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www.brasildefato.com.br Uma visão popular do Brasil e do mundo Circulação Nacional R$ 2,80 São Paulo, de 20 a 26 de janeiro de 2011 Ano 9 • Número 412 Guilherme C. Delgado Alimentos e inflação A conjuntura econômica revela pressão inflacionária oriunda dos mercados agrícolas – ênfase nas carnes, cereais, grãos e açúcar, setores em relação aos quais o Brasil ocupa posição de protagonista no comércio internacional. Pág. 8 João Brant Agruras da banda larga O Brasil é um dos países em que o serviço de internet em banda larga é mais caro, tanto em valores absolutos como, se considerado, o poder aquisitivo da população. E a velocidade ofertada é mentirosa. Pág. 3 Causas e efeitos da tragédia Págs. 2, 7 e 8 Para onde vai Cuba? Os cubanos veem em seu horizonte as maiores mudanças desde a Revolução de 1959. O VI Congresso do Partido Comunista, que será realizado em abril, deve oficializar concessões ao livre mercado e reduzir o Estado. Mas especialistas afirmam que o socialismo continua na ilha. Págs. 10 e 11 Conjuntura O mercado avança suas fronteiras Pág. 4 Gestão pública Privatização ameaça a saúde Pág. 5 ISSN 1978-5134 Leandro Konder Peixinhos Trinta anos atrás, o poeta Ferreira Gullar me contou uma historinha que jamais esqueci. O protagonista era um comerciante português que resolveu comprar uns peixinhos coloridos que viu em Lisboa. Pág. 3 Tatiana Merlino Reprodução Causas e efeitos da tragédia Págs. 2, 7 e 8

Edição 412 - de 20 a 26 de janeiro de 2011

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Uma visão popular do Brasil e do mundo

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www.brasildefato.com.br

Uma visão popular do Brasil e do mundoCirculação Nacional R$ 2,80

São Paulo, de 20 a 26 de janeiro de 2011Ano 9 • Número 412

Guilherme C. Delgado

Alimentos e infl açãoA conjuntura econômica revela pressão

inflacionária oriunda dos mercados agrícolas – ênfase nas carnes, cereais, grãos e açúcar, setores em relação aos quais o Brasil ocupa posição de protagonista no comércio internacional. Pág. 8

João Brant

Agruras da banda largaO Brasil é um dos países em que o

serviço de internet em banda larga é mais caro, tanto em valores absolutos como, se considerado, o poder aquisitivo da população. E a velocidade ofertada é mentirosa. Pág. 3

Causas e efeitos da tragédia Págs. 2, 7 e 8

Para onde vai Cuba?Os cubanos veem em seu horizonte as maiores mudanças desde a Revolução de 1959. O VI Congresso do Partido Comunista, que será realizado em abril, deve oficializar concessões ao livre mercado e reduzir o Estado. Mas especialistas afirmam que o socialismo continua na ilha. Págs. 10 e 11

Conjuntura

O mercado avança suas fronteiras Pág. 4

Gestão pública

Privatização ameaça a saúdePág. 5

ISSN 1978-5134

Leandro Konder

Peixinhos Trinta anos atrás, o poeta Ferreira

Gullar me contou uma historinha que jamais esqueci. O protagonista era um comerciante português que resolveu comprar uns peixinhos coloridos que viu em Lisboa. Pág. 3

Tatiana Merlino

Reprodução

Causas e efeitos da tragédia Págs. 2, 7 e 8

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As causas de tantos desastres ambientais

EM SEU DISCURSO no Congres-so, a presidenta Dilma acentuou seu compromisso de que o Bra-sil é e será campeão mundial de energia limpa e um país que sem-pre saberá crescer de forma sau-dável e equilibrada. Continuará desenvolvendo as fontes renová-veis de energia, a exemplo do eta-nol, fontes hídricas, biomassa, eó-lica e solar.

E não esqueceu de acentuar que o Brasil continuará também priorizando a preservação das re-servas naturais e de suas imen-sas fl orestas, atuando nos fó-runs multilaterais para defender o equilíbrio ambiental do plane-ta, não condicionando tais ações ao sucesso e ao cumprimento, por terceiros, de acordos internacio-nais.

É evidente que a presidenta não podia se alongar nos problemas que o Brasil enfrenta na área am-biental, apesar das vantagens que apresenta nesse terreno. Proble-mas que estão relacionados, em enorme proporção, a uma urbani-zação descontrolada, em virtude da pobreza e da miséria ainda predo-minantes e, também, de uma espe-culação imobiliária totalmente ir-racional, diante das quais muitos poderes públicos estaduais e mu-nicipais são coniventes ou inope-rantes.

Se fi zermos um levantamento histórico do processo de ocupação do solo no Brasil, tanto nas áre-as rurais, quanto nas zonas urba-nas, não é difícil notar a acumula-ção de fatores anunciantes de tra-gédias. Por um lado, os pobres, na busca de espaços para morar, são obrigados a encarapitar-se, com suas moradias precárias, em áre-as de alto risco. Por outro lado, as camadas médias e os ricos, mui-tas vezes, associam-se aos especu-ladores imobiliários, que impõem a eles e aos governos construções e mais construções, sem espa-ços urbanos permeáveis e verdes,

compensáveis por construções de vista linda e clima agradável tam-bém em espaços de risco.

Se aliarmos a este processo o atraso, também histórico, na cons-trução de sistemas municipais e es-taduais de monitoramento e en-frentamento de calamidades na-turais, apesar de todas as teorias existentes sobre os efeitos das mu-danças climáticas, teremos um quadro geral de irresponsabilida-de histórica e tragédias previsíveis, cujos sinais já vêm-se multiplican-do pelo menos há mais de 20 anos atrás.

As quedas de encostas e as en-chentes, arrastando pessoas, ca-sas e outros bens, na região serrana do Rio de Janeiro, em Minas, São Paulo e outros estados e cidades brasileiras neste verão, são apenas o prelúdio trágico do que nos espe-ra se as mudanças climáticas se in-centivarem, como preveem muitos cientistas, e se as medidas correti-vas forem apenas tópicas, como ter equipamentos para monitoramen-to mais preciso dos fenômenos cli-máticos e locais para a reunião de pessoas em situação de risco.

Se o Brasil quiser realmente cres-cer de forma saudável e equilibra-

da, priorizar a preservação das re-servas naturais e de suas imensas fl orestas, defender o equilíbrio am-biental, como sugere a presidenta, será necessário que o governo en-frente com novo rigor a questão do uso do solo urbano e rural, colo-cando em sua pauta tanto a revisão mais profunda do código fl orestal como a necessidade de avançar na consecução de reformas urbanas, tanto em relação ao uso do solo co-mo nos modelos de edifi cação.

Além de não permitir mais a der-rubada de fl orestas sem compen-sações ambientais seguras, não é mais possível que se permita a der-rubada de matas ciliares, nem a existência de milhares de hecta-res sem faixas fl orestais contínu-as. Também não é mais admissível deixar que praças ou espaços fl o-restados urbanos sejam substitu-ídos por construções; e que novas construções estejam agarradas às demais, sem espaços de ventilação e sem áreas verdes. Nem que sejam autorizadas construções em encos-tas que apresentem geologia inse-gura.

Já que teremos pela frente even-tos como a Copa do Mundo e as Olimpíadas, talvez tenha chegado o momento de reformar algumas ci-dades com um novo conceito de ur-banização, em que o uso do solo se-ja regulamentado, o verde passe a ter papel predominante e os pré-dios sejam poupadores de energia e pouco poluentes. Os exemplos e as técnicas já existem, tanto no ex-terior como no próprio Brasil.

Assim, já que as mudanças cli-máticas difi cilmente podem ser controladas pelos seres humanos, mesmo que a emissão de gases de efeito estufa seja reduzida, podem-se prevenir as tragédias humanas, abandonando a irresponsabilidade histórica e preparando-se melhor para as calamidades naturais.

Wladimir Pomar é escritor e analista político.

opinião Wladimir Pomar

Tragédia e irresponsabilidade

crônica Silvio Tendler

SOFREMOS MAIS uma tragédia. Mais de 600 pessoas perderam a vi-da nos municípios serranos do Rio de Janeiro. Outras dezenas pagaram com a vida em São Paulo, Minas Ge-rais...

A televisão e os meios de comuni-cação da burguesia estão cumprin-do seu papel: transformaram a des-graça alheia num espetáculo diutur-no, em que se assiste a tudo, menos o mais importante, que é debater so-bre o por que está acontecendo tu-do isso.

Para a televisão não interessa de-bater as causas. Seu objetivo não é resolver os problemas sociais, é ape-nas aumentar a audiência. E aumen-tando a audiência, sobem os pontos para as tarifas da publicidade que cobram das empresas.

Para a classe dominante, a bur-guesia brasileira e seus representan-tes no Estado brasileiro, tampou-co interessa debater quais as causas destes desastres ambientais. Eles sa-bem que um debate mais refl exivo, sério e profundo certamente chega-ria até eles como os principais res-ponsáveis e causadores dessas tra-gédias.

Assim, a população brasileira vai vivendo de espetáculo em espetá-culo, como uma verdadeira novela. Ou melhor, de tragédia em tragédia. Mas novela é fi cção, representação, teatro. E o que está acontecendo não

é teatro. Na vida real, milhares de famílias perdem suas casas e tudo o que construíram. Centenas perdem seus entes queridos. Mas quem se importa com isso? As elites dizem: “o povo logo esquece as desgraças...” e a vida se normaliza.

Quem ainda se lembra de quantos morreram na região sul do estado do Rio no ano passado? Quantos se lembram das 13 cidades pobres do sul de Pernambuco e norte de Ala-goas que foram soterradas no ano passado? Quantos ainda se lembram que ainda há centenas de desabri-gados, na região de Blumenau (SC), dos desastres de dois anos?

Felizmente têm aparecido análises sérias, de estudiosos e especialistas ambientais, que nos levam a enten-der e a explicar onde estão as verda-deiras causas desses “desastres na-turais”, provocados pela ação huma-na e que têm-se repetido sistema-ticamente no território brasileiro. Destas avaliações, podemos enume-rar as principais:

1. Houve uma agressão perma-nente no Bioma da Amazônia e do Cerrado, destruindo a vegetação na-tiva e introduzindo a monocultura e a pecuária. Isso alterou o regime de chuvas e criou uma verdadeira es-trada que traz chuvas torrenciais do Norte para o Sudeste.

2. Houve uma agressão ao não se respeitar o meio ambiente ao redor

das cidades, e não há mais áreas de proteção nos cumes das montanhas, nas encostas e margens dos rios. De maneira que, quando aumentam as chuvas, elas se projetam diretamen-te sobre as moradias e a infraestru-tura social existente.

3. Houve uma impermeabiliza-ção das cidades, em função do auto-móvel, para ele andar mais rápido. Tudo é asfaltado. E quando chove, a velocidade das águas aumenta de forma abrupta, em tempo e volume.

4. Há uma especulação imobi-liária permanente, que quer ape-nas lucro, empurrando os pobres para ladeiras, encostas, margens de rios, córregos e manguezais.

5. O modelo de produção agrí-cola do agronegócio introduziu o monocultivo extensivo, sobretu-do com pasto, cana e soja, que de-sequilibraram o meio ambiente. Destruindo toda a biodiversida-de vegetal e animal. Este desequi-líbrio provoca alteração no regime de chuvas, na sua intensidade e concentração em determinadas re-giões. Ou seja, chuvas torrenciais, concentradas em volume e em de-terminados dias. Isso é provocado pelo tipo de agricultura, que de-vastou o equilíbrio que havia na biodiversidade natural. Daí que a agricultura familiar, que pratica agroecologia e agrofl oresta é fun-damental para o equilíbrio do re-gime de chuvas, de clima e tempe-raturas em todo o território nacio-nal, inclusive nas cidades.

6. As cidades brasileiras estão se organizando apenas em função do transporte individual, do auto-móvel, que apenas dá lucro para meia dúzias de transnacionais ins-taladas no país. Então se investem volumosos recursos em obras de vias públicas, fazem-se pontes, tú-neis, viadutos, soterram-se córre-gos etc. Tudo isso altera o equilí-

brio que havia nos territórios hoje urbanizados.

7. A população urbana perdeu o hábito de ter jardins, hortas fami-liares e defender mais áreas ver-des nas cidades, que ainda pode-riam amenizar o volume das chu-vas e o equilíbrio das temperatu-ras. Elas também são induzidas a impermeabilizar os arredores de suas casas.

8. Nenhum governante ou agên-cia estatal se preocupa com medi-das preventivas, que pudem avisar e deslocar as populações para luga-res seguros, como se faz na maioria dos países. Basta lembrar que, há dois anos, Cuba sofreu um ciclone de proporções imagináveis, que ar-rasou o território. Mas eles tiveram apenas três mortos em todo país. Porque, antes, deslocaram milhões de pessoas para abrigos, e o Estado os deu proteção.

O fato é que tudo isto faz parte de um modelo capitalista de organi-zar a vida social apenas para o lucro, que representa o desastre, a desgra-ça e o alto custo de vidas humanas cada vez maior. Portanto, enquan-to a sociedade e os governantes não se conscientizarem, assumirem suas responsabilidades e tomarem medi-das concretas para enfrentar as ver-dadeiras causas, teremos, infeliz-mente, a repetição periódica de tra-gédias ambientais e sociais.

de 20 a 26 de janeiro de 20112editorial

Valter Campanato/ABr

Cine Belas Artes: luta ou saudades do futuro

Em “A cidade invisível”, Ítalo Calvino descreve a memória das cidades e a importância da paisagem urbana (re)conhecida por seus habitantes. As ruas, becos e postes familiares — e como

objetos de memória integrados à vida das sociedades locais.

UMA CONCEPÇÃO e uma vivência bem distintas. Na minha cidade, o Rio de Janeiro, assisti ao massacre de minha memória de cinéfi lo. A noção de progresso, submetida à força do capital, sempre fala mais alto e o valor de um prédio mede-se mais pela taxa dos impostos urbanos do que pelas lem-branças que traz do seu uso.

Meus cinemas de infância e juventude em Copacabana — Metro, Art-Palácio, Copacabana, Caruso — viraram loja de departamentos, sapata-ria, academia de ginástica e banco, respectivamente. O Alvorada sumiu na poeira da cidade. Outros usos tiveram o Ricamar, que se transformou em centro cultural da prefeitura, e o Riviera, que virou boate gay.

O Rian, vítima de um incêndio suspeito, tornou-se um mega hotel. Do cinema, fi cou a imagem do público dançando rock durante as sessões em que era projetado “Balanço das horas”. Os jovens da “geração da Lambre-ta”, da “Juventude Transviada”, iam terminar a festa nas areias de Copaca-bana embalados pela música de Bill Halley e seus cometas. As gatinhas dos anos ‘50 hoje passeiam com seus netinhos pela praia e não se reconhecem no portentoso hotel. Apenas a lembrança de uma juventude bem vivida.

Das minhas memórias de cineasta, as perdas mais dolorosas foram o Caruso, no Rio de Janeiro, onde lancei Os anos JK e batemos em bilhete-ria Mulher nota dez (com a Bo Derek).

E agora me entristece a notícia que o cine Belas Artes, em São Paulo, vai virar “outra coisa”. Os herdeiros do falecido dono do prédio querem retomá-lo.

Lembro-me daqueles dias também ali, das fi las virando curva na esqui-na, do público aplaudindo de pé, primeiro Os anos JK, em seguida Jango, fi lmes que contavam a saga da luta por democracia. Havia uma cumpli-cidade entre cinema e história, espectadores e cidadãos. Era tudo a mes-ma coisa.

Os amigos telefonavam de São Paulo — não havia internet, nem cor-reios eletrônicos ou e-mails — e contavam emocionados as notícias dos fi lmes aplaudidos de pé no fi nal da sessão. De um tal político que foi as-sistir, se reconheceu na tela e saiu emocionado, ou de tal outro que saiu indignado com a “parcialidade” da obra. A última sessão que participei como cineasta foi ano passado, em 2010, com Utopia e barbárie, promo-vida por defensores públicos.

Signifi cativamente, o fi lme é a minha tentativa de contar um pouco a história das nossas lutas históricas.

O Cine Belas Artes parece que vai acabar, os jornais trazem notícias que sugerem um fato consumado. Dão conta da indiferença do prefeito e dos cidadãos diante do ocaso de um dos últimos cinemas de rua (que faz do espetáculo algo bem diferente do “cinema de shopping”).

Entretanto, como um bom e teimoso sonhador, desses que, com Thia-go de Mello, pretendem ainda e sempre cavalgar os sonhos, insisto em me perguntar:

– Devemos assistir, nostálgicos, à destruição do sonho futuro de um mundo mais humano para a cidade e para as nossas vidas? Não cabe aí um pensamento de resistência?

Numa ação que, plenamente possível, repousa nas organizações sociais de uma cidade que fermenta e transpira, por mais frios que sejam os gesto-res públicos, no calor de suas vespertinas ou notívagas agitações culturais?

Na possibilidade de uma ação que movimentaria a vida cultural daquela que já foi mais que jocosamente a paulicéia desvairada?

Podemos acreditar?

Silvio Tendler é cineasta, diretor de Os anos JK, Jango e Utopia & barbárie, entre outros documentários.

Colaborou Luiz Carlos Antero. (Portal Vermelho)

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Cristiano Navarro, Igor Ojeda, Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Daniel Cassol, Eduardo Sales de Lima, Leandro Uchoas, Mayrá Lima, Patricia Benvenuti, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, Vinicius Mansur • Assistente de Redação: Michelle Amaral • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio

Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte – Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Edilson Dias Moura• Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos– CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – [email protected] • Gráfi ca: FolhaGráfi ca • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Anselmo E. Ruoso Jr., Aurelio Fernandes, Delci MariaFranzen, Dora Martins, Frederico Santana Rick, José Antônio Moroni, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, Ivan Pinheiro, Ivo Lesbaupin, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Nalu Faria,Neuri Rosseto, Otávio Gadiani Ferrarini, Pedro Ivo Batista, René Vicente dos Santos, Ricardo Gebrim, Sávio Bones, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou [email protected] • Para anunciar: (11) 2131-0800

A televisão e os meios de comunicação da burguesia estão cumprindo seu papel: transformaram a desgraça alheia num espetáculo

Não cabe aí um pensamento de resistência?

Já que as mudanças climáticas difi cilmente podem ser controladas pelos seres humanos, podem-se prevenir as tragédias humanas

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de 20 a 26 de janeiro de 2011

Para enfrentar este quadro, o governo desenhou um Pla-no Nacional de Banda Larga. A principal ação prevista é a reativação da Telebrás, que passa a coordenar o uso das redes de fi bra ótica de várias empresas da administração indireta (Eletronorte, Chesf, Petrobras etc.). Ela vai ofer-tar capacidade de tráfego de longa distância para provedo-res locais. A expectativa é que essa ação gere competição e abra espaço para milhares de pequenos provedores pres-tarem o serviço diretamente.

Mas e naquelas cidades em que não há provedores in-teressados ou não há oferta adequada? A Telebrás diz que nestes casos, e só nesses, vai oferecer o serviço diretamen-te ao cidadão. Não deveria ser assim. Onde o custo de im-plementação é mais baixo e há mais usuários dispostos a pagar, a Telebrás não entra. Onde vai ter de investir mi-lhões para se instalar e há um mercado pouco lucrativo, ela entra para cobrir as “falhas de mercado”. É uma concessão injustifi cável. Banda larga deve ser um serviço público uni-versal, barato e de qualidade para garantir o direito funda-mental dos cidadãos à comunicação.

Agruras da banda largaTODOS SABEM QUE a internet banda larga no Brasil é cara, lenta e para poucos. Apenas 27% das residências estão conectadas à banda larga, isso considerando co-mo “largas” conexões a partir de 256 kbps. O Brasil é um dos países em que o serviço é mais caro, tanto em termos de valores absolutos como, se considerado, em termos de poder aquisitivo da população. E a velocidade oferta-da é mentirosa, como denunciam as próprias letras mi-údas do contrato – as empresas só garantem 10% da ve-locidade contratada.

Se pensarmos que a internet viabiliza o acesso a diversos serviços, amplia o acesso ao mercado de trabalho e fortale-ce a diversidade informativa e cultural, o problema é gra-ve. Concorrência quase não existe; na maioria dos casos, o serviço é prestado só pela operadora de telefonia fi xa. Na longa distância, o quadro é ainda pior. Algumas prefei-turas tentam oferecer serviço gratuito para a população, mas se veem frente ao controle da rede de longa distância por operadoras privadas monopolistas, que cobram quan-to querem.

Eduardo Anizelli/Folhapress

instantâneo

João Brant

23 anos por um ditador corrupto, odiado pelo seu povo. Como é que ninguém sabia disso?

A mídia silenciou sobre o despotismo na Tunísia por-que se tratava de um regime servil aos interesses políti-cos e econômicos dos EUA. O ditador Ben Ali nunca foi repreendido por violações aos direitos humanos e, mes-mo quando ordenou que suas forças repressivas abris-sem fogo contra manifestantes desarmados, matando dezenas de jovens, o presidente estadunidense Barack Obama e sua secretária de Estado, Hillary Clinton, per-maneceram em silêncio. Não abriram a boca nem mesmo para tentar conter o massacre. Só se manifestaram de-pois que Ben Ali fugiu do país, como um rato, carregando na bagagem mais de uma tonelada de ouro.

O caso da Tunísia não é o único na região. No vizi-nho Egito, outro regime vassalo dos EUA, Hosni Mu-barak governa ditatorialmente desde 1981. Suas prisões estão lotadas de opositores políticos e as eleições ocor-rem em meio à fraude e à violência, o que garante ao governo quase todas as cadeiras parlamentares. Mas o que importa, para o “Ocidente”, é o apoio da ditadura egípcia às posições estadunidenses no Oriente Médio, em especial sua conivência com o expansionismo israe-lense. Por isso, a ausência de democracia em países co-mo a Tunísia e o Egito nunca recebe a atenção da mídia convencional, ao contrário da condenação sistemática de regimes autoritários não-alinhados com os EUA, co-mo o Irã e o Zimbábue. É sempre assim: dois pesos, du-as medidas.

A Tunísia era uma ditadura! QUANDO EU INGRESSEI como redator na editoria de assuntos internacionais da Folha de S.Paulo, um colega veterano me ensinou como se fazia para defi nir quais, en-tre as centenas de notícias que recebíamos diariamente, seriam merecedoras de destaque no jornal do dia seguin-te. “É só olhar os telegramas das agências e ver o que elas acham mais importante”, sentenciou. Pragmático, ele adotava esse método como um meio seguro de evitar que o noticiário da Folha destoasse dos jornais concorrentes, os quais, por sua vez, se comportavam do mesmo modo. Na realidade, portanto, quem pautava a cobertura inter-nacional da imprensa brasileira era um restrito grupo de três agência noticiosas – Reuters, Associated Press e Uni-ted Press International, todas afi nadíssimas com as prio-ridades geopolíticas dos Estados Unidos.

Passadas mais de duas décadas, a cobertura interna-cional da mídia brasileira ainda se orienta por diretrizes estrangeiras. A única diferença é que agora as agências enfrentam a competição de outros fornecedores de infor-mação, como a CNN e os serviços de empresas como a BBC e o New York Times, oferecidos pela internet. Mas o conteúdo é o mesmo.

Quem confi a nessa agenda está condenado a uma vi-são parcial e distorcida, uma ignorância que só se reve-la quando ocorrem “surpresas” como a rebelião popular que derrubou o governo da Tunísia. De repente, o mun-do tomou conhecimento de que a Tunísia – um país to-talmente integrado à ordem neoliberal e um dos desti-nos favoritos dos turistas europeus – era governada há

Igor Fuser

REPRESSÃO – A PM de São Paulo reprime manifestantes que protestavam contra o reajuste das passagens dos ônibus municipais autorizado pelo prefeito Gilberto Kassab (DEM)

comentários do leitor

Direita nos EUAEm uma analogia com os partidos polí-

ticos do Brasil da ditadura militar, os EUA têm os partidos do “sim” e do “sim, se-nhor”. Entendendo como “senhor” os inte-resses que de fato governam os EUA. A vi-tória do “sim” (Obama) signifi ca mais um período de dissimulações, discursos mes-siânicos, apelos pelo carisma e, de fato, as mesmas políticas do turma do “sim, se-nhor”. A vitória do “sim, senhor” (Palin) coloca de forma escancarada o que são os EUA e, assim sendo, contribuem pa-ra uma maior conscientização das pesso-as ao redor do mundo. Foi com a selvage-ria de Bush, e não com a simpatia de Clin-ton (que cometeu tantas atrocidades quan-to Bush), que os protestos e propostas de distanciamento ao EUA se intensifi caram.

Ricardo Oliveira, por correio eletrônico

Transporte em SPSem contar que nosso ilustre prefeito

não anda nem de carro no nosso trânsito também maravilhoso! Tem um pequeno helicóptero à disposição, conforme maté-ria da própria Veja! Orgulho de ser brasi-leiro e mostrar ao resto do mundo que po-demos pagar os mais altos impostos e tri-butos e ainda sorrir! Sem dúvida o Brasil é o país mais rico do mundo! (Ou pelo me-nos deveria ser, né?)

Tiago Oliveira, por correio eletrônico

ChuvasAs notícias parecem repetirem-se, e

ano a ano trazem a certeza de que deve-mos mudar rapidamente as condições pelas quais são encaminhadas para pe-riferia as populações de baixa renda, de migrantes de todo Brasil e dos trabalha-

dores rurais, não aproveitados no campo, vítimas de uma rápida e feroz moderniza-ção. Não podemos deixar mais que o lais-sez-faire ou a doutrina do cada um por si prevaleça e dê o tom ao acesso à mo-radia, educação, saúde e segurança, sem-pre sem conforto e com grandes riscos em precárias moradias da periferia. Tra-gédias no Rio de Janeiro (2011), em São Paulo (2010), Florianópolis (2008) e ou-tras tantas pelo Brasil, mostram que de-vemos cuidar preventivamente do uso do solo e cuidar de aplicar regras que limi-tem a instalação de novos moradores em locais críticos dos centros urbanos.

Marcio Automare, por correio eletrônico

Cartas devem ser enviadas para o endereço da redação ou através do correio eletrônico [email protected]

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TRINTA ANOS ATRÁS, o poeta Ferreira Gullar mecontou uma historinha que jamais esqueci. O prota-gonista do relato era um comerciante português quehavia enriquecido no Brasil. De repente, não se sabepor que, o homem resolveu comprar uns peixinhoscoloridos que viu em Lisboa.

Trouxe-os para o Rio. Porém as condições da via-gem, naquela época, eram precárias. Instaladosnum grande recipiente de vidro, os peixes não su-portaram a longa viagem e morreram todos.

Sem admitir sua derrota, o português tomou pro-vidências que deveriam garantir sua importação:alugou um navio e contratou uma equipe de espe-cialistas para assegurar a sobrevida dos peixes. Du-rante a viagem, contudo, os peixinhos morreram.

O português, então, tornou a alugar a piscina donavio, onde colocou os peixinhos e acrescentou àsua carga um vigoroso tubarão. Em seguida, reini-ciou a viagem que deveria durar vários dias. Termi-nou no Rio de Janeiro. O comerciante luso verifi -cou que metade dos peixinhos tinha sido comida pe-lo tubarão. A outra metade, entretanto, defrontadacom a morte iminente, sobreviveu.

Outra historinha que eu gostaria de contar aqui éa do escritor Franz Kafka e que também fala de ani-mais. Kafka coloca como narrador da história umcavalo que participou de uma batalha entre sereshumanos e comenta a guerra de que participou.

Ele constata que teria muito a perder se fos-se o vencedor, pois estaria sendo olhado com in-veja mesquinha por parte dos demais participan-tes. Os animais e seus jóqueis corriam risco de vi-da e, quando se via o resultado, eles lamentavam fa-zer tanto esforço por uma experiência humanamen-te tão pobre.

Após a vitória, o exército ocupou o bosque e a pe-quena fortaleza em que o campeão (o coronel inimi-go) se instalara. Com sinceridade, o cavalo achavaestranhas aquelas criaturas que brigavam e corriamrisco de morte para mudar a situação de modo quetudo permanecesse como estava. Ao ver o coman-dante vitorioso instalado no calabouço (por moti-vo de segurança), o cavalo perdedor achava mui-ta graça.

Ler é uma aventura mais rica do que parece. Cadaleitor, ao interpretar o que está lendo, por mais pru-dente que seja, promove uma adequação de aspec-tos do texto lido ao panorama em que se encontra noplano do pensamento e da ação. A sensibilidade doautor busca sempre a percepção do bom leitor.

Cada um de vocês faça a experiência. Sem rituaisou fanatismos, vocês verão que os dois contos aco-lhidos neste jornal dão conta de que uma imagem,uma síntese pode mudar no leitor algo da sua ma-neira de ver o mundo.

As lições que o século 20 nos deu tiveram momen-tos brilhantes, mas os autores cometeram erros gra-ves. A literatura é uma expressão criada por artistasmuito diferentes uns dos outros, porém todos legí-timos. Façam a propaganda que quiserem, os escri-tores de talento não se reduzirão a meros agitadoresordinários. E também – pressupondo o talento, os“dinossauros” da direita devem ser reconhecidos (edevidamente criticados) na política cultural.

Os contos de Kafka e Ferreira Gullar são ilustra-ções magnífi cas da possibilidade de que um escritortalentoso, com motivação literária peculiar, é capazde ir mais fundo do que um conservador na compre-ensão dessas criaturas que nós chamamos o gêne-ro humano.

Nós, da esquerda, somos desafi ados cotidiana-mente por adversários cuja escassez de escrúpulosprecisamos combater. Enfrentamos situações maisdolorosas e menos asseadas do que as da direita. Énormal que tenhamos cometido erros, mas temosconsciência de que, em comparação com o conser-vadorismo, teremos agido menos como delinquen-tes do que as fi guras cheias de empáfi a que nos atro-pelam.

Não é preciso o papel em branco, chamando os lei-tores e provocando a polêmica com os conservado-res. Os dois contos que deram início a esta refl exãofeita a partir de Ferreira Gullar e Franz Kafka de-monstram que o ponto de partida de uma obra lite-rária não existe na forma de uma semente, que bro-tará de qualquer maneira; como tudo na realidadehumana, a literatura depende também de trabalho.

Leandro Konder escreve semanalmente neste espaço.

Leandro Konder

Peixinhos

Façam a propaganda que quiserem, os escritores de talento não se reduzirão a meros agitadores ordinários

Nós, da esquerda, somos desafi ados cotidianamente por adversários cuja escassez de escrúpulos precisamos combater

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brasilde 20 a 26 de janeiro de 20114

Leandro Uchoasdo Rio de Janeiro (RJ)

NO RIO DE JANEIRO, megaprojetos de desenvolvimento estão sendo instalados a um alto custo socioambiental. O Bra-sil sofre com um modelo atrasado de de-senvolvimento e com o crescimento ga-lopante de sua dívida pública. Na Amé-rica Latina, povos inteiros enfrentam as mais distintas dores. Assuntos diversos? Sandra Quintela, recentemente nomea-da coordenadora regional da Rede Jubi-leu Sul, uma articulação de movimentos e ONGs de países do Sul, prova que não. Nesta entrevista, ela fala dos resultados da missão de entidades à região de Se-petiba para investigar os danos socioam-bientais da Companhia Siderúrgica do Atlântico (CSA). Aborda também o dra-ma vivido pelo Haiti, as causas da dívida pública brasileira e as estratégias equivo-cadas de enfrentamento à crise socioeco-nômica global.

Brasil de Fato – Depois da missão que foi à CSA, da repercussão que houve, está havendo avanço?Sandra Quintela – A missão foi um passo importante no envolvimento de outras organizações que conheciam a lu-ta, mas não a realidade concreta. A De-fensoria Pública acaba de ir até lá. Um grupo de pescadores de lá foi até An-chieta (ES), em solidariedade aos impac-tos da CSU [Companhia Siderúrgica do Ubu]. A Fiocruz está fazendo um semi-nário interno para envolver toda a insti-tuição. Isso tudo é consequência da mis-são. Os dados que nós colhemos também serão mais um instrumento para dar visi-bilidade. Nós sabemos a realidade da re-gião: grupos milicianos, associações con-troladas por eles, a empresa usando uma tática cruel de cooptação (promovem cursos de meio ambiente para formar a cabeça de professores, contratam gente para dialogar com a comunidade, criam telefone 0800). Eles vão na contramão de tudo o que está sendo discutido ho-je, que é a economia de baixo carbono. O capital está se renovando, criando no-vas fronteiras de acumulação, com esse argumento do “capital verde”. E a gente, aqui, importando um modelo que a Eu-ropa não quer mais.

A gente vinha acompanhando esses problemas há quatro anos, e existia um bloqueio midiático. Agora, parece que começou a sair bastante na imprensa. Isso pode reforçar a luta?

Claro! Quanto mais as pessoas esti-verem informadas, mais isso pode criar uma massa crítica. Os intelectuais orgâ-nicos do Rio de Janeiro, e os artistas, de-veriam estar mais envolvidos. Porque é o Rio de Janeiro que está em jogo. De um lado, constrói-se um polo siderúrgico-portuário-mineiro, e do outro lado um polo petroquímico. E a cidade no meio.

Mas, pelo que você está dizendo, na Academia também não é muito fácil o diálogo.

Não. É uma cegueira. É como se o Rio de Janeiro não se pensasse. A Academia aqui está pensando a Amazônia, o Nor-deste, o mundo, e há poucos setores pen-sando o próprio Rio de Janeiro. E essa é a cidade, entre as grandes metrópoles, on-de está mais em disputa o projeto do ca-pital. Porque a gente está transforman-do-a, há algum tempo, em uma cidade-produto, uma cidade para ser vendida. O mundo nos conhece primeiro a partir do Rio de Janeiro. É um produto comercia-lizado lá fora.

E está acontecendo no estado todo. Tem também, por exemplo, o Porto do Açu.

Tem o Porto do Açu no norte, onde também haverá uma siderúrgica para exportação. Completa-se uma cadeia. A CSA aqui, a siderúrgica do Açu e a CSU no Espírito Santo. Estamos com as três instaladas na costa, e todas se alimentan-do do minério de ferro de Minas Gerais. Vão se tornar Vazios Gerais.

Eu queria que você falasse um pouco do modelo de desenvolvimento representado por esses projetos.

O Brasil é o único país do mundo que reúne terras, água e luz disponíveis em grande quantidade. A riqueza mineral também é enorme – temos toda a tabe-

“A luta é contra a fi nanceirização de tudo”ENTREVISTA Na linha de frente das principais lutas latino-americanas, a economista Sandra Quintela discute desde a construção da Companhia Siderúrgica do Atlântico à dívida pública; do Haiti à crise ambiental mundial

la periódica. Então, o capital visa acumu-lar o máximo. Nesses dez anos do sécu-lo 21, explorou-se mais carvão mineral do que nos últimos séculos. Na Europa, eles agem diferente. Não têm mais planta lá – instalam aqui. É fácil ser consciente assim, deixando a parte suja para a gen-te. Na CSA, eles tiraram o emprego de oi-to mil pescadores e vão deixar dezenas ou centenas de trabalhadores com pro-blemas de saúde. Isso tudo acontecen-do com forte suporte fi nanceiro do BN-DES. Foi preciso capitalizar o BNDES criando títulos da dívida pública brasi-leira – e ele foi capitalizado em mais de R$ 180 bilhões. O governo toma empres-tado no mercado internacional a uma ta-xa de juros altíssima, de 8% a 10%, e pas-sa ao BNDES, que vai emprestar a uma taxa de 1% a 2% para a Vale, a Gerdau, a MMX etc. É uma lógica saqueadora – de recursos naturais, de força vital e de di-nheiro público. As empresas benefi cia-das – Odebrecht, Camargo Correa, An-drade Gutierrez – são uma caixa preta. Quem controla? São mesmo brasileiras? Tenho as minhas dúvidas. A gente vem trabalhando isso há mais de dez anos, a Rede Jubileu Sul. Buscamos provar que nós, do sul, somos os grandes credores da dívida social e histórica. Veja a lógica. O BNDES se capitaliza com títulos da dí-vida pública brasileira, e isso a gente vai pagar, porque quase 40% do Orçamento da União são para isso. É um escândalo. E não se fala disso. Os grandes temas do nosso projeto de país estão silenciados. E a dívida é o que fi nancia esse modelo de desenvolvimento, que é uma via de mão dupla. Você se endivida para fi nanciar esse modelo, e ele se mantém porque vo-cê tem que pagar a dívida.

Você foi escolhida coordenadora regional da Rede Jubileu Sul. Em que isso muda a sua atuação?

Agora eu tenho que estar mais vincu-lada a temáticas regionais. Em Cancún [onde se realizou a COP-16, encontro da ONU sobre mudanças climáticas], eu preparei toda a articulação com as redes regionais. Nós temos na região um gran-de patrimônio, que foi a campanha con-tinental contra a Alca [Área de Livre Co-mércio das Américas]. Até 2005, era o maior espaço de articulação do continen-te. Hoje, muitas das organizações que fi -zeram a campanha continuam articula-

das, seja na Aliança Social Continental, na Rede Jubileu Sul, no Grito dos Ex-cluídos, na Marcha das Mulheres, na Via Campesina. A gente está sem uma agen-da programática, uma bandeira de luta comum, que a Alca era. Acho que a luta comum agora é contra a fi nanceirização de tudo o que se relaciona com a destrui-ção do planeta.

Você está querendo dizer que a solução que se está propondo para o aquecimento global é a quantifi cação fi nanceira de tudo?

É. Vou explicar. A crise que a gente vi-ve na verdade é social, não é do capital. Porque o capital sempre se renova. Com a crise, de uma hora para outra surgiram trilhões. Até hoje não se sabe quanto. Fa-la-se em valores de 7 trilhões a 18 trilhões de dólares. De onde esse dinheiro saiu? Do Estado. A Grécia faliu. Portugal e Es-panha estão falindo. Esses países tinham um modo de vida que foi absolutamen-te transformado, para se inserir na eco-nomia unifi cada europeia. Estão pagan-do a conta agora, com ajuste social, de uma sociedade que conheceu o Estado de bem estar social. Essa guerra cambial en-tre China, EUA e Europa pode se trans-formar numa disputa muito mais grave. Mas ninguém quer discutir isso. Estão dando o mesmo remédio que deixou o paciente enfermo. No entanto, eles estão criando outros mecanismos de desenvol-vimento “limpo”. Por exemplo, a Alema-nha se comprometeu a reduzir, pelo Pro-tocolo de Kyoto, 5% de suas emissões de carbono. Se reduzir de 8% a 10%, ela tem o crédito para comercializar no mer-cado internacional os títulos do mercado de carbono. Se ela transfere uma planta para o Brasil – a CSA por exemplo –, ela pode negociar os títulos da poluição que deixou de fazer na Alemanha. Eles estão querendo quantifi car até o pólen da abe-lha. Vai virar título. É mais dinheiro num mercado que já está transbordando de dinheiro fi ctício.

Queria que você falasse um pouco de seu envolvimento com o Haiti.

Nós, da Rede Jubilei Sul, começamos a trabalhar o Haiti em julho de 2004. O país foi primeiramente ocupado por Ca-nadá, EUA e França, e depois veio a Mi-nustah. Em 2005, fi zemos a primeira missão ao Haiti. Já fi zemos relatórios, vídeos, continuamos denunciando, pa-ra não deixar o Haiti ser esquecido. Al-gumas organizações silenciam por cum-plicidade, por não querer se opor ao go-verno. Mas agora tem um dado novo. A população no Haiti está se revoltan-do contra a Minustah. Não aguentam mais. Quem vai ao Haiti diz que pare-ce que o terremoto foi ontem. Os destro-ços permanecem. O Estado lá está com-pletamente desmantelado. Três dias de-pois do terremoto, George W. Bush e Bill Clinton foram nomeados os grandes pa-tronos do fundo para a reconstrução do Haiti. Isso não pode ser sério. Hoje, grandes ONGs disputam territórios. Os acampamentos são controlados por ON-Gs que não dialogam nem se interconec-tam. Está comprovado que essa bactéria, que trouxe a epidemia de cólera, foi tra-zida da Ásia. A gente está propondo um seminário, para o ano que vem, sobre os seis anos da Minustah. Nossa avaliação é negativa – não existem logros reais. Já foram gastos mais de 4 bilhões de dóla-res só para manter a Minustah.

Não existe também nenhuma projeção de fi m à ocupação?

Quando eles ocuparam, o Colin Powel era secretário de Estado dos EUA. Ele falou que aquilo era para vários anos. A ONU disse que debatia a retirada, mas quando aconteceu o terremoto, decidi-ram que não podiam mais sair. A gen-te tem uma dívida histórica com o Hai-ti. Estamos vendo um país ser usado co-mo laboratório de políticas de repressão, de criminalização da pobreza e de táticas de guerrilha urbana.

Você já me contou que, através da Rede Jubileu Sul, tinha acesso a informações preciosas e que impressionava como ninguém comentava nada nos meios de comunicação.

Sim. No Panamá, no meio do ano, por exemplo, houve grandes mobilizações, com vários presos. Era contra um paco-taço de leis, com onze itens, em que se proibia greves e manifestações e se au-mentava os impostos. No Brasil, não saiu nenhuma linha. Agora mesmo, cinco camponeses foram assassinados em Honduras, por grupos paramilita-res. Honduras já não é mais assunto. Na Guatemala, proibiram a mineração a céu aberto, o que foi uma grande vitória. Em Trinidad e Tobago ganhou uma mulher de esquerda. E o exército boliviano se de-clarou, agora, anticapitalista. Não é pau-ta, infelizmente.

“O capital está se renovando, criando novas fronteiras de acumulação, com esse argumento do ‘capital verde’”

“As empresas benefi ciadas – Odebrecht, Camargo Correa, Andrade Gutierrez – são uma caixa preta. Quem controla? São mesmo brasileiras?”

“Eles estão querendo quantifi car até o pólen da abelha. Vai virar título. É

mais dinheiro num mercado que já está transbordando de dinheiro fi ctício”

Vista aérea da CSA: indústrias intensivas em impacto socioambientais são deslocadas para a periferia do capital

Um ano após o terremoto, haitianos continuam convivendo com os destroços

Divulgação

Emiliano Sosa

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de 20 a 26 de janeiro de 2011 5brasil

Leandro Uchoasdo Rio de Janeiro (RJ)

A DÉCADA DE 1990 certamente foi mar-cada pelo auge do neoliberalismo. Em boa parte do Ocidente, especialmente na América Latina, projetos de esvaziamen-to do Estado foram colocados em curso. No Brasil, dos governos Collor a FHC, processos distintos de desestatização deixaram o Estado brasileiro em fran-galhos. Por vezes, esses processos se de-ram de forma velada. Na saúde, onde as privatizações seriam mais impopulares, por se tratar de área social vital histori-camente escanteada, surgiram maneiras sutis de se entregar sua gestão à inicia-tiva privada. A mais simbólica delas são as Organizações Sociais (OSs) – entida-des “sem fi ns lucrativos” que atuam em áreas de interesse público. Já em 1998, dois partidos, o PT e o PDT, entraram na Justiça com uma ação direta de inconsti-tucionalidade (Adin) contra as OSs. Mais de uma década depois, o processo che-gou ao Supremo Tribunal Federal (STF) e deve ser julgado em breve.

O movimento social acompanha o an-damento da Adin desde então. Atual-mente, busca construir uma mobilização que promova certa pressão no STF para que considere inconstitucionais as OSs – justamente a partir do argumento de que representam uma forma disfarçada de privatização. Os fóruns populares de saúde – especialmente os dos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Alagoas, Para-ná, Rio Grande do Norte e do município de Londrina (PR) – deram início a uma campanha nacional. Na internet, foi lan-çado um abaixo-assinado contra as OSs, que já conta com 5,2 mil assinaturas. Há também uma carta com a assinatura de 313 entidades.

As OSs surgiram com o argumento de que otimizariam a gestão da saúde, pro-vocando a diminuição dos recursos des-tinados ao setor. Entretanto, os fóruns têm observado o contrário. As condições de trabalho estariam sendo precarizadas e a qualidade dos serviços de saúde ofe-recidos nos locais onde as OS são imple-mentadas estaria diminuindo. Como, a partir da instauração do modelo, o motor das ações de gestão passa a ser o lucro, as entidades agem objetivando o acúmulo, não a qualidade do serviço.

No início de dezembro, quatro re-presentantes da Frente Nacional con-tra a Privatização da Saúde reuniram-se com o ministro Cézar Peluso, respon-sável pela análise da Adin. Foram relata-dos os inúmeros problemas causados pe-las OSs. A comissão entregou ao minis-tro o abaixo-assinado, junto ao “Relató-rio Analítico de Prejuízos à Sociedade, aos Trabalhadores e ao Erário por parte das Organizações Sociais (OSs)”. O docu-

A privatização mascarada da saúde

mento foi resultado de Seminário recen-te sobre os 20 anos do Sistema Único de Saúde (SUS), ocorrido em novembro no Rio de Janeiro, que reuniu 400 militan-tes do país inteiro. Relata irregularidades de desvio de dinheiro apuradas em qua-se todas as OSs do Brasil – dados que es-tão em investigação pelos Ministério Pú-blico Estadual e Federal. A Frente pre-tende entrar em contato com todos os ministros do STF – até porque os donos das OSs estão fazendo o mesmo, em de-fesa da tese de que, sem as OSs, o SUS se extingue.

ObscuridadeUm dos principais problemas das OSs

é a falta de transparência e de contro-le público, como determina o SUS. Pe-la legislação, não há nenhuma exigên-cia de que as entidades privadas se sub-metam a alguma forma de controle por parte da sociedade, como ocorre em rela-ção aos serviços públicos. As OSs têm um Conselho de Administração, sem caráter deliberativo. Outro problema é a ausên-cia de concurso público para a contrata-ção de novos profi ssionais. Quem pas-sa a determinar qual será o profi ssional contratado é o dono da entidade. Os tra-balhadores também fi cam submetidos a uma eventual mudança, caso haja troca de governo – o que não ocorreria se fos-sem concursados. Cria-se também a difi -culdade de existência de plano de carrei-ra para os profi ssionais.

No Rio de Janeiro, as OSs estão sendo implementadas na gerência dos Progra-

mas de Saúde da Família (PSF). Algumas entidades incumbidas de gerir os equipa-mentos de saúde têm problemas jurídi-cos, como processos por desvio de ver-bas. As unidades sob gestão das OSs têm recebido denúncias de má gestão e de problemas trabalhistas. Um dos princi-pais argumentos para se utilizar o mode-lo, no Rio, foi o da falta de recursos para se aplicar com os servidores. Na Câma-ra Municipal, o vereador Paulo Pinhei-ro (PPS), médico de formação e militan-te histórico do setor, entrou com pedido de uma Comissão Parlamentar de Inqué-rito (CPI) para investigar as OSs. O Rio de Janeiro foi o primeiro a aprovar, em 2007, as Fundações Estatais de Direito Privado. No estado, hospitais importan-tes, como o Pedro II e o São Sebastião, estão sendo fechados.

O modelo de saúde predominante no Rio de Janeiro são as Unidades de Pron-to Atendimento (UPA). “Ele é questioná-vel como modelo assistencial, pois não se articula com o sistema. Apenas en-caminha para os hospitais os casos gra-ves. A diferença de propostas com rela-ção às UPAs está nas Unidades Mistas, criadas na Baixada Fluminense na déca-da de 1980. Articulavam prevenção, pro-moção e cura. As unidades tinham con-sultas, pequenas emergências e encami-nhavam para os hospitais apenas se ne-cessário”, explica Maria Inês Bravo, pro-fessora da Faculdade de Serviço Social da UERJ, e uma das principais referências no setor. Ela também critica a militariza-ção da saúde, a medida que a secretaria específi ca, no Rio, agora se chama Secre-taria de Saúde e Defesa Civil.

Em São Paulo, a lei 9.637/1998 – a mesma que resultou na Adin – tinha, ao menos, um atenuante. Ela estabe-lecia que apenas instituições de saúde novas poderiam ter o modelo de ges-tão convertido. Entretanto a lei foi mo-difi cada pelos deputados estaduais em

2009. Atualmente, hospitais antigos po-dem ser – e já estão sendo – administra-dos pelas Organizações Sociais. Segun-do o Fórum de Saúde local, cerca de trêsem cada cinco serviços já estão sob ges-tão das entidades privadas em São Pau-lo, Estado administrado pelo PSDB há16 anos. Os movimentos locais também denunciam que, no início da gestão, as entidades aplicam uma quantidademaior de recursos, para dar a imagem de boa gestão. Com o tempo, vão lenta-mente precarizando os serviços, e há ca-sos de completo abandono.

Na Academia, há os que argumen-tam que a utilização de entidades pri-vadas em atividades públicas não é no-va na área da saúde. O próprio SUS tam-bém seria servido por instituições priva-das. O professor Ruben Mattos, do Insti-tuto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (IMS/Uerj), é dos que defendem a tese. Ele relata que o modelo do SUS foi desenhado durante a 8ª Conferência de Saúde. Para Ruben, o problema da instituição das OSs vai além da simples privatização. O modelo causa-ria, segundo ele, a fragmentação da pres-tação de serviço no setor. Outro proble-ma seria a lógica produtivista que passa a ser a base da atividade na saúde. Isso seria um impedimento para as entidades gestoras das OSs buscarem o aprimora-mento de sua atuação – através do cres-cimento e da inovação.

do Rio de Janeiro (RJ)

A privatização da saúde, no Brasil, tem diversas facetas, para além das Organi-zações Sociais (OSs). Começa, historica-mente, a partir de uma cultura de submis-são a interesses de terceiros. Inicia com a abertura do setor para parcerias públi-co-privadas e a criação das fundações es-tatais de direito privado. Por trás dessas fundações, sempre houve o interesse di-reto de investidores. Por isso, “barrar as OSs não signifi ca só afastar a privatização do SUS, mas é um passo importante pa-ra impedir o avanço das fundações tam-bém”, explica Cristina Braga, do Fórum de Saúde do Rio de Janeiro. Há também outras formas de terceirização da gestão do setor, como as Organizações da Socie-dade Civil de Interesse Público (Oscips), existentes em alguns estados.

No Brasil, cerca de 23% das pessoas têm planos de saúde privado. Os valores pagos nos planos excedem, e muito, o gasto pú-blico em saúde. Segundo as entidades de classe de combate a essa lógica, nem mes-mo se pode defender a qualidade dos ser-viços prestados. Os que têm plano teriam acesso a serviços melhores, mas não ne-cessariamente bons. As entidades denun-ciam também o que chamam de “fi nan-

ceirização da saúde”, que ocorre quan-do as empresas do setor lançam ações na Bolsa de Valores. Segundo elas, para ga-rantir maior lucro às empresas privadas, é necessário que os equipamentos públi-cos estejam sucateados, papel exercido de bom grado pelos governos.

A privatização da saúde também gera o problema da rotatividade no emprego. A fl exibilização das relações de trabalho in-duz muitos trabalhadores a procurar ou-tro emprego. A troca constante de profi s-sionais reduz a qualidade do atendimen-to oferecido. O quadro se agrava com as constatações de que, 20 anos após a cria-ção do SUS, ainda há brasileiros que não têm acesso a ele. O sistema não conseguiu ainda chegar a todos os lugares do país. Outra denúncia recorrente é a de coopta-ção de alguns dos componentes dos conse-lhos de saúde, que passam a agir em sinto-nia com os agentes da privatização. (LU)

do Rio de Janeiro (RJ)

O quadro de privatização da saúde é diverso nos distintos lo-cais do país. Em Curitiba (PR), acaba de ser aprovada a lei que cria as Fundações Estatais de Direito Privado para administrar setores públicos – entre eles a saúde. No estado, já havia Oscips e formas distintas de terceirização dos serviços. Os contratos de transferência de gestão teriam sido feitos sem nenhuma forma de controle social. Em Alagoas, a complementaridade do SUS é invertida. A rede privada abocanha, através de convênios de venda de serviços ao SUS – legalmente permitidos –, 60% dos recursos públicos. Dessa forma, o Estado privilegia as institui-ções privadas, enquanto 94% da população alagoana permane-ce sendo atendida pelo SUS. Governos locais estão tentando im-plantar as OSs no estado.

Em Natal (RN), R$ 6 milhões foram investidos na criação de Unidades de Pronto Atendimento (UPA). Os militantes do es-tado não se opõe às UPAs, mas preferiam o gasto com unida-des básicas de saúde. No estado, tem avançado as terceirizações e a contratação de profi ssionais não concursados. No Rio de Ja-neiro, as OSs e Oscips foram aprovadas em 2009. As UPAs es-tão sendo transformadas em OSs. Está havendo a demissão de profi ssionais e baixa qualidade dos serviços oferecidos. O Rio de Janeiro tem a maior rede privada de saúde do país. A desvalori-zação do controle social e a cooptação de conselhos também es-tariam a pleno vapor no Estado. (LU)

Em Alagoas, a complementaridade do SUS é invertida. A rede privada abocanha 60% dos recursos públicos

Muito além das OSsA privatização da saúde começa com as parcerias público-privadas, com as fundações 23%

dos brasileiros possuem plano de saúde privado

Estados de calamidade públicaEm cada local do país, o modelo de privatização se altera

Os que têm plano teriam acesso a serviços melhores, mas não necessariamente bons

GESTÃO PÚBLICA Chega ao STF uma ação direta de inconstitucionalidade contra as Organizações Sociais (OSs), entidades privadas que administram instituições públicas de saúde

Um dos principais problemas das OSs é a falta de transparência e de controle

público, como determina o SUS

Um dos principais argumentos para se utilizar o modelo, no Rio, foi o da falta de recursos para se aplicar com os servidores

No Rio de Janeiro, trabalhadores da saúde fazem protesto em frente ao hospital Pedro II, que está sendo fechado

Reprodução

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InadimplênciaDe acordo com o indicador Serasa

Experian, a inadimplência do con-sumidor brasileiro cresceu 6,3% em 2010 em relação ao ano de 2009. A comparação apenas do mês de de-zembro de 2010 e 2009 mostra um crescimento de 20,9%. Se a situação fi cou assim no mês do 13º salário, imagine como poderá fi car nos meses de abril e maio – quando costuma aparecer a inadimplência das com-pras do fi nal do ano.

Brasil realO Ministério da Saúde divulgou

nota informando que aumentaram de 10 para 16 os Estados “com risco muito alto de epidemia” de dengue agora no início de 2011; outros cinco Estados estão “com risco alto”. Ou seja, dos 27 Estados brasileiros, ape-nas Rondônia, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul não foram listados como área de ris-co da dengue. Por que será que a do-ença evoluiu tanto nos últimos anos?

EnganaçãoUma coisa não se pode negar: a

publicidade governamental sobre a educação é muito boa, transmite pre-ocupações reais com o investimento público na área, a necessidade de valorização dos professores, a impor-tância do ensino para a construção de um Brasil mais democrático, mais justo e mais igualitário. Pena que o investimento na publicidade é sem-pre mais efetivo do que o investimen-to real na educação!

Fantasma legalUm juiz da 3ª Vara da Fazenda

Pública do Distrito Federal acaba de autorizar a existência de funcioná-rios fantasmas no serviço público, ao afi rmar que “no ordenamento jurí-dico pátrio não existe previsão legal ou constitucional que condicione a acumulação de cargos à determinada jornada de trabalho”. Isso signifi ca que um funcionário público pode acumular dois ou três cargos públicos e 60, 70, 80 ou mais horas semanais. É o fi m da picada!

Serviço privadoÓrgão público federal, a Anatel

defende com unhas e dentes os in-teresses das empresas privadas de telecomunicações e telefonia contra as reivindicações da população. Recentemente, a agência usou a Pro-curadoria Geral da República para derrubar leis estaduais que obrigam as empresas de TV a cabo a instalar gratuitamente até três pontos adicio-nais. Por isso prevalece a norma da própria Anatel, que permite cobran-ça de ponto extra. Viva a exploração!

Opinião fatalO representante da OEA para o

Haiti, Ricardo Seitenfus, foi afas-tado de suas funções depois de ter afi rmado, em entrevista para o jor-nal suíço Les Temps, que “o Brasil não pode ser um guardião e fi car segurando as chaves do cemitério”. Para ele, o país precisa repensar sua participação nas forças milita-res da ONU que ocupam o Haiti, o problema não é de segurança internacional, mas político, social e econômico. Bingo!

Tragédia anunciadaA entrevista que a arquiteta Ermí-

nia Maricato deu para a revista Caros Amigos, em maio de 2010, circulou recentemente em várias listas na Internet como algo profético sobre a tragédia ocorrida em várias partes do Brasil com as chuvas de janeiro. Ela já havia alertado sobre o caos urbano, a precariedade da moradia, a especulação imobiliária e as mara-cutaias dos programas habitacionais. Deu no que deu!

Luta indígenaDe acordo com o Cimi, de 2003 a

2010, nos dois governos Lula, foram assassinados 437 indígenas, a maior parte em decorrência de confl itos por terras. No mesmo período foram homologados apenas 88 territórios indígenas, que ocupam uma área de 18 milhões de hectares. Nos oito anos do governo FHC, foram de-marcadas 128 terras indígenas, com aproximadamente 32 milhões de hectares. Ainda há muito mais a ser feito pelos povos indígenas.

InacreditávelEntidades de defesa dos direitos

humanos e familiares de assassina-dos e desaparecidos políticos na di-tadura militar estão indignados com as declarações da deputada federal Maria do Rosário (PT-RS), da Secre-taria de Direitos Humanos, ao jornal O Estado de S. Paulo (16/01/2011), sobre o novo foco do ministério para crianças e adolescentes, e não mais no esclarecimento dos crimes da di-tadura. Sem memória, sem verdade e muito menos sem justiça!

fatos em focoHamilton Octavio de Souza

Márcio Zontade Canaã dos Carajás (PA)

UM DOS MAIORES projetos de explora-ção mineral da Vale no mundo, o S11D, na Serra Sul de Carajás, será implanta-do até 2015 em Canaã dos Carajás (PA). O escoamento de minério passará de 110 milhões de toneladas por ano para 220 milhões de toneladas no primeiro ano da efetivação da mina, com previsão de crescimento para 280 milhões nos próxi-mos cinco a dez anos.

Sem debater o projeto por inteiro junto à sociedade e comunidades impactadas, a Vale já começa a expansão da Estrada de Ferro de Carajás nos municípios ma-ranhenses de Itapecuru Mirim, Anajatu-ba, Alto Alegre do Pindaré, Nova Vida, Bom Jesus das Selvas, Açailândia, Cide-lândia e na cidade paraense de Marabá.

Ao todo deverão ser construídas 46 no-vas pontes, 5 viadutos ferroviários, 18 viadutos rodoviários e, no porto de Pon-ta da Madeira de São Luis, será feito mais um píer para os navios de carga. Para is-so, a Vale almeja a remoção, ao longo da via férrea, de 1.168 pontos de “interferên-cias” intituladas pela própria, tais como: cercas, casas, quintais, plantações e po-voados inteiros.

Fragmentação e silêncioPara Frederico Drumond Martins,

analista ambiental do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversi-dade (ICMBio), responsável pela Flores-ta Nacional de Carajás, onde ocorrerá a exploração da S11D, “não interessa à Va-le debater o projeto”. “Quanto mais a Va-le o apresentar entre os movimentos po-pulares, a população e as entidades que defendem o meio ambiente e são contra os distúrbio sociais causados pelo em-preendimento, mais ela será questiona-da. Por isso, o debate fi ca muito restrito: ela apenas enfatiza os benefícios do pro-jeto, mas não a problemática que vai ge-rar”, explica.

Outro ponto para o qual Martins cha-ma atenção é a maneira como a Vale vem conseguindo as licenças para ini-ciar as obras. “A empresa fragmenta a busca pelas liberações, pedindo separa-damente as coisas em distintos órgãos, como se não fosse para o mesmo proje-to. Um exemplo claro é o da ferrovia, que foi apresentada para o Ibama e o ICM-Bio”, denuncia.

Assim, a Vale consegue com mais fa-cilidade, rapidez e sem muita divulga-ção a liberação da obra. Isso porque, se-gundo Martins, “a aprovação órgão a ór-gão é mais rápida e o relacionamento fi -ca mais fácil, é mais silencioso em rela-ção aos impactos de seus projetos. É tu-do o que ela quer: agir sem muito alarde com rápidas aprovações dos órgãos com-petentes”.

As artimanhas da empresa não pa-ram por aí. Outro argumento utiliza-do, denunciado pelo advogado da enti-dade Justiça nos Trilhos, Danilo Cham-mas, é que a Vale apresenta a obra como se fosse realizada apenas na faixa de con-cessão de seu domínio. “Ela utiliza o pa-rágrafo do Conselho Nacional do Meio Ambiente [Conam] 349 de 2004, que fala dos empreendimentos ferroviários considerados de pequeno porte, quan-do as obras estão dentro da faixa de do-mínio existente, sem remoção de popu-lação, intervenção de área de preserva-ção permanente ou supressão de vegeta-ção ou área de proteção ambiental”. Mas, segundo já apurado pela entidade, só em Marabá, pelo menos 200 famílias serão removidas, havendo derrubada de ca-sas. “Portanto, o projeto extrapola a fai-xa concessionária e requer estudos”, co-bra Chammas.

Outro caso, que evidencia o desrespei-to da mineradora às leis nacionais e in-ternacionais, diz respeito à população quilombola das regiões do Maranhão

Vale inicia obras do novo CarajásMINERAÇÃO Junto ao crescimento da extração, estimado em 170 milhões de toneladas, vem degradação ambiental e distúrbios sociais

de Santa Rosa dos Pretos e Monge Be-lo. São 257 famílias que estão buscando a titulação do território, tendo o lobby e a oposição da Vale junto aos órgãos pú-blicos contra, tentando a remoção. “A convenção da Organização Internacio-nal do Trabalho [OIT] 169, sobre povos indígenas e tribais, onde se insere o qui-lombola, determina a consulta prévia às comunidades para todo tipo de obra que os impactarem, pois se eles disse-rem não à obra, elas não podem ocor-rer. Contudo, a Vale menospreza isso”, explica Chammas.

LudibriarO modo de negociação da Vale jun-

to às comunidades atingidas, quando não burla as leis, ou fragmenta os pro-cessos, busca via judiciais que prejudi-cam os moradores das regiões atingidas. Em Buruticupu, interior do Maranhão, membros da Justiça dos Trilhos detec-taram que uma prática da Vale tem si-do negociar individualmente com mo-radores contratos com cláusulas confi -denciais. Segundo Chammas, isso signi-fi ca que nada pode ser falado sobre o que foi acordado entre a mineradora e o mo-rador, inclusive para vizinhos ou advoga-dos. Essas cláusulas são problemáticas porque estipulam os preços das terras, sem deixar que as famílias procurem sa-ber o quanto realmente teriam de direito com indenizações.

Martins, do ICMBio, diz que, especial-mente em Canaã dos Carajás, onde deve-rá ser o maior processo de impacto am-biental e social, a população não conse-gue ter dimensão da situação. “Geral-mente essas comunidades não são poli-tizadas e as cifras que são anunciadas na cidade mexem com os moradores, todos querem saber como vão ganhar com a implantação do projeto”, revela.

Um exemplo são os lotes que muitos querem vender à mineradora. “Fica to-do mundo querendo vender sua área pa-ra a Vale, sem perceber o impacto social que isso produz, já que essas famílias te-rão que ir para a cidade, que, graças ao mesmo projeto da Vale, não dará estru-tura para sua sobrevivência digna, al-go que eles tinham no campo”, elucida Martins.

ConsequênciasA implantação do projeto S11D já é

considerada uma ameaça ao ecossiste-ma da região. “A savana ferruginosa, tí-pica do local, poderá desaparecer, as-sim como áreas de preservação perma-nente”, diz Martins. Além disso, o proje-to tornará ainda mais agudos os proble-mas sociais do entorno, como educação, saúde, saneamento básico, onerando o governo. “Já sabemos que Canaã dos Carajás está no seu limite de abasteci-mento de água e energia, mas no projeto apresentado pela Vale a nós não consta investimentos na infraestrutura do mu-nicípio”, acusa Martins.

Para o membro do ICMBio, acontece-rá com Canaã dos Carajás o que já pre-valece em Parauapebas. “O município pensa a construção de uma escola pa-ra determinado número de alunos, mas quando termina o projeto, a quantidade já dobrou. O mesmo acontece com hos-pitais, transporte etc. A cidade não dá conta do planejamento com tantos pro-jetos realizados pela Vale. Na hora de repartir os ganhos, a mineradora paga hoje R$ 20 milhões por mês à prefeitura de Parauapebas, frente um faturamen-to diário obtido por ela de 36 milhões de dólares”, compara Martins.

A Vila Sanção, hoje com 17 anos, lo-calizada entre os municípios de Mara-bá e Parauapebas, é um exemplo con-creto dos distúrbios sociais e ambien-tais causados pelos empreendimentos da Vale, especifi camente o projeto Salo-bo. “O posto policial está construído há mais de um ano, mas não podemos con-tar com a presença de policiais. Já es-tamos com problemas de abastecimen-to de água, que não suporta a atual de-manda, e os casos de prostituição infan-til se banalizaram por aqui”, pontua Ma-ria do Socorro de Brito, vice-presiden-te da Associação dos Moradores e Pro-dutores Rurais para o Desenvolvimen-to Sustentável da Vila Sanção e Região (Amprodesv).

Mas, mesmo enfatizando em seus in-formes e propagandas que se preocupa com as comunidades onde atua, a Vale ainda não atendeu a diversas solicita-ções de Brito. “Já foram enviados vários ofícios para a mineradora, exigindo que sejam idealizadas e colocadas em prá-tica políticas públicas voltadas para os jovens e adolescentes da Vila, mas até agora nada”, conta.

A prostituição, sobretudo a infantil, vem sendo a principal consequência dos projetos implantados pela minera-dora, nas cidades que estão no corredor de Carajás. Para o também membro da Justiça nos Trilhos, Antonio Soffi enti-ni, a Vale sabe os problemas que causa: “aumento de prostituição, exploração de adolescentes e crianças, além da pro-liferação de doenças sexualmente trans-missíveis”. “Tanto é que em Bom Jesus da Selva, município maranhense onde se instalará um canteiro de obras da du-plicação da ferrovia, com a chegada de dois mil homens, a Vale planeja dar au-la de educação sexual para os trabalha-dores, na tentativa de minimizar os pro-blemas, embora seja difícil”, elucida.

“A empresa fragmenta a busca pelas liberações, pedindo separadamente as coisas em distintos órgãos, como se não fosse para o mesmo projeto”

“A savana ferruginosa, típica do local,

poderá desaparecer, assim como

áreas de preservação permanente”

Estação de trem na região de Carajás: grande afl uxo de pessoas sobrecarrega Poder Público

Bruno Haspinger

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brasil de 20 a 26 de janeiro de 2011 7

Jorge Américode São Paulo (SP)

CONSIDERADA a maior tragédia cli-mática já ocorrida no Brasil, as enchen-tes deste início de ano já provocaram a morte de mais de 600 pessoas somente no Rio de Janeiro. No último ano, o es-tado já havia registrado 283 mortes nas mesmas condições. Após a liberação de verbas federais, as autoridades locais se comprometeram a investir na pre-venção de novos acidentes, o que não ocorreu.

Atualmente, mais de 30 projetos com medidas antienchentes estão parados no Congresso Nacional. A defensora públi-ca do Estado do Rio de Janeiro, Maria Lucia de Pontes, considera que o proble-ma não pode ser resolvido sem uma po-lítica habitacional que garanta, de fato, o direito à moradia segura.

“Parece um pouco aquele discurso: ‘Estamos fazendo a regularização fun-diária, estamos dando segurança à pos-se numa política de resposta a determi-nados tratados internacionais’. Mas, na prática, isso não é colocado. Exatamente porque não se quer dar segurança às mo-

Enchentes facilitam as remoções

radias das comunidades carentes. Se vo-cê fornecer segurança, você tem difi cul-dade de remover.”

O governador Sérgio Cabral (PMDB) responsabilizou, além do excesso de chu-va, as ocupações irregulares das encostas. Maria Lucia questiona as declarações.

“Ainda que, nesse último evento no Rio de Janeiro, a incidência de vítimas na classe média e classe alta seja muito maior que na anterior, eles estão aprovei-tando para culpar e continuar com a es-tratégia de remoção. Até por conta dos grandes eventos que estão para acontecer no Rio de Janeiro, eles estão acelerando esse processo de remoção.”

O órgão das Nações Unidas que atua na prevenção de desastres divulgou um co-municado no qual assegura que as mortes poderiam ter sido evitadas, caso as áreas de risco fossem monitoradas e os mora-dores alertados. (Radioagência NP)

CHUVAS Atualmente, mais de 30 projetos com medidas antienchentes estão parados no Congresso Nacional

Aroldo Cangussu

COM RECEIO DE SER repetitivo, mas encarando a realidade, sou obrigado a escrever aqui quase tudo que havia feito há exatamente um ano: 15 de ja-neiro de 2010. Mais uma vez as chu-vas de verão provocam grandes perdas de vidas humanas e um enorme estra-go material, principalmente nos esta-dos do Rio de Janeiro, São Paulo e Mi-nas Gerais.

Os programas de televisão não falam de outra coisa: desabamentos, inunda-ções, pânico, terror e muito, muito so-frimento. Parece incrível que as auto-ridades não tomem providências pa-ra um fato absolutamente previsível. Ninguém mais é pego de surpresa. To-dos sabem que as chuvas provocam um gigantesco estrago em regiões de risco sobejamente conhecido. Todo fi -nal e início de ano é a mesma coisa. Ca-sas sendo soterradas, pessoas perden-do tudo, alagamentos, lixo boiando nas enxurradas e correntezas e as mesmas explicações de sempre: impermeabili-zação do solo, construções inadequa-das em locais inadequados, acúmulo de sujeira, entupimentos de bueiros, desmatamento, ocupação desordenada do solo, defi ciência do sistema de dre-nagem urbana e por aí vai.

Mais uma vez quero colocar a minha indignação com a inépcia dos gover-nantes, com a falta de planejamento administrativo, com o aproveitamento político da miséria e com o oportunis-mo dos maus dirigentes. Os prefeitos, por exemplo, só se preocupam com o Fundo de Participação dos Municípios (FPM), não constroem projetos sus-tentáveis e não procuram arrecadar os recursos que estão disponíveis em vá-rios ministérios, mostrando total ig-norância na arte moderna de adminis-trar. Tratam a coisa pública como se fosse de sua propriedade e usam todo o tipo de picuinha para extrair para si os dividendos, como se estivessem em uma minúscula cidade do interior.

Novamente, vou defender a água e anatureza. Elas não têm culpa de nada.A água é o elemento vital da vida. Pre-cisamos dela para a nossa própria so-brevivência neste planeta. Mas a águatem as suas peculiaridades. Ela acom-panha a gravidade, passa por um cicloperfeitamente determinado e precisade toda uma sistematização para cum-prir esse ciclo. Se desrespeitada, reagenaturalmente, desconhecendo os obs-táculos que a atividade humana colocaem seu caminho.

A tragédia da região serrana do Riode Janeiro é um exemplo do quantopoderia ser evitada a morte de cente-nas de pessoas. Trata-se de uma re-gião incrustada na Mata Atlântica on-de chove muito, bem acima da médiadas precipitações do restante da regiãosudeste. Além disso, possui um relevobastante acidentado cuja única prote-ção são as árvores. Eliminando-as, nãoresta mais nada que impeça os desbar-rancamentos. A equação ocupação deencostas + desmatamento dos morros+ chuvas torrenciais = tragédia. Pararesolvê-la não é necessário ser gênioem matemática, basta ser governantehonesto e preocupado com a seriedadee o planejamento. (EcoDebate)

Aroldo Cangussu, engenheiro, é ex-secretário de meio ambiente

de Janaúba (MG).

ANÁLISE

Chuvas, dor, morte e destruição

[Os prefeitos] tratam

a coisa pública

como se fosse de

sua propriedade e

usam todo o tipo de

picuinha para extrair

para si os dividendos

O governador Sérgio Cabral (PMDB) responsabilizou, além do excesso de chuva, as ocupações irregulares das encostas

Governador Sérgio Cabral dá entrevista durante visita a Nova Friburgo

Valter Campanato/ABr

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brasilde 20 a 26 de janeiro de 20118

Leonardo Boff

O CATACLISMA ambiental, social e hu-mano que se abateu sobre as três cidades serranas do estado do Rio de Janeiro, Pe-trópolis, Teresópolis e Nova Friburgo, na segunda semana de janeiro, com cente-nas de mortos, destruição de regiões in-teiras e um incomensurável sofrimen-to dos que perderam familiares, casas e todos os haveres, tem como causa mais imediata as chuvas torrenciais, próprias do verão, a confi guração geofísica das montanhas, com pouca capa de solo so-bre o qual cresce exuberante fl oresta sub-tropical, assentada sobre imensas rochas lisas que, por causa da infi ltração das águas e o peso da vegetação, provocam frequentemente deslizamentos fatais.

Culpam-se pessoas que ocuparam áreas de risco, incriminam-se políticos corruptos que distribuíram terrenos perigosos a pobres, critica-se o poder público que se mostrou leniente e não fez obras de prevenção, por não serem visíveis e não angariarem votos. Nisso tudo há muita verdade. Mas nisso não reside a causa principal dessa tragédia avassaladora.

A causa principal deriva do modo co-mo costumamos tratar a natureza. Ela é

MAIS UMA VEZ a conjuntura eco-nômica revela pressão infl acioná-ria oriunda dos mercados agrícolas – ênfase nas carnes, cereais, grãos e açúcar, setores em relação aos quais o Brasil ocupa hoje posição de prota-gonista no comércio internacional.

Fora esta uma situação puramen-te conjuntural, determinada por fa-tores climáticos, que normalmente tendem a gerar fl utuações não pla-nejadas nas safras agrícolas, o as-sunto mereceria apenas notas de ro-dapé, ou notícias no espaço dos fe-nômenos da natureza.

Mas a questão, nos seus aspectos causais, não é tão trivial assim, re-percute diretamente no custo de vi-da da população mais pobre e prova-velmente será remediada pela políti-ca monetária, de uma maneira con-vencional e inadequada – com eleva-ção da taxa interna de juros Selic.

Observe-se que a conjuntura al-tista dos alimentos em 2010 (INPC cresce 6,47% e alimentos 10,42%) não é fato fortuito. Ocorreu tam-bém nas conjunturas de 2007/2008 e 2002/2003, cada qual com expli-cações conjunturais específi cas mais

adiante comentadas, que são rever-tidas nas safras seguintes, mas que retornam sempre que melhoram os preços de exportação das commo-dities.

As tensões infl acionárias sobre ce-reais, grãos, carnes, açúcar etc. são hoje globalizadas, mas, no Brasil, elas incidem com maior força, em razão da nossa notória dependên-cia externa da exportação de com-modities. É neste sentido, portanto, que se pode falar de fator estrutural que vincula tensões infl acionárias com o setor agrícola, diferentemen-te do diagnóstico estrutural da infl a-ção do Plano Trienal de 1962 do Go-verno João Goulart.

O fenômeno infl acionário, en-quanto manifestação puramen-te empírica, se revela pela elevação de preços relativos de determina-do conjunto de bens, com potencial de infl uenciar o nível geral de preços – como é o caso reiterado dos pre-ços agrícolas em várias conjunturas recentes. Como tal, esse fenômeno ainda não é regular e sistemático de sorte a ensejar a construção de cor-relações empíricas. Mas revela, por

outro lado, tensões latentes nesses mercados globais, a que somos leva-dos a internalizar, em geral de forma desfavorável, como nos revela a se-quência de episódios recentes.

Em 2002/2003 essas tensões ti-veram clara conotação monetária (falta de liquidez externa) – a ta-xa de câmbio foi a quatro reais por dólar e com isto puxou para cima o preço em real das commodities. Em 2007/2008, já tínhamos uma con-juntura inversa do ponto de vista monetário internacional – exces-so de liquidez (o dólar fi ca no en-torno de R$ 2,00), combinada com forte pressão de demanda real e es-peculativa nos mercados organiza-dos de produtos primários. A con-sequência para o Brasil também foi de pressão mais que proporcional dos preços dos alimentos, puxando o INPC para cima. Em 2010, conti-nua o cenário externo de excesso de liquidez, com o dólar a R$ 1,70, mas com forte pressão externa sobre os preços das commodities.

Em todo este período considera-do – 2000/2002 a 2010 –, as ex-portações totais brasileiras pula-

ram de uma média de 57,9 bilhões de dólares no início do período pa-ra 200 bilhões no fi nal. No mesmo tempo, houve um forte aumento de participação dos produtos primários – de 44% da pauta de exportações (2000/2002) para cerca de 60% em 2010, considerados neste cálcu-lo “Produtos Básico e Semi-manufa-turados. A especialização primário-exportadora no comércio exterior, com forte participação de produtos alimentares da cesta básica, perse-guiu, sem alcançar – a eliminação do defi cit em conta corrente do Balanço de Pagamentos. Neste meio tempo, internalizou toda sorte de tensão in-fl acionária, de origem monetário-fi -nanceira ou dos mercados físicos dos mercados agrícolas mundiais.

Para todas essas conjunturas a au-toridade monetária – o Banco Cen-tral – agiu da mesma forma: elevou a taxa interna de juros para conter a demanda doméstica, sem que com isto prevenisse a tensão estrutural. E agora como agirá?

Guilherme C. Delgado escreve uma vez por mês neste espaço.

Pressão dos alimentos e infl ação Guilherme C. Delgado

Para todas essas conjunturas a autoridade monetária – o Banco Central – agiu da mesma forma: elevou a taxa interna de juros para conter a demanda doméstica, sem que com isto prevenisse a tensão estrutural

Danilo Augustode São Paulo (SP)

AS TRAGÉDIAS CAUSADAS pelas chu-vas que atingem o Brasil podem aumen-tar se forem aprovadas as propostas de mudanças no Código Florestal. A afi r-mação é do engenheiro fl orestal e inte-grante da Via Campesina, Luiz Zarref. Entre os pontos polêmicos, o texto que propõe mudanças no atual Código, de autoria do deputado federal Aldo Rebe-lo (PCdoB/SP), deixa de considerar to-pos de morros como áreas de preserva-ção permanente. Esses locais foram os mais afetados por deslizamentos de ter-ra no Rio de Janeiro.

las, pela Terra, pelo afl oramento e eleva-ção das montanhas, pelos animais, pelas fl orestas e pelos rios. Nossa tarefa é sa-ber escutar e interpretar as mensagens que eles nos mandam. Os povos originá-rios sabiam captar cada movimento das nuvens, o sentido dos ventos e sabiam quando vinham ou não trombas d’água. Chico Mendes, com quem participei de

longas penetrações na fl oresta amazôni-ca do Acre, sabia interpretar cada ruído da selva, ler sinais da passagem de onças nas folhas do chão e, com o ouvido cola-do ao chão, sabia a direção em que ia a manada de perigosos porcos selvagens. Nós desaprendemos tudo isso. Com o re-curso das ciências lemos a história ins-crita nas camadas de cada ser. Mas esse conhecimento não entrou nos currículos escolares nem se transformou em cultu-ra geral. Antes, virou técnica para domi-nar a natureza e acumular.

Os povos originários sabiam captar cada movimento das nuvens, o sentido dos ventos e sabiam quando vinham ou não trombas d’água

No caso das cidades serranas, é natu-ral que haja chuvas torrenciais no ve-rão. Sempre podem ocorrer desmoro-namentos de encostas. Sabemos quejá se instalou o aquecimento global quetorna os eventos extremos mais fre-quentes e mais densos. Conhecemos osvales profundos e os riachos que cor-rem neles. Mas não escutamos a men-sagem que eles nos enviam que é “nãoconstruir casas nas encostas; não mo-rar perto do rio e preservar zelosamen-te a mata ciliar”. O rio possui dois lei-tos: um normal, menor, pelo qualfl uem as águas correntes; e outro maiorque dá vazão às grandes águas das chu-vas torrenciais. Nessa parte não se po-de construir e morar.

Estamos pagando alto preço pelo nos-so descaso e pela dizimação da MataAtlântica que equilibrava o regime daschuvas. O que se impõe agora é escutara natureza e fazer obras preventivas querespeitem o modo de ser de cada encos-ta, de cada vale e de cada rio.

Só controlamos a natureza na medidaem que lhe obedecemos e soubermos es-cutar suas mensagens e ler seus sinais.Caso contrário teremos que contar com tragédias fatais evitáveis.

Leonardo Boff é fi lósofo e teólogo.

generosa conosco, pois nos oferece tudo o que precisamos para viver. Mas nós, em contrapartida, a consideramos como um objeto qualquer, entregue ao nosso bel-prazer, sem nenhum sentido de res-ponsabilidade pela sua preservação, nem lhe damos alguma retribuição. Ao con-trário, tratamo-la com violência, depre-damo-la, arrancando tudo o que pode-mos dela para nosso benefício. E ainda a transformamos numa imensa lixeira de nossos dejetos.

Pior ainda: nós não conhecemos sua natureza e sua história. Somos analfa-betos e ignorantes da história que se realizou nos nossos lugares no percur-so de milhares e milhares de anos. Não nos preocupamos em conhecer a fl ora e a fauna, as montanhas, os rios, as paisa-gens, as pessoas signifi cativas que aí vi-veram, artistas, poetas, governantes, sá-bios e construtores.

Somos, em grande parte, ainda de-vedores do espírito científi co moderno que identifi ca a realidade com seus as-pectos meramente materiais e mecani-cistas sem incluir nela a vida, a consci-ência e a comunhão íntima com as coi-sas que os poetas, músicos e artistas nos evocam em suas magnífi cas obras. O universo e a natureza possuem histó-ria. Ela está sendo contada pelas estre-

O projeto de lei já foi aprovado em uma comissão especial e está pronto para ser votado pelo plenário da Câmara. Além de afetar a ocupação no topo dos morros, de acordo com Zarref, a proposta de re-dução de 30 para 15 metros das áreas de

preservação nas margens de rios provo-cará erosão, ampliando os alagamentos.

“Sem essa área, rapidamente uma trompa d’água se forma. Isso porque a chuva cai em uma área que está despro-tegida, fato que aumenta rapidamente o

ANÁLISE

O preço de não escutar a natureza

“O que aconteceu no Rio de Janeiro não é só por causa da degradação do topo do morro, de fato foi um nível de chuva muito alto”

Novo Código Florestal irá agravarainda mais os desastres ambientaisCHUVAS Mudanças na atual legislação propõem desconsiderar topos de morros como áreas de preservação permanente

nível do rio. Essas quantidades anormais de água crescem muito mais rapidamen-te do que quando se tem uma área prote-gida, como está no Código atual.”

Ainda segundo Zarref, a tragédia que até o momento já vitimou mais de 600 pessoas no Rio é um refl exo da não pre-servação das áreas com vegetação.

“O que aconteceu no Rio de Janeiro não é só por causa da degradação do to-po do morro, de fato foi um nível de chu-va muito alto. Porém, com certeza, foi agravado pela devastação, principal-mente nas áreas de preservação perma-nente. A natureza que antes comporta-va até mesmo uma tempestade, hoje não comporta mais.”

Zarref também enfatiza que mesmo com as áreas ocupadas irregularmente, há estudos que mostram que ainda exis-tem soluções para o problema, sem a ne-cessidade de remoção das famílias.

“Em algumas áreas você pode fazer trabalhos de drenagem, galerias plu-viais ou até mesmo recuperação fl ores-tal. Agora existem áreas de instabilida-de geológicas que de fato vai ter que ser construído juntamente com a comuni-dade um reassentamento das famílias. Essas famílias foram empurradas his-toricamente para essas regiões. A maio-ria dessas pessoas são pobres. Então tem que haver uma solução que respeite esse processo histórico.” (Radioagência NP)

Mudança no código fl orestal pode aumentar degradação do topo do morro, como em Nova Friburgo (RJ)

Valter Campanato/ABr

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de 20 a 26 de janeiro de 2011 9internacional

Carmen Rengelde Jerusalém (Palestina/Israel)

“O QUE ESTE GOVERNO está fazendo ruborizaria até McCarthy”, afi rma, fu-rioso e ainda incrédulo, Gideon Levy. O jornalista do Haaretz, um dos mais prestigiosos de Israel, reconhecido por seu compromisso com os direitos hu-manos e seu empenho em contar as his-tórias do lado palestino, defi ne sem ro-deios o que sente diante da decisão do Parlamento israelense (Knesset), que aprovou, no dia 5, a criação de uma co-missão especial para investigar as ativi-dades de cidadãos e grupos locais de es-querda acusados por membros do go-verno de deslegitimar o Estado.

A decisão, aprovada por 41 a 16, permi-tirá a investigação dos recursos emprega-dos por ONGs e particulares para denun-ciar, por meio da internet ou de encon-tros internacionais, as atuações do Exér-cito de Israel nos territórios ocupados. A ideia partiu do ministro das Relações Ex-teriores, o ultranacionalista Avigdor Lie-berman, que insiste na necessidade de saber “quem paga essas pessoas para su-jar a imagem de Israel e, inclusive, se são fi nanciadas por terroristas”.

A votação no parlamento deixou claro que o governo de Benjamin Netanyahu e seus sócios consideram que os esquer-distas são uma “quinta coluna veneno-sa” no coração do país, que “deslegiti-mam o trabalho necessário e correto” das Forças Armadas e que buscam “a desintegração de Israel e o desgaste de sua imagem internacional em favor de inimigos da pátria”.

“Caça às bruxas”Levy, conhecedor do trabalho destas

associações, e que levava meses alertan-do em suas colunas para o risco dessa “caça às bruxas”, sustenta que a esquerda está sendo acusada “em um julgamento onde só há advogados de acusação” e que esquerdista já é hoje “sinônimo de delin-quente”. “Um colono que rouba a terra é um sionista; um direitista extremo e be-licista é um patriota; um rabino que exal-ta ânimos é um líder espiritual; um racis-ta que expulsa estrangeiros é um cidadão leal. Só um esquerdista é um traidor nes-te país”, conclui.

Sua visão é compartilhada pelos por-ta-vozes da maioria das ONGs do país e, inclusive, pelos mais destacados intelec-tuais israelenses, que escreveram um co-municado em que sustentam que apoiar os direitos humanos, opor-se à ocupação na Palestina ou pedir que se indaguem

A esquerda, a “quinta coluna” de Israel

crimes de guerra são “obrigações mo-rais” de todo cidadão que tem amor por sua terra, enquanto que buscar seu silên-cio é “destroçar a democracia e impor um regime fascista, onde não existe a li-berdade de expressão e consciência”. Pa-ra Lieberman, impulsionador do proces-so, tudo é muito simples: “São eles quem estão mentindo sobre nossos soldados e que debilitam nossa imagem de única democracia do Oriente Médio. Não po-demos consentir que um câncer se ani-nhe entre nós”.

Lista negraMas que tipo de pessoas e entidades

entram na lista negra? Já foram postos alguns nomes na mira: B’Tselem, Acri (The Association For Civil Rights in Is-rael) e Breaking the Silence são algumas das ONGs que serão revisadas com lupa. Estão marcadas. Alguns de seus mem-bros ou colaboradores já estão cumprin-do pena por suas atividades pacifi stas.

Levy lembra vários deles: El Nuri-Ok-bi, beduíno, lutador pelos direitos de seu povo, preso porque faltava um documen-to de seu negócio, e ao qual o juiz im-pôs uma sentença maior “por sua mili-tância progressista”; Mossi Raz, ex-par-lamentar, detido em uma calçada quan-do olhava (sequer participava) uma ma-nifestação, espancado, algemado e leva-do à cadeia. Jonathan Pollak, da orga-nização Anarquistas contra o Muro, na prisão por andar lentamente de bicicle-ta durante um protesto em Tel Aviv con-tra o bloqueio à Gaza.

“Esse é o exemplo do dissidente peri-goso, um garoto de esquerda, sim, que passeia de bicicleta sem incomodar nin-guém e em silêncio. Neste ritmo, a pri-são estará cheia de presos de consciên-cia como ele. Teremos muitos Liu Xiao-bo”, avisa Uri Avnery, jornalista, escri-tor, pacifi sta e deputado por dez anos, a consciência pura dos progressistas de Israel. Ele desmente que entidades como a Acri, com décadas de trabalho “documentado e sério”, sejam mario-netes manejadas por interesses inter-nacionais ou países inimigos de Israel. Ou que mintam deliberadamente, como sustenta Lieberman.

CampanhaO grave, na visão de Yael Toledano, so-

cióloga radicada em Jerusalém, é que en-tre os cidadãos de Israel está se arraigan-do a ideia de que “a esquerda é o verda-deiro inimigo do povo”. É um proces-so paulatino, graças a pequenos comen-tários, constantes, que a desacreditam. “Uma análise detalhada dos discursos dá conta desta perseguição: fala-se de ‘ex-trema esquerda’, radicais e contestado-res’, ‘traidores’, ‘incendiários’, ‘provoca-dores’. Isso confunde”, explica.

Ela sustenta, ainda, que o governo trabalha para não publicitar casos que “constatem” a realidade das versões nar-radas por essas ONGs, seja a tortura de um soldado contra um palestino, seja a invasão de um terreno por um colo-no. “Por exemplo, sai em todos os meios quando ativistas que denunciam os dis-paros contra uma criança cisjordana vão a julgamento por supostamente menti-rem sobre as circunstâncias do ataque. No entanto, não se mostram os milita-res que são submetidos a julgamento pe-lo mesmo caso. A imagem que fi ca é de algumas pessoas que geram desconfi an-ça e descrédito contra uma instituição super-reverenciada, como as Forças Ar-madas de Israel.”

Jessica Montell, diretora do B’Tselem, destaca que passará pelo processo “com o orgulho de quem sabe que a esquerda é o único grupo que continua conservando a moral neste país. Não sou um inimigo interno de minha nação, mas sim uma ci-dadã que luta contra a injustiça”.

Processo travadoEla não teme a comissão do Knesset,

porque já está há meses aguentando a perseguição. O que a desanima é que es-sa “demonização” oculte os primeiros passos “fi rmes” rumo ao “compromisso com a verdade e os direitos humanos” que o Exército estava dando. A saber: as Forças Armadas já estão investigando denúncias do B’Tselem sobre maus-tra-tos a presos, mortes de manifestantes em protestos contra o muro da Cisjordânia ou delitos de guerra durante os bombar-deios de Gaza em janeiro de 2009.

Se estavam sendo tecidas algumas co-laborações, por que isso foi rompido de forma tão incisiva? Ilan Gehry, colabora-dor da Jewish Voice for Peace, tem uma explicação: para contentar os sócios de Netanyahu (ultranacionalistas e ultra-ortodoxos) e para acalmar certo setor do Exército depois da publicação de cente-nas de nomes de soldados que partici-param na operação Chumbo Fundido [o ataque à Gaza] e que podiam ser acusa-dos de crimes contra a humanidade.

O NGO Monitor e o movimento estu-dantil Im Tirtzu, sionistas de centro-di-reita, têm-se encarregado de denunciar as associações progressistas, insistindo em que o B’Tselem e outras 15 organi-zações israelenses pressionaram o Con-selho de Direitos Humanos da ONU para formar a Comissão Goldstone, que inves-tigou a operação Chumbo Fundido, com a “clara intenção de criminalizar Israel e limpar os crimes de guerra do Hamas contra o Estado judeu. Recebem dinhei-

ro estrangeiro para nos pintar de atrasa-dos, violentos e racistas. Isso é mentira. A esquerda tenta impor seus valores ra-dicais e, por isso, temos direito de saber quem os fi nancia e quem impulsiona es-sa campanha de ódio contra Israel”, fala Ronen Shoval, fundador do Im Tirtzu.

Revés do governoNo entanto, o assessor jurídico do go-

verno, Yehuda Wainstein, negou-se a abrir uma investigação de ofício con-tra estes grupos, como pediu-lhe Lie-berman, por falta de provas que susten-tassem qualquer acusação, como lembra a Efe. Além disso, a Promotoria-Geral aconselhou, em agosto, que a comissão de investigação parlamentar não fosse adiante. Mesmo assim, 16 entidades as-sinaram um documento em que afi rma-vam: “Adiante, interroguem. Não temos nada a esconder”.

Shoval se esquiva desses preceden-tes e insiste em que de “grande parte” da esquerda vem “mentiras e hipocri-sia”. Ele dá dois exemplos que afetam o B’Tselem. O primeiro, uma denúncia so-bre algumas ovelhas de um pastor pa-lestino queimadas por colonos. Segun-do ele, isso nunca ocorreu: o pastor teria queimado alguns arbustos, provocou-se um incêndio e os animais morreram. De-pois, o pastor teria contado outra história aos voluntários, que a difundiram. O se-gundo é uma denúncia de colonos jogan-do pedras em palestinos, que tem um ví-deo como prova. “Faltava a primeira par-te, na qual se vê que são os árabes os que começam a briga. Isso é seriedade e vera-cidade?”, pergunta. “Denunciaram esses casos e eram uma fraude.”

PretextoJessica Montell se defende: erros pon-

tuais existiram, reconhece, mas des-de 1989 são “infi nitamente maiores os acertos, os casos revelados reais e san-guinolentos”. “Não me orgulho das fa-lhas, elas me levam a ser mais precisa e pedir um esforço extra a nossos voluntá-rios e investigadores. Mas que não usem essas desculpas para nos silenciar. Ten-tam obstaculizar nosso trabalho, mas te-mos o apoio de governos de meio mun-do por nossa seriedade no trabalho. Não nos pararão.”

A comissão ainda não está criada, as-sim que, nestes dias, o debate está na im-prensa e nas ruas, com manifestações contra a medida do governo que, na ver-dade, não chegam a contagiar mais do que os afetados e não atraem o grosso da população israelense.

Antes de que esse grupo de investiga-ção se constitua, deve-se defi nir quem o comporá e de quem irá se ocupar. Parece claro que um membro do partido de Lie-berman, o Israel Beitenu, ganhará a pre-sidência. E que a frente progressista na Câmara (Hadash, Meretz, Balad etc.) não poderá parar esse julgamento sumaríssi-mo contra a esquerda. No momento, do aeroporto Ben Gurion, de Tel Aviv, não é possível consultar nenhum sítio na inter-net dessas associações. Primeira tesoura-da. (Periodismo Humano)

Tradução: Igor Ojeda

ORIENTE MÉDIO Uma comissão do parlamento israelense investigará os grupos progressistas que denunciam a ação do exército nos territórios palestinos

41 votos a favor e 16 contra foi

o resultado da aprovação, no Parlamento de Israel, da criação de uma comissão para investigar

organizações progressistas

Levy (...) sustenta que a esquerda está sendo acusada “em um julgamento onde só há advogados de acusação” e que esquerdista já é hoje “sinônimo de delinquente”

Nuri-Okbi, beduíno,

lutador pelos direitos

de seu povo, preso

porque faltava um

documento de seu

negócio, e ao qual o juiz

impôs uma sentença

maior “por sua

militância progressista”

Jessica Montell, diretora do B’Tselem, destaca que passará pelo processo “com o orgulho de quem sabe que a esquerda é o único grupo que continua conservando a moral neste país

“Pare a guerra, termine a ocupação!”, diz a faixa do Partido Comunista de Israel, durante manifestação em Tel Aviv

Grupos denunciam o caráter terrorista de Israel são perseguidos pelo Parlamento do país

Edo Medicles

Jill Granberg

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áfricade 20 a 26 de janeiro de 201112

Santiago Alba Rico

EM 1999, DOIS CACHORROS se cruzam na fronteira. Um, argelino, magro, desfa-lecido, manco e roído pelas pulgas, tenta entrar na Tunísia; o outro, tunisiano, lus-troso, bem alimentado, limpo, saudável, tenta, por sua vez, entrar na Argélia.

O tunisiano está perplexo: “por que vo-cê quer entrar no meu país?”, pergunta. O argelino responde: “porque quero co-mer”. E imediatamente acrescenta, ainda mais perplexo que seu companheiro: “o que não entendo é por que você quer en-trar na Argélia”. O tunisiano, então, res-ponde: “porque quero... latir”.

Em 1999, quando se contava essa pia-da nos meios intelectuais, a Tunísia es-tava amordaçada, mas, por outro lado, desfrutava – repetia-se – de uma situa-ção econômica incomparavelmente me-lhor do que o resto do mundo árabe. Com um crescimento médio de 5% du-rante a década passada, o FMI apresen-tava o país como exemplo das vantagens de uma economia liberada das travas protecionistas. Em 2007, o Fórum Eco-nômico Mundial para a África o declara-va “o mais competitivo do continente”, mais do que a África do Sul.

“Bonança”“Kulu shai behi”, tudo vai bem, repe-

tia a propaganda do regime em valas pu-blicitárias, editoriais de imprensa e deba-tes coreográfi cos na televisão. Enquanto o governo vendia até 204 empresas do robusto setor público criado por Habib Bourguiba, o ditador ilustrado e socia-lista, multiplicava-se o número de 4x4 nas ruas, construíam-se na capital Tú-nis bairros inteiros para os negócios e le loisir [lazer], e até 7 milhões de turistas chegavam todos os anos para desfrutar da cada vez mais sofi sticada e sólida in-fraestrutura hoteleira do país.

Em 2001, quando se abriu o primeiro Carrefour, símbolo e anúncio do ingres-so na civilização, alguns podia ter a ilusão de que a Tunísia já era uma província da França. Era um país maravilhoso: a luz mais limpa e bonita do mundo, as melho-res praias, o deserto mais hollywoodiano, as pessoas mais simpáticas.

Não se podia falar nem escrever, é ver-dade, mas, por outro lado, as pessoas en-gordavam e o islamismo retrocedia. A União Europeia (UE) e os EUA, mas tam-bém as agências de viagem e os meios de comunicação, contribuíam para alimen-tar a imagem de um país mais europeu que árabe, mais ocidental que muçulma-no, mais rico que pobre, em transição à felicidade do mercado capitalista.

Não se podia falar nem escrever, é verdade, e também é verdade que a Tunísia ocupava o segundo lugar no ranking mundial da censura informá-tica, mas o esforço do governo merecia uma recompensa: o país organizou uma Copa da África, um Mundial de Hande-bol e, em 2005, uma insólita Cúpula da Informação, durante a qual se escondeu do mundo uma greve de fome de juízes e advogados e a detenção de jornalistas e blogueiros.

Dois pesos...O pouco que alguém tivesse se incomo-

dado em raspar sob essa superfície bem envernizada teria revelado uma reali-dade bem distinta. Ninguém ou quase ninguém o fez. De janeiro a junho daque-le ano, por exemplo, o jornal espanhol El País publicou 618 notícias relacionadas com Cuba, onde não acontecia nada, e 199 sobre a Tunísia, todas sobre o turis-mo ou o Mundial de Handebol; o El Mun-do, nessas mesmas datas, registrou 5.162 entradas sobre Cuba, país onde não acon-tecia nada, e somente 658 sobre a Tuní-sia, quase todas sobre o mundial; e o ABC voltou 400 vezes seu olhar sobre Cuba, país onde não acontecia nada, enquanto só mencionava a Tunísia 99 vezes, 55 de-las sobre o Mundial de Handebol.

Em 10 de março deste mesmo ano, uma rápida busca no Google entregava 750 links sobre a distribuição, por parte do governo cubano, das famosas panelas para arroz, e apenas três (dois da Anistia Internacional) sobre a greve de fome e a tortura de presos na Tunísia.

Mas o certo é que o Carrefour e os hu-mvee [jipes blindados, comumente uti-lizado pelo exército estadunidense] – e a vida noturna em Gammarth [cida-de tunisiana famosa por seus resorts] –

ocultavam não apenas a normal repres-são exercida por Ben Ali desde 1987, ano do golpe palacial ou da Grande Mudan-ça, como também o desaparecimento de uma classe média que havia começado a se formar nos anos 1960 e havia sobrevi-vido à crise do fi m dos anos 1980.

Deterioração econômicaAlgumas poucas pessoas entravam no

Carrefour e outros muitos saíam do país: até um milhão de jovens tunisianos – de uma população de 10 milhões – vivem fora, sobretudo, na França, Itália e Ale-manha. Enquanto uma minoria deixava o francês pelo inglês e desprezava, claro, o dialeto tunisiano, a estrutura educati-va herdada do regime anterior, relativa-mente efi ciente, se degradava de tal mo-do que o último informe Pisa [Programa para Avaliação Estudantil Internacional, da Organização para a Cooperação e De-senvolvimento Econômico (OCDE)] re-legava a Tunísia a um dos últimos dez lu-gares da lista.

Enquanto 20 famílias desfrutavam do ócio nos Alpes ou em Paris, o desempre-go aumentava, até alcançar 18%, 36% entre os mais jovens: entre os diploma-dos, passava de 0,7% em 1984 para 4% em 1997, para disparar a 20% em 2010. No espelho do Carrefour – em meio à publicidade atmosférica que convidava a um consumo inacessível –, os jovens dos banlieu [subúrbios] da capital e das regiões do centro e do sul do país pare-ciam se conformar com poder desfrutar desse refl exo.

Quem se benefi ciava deste crescimen-to benzido pelo FMI e instituições euro-peias? Basicamente uma só família, ex-tensa e tentacular, que os despachos da embaixada estadunidense vazados pelo Wikileaks descrevem como um “clã ma-fi oso”.

Trata-se da família de Leyla Trabel-si, a segunda esposa do ditador, tão do-na do país que muitos se referiam à Tu-nísia (la Tunisie) como La Trabelsie. Ben Ali e sua família política haviam se apo-derado, mediante privatizações opacas, de toda a atividade econômica da nação, convertendo o Estado no instrumento de um capitalismo mafi oso e primitivo ou, melhor, de um feudalismo parasitário do capitalismo internacional.

A lista de setores saqueados pelo clã é inacreditável: sistema bancário, indús-tria, distribuição de automóveis, meios de comunicação, telefonia móvel, trans-portes, companhias aéreas, construção, cadeias de supermercados, ensino priva-do, pesca, bebidas alcoólicas e até o mer-

cado de roupa usada. Não se pode es-tranhar que, durante as revoltas desses dias, tantos comércios, empresas e ban-cos foram assaltados; tem-se falado em “vandalismo”, mas se tratava também de um vandalismo certeiro ou, em qualquer caso, de um vandalismo que, inclusive quando se desencadeava aleatoriamente, inevitavelmente acertava: seja onde for, atinge-se, sem dúvida, uma propriedade dos Trabelsi.

AvisoNesse quadro de repressão e apropria-

ção, seria preciso preparar o ouvido pa-ra escutar o barulho da maré ascendente. Poucos o fi zeram, nem sequer quando, em janeiro de 2008, em Redeyef, perto de Gafsa, nas minas de fosfato, outro in-cidente menor – um protesto contra um ato de nepotismo – pôs toda a população em pé de guerra. Durante meses, as gre-ves se prolongaram. Houve quatro mor-tes, duzentos detidos, julgamentos su-maríssimos com penas pavorosas. En-quanto Redeyef permaneceu sitiada pela polícia, apenas jornalistas e sindicalistas tunisianos tentaram romper o bloqueio policial e informativo.

Na Europa, La Trabelsie continuava sendo bela, tranquila, segura para os ne-gócios e para a geopolítica. Apenas um jornalista italiano, Gabriele del Gran-de, se atreveu a entrar clandestinamen-te no coração dos protestos e recolher in-formações antes de ser detido pela polí-cia e expulso do país. Sua reportagem co-meça assim:

“Sindicalistas detidos e torturados. Manifestantes assassinados pela polícia. Jornalistas encarcerados e uma poten-te máquina de censura para evitar que o protesto se espalhe. Não é um tipo de história sobre o fascismo, mas sim a crô-nica dos últimos dez meses na Tunísia. Uma crônica que não deixa lugar a dú-vidas sobre a natureza do regime de Zi-ne al-Abidine Ben Ali – no governo des-de 1987. Uma crônica que revela o lado obscuro de um país que recebe milhões de turistas todos os anos e do qual esca-pam milhares de emigrantes também to-dos os anos.”

Em um livro posterior, Il mare di me-zzo, o jornalista descreve em detalhes a maquinaria do terror tunisiano, com as prisões secretas nas quais desapareciam não apenas os opositores nacionais co-mo também os emigrantes argelinos, se-questrados no mar pelas patrulhas locais – policiais da Europa – para serem joga-dos, depois, no abismo. Ninguém disse nada. Era muito mais importante sus-tentar o ditador. Ben Ali e as potências ocidentais compartilhavam não apenas interesses econômicos e políticos como também o mesmo desprezo radical pelo povo tunisiano e seus padecimentos.

DespertarMas, em 17 de dezembro do ano pas-

sado, uma faísca iluminou de repente o monstro e revelou, assim como explica o sociólogo Sadri Khiari, que “não há ser-vidão voluntária, e sim somente a espe-ra paciente pelo momento da eclosão”. O gesto de desespero de Mohamed Bouazi-zi, jovem trabalhador de informática re-duzido a vendedor ambulante, pôs em marcha um povo do qual ninguém espe-rava nada, que os outros árabes despre-zavam e que a Europa considerava dócil, covarde e adormecido pelo futebol e pelo Carrefour. Um ciclo lunar depois, em 14 de janeiro deste ano, depois de 100 mor-tos e dezenas de metástases rebeldes em todo o território, a onda rompeu no cen-tro de Túnis e alcançou seu objetivo.

Não se tratava mais de pão, trabalho ou youtube: “Ben Ali, assassino”, “BenAli, fora”. A última ofensiva policial, desmentindo as promessas que o dita-dor havia feito no dia anterior, provocounovamente numerosos mortos e feridos.Mas era muito bonito, muito bonito veresses jovens – dos quais um mês an-tes ninguém esperava nada – voltarem às ruas e reterem as pessoas que fu-giam para animá-las a regressar à ba-talha com as estrofes vibrantes do hino nacional: “namutu namutu wa yahi el-watan” (morreremos, morreremos, pa-ra que viva a pátria). Na última hora datarde, apoiado até o fi nal pela França, o ditador fugia à Arábia Saudita, deixan-do para trás milícias armadas com ins-truções para semear o caos.

O perigo não passou, a luta continua.Mas, agora, há um povo que luta. “O 14de janeiro é nosso 14 de julho”, repe-tem os tunisianos. Talvez seja o de todo mundo árabe. Jamais o povo havia der-rocado um ditador; e esse povo inespe-rado, intruso na lógica das revoluções, essa Tunísia de jasmins e luz de mel,agora de dignidade e combate, é o es-pelho no qual se olham os vizinhos, doMarrocos ao Iêmen, da Argélia ao Egito, irmãos de frustração, infelicidade e ira. Não se devem encontrar as causas, sem-pre dadas, mas sim o minuto. E esse mi-nuto é agora. (Gara)

Santiago Alba Rico é escritor, ensaísta efi lósofo espanhol.

Tradução: Igor Ojeda.

E de repente, a revoluçãoTUNÍSIA Esse povo inesperado, intruso na lógica das revoluções, essa Tunísia de jasmins e luz de mel, agora de dignidade e combate, é o espelho no qual se olham os vizinhos, do Marrocos ao Iêmen, da Argélia ao Egito, irmãos de frustração, infelicidade e ira

“Kulu shai behi”, tudo vai bem, repetia a propaganda do regime em valas publicitárias, editoriais de imprensa e debates coreográfi cos na televisão

Quem se benefi ciava deste crescimento benzido pelo FMI e instituições europeias? Basicamente uma só família, extensa e tentacular (…)

Um ciclo lunar depois (…) depois de 100 mortos e dezenas de metástases

rebeldes em todo o território, a onda rompeu no centro de Túnis e

alcançou seu objetivo

Fotos: Gwenael Piaser

A propaganda do regime repetia que tudo ia bem com o país

Manifestante segura a bandeira tunisiana: “a onda rompeu no centro de Túnis e alcançou seu objetivo