis, uma orientao lcida de como no nos perder em modelos ideais de polticas e sistemas de cuidado, e sim nos entregarmos a implicao cotidiana do fazer, instaurando o ato como prtica da integralidade. Os autores sustentam um giro epistemolgico de produo de conhecimento/ao no voltada para a legitimao de um modelo metodolgico ou de um campo de saber, mas pela validao da prxis nos sujeitos envolvidos. Neste sentido, pensar nas PICs dar permisso a uma flexibilidade, eticamente orientada pelo cuidado.

    Na seqncia chegamos parte mais extensa do livro dedicada a diversas Prticas de Cuidado em sade.

    O Captulo 5 Desafios para a implantao da Fitoterapia no Sistema nico de Sade traa um panorama histrico e poltico sobre o campo, ressaltando os desafios da atualidade para se implementar uma prtica em sade pautada no uso de fitoterpicos contribuindo para a reduo de gastos pblicos e fazendo uma cincia que alia a valorizao do saber tradicional com a pesquisa tcnica. Alm disso, ressalta algumas aes que vem realizando no mbito da formao acad-mica-tcnica visando a educao em sade na regio do Vale do So Francisco.

    No texto seguinte, a homeopatia o tema central. As autoras trazem aspectos histricos do surgimento do campo, definem alguns princpios tericos e concei-tuais, bem como descrevem aspectos relacionados prtica clnica, oportuni-

  • 1111

    zando uma viso introdutria e estimulante sobre a homeopatia como recurso de cuidado sade.

    Adiante, os autores do stimo capitulo contextualizam o desafio de pensar a unidade mente-corpo no processo de formao em sade, a partir da trazem contribuies de Reich e Lowen, cientistas que ousaram construir suas teorias e prticas reconhecendo indissociabilidade dos processos da mente e do corpo. Seguimos tendo uma viso introdutria da Anlise Bioenergtica, e por fim, podemos adentrar em uma bela experincia de trabalho realizada com pessoas portadoras de hipertenso arterial, onde avaliamos uma compreenso integrativa deste sofrimento, bem como podemos ver os benefcios trazidos pela prtica da Anlise Bioenergtica.

    O Captulo de Medicina Tradicional Chinesa (MTC)/Acupuntura traz uma viso introdutria no campo da racionalidade mdica chinesa, ofertando aspectos histricos do surgimento e de sua chegada ao Brasil, bem como conceitos estru-turais para compreenso deste sistema de cuidado. Os autores que acumulam um pouco mais duas de dcadas de experincia neste campo, ressaltam aspectos valiosos da teoria, que possibilitam construir um panorama inicial reflexivo e profundo. Ainda assim, os autores nos relatam a histria da implementao na MTC/Acupuntura no Vale do So Francisco e os desafios em sua instuticionali-zao enquanto servio ofertado no contexto pblico.

    No texto seguinte, duas estudantes que tiveram a possibilidade de participar do Ncleo Temtico de Prticas Teraputicas no Vale do So Francisco, relatam suas experincias pessoais a partir do envolvimento com a MTC/Acupuntura. Neste captulo podemos entrar em contato com um pouco mais da teoria da MTC e sua articulao com a prtica com base em um caso clnico acompanhado pelas estudantes, alm disso podemos ver o impacto do contato com esta racionalidade mdica em sua abertura para formao em sade.

    Por fim, encerramos este livro com um captulo que aborda a Biodanza. Diferente de todas as prticas anteriormente citadas que tem surgimento em outros continentes, a Biodanza foi uma prtica gestada em solo latinoamericano, pautada em contribuies de populaes tradicionais de nosso continente. O autor do texto explora um pouco da histria e teoria desta prtica e encerra seu captulo com valiosos relatos de pessoas e grupos que vivenciaram esta experi-ncia de cuidado.

    Os autores do livro partilham dos ensinamentos proferidos por muitos sbios da humanidade, este conhecimento no pode ser entendido pela razo ctica da viso materialista de mundo (que confina todo o conhecimento em uma tirania do intelecto), mas sim deve ser lido pelo corao aliado com o crebro, amor e conhecimento devem caminhar juntos.

  • 1212

    Assim como os ensinamentos devem tocar a essncia humana, os olhos devem brilhar para haver potencia de criao, como nos diz H.D. Thoureau Devemos honrar o afeto e ensinar a alma. Ou ainda como nos deixou de legado Lao-Ts h aproximadamente 2600 anos, em sua profunda poesia:

    A moralidade e o direito nasceramQuando o homem deixou de viver

    Pela alma do Universo.Com a tirania do intelectoComeou a insinceridade;

    Quando se perdeu a noo de almaFoi decretada a autoridade paterna

    E a obedincia dos filhos.Quando morreu a conscincia do povo,

    Falou-se em autoridade do governoE lealdade dos cidados.1

    Desejamos que vocs apreciem estas pginas com sensibilidade e sabedoria.

    1 Poema 18 do livro Tao te Ching de Lao-Ts. Traduo de Huberto Rodhen

  • Reflexes Epistemolgicas sobre Cincia, Integralidade e Sade

    Captulo 1Observador e observvel

    Captulo 2Sade: entre Cincia, Doena e Mercado:

    Reflexes epistemolgico-crticas

  • 1515

    Captulo 1

    Observador e observvel:

    estreitos laos de estados que criamos

    Letcia M. Oliveira

    Olhares sobre a natureza

    Era uma vez um universo contnuo, tangvel e determinstico. Era uma vez. E essa vez se desfez quando Max Planck, teorizando sobre a relao entre as cores e as temperaturas do fogo, adentra num universo descontnuo, intangvel e probabilstico - o universo quntico. Fenmenos outrora previsveis, j no o so; velocidade e posio j no se determinam simultaneamente; o que era apenas uma onda se torna partcula e o que era uma partcula, agora se comporta como uma onda. Percebendo, pois, que a luz podia ser onda e/ou partcula, os cientista fizeram o mesmo experimento com eltrons e notaram que eltrons tambm so ondas. E ser onda e partcula foi chamado de superposio de estados. Mas depois de superpostos os estados se manifestam de uma nica forma. E o que faz com que escolham? Talvez seja a mente do observador. Ocorre, contudo, que tambm a mente do observador feita de eltrons. Logo, ela tambm se superpe. O que antes se dividia em observador e observvel, sem que qualquer relao houvesse entre eles, agora se integra, determina-se, cria estados.

    Em um nico pargrafo, contamos uma longa histria de busca e incertezas; uma longa histria que h mais de cem anos nos persegue e nos coloca frente a frente com um universo que no vemos, nem tocamos, sequer previmos ou deter-minamos. Se a natureza sensvel j se faz to misteriosa, imaginem a no tangvel. As incertezas se propagaram na forma de onda e colidiram com nossos medos na forma de partculas, e se nos torturam, tambm nos fazem perceber uma parte que no se basta.

    Eternamente acorrentado a um pequeno fragmento do todo, o homem s pode tornar-se fragmento. (KESTLER, 2006)

  • 1616

    Era o sculo XVIII quando o poeta e filsofo alemo Johann Christoph Friedrich von Schiller pronunciou essas palavras. Toda Europa comeava a se consumir e a se degradar em mquinas a vapor. A alma dos objetos j se perdia em produes seriadas. O que diria o poeta alemo, hoje, ao olhar em volta e se deparar com uma viciante fragmentao. E o que ns diramos de Schiller, ao v-lo no nosso sculo XXI conversando muito mais com telas de cristal lquido do que com seu amigo Goethe.

    Hoje, olha-se para o cu e nenhuma afinidade mais percebida. Olha-se para a natureza, para o physis que nos cerca e nenhuma relao parece se estabelecer. Mas, afinal, o que distingue e o que distancia a base da formao e funcionamento dos humanos das que regem uma bactria? No somos todos regidos por reaes de oxidao e reduo, trocas e ganhos e perdas de eltrons? E sempre das mesmas molculas: carbono, oxignio e hidrognio, o mais simples e o mais abundante dos tomos, seja em ns, nas bactrias ou nas estrelas. E por meio das mesmas reaes que conseguimos aquilo que chamamos de energia, que nunca se estagna, transforma-se em aglomerao e segregao de tomos, e se perde em calor depois de se tornar movimento.

    bonito olharmos dentro da matria em microscpios de varredura ou adentrarmos em universos onde s o microscpio de nossa imaginao possa nos levar. Fragmentar no ruim. belo e nos ensina a olharmos para a natureza sabendo que somos todos constitudos dos mesmos tomos. Acorrentados a um fragmento, sem olhar o todo de onde ele essncia, ns perderemos a beleza. Ruim ficar acorrentando a esse fragmento sem ver sua grandeza. Triste, meu caro Schiller ver romper em fragmentos a relao homem-natureza como se ambos no constitussem o mesmo todo.

    Conta-nos a mitologia grega, que tendo os homens recebido do deus Dioniso os ensinamentos sobre o cultivo da vinha, prepararam-se com muita alegria para sua colheita, quando um bode, ao cair da noite, ps-se a devorar sofregamente toda a plantao dos homens. Estava rompido o equilbrio. Homem e natureza desarmonizavam-se; as vinhas estavam destrudas, o alimento perdido, o ciclo natural no consumado. Em nome da purificao, s o sangue derramado supe-raria a separao entre o homem e a natureza.

    Conta-nos, ainda, outra histria, presente nos captulos e versculos do Velho testamento que, estando Deus entediado com o silncio do mundo, fez o homem e a mulher e os alertou que, se de fato quisessem continuar a viver, que do fruto proibido no comessem. No lhe obedeceram. Na primeira tentao do rastejante, ser que ciclicamente despe-se de suas peles e veste-se de novas, sucum-biram. Furioso, Deus ordenou que deixassem o paraso. Estava rompido o equil-

  • 1717

    brio entre o homem e a natureza; perdendo o paraso, tambm se perdia a pureza, tornavam-se impuros os homens e toda sua descendncia.

    E essa histria continua...! Algumas, mil anos depois, constam, nos captulos e versculos do Novo testamento, que um homem escolhido, deixou-se pregar cruz, seu sangue foi derramado e oferecido para que dele todos bebessem e assim se purificassem, restituindo a harmonia entre o homem e a natureza, rompida pelos primeiros habitantes do paraso perdido. Esse o meu sangue que derra-mado por vs para que, estando novamente purificados, os homens pudessem receber de volta sua natureza, o seu paraso.

    Depois dessa histria, o tempo parou, as formas de entender a natureza retrocederam e esse homem-deus-esprito-santo, sangrando suas dores na cruz, tornou-se o smbolo da salvao e da purificao, e o Senhor de todas as certezas. O desequilbrio entre o homem e a natureza, aparentemente, estava superado. Deus: uno, maisculo, obtuso, absoluto, tornara-se a razo de todas as aes da natureza, desde a folha que da rvore cai at o movimento dos corpos celestes em nossa nfima via Lctea. O equilbrio no estava superado, jamais estivera, mas sobre a Natureza uma imensa tnica branca chamada Deus, fora posta. O equilbrio no estava superado, muito pelo contrrio, a luz divina a todos cegava e alguns homens comearam a perceber e da cegueira branca fugir.

    Nossa histria d um salto temporal e chega agora por volta do sculo XV. Nesse momento, o poderio da Igreja Catlica, a representante do Deus das certezas, que tudo sabe e tudo pode e em tudo est; a detentora do sangue purificador, que abrange todos os setores da vida social , na verdade, a prpria sociedade. Donos do poder, os representantes do Senhor Crucificado tambm eram os retentores do saber, e este tinha, como sustentao, um homem limitado, habitante de um mundo sublunar imperfeito, portanto tambm imperfeito e incapaz de compre-ender os desgnios de Deus. Estava, pois, o homem, rendido oniscincia de um Deus perfeito. Se quisesse compreender a natureza, que assim o fizesse com suas prprias reflexes mentais, mas consciente de que jamais a compreenderia por ser ela criao de Deus em sua perfeio; ao homem, limitado, caberia apenas contempl-la.

    Vaidosa, frvola e ofensiva a curiosidade. Assim pensavam muitos dos ecle-sisticos e autores da Idade Mdia. a cobia do olho, alertava Aurlio Agostinho (DASTON, 2002).

    Quase mil anos depois, Toms de Aquino diferenciava o vcio desenfreado em busca da verdade do esforo controlado e humilde pela mesm busca. Mas eis que aps alguns breves sculos, surge Coprnico revirando a natureza celeste, Galileu com sua luneta a vislumbrar o cu divino por detrs das lentes, Kepler desvendando a partitura dos astros.

  • 1818

    A partir do sculo XVII, j no basta Deus para explicar a natureza, o homem parte, ento, rumo ao angustiante universo de fenmenos e movimentos a serem explorados. Mas em que se sustentar para tal faanha? Em seus sentidos? Em suas incrveis invenes? Em sua cincia experimental? Em seu racionalismo? Pobre homem, j no pode mais se apoiar nos mitos gregos trgicos nem no Cristo crucificado.

    Inaugurando o Ceticismo Metodolgico, cujo lema era duvide de tudo em que acredita, Descartes, ao contrrio dos escolsticos, que acreditavam que as coisas existem simplesmente porque precisam existir, ou porque assim deve ser, institui que s pode existir aquilo que pode ser provado. E se pergunta: eu existo? por meio desse raciocnio que busca provar a existncia do prprio eu. E de Deus. Do mtodo cartesiano, temos um racionalismo de verdades absolutas, sacro, mas matemtico.

    J em Bacon, necessrio, a partir de agora, que se reconheam e se superem os equvocos da tradio, que por tanto tempo obstruram os caminhos da pesquisa cientfica. A natureza, por si s, no revelar os seus segredos preciso submet-la atravs de aes. Como Proteu, que assume diferentes formas apenas quando preso e surrado, tambm a Natureza, quando apanhada e estimulada pelo homem, manifesta-se muito mais, do que se permanecesse livre e entregue ao mundo. (ZITELL, 2002)

    Ora, ora Francis Bacon, ao falar de Proteu e ao dizer que tambm a natureza assume as formas de onde a confinamos, talvez j adiante toda uma angustiante incerteza da relao entre o observador e o objeto.

    O homem, em seu espao-tempo, o seu nico referencial. A metafsica tornou-se puro sonho. O que o homem possui so apenas as impresses de seus sentidos. David Hume instala o rompimento definitivo com a filosofia grega e os dogmas cristos:

    Em todos os incidentes da vida, devemos sempre preservar nosso ceticismo. Se acreditamos que o fogo aquece, ou que a gua refresca, somente porque penoso pensar de outra maneira. Mais ainda: se somos filsofos, deveria ser somente com base em princpios cticos, e por sentirmos uma inclinao a assim empregar nossa vida. (HUME, 2001)

    A luta pelo racionalismo e por sua defesa parecia estabelecer certezas e traar mtodos em busca de uma verdade no religiosa, mas perfeita em seu raciona-lismo numrico. Tanto crente do determinismo e do objetivismo que alcanara,

  • 1919

    no sabe o homem o grande sofrimento do indeterminismo e da imprevisibili-dade que ainda o espera. Verdades que nos traem. Verdades que no se mostram

    Sem mitos, sem sangue derramado que o purifique, est o homem moderno inserido na questo fundamental da separao entre o homem e a natureza. Por ser capaz de estabelecer um conhecimento sobre a natureza, o homem dela se separa; empirismo e racionalismo so do que dispe para conhec-la. Jura existir uma verdade, mas nada sabe sobre como encontr-la, nem mesmo se a encon-trar; sequer que pode v-la.

    Immanuel Kant, no sculo XVIII o estabelecimento dessa antiga ruptura entre homem e natureza, agora inserida no pensamento moderno. Para Kant, no conhecemos as coisas tais quais so, e jamais conheceremos, porque no temos capacidade para isso. Nossos sentidos e intelecto so limitados. Nega, dessa maneira, que a experincia baste para o homem conhecer a matria. Afinal, a mente humana no pode produzir uma idia fora do tempo e do espao. Tempo e espao so formas fundamentais de percepo que existem como estruturas inatas da mente. Nada pode ser apercebido exceto atravs destas formas, e os limites da fsica so os limites da estrutura fundamental da mente. Uma vez que tudo o que percebemos filtrado atravs das formas de espao e tempo, ns no podemos conhecer verdadeiramente o mundo real.

    Inaugurado o conflito da modernidade, Kant, paradoxalmente, une empi-rismo e racionalismo, e os separa da realidade, isto , as coisas tais e quais so nelas mesmas e a forma como as conhecemos, ou como as coisas aparecem para ns. Faz, assim, com que o conhecimento objetivo dependa igualmente dos dados sensveis e da razo e, no fim, a certeza do homem continua sendo a de que nada sabe, pois aquilo que julga conhecer, o para-si, no o mundo em si mesmo (noumenon).

    Contando apenas com seu pensamento, preciso de alguma forma, resolver a separao entre conhecimento e mundo, entre a natureza e o homem. A pergunta como dar conta de coisas to volveis, to instveis, como as do mundo real. preciso reduzi-las. E fazendo agora com que a aparncia Seja, Husserl, na tenta-tiva de unir novamente o mundo e o homem, prope a quebra da separao entre a aparncia e a coisa em si.

    Para a Fenomenologia de Husserl no existe nenhuma realidade se escon-dendo por detrs dos fenmenos, o que no significa dizer que a aparncia a realidade, pois se torna preciso chegar essncia dos fenmenos, reduzindo-a nas idias, j que a essncia objetiva, para todos. O objeto seria, ento, em sua essncia, uma apario, e a conscincia onde se fundamenta a possibilidade do objeto, existe. Para a Fenomenologia no importa o mundo que existe. Os objetos

  • 2020

    dos fenmenos psquicos independem de sua rplica exata na natureza, porque os fenmenos psquicos, a percepo, contm o prprio objeto. A reduo fenome-nolgica restringe o conhecimento ao fenmeno na experincia da conscincia, desconsiderando o mundo real e focando em como o conhecimento do mundo acontece.

    Na Fenomenologia de Husserl vemos a presena do idealismo, dos objetos ideais, das idias das coisas em sua essncia. Desde Plato, a filosofia nos diz que existem vrias imagens possveis para um mesmo objeto, e que todas elas significam a mesma coisa, so todas redutveis a um mesmo significado, consti-tudas da mesma essncia, contendo sempre a mesma idia. Husserl, retomado o conflito entre idealismo e realismo, faleceu em 1938 sem restabelecer a unio entre o homem e a natureza (CAMUS, 1989).

    Prossegue o homem em seu conflito, e se os objetos da conscincia so reais, ainda que ideais, ento existem como fenmeno, e porque existem, Sartre os denomina de seres em si, completos, acabados. Mas h tambm uma consci-ncia, um conhecimento de que consciente; uma conscincia da conscincia para si. A conscincia sempre intencional, quer revelar e representar algo e est direcionado para o algo que est fora dela; no existe sem que esteja criando a presena de um objeto.

    Sem o objeto, a conscincia um nada, j que apenas pode existir na relao que estabelece de si mesma com o ser em si. A conscincia busca incessante e desesperadamente o ser em si para se auto-fundamentar. Destruindo o objeto, a conscincia pode transform-lo no seu prprio nada, no seu para si. Contudo, no se trata, nesse caso, de um nada de concepes niilistas, pois nesta, preciso que tudo seja destrudo, e em Sartre encontramos um nada em constante busca de preenchimento. Como nada existe, tudo possvel. Concebendo a negativa, o homem encontra-se diante de um universo de infinitas possibilidades. O poder de negar o poder de escolher (CAMUS, 1989).

    Esto, pois, separados, ser em si e para si. A conscincia no o que , pois precisa se voltar para fora para poder existir, mas tambm no pode ser o que intenciona e, nesse momento, pode tudo. O homem est livre e angustiadamente separado de si mesmo.

    Vemos aps esse longo passeio pela relao homem-natureza que entre o sculo XVI e XVII, aps centenas de anos, enclausurado nas causas obrigato-riamente divinas, o homem se dispe a investigar a Natureza. Coprnico inicia essa nova busca com seu modelo cosmolgico, no qual a Terra j no ocupa mais o centro do Universo. agora um planeta como outro qualquer que se move ao redor do Sol. Com Galileu, a Natureza matematizada e a experimentao posta como base na compreenso dos fenmenos. Descartes busca a certeza analtica e cria um mtodo que lhe permite construir uma cincia totalmente

  • 2121

    baseada nessa certeza. Ocorre ainda, nesse momento, uma profunda separao entre o observador e o observvel, uma separao que permanecer por sculos seguidos sem quaisquer contestaes.

    Desde Coprnico e Galileu, a razo buscava seu lugar ao Sol, e sob um Sol que agora se posicionava no centro do Universo. Antigos pilares dogmticos e religiosos e de crenas comeavam a desabar e a matemtica e a experimentao adquiriam foras.

    Havia uma importante referncia na rea da medicina, conhecido histori-camente por Galeno, que, ao retomar as ideias de Hipcrates, fez-se a principal fonte da medicina durante toda a Idade Mdia e adentrando na Renascena. Galeno tambm foi um experimentador e sempre estabeleceu uma relao entre os chamados humores corpreos, os temperamentos humanos e as variaes ambientais. Contudo, muito de suas teorias em que se cria veementemente, no estavam corretas. Um exemplo disso era sua certeza de que o sangue venoso alimentava o corpo, enquanto o arterial lhe conferia o esprito vital. Foi preciso que os mdicos Vesalius e Willian Harvey, no sculo XVI, questionassem Galeno e por meio de muitas experimentaes chegassem a importantes descobertas anatmicas que ainda hoje ajudam a salvar vidas.

    Se hoje a medicina tornou-se friamente experimental em excesso, esque-cendo por vezes seu lado humano, deve ser pela tendncia do homem a em tudo se exceder. Apoiar-se na experimentao para melhor entender e mais sabiamente tratar as doenas foi fundamental, assim como buscar o conhecimento elaborado por Descartes foi preciso para que a cincia caminhasse em novas e importantes descobertas. Talvez, contudo, no fosse preciso apoiar-se apenas nisso.

    Descartes hoje visto como o grande fragmentador foi quem sintetizou todas as mudanas que a razo conduzia. Uma de suas grandes criaes foi a Geometria Analtica e, sem ela, hoje sabemos que Newton no teria elaborado sua mecnica nem Einstein teria chegado teoria da relatividade. Lenda ou fato, j que o prprio matemtico no se refere a esse fato em sua obra, cujo ttulo original era Discurso do Mtodo para bem conduzir a razo e procurar verdade nas cincias, conta-se que o ponto de partido para Descartes criar a Geometria Analtica ocorreu quando, ainda estudante universitrio, acordou, olhou com ateno para uma mosca no teto e percebeu que sua posio poderia ser espe-cificada por trs nmeros. Partiu, pois, de uma antiga e perturbadora questo humana: onde estou?

    De acordo com os paradigmas dogmticos vigentes, estaramos em um lugar arquitetado por Deus. A ditadura religiosa j no bastava e ocultava a verdade que somente a razo, posta no bom caminho, poderia revelar. Descartes cria que, se poderia, sim, alcanar a verdade precisa da natureza. Havia uma realidade nica e exata que s a razo poderia nos ajudar a desvendar.

  • 2222

    Descartes j se deparara com a temvel dvida: o que realidade? Mas para elimin-la, ou para dela fugir, elaborou um mtodo baseado na matemtica unicamente na certeza em que se apoiava.

    Havia, pois, para Descartes uma profunda separao: o res cogitans, ou esp-rito, que se tratava de uma substncia pensante, e a res extensa, ou matria, uma substncia que no pensa. Da mesma forma, considera evidente que o atributo do esprito o pensamento, pois o esprito pensa sempre. A concluso que existe uma substncia pensante -- res cogitans -- e uma substncia que compe os corpos fsicos -- res extensa -- e que ambas so irredutveis entre si e totalmente separadas. a isso que se chama de dualismo cartesiano.

    Em Newton, o determinismo da Natureza torna-se uma irrefutvel mani-festao dos fenmenos naturais. Dentre tantas teorias, temos a fora gravita-cional como causa da queda dos corpos e a teoria das cores como consequncia da refrao. Para Newton espao e tempo eram dissociados e o tempo tinha uma existncia prpria, absoluta e independente do observador. Mas na sua teoria do movimento, com corpos que se colidem transferindo velocidade, que se esta-belece que todas as causas e todos os efeitos podem ser determinados, e o meca-nicismo ganha fora. Aps Newton, a natureza parece ter sido completamente desvendada e compreendida.

    Tantas certezas e tantos desvendamentos pareciam eternos e jamais pode-riam ser negados ou duvidados ou abalados. Mas aps dois sculos de absolu-tismos newtonianos, eis que o homem se depara com novas formas de olhar para a natureza. Rui o que por anos se cria como irrefutvel.

    O tempo e o espao de Newton naufragam na teoria elaborada por um jovem trancafiado entre as paredes de um escritrio de patentes; um jovem chamado Albert Einstein que, por meio da sua teoria da Relatividade Restrita, derruba o absolutismo temporal e, a partir de ento, o observador o elemento principal para a concepo de um significado fsico do fenmeno observvel. Einstein insere o observador no espao e no tempo e no mais os distingue. Agora, a reali-dade no mais absoluta; a realidade do observador, e entre ele e o fato no pode haver nenhum hiato.

    A relao entre o homem e o objeto ou entre o observador e o observvel ser um dos principais pontos de todas as mudanas que ocorrero com o advento de uma natureza quntica, microscpica, intangvel.

    A poetisa Orides Fontela, muito tempo depois, nos anos finais do sculo XX, nos pediria para adivinhar: O que impalpvel, mas pesa...? O que sem rosto, mas fere...? O que invisvel, mas di?

    Esse foi o grande enlouquecimento quntico: saber que l est e no poder ver; saber que se move, mas nunca saber para onde vai.

  • 2323

    Talvez tenha sido em funo da fragmentao e de sua eterna busca pela verdade que, no incio do sculo XX, o homem tenha tanto se assustado com o pequenino universo com o qual se deparou.

    E tudo aconteceu por culpa da luz, que desde Prometeu exerce profundas mudanas sobre a humanidade. que um dia, Max Planck, pesquisando sobre a relao entre as cores e a temperatura, verificou que no havia uma relao contnua entre elas, mas sim uma relao de pacotes ou pores de energia, ao que ele chamou de quanta de energia. Dessa forma, as cores no passariam do vermelho ao azul devido ao contnuo aumento da temperatura: cada cor teria sua prpria, especfica e descontnua energia.

    Nesse grande susto cientfico, retoma-se a velha discusso, aparentemente j resolvida, sobre o comportamento da luz: afinal, ser ela uma onda ou uma part-cula? Essa discusso j se fazia notria desde os tempos de Newton, mas no final do sculo XIX as principais teorias confirmavam uma luz ondulatria.

    Em poucas palavras, o que caracteriza a teoria quntica de maneira essencial que ela a teoria que atribui, para qualquer partcula individual, aspectos ondu-latrios, e para qualquer forma de radiao, aspectos corpusculares. E agora? O que fazer? Como e por onde olhar o que se faz dual?

    Se Descartes fez o que fez, ou seja, se atribuiu razo toda interpretao da Natureza, talvez porque, naquele momento fosse preciso o rigor de uma razo inventada, sabendo que inventada e necessria.

    O que se v real? O que real? O que se julga real? H o que , mas s temos o que se v?

    A busca do que real sempre atormentou o homem e, at mesmo dizer o que de fato o real, nunca se calou. Desde os mitos, aos dogmas religiosos e toda certeza, ou o que se chama de certeza, que, na verdade, nunca se soube ser de fato, certeza cientfica, o homem se separa da natureza por ser capaz, ou pensar ser capaz de estabelecer conhecimento sobre ela.

    Kant, como j dito, inaugura a modernidade confirmando essa separao, mas a partir de uma lgica que limita os conhecimentos racionais, lgica essa que, talvez, seja a grande insatisfao e busca humana. Afinal, o que vemos real? Segundo Kant, h a coisa em si e a coisa para si. Feliz ou infelizmente, s podemos acessar a coisa para si, jamais a coisa em si, pois nunca alcanaremos a verdade da natureza.

    O que podemos e temos a capacidade de acessar apenas aquilo que vemos e sentimos, e que no podemos considerar como a verdade real da natureza.

    A quntica revira os antigos pensamentos. De Descartes a Kant, de Hume a Husserl, todas as teorias so remexidas. Um dualismo inimaginvel se faz

  • 2424

    presente. E o observador deixa de ser um mero espectador para no s dividir o palco com o objeto, como para ser o escritor da histria.

    Afinal, ... o que tudo seno o que pensamos de tudo? O poeta Fernando Pessoa nos coloca essa questo talvez porque em si, na sua forma de agir, de ser, de manifestar-se, j o faz incorporado s teorias qunticas.

    Na mecnica quantica, o incompreensvel nos vence.

    Talvez seja a fsica quntica um dos maiores exemplos de aceitao insub-missa. Se voc realmente acredita na mecnica quntica, no pode lev-la srio, dizia o fsico Bob Wald aps alguns scotts. parte brincadeiras ps-scotts, o fato que um dos maiores tormentos vividos pelo homem talvez tenha ocorrido para os que, primeiramente, deslumbraram o mundo quntico. Imagine de repente perceber que todas as leis, que bem cabem ao mundo clssico, j no bastam.

    Um estado quntico global pode ser descrito por uma superposio de outros estados. Essa descrio feita a partir de um elemento chamado vetor ou funo de onda ou . Havia os que no acreditavam que uma funo de onda () pudesse descrever fenmenos reais. A funo seria, pois, apenas uma maneira de representar o mundo, e estaria na mente, ou seja, na interpretao, no no mundo real e tangvel; e, embora no seja coerente, decoerente para todos os propsitos prticos. Mas tambm havia aqueles que criam que a funo de onda era material e descrevia o mundo em sua forma real e tangvel. o que somos, o que vemos e o que criamos.

    Diversas discusses e interpretaes buscaram compreender o incompre-ensvel invisvel. E uma dessas tentativas foi um experimento-de-pensamento elaborado pelo fsico Erwin Schrndinger, ao que ele chamou de paradoxo do gato, que at hoje no foi desvendado.

    Imaginem: um gato trancado em uma caixa junto com uma substncia radioativa, que tem a probabilidade de 50 % de acionar um detetor. Ligado a esse detetor est um dispositivo que se o detetor for disparado, o gato morre, caso contrrio, permanece vivo. O estado do tomo radioativo o que a mecnica quntica chama de superposio de estados de emisso e de no-emisso. Mas qual seria, afinal, o estado do sistema macroscpico ao final de um intervalo de tempo? Se o observador no estiver l muito consciente do que est olhando, ou seja, se estiver desligado, distrado, desatento, o estado final do experimento--de-pensamento ser uma superposio de gato vivo e de gato morto, ao mesmo tempo. Mas se quem abrisse a caixa fosse um observador atento e consciente, ocorreria, segundo seu pensamento, um colapso da funo de onda e o gato

  • 2525

    estaria vivo ou morto de acordo com o observador. Ora, como pode um objeto ser afetado de uma forma to forte e intensa pelo ato da observao?

    At parecia estranho e ainda nos parece, mas no se pode negar o quanto isso tem ajudado a revermos a cincia e, at mesmo, a prpria medicina, j que tambm se rev a relao corpo e mente. Se o gato de Alice conhecesse o gato de Schrndinger seriam grandes amigos, isso claro, se seus estados vivos coin-cidissem e assim pudessem se encontrar. O grande pintor argentino Norberto Conti, em sua srie de pinturas intitulada Alice, passeia pelo mundo mgico--quntico expressando a dualidade de forma potica.

    Alm do j mencionado idealismo, intensamente defendido por Immanuel Kant, h outras formas de se olhar a natureza. Uma das principais dessa forma que tanto se manifestou por toda a histria humana desde a Antiga Grcia, passando pelo Renascimento e se estabelecendo fortemente no sculo XIX, foi o romantismo. Para os romnticos, a natureza dotada por uma espcie de alma e podemos associar essa viso ao estoicismo e ao neoplatonismo, principalmente.

    Mas no sculo XIX, pela literatura goethiana e pelos versos de Schilling que o romantismo, tambm conhecido como naturalismo animista, se manifesta, defendendo, pois, a ideia de que o eu e a natureza so manifestaes de uma substncia fundamental, fazendo que a natureza fosse vista como uma totalidade orgnica.

    Foi preciso passar por todas as teorias de tentativas de compreenso na natu-reza, idealismo, fenomenologia, positivismo, realismo e tantas outras para, enfim, chegarmos at o grande susto quntico. Ocorre, contudo que, embora tenha sido

  • 2626

    preciso por todas as teorias passar, no podemos nos iludir, pois nenhuma delas sequer ser capaz de explicar e nos fazer entender a Natureza.

    Teorias surgiro, debates se estendero, dvidas e conflitos se intensificaro. Todas as teorias bem mais perturbaro nossas tentativas de entender o mundo do que propriamente nos ajudaro. Alguns fsicos, como Bohr e Heisenberg propu-nham um tentador abandono a todo determinismo. Ora, depois de sculos enclau-surados num esmagador objetivismo, e depois de se ver que ele no mais serviria para se compreender a natureza, ento, que declaremos o fim do determinismo. Ocorre, contudo, que o decreto do fim absoluto do determinismo nos deixaria cegos, atordoados, sem sabermos nem como nem para onde ir. Sentiramo-nos mais imprevisveis que eltrons.

    Husserl, que nunca se deparou com um experimento de onda e partculas, j especulava que o sentido do ser e do fenmeno no podem ser dissociados. Ele no era um idealista, mas j podia olhar o objeto como algo que no depende das crenas, nem do observador.

    J falamos do idealismo, ou subjetivismo, para o qual a realidade do mundo externo depende de nossas mentes. Existem diferentes formas de idealismo, como a do bispo Berkeley, para quem s real aquilo que perceptvel, at o idealismo conceitual, segundo o qual qualquer caracterizao do real que podemos cons-truir de natureza mental. Afinal, o mundo a minha representao j dizia Arthur Schopenhauer.

    Para um solipsista, apenas si prprio quem existe, e a partir do instante em que morre, o mundo deixa de existir! H, pois, um eterno conflito. O mundo que vemos apenas nossa representao? Ou ele assim existir independente de nossos olhares? Ou quem assim o cria, justamente o nosso olhar?

    Inevitavelmente, devido ao seu carter de observador como agente causador, algumas interpretaes da fsica quntica adotaram uma posio idealista a qual defende que a conscincia humana quem causa o colapso de uma onda qun-tica. O colapso, ou reduo de estado, uma alterao drstica na onda asso-ciada a um objeto quntico. Na figura abaixo, considere um tomo que entra pela esquerda. Ao passar entre um par de ims (de Stern-Gerlach), como se a onda se localizasse em dois caminhos diferentes, ao mesmo tempo, em uma superpo-sio. Mas quando a medio realizada, e o tomo deixa sua trajetria em um dos detectores, a onda se reduz para o caminho correspondente (PESSOA, 2003).

  • 2727

    Na mecnica quntica, e no h de como disto fugir, vai ser atribudo um papel peculiar do observador no ato da medio.

    Niels Bohr, em seu princpio da complementaridade, defender que o objeto observado inseparvel do sujeito. Em suas palavras proferidas em 1928, Bohr afirma: uma realidade no pode ser atribuda nem aos fenmenos nem aos agentes da observao. Isso significa, de acordo com essa representao, que todo objeto da cincia um fenmeno observvel e no se separa do sujeito observador. Na verdade, de acordo com Bohr, o sujeito e o objeto so to inse-parveis que o observador quem escolhe se o fenmeno onda ou partcula, o que envolve a liberdade do componente subjetivo da relao sujeito-objeto. Mas ocorre que fenmenos corpusculares e ondulatrios podem ser interpretados como diferentes estados da realidade, o que faz com que essa escolha passe a ter o poder de transformar a realidade.

    Diante dessas formas de se interpretar o indeterminvel, o imprevisvel, o assustador universo quntico, vemos que observador e observvel se reencon-tram e o sujeito elemento determinante a partir do que olha, pensa e deseja.

    Talvez, exista muitos-mundos, o gato pode estar vivo e morto ao mesmo tempo, porque so muitas as percepes. E o gato pode estar vivo e morto ao mesmo tempo porque so muitos os observadores e muitos os sistemas de medidas. J os que acreditam em como fenmeno real, buscam economizar universos, e em uma nica percepo o gato pode estar vivo ou morto. Afinal, por que a percepo no poderia conceber dois estados ao mesmo tempo? Que sabemos da percepo? Que falha, apenas. O mundo seria, ento, descrito por probabilidades. O mundo fsico escrito por matemtica, e numa nica matriz esto contidas todas as probabilidades de medies que um observador possa fazer l de onde nada se pode saber.

  • 2828

    A fsica quntica encerra em si todo absurdo e, mesmo assim, vale a pena am-la, especul-la, girar em paradoxos. Ela assume o desconhecer, reconhece o mistrio que a ronda, e o homem vencido, nem por isso se queda, quer danar com o universo, um bal estruturalmente dionisaco. E o homem vencido baila, ou pensa bailar, que importa, com sua doce matemtica, pelos campos da estran-geira natureza.

    Caminhamos por muitas teorias, adentramos no universo quntico, intan-gvel, invisvel, e nos perdemos ainda mais por entre as teorias que em nada podem nos ajudar. H algo que nos transforma e determina o que ser de ns no prximo instante? Somos nossos auto-observadores e o nosso pensamento que determinar se estaremos vivos ou mortos? Somos objetos e observadores e que relao haver entre eles?

    O no saber ou o incompreensvel sempre nos venceu. E sermos vencidos pela natureza que nunca compreenderemos no nos torna malogrados nem humilhados. Trata-se, pois, de uma derrota que nos orgulha. Mas se nos sabemos derrotados, por que ainda buscamos entender a natureza? Deve ser porque ela bela, s isso.

    E toda natureza se cruza, se fala, se toca. Somos todos feitos de tomos. E se do p viemos, e ao p voltaremos, dos tomos nunca samos. Os tomos que hoje nos formam, um dia, formaram um rato, e quem sabe um urubu. Estiveram em areias e cactos. E os processos que regem uma bactria, tambm nos regem. Somos Todo e pelo extremo da fragmentao a Ele voltamos.

    E nossos pensamentos, bem como nossos sonhos e nossas projees e nossos delrios so os regentes desse Todo.

    Estados se superpem a todo instante. O que se materializa uma pequens-sima parte do Todo que somos.

    Mas quem somos?No sabemos. Sabemos apenas que no somos Uno. Somos muitos. E por

    nada sabermos, o que nos resta, seno a poesia?

    Como eu desejaria ser parte da noite, parte sem contornos da noite, um lugar qualquer no espao no propriamente um lugar, por no ter posio nem contornos, mas noite na noite, uma parte dela, perten-cendo-lhe por todos os lados... e unido e afastado companheiro da minha ausncia de existir (PESSOA, 1999, p. 262).

    Ah, como eu desejaria estar, ao mesmo tempo, em todos os estados poticos.

  • 2929

    Referncias bibliogrficas

    CAMUS, A. O mito de Ssifo. Traduo de Mauro Gama. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1989.

    DASTON, L. A cultura da curiosidade. Revista Scientific American, Editora Duetto, Portugal, 2002.

    GILMORE, R. Alice no pais do quantum. Traduo Andr Penido. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 1998.

    HUME, David. Tratado da natureza humana: uma tentativa de introduzir o mtodo experimental de raciocnio nos assuntos morais. Trad. Dbora Danowski. So Paulo: Unesp, 2001.

    JOURDAN, C. Albert Camus: Fenomenologia e Absurdo. Anais de Filosofia So Joo Del-Rei, n. 10, p. 305-315, 2003.

    KANT, I. A Crtica da razo pura, Traduo: J. Rodrigues de Merege. Digitalizao: Membros do grupo de discusso Acrpolis (Filosofia). Homepage do grupo: http://br.egroups.com/group/acropolis/, acesso 29 de maio de 2011.

    KESTLER, I. M. F. Johann Wolfgang von Goethe: arte e natureza, poesia e Cincia. Histria, Cincias, Sade-Manguinhosvol.13Rio de JaneiroOct.2006.

    PESSOA, O. Conceitos de Fsica Quntica, volume I e II. So Paulo: Livraria da Fsica, 2003.

    PESSOA, O. Interferometria, Interpretao e Intuio: Uma Introduo Conceitual Fsica Quntica. Revista Brasileira de Ensino de Fsica, vol. 19, 1997.

    PESSOA, F. Poemas de lvaro de Campos. Rio de Janeiro: Nova Fonteira, 1999.

    ZITTEL, C. A colmeia produtora de conhecimento . Revista Scientific American, Editora Duetto, Portugal, 2002

  • 3131

    Captulo 2

    Sade: entre Cincia, Doena e Mercado:

    Reflexes epistemolgico-crticas

    Marcelo L. Pelizzoli

    Cincia: necessidade de epistemologia e reflexo crtica

    Cabe perguntar antes de tudo se no estamos sob a influncia de um grande e utpico imaginrio quando entramos no discurso da cincia. Que conjunto de fenmenos este sob o qual pretendemos nos abrigar ou falar em nome dele ? A que responde ? Quais pre-conceitos, pre-juzos e pressupostos no propria-mente cientficos podem estar habitando este fazer humano, dado ao tempo e aos contextos, mas que prega a validade universal ? O aporte da filosofia nos ajuda a no nos deixar enganar por discursos fechados, validados sob determinadas condies e paradigmas, e que se querem totalizantes, e que ento adquirem uma aura idealizada para alm da realidade vivida.

    Para o renomado filsofo da cincia T. Kuhn, na quase totalidade das pesquisas, no fazemos cincia como tal, mas repetio de procedimentos aceitos e resultados semelhantes, dentro de um paradigma adotado no bem conscien-temente, que condiciona as possibilidades dos novos resultados (KUHN, 2003). Mesmo a chamada inovao tecnolgica, pode estar dentro da reproduo de um modelo de cincia que se reproduz no interior de direcionamentos socioeco-nmicos, ligados a interesses e poderes que podem no servir ao bem comum. Quase 100% das vezes, repetimos o que nossos mentores, nosso professores orien-tadores, ou mesmo pesquisadores de sucesso, ou pesquisas dentro de uma rea econmica prvia determinam. Por isso, o que se faz em geral no propriamente cincia no sentido forte da palavra - uma cincia aberta verdade, tanto quanto s revolues cientficas e aos limites do conhecimento humano (KUNH, 2003).

    Uma discusso fundamental pergunta at que ponto a Cincia atual, presente na rea de sade, responde aos grandes ideais que orientam a idia de uma Cincia verdadeira, aberta e razoavelmente livre de interesses de mercado domi-

  • 3232

    nantes. Uma idia de Cincia verdadeira no quer dizer aquela que tem acesso ao real como tal, ou um modelo positivista baseado em fatos chamados evidentes para alm da interpretao, e que progressivamente conhecer mais e melhor um mundo de objetos a serem 100% decifrados, mas antes, a que est aberta aos vrios modos de validao, mtodos e formas de abordagem do conhecimento da chamada realidade e alteridade, e ao que esta realidade em sua alteridade impe dentro e alm do recorte reduzido pelo pesquisador ou por uma teoria dentro de um paradigma.

    Uma cincia verdadeira encarna o aspecto crtico e histrico; portanto, vai junto a uma discusso epistemolgica (filosfico-crtica) contnua: faz constan-temente uma teoria ampliada e crtica do conhecimento a ser aceito. Investiga, assim, seus pressupostos cientficos e institucionais, seu contexto de validao; reconhece a historicidade e a finitude do conhecimento humano e leva em conta a tradio que lhe precede, e como se relacionar com ela (GADAMER, 2006; SANTOS, 2002). Fundamentalmente, necessita fortemente do dilogo de saberes e reconhece os limites do conhecimento diante da complexidade e infinitude da natureza, da vida (LEFF, 2001). A cincia no sentido forte do termo, no sculo XX, chegou a princpios epistemolgicos muito importantes, indicados nos conceitos de incerteza, complexidade, interdependncia de fatores, lgicas diversas e sistmicas, interdisciplinaridade, dilogo de saberes, paradoxos qunticos - como a dualidade partcula-onda e outros (HEISENBERG, 1996). Isto no significa, contudo, que as reas da (tecno)cincia apliquem na prtica tais princpios hoje.

    Tecnocincia, como conceituamos, no significa necessariamente cincia no sentido acima, e, muitas vezes, se afasta destes pressupostos ltimos. A cincia tornou-se muito mais uma funo da tecnocincia-mercado do que cincia verda-deira. Isto explica por que a complexidade e o dilogo de saberes, bem como a epistemologia, so muitas vezes expulsos do cenrio. Isto explica por que muitas descobertas so arquivadas, por que muitas tecnologias brandas, sustentveis, antigas, so ofuscadas por no se coadunarem aos modelos e interesses vigentes. Isto explica, muitas vezes, por que solues simples e de base so sufocadas e as escolhas dobram-se em torno de grandes volumes de recursos, pequisas e proce-dimentos extremamente dispendiosos ou seja, a lgica das corporaes2.

    a partir da percepo crescente destes obstculos que criamos um trip crtico de anlise relativo s vises de cincia e do papel dos campos do conhe-cimento. Tal trip til para analisar tanto os discursos e prticas no modelo biomdico quanto na rea ambiental, ou em biotica. Somente a anlise ampliada referida aos paradigmas e s prticas sociais - pode abrir caminhos para a viso integrativa nestas reas, bem como validar a busca por modelos complementares ou alternativos.

    2 Sobre isto assista ao rico filme The Corporation.

  • 3333

    A proposta de um trip epistemolgico-crtico de anlise

    Uma cincia no sentido forte, ou cincia com conscincia, como diziam E. Husserl ou E. Morin (2000), deve levar em conta o que chamamos de trip epistemolgico-crtico, a saber: primeiramente, sua dimenso epistemolgica subjacente, em que ela se assenta, suas bases para olhar o mundo como objeto, sob certo modelo de conhecimento, a posio do investigador, os contextos de pesquisa, os paradigmas vigentes, a dimenso histrica, e a episteme reinante - o grande clima do fazer cincia de um tempo (FOUCAULT, 2004); em segundo lugar, a sua dimenso poltico-econmica e institucional, extremamente determi-nante dos rumos das pesquisas hoje, a relao de foras/influncias institucionais; e por ltimo, a dimenso tica, que determina a possibilidade de um sentido de bem comum, de sensibilidade social, de busca da cura, de busca de abertura ao diferente, ao resgate dos valores humanos como essncia de todo fazer, quando a techne encontra-se com o ethos: resumindo, a dimenso do cuidado como moti-vao maior da cincia, que serve vida e no o inverso. No campo de sade, a noo de cuidado o centro, o sentido ltimo, o qual carrega as noes correlatas de justia, beneficncia, cidadania, autonomia, to caras biotica e tica biom-dica hoje. Desde os gregos, a justia sempre esteve ligada verdade. E o saber popular enuncia: quem ama cuida.

    Uma cincia verdadeira precisa apoiar-se ou recuperar a tica devido ao fato de que os direcionamentos da pesquisa so, h muito tempo, altamente influenciveis por interesses de quem detm poder e capital na rea. Na rea da Sade (doena), um bom (ou mau) exemplo a escolha pela abordagem tera-putica da lcera de estmago e de duodeno atravs da causalidade bacteriana (Helicobacter pylori). O discurso cientfico-miditico desemboca em um prmio Nobel em medicina para dois pesquisadores. Mas materialmente, o fato gera um campo econmico de venda de drogas para lcera como doena pautada na aposta em um agente patognico isolado, o qual pode ser combatido com drogas3. J a preveno e os tratamentos naturais (como por exemplo a associao entre hidroterapia, jejum teraputico, crudismo/alimentao natural e fitoterapia) que respondem de modo mais curativo, profundo e persistente, so poucas vezes utilizados e difundidos.

    Trata-se de uma discusso que devemos levar em trs nveis de entendi-mento conjugados - o trip epistemolgico-crtico: 1- nvel epistemolgico stricto:

    3 Em geral se prescreve um anti-secretor e dois antibiticos contra o H. Pylori. Em 80% dos casos o tratamento no traz efeitos benficos e duradouros; nos 20% com efeito, trata-se de perguntar se foi escamoteado e trans-ferido o sintoma ou houve uma cura real ? A cura aqui pode ser sintomtica pelo simples fato de que no se altera substancialmente o Campo em que os agentes patognicos criam seu habitat. Havendo apenas uma abordagem em termos de doena fragmentria, no se alcana uma dimenso real de sade, portanto de equilbrio orgnico e ento de cura.

  • 3434

    a escolha de um modelo de procedimento e validao cientfica no caso do H. pylori h o pressuposto reducionista-mecanicista na abordagem fisiopatolgica presente mesmo dentro da MBE (Medicina Baseada em Evidncia); 2- nvel pol-tico: toda abordagem elaborada dentro de instituies, de polticas de doena, interesses econmicos privados, jogo de foras, lobby farmacutico, portanto, h uma luta poltico-corporativa em jogo; e 3- nvel tico, qual o nvel de consci-ncia-sensibilidade e valores, de cuidado presente: quando este elemento humano fundante no est presente, os pontos 1 e 2 ficam extremamente vulnerveis, ou so elididos, e nem entram em discusso. Este terceiro nvel revela a (in)capaci-dade para a sensibilidade humana, socialidade bsica, e a solidariedade, ou para o cuidado incorporado, que (ou deveria ser) a base primeira e ltima da Sade e da vida como um todo (PELIZZOLI, 2003 e 2007).

    A histria da civilizao repleta de experincias em que a sensibilidade humana (tica) o motor para toda realizao social e at cientfica de sucesso, pois sucesso quer dizer realizao otimizada, satisfatria, e que responda s demandas da sociedade de forma efetiva e sustentvel, e no o aumento de demandas e drogas, equipamentos caros e procedimentos artificiais com alto custo, impacto ambiental, e com efeitos colaterais sistmicos e persistentes. Precisamos colocar os conceitos em seus devidos lugares.

    Os conceitos crticos de racionalidade dos procedimentos (LUHMANN, 1986), o de Razo Instrumental (ADORNO e HORKHEIMER, 1994) o de colo-nizao do Mundo da Vida (HABERMAS, 1987), bem como os de objetificao e cartesianismo (GADAMER, 1996; PELIZZOLI, 2007 e 2011) so muito teis para uma anlise crtica e no ingnua da relao cincia e sociedade, no foco da insti-tucionalidade permeada por obstculos nesta trplice dimenso: epistemolgico--poltico-tica. A racionalidade vigente deve ser criticada fortemente porque ela tem justificado violaes verdade, natureza, ao excludo, e ao bem comum devido aos interesses privados, corrupo, cartis e mfias presentes no capita-lismo e, portanto, no campo da Doena (Sade).

    Tal racionalidade no como pensamento crtico, lgico, argumentativo, mas como forma organizativa e determinante do sentido de todo fazer humano - sinnimo de uma grande Matrix em que se devem forosamente encaixar o logos, o ethos e a polis; trata-se de um sistema de incluso e excluso, aparentemente aberto, mas que na verdade se mantm como processo de fechamento e excluso constante. Geopoliticamente, isto pode ser traduzido no processo de globa-lizao econmica do Capital transnacional. Somente se entender a questo da Sade hoje remontando-se a certas regras do jogo a vigentes e, a partir da, buscar entender as relaes entre: subjetividade-identidade humana consumo, mdia e desejo relaes objetais e objetificadoras mercado, tecnocincia e corporaes destruio da sade natural e do meio ambiente equilibrado

  • 3535

    crise socioambiental resgate da tica, sabedoria, valores humanos, novos para-digmas, sade integrativa e natural, luta poltica e cidadania.

    O uso do trip epistemolgico proporciona com que nossas anlises no campo da sade no caiam em um reducionismo do tipo que condiciona unila-teralmente a abordagem dos problemas e das solues. Por exemplo: o campo hoje chamado de humanizao, e dentro dele a Biotica e a tica biomdica, tem pregado como ponto central a recuperao de uma relao mdico-paciente humanizada, baseada nos princpios bioticos bsicos como prega o princi-pialismo (BEAUCHAMP & CHILDRESS, 1994). Contudo, esta abordagem tem esquecido da discusso epistemolgica, que uma das causas fundantes de se tomar o corpo humano ou suas partes como objeto, e adotar um olhar carte-siano que no questiona o paradigma reducionista ligado s tecnologias inva-sivas, hospitalocntricas, medicalizantes e com grandes custos e grandes ganhos econmicos - para alguns (BARROS, 2004; PELIZZOLI, 2010 e 2011a).

    De outro lado, vemos uma tradio crtica, ou de esquerda, ou do neo--marxismo, que tem boas anlises das polticas de sade, das dimenses econ-micas, da necessidade do empoderamento do usurio como cidado e no como paciente passivo, etc., mas que no tem apresentado um conhecimento claro das alternativas a serem adotadas como complementares de sade ou mesmo subs-titutas ao modelo dominante, e que inclua as medicinas populares, tradicionais, naturalistas ou as chamadas alternativas. Por outro lado, alguns que se dizem praticantes de medicinas alternativas, como a acupuntura ou mesmo a homeo-patia suponhamos por vezes no tm uma viso integrativa da sade, a qual olha desde a alimentao at a dimenso emocional do sujeito, bem como as dimenses comunitrias, sanitrias e de relaes polticas da cidadania.

    Fala-se muito, hoje, em interdisciplinaridade. Num olhar inicial para o campo da pesquisa em sade veem-se avanos neste sentido, quando campos da cincia se unem de modo a resolverem uma questo, e nas dimenses tecnocien-tficas que se entrelaam e complexificam. Isto se d cada vez mais na produo de equipamentos de ltima gerao na rea mdica, bem como em medicamentos, diagnsticos, cirurgias. As interfaces entre informtica e gentica so um bom exemplo. Constituem passos considerveis no avano tecnolgico. No obstante, em termos de sade bsica, e quando o sujeito chega para uma interveno em sade, o que se tem so alguns poucos procedimentos multidisciplinares.

    No se chegou ainda a uma verdadeira prtica interdisciplinar, menos ainda transdisciplinar, e menos ainda a incluso de elementos meta-disciplinares quando o conhecimento buscado est fora das disciplinas institudas, como por exemplo o saber popular em sade, ou modelos no-metdicos, ou os energ-tico-intuitivos (MARTINS, 2003; FONTES, 1999). A predominncia do modelo disciplinar e especializador na sade, carreada pela medicina tecnolgica carte-

  • 3636

    siana pautada hoje na MEB, ainda no conseguiu abrir-se suficientemente para os novos paradigmas a ponto de considerar a medicina no apenas como uma cincia mecnico-fsico-qumica, mas complexa - social, histrica e humana, bem como ambiental.

    Um modelo epistemolgico-crtico como estamos propondo - na esteira de grandes cientistas sociais e epistemlogos aqui citados (Kuhn, Maturana, Varela, Heisenberg, Morin, Gadamer, Foucault), permite reflexes mais profundas sobre a (tecno)cincia em sade que se est adotando, para alm da superposio de disciplinas. Por exemplo, quando se diz que a medicina pautada no conheci-mento verdadeiro do corpo fisiolgico do sujeito, e a psicologia pautada no conhecimento da vida emocional ou psquica; ou que, complementar a abor-dagem biomdica incluir aspectos psquicos aos corpo-materiais, isto pode ser um falso trusmo. A biologia abordada no modelo cartesiano, mecanicista, em geral reducionista, pois foca em aspectos de medio qumico-fsicos, eltrico--fisiolgicos e metablicos fragmentrios, sob olhar analtico isolador da o fato de a abordagem aloptica e cirrgica ter se tornado muito limitada e com grau relevante de periculosidade.

    Igualmente, uma viso psquica que no contempla a complexidade biol-gica, pode ser redutora, pois acusa a causalidade das doenas de modo metafsico, apenas invisvel, prescindindo da base ambiental-biolgica interacional, que determinante em todo organismo (MATURANA & VARELA, 1995).

    atravs de uma reflexo epistemolgica profunda que vai episteme como raiz do conhecimento e da verdade como prtica social (FOUCAULT, 2004) que se deve analisar as conquistas e os obstculos dos modelos adotados nas Cincias da Sade, em primeiro lugar, certamente, o quanto as prticas em sade podem estar afastadas da atualizao em pesquisa no campo das cincias da sade, no apenas dentro da especialidade, mas atravs da sade bsica, cole-tiva, preventiva e integrativa.

    Medicina Baseada em Evidncia (MEB): possibilidades e limites

    A MEB (Medicina Baseada em Evidncia), como o nome diz, aposta na evidncia dentro de um modelo aprimorado de validao e reproduo da pesquisa. Contm um sistema intrincado e aparentemente bastante denso de conduo de pesquisa para que possa ser chamada de cientfica. Aposta em revises sistem-ticas de literatura j consagrada, e em certo conjunto de revistas, indexadores e stios tidos como autoridades e oficiais. Deste modo, busca compartilhar um grande sistema de pesquisas mundiais; ao mesmo tempo, tende a desvalorizar estudos que no entram nestes campos. Igualmente, v como baixa a evidncia

  • 3737

    de modelos narrativos de pesquisa, assim como considera o elemento qualitativo, subjetivo e de outros mtodos mais abertos como inferiores ou at produtores de erros e obstculos (vis) nos resultado esperados.

    Em geral, tal modelo dominante invalida o resultado quando a metodologia no condizente com os procedimentos do modelo. Ou seja, uma teraputica pode estar funcionando bem dentro de uma comunidade mas ser descartada por no preencher os quesitos formais exigidos (SACKETT, 2000).

    Muitos pesquisadores tm se dado conta de que a utilizao do modelo da MEB pode engessar as prticas em sade e a prtica mdica, elidir as formas que somente a interao de um histrico prprio de cada paciente, as condies ambientais, as peculiaridades da relao mdico-paciente podem dar, em cada momento. Da teoria para a prtica h um conjunto ineliminvel de obstculos. E h obstculos e pontos cegos produzidos pelo prprio mtodo.

    Systematic reviews can be misleading, unhelpful, or even harmful when data are inappropriately handled; meta-analyses can be misused when the difference between a patient seen in the clinic and those included in the meta-analysis is not considered. Furthermore, syste-matic reviews cannot answer all clinically relevant questions, and their conclusions may be difficult to incorporate into practice (YUAN & HUNT, 2009, p.1)

    Um bom exemplo so os protocolos de pesquisa com estudos duplo-cego randomizados, que ocultam ao paciente e ao mdico o que e como est sendo administrado. Se por um lado parece fornecer neutralidade e objetividade maior, tal modelo faz prescindir da relao mdico-paciente e do aspecto simblico e emocional da sade; portanto, faz perder parte importante no processo de cura, aspecto acentuado muito hoje pela dimenso psicossomtica (PELIZZOLI, 2010). Igualmente, se o medicamento ministrado for um nutracutico natural alimentos-remdios - ou hidroterapia, por exemplo, como escond-lo do paciente e do mdico ? Em todo caso, tal procedimento tem uma srie de condies deli-cadas e restritivas a considerar.

    Randomized trial information is also seldom available for issues in etiology, diagnosis, and prognosis, and for clinical decisions that depend on pathophysiologic changes, psychosocial factors and support, personal preferences of patients, and strategies for giving comfort and reassurance (FEINSTEIN & HORWITZ, 2000, p.1)

  • 3838

    Devemos perguntar sempre se a evidncia alcanvel e neutra por si, e completa; pois na (tecno)cincia atual ela se coloca dentro de paradigmas - enquanto padres impermeveis que tendem a se reproduzir e cooptar os inputs e outputs; so eleitos determinados mtodos em detrimento de outros; fazem-se recortes num todo complexo e de incerteza por princpio; ofuscam-se outras vali-daes que no a eleita. Uma evidncia, uma teoria e toda explicao sempre fruto de interpretaes de um grupo, mesmo que no se admita; so adotadas determinadas escolhas prvias que vo moldar a abordagem do objeto/resultado esperado; a pesquisa conduzida por um vis ou conjunto de intenes mesmo aquele que se pretender isento de vis e inteno j contm vis e inteno - as quais esto moldadas nas perguntas e crenas iniciais da pesquisa. Exemplo: pesquisas para tratar de doenas respiratrias feitas no modelo causal excludente (ou/ou), com testagem de dois medicamentos em procedimento duplo cego randomizado, e todos os cnones exigidos.

    No entanto, se na escolha inicial, os medicamentos esto dentro da mesma lgica aloptica (e ou da lgica de algumas corporaes que patrocinam a pesquisa), j temos um conjunto de limitantes e de intenes ou perguntas gera-doras restritivas. O modelo medicamento Y versus X tem sido limitado; a incluso de outras possibilidades seria: A- medicamento Y aloptico; B medicamento fitoterpico; C psicoterapia + medicamentos A e B; D- Desintoxicao natural + Corte de alimentos prejudiciais (como o leite e alergnicos em especial aqui) + B; E- Oraes + Fitoterpicos tradicionais + nutracuticos para o caso; F- Dieta vegetal crua + exerccios respiratrios de Yoga + terapia comunitria. G- seguem outras possibilidades e interaes.

    Fica claro que este procedimento mais abrangente do que ficar com a opo A ou mesmo com a A e B. Por que elas em geral no ocorrem? Pelos motivos pr--cientficos e polticos institucionais que j falamos. Epistemologicamente, tem-se uma dificuldade devido ao modelo disciplinar especializador para pesquisar de modo MIT (multi-inter-transdisciplinar), e mais ainda de modo meta-disciplinar incluindo saberes no-metdicos das tradies a exemplo das abordagens ener-gticas, simblicas e psquicas (MARTINS, 1996).

    Outro ponto a considerar : aquilo mesmo que busca manter a segurana e a eficcia, e evitar o chamado vis na pesquisa, e a apostar sobremaneira na reviso sistemtica em torno de um tipo de literatura padro pr-aceita, o mesmo fator que contm os limitantes que podem afastar o procedimento-validao da reali-dade da sade e, portanto, da doena (FRANA, 2005).

    Ento, nesta discusso preciso considerar tais possibilidades, que so os obstculos para se promover de fato a sade e a cura no sentido amplo e profundo: o mdico (ou outro cuidador) no est acompanhando as inovaes em medicina com a leitura de artigos importantes na sua rea e reas afins; o mdico reproduz

  • 3939

    apenas as orientaes de determinado modelo hospitalar de especializao e a financiadores de pesquisa privados; o mdico acompanha razoavelmente a MBE em sua rea, mas no est preparado para ser pesquisador ou entender a rea ampliadamente, dominando o modelo e suas nuances. O mdico tem capacidade de acompanhar o modelo razoavelmente, mas no tem capacidade de reflexo epistemolgica para ir alm dos limites do modelo; o mdico tem todas estas capacidades mas no as exerce pois no um promotor de sade e cura, mas um profissional em funo meramente cirrgica e aloptica; o mdico tem todas as condies mas a poltica de sade adotada no abre portas para as novas ou inte-grativas abordagens; o mdico e o contexto no esto interessados em primeiro lugar na cura e na preveno (na sade), mas em ganhar dinheiro. So muitas possibilidades negativas e obstculos. O campo da sade mostra-se portanto um campo complexo, com portas a serem abertas continuamente no mbito epistemolgico, poltico e tico. Acima de tudo, o campo da sade espao de luta contnua pela promoo da parte mais vulnervel desta trama: o usurio, o chamado paciente, ou, em termos atuais, o consumidor.

    Reflexes de base integrativa para o campo da Sade

    A sada para a sade que proporemos aqui, muito abertamente sugerida, a sade integrativa (no caso da medicina, a medicina integrativa), ou prticas integrativas acopladas a uma educao para a sade tanto popular e de massa quanto acadmica, com o instrumento investigativo do trip epistemolgico--crtico - o qual abre o olhar para as medicinas naturais, holsticas e energticas4. Ou seja, um bom agente da sade (mdico, enfermeira, gestores, professores, profissionais de sade em geral, pesquisadores na rea) aquele que promove a sade e no apenas o que combate aspectos da doena dentro do modelo biom-dico cartesiano centrado no mercado.

    Promover sade pesquisar a sade de base: sade popular, resgatar as tradies em sade, conhecer algo das medicinas histricas, estudar a cura pela alimentao viva e natural, integrar a dimenso afetiva e de valorizao do outro, apoiar e divulgar as prticas integrativas, integrar a medicina na vida das

    4 Cabe aqui citar os Princpios da medicina integrativa: 1-Estabelecimento de uma relao de parceria entre o paciente e o praticante no processo de cura. 2-Uso apropriado de mtodos convencionais e alternativos para facilitar a resposta inata de cura do corpo. 3-Considerao de todos os fatores que influenciam a sade, o bem-estar e a doena, incluindo a mente, o esprito e a comunidade, assim como o corpo. 4-Uma filosofia de trabalho que no rejeita a medicina convencional, nem aceita a medicina alternativa sem uma viso crtica. 5-Reconhecimento de que a prtica mdica apropriada deve ser baseada em boa cincia, dirigida e aberta a novos paradigmas. 6-Uso preferencial de intervenes naturais e pouco invasivas. 7-Conceito, mais amplo possvel, na promoo de sade, preveno e tratamento de doenas. 8-O praticante deve ser modelo de sade e cura, compromissado com o pro-cesso de auto-explorao e autodesenvolvimento (apud Gonzales, 2006).

  • 4040

    comunidades e incluir a dimenso das relaes polticas abertas aos proce-dimentos do modelo biomdico dominante quando necessrio. Ser cuidador ser um intrprete da condio vital-social-ambiental e emocional do sujeito em cada momento; significa ser um cuidador hermeneuta (NUNES & PELIZZOLI; in: PELIZZOLI, 2011a). No obstante, este promotor de sade vai se defrontar cedo ou tarde com os condicionamentos e poderes institudos do modelo domi-nante, pois est a favor (toma posio) da sade e no do mercado da doena. So coisas que devem ser distinguidas. A motivao determinante. Se a motivao de um pesquisador ou professor apenas cumprir sua pesquisa cooptada por uma Corporao e dentro do modelo j aceito institucionalmente e economi-camente, ele dificilmente se abrir para a dimenso da interdisciplinaridade e da integrao dos saberes, resgatando a promoo da sade e as formas natu-rais de cura. Igualmente, dificilmente vai se interessar pela dimenso comuni-tria, afetiva ou psicossomtica da sade. Promover a sade, com uma cincia com conscincia, aberta, lcida, cidad uma exigncia que vai muito alm de lidar com dimenses parciais e fragmentrias de abordagem do corpo humano fsico-qumico-mecnico.

    Sob a lgica da estrutura especializadora do campo mdico, compreende--se que so necessrios muitos especialistas, pois trata-se de um campo muito amplo e complexo e, quanto mais partes especializadas, melhor, e mais efetivo o resultado. Esta lgica plausvel, e ela que est em funcionamento, ao mesmo tempo que alavancada pelo avano tecnolgico crescente em cada subrea, ou mesmo a combinao de reas, como a bioqumica e a oncologia, por exemplo. Ao mesmo tempo, esta lgica tem uma complexidade entrpica, negativa, ao lado da positiva, quando, por exemplo, fragmenta demais e no consegue mais unir as partes suficientemente, e obter um entendimento bsico em termos de organismo e, portanto, de sistema e processo (HEISENBERG, 1996).

    No obstante, o fundo do problema continua sendo aquilo que orienta o fazer e o aplicar cincia em cada poca, a episteme vigente: a abordagem fsico--qumica (e aloptica) e cirrgica interventora no molde cartesiano como o grande condutor paradigmtico dos procedimentos. Se assim o , mesmo que haja conexo entre os saberes especializados (veja-se que s vezes o paciente tem que ir a vrios mdicos de reas diversas ou da mesma rea para entender melhor o seu distrbio ou disfuno), no se deslocar de uma lgica que apre-senta grandes limitaes (limitaes mais procedimentais do que causais, pois as causas muitas vezes esto no campo da complexidade indescritvel do todo, e dada ao contexto e aos ambientes de cada sujeito vivente).

    No obstante, este modelo chamado de avanado tecnologicamente, pois aprimora seus procedimentos, equipamentos, medicamentos e centros de pesquisa mdica - na ordem de custos imensos - e o mesmo que precisa sanar

  • 4141

    os obstculos aqui apontados que pem em xeque a sua segurana, viabilidade e eficcia. A famosa crise na sade, a avalanche de doenas degenerativas em pases ocidentais - EUA em especial - epidemias de cncer e doenas da civili-zao, os efeitos iatrognicos, o inchao de hospitais e clnicas, a dependncia a um modelo de sade cada vez mais caro, o efeito complexo entrpico das drogas receitadas, a poluio produzida tanto no ambiente quanto nos corpos, o aban-dono da sade das populaes pobres, faz com que o imaginrio da sade e da longevidade aumentada pela tecnocincia caia por terra5.

    A longevidade conquistada bem como muitas avaliaes epidemiolgicas positivas - citada muitas vezes com comparativos de anos de extrema carncia e de condies sanitrias deletrias. A longevidade urbana atual precisa passar por crivos reais esquecidos, que muitas vezes so afastados das estatsticas, tais como: tal longevidade longeva o suficiente, considerando as possibilidades da vida humana? Se muitas comunidades e pocas histricas sob certas condies chegavam naturalmente a um sculo de vida, porque considerar 70 ou 75 anos um bom ideal?6 Tal longevidade feita s custas de que em termos de sade? Ou seja, uma longevidade s ou de doenas crnicas, de estilo de vida doentio, depen-dncia de remdios, hospitais, exames contnuos, ou uma vida com autonomia de sade? Longevidade para quais camadas sociais da populao? Longevidade para viver uma vida com sentido ou uma vida meramente de consumidor, sobre-vivente, dependente, adicto?

    Neste contexto, mais do que o avano de medicamentos alopticos (como a penicilina, deveras importante), foi o avano de condies sanitrias que promo-veram mais sade; foi a oferta de alimentos naturais e de condies de conscincia e cultivo do corpo e do ambiente que trouxeram e trazem sade. A longevidade atual deve ser comparada em estudos com a longevidade das populaes de ambientes mais naturais e saudveis, onde a entrada de alimentos e produtos arti-ficiais e o estilo de vida urbano doentio quase no ocorreu (TENNER, 1996; YUM, 1987; ANDREANI, 2008). Muitas comunidades onde se observa uma longevi-dade alm da mdia possuem uma muito boa qualidade de vida e os fatores de sade antes citados, alm da vida social e afetiva mais tranquila, uma cultura mais saudvel e prxima terra e ao uso do corpo. As condies ambientais so deter-minantes, so na verdade a extenso do corpo, portanto so a sade no sentido largo. H uma ligao direta e imediata entre IDH sustentvel-saudvel e sade--doena pblica (GONZALES, in PELIZZOLI, 2011a; HELMAN, 2003).

    J para um habitante do Tibet, que tinha uma vida tranquila e espiritual, e ausncia de alimentos artificiais, chegar aos 70 anos uma beno, pois naquelas

    5 Cf. Pelizzoli, 2007, 2011; Tenner, 1997. Sobre isto vale muito a pena assistir ao filme Sicko: SOS sade.6 Sobre isto cf. Hayflick L. The future of ageing. Nature. 2000; 408(6809): 267-269. Estudos como este apontam para uma longevidade razovel pelo menos em 85 anos; e o alcance mximo 125 anos de vida.

  • 4242

    condies morrer aos 55 no anormal. Por qu? Basicamente, deve-se ao consumo de gorduras e cereal cozido, a falta de alimentos vegetais crus e de frutas (a refeio bsica gordura animal, carne, leite e alguns cereais, num ambiente frio e inspito). Isto significa que no basta ser natural no sentido geral, mas deve contemplar tambm o natural no sentido daquilo que vem in natura vege-tais crus, frutas, cereais e brotos, folhas, alm de gua pura, ar e condies corpo-rais e biticas adequadas e favorveis (GONZALES, 2006; ANDREANI, 2008; YUM, 1987). H outros fatores envolvidos na longevidade, como a hereditarie-dade e fatores genticos, os quais no cabem agora abordar.

    A amplitude e os conflitos no complexo campo que se chama de cincias da sade podem ser vistos, por um lado, na avalanche de medicamentos alopticos avanados, ao mesmo tempo que a comprovao de que as plantas e os nutracu-ticos tm poder de preveno e de cura de doenas; ou ainda, que o consumo de frutas e verduras, numa alimentao natural como indicada pela naturopatia, por exemplo acoplada a um estilo de vida bom com o cultivo do corpo, so no apenas um complemento da sade mas so a sua prpria manuteno e o combate s doenas; ou seja, so tanto base para evitar as doenas quanto tera-puticas para elas.

    As pesquisas, nos ltimos anos, neste sentido so inmeras, alm dos autores que trazemos aqui. Isto no deixa de revelar a riqueza de possibilidades das cincias sempre melhor falar no plural mas tambm as suas contradies, pois as alternativas de educao em sade e de curas preventivas e curas natu-rais tm sido relegadas a complementos no campo de investimento econmico que hoje domina o modelo biomdico. No obstante, note-se a diferena entre modelos de sade de pases como EUA, Itlia, Frana, ou Brasil, por exemplo; apesar de serem pases onde predomina o modelo biomdico pautado na MBE, os EUA apresentam ndices de doenas e sade extremamente mais deletrios que os europeus. A qualidade de vida Italiana urbana melhor que a norte-americana urbana, tanto quanto o consumo e o ambiente vital. Isto se reflete diretamente na sade e na boa longevidade (TENNER, 1997; LUZ, 1988). Uma das concluses a : sade no sinnimo de complexificao de equipamentos e processo crescente de medicalizao, e aumento de hospitais, mas ambiente e corpo saudveis (ALMA-ATA, 2001; SERVAN-SCHREIBER, 2004).

    Outro ponto a repensar que vrias crticas ao modelo biomdico e medi-calizador apontam que abordar sade no igual a abordar doena, como se o modelo citado tratasse bem de doenas, mas fosse falho no aspecto de promoo e condies de sade, alm de aspectos de cidadania e sade. A falha deve ser percebida mais profundamente, com a anlise epistemolgica acurada. Um modelo que enfatiza a doena como disfuno fsico-qumica e mecanicista, que apaga as abordagens no-metdicas e no-cartesianas, que abre mo dos

  • 4343

    modelos de abordagem tradicionais, sistmicos, integrativos, energticos, intui-tivos, psicolgicos, no pode ser considerado um modelo com sucesso cientfico no sentido contemporneo, pois est operando dentro de uma episteme moderna (no contempornea) com seus paradigmas em estado de tendncia ao fecha-mento. Portanto, a abordagem complexa e integrativa, que considera as tradies e os saberes locais, culturais e do prprio sujeito em seu lidar com o fenmeno doena-sade, faz-se necessria no apenas como complemento, mas como base para lidar com a doena (PELIZZOLI, 2011a; CAPRARA, 2003; SERVAN-SCHREIBER, 2008; FONTES, 1999).

    Se no podemos dizer que h uma cincia apenas, muito menos podemos dizer que h uma cincia mdica como tal; um objeto que extrapola a idia de unidade, e que extrapola a idia de um corpo cerrado e exato de procedi-mentos, mesmo que se busque esta unidade, com o modelo metodolgico da BEM, por exemplo, isto , feito s custas de uma diversidade de teraputicas e contextos possveis, modos paralelos de validao do conhecimento, contextos culturais de sade, e um grande ocultamento do ambiente natural. O mdico e pesquisador ingls Vernon Coleman chega a afirmar provocativamente que a medicina moderna no uma cincia, ttulo de um de seus textos famosos (apud PELIZZOLI, 2011a). E ele tem suas razes; na prtica, preciso reconhecer fracassos constantes do modelo (doenas iatrognicas, erro mdico, intervenes excessivas e caras, formas invasivas e pouco naturais de interveno, medicalizao, viso reducionista da doena; ignorar as causas e etiologias de doenas, intoxicaes da sade do doente com medicamentos, etc.). Os fracassos podem ser explicados por falta de uma acurcia acadmica e cientfica, e tambm por falta de um fazer cincia verdadeiro, ampliado e tico ou, ainda, pela aposta excessiva na abor-dagem fsico-qumica objetificadora e na interveno tecnolgica baseada numa medicina aloptica e hospitalocntrica sob olhar reducionista-cartesiano do que seja doena - ao mesmo tempo que de grande impacto e risco para a sade (PELIZZOLI, 2007, 2010 e 2011a; BOTSARIS, 2001).

    evidente que os rumos que a medicina atual tem tomado so o da tecno-cincia acoplada s expanses de mercado, portanto, uma perspectiva extrema-mente utilitarista dentro do modus de produo capitalista (MARTINS, 1996). reas como a doena e a alimentao so vistas no contexto poltico atual como fatias imensas e disputadas de mercado e enriquecimento. A lgica a mesma do aumento das taxas de PIB, quando se prega o crescimento da produo e do consumo em escalas crescentes, com a abertura de novos mercados e suas possi-bilidades de explorao econmica. Na lgica do PIB j o denunciavam autores da dcada de 60, como o grande economista Georgescu-Roegen, ou no Brasil com P. Singer, A. Brum, J. Lutzemberger (com seu famoso Manifesto Ecolgico Brasileiro, de 1974) toda atividade econmica contabilizvel positivamente,

  • 4444

    tal como gastos com despoluio de rios, desmatamentos, acidentes, uso de pesticidas, uso de produtos qumicos de