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ISSN 1978-5134 Leandro Konder Sade e Berlusconi A glória do Marquês de Sade deriva de sua capacidade de gerar escândalos. Até que ponto o aristocrata fustigava a burguesia e agitava o Estado na Europa? Pág. 3 João Brant Em nome de Deus? Ligar a televisão no horário nobre e ver um líder religioso utilizando o espaço para pregar e buscar fiéis é algo que parece fora do lugar. E é. Pág. 3 Igor Fuser Novos Egitos virão O panorama internacional apresenta quatro tendências importantes: a queda da influência dos EUA, persistência da crise econômica, carestia e ascenso das mobilizações. Pág. 3 www.brasildefato.com.br Uma visão popular do Brasil e do mundo Circulação Nacional R$ 2,80 São Paulo, de 17 a 23 de fevereiro de 2011 Ano 9 • Número 416 Egito Os novos desafi os da revolução Hosni Mubarak, há 30 anos no cargo de presidente do Egito, foi derrubado pelo povo. Um primeiro passo. Agora, a nova etapa da revolução coloca como horizonte a ampliação de conquistas econômicas e sociais e a consolidação da democracia. No caminho do povo, contudo, permanecem fortes os setores conservadores, que apostam na desmobilização. Págs. 2 e 9 Fórum Social Mundial As novas lutas globais Pág. 10 Corte de R$ 50 bi A tesoura afi ada do governo Dilma Pág. 6 Reprodução

Edição 416 - de 17 a 23 de fevereiro de 2011

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Uma visão popular do Brasil e do mundo

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Page 1: Edição 416 - de 17 a 23 de fevereiro de 2011

ISSN 1978-5134

Leandro Konder

Sade e BerlusconiA glória do Marquês de Sade deriva de sua capacidade de gerar escândalos. Até que ponto o aristocrata fustigava a burguesia e agitava o Estado na Europa? Pág. 3

João Brant

Em nome de Deus?Ligar a televisão no horário nobre e ver um líder religioso utilizando o espaço para pregar e buscar fi éis é algo que parece fora do lugar. E é. Pág. 3

Igor Fuser

Novos Egitos virãoO panorama internacional apresenta quatro tendências importantes: a queda da infl uência dos EUA, persistência da crise econômica, carestia e ascenso das mobilizações. Pág. 3

www.brasildefato.com.br

Uma visão popular do Brasil e do mundoCirculação Nacional R$ 2,80

São Paulo, de 17 a 23 de fevereiro de 2011Ano 9 • Número 416

Egito

Os novos desafi osda revoluçãoHosni Mubarak, há 30 anos no cargo de presidente do Egito, foi derrubado pelo povo. Um primeiro passo. Agora, a nova etapa da revolução coloca como horizonte a ampliação de conquistas econômicas e sociais e a consolidação da democracia. No caminho do povo, contudo, permanecem fortes os setores conservadores, que apostam na desmobilização. Págs. 2 e 9

Fórum Social Mundial

As novas lutas globaisPág. 10

Corte de R$ 50 bi

A tesoura afi ada do governo Dilma Pág. 6

Reprodução

Page 2: Edição 416 - de 17 a 23 de fevereiro de 2011

As revoluções reaparecem no século 21

É PROVÁVEL QUE a luta obstina-da do governo Dilma pela erradica-ção da pobreza extrema e a criação de oportunidades para todos se veja difi cultada tanto pela política mo-netária do próprio governo, quan-to pela demora na adoção de medi-das que acelerem a produção de ali-mentos e de outros bens de consu-mo corrente.

As medidas de contenção da in-fl ação, através da elevação dos juros e de forte contingenciamento fi scal, podem ser ótimas se a política geral não se incomodar com a compres-são do consumo e a continuidade da miséria. No entanto, superar a miséria signifi ca, em termos bem precisos, elevar o poder de compra ou de consumo de alguns milhões de brasileiros desprovidos dessa ca-pacidade. Nesse contexto, a susten-tação de um longo ciclo de cresci-mento pode ser, ao mesmo tempo, causa e efeito daquela superação.

Por um lado, como disse a presi-denta, é com crescimento que serão gerados os empregos e serão ven-cidas a desigualdade de renda e de desenvolvimento regional. Por ou-tro lado, a geração de empregos, as-sociada a programas que vençam a desigualdade de renda e de desen-volvimento regional, gera uma no-va demanda que só pode ser aten-dida com mais crescimento e mais oferta.

Temos, desse modo, a necessida-de de manter uma estabilidade eco-nômica que atenda àquele cresci-mento. Todos sabemos que a in-fl ação desorganiza a economia e degrada a renda do trabalhador e realmente não devemos permitir que, ainda como disse a presiden-ta Dilma, essa praga volte a corro-er nosso tecido econômico e a casti-gar as famílias mais pobres. No en-tanto, também precisamos admitir que a contenção da infl ação atra-vés da política de juros altos é um freio tanto ao crescimento, quanto ao aumento do poder de compra e do consumo das camadas de baixa renda, em especial se permitir que os capitais de curto prazo superem os investimentos diretos.

O governo Lula só conseguiu im-plantar um processo de crescimen-to na contramão da política de juros altos porque se benefi ciou se uma situação internacional extrema-mente favorável. O problema do go-verno Dilma, nessa questão, consis-te em que as condições internacio-nais se tornaram mais complexas e, em muitos aspectos, desfavoráveis. Quase certamente não será possí-vel combinar os dois aspectos con-trários: juros altos e crescimento. O que pode fazer naufragar a política de completa erradicação da misé-ria, desejada pela presidenta.

Nessas condições, o combate à in-fl ação deve ser travado pelo lado do aumento da oferta, e de uma oferta que atenda justamente ao acesso de camadas que estavam privadas de alimentos e bens de consumo cor-rente. A questão chave da estabili-dade econômica reside, assim, no

aumento da produção de alimen-tos e de bens de consumo corren-te, aumento que está condiciona-do tanto pela super-especialização do agronegócio, quanto pela redu-zida capacidade da economia agrí-cola familiar e pela pouca agilidade de setores empresariais em investir em setores que consideram de ren-tabilidade duvidosa.

Embora os nós dos juros altos e do contingenciamento fi scal este-jam apertando o consumo e, em certa medida, possam conter a in-fl ação por algum tempo, isso pode ter como subproduto uma redução no ritmo de crescimento, em espe-cial nos setores que se tornaram vilões infl acionários, como os ali-mentos e vários bens de consumo corrente. Se isso ocorrer, e não fo-rem adotadas medidas para elevar a produção nesses setores, pode-remos ingressar num processo de confronto entre a necessidade de crescer para combater a miséria, e a necessidade de conter a infl ação, causada por oferta insufi ciente.

Uma das dúvidas diante des-se quadro é saber até que pon-to o governo está disposto a inter-vir com fi rmeza para elevar a pro-dução de alimentos e estimular os investimentos na fabricação daque-les bens de alta demanda pela po-pulação emergente. Em outras pa-lavras, até que ponto já está agindo para desatar os nós que já começam a sufocar o crescimento.

Wladimir Pomar é escritor e analista político.

opinião Wladimir Pomar

Os nós estão apertando

crônica Marcelo Barros

A VELHA TOUPEIRA segue ativa e as revoluções reaparecem no século 21, novamente causando surpresas pela energia que liberam e pela força do exemplo que não respeita frontei-ra. Retomam como um processo, on-de cada vitória amplia os horizontes e coloca problemas mais complexos aos seus protagonistas.

É cedo para prever os desdobra-mentos dos processos revolucioná-rios desencadeados na Tunísia e no Egito, mas algumas conclusões já po-dem ser feitas. A primeira é a dimen-são do impacto causado pela multi-dão determinada a derrubar um go-verno, despertando a solidariedade mundial, avançando aceleradamente na auto-organização independente, produzindo diariamente novas lide-ranças. Só o processo das experiên-cias históricas dos próximos meses dirá quais perspectivas se abrirão. Mas já não restam dúvidas: estamos diante de revoluções populares.

Situação revolucionáriaOs clássicos ensinam que uma si-

tuação revolucionária se constitui quando os de cima não podem do-minar como antes e os de baixo já não querem ser dominados como antes. Foi o que assistimos nos úl-timos dias. A multidão reunida na praça Tahrir (ou Libertação) no cen-tro do Cairo fortalecia sua autoesti-ma a cada dia. As ordens policiais pa-ra acabar com a ocupação da praça eram impotentes. O decreto de toque de recolher apenas ampliou a mobi-lização. Em pouco tempo as manifes-tações se espalharam nas grandes ci-dades como Alexandria, Suez, Port Said, se estendendo a todos os can-tos do país. Nos últimos dias que an-tecederam a queda de Mubarak, o movimento operário entrou em cena e a explosão de greves alterou a cor-

relação de forças. Trabalhadores do canal de Suez, da saúde, dos trans-portes e telecomunicações do Cai-ro entraram em greve, paralisando a nação. Toda essa força social acarre-tou divisões nas fi leiras do Exército. A confraternização popular foi deci-siva para soldados rasos e a ofi ciali-dade média descumprirem ordens de repressão. Como narrou Robert Fisk: “Os soldados que conduzem os tanques, em uniforme de comba-te, sorridentes e às vezes aplaudindo os passantes não fi zeram qualquer esforço para apagar das laterais dos tanques os grafi tes ali pintados com tinta spray. ‘Fora Mubarak! Caia fo-ra, Mubarak!’ e ‘Mubarak, seu gover-no acabou’ aparecem grafi tados em praticamente todos os tanques que se veem pelas ruas do Cairo”.

Porém, existe ainda um terceiro elemento para caracterizar uma si-tuação revolucionária: o súbito agra-vamento das condições de vida das massas. O Egito encerrou 2010 com desemprego a 20%. Em 2007, o mes-mo número era de 10,1%. Já a infl a-ção chegou a 11,9 % em 2010, en-quanto em 2007 estava em 6,5%. Mais uma vez, foi porque se senti-ram ameaçadas ao verem suas con-dições materiais de existência se de-teriorarem ainda mais que as gran-des multidões se levantaram no Egi-to. Não se trata do agravamento con-tínuo das desigualdades sociais, mas de súbitas mudanças que abrem as condições para a disposição revo-lucionária. Nos últimos anos, o de-sespero social na região é tamanho que se tornou quase habitual a auto-imolação de jovens em protesto con-tra as condições de existência. Basta lembrar que o estopim da atual on-da de lutas foi o autossacrifício, pe-lo fogo, em 17 de dezembro de 2010, do jovem tunisiano Mohamed Bou-

azizi, informático desempregado, de 26 anos, após ser esbofeteado e hu-milhado pela polícia, que confi scou suas mercadorias de camelô.

Bandeiras populares avançamConfi rmando as revoluções do sé-

culo 20, o processo desencadea-do na Tunísia e no Egito ganha for-ça em torno de bandeiras democrá-ticas e populares que se desdobram em reivindicações salariais e econô-micas. Derrubado o governo Mu-barak, o imperialismo e a burgue-sia egípcia pressionam pela desmo-bilização popular. E o maior desafi o se coloca. Haverá organização políti-ca capaz de apontar uma perspecti-va de poder?

Embora venha perdendo espaço na juventude, a principal força so-cial organizada no Egito segue sen-do a Irmandade Muçulmana. É cer-to que um sindicalismo classista e in-dependente se conformou nas gran-

des mobilizações contra o apoio, em 2000, do governo egípcio a Israel, e à invasão do Iraque, em 2003; nas gre-ves de trabalhadores no Delta do Ni-lo, após dezembro de 2006; nas cha-madas mini-intifadas, em Borollos e Muhalla, em 2008. Contudo, ainda é cedo para analisar a força dessas or-ganizações.

Não nos esqueçamos da Revolução Iraniana. Ainda que a unidade se dê contra o regime ditatorial e o impe-rialismo que o sustenta, o antagonis-mo entre a esquerda e os grupos is-lâmicos fundamentalistas irá se colo-car ao longo do processo. Por maior que seja a consciência social e o sen-timento anti-imperialista adquiridos no processo, são inevitáveis os con-frontos entre os projetos do integra-lismo islâmico e das organizações de esquerda. A história recente tem de-monstrado que a ascensão do isla-mismo fundamentalista acarreta o desaparecimento da esquerda secu-lar nos países muçulmanos.

O papel dos militares no EgitoAs forças armadas têm sido a for-

ça dominante no Egito desde a queda da Monarquia em 1952. A infl uência dos EUA foi decisiva nas últimas dé-cadas. Ocupando o 10º posto entre as forças militares do mundo, possuem um contingente de 468 mil milita-res e um orçamento de 3,4% do PIB. Receberam nas últimas três décadas cerca de 30 bilhões de dólares em ajuda dos EUA, além de enviar seus ofi ciais para estudar em colégios mi-litares ianques. Documentos do De-partamento de Estado de 2009, di-vulgados pela WikiLeaks, descrevem um encontro entre um general dos EUA e o Alto Comando egípcio, re-velando o grau de cumplicidade: “O presidente Mubarak e seus líderes militares veem o nosso programa de

assistência militar como a pedra an-gular da nossa relação e consideram os bilhões de dólares como compen-sação intocável para fazer e manter a paz com Israel e em troca os milita-res dos EUA gozam de prioridade de acesso ao Canal de Suez e ao espaço aéreo egípcio”.

O Exército egípcio controla diver-sas empresas. Segundo algumas es-timativas, os militares chegam a con-trolar por volta de 30% da economia do país.

Todo este cenário demonstra que os comando militares não possibili-tarão nenhuma mudança estrutural e cerrarão fi leiras para sustentar a relação com os EUA e Israel.

A revolta popular derrubou Muba-rak, mas o aparato de Estado se man-tém intocável e aposta todas as suas fi chas em desmobilizar o povo.

O imperialismo derrotadoA derrubada revolucionária de

Mubarak é uma contundente der-rota histórica dos EUA e de Israel na região, mesmo que a Junta Mi-litar egípcia proclame a disposição de manter os repudiados tratados de paz com Israel e assegurar-lhe o for-necimento de gás (o Egito é respon-sável pelo fornecimento de quase metade do gás consumido em Isra-el). Recordemos que durante a guer-ra do Golfo (1990-1991), o Egito se posicionou ao lado dos EUA, contra o Iraque. Em 1993, participou da me-diação do acordo entre Israel e a Or-ganização de Libertação da Palestina (OLP), assinado em 1993 e criticado por grupos palestinos como o Hamas e países como a Síria.

Ainda é cedo para prever os desdo-bramentos das revoluções na Tunísia e no Egito, mas o século 21 mostra sua força e desmente os céticos que apostavam no fi m das revoluções.

de 17 a 23 de fevereiro de 20112editorial

Gama

Um outro mundo é possívelMILHARES DE PESSOAS de todo o mundo voltam de Dakar, no Senegal, onde de 6 a 11 de fevereiro, se encerrou o 9º Fórum Social Mundial. Des-de os anos de 1970, a cada ano, os homens mais ricos do mundo se reúnem em Davos, na Suíça, para um Fórum Econômico Mundial. Há dez anos, educadores e militantes de direitos humanos tiveram a ideia de promo-ver um encontro diferente. Para mostrar que o dinheiro é importante, mas não é tudo, propuseram um encontro no qual as pessoas se encontrassem como cidadãs do mundo e para pensar a possibilidade de um mundo mais justo e de paz. Os grandes meios de comunicação, ligados aos proprietá-rios do capital, ridicularizaram de todos os modos.

Os promotores do 1º FSM, ocorrido em Porto Alegre (2001), pensaram em reunir umas cem pessoas. A surpresa foi que, espontaneamente, che-garam mais de três mil. No 2º Fórum, já eram mais de 20 mil e nos fóruns seguintes, o número ultrapassou cem mil. O regulamento do fórum o man-tém como espaço aberto à participação de toda a humanidade. Não tem vínculos religiosos, nem político-partidários. Nos fóruns, nenhuma auto-ridade política é maior do que qualquer outro cidadão. Nele participam ín-dios, comunidades afro-descendentes, lavradores e pessoas sem teto, dis-cutindo de igual para igual com doutores de universidade e políticos pro-fi ssionais. Desde o 4º FSM, ocorrido em Bangladesh, na Índia, centenas de dalits, considerados impuros por muitos de seu país, têm o direito de falar e propor outro modo de organizar a sociedade. Em 2009, o fórum acon-teceu em Belém e assumiu a preocupação maior da defesa da Amazônia e da solidariedade aos povos indígenas. Neste ano, o FSM se reuniu pela se-gunda vez na África, desta vez no Senegal, um dos países mais pobres do continente.

Se comparamos o mundo de 2001, quando ocorreu o primeiro fórum social e a realidade atual, constatamos mudanças imensas e nem sempre para melhor. Ao mesmo tempo que o sistema econômico capitalista vive uma crise estrutural imensa que já dura mais de dois anos, a maior parte dos governos não busca alternativas. Simplesmente investem somas de di-nheiro para salvar bancos e concentrar mais ainda as grandes transnacio-nais, enquanto exigem dos pobres sacrifícios maiores e mais insegurança social. Em países antes equilibrados, as taxas de desemprego sobem às al-turas e o número de pobres aumenta assustadoramente. Ao mesmo tem-po, além das vítimas asiladas de regimes políticos opressores, agora se multiplicam também as vítimas de catástrofes naturais, cada vez mais fre-quentes e descontroladas.

Para a sociedade dominante, ganhar dinheiro continua o objetivo funda-mental, mesmo com métodos que, a médio prazo, incidem contra a própria vida e provocam mais gastos. Afi nal, quem vai devolver aos desabrigados do Congo, da Austrália, do Brasil e tantas outras partes do mundo o que es-tas pessoas perderam, em termos humanos, emocionais e materiais?

O FSM de Dakar retomou estas questões, procurou formas novas de apoiar os movimentos sociais organizados e fortalecer o processo de des-colonização de países africanos e latino-americanos. Certamente, o suces-so deste fórum repercutirá em fóruns locais e temáticos que se espalha-rão pelo mundo todo. Apesar de todas as difi culdades e desafi os, como di-zia Dom Hélder Câmara: “Há mil razões para acreditar no futuro e apos-tar no melhor”.

Marcelo Barros é monge beneditino e escritor. Tem 37 livros publicados,entre os quais O Amor fecunda o Universo (Ecologia e Espiritualidade)

com coautoria de Frei Betto. Ed Agir, 2009.

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Cristiano Navarro, Igor Ojeda, Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Daniel Cassol, Eduardo Sales de Lima, Leandro Uchoas, Mayrá Lima, Patricia Benvenuti, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, Vinicius Mansur • Assistente de Redação: Michelle Amaral • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio

Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte – Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Joana Tavares• Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos –CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – [email protected] • Gráfi ca: FolhaGráfi ca • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Anselmo E. Ruoso Jr., Aurelio Fernandes, Delci Maria Fran-zen, Dora Martins, Frederico Santana Rick, José Antônio Moroni, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, Ivan Pinheiro, Ivo Lesbaupin, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Nalu Faria,Neuri Rosseto, Otávio Gadiani Ferrarini, Pedro Ivo Batista, René Vicente dos Santos, Ricardo Gebrim, Sávio Bones, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou [email protected] • Para anunciar: (11) 2131-0800

Ainda é cedo para prever os desdobramentos das revoluções na Tunísia e no Egito, mas o século 21 mostra sua força

“Há mil razões para acreditar no futuro e apostar no melhor”

Até que ponto [o governo] já está agindo para desatar os nós que já começam a sufocar o crescimento

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de 17 a 23 de fevereiro de 2011

co ponto comum na reação à crise é a retomada da ofensiva neoliberal contra a classe trabalhadora e os benefícios sociais.

3 – Alta dos preços dos alimentos e da energia

As causas são a especulação fi nanceira, o aumen-to do consumo nos países “emergentes” e as catástro-fes climáticas ligadas ao aquecimento global. Como re-sultado, agravam-se as condições de vida em boa par-te do planeta, criando um terreno propício a rebeliões populares como no norte da África. Ao mesmo tempo, intensifi ca-se a compra de terras em países periféricos por empresas estrangeiras. O preço do petróleo tam-bém está aumentando, o que tornará mais difícil o fi m da recessão.

4 – Ascenso das mobilizações popularesAs raízes da revolta árabe não se limitam a proble-

mas regionais como autoritarismo e corrupção, mas envolvem os efeitos sociais perversos da globalização capitalista. Trata-se, pois, de um movimento que se ar-ticula com a onda de protestos contra as políticas ne-oliberais em boa parte do mundo, sobretudo na Euro-pa. Vivemos um novo ciclo de lutas sociais em escala internacional. Novas “surpresas” devem surgir, em ou-tros pontos do planeta.

Novos Egitos virãoO PANORAMA INTERNACIONAL apresenta ao me-nos quatro tendências importantes:

1 – A queda da infl uência dos EUA A derrubada das ditaduras na Tunísia e no Egito re-

presenta um novo marco no declínio da capacidade do imperialismo estadunidense em defi nir as questões mundiais conforme a sua vontade. A derrota se mos-tra mais grave por ter como cenário o Oriente Médio, região estratégica onde se situam dois terços das re-servas petrolíferas. Os EUA tratam de reduzir o pre-juízo manobrando para que os novos governantes da-queles dois países permaneçam sob o controle de Wa-shington. O fato é que os EUA terão mais difi culdade em impor suas preferências. Lideranças novas e velhas buscarão maior autonomia em política externa a fi m de diluir a imagem de submissão aos EUA. O perdedor mais direto é Israel, que vê sua margem de ação dras-ticamente diminuída.

2 – Persistência da crise econômica mundial

A recuperação nos EUA é modesta e insufi ciente para compensar os empregos perdidos. Na Europa e no Japão, o quadro é ainda mais sombrio. A falta de consenso entre as elites dirigentes globais estimula a guerra cambial entre as potências econômicas. O úni-

instantâneo

Igor Fuser

já há um consenso sobre a necessidade de regras claras para que espaços públicos não sejam tomados por gru-pos específi cos.

No caso das religiões, deve-se perguntar, também, co-mo garantir às distintas manifestações de fé o mesmo direito, já que não chegam a 2% as denominações reli-giosas presentes no Brasil que têm espaço em meios de comunicação. Deve-se também impedir que esses espa-ços sejam usados para ataques a outras religiões, como os que sofrem as denominações de matriz africana.

E há questões estruturais também fundamentais. De-ve-se permitir canais inteiramente controlados por gru-pos religiosos, o que é proibido na maioria das demo-cracias? Deve-se permitir o arrendamento de espaço – ou mesmo de canais inteiros – no rádio e na TV? Se-rá que essa prática não confi gura uma verdadeira grila-gem eletrônica, pela apropriação privada de um espa-ço público? Sejam quais forem as respostas, o nome de Deus não pode ser usado como álibi para evitar esse de-bate no Brasil.

Em nome de DeusLIGAR A TELEVISÃO no horário nobre e ver um líder religioso utilizando o espaço para pregar e buscar fi éis é algo que parece fora do lugar. E é. Não por ser uma ma-nifestação religiosa, algo que é parte da cultura brasilei-ra, mas por tornar evidente que um espaço público está sendo utilizado para fi ns privados.

O mundo todo discute como equilibrar os direitos à li-berdade de expressão e à liberdade de crença, previstos em diversas Constituições, inclusive na brasileira. Há várias questões aí envolvidas. Primeiramente, manifes-tações religiosas devem ou não ser permitidas em veícu-los de comunicação que são concessões públicas, como rádio e TV? Se sim, deve ser permitido também o prose-litismo religioso, ou seja, a prática de tentar ‘vender seu peixe’ e conquistar fi éis?

Na busca de respostas, é preciso pensar como esse ti-po de manifestação ajuda ou afeta a liberdade de crença – que é maior do que a liberdade religiosa e inclui até o direito de não se ter religião. E lembrar que, para outras manifestações similares, como o proselitismo político,

João Brant

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Leandro Konder - IdeologiaQuando me deparo com pessoas como o Kon-der, José Paulo Netto, Marilda Iamamoto, sa-bendo que eles estão entre nós produzindo ain-da mais conhecimento, é revoltante saber que tais conhecimentos são inacessíveis a muitos, não pela impossibilidade que a questão social dá conta, que é latente e deve ser combatida, mas pela dura cabeça da grande maioria.

Marcos Maciel, por correio eletrônico

Leandro Konder – Ideologia 2Para mim está perfeita a ênfase no valor da ide-ologia. O que infelizmente já não posso concor-dar é que a esquerda tenha a solução. Falhou em suas tentativas de melhorar a vida dos po-bres, falhou em proteger os desvalidos. Fui a Cuba, queria ver a Ilha, o sonho feito realidade, e quem for (desde que não como convidado do governo) verá que aí se implantou uma burgue-sia alimentada por salários do governo, forma-da para quem trabalha diretamente para o go-verno. Os pobres continuam na mesma situação ou até pior, porque lhes prometeram melhoras

que não vieram, nem comida se tem. A falta de empregos e o impedimento de que tenham seus negócios funcionando produziram uma falta de recursos materiais que vem assolando o povo cubano. Sábia sua referência de que sem auto-crítica não é possível aprofundar. E a autocríti-ca que vejo necessária é que vamos ter que criar uma nova ideologia para solucionar as questões políticas, econômicas e sociais da humanidade. As que temos não funcionaram.

Zilney, por correio eletrônico

EgitoO mundo árabe vai aos poucos conseguindo li-vrar-se de todas as malditas “heranças” impos-tas pelo imperialismo. “Heranças” que vêm sendo carregadas como estigmas desde o tem-po em que eram colônias das potências euro-peias. Agora o povo árabe diz : “basta!” E escre-vem a sua história com muita luta! Os líderes políticos apoiados pelas grandes potências, que visam manter os países árabes no mais com-pleto estado de atraso, estão sendo derrubados um por um. Um novo “amanhecer” voltado pa-

ra a melhoria das condições de vida aguarda o povo árabe! Parabéns ao povo da Tunísia e ao povo do Egito pelo feito heroico!

Bruno Santana, por correio eletrônico

Olga BenárioObrigado, Profª. Anita Leocádia pelo emocio-nante depoimento sobre sua mãe, sobre seu pai, sobre a luta revolucionária e o exemplo que tudo isso se constitui para todos nós e não só para a juventude. Olga e Prestes são raízes profundas da alma revolucionária de nosso po-vo e da nossa embrionária revolução. Obrigado por não ter esquecido essa história e essa ideo-logia que anima tua corrente sanguínea e seus neurônios, óculos de tua existência. Forte abra-ço com alegria e orgulho.

Dom Orvandil, Goiânia (GO), por correio eletrônico

Olga Benário 2Anita, assim como afi rma em seu artigo, tenho certeza que a luta da sua mãe, Olga Benário, e de milhões de jovens, como meu pai, o guerri-

lheiro do Araguaia Glênio Sá, que dedicaram suas vidas à luta em defesa de um mundo me-lhor, mais justo e humano, não foi em vão. Frutifi cará nas mais esplêndidas das colhei-tas, a da consciência de cada um da necessida-de de continuar essa luta. O seu relato se apre-senta como uma forma de resgate da dignida-de humana ferida durante o período de exce-ção, quando o Brasil se encontrava no auge de um dos períodos mais difíceis para o exercício da democracia e para a proteção dos direitos fundamentais. Diversos cidadãs e cidadãos brasileiros sofriam na própria pele a opres-são política e o desrespeito aos mínimos pa-drões da dignidade humana. O regime do me-do que sustentava o passado não pôde servir de desculpa no presente democrático e preci-sa ser conhecido...

Jana Sá, por correio eletrônico

Cartas devem ser enviadas para o endereço da redação ou através do correio eletrônico [email protected]

O MARQUÊS DE SADE pertencia a uma das famílias mais ricas e poderosas da França. Quando tinha apenas 15 ou 16 anos, foi levado a comparecer a uma execução penal.

As execuções penais, naquela época, eram muito duras. Essa a que o jovem Sade fora levado era apresentada como a justíssima morte de alguém que cometera um crime abomi-nável: tentara matar o rei. O assassino foi punido através de um ritual que havia demorado cerca de quatro horas, alter-nando bastonadas de ferro, queimaduras e óleo fervente.

O Marquês de Sade fi cou marcado pelo evento. Mais tarde, alugou um quarto de subúrbio. Uma das

prostitutas pagas para a “farra” saltou pela janela e de-nunciou o evento à polícia. O organizador da bacanal era o Marquês de Sade, que acabou detido. Foi sua primeira pri-são. Sade se declarou arrependido e deu algum dinheiro para os agentes policiais.

Posteriormente, o Marquês aprendeu que assim proce-diam os cavaleiros das classes privilegiadas. Em sua segun-da prisão, ele deixou de falar de arrependimento e passou a se aproveitar da reputação que, rapidamente, adquirira. Sa-de dizia que, se alguém matasse um gato em qualquer parte da França, todos o apontariam como responsável.

Qualquer que fosse a sua intenção, o Marquês afi nal orga-nizou um poderoso sistema de exploração da prostituição. Com muito realismo, ele fez funcionar na área da sacana-gem critérios inerentes ao capitalismo.

Foi encarcerado em diversas ocasiões. Teve a habilidade de estimular aqueles que pensavam que a sua postura no fi -nal do século 18 e no início do século 19 era hostil ao modo de produção burguês.

Um pouco depois, durante a sua viagem, ele alimentou em setores da opinião pública a imagem de um aventureiro que combatia os critérios e os interesses da burguesia. Foi preso e mantido prisioneiro na fortaleza da Bastilha até a véspera da revolução francesa.

Após a revolução francesa, na época de Napoleão, foi in-ternado em diversos hospícios. Num deles, segundo se apu-rou, negociou com o diretor do manicômio a apresentação de uma peça, que, no entanto, não chegou a ser encenada, pois foi considerada “subversiva” e provocara, durante os ensaios, a agitação dos internos.

As tentativas de Sade voltadas para algum tipo de or-ganização política dos internos fracassaram. O escritor ti-nha talento, conforme reconheciam os espíritos mais críti-cos da classe dominante. O público consumidor, entretan-to, não conferia um signifi cado maior ao encontro com o autor desequilibrado. A entrada do sexo de forma explíci-ta no mundo da cultura precisava duma certa universali-dade, que o Marquês de Sade não tinha ânimo ou compe-tência para alcançar.

A massa dos habitantes dos hospícios se movia, de mo-do geral, a partir de um fascínio, porém, ao mesmo tem-po, de uma repulsa pelo sexo. Uma abordagem dos textos(inúmeros!) promovida pelo Marquês era inevitavelmen-te ambígua.

A perspectiva crítica da esquerda percebeu que, se algum autor pretendia extrair ideias signifi cativas dos textos de Sade, seria necessário separar esse texto dos relatos ordiná-rios que lhe asseguraram um sucesso bastante discutível: o êxito das historietas do Marquês colocam-no na posição de um pioneiro da indústria cultural, muito mais do que um inventor de valores literários.

A glória de Sade deriva de sua capacidade de gerar es-cândalos. Até que ponto o aristocrata fustigava a burgue-sia e agitava o Estado na Europa, essa é a questão que de-vemos encarar.

Hoje em dia, a burguesia não reconhece nenhum poder efetivo sobre a sua calhordice estrutural. Como demonstrou o primeiro ministro da Itália, a burguesia italiana inventou uma nova organização da “putaria”.

Leandro Konder escreve semanalmente neste espaço.

Leandro Konder

Sade

Hoje em dia, a burguesia não reconhece nenhum poder efetivo sobre a sua calhordice estrutural

comentários do leitor

O êxito das historietas do Marquês colocam-no na posição de um pioneiro da indústria cultural, muito mais do que um inventor de valores literários

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brasilde 17 a 23 de fevereiro de 20114

do Rio de Janeiro (RJ)

No dia 11, uma operação da Polícia Fe-deral (PF), em conjunto com a Secreta-ria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro, prendeu 35 policiais ci-vis e militares. Eles são acusados de cor-rupção, roubo e proximidade com o trá-fi co. Entre eles estava o delegado Carlos de Oliveira, ex-subchefe da Polícia Civil (PC) e subsecretário de operações da Se-cretaria Especial de Ordem Pública (Se-op). A Operação Guilhotina da PF des-montou a milícia da favela de Roquette Pinto, no Complexo da Maré, prenden-do ao menos um de seus comandantes – o inspetor Christiano Gaspar Fernandes. O grupo paramilitar tinha predominân-cia de ofi ciais da 22º Delegacia de Polí-cia (DP). Citado numa denúncia, o che-fe da PC, Allan Turnowski, teve de de-por na PF.

Quatro dias depois, Turnowski man-dou fechar a Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas (Draco), comandada por Claudio Ferraz. Co-autor

Leandro Uchoasdo Rio de Janeiro (RJ)

NA CIDADE de Magé, município de 230 mil habitantes da região metropolitana do Rio de Janeiro, uma luta heroica con-tra os danos socioambientais de um em-preendimento tem se transformado, com o passar do tempo, em disputa pessoal e na necessidade de se proteger a vida de uma liderança. O confl ito começou quan-do foi fi rmado um consórcio entre as em-preiteiras GDK e Oceânica para a insta-lação, na região, de gasodutos da Petro-bras, sob terra e mar. Serviriam para o transporte de gás liquefeito de petróleo para a refi naria de Duque de Caxias (Re-duc). A atividade das empresas apresen-tou algumas aparentes irregularidades ambientais e trabalhistas. A principal de-las foi a redução massiva do volume de pesca na região, inviabilizando o susten-to de milhares de famílias de pescadores, quantidade difícil de mensurar – na re-gião toda, há pelo menos seis mil desses trabalhadores.

Em 2009, aqueles que habitavam o tre-cho próximo à praia de Mauá resolveram reagir. Eles já haviam criado, dois anos antes, a Associação de Pescadores Ho-mens do Mar (Ahomar). Presidida por Alexandre Anderson, a instituição inclui profi ssionais de seis municípios e 723 as-sociados. Em abril de 2009, os integran-tes da Ahomar decidiram parar as obras das empreiteiras à força. Ancoraram seus barcos próximos aos dutos, utilizando re-des para impedir a passagem de embar-cações. O protesto durou 36 dias, em que a GDK fi cou impossibilitada de operar li-vremente. Nesse período, todas as for-mas de dissuasão foram utilizadas. Os profi ssionais da empresa de segurança do pátio da GDK frequentemente apre-sentavam armas, e ameaçavam os pesca-dores. Durante a madrugada, rasgavam suas redes e armavam tocaias.

O confl ito teve uma série de episó-dios traumáticos ao longo desses quase dois anos de luta. Desde a operação de guerra armada, numa tarde, pelo Gru-po Aéreo Marítimo (GAM), até o assas-sinato de dois dos pescadores ligados à Ahomar. O mais covarde e emblemáti-co deles foi o do tesoureiro da associa-ção, Paulo Cesar Santos. Ele foi morto em maio de 2009, próximo da mulher e do fi lho, apenas seis horas após a inter-dição das obras da GDK. Além das duas mortes, inúmeras ameaças foram feitas aos pescadores, especialmente à princi-pal liderança, Alexandre Anderson. Três semanas antes da morte de Paulo, Ale-xandre já havia sofrido um atentado, depois do qual passou a dormir em ca-sas distintas a cada noite. Em 2010, che-gou a ser preso de forma preventiva, co-mo suspeito do assassinato de Paulo – hipótese negada por todos os indicati-vos das informações colhidas. No fi nal do mesmo ano, Alexandre e sua mulher, Daize da Costa, passaram a ser rigoro-samente protegidos pelo Programa Na-cional de Defensores de Direitos Huma-nos, do governo federal. Segundo San-dra Carvalho, da Justiça Global, dois po-liciais ligados à escolta de Alexandre já foram executados.

A atuação dos pescadores da região despertou a ira do delegado titular da 66ª Delegacia de Polícia de Piabetá, Aroldo Costa. Responsável pela equi-pe que faz a segurança da obra da GDK, acusada de ser muito violenta, o delega-do “passou a perseguir Alexandre”, se-gundo afi rma fonte que pede anonimato. Agindo como quem considera a disputa um problema pessoal, Aroldo estaria

Cronologia da atuação dos pescadores de MagéMeados de 2007É fundada a Associação de Pescadores Homens do Mar (Ahomar), reunindo pesca-dores de seis municípios. Alexandre Anderson é escolhido presidente.

Abril de 2009Vendo a pesca reduzida em até 70% do volume anterior, com a instalação dos gaso-dutos no mar, os pescadores resolveram inviabilizar a obra. Ancoraram seus barcos próximos aos dutos e utilizaram redes para limitar o fl uxo de embarcações. Acusa-vam a obra de não ter anuência do município nem licença de canteiro.

Maio de 2009A ação dos pescadores dura 36 dias, enfrentando repressão da polícia, atentados, ameaças constantes, e campanhas difamatórias na cidade. No dia 24, Paulo Santos é assassinado, como um recado a Alexandre Anderson.

Junho de 2009Organiza-se um ato em frente à Petrobras, com participação de mais de mil pesso-as e apoio de organizações sindicais do meio energético. Os pescadores abraçam a Petrobras. Ao fi nal de intensa negociação, os executivos da empresa aceitam nego-ciar.

Julho de 2009Pescadores que trabalhavam no empreendimento perdem emprego.

Junho de 2010Alexandre é preso por suspeita de ter matado Paulo – acusação que contraria todas as informações do crime. É solto em seguida. A 66ª DP, de Piabetá, começa a apa-rentemente perseguir Alexandre.

Agosto de 2010Alexandre passa a ser protegido pelo Programa Nacional de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos da Presidência da República (PPDDH)

Dezembro de 2010Mês de maior tensão e risco de vida para Alexandre. As ameaças constantes e inúme-ras abordagens de representantes da 66ª DP são sistemáticas.

Janeiro de 2011Quatro policiais fortemente armados entregam uma intimação a Alexandre, com constrangimentos públicos.

Fevereiro de 2011Alexandre sai do estado do Rio com toda a família. Dois dos policiais que o protegem já foram assassinados.

do livro Elite da Tropa 2, Ferraz já pren-deu 676 milicianos, e é respeitado junto à esquerda carioca. Suspeita-se de repre-sália de Turnowski (que no dia 15 acabou sendo afastado da chefi a da Polícia Ci-vil), já que a Draco começou a investiga-ção que resultou na Operação Guilhoti-na. Os acontecimentos da “disputa entre polícias” estão no início, e ainda há muito a ser revelado no decorrer das próximas semanas. Entretanto, há pelo menos três informações importantes às quais não tem acesso aquele que acompanha ape-nas a mídia corporativa. Em primeiro lu-gar, a 22ª DP tem um Caveirão, e é acu-sada de ter alugado o veículo a trafi can-tes da Baixa do Sapateiro, na Maré, em 2009, para invadir a Vila dos Pinheiros. A constatação de que havia milicianos na delegacia reforça a denúncia.

Depois, o delegado criminoso, Car-los de Oliveira, era o responsável na Se-cretaria de Ordem Pública por reprimir a atividade dos camelôs na cidade. Se-gundo o Movimento Unido dos Came-lôs (Muca), o ofi cial seria o principal es-timulador das arbitrariedades levadas acabo contra os ambulantes pelo “cho-que de ordem”. Por último, e mais im-portante: uma gravação de conversa en-tre os policiais revelou que eles compa-ravam a ocupação do Complexo do Ale-mão e da Vila Cruzeiro, em dezembro, aSerra Pelada, onde eles iriam buscar o“espólio de guerra”. A afi rmação confi r-ma a denúncia de entidades de direitos humanos de que, após a ocupação, hou-ve roubos massivos das casas do Com-plexo. Vai na contramão do oba-oba mi-diático promovido na ocasião, segundoo qual a operação tinha sido um suces-so policial. Dentre os jornais, apenas oBrasil de Fato sustentou a versão ago-ra confi rmada. (LU)

Há pelo menos três informações importantes às quais não tem acesso aquele que acompanha

apenas a mídia corporativa

Polícia contra políciaMILÍCIAS

Operação Guilhotina, da PF, leva à cadeia dezenas de policiais civis e militares

criando inúmeros subterfúgios para pre-judicar Alexandre. Este mês, a lideran-ça foi obrigada a sair do estado do Rio de Janeiro, junto de sua mulher e seu fi lho. A luta contra o projeto – cujo auge tal-vez tenha sido o forte ato em frente à Pe-trobras, em 2009, com a presença de mil manifestantes – está paralisada. A obra das empreiteiras também está parada, sem que se saiba o motivo exato – sus-peita-se que seja por pressão da família Cozzolino, que controla a política local, por maiores recursos junto à Petrobras. “É um fracasso. Nem a conversa com a Petrobras avança, nem o enfrentamento ao projeto”, lamenta Sandra.

Criminalização“O que era uma luta de sucesso con-

tra um empreendimento transformou-se numa perseguição pessoal. Enquan-to antes os movimentos sociais se mo-bilizavam para auxiliar no enfrenta-mento, e organizar os pescadores, ago-ra são obrigados a mobilizar forças para salvar a vida do presidente da Ahomar”, diz a mesma fonte. Em dezembro, até a ex-esposa de Alexandre, Alcelina Quin-tino, de quem ele se separou há 14 anos, foi ameaçada, além do fi lho dos dois, Rhuan Anderson Quintino. Mãe e fi lho foram levados duas vezes à 66ª DP, on-de se tentou levantar informações so-

bre Alexandre. Também faziam per-guntas como “você sabia que seu pai é bandido?”, “você continua tendo encon-tros amorosos com Alexandre?” e, ain-da, “sabia que seu pai te abandonou?”. Alcelina e Rhuan foram ameaçados pe-los policiais, caso revelassem a conversa a alguém. Ameaçaram divulgar até mes-mo uma suposta atividade de Alcelina como prostituta, ainda antes do casa-mento com Alexandre. Mãe e fi lho, se-gundo relatos, estavam traumatizados com a abordagem policial, e a visita fre-quente de viaturas à sua rua.

Até mesmo Andressa Caldas, também da Justiça Global, recebeu uma intima-ção de forma truculenta na sede da or-ganização. Solidários, os outros pesca-dores tentam auxiliar. O movimento, po-rém, não dá sinais de manter a mesma articulação de dois anos atrás. A Petro-bras estuda pagar uma indenização aos pescadores, que começou a ser acordada ainda na noite do ato em frente a empre-sa, no centro da capital. Ao que tudo in-dica, o projeto voltará a entrar em ope-ração futuramente. E as forças, outro-ra mobilizadas contra o empreendimen-to, agora terão que se articular para sal-var a vida dos moradores locais. A Secre-taria de Direitos Humanos do governo federal considera Alexandre um dos ca-sos de maior sucesso do Programa Na-cional de Defensores de Direitos Huma-nos. “Na verdade, a maior rede de prote-ção à vida do pescador talvez esteja entre os movimentos sociais próximos a ele”, diz a fonte. A novela Alexandre Ander-son tem inúmeros capítulos extras, para além dos aqui apresentados. Oxalá não guarde o mais triste para o fi m.

As metamorfoses de um confl itoENERGIA Em Magé, combate a um projeto petroleiro e a busca por direitos dos trabalhadores transformaram-se na necessidade de se preservar a vida de uma liderança

“O que era uma luta de sucesso contra um empreendimento transformou-se numa perseguição pessoal”

Paulo Cesar Santos foi morto em maio de 2009, próximo da mulher e do fi lho, apenas seis horas após a interdição das obras da GDK

Protesto realizado por pescadores na praia de Mauá, em abril de 2009, e que durou 36 dias

Alexandre Anderson

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de 17 a 23 de fevereiro de 2011 5brasil

Vinicius Mansurde Brasília (DF)

“ESSAS FAMÍLIAS serão abençoadas com os assentamentos. Hoje, vivem em igarapés. Em períodos chuvosos fi cam alagadas. Então, essas famílias, que es-tão em condições impróprias, tiraram a sorte grande: vão ganhar casas de al-venaria com todas as condições da vida moderna.” Assim, o presidente da Em-presa de Pesquisa Energética (EPE), – ligada ao Ministério de Minas e Ener-gia – Maurício Tolmasquim, se referiu às populações que serão afetadas com a construção da usina hidrelétrica Belo Monte, no Pará.

O discurso, proferido no dia 31 de ja-neiro, em um congresso sobre energia, realizado no Rio de Janeiro, representa de maneira caricatural o que o antropó-logo Luis Roberto de Paula – em artigo publicado na Revista de Antropologia Social da UFSCar – chamou de “expres-são direta e cabal da perspectiva ideoló-gica desenvolvimentista ainda hegemô-nica no país”.

“Com o fi m da ditadura militar, os su-cessivos governos democraticamente eleitos deram continuidade a essa dinâ-mica desenvolvimentista que veio a ser denominada por organizações não-go-vernamentais socioambientalistas como ‘desenvolvimento a qualquer custo’: a priorização de grandes e caras obras de infraestrutura (estradas, hidrovias, fer-rovias, hidrelétricas etc.), que atendem demandas de determinados grupos so-cioeconômicos envolvidos diretamente no processo de inserção do país na eco-nomia mundial (por exemplo, a indús-tria da mineração e do agronegócio)”, assinala o antropólogo.

Mais do que Belo Monte, os projetos do governo preveem, para os próximos anos, na Amazônia brasileira, a cons-trução de cerca de 70 grandes barra-gens e 177 Pequenas Centrais Hidrelé-tricas (PCHs), sendo 11 grandes hidre-létricas somente na bacia do Tapajós/Teles Pires.

HistóricoO projeto de Belo Monte, idealiza-

do pela primeira vez pelos militares em 1975, foi retomado em 1989, dessa vez com o nome de usina Kararaô – tragico-micamente um grito de guerra kaiapó. A resistência dos povos indígenas emper-rou o projeto e um episódio marcou essa luta. Durante um encontro realizado em Altamira (PA) entre os povos indígenas e a Eletronorte para discutir a barragem, a indígena kayapó Tuíra encostou a lâmina de um facão no rosto do então presidente da Eletronorte, José Antonio Muniz Lo-pes – hoje presidente da Eletrobrás –, num gesto de advertência contra a usina. A foto correu mundo e a pressão interna-cional fez com que o Banco Mundial de-sistisse do empréstimo.

Reincorporado como projeto de go-verno no Avança Brasil, plano plurianu-al do governo FHC para 2000-2003, e, posteriormente, ao Programa de Acele-ração de Crescimento (PAC), no governo Lula, como obra prioritária, Belo Monte teve seu último avanço nos trâmites go-vernamentais no dia 26 de janeiro des-te ano, quando o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) anunciou a conces-são de uma licença parcial, dando direi-to à execução de parte das obras da usi-na no rio Xingu, em Altamira (PA). O presidente interino do Ibama, Américo Ribeiro Tunes, assinou uma autorização de supressão de vegetação, que permite o desmate de uma área de 238 hectares para construção de acampamento, can-teiro industrial e área de estoque de so-lo e madeira.

A pedido do Ministério Público Fe-deral e Estadual do Pará, o licencia-mento está suspenso pela Justiça Fede-ral de Altamira, por liminar que consi-dera insatisfatória as audiências públi-cas realizadas sobre Belo Monte. O Iba-ma entrou com recurso contra essa limi-nar que, até o fechamento desta edição (dia 15), não foi julgado pela Justiça Fe-deral de Belém.

Em nota de esclarecimento, o Ibama afi rma ter realizado, ao menos, quatro audiências públicas. Entretanto, a di-rigente da Coordenação das Organiza-ções Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), Sônia Guajajara, aponta que, além de insatisfatórias, as audiências não substituem o direito à consulta:

“O que mais a gente tenta destacar é que a luta é por conta da falta do consen-

timento. A Funai [Fundação Nacional do Índio] fez reunião para informar o proje-to, mas pequena e somente de apresen-tação. Na época, os próprios técnicos fa-lavam assim ‘isso aqui é só uma prévia, não é uma consulta, vamos voltar em ou-tro momento, tal’. E isso não aconteceu. Não estão cumprindo a Constituição e os acordos internacionais.”

PressõesO secretário executivo do Conselho

Indigenista Missionário (Cimi), Eder Magalhães, lamenta a postura tomada pelas direções de Ibama e Funai, que, sistematicamente, ignoram os parece-res de seus técnicos que alertam sobre a gravidade de Belo Monte. Em 2009, cinco técnicos do Ibama foram postos para fora depois de apresentar seus le-vantamentos. Em seguida, o presidente também renunciou. Porém, Magalhães considera ainda mais grave outro tipo de pressão:

“Diariamente há ações de cooptação. Barcos da Eletronorte – que agora tem convênio com a Funai, para facilitar a sua presença nas aldeias – entregando cesta básica. É uma questão vergonho-sa como é tratada a política indigenista para abrir os caminhos para esse projeto desenvolvimentista, um verdadeiro rolo compressor.”

De acordo com Sônia Guajajara, cor-rem boatos de que, em reunião com os caiapós, a Funai já prometeu um carro por família. “Luis Xipaia, uma liderança na região que antes era contra, agora es-tá defendendo muito Belo Monte. E já es-tá andando de moto”, relata.

Segundo Magalhães, vários ativistas já sofreram ameaças de morte, sendo o ca-so mais grave o do presidente do Cimi, Dom Erwin Kräutler, que há vários anos é acompanhado por dois policiais, 24 ho-ras, quando chega em Altamira.

O governoNo dia 8 de fevereiro, a Aliança dos

Rios da Amazônia realizou um ato em Brasília contra Belo Monte. A Presidên-cia da República recebeu uma comissão dos manifestantes, que entregou uma carta denunciando as irregularidades do projeto e um abaixo-assinado com mais de 604 mil assinaturas. Porém, a res-posta do governo não agradou aos mani-festantes. O representante da presidên-cia, Rogério Sottili, afi rmou disposição do governo ao diálogo, mas sentenciou: “Dilma fará o que tem que ser feito”.

“Daqui pra frente temos que ir pra rua. Essa mobilização aqui em Brasília deu uma repercussão e mostrou que o mo-vimento está de pé. As pessoas fi caram mais indignadas ainda pelo tratamento que foi dado no Palácio do Planalto. Mas nós vivemos um momento muito difícil do movimento social hoje no Brasil. Pre-cisa ser avaliada essa postura nesse go-verno”, concluiu Magalhães.

O desaguar do desenvolvimentismoBELO MONTE Avanço do projeto de hidrelétrica realça a vitalidade da perspectiva desenvolvimentista

Dados de Belo Monte• Localizada no Rio Xingu, na região norte do Pará, impactará, pelo menos, 11 muni-

cípios e nove territórios indígenas.

• O projeto prevê a inundação de 516 km² de fl oresta amazônica, com a construção de 52 quilômetros de canais. Seriam realizadas escavações da ordem de 150,7 milhões de m³ e 50 milhões de m³ de rochas, superiores às escavação do Canal do Panamá. Seriam utilizados 4,2 milhões de m³ de concreto.

• Segundo o Inesc, Belo Monte provocará o deslocamento compulsório de cerca de 40 mil habitantes e atrairá cerca de 100 mil pessoas, sendo 18,7 mil trabalhadores em-pregados nas obras, 23 mil nas atividades que orbitam o empreendimento e 55 mil pessoas em busca do “novo Eldorado”.

• Segundo o Inesc, a usina promoverá até 80% de redução da vazão de um trecho de mais de 100 km do rio, denominado Volta Grande do Rio Xingu, podendo secá-lo.

• A capacidade planejada de geração de energia é de 11.230 MW. Porém, o estudo do Painel de Especialistas aponta que, em média, seriam gerados apenas 4.428 MW, em função do longo período de estiagem do rio Xingu. Para os especialistas, a gran-de oscilação entre cheias e secas do rio Xingu transformará Belo Monte numa imen-sa usina “vaga-lume”.

• A previsão é que Belo Monte leve oito anos para ser construída.

• Ninguém sabe ao certo o custo da obra. Ela é orçada em cerca de R$ 20 bilhões pe-lo governo e R$ 30 bilhões por empresários.

Denúncias de irregularidades da Aliança dos Rios da Amazônia e aliados: 1. O conceito de “atingidos” desconsidera as relações específi cas de populações tra-

dicionais com as fl orestas, várzeas, igapós e rios.

2. Subdimensionamento de problemas associados à chegada de milhares de mi-grantes.

3. Redução artifi cial das áreas geográfi cas impactadas.

4. Falta de abordagem dos impactos cumulativos de outros empreendimentos, co-mo outras hidrelétricas na mesma bacia hidrográfi ca, linhas de transmissão, hi-drovias etc.

5. Mudanças nos projetos de engenharia e localização de projetos após a concessão da Licença Prévia e leilão, sem a realização de estudos complementares.

6. Falta de transparência e de participação informada das populações locais. Desta-ca-se a não nomeação dos representantes da sociedade civil e da universidade no Conselho Nacional de Política Energética (CNPE), conforme o Decreto 5.793.

7. Não realização das consultas, obrigatórias pela Constituição Federal e pela Con-venção 169 da OIT.

8. A politização do licenciamento ambiental, com a desconsideração de pareceres de equipes técnicas do Ibama e da Funai por seus presidentes.

9. Defi ciências nos procedimentos de aprovação da viabilidade econômica. Os cus-tos de construção subiram quase R$ 10 bilhões desde o leilão e, ao invés de rever as contas, o governo lançou um pacote inédito de incentivos creditícios e fi scais, bancados pelo contribuinte.

10. Intimidação, por parte da Advocacia Geral da União (AGU), dos procuradores da República e juízes federais que questionam Belo Monte. Assim como outros representantes do governo, como o ministro de Minas e Energia, Edison Lobão, que demonizam povos indígenas e organizações sociais.

11. Belo Monte não é energia “limpa”. Além de expulsar populações inteiras, matar rios e fl orestas e trazer o crescimento descontrolado das cidades do entorno, as hidrelétricas emitem metano, gás de efeito estufa com 25 vezes mais impacto so-bre o aquecimento global do que o gás carbônico.

12. Grande parte da energia não atenderia às populações mais pobres, mas seria destinada às indústrias eletro-intensivas que exportam alumínio e minério de ferro com baixo valor agregado, gerando pouquíssimos empregos na região.

13. A obsessão em construir hidrelétricas na Amazônia vai contra estratégias de de-senvolvimento pautadas na efi ciência energética, diversifi cação de matriz, ino-vação tecnológica e ampliação de escala de fontes verdadeiramente limpas, de-safi os do século 21.

A pedido do Ministério Público Federal e Estadual do Pará, o licenciamento está suspenso pela Justiça Federal de Altamira

“Na época, os próprios técnicos falavam assim ‘isso aqui é só uma prévia, não é uma consulta, vamos voltar em outro momento, tal’”

Indígenas realizam manifestação diante do Congresso Nacional contra a construção da usina de Belo Monte

Antonio Cruz/ABr

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vemente negativo em 2009 (-0,2%), o governo alega que o salário terá um re-ajuste menor neste ano em função da-quele cenário recessivo.

O governo tenta esfriar os ânimos das centrais assegurando que em 2012 ha-verá um aumento real de 14% para o sa-lário mínimo. Os R$ 545 oferecidos pelo governo contemplam o acordo feito du-rante a gestão Lula, mas os movimentos apontam que o país passa por um mo-mento em que os empresários estão em condições de dividir um pouco de seus ganhos com os trabalhadores.

“No ano que vem, vamos ter um re-ajuste que deve girar em torno de 13% ou 14%, dependendo de quanto for a in-fl ação e o PIB. Vai ser o maior aumento do salário mínimo, nenhuma categoria vai ter 7% de aumento real. Nem ban-cário, nem metalúrgico, nem químico. Nós estamos defendendo que é possível construir uma alternativa antecipando uma parte do aumento real para es-te ano, descontando do ano que vem”, afi rmou Artur Henrique, presidente da CUT, pouco antes de uma ocupação re-alizada por centrais no Congresso Na-cional, no dia 15 de fevereiro.

Artur lembrou os incentivos fi scais

brasilde 17 a 23 de fevereiro de 20116

DesigualdadeO sistema bancário registra que

aproximadamente 63 mil pessoas mantiveram, em 2010, mais de R$ 371 bilhões em aplicações fi nanceiras. São os brasileiros com alta renda e com contas bancárias superiores a R$ 1 milhão. Eles foram muito bem remunerados nos fundos de inves-timentos e nos títulos públicos de renda fi xa; o bolo dos milionários cresceu 23% em relação a 2009. Já o rendimento bruto da caderneta de poupança não passou dos 6,7%.

Sem noçãoApós manifestação de representan-

tes de dezenas de etnias indígenas e de 84 entidades nacionais e interna-cionais, dia 8 de fevereiro, em Brasí-lia, contra a construção da usina hi-drelétrica de Belo Monte, o porta-voz do governo, Maurício Tolmasquim, presidente da Empresa de Pesquisa Energética, afi rmou que o movimento era “orquestrado por cineastas in-ternacionais”. Besteira! A resistência mobiliza os povos do Xingu há quase 30 anos!

Pequenos delitosRelatório da Controladoria Geral da

União denuncia que, em 2010, pelo menos 1.327 funcionários públicos municipais receberam – ilegalmente – os recursos do programa Bolsa-Família, apenas no estado de Minas Gerais. Em muitos casos foram be-nefi ciados também as mulheres de vereadores e de secretários munici-pais que ganham salários acima do limite estabelecido pelo programa. A corrupção graça também nos baixos escalões.

Desmistifi caçãoDois estudos divulgados recente-

mente desmistifi cam o poder de fogo e o papel democratizador da Internet: o primeiro comprova que as chamadas mídias sociais são mais infl uenciadas pelo conteúdo dos meios tradicio-nais de imprensa, e não o contrário; o segundo comprova que as maiores audiências estão nos blogs e sites vinculados às redes de comunicação. A democratização da comunicação depende de redistribuição dos meios e diversifi cação de conteúdo.

Opção políticaPara fi car bem com a ortodoxia eco-

nômica e a mídia burguesa, o governo Dilma endureceu na negociação com as centrais sindicais sobre o valor do salário mínimo. Uma queda de braço desnecessária, já que a questão po-deria ter sido acordada com alguma concessão acima dos R$ 545. O gover-no tucano de São Paulo aproveitou a deixa e decretou o mínimo de R$ 600 no estado. Pergunta obrigatória: quem dá razão para a direita?

Reparo urgenteNovas testemunhas confi rmaram,

na última semana, que o processo de compra de votos contra o casal João e Janete Capiberibe (PSB-AP) foi forja-do com depoimentos comprados. Os tribunais eleitorais foram induzidos ao erro da cassação política. Devolver os mandatos de senador e de deputa-da federal é o mínimo a se fazer – em nome da Justiça. E é preciso punir os verdadeiros culpados pela armação contra os Capiberibe!

Mais pertoA Operação Guilhotina, da Polícia

Federal, prendeu 35 pessoas ligadas aos esquemas de milícias e tráfi co de drogas no Rio de Janeiro, entre as quais 19 policiais militares e oito policiais civis, inclusive um delega-do com cargo no alto escalão da Se-cretaria de Segurança Pública. Ago-ra sim começaram a cair algumas peças importantes do crime organi-zado naquele Estado. Até parece que a PF segue o roteiro do fi lme Tropa de Elite 2!

Ameaça geralCentenas de famílias que residem

há vários anos nas ocupações urbanasde Belo Horizonte (MG) estão agora ameaçadas de despejo, nos próximos dias, pela Prefeitura Municipal e go-verno do Estado, para que os terrenossejam usados em obras viárias e ins-talação de indústrias. Os moradores das ocupações Camilo Torres, Irmã Dorothy e Dandara lutam por uma negociação que não seja deixar todo mundo na rua – sem destino.

Fora ianque!A última plenária da campanha

“O Petróleo Tem que Ser Nosso!”, realizada no Sindipetro-RJ, decidiu convocar manifestações de protestos contra a presença do presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, no Brasil, agora no mês de março. Os militantes da campanha acreditam que um dos objetivos da missão de Obama seja o de acelerar a extração de petróleo do pré-sal e favorecer as empresas estadunidenses.

fatos em focoHamilton Octavio de Souza

Renato Godoy de Toledoda Redação

NO DIA 9 de fevereiro a equipe econômi-ca do governo federal anunciou um cor-te de gastos recorde. Segundo os minis-tros Guido Mantega (Fazenda) e Miriam Belchior (Planejamento) mais de R$ 50 bilhões serão cortados do orçamento da União de 2011. O valor é mais do que o dobro do contingenciamento do ano pas-sado (R$ 21,8 bilhões), que fora recorde no governo Lula.

Os ministros e a presidenta Dilma Rousseff procuraram assegurar que os programas sociais como o Bolsa Família e Minha Casa, Minha Vida não serão afe-tados pelo orçamento mais enxuto. Po-rém, medidas impopulares como o salá-rio mínimo de R$ 545 (o que representa quase 0% de reajuste, em termos reais) e a anulação de concursos públicos são considerados como os primeiros impac-tos desse anúncio. O Senado Federal, por exemplo, que tinha concurso previsto pa-ra o segundo semestre de 2011, já anun-ciou o adiamento, sem previsões, em função da readequação orçamentária.

A medida do governo Dilma tem rece-bido elogios de comentaristas ortodoxos, como forma de “alfi netar” a gestão ante-rior, por sua vez, criticada pelo “inchaço da máquina pública”. Ainda não está de-fi nido sobre quais áreas, especifi camen-te, o corte deve incindir. Porém, para o contentamento da imprensa corporati-va, a área que deve ser mais afetada é o custeio da administração pública. Tam-bém devem sofrer com os cortes emen-das parlamentares, o que pode causar di-fi culdades para o governo na aprovação de matérias nas casas legislativas.

Segundo o governo, o corte de diárias, viagens e outros gastos para a manuten-ção dos serviços públicos não devem afe-tar o crescimento econômico e os gastos sociais.

O ministro Guido Mantega negou que a redução do investimento no setor pú-blico, sobretudo no funcionalismo, deva trazer retração econômica e social para o país. “Não se trata daquele ajuste fi scal que derruba a economia, que leva a uma retração do investimento. Estamos falan-do de uma consolidação que é justamen-te para garantir que o crescimento sus-tentável tenha continuidade”, afi rmou.

Gasto socialO economista Rodrigo Ávila, da Audi-

toria Cidadã da Dívida, discorda da ver-são governista. “O problema é defi nir o conceito de gasto social. Se formos tomar

Governo exibe tesoura afi ada

como gasto social apenas os programas focalizados como o Bolsa Família, pode ser que o corte realmente não afete es-ses benefícios. O governo pode dizer que o corte de diárias atinge uma área supér-fl ua, mas como se dá o combate ao traba-lho escravo, que é uma grande bandeira dos movimentos sociais? Por meio de di-árias. Os fi scais do trabalho e da Polícia Federal recebem diárias para realizar as inspeções”, aponta.

Para Ávila, o governo Dilma dá sinais de que haverá um “recrudescimento na política neoliberal”. “No início do go-verno Lula, houve um aumento do su-perávit primário [que atingiu 4,25% do PIB]. Agora há esse contingenciamen-to recorde, que não deve ser revertido, como garantiu a equipe econômica”, afi rma Ávila.

Para o economista, o argumento de que o corte de gastos no governo ajuda-rá a combater a infl ação é falacioso. “A única área que não será afetada por esse corte é a do pagamento da dívida. O últi-mo dado que temos na Auditoria é o de 2009, em que foram gastos R$ 380 bi-lhões. Ou seja, mais de 7 vezes o valor do corte. Então esse gasto com a dívida não gera infl ação? Esse argumento é falso”, acredita.

Muito barulho...Já um pesquisador do Ipea, o econo-

mista Guilherme Delgado, acredita que o contingenciamento, por ora, não deve afetar os direitos sociais, que estão pre-vistos por lei. “Para as rubricas que são afetadas [pelo anúncio] é um corte gran-de, mas não mexe com salários, com a exceção de concursos públicos que se-

rão adiados. Também não mexe com a despesa ligada a direitos sociais. Isto me parece uma readaptação de conjuntura, uma tentativa de acomodação das pres-sões infl acionárias, que o governo pre-tende interpretar dessa forma”, avalia Delgado.

Na visão de Delgado, não há motivos sufi cientes para preocupação com esse contingenciamento, já que anualmente o governo anuncia um corte, após avaliar o orçamento aprovado. De acordo com ele, muitas vezes esses cortes iniciais são ig-norados ao longo do ano fi scal, de acordo com a necessidade de gastar mais impos-ta por fatores conjunturais. No fi nal do ano fi scal, faz-se um novo projeto que é sancionado e aprovam-se as mudanças.

“Tem-se dado muita importância para esse assunto dos cortes na mídia. Porém, a margem de manobra do governo para os cortes é muito pequena, não se pode tirar tanto do orçamento, se não para a máquina pública. O governo sempre aca-ba gastando mais ao longo do ano, mas, no fi nal, nenhuma mídia mostra isso”, explica Delgado. O economista, entre-tanto, aponta que o governo tem de ter cautela ao realizar cortes para não afetar a qualidade de serviços como o Sistema Único de Saúde e a Previdência Social, o que geraria uma perda no aspecto social.

da Redação

Após aumentar de R$ 540 para R$ 545 a proposta do salário mínimo o go-verno demonstra não estar mais aber-to para negociações. O assunto é trata-do como a primeira batalha entre o go-verno Dilma Rousseff e os movimentos sociais.

Até o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva saiu de sua postura reclusiva em 2011 e criticou as centrais sindicais por exigirem um aumento acima do que foi acordado durante sua gestão. Lula referiu-se ao acordo de reajuste anu-al do mínimo baseado no cálculo da in-fl ação do ano anterior somado à média do crescimento dos dois anos anterio-res (2008 e 2009, no caso atual). Como o Brasil apresentou um crescimento le-

A batalha do mínimoGoverno “cede” R$ 5 e tem primeiro estranhamento com movimentos

dados pelo governo ao setor fi nanceiro e produtivo durante a crise econômica. “Queremos garantir que em 2011 o sa-lário mínimo também seja tratado de forma excepcional, da mesma maneira que foram tratados de forma excepcio-nal os bancos e os empresários no mo-mento da crise.”

A votação do mínimo estava marca-da para o dia 15, depois do fechamento desta edição. As lideranças governistas já davam como certo o encerramento da discussão em torno dos R$ 545.

A oposição de direita chegou até a co-gitar levar o candidato derrotado à pre-sidência, José Serra (PSDB), para ex-plicar sua proposta de um salário míni-mo de R$ 600. (RGT, colaborou Jorge Américo, da Radioagência NP)

“Queremos garantir que em 2011 o salário mínimo também seja tratado de forma excepcional”

POLÍTICA Equipe econômica anuncia contingenciamento recorde no orçamento e alega temor infl acionário

Para Ávila, o governo Dilma dá sinais de que haverá um “recrudescimento na política neoliberal”

Na visão de Delgado, não há motivos sufi cientes para preocupação com esse contingenciamento

A ministra do Planejamento, Orçamento e Gestão, Miriam Belchior

Marcello Casal Jr./ABr

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brasil de 17 a 23 de fevereiro de 2011 7

DECORRIDOS CERCA de 50 dias do governo Dilma, permanecem ainda muitas incógnitas sobre os rumos estratégicos da política so-cial. A mídia tem insistido muito nas notícias sobre cortes de até 60 bilhões no Orçamento da União de 2011 e no reajuste do salário míni-mo, sem incremento real. Mas es-te noticiário toca apenas em ajus-tes conjunturais de execução orça-mentária. São de certa forma uma resposta simbólica e convencional do governo às pressões para conter a demanda pelos chamados “Bens-Salário”.

O governo convencionalmen-te acomoda essas pressões na con-juntura, operando com decreto de contingenciamento do Orçamento. Decidiu limitar fortemente os gas-tos de custeio, diga-se de passa-gem, sem grande raio de manobra. Resolveu também, a título de polí-tica anti-infl acionária (neste caso o Banco Central), elevar os juros in-ternos. Esta medida sim, não é ape-nas simbólica, pois tem efeito ime-diato em todo o arranjo macroeco-nômico, com incerta contenção so-bre os preços dos alimentos, mas com piora no desequilíbrio externo.

Quanto à política do salário mí-nimo, deve-se esclarecer que há aí uma inversão de prioridades do noticiário. A política de longo pra-zo, anunciada pela presidenta Dil-ma por ocasião de sua fala na rea-bertura do Congresso, é de conver-ter em Lei a regra informal vigen-te desde 2005 - reajuste pela infl a-ção do INPC, mais incremento real com base na média do crescimento do PIB dos últimos dois anos. Mas essa regra, diga-se de passagem, não está sendo aplicada ao reajus-te de 2011. Cortou-se o incremen-to real médio do biênio 2009-2010 e se aplicou apenas o INPC, com ar-redondamento, que resultou no va-lor de R$ 545.

Por outro lado, conquanto a pre-sidenta anunciasse na sua fala ao Congresso uma prioridade à Re-forma Tributária, a única notícia concreta sobre este tema é a inten-ção de Dilma de desonerar parte da contribuição patronal da folha de salários para a Previdência So-cial, o que em princípio não signi-fi ca Reforma Tributária. Mas ao de-sonerar a folha, cria-se a necessida-de de compensar esta com tributos, sob pena de sérios malefícios à Se-

guridade Social. Se realizar tal com-pensação, abre-se caminho para uma Reforma Tributária e esta terá que revelar na fonte a ser tributada o seu caráter-progressivo, regressi-vo ou neutro, com o que se defi ne o sentido da política tributária para a política social.

A área social clássica da política so-cial – Trabalho-Previdência, Saúde e Educação – compõe um campo mui-to vasto de benefícios e serviços pú-blicos, que ao que tudo indica irá no mínimo manter direitos sociais bási-cos, já constitucionalizados e regula-mentados em texto legal subsequen-te. Mas provavelmente, o que ainda não está claro para este governo, co-mo de resto não esteve também pa-ra o anterior, é a existência de uma autônoma e desejável demanda por direitos sociais já regulamentados, princialmente dos benefício mone-tários da Seguridade Social de forma direta e dos serviços do SUS de for-ma indireta, para os quais a estrutu-ra orçamentária vigente não está ca-librada com recursos tributários su-fi cientes. Daí os apelos conjunturais e recorrentes aos cortes de custeio, vendidos sob o selo enganoso da austeridade fi scal, considerada ape-

nas a restrição tributária existente para a área social.

Ora, tanto a desoneração de par-te da Contribuição Patronal, quanto a ampliação de cobertura da popu-lação atendida pela Seguridade So-cial, agora cada vez mais acossada por novos riscos ambientais, reque-rem recursos fi scais que, nas demo-cracias de perfi l Estado social, envol-vem uma forte disputa distributiva. Isto tudo teria de passar pela socie-dade, ir ao Congresso e suscitar vivo debate político, para, ao fi m e ao ca-bo de uma disputa democrática, ge-rar mudanças na política tributária de caráter progressivo sobre a renda e a riqueza sociais. Mas isto não es-tá na agenda declarada da presiden-ta. Não está na mídia, nem repercute no Congresso desta forma. Mas virá à tona cedo ou tarde porque é real.

Para fechar, quero deixar claro que nada tratei da política agrária do novo governo neste texto, em parte porque nada foi anunciado de novo, em parte porque não cabe nos limi-tes deste texto. Mas é assunto funda-mental, se se quiser pensar o senti-do distributivo do conjunto da polí-tica pública. Tratarei oportunamen-te deste tema, de forma específi ca.

Rumos da política social! Guilherme C. Delgado

Quanto à política do salário mínimo, deve-se esclarecer que há aí uma inversão de prioridades do noticiário

Raquel Júniado Rio de Janeiro (RJ)

A PESQUISADORA Lia Giraldo expli-ca como os agrotóxicos foram introduzi-dos no Brasil a ponto de o país ser hoje o campeão mundial no uso de venenos. Lia é pesquisadora do departamento de saú-de coletiva, do laboratório Saúde, Am-biente e Trabalho, da Fiocruz Pernam-buco. Ela coordena um grupo de pesqui-sadores responsáveis por revisar os es-tudos científi cos existentes sobre onze agrotóxicos que estão em processo de re-visão pela Agência Nacional de Vigilân-cia Sanitária (Anvisa).

O uso de agrotóxicos no Brasil vem crescendo ano após ano. O país lidera o ranking dos maiores consumidores de agrotóxicos no mundo. Por que consumimos tanto veneno?

Lia Giraldo – Desde a década de 1970, exatamente no ano de 1976, o governo criou um plano nacional de defensivos agrícolas. Dentro do modelo da Revolu-ção Verde, os países produtores desses agroquímicos pressionaram os governos, através das agências internacionais, pa-ra facilitar a entrada desse pacote tecno-lógico. Em 1976, o Brasil criou uma lei do plano nacional de defensivos agrícolas, na qual condiciona o crédito rural ao uso de agrotóxicos. Assim, parte desse recur-so captado deveria ser utilizada em com-pra de agrotóxicos, que eles chamavam, com um eufemismo, de defensivos agrí-colas. Então, com isso, os agricultores fo-ram praticamente obrigados a adquirir esse pacote tecnológico. E também com muita rapidez foi formatado um modelo tecnológico de produção que fi cou depen-dente desses insumos, e isso aliado ainda a uma concentração de terras, mecani-zação, com a utilização de muito menos mão de obra. Tivemos um grande êxodo rural: de lá para cá o Brasil mudou com-pletamente, era um país rural e virou um país urbano, seguindo um fenômeno que aconteceu também em outros países. En-tão, o Brasil se rendeu às pressões econô-micas internacionais na defesa desse mo-

Como o Brasil se tornou o maiorconsumidor mundial de agrotóxicos

delo. Depois disso houve muito lobby po-lítico, inclusive, tivemos ministro ligado a empresas produtoras de agrotóxicos. E isso fez com que o Brasil não só passas-se a ser consumidor, mas também pro-dutor desses produtos. As cinco maiores produtoras de agrotóxicos têm fábricas no Brasil – Basf, Bayer, Syngenta, Du-Pont e Monsanto. E depois, dentro des-sa linha, e associado ao ciclo de algumas monoculturas como a soja, o algodão, o café e a cana-de-açúcar, esse modelo ca-sou bem com o modelo de produção de monocultura extensiva, demandando ca-da vez mais terras, cada vez expulsan-do mais o pessoal do campo para a cida-de. Na divisão internacional do capital, o Brasil fi cou com esse perfi l de exportador de commodities, com um modelo de de-senvolvimento baseado no agronegócio e essa é a explicação para sermos os cam-peões no uso de agrotóxicos.

A pressão para que os agricultores passassem a usar agrotóxicos também foi colocada em prática nos outros países do hemisfério sul?

Sim. Se analisarmos países da Améri-ca Latina, como a Argentina e o Uruguai, cada um com suas características, perce-beremos que isso se repete. Mas no Bra-

sil esse quadro ganha proporções maio-res com o nosso gigantismo territorial e também facilidades e estratégias de aber-tura para o capital externo, com um go-verno absolutamente permeável. O Bra-sil estranhamente tem dois ministérios da agricultura, um para o agronegócio, que é o “gordão”, com bastante dinheiro, e outro para a agricultura familiar, que é magrinho e com pouquinho dinheiro. São dois ministérios da agricultura com políticas completamente divergentes. E por onde a bancada ruralista consegue pressionar a Casa Civil? Por dentro. Cria-ram uma estrutura por dentro do gover-no, que é o Mapa [Ministério da Agricul-tura, Pecuária e Abastecimento], onde passam os interesses do agronegócio.

E quais são as características desses agrotóxicos hoje? Eles são mais tóxicos do que nos anos 1970?

A evolução da toxidade tem mais a ver com a resistência das pragas aos produ-tos. A motivação da evolução não é pa-ra produzir produtos menos tóxicos pa-ra a saúde ou o meio ambiente. Mas sim porque a natureza reage e as pragas se tornam mais resistentes, e as empresas são obrigadas a produzir novas molécu-las para os agrotóxicos serem efetivos. Isso está aliado também com o aumen-to da quantidade de uso, porque enquan-to eles não conseguem produzir uma no-va molécula a qual a praga seja mais sen-sível, eles aumentam a carga de agrotóxi-co. Então, existe uma toxidade e um pe-rigo com a introdução de novas molécu-las, que são mais tóxicas para os seres vi-vos, portanto para nós, seres humanos também – para as células, para o DNA, para as estruturas biológicas. Mas tam-bém há um grande perigo quando se au-menta a concentração de um produto que está tendo baixa efi cácia e se aplica esse produto sozinho ou associado a ou-

tro ou a um coquetel de outros produtos tóxicos. Se, aumentando a concentração de determinado produto, ele já começar a ameaçar a saúde pública, esse produto já não pode mais ser usado. Aí inventam uma outra molécula, e assim vai. E como as experiências feitas para o registro são baseadas apenas em efeitos agudos – ou seja, a morte – e não há testes de longo prazo principalmente para a saúde hu-mana, a nova molécula é registrada. Mas uma coisa é ver se um ratinho desenvolve câncer em seis meses ou um ano e outra coisa é uma pessoa fi car exposta duran-te muitos anos. Então, esses aspectos não são levados em consideração para o re-gistro de novos produtos e, com isso, eles têm conseguido registrá-los, até que nós comecemos a registrar novamente danos à saúde e ao meio ambiente e uma série de efeitos negativos que vão então permi-tir que a agência reguladora casse o re-gistro ou restrinja os produtos.

E quais as consequências disso para o meio ambiente e a saúde dos trabalhadores rurais e também para a população de modo geral?

As consequências vistas em estudos ex-perimentais são evidências importantes, mas não são sufi cientes. Porque pode-se alegar que foi em determinado contex-to, que é para uma determinada espécie e não para outra, então cria-se sempre uma fl exibilidade na hora de extrapolar os dados para a saúde humana. É muito difícil estabelecer essas regras de consu-mo e de proteção baseando-se nos parâ-metros que são adotados, porque eles são criados justamente para proteger o capi-tal. É necessário, portanto, que tenha-mos outros indicadores de vigilância da saúde que não sejam apenas esses restri-tos a estudos experimentais em animais, mas sim baseados em estudos clínicos e epidemiológicos. Há uma resistência quanto a esses estudos serem interna-lizados como parâmetros para tomar as decisões de registro ou de captação de uma molécula, porque ou os estudos não existem, ou são muito restritos. O gover-no, as universidades e mesmo as empre-sas não incentivam esses estudos e a falta desse tipo de informação é uma política para manter a outra política, porque ob-viamente favorece a manutenção do mo-delo. Mas existem muitas evidências de danos dos agrotóxicos à saúde, só que, infelizmente, pelos protocolos que são estabelecidos, esses danos não são reco-nhecidos para a tomada de decisão. (Pu-blicada no site da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio/Fiocruz)

ENTREVISTA A pesquisadora Lia Giraldo, da Fiocruz, analisa o papel do lobby que transformou o país no principal consumidor de venenos agrícolas

“As cinco maiores produtoras de agrotóxicos têm fábricas no Brasil – Basf, Bayer, Syngenta, DuPont e Monsanto”

“Criaram uma estrutura por dentro do governo, que é o Mapa [Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento], onde passam os interesses do agronegócio”

“Uma coisa é ver se um ratinho desenvolve câncer em seis meses ou um ano e outra coisa é uma pessoa fi car exposta durante muitos anos”

Modelo de desenvolvimento baseado no agronegócio é a explicação para o Brasil ser campeão no uso de agrotóxicos

João Zinclar

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culturade 17 a 23 de fevereiro de 20118

Rui Martinsde Berlim (Alemanha)

O FESTIVAL INTERNACIONAL de Ci-nema de Berlim mostrou o capitão Nas-cimento, da Tropa de Elite 2, redimido e, com ele, o diretor do fi lme, José Padi-lha, que concedeu uma longa entrevista à imprensa internacional. Logo no primei-ro dia do festival, que vai do dia 10 ao dia 20, houve um fi lme revelando como um banco de investimentos trapaceou seus clientes lhes vendendo ações tóxicas sem valor, no fi lme Margin Call, de JC Chan-dor. O fi lme foi inspirado na crise dos sub-primes e na crise fi nanceira de 2008. Outro ponto alto do festival foi a história de uma família turca integrada na Alema-nha, fi lme feito pela neta de um imigran-te dos anos de 1960, Almanya, de Yase-min Samdereli. Confi ra nesta páginas mais detalhes sobre essas três histórias.

de Berlim (Alemanha)

O capitão Nascimento se redimiu em Tropa de Elite 2 e acabou depondo nu-ma comissão parlamentar de inquérito, denunciando governador, secretário da Segurança, deputados e políticos, que transformaram o combate ao tráfi co nas favelas em manobras para ganhar votos.

Enquanto o herói do primeiro Tropa de Elite chegou a ser acusado de fascista por torturar e matar, a sequência denun-cia políticos e, embora feito depois da in-vasão do Complexo do Alemão, em 2010, trata justamente da questão da criação

de Berlim (Alemanha)

Será que os bancos de investimentos têm algum código de ética? Pela crise de 2008, se deduz que não. Como no fi lme Margin Call, para se salvar da falência seus negociadores venderam aos incau-tos seus títulos “tóxicos”, numa opera-ção trapaceira e desonesta, não punida pelas bolsas de valores. O primeiro fi l-me exibido na competição, no Festival de Berlim, poderia ser defi nido como um retrato do capitalismo.

Os estadunidenses também fazem fi l-mes críticos do capitalismo, mas sem nomeá-lo, e tudo pode se perder como um caso isolado, envolvendo simples-mente pessoas. Margin Call trata de um tema bastante atual – a recente cri-se fi nanceira dos sub-prime com falên-cia de grandes bancos como o Lehman, nos EUA, e a necessidade dos países in-jetarem bilhões de dólares de dinheiro público em seus bancos, para salvá-los da liquidação.

O fi lme, versando sobre um tema tão econômico, capaz de não interessar ao grande público mesmo este sendo o mais afetado, toma aspecto fi nal de um thriller. Mas o herói pode ser con-siderado como bandido, pois se não ti-vesse percebido e denunciado o bura-co criado com a compra de um núme-ro excessivo de “ações podres ou tóxi-cas” e sem valor, como os títulos emi-

tidos pelo banco Lehman ou hipotecas ou investimentos do banco suíço UBS, sua empresa de negociadores teria ido à falência.

O fi lme é de JC Chandor e vale a pena ser visto quando passar no Brasil, por-que mostra o clima selvagem entre os ne-gociadores predadores, sem piedade uns com os outros. Sem piedade com a hu-manidade, pois são eles, os negociadores, que fazem jogos nas bolsas para aumen-tar os preços dos produtos básicos da ali-mentação e do petróleo.

Os atores são excelentes: Kevin Spa-cey, Zachary Quinto, Jeremy Irons e mesmo Demi Moore. A história, no al-to de um daqueles altos edifícios de Ma-nhattan é a seguinte: um jovem analis-ta, depois de estudar o ativo e passivo do banco de investimentos, descobre não haver mais reservas sufi cientes pa-ra cobrir seus títulos “tóxicos” de risco. A falência é iminente.

O chefe dos negociadores, capaz de chorar por sua cadela doente, que lhe custa mil dólares por dia no veterinário, mas frio e implacável quando se tra-ta de renovar sua equipe, convoca uma reunião noturna de crise, à qual compa-rece o chefão. Depois de ouvir a situa-ção catastrófi ca, ele propõe a salvação: se desfazer tão logo abram as bolsas do máximo de títulos tóxicos, e sem aler-tar aos compradores quanto à nulidade desses títulos.

Tudo acontece como previsto, o ban-co passa para a frente seus títulos, nu-ma verdadeira trapaça, legal nas bolsas, e o chefe dos negociadores tem uma cri-se de consciência, mas tudo fi ca por is-so mesmo. Depois da crise de 2008, tu-do já se esqueceu e os bancos de inves-timentos continuam especulando nas bolsas. Apenas algumas leis foram mu-dadas. O fi lme não chega aí, mas suge-re, e também não fala ser isso um dos traços do capitalismo, mas fi ca por con-ta do espectador. (RM)

decretou ser crime punível com prisãoe expulsão a emigração clandestina.

O fi lme não é de contestação, masparte da constatação de que os primei-ros emigrantes são hoje avós de netosintegrados na Alemanha, alguns delesnem sabendo mais falar o idioma deorigem. É verdade que a Alemanha nãoajuda nisso, pois embora nas escolasexistam o inglês e o espanhol nos currí-culos, não há o ensino do turco.

Entretanto, a integração é um fa-to, tanto que, faz alguns anos, a revis-ta Spiegel publicava uma capa na qualum turco de bigode era mostrado comoo futuro alemão, diante da taxa de na-talidade muito mais alta que a dos ale-mães. Isso, porém, não impede quemuitos emigrantes e seus fi lhos e ne-tos tenham uma crise de identidade –se são alemães ou se são turcos, no casodo fi lme exibido no Festival de Berlim.

A história da integração do imigranteturco Hueseyin Yilmaz é plena de mo-mentos de emoção, como o momen-to de receber seu passaporte alemão.O fi lme tem momentos de humor quelembram um fi lme suíço sobre a mes-ma temática do imigrante, Os fazedo-res de suíços, sobre as absurdas exi-gências aos estrangeiros para se torna-rem suíços.

A história dos imigrantes, e particu-larmente dos turcos, vem sendo con-tada por eles próprios ou por cineas-tas alemães. Porém, a maioria dessesfi lmes fala de não integração, de racis-mo ou problemas vividos por mulheresimpedidas de se integrar por seus ma-ridos. A diferença religiosa parece dei-xar de ser problema em pouco tempo,com turcos muçulmanos com árvoresde Natal e seus fi lhos cantando cânticoscatólicos. No fi lme Almanya, mostra-seque um dos fi lhos do imigrante Yilmaztinha medo do crucifi xo e que a ideiade comer Cristo, na hóstia ou na SantaCeia, soa como antropofagia. (RM)

Redenção, capitalismo e emigraçãoFESTIVAL DE BERLIM Mostra de fi lmes, que acontece entre os dias 10 e 20 de fevereiro, destaca Tropa de Elite 2

de milícias policiais que achacam direta-mente a população, depois de terem eli-minado os trafi cantes.

O público do teatro Friedrichstadtpa-last de Berlim gostou e aplaudiu longa-mente. A estreia de Tropa de Elite 2 na Europa é promissora e deverá seguir a trilha do fi lme precedente, laureado com o prêmio máximo do Festival de Berlim, o Urso de Ouro.

José Padilha, com seu gorro de lã e ma-lha vermelha, foi também aplaudido pe-lo público. Durante a tarde, ele e os ato-res Wagner Moura e Maria Ribeiro tive-ram encontros com a imprensa interna-cional. Falando inglês perfeito de antigo aluno de Oxford, Padilha tratou da cor-rupção no Brasil e criticou o governo do ex-presidente Lula, pelo mensalão.

Por sua vez, Maria Ribeiro acentuou o fato de Padilha ter ensinado os brasilei-ros a ver os políticos de outra maneira, por isso esse novo fi lme não é uma sim-ples continuação. “O primeiro fi lme”, disse ela, “queria mostrar as relações da

polícia com os trafi cantes de drogas, po-rém o segundo cavou mais fundo, mos-trando a relação que há entre a polícia e os políticos e, sobretudo, como os políti-cos manipulam as instituições policiais para manter o poder”.

“Meus dois fi lmes se complementam”, acrescenta Padilha, “eles seguem uma certa lógica inerente. No primeiro, vê-se a violência sob a ótica de um policial vio-lento e a pergunta decorrente é: por que temos policiais assim, o que produz isso? O personagem principal, que faz parte de uma patrulha, é violento no seu cotidia-no, mas não entende de onde vem a vio-lência, acha ser normal e nós o seguimos segundo o seu raciocínio”.

“Porém”, prossegue Padilha, “em Tro-pa 2, esse policial vai entender porque ele é o que é. Ele é só uma peça no tabulei-ro. No segundo fi lme, ele vê quem mexe nessas peças, ele olha para cima, ou seja, o segundo fi lme dá mais atenção à liga-ção entre os policiais e os políticos e ex-plica porque a polícia age violentamen-

te, esclarecendo o Tropa 1”. Um jornalis-ta africano perguntou: “A corrupção que se vê no fi lme signifi ca que o governo de Lula fracassou?” Padilha respondeu que o Brasil é um país muito grande e o go-verno tem de lidar com diversas ques-tões. “Eu diria que o Lula foi bem suce-dido ao lidar com certas questões e fa-lhou com outras. Queria ver quem con-seguiria solucionar todos os problemas de um país. Mas na questão da corrup-ção falhou de maneira lamentável, pois o governo Lula foi corrupto, envolvido num esquema enorme de corrupção e to-dos sabem disso. O esquema se chama-va de mensalão, boa parte do governo es-tava envolvida nisso e será julgado este ano pelo STF. Mas Lula escapou de al-guma maneira, saiu bem, saiu incólume porque conseguiu bons resultados nou-tros setores. Ele conseguiu que boa par-te da população pobre se transformasse em classe média e isso é importante. Es-se sucesso econômico lhe garantiu eleger sua candidata”. (RM)

Maria Ribeiro acentuou o fato de Padilha ter ensinado os brasileiros a ver os políticos de outra maneira

A redenção do capitão Nascimento

Os atores são excelentes: Kevin Spacey, Zachary Quinto, Jeremy Irons e mesmo Demi Moore

Um fi lme político sobre capitalismo

A integração dos turcos na Alemanha

de Berlim (Alemanha)

Vivem hoje dois milhões de turcos na Alemanha. A imigração turca começou nos anos 50 do século passado, pois mesmo com emigrantes espanhóis e portugueses, faltavam braços na indús-tria e na construção na Alemanha. No dia 10 de setembro de 1964, ao entrar na Alemanha o milionésimo emigrante, o governo alemão assinalou essa passa-gem e ofereceu prêmios de boas-vindas a ele, um português.

O fi lme Almanya – Bem-vindo na Alemanha conta a história do emigran-te que chegou a seguir, o de número 1.000.001, um turco, e da família que trouxe para a Alemanha, até uma ho-menagem da chancheler Angela Merkel aos emigrantes daquela época.

Sem dúvida, esse fi lme positivo so-bre a integração dos emigrantes turcos na Alemanha, que omite as lembran-ças amargas, dirigido por uma neta de emigrante, Yasemin Samdereli, e com cenário de sua irmã Nesrin Samdere-li, seria um forte concorrente ao Ur-so de Ouro, mas não participa da com-petição.

O momento de sua exibição, para-doxalmente, mostra tanto na Alema-nha como na União Europeia, um cli-ma desfavorável à emigração. Faz pou-co tempo, a chanceler Angela Merkel afi rmou ter sido um fracasso a políti-ca alemã multicultural, enquanto a UE

O momento de sua exibição, paradoxalmente, mostra tanto na

Alemanha como na União Europeia, um clima desfavorável à emigração

Tapete vermelho em Berlim: redenção do capitão Nascimento

Reprodução

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de 17 a 23 de fevereiro de 2011 9áfrica

Eduardo Sales de Limada Redação

A POPULAÇÃO egípcia se rebelou por causa da falta de perspectiva de uma vi-da digna, de emprego, saúde, educação. Também não suportava mais a perma-nência de um déspota no poder. Foi às ruas e fez sua revolução. E continua fa-zendo. “Está em curso um revolução, mas o caráter não está claro, se ela vai democrático-popular ou se terá outra ca-racterística”, explica o sociólogo e arabis-ta Lejeune Mirhan.

Parece que isso vem ocorrendo. No dia 14, logo após o exército ter evacuado a Praça Tahir, principal palco das manifes-tações que clamavam a renúncia de Hos-ni Mubarak, cerca de 2 mil trabalhado-res, entre bancários, policiais e funcioná-rios da indústria do turismo e do trans-porte, marcharam reivindicando melho-res salários.

Para o sociólogo estadunidense de fa-mília egípcia Alexander Hanna, que re-tornou do Cairo para os Estados Unidos no dia 13, apesar da ausência de direção central no movimento, o país vive uma espécie de “efervescência coletiva”. Pa-ra ele, esse clima pode levar a população a outros avanços, extrapolando o campo político-institucional em direção a mu-danças econômicas e sociais.

Assim enxerga a historiadora Arlene Clemesha, professora de história ára-be da Universidade de São Paulo (USP). Para ela, parece claro que há setores que não vão parar por aqui. “As reivin-dicações ainda não foram atendidas”, afi rma.

O bacharel em relações internacionais Fernando Bissacot teve a mesma im-pressão. Ele permaneceu em Cairo por três meses e retornou ao Brasil no dia 11. Após testemunhar os protestos, ele che-gou à conclusão que um grande desafi o para o futuro da revolução será exata-mente com relação à canalização das ex-pectativas populares de maneira organi-zada, “capaz de exercer uma força políti-ca de caráter nacional”.

Provisório?Já nesse momento de transição é pos-

sível organizar essas expectativas, de acordo com Alexander Hanna, que tam-bém é graduando da Universidade de Wisconsin-Madison e pesquisador de movimentos sociais e mídia social. Para ele, enquanto os aspectos da nova cons-tituição forem escritos para “salvaguar-dar o espírito do movimento”, o declínio de poder democrático pode ser evitado. “Claro, nenhum documento é 100% in-vulnerável a abusos. Posso parecer ingê-

A revolução continua

nuo aqui, mas acredito que as pessoas descobriram que elas têm poder coleti-vo e que quando chegar a hora de come-çar a redigir a Constituição, com delega-dos e representantes para esse processo, ele vai em geral refl etir a vontade do po-vo”, afi rma.

Mas agora, já no processo de redi-gir as mudanças na Constituição, apa-recem entraves. No dia 13, o Exército anunciou que havia dissolvido o Parla-mento e suspendido a Constituição, e que governará o país durante seis me-ses ou até que eleições possam ser rea-lizadas. Até o fechamento desta edição (dia 15), o conselho da junta militar ain-da não dava detalhes sobre a participa-ção de civis ou de outros grupos na alte-ração da Constituição durante a transi-

ção. Nada foi dito também sobre o fi m da Lei de Emergência, que vigora há 30 anos no país. “A população, com comi-tês, tem sustentado a necessidade de um governo de transição, com o exército e a presença de alguns representantes civis. A situação, contudo, não está indicando que o Exército vá atender a essa exigên-cia”, critica Clemesha.

FéNo momento, a situação política no

Egito é contraditória. Como conta Ar-lene Clemesha, o Exército tem um his-tória de participação em guerras como as de 1956, 1967, 1973. Além disso, “nes-sa revolta popular, o Exército foi simpá-tico à população, juntando-se a ela, ti-rando fardas, se recusando a reprimir”, lembra.

Assim também pensa Alexander Han-na. “As pessoas parecem ter fé nos mi-litares”, afi rma. Ele lembra de uma pa-lavra de ordem nos 18 dias de manifes-tações ocorridas a partir de 25 de janei-ro e que levaram à queda de Mubarak: “O povo e o Exército são uma mão”. Es-sa palavra de ordem, segundo Hanna, é estratégica. Pode funcionar, de acor-do com ele, como um tipo de defesa, de

compromisso, de respeito à cumplici-dade, caso o Exército venha, a partir deagora, responder às futuras manifesta-ções com violência.

Fato é que as Forças Armadas assumi-ram o poder e já corre pelos jornais detodo o mundo que foram eles que força-ram a saída de Mubarak. Agora, emergea seguinte pergunta: a transição para a democracia ocorrerá, também, entre oslimites democráticos? “O perigo é que o Exército conduza essa transição de for-ma a não permitir muita abertura. Isso é o que se teme”, pondera a historiado-ra Arlene Clemesha. (Colobaram Rena-to Godoy de Toledo e Luís Brasilino, daRedação)

da Redação

A partir dos 18 dias de manifesta-ções no Egito, três grandes forças po-líticas se sobressaíram. Existiria, de acordo com o sociólogo Lejeune Mi-rhan, um conjunto de forças mais conservadoras, apoiada pelos mili-tares; outro campo político forma-do por forças religiosas, liderado pe-la Irmandade Muçulmana; e, por úl-timo, um conjunto de forças progres-sistas ligadas às bases populares.

Segundo ele, o primeiro cam-po tem um caráter laico conserva-dor, que poderia representar a Jun-ta Militar. “É um Mubarakismo sem (Hosni) Mubarak. Isso é uma possi-bilidade real”, pondera Mirhan. Para ele, até mesmo o próprio ministro da Defesa, Mohamed Hussein Tantawi, “conhecido como poodle de Muba-rak, pró-americano ferrenho”, pode ser candidato a presidente.

Sobre esse setor, o professor de Re-lações Internacionais da UnB, Virgí-lio Arraes, acrescenta que, no mo-mento, as forças armadas egípcias e a diplomacia estadunidense anali-sam os nomes dos possíveis sucesso-res de Mubarak para as eleições pre-sidenciais de setembro. Arraes vai além e acredita que é possível que haja um consenso até mesmo com a “incipiente oposição”, mesmo civil.

A segunda força política, segundo Lejeune Mirhan, seria a união das forças islâmicas em torno do gru-po chamado Irmandade Muçulma-na. Entretanto, não é muito provável que esse campo dispute as eleições à presidência da república, visto que o laicismo na política egípcia já é algo consolidado, como explica o historia-dora Arlene Clemesha. “O Egito tem uma população muito religiosa, mas

que defende o laicismo na política. Mesmo a Irmandade conseguindo uma parcela dos votos ao parlamen-to, por exemplo, tem que ser tratada com normalidade. Os Estados Uni-dos e a Europa precisam olhar com mais normalidade para partidos islâ-micos. Não são partidos radicais, an-ti-ocidentais”, explica.

Força popularO terceiro campo, de acordo com

Lejeune, é o que engloba os valores do nacionalismo e do pan-arabismo. Abrangeria uma linha mais popular e democrática. Para ele, uma aliança entre sindicatos progressistas, os jo-vens do Movimento 6 de abril, e fi -guras como Mohamed El Baradei, ex-diretor da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), e Amr Moussa, ex-ministro de relações ex-teriores de Mubarak e secretário ge-ral da Liga Árabe, poderiam direcio-nar esse processo.

Contudo, apesar de o Egito viver um momento revolucionário, exis-tem fragilidades consideráveis quan-to à organização dessa terceira via, supostamente a mais progressista. Como conta o estadunidense Ale-xander Hanna, que retornou do Egi-to no dia 13 de fevereiro, o país tem um movimento trabalhista muito vi-

brante em alguns setores, mas que foi em grande parte sufocado desde que a Federação de Sindicatos (úni-ca central do país) foi controlada pe-lo partido de Mubarak, o PND (Parti-do Nacional Democrático).

Outra difi culdade em aglutinar as forças mais progressistas pode-rá residir no foco sobre El Baradei, que apesar de criticar tanto os Esta-dos Unidos quanto as medidas que a Junta está tomando, não se transfor-mou em fator de consenso. “El Bara-dei é um nome importante e respei-tado no Egito. No entanto, pelo que pude perceber durante minha esta-dia por lá, ele não é considerado um líder capaz de defender as aspirações do povo egípcio e sofre duras críticas por ter passado grande parte de sua vida e carreira fora do país”, defende Fernando Bissacot, brasileiro e ba-charel em Relações Internacionais, que esteve três meses no Egito e re-tornou no dia 11.

Para Lejeune, a maior parte das forças progressistas queria um go-verno provisório, não uma Junta Mi-litar. Por isso, ele conclui que o pri-meiro campo já está sendo vitorio-so, de certa forma. “Mas de qualquer forma haverá eleições”, afi rma.

Fato é que, bruscas ou não, não há como fugir das mudanças políti-cas após as eleições. Para Arlene Cle-mesha, passadas as eleições progra-madas para setembro, seja qual for-ça as vença, um cenário possível é o estabelecimento de políticas mais autônomas. “E essas políticas mais autônomas vão, portanto, resguar-dar os interesses do Egito, dos paí-ses árabes em geral também, e po-dem signifi car a formação de um en-trave a toda ingerência externa, hoje muito grande”, explica.(ESL, colabo-raram RGT e LB)

da Redação

O povo egípcio vive uma situação de desespero. Seu governo provisório é formado por uma Jun-ta Militar, que tem como principal chefe Mohamed Hussein Tantawi, ministro da Defesa, considerado por especialistas, como o sociólogo Lejeune Mirhan, mais um fantoche estadunidense.

Os militares egípcios, apesar de respeitados pela população e de terem apoiado as manifestações po-pulares, sofrem de uma relação de dominação porparte de Washington. Desde a assinatura do Trata-do de Paz com Israel, em 1979, os Estados Unidos passaram a auxiliar militarmente o Egito com uma quantia em torno de 1,3 bilhão de dólares por ano.

Aliás, o que ocorreu após a queda de Hosni Mu-barak foi sintomático. As Forças Armadas do Egito emitiram uma nota dizendo que estão mantidos to-dos os acordos internacionais. Ou seja, os acordos de paz com Israel e os acordos de paz com os Esta-dos Unidos, sobretudo, estão de pé. “Desde 1979 não dá para os caras prescindirem desse dinheiro, que vai direto para eles; para essa cúpula, esse establish-ment militar”, ironiza o sociólogo Lejeune Mirhan.

A continuidade desse “benefício” após a revolu-ção soará no mínimo estranha ao povo que passou dias na Praça Tahir.“O Conselho Supremo do Exér-cito sempre se benefi ciou muito durante a época de Mubarak com o apoio estadunidense ao regime. O receio é que continue havendo o mesmo regime de Mubarak”, explica Arlene Clemesha.

Por toda essa relação de controle por parte de Wa-shington sob o Exército egípcio, o que contou mes-mo para a queda de Mubarak, sob o ponto de vis-ta da pressão internacional, foi a ação dos Esta-dos Unidos. Para Virgílio Arraes, professor de Re-lações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB), a queda de Mubarak se deu sobretudo devi-do a sua incapacidade de manter o país estável, fa-tor primordial aos estadunidenses. (ESL, colabora-ram RGT e LB)

EGITO Embora respeitados pela população, militares podem frear mudanças profundas

Forças políticas tomam sua formaTrês campos se sobressaem a partir da renúncia de Mubarak

Forças armadas do Egito ou dos EUA?Por acordo com Israel, militares egípcios recebem anualmente quase 1,3 bilhão de dólares

Para Lejeune, a maior parte das forças progressistas queria um governo provisório, não uma Junta Militar

“A população, com comitês, tem sustentado a necessidade de um governo de transição, com o exército e a presença

de alguns representantes civis”

“Nessa revolta popular, o Exército foi simpático à população, juntando-se a ela, tirando fardas, se recusando a reprimir”

Manifestantes comemoram a queda de Mubarak na praça Tahir, no centro do Cairo

Reprodução

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internacionalde 17 a 23 de fevereiro de 201110

Igor Ojedaenviado especial a Dacar (Senegal)

A EDIÇÃO DE 2011 do Fórum Social Mundial (FSM), realizada em Dacar, Senegal, entre 6 e 11 de fevereiro, aca-bou não dando a atenção que se espe-rava aos problemas do continente que o abrigou. Porém, dois dos principais te-mas debatidos por movimentos sociais e ONGs participantes durante os seis dias de evento afetam diretamente sua po-pulação, assim como a de outras regiões mais pobres do planeta, como Améri-ca Latina e Ásia: o crescimento acen-tuado da apropriação de terras nos últi-mos anos e o chamado “capitalismo ver-de”, que procura incidir no debate mun-dial sobre as mudanças climáticas para propor a utilização de novas tecnologias que supostamente as mitigariam. Tais inovações, nem é preciso dizer, muitas vezes requerem terras e recursos natu-rais em abundância, o que faz com que seja um dos elementos por trás da apro-priação massiva de territórios do Tercei-ro Mundo.

Segundo os movimentos e ONGs que lutam contra essa “nova” realidade, os principais agentes da compra ou expro-priação de terras são os governos estran-geiros e, especialmente, as corporações transnacionais, devidamente assessora-dos ou apoiados por instituições multila-terais, como o Banco Mundial. De acor-do com a Action Aid, mais de 20 milhões de hectares de terra em todo o mundo fo-ram apropriados por Estados e empre-sas desde 2006. Essa preocupação, alia-da ao contexto de crise econômica, cli-mática e alimentar em que o mundo vi-ve, fez acender o sinal de alerta das orga-nizações presentes em Dacar.

MotivaçõesEntre as razões que levam a tamanha

apropriação privada, aponta-se o cresci-mento da produção de agrocombustível e biomassa, a busca cada vez maior por re-servas de água doce e a especulação por parte de investidores privados, que apos-tam no aumento futuro do preço das ter-ras e dos produtos agrícolas. Por outro lado, o crescimento da população e da urbanização em certos países, combina-dos com o esgotamento dos recursos na-turais, vem levando os Estados a adquiri-rem terras estrangeiras para realocar sua produção agrícola e garantir a própria soberania alimentar em longo prazo.

As novas lutas globais dos movimentos popularesFSM 2011 Para além das questões permanentes, discussões do evento deste ano se concentraram no crescimento da apropriação de terras em todo o mundo e nos perigos do debate sobre o clima

Além das diversas mesas realiza-das durante o Fórum Social Mundial, o problema foi assunto principal de uma das assembleias fi nais do evento, ocor-rida no dia 11. Na ocasião, movimen-tos e ONGs lançaram o “Apelo de Da-car contra a apropriação de terras”. O documento denuncia que essa concen-tração agrária cada vez maior “priva os camponeses(as), pastores e pescado-res de seus meios de produção, restrin-gindo seu acesso aos recursos naturais ou limitando sua liberdade para produ-zir o que quiserem, e exacerba as desi-gualdades no acesso e controle da ter-ra, afetando as mulheres”. Nesse senti-do, o texto exige de parlamentos e go-vernos nacionais ações que ponham fi m a tal prática.

Mudanças climáticasJá em relação ao clima, os movimen-

tos participantes do FSM deixaram cla-ro que o tema está diretamente vincula-do à crescente monopolização dos terri-tórios. Durante o evento, a atenção fi cou voltada para a preparação para as cúpu-las de Durban, na África do Sul (COP-17, a ser realizada no fi m de 2011) e Rio + 20, que acontecerá no Rio de Janeiro em maio de 2012. As organizações so-ciais alertaram para a ameaça das solu-

ções “de mercado” para as alterações cli-máticas, que, segundo elas, servem ape-nas para aumentar os lucros das corpo-rações.

“A mudança climática é um produto do sistema capitalista de produção, dis-tribuição e consumo (...) Denunciamos o ‘capitalismo verde’ e rechaçamos as fal-sas soluções para a crise climática, co-mo os agrocombustíveis, os transgêni-cos e mecanismos de mercado de carbo-no, que iludem os pobres com falsas pro-messas de progresso enquanto se privati-zam ou se transformam em commodities as fl orestas e territórios onde essa popu-lação tem vivido por milhares de anos”, dizia um dos trechos da Declaração da Assembleia dos Movimentos Sociais, di-vulgada no dia 10.

Para os que combatem tais supostas soluções, o fracasso das negociações pa-ra o corte das emissões de gás carbôni-co pelos países industrializados é, sob o ponto de vista corporativo, o melhor ce-nário, pois, assim, vem à tona o plano B: novas tecnologias que supostamente mi-tigam as alterações no clima do planeta. Dessa forma, o padrão de consumo e de-senvolvimento das potências ocidentais poderia permanecer intocado.

Com o objetivo de alertar sobre a ame-aça desse discurso, a organização ETC Group realizou no dia 9 o debate “Rio + 20: a apropriação da Terra?”. Nas expo-sições dos debatedores, fi cou clara a pre-ocupação de que, por meio das novas

Agenda de mobilizaçõesEm um auditório da Universidade de Dacar lotado, organizações populares de todo o mundo, reunidas na Assembleia dos Movimentos Sociais, defi niram no dia 10 duas datas comuns de luta para 2011. Pa-ra 20 de março, está prevista uma mobilização glo-bal em solidariedade justamente às rebeliões no mundo árabe. Em 12 de outubro, dia já vinculado à resistência indígena na América Latina, ocorrerá uma jornada global de luta contra o capitalismo.

de Dacar (Senegal)

“Minha utopia é ver um Senegal me-lhor, com dirigentes competentes”, di-zia um dos muitos escritos de uma gran-de faixa de pano branco estendida sobre a calçada de uma das ruas do campus da Universidade Cheikh Anta Diop, a Uni-versidade de Dacar. O exercício pro-posto estava escrito em outra faixa me-nor, pendurada num galho de árvore lo-go acima. “Qual é a sua utopia?”, dizia a mensagem em cinco línguas: francês, inglês, wolof (a principal língua originá-ria do Senegal), português e espanhol. Criada para receber a adesão de pesso-as de todo o mundo que circulavam por ali (o que de fato ocorreu), a iniciativa seduziu, na maioria dos casos, os estu-dantes locais.

“Minha utopia é que Wade se vá”, es-creveu Pape Sambaindiaye, estudan-te de direito de 22 anos, sobre o atual presidente senegalês, Abdoulaye Wade. “Estamos cansados. O presidente é mui-to velho, já está há muito tempo no po-der. As condições de vida no Senegal es-tão muito difíceis”, disse ao Brasil de Fato. Ele é um dos muitos estudantes que estavam bastante curiosos com as movimentações em torno do Fórum So-cial Mundial (FSM). Para Pape, o even-to é uma assembleia de todos os po-vos do mundo. “Estou muito interessa-do, mas tenho aula”, diz o universitário, que, perguntado se gostaria que as au-las tivessem sido canceladas durante es-se período, abre um sorriso sem-graça, mas responde afi rmativamente.

O FSM-2011 mudou a vida da Uni-versidade de Dacar, mas, para a maio-ria de seus 60 mil estudantes, a vida se-

guiu normalmente. Muito devido às au-las que continuaram a ser ministradas, os universitários senegaleses participa-ram do evento principalmente na condi-ção de observadores curiosos.

Mas não por falta de vontade. Abdou-rahimoune Bassirou, de 30 anos, é ou-tro dos que gostariam de ter participado das atividades, mas não pôde. Estudan-te de relações internacionais, ele acre-dita que a realização do FSM em Da-car é muito importante por proporcio-nar a interação entre pessoas que vêm de muitos países. “Muitas questões im-portantes para a África são discutidas, como a migração, os refugiados, o pró-prio capitalismo”. Para ele, o debate so-bre tais temas em um evento realizado em seu país servirá para que eles alcan-cem muitos senegaleses. “Atualmente, são poucas pessoas que sabem dessas questões. Com o Fórum, os senegaleses e os africanos fi carão sabendo”.

Espaço de diversidadeSem poderem tomar parte do FSM,

muitos dos alunos da Universidade de Dacar observavam a movimentação numa das concentrações principais do evento. Inúmeras tendas brancas cobri-ram o espaço ao lado da Faculdade de Ciências Econômicas e Gestão. Como num típico Fórum Social Mundial, ha-via de tudo. Barracas das mais diversas organizações, movimentos e fundações, esteiras com artesanatos típicos, locais

de venda de produtos alimentícios orgâ-nicos, vendedores ambulantes... e gente.Muita gente circulando.

Estudantes curiosos se misturavamentre os participantes do evento, mui-tos destes procurando por entre as ten-das o local do debate que escolheram as-sistir (muitas vezes, sem encontrar). Se-negalesas de trajes típicos cantavam pa-ra atrair a atenção do público para seus mais variados grãos à venda. Um grupode percussão de Gâmbia tocava e dança-va um ritmo muito parecido com o sam-ba. De repente, passava uma marcha em solidariedade aos povos do Egito e daTunísia ou contra a violência na região de Casamance, que reivindica a inde-pendência do Senegal.

Entre os comerciantes senegaleses que vieram tentar a sorte no espaço do evento estavam as vendedoras de peixe Maguel-le Seyrrabor Sankharé e Fatoumata Cis-sé, vice-presidente da União de Mulhe-res Peixeiras. Normalmente trabalhando no porto de Dacar, onde têm um peque-no estande, ambas reclamaram das con-dições em que vivem. “Com o que traba-lhamos, não dá para viver. É muito sofri-do. Faltam políticas do governo para aju-dar”, disse Maguelle. De pé atrás de uma caixa que exibe os atuns que vendem, ela reclamou da difi culdade de criar os três fi lhos. “Meu marido foge numa hora des-sas. Ele não ajuda em nada”, diz. Para ela, nem o Fórum Social Mundial pôde mudar essa dura realidade. (IO)

“Estou muito interessado, mas tenho aula”, diz o universitário, que, perguntado se gostaria que as aulas

tivessem sido canceladas durante esse período, abre um sorriso sem-

graça, mas responde afi rmativamente

Vida universitária que segueImensa maioria dos estudantes da universidade que abriga o FSM-2011 participa do evento apenas na condição de observadores curiosos

20milhões de hectares de terras

foram apropriados por Estados e empresas desde 2006,

segundo a Action Aid

tecnologias, poucas corporações passem a controlar toda a vida no planeta.

Um dos palestrantes foi o canadense Pat Mooney, diretor-executivo do ETC, que explicou que são três as novas tecno-logias: a nanotecnologia, a biologia sin-tética e a geoengenharia. Segundo ele, a nanotecnologia se propõe a “reciclar e re-duzir nossos dejetos enquanto aumenta-se o nível de renda e consumo”. Já a bio-logia sintética procura produzir qualquer material a partir da biomassa. “Eles cos-tumam dizer: qualquer coisa que o di-nossauro [petróleo] pode fazer, as plan-tas também podem”. Dessa forma, a por-ta estaria aberta para o controle total so-bre a produção agrícola do planeta. Se-gundo o especialista, inúmeras empresas petrolíferas e o Departamento de Ener-gia dos Estados Unidos estão investindo pesadamente nessa tecnologia.

Por último, de acordo com Mooney, há algo ainda mais “assustador”: a geoen-genharia, ou seja, a manipulação de ele-mentos do clima para combater o aque-cimento. Entre as modalidades, exempli-fi cou, está a de introduzir nanopartículas sobre a superfície dos oceanos para que se criem certos tipos de plânctons que absorvam o excesso de gás carbônico no planeta. “O que estão dizendo é: não se preocupem com o clima. Nós não preci-samos mudar nosso estilo de vida. Cria-remos novas tecnologias para solucionar os problemas”.

Modo de vida estadunidenseJá Naomi Klein, escritora e ativista ca-

nadense, fez um alerta: “a privatização da Terra não é fi cção científi ca. Está aconte-cendo”. Segundo ela, depois do fracasso da Cúpula do Clima de Copenhague, re-alizada em dezembro de 2009, tal pro-cesso se acelerou, e o “plano B” foi posto em prática. Para Naomi, as novas tecno-logias permitem que se privatizem novas fronteiras, que não são mais físicas.

Já para o ativista do Mali, Mamadou Goïta, diretor-executivo da organização IRPAD África (Instituto de Pesquisa e Promoção de Alternativas em Desenvol-vimento), a África tem muito o que en-sinar ao mundo em relação ao enfrenta-mento dessa situação. Ele explicou que em todo o continente existem exemplos de novas técnicas e instrumentos utiliza-dos pelos agricultores para lidar com os efeitos da alteração do clima, como no-vos materiais e a produção de novas es-pécies de sementes. “O ponto-chave é a diversidade. Produzimos sementes para serem compartilhadas: não é o lucro sen-do maximizado, mas os riscos sendo mi-nimizados”, afi rmou.

Já em relação ao clima, os movimentos participantes do FSM deixaram claro que o tema está diretamente vinculado à crescente monopolização dos territórios

A marcha de abertura da 11ª edição do FSM reuniu 70 mil pessoas nas ruas de Dacar

Abdullah Vawda/IPS

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américa latina de 17 a 23 de fevereiro de 2011 11

Crescimento alto, dinheiro curtoARGENTINA Governo federal maquia números da infl ação, oposição se aproveita, mas quem sai perdendo é o trabalhador

Dafne Melode Buenos Aires (Argentina)

EM UMA VENDA na Grande Buenos Ai-res, a cliente pede por um maço de cigar-ros. “Seis pesos”, diz a vendedora, no que a cliente puxa da carteira uma nota de 100. A vendedora faz cara de quem não vai trocar a nota, mas logo desiste. “Se fosse há alguns anos, não te trocaria em hipótese alguma, mas hoje, a verdade é que 100 pesos já não valem muita coisa”. A percepção da comerciante não é nada falsa. De acordo com consultorias pri-vadas, nos últimos cinco anos a nota de 100 pesos de desvalorizou pela metade. A consultoria Analytica revela que a nota de 100 pesos correspondia a 35% das notas em circulação em 2005; hoje, são 46%.

No fi nal de 2010, em plena época de festas de fi m de ano, chegou a faltar no-tas de 100. Nos caixas automáticos de bancos, saíam apenas notas de 10 ou 50 pesos e muitos saques foram limitados em diversas cidades do país. A oposição saltou a gritar e alguns setores chegaram a pedir que Banco Central começasse a imprimir notas de 200.

O governo argentino de Cristina Kir-chner, entretanto, não reconhece os ín-dices e estatísticas de boa parte das con-sultorias e institutos de pesquisa priva-dos. Por meio do Instituto Nacional de Estatísticas e Censos (Indec), afi rma que a infl ação de 2010, por exemplo, foi de 10,9%. Cálculos feitos por outros eco-nomistas chegam a pouco mais de 30%. A página na internet www.infl acionverdadera.com, mantida por um grupo de economistas que afi rmam compa-rar diariamente o preço de produtos nos mercados, afi rma que a infl ação anu-al, levando-se em conta apenas os pre-ços de bebidas e alimentos, é de 34%. Já o aumento anual da cesta básica fi -ca em 28%.

Uso políticoO fato é que ninguém acredita mui-

to nos índices do Indec, e a sensação ge-ral é de que os preços de alguns produ-tos, sobretudo alimentícios, duplica-ram nos últimos três ou quatro anos. Os aluguéis também sofreram alta devido à grande especulação imobiliária existente em toda a região metropolitana da capi-tal argentina. A regra tem sido uma ele-vação de cerca de 200 pesos por ano, ain-da que o governo proíba o aumento, que muitas vezes não está previsto em con-trato, mas é acertado verbalmente entre as partes.

A oposição não deixa de apontar essa insatisfação e certamente fará uso polí-tico da sensação de pobreza e insatisfa-ção gerada pela infl ação nos debates elei-torais deste ano, já que em outubro a Ar-gentina escolhe um novo presidente – ou a mesma presidenta, já que Cristina de-verá tentar a reeleição. A oposição tam-bém ressalta a falta de transparência na contagem dos índices.

De acordo com o jornal conservador La Nación, em reportagem do dia 23 de janeiro, o Indec deixou de contabilizar 80 pontos percentuais da infl ação entre os anos de 2007 e 2010. Para os econo-mistas consultados pelo jornal, a infl ação desse período foi de 120%. O Indec con-tabiliza um acúmulo de 39% apenas.

Para o economista Axel Kicillof, pes-quisador da Universidade de Buenos Ai-res (UBA), é fato que há infl ação e a dis-cussão não deve passar por aí, mas discu-tir as formas existentes para controlá-la. “Temos que discutir como atuar, se den-tro de um modelo ortodoxo ou heterodo-xo”, resume.

Mal necessário?Demian Panigo, economista e pes-

quisador do Conselho Nacional de Pes-quisas Científi cas e Técnicas (Conicet,na sigla em espanhol), afi rma que ho-je há dois debates principais acerca dainfl ação. Um, de natureza mais orto-doxa, que afi rma que o problema é ocrescimento econômico acelerado pe-lo qual vem passando a Argentina nosúltimos anos e o excesso de gastos pú-blicos. A saída seria desacelerar a eco-nomia e intervir no câmbio. Outra po-sição, mais heterodoxa, defende que ainfl ação é um mal necessário para umpaís que escolhe crescer e gerar empre-go; a infl ação deve ser controlada, masatravés de outros mecanismos que nãodesacelerar a economia. “Recessão édefl ação garantida, mas é também al-go que prejudica o país”, afi rma Ki-cillof, para quem o desafi o do governofederal é gerar meios de conseguir maiscontrole sobre os preços, a exemplo doque faz hoje com as tarifas aéreas de-pois da compra das Aerolíneas Argen-tinas. Hoje, entretanto, afi rma Kicillof,o governo Kirchner ainda não conse-gue ter a força política necessária pa-ra implementar algumas dessas medi-das, interferindo de maneira mais dire-ta na economia, devido à resistência desetores empresariais que seriam atin-gidos, a exemplo do confl ito que o go-verno tem com o setor agroexportador.(Ver matéria abaixo).

Panigo também acredita que a infl a-ção não é necessariamente ruim e que sua existência não é necessariamente danosa para os trabalhadores, sobretu-do os informais. Para ele, a não existên-cia de infl ação não garante menos pobre-za. “Na década de 1980 não houve infl a-ção na Argentina e a pobreza aumentou muito”, argumenta. Além disso, Panigo afi rma que se o país quer crescer, é ine-vitável que tenha que conviver com au-mento dos preços. “Curiosamente, os dois países que mais crescem hoje e mais diminuem a pobreza são os que mais têm infl ação, Venezuela e Argentina”, defen-de o economista.

CrescimentoDe fato, a Argentina tem consegui-

do manter bons índices de crescimen-to nos últimos anos e reduzir os níveis de pobreza e de desemprego. Em 2010, o governo divulgou os índices de cresci-mento, em clima de festa, e propagan-deou que crescimento equivalente ocor-reu apenas há 200 anos, no fi nal do sécu-lo 19, quando o país chegou a ser a sexta economia do mundo. Entretanto, há de se levar em conta que as altas porcenta-gens aparecem após uma intensa reces-são entre 2000 e 2003, quando o país entrou em crise e as taxas de crescimento chegaram a menos 14%. Desde 2004, o país vem registrando taxas acima de 6%, chegando a um pico de 9,2% em 2006. Em 2010, o crescimento estimado tam-bém foi alto, próximo ao de 2006. No ge-ral, desde 2002, o Produto Interno Bru-to (PIB) do país avançou mais de 80% e o desemprego, no mesmo período, abai-xou 30%.

A atual taxa de desemprego fi ca em torno dos 7%, mas a informalidade con-tinua alta. Estima-se que 35% da força de trabalho não está registrada, sendo que a maioria dela está concentrada no campo, explorada pelo agronegócio, sobretudo.

Para Axel Kicillof, é justamente esse segmento da população – que não é re-gistrada – que mais sofre com o aumen-to dos preços, sobretudo dos alimen-tos. Outro problema são os trabalhado-res terceirizados, que são contratados por salários baixos e possuem pouco po-der para negociar aumentos. Assim, em-bora o governo também tenha adotado uma postura de valorizar o salário míni-mo, que hoje está em torno de 1840 pe-sos (R$ 760), em relação a 2007, o valor absoluto do salário dobrou.

de Buenos Aires (Argentina)

O Instituto Nacional de Estatísticas e Censos (Indec) é o órgão público de caráter técnico ligado ao Ministério de Economia e Finanças Públicas, respon-sável, na Argentina, por medir a infl a-ção, níveis de desemprego e crescimen-to, dentre outras atribuições. Em outu-bro de 2006, pouco antes das eleições presidenciais que colocou Cristina Kir-chner na Casa Rosada, o governo, en-tão com Néstor Kirchner, interveio no órgão. Na ocasião, o Executivo pediu a Graciela Bevacqua, titular da Direto-ria do Índice de Preços ao Consumidor (IPC), os nomes dos estabelecimentos comerciais pesquisados para o cálculo da infl ação. A diretora negou-se a fazê-lo, com base na lei de sigilo estatístico.

Indec em descréditoEm janeiro seguinte, a diretora, que es-tava há dez anos na direção, foi demi-tida sem aviso prévio, assim como vá-rios técnicos.

Em seu lugar, assumiu Beatriz Pa-glieri, pessoa vinculada politicamen-te à Secretaria de Comércio. Funcio-nários do instituto denunciaram então uma mudança da metodologia – que não foi publicada nem discutida entre os técnicos. Um mês depois, Manuel Garrido, fi scal de Investigações Ad-ministrativas, intimou a depor tanto os funcionários que fi zeram a denún-cia como os de oposição. Graciela, que hoje trabalha em um instituto vincu-lado à Universidade de Buenos Aires, denuncia até hoje a intervenção, afi r-mando que o governo federal não que-ria gastos domésticos nos índices de preços. (DM)

de Buenos Aires (Argentina)

Em 2008, o setor agropecuário ar-gentino protagonizou uma série de blo-queios em estradas – os chamados lo-cautes – após o governo federal tomar uma medida que aumentava as reten-ções (impostos sobre as exportações) do setor. A medida se deu em meio à crise de aumento do preço das commodities – e dos alimentos – em todo o mundo. Um dos argumentos do governo Kirchner, na época, para a medida, foi justamente ob-ter maior controle do preço de produtos básicos de consumo no país, como grãos – sobretudo trigo –, carnes e laticínios, evitando que os preços internos acom-panhassem os externos e o preço dos ali-mentos – e a infl ação – subissem muito.

Retenções agrícolas seriam uma política de controle infl acionário

Na época, centenas de milhares de ar-gentinos foram às ruas protestar, con-tra ou a favor. O governo não conse-guiu sustentar a forte polarização polí-tica e foi obrigado a ceder. O clima pe-sado entre “o campo” e o governo é ten-so até hoje, devido às tentativas de in-tervenção. Entre janeiro e fevereiro des-te ano, novas tentativas de locautes fo-ram feitas, mas obtiveram pouca adesãodo próprio setor.

Em seus discursos, a presidente Cris-tina Kirchner sempre atribuiu ao setor sua parcela de culpa em relação a infl a-ção. Recentemente, criticou a todos “os empresários formadores de preços emtoda a cadeia produtiva”, que reclamam “como se não tivessem nada a ver e nãofossem atores importantes no tema rela-cionado à infl ação”. (DM)

“Na década de 1980 não houve infl ação na Argentina e a pobreza aumentou muito”

Gama

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américa latinade 17 a 23 de fevereiro de 201112

Pedro Carranoenviado a Santiago (Chile)

A ECONOMIA chilena descreve, des-de 1973, um longo período, com o gol-pe encabeçado pelo general Augusto Pi-nochet contra o governo popular de Sal-vador Allende e que, hoje, consolida-se em uma economia controlada por gran-des empresas nacionais e estrangeiras, que detêm a pauta de exportação e man-têm um mercado interno estrangulado – apesar de representarem somente 1% das unidades produtivas do país. Assim mesmo, controlam 80% do mercado in-terno e dão trabalho a apenas 20% da população.

Esta é a análise do economista chileno José Manuel Flores. No país onde o neo-liberalismo obteve hegemonia e produ-ziu uma alteração radical na economia, a exportação do cobre é central, alvo de controle e exportação. “Antes se expor-tava cobre e agora se explora concen-trado de cobre, sua matéria-prima. As transnacionais controlam 76% do cobre chileno”, analisa o economista. Em en-trevista ao Brasil de Fato, Flores fala da relação entre os recursos naturais e a economia chilena, o fracasso da Concer-tação como alternativa de governo após a saída de Pinochet, e agora na condi-ção de oposição ao governo do direitis-ta Sebastián Piñera, há um ano no po-der. Nesse cenário, movimentos popula-res ganham nova importância. A recen-te revolta popular na província de Ma-galhães, contra o aumento do preço do gás, o demonstra.

Brasil de Fato – Há pouco ocorreu uma manifestação popular no departamento de Magalhães, no sul do Chile, devido à alta do preço do gás. Quais as razões desse movimento?José Manuel Flores – Não é a pri-meira vez que ocorre. Desde a época de Pinochet, Magalhães teve uma reação similar ao que se vê agora, em termos de unidade cidadã, de rechaço ao que signi-fi cou em seu tempo a ditadura. Sobre o tema do gás, por certo que se dá em um outro contexto, que pode parecer como algo reivindicativo talvez. Há que consi-derar que Magalhães é uma zona produ-tora de gás, e quem trabalha nessa zo-na é uma empresa estatal. Pelas condi-ções climáticas, o gás é um insumo bá-sico para a povoação. No verão, você vê o calor que faz na capital [Santiago], e lá faz 12 graus negativos. E estamos no verão. Em Magalhães, à parte o consu-mo domiciliar, tudo o que se move com energia se move com base no gás, até a eletricidade. Encarece o gás e todas as condições de vida se encarecem. E Se-bastián Piñera, no transcurso da cam-panha [presidencial de 2009], prome-teu aos magalhanicos que não ia reajus-tar o gás, logo essa promessa foi ratifi ca-da no ano passado, sendo já presidente. O ex-ministro de energia, nos dias pré-vios ao confl ito, usou palavras que deto-naram a reação das pessoas, disse que “acabou a festa aos magalhanicos em re-lação ao gás”, e disse que ia subir 16,8%. Fez o anúncio de uma maneira desres-peitosa e grosseira. Essa atitude de pre-potência desencadeou a reação da gente como se viu.

E a alta de 3% foi considerada uma vitória pelo movimento?

Mitigaram a alta, mas houve aumen-to. Além disso, derrubaram o ministro. E o ministro de mineração é o que con-trola a pasta de energia, quem fecha as negociações com a assembleia cidadã – uma organização latente, que antes era invisível para o resto da cidadania, que tomou as rédeas políticas do confl i-to. Creio que o novo dessa experiência é isso: que aparece como sujeito de ação política uma organização que antes não estava visível. Dito de outra maneira: os partidos políticos tradicionais não são sujeitos nesse confl ito. Nem os da Con-certação, nem os da Aliança, nem os pa-ra além da Concertação. É um fenômeno que estamos vendo no período de Piñe-ra, que estamos percebendo no primeiro ano de governo da Aliança: neste perío-do, a Concertação não existe no cenário político, não tem presença, ademais tem os seus confl itos (internos, resultado de pequenos fracionamentos).

A questão da mineração é central para entender a economia política chilena. Qual o papel que a empresa estatal Codelco jogou antes e hoje?

Tem a ver com o modelo econômico que se impôs ao país a partir de 1973. Até este ano, a Codelco tinha o con-trole quase total da produção de co-bre, não de 100%, pois havia um ní-vel de mineração da ordem de 2% com a empresa estrangeira. Mas a maioria da produção da grande mineração esta-va nas mãos de Codelco. Isso até o mo-mento do golpe. O que faz depois Pino-chet é criar um marco jurídico que per-mitisse a incorporação de investimen-to estrangeiro na exploração dos recur-sos naturais chilenos. Isso nos anos de 1974/75.

Até então, a produção de cobre era monopólio do Estado chileno?

Durante todo o governo de Pinochet, o cobre esteve em mãos do Estado. Ao fi nal da ditadura, a Codelco controlava 90%. No momento que Pinochet sai do poder, a Codelco produzia 1,1 milhão to-neladas. Isso dava conta de 90% da pro-dução. Com esse antecedente, Pino-chet não desnacionalizou na realidade o cobre, e sim criou ferramentas jurí-dicas que, com os governos de Concer-tação, possibilitaram a desnacionaliza-ção. Por exemplo, uma ferramenta jurí-dica foi o decreto Lei nº 600, uma cria-ção de Pinochet para facilitar o investi-mento estrangeiro no Chile. Quando se dão uma série de privilégios, uma série de royalties aos estrangeiros para inves-tir no Chile, no fundo se reduziam cus-tos para o investimento. Posteriormen-te, em 1980, o irmão do presidente atu-al, José Piñera, pôs em prática o que é o código de mineração, com as chamadas “concessões plenas”.

Parece que a privatização é ininterrupta, entre o período Pinochet e após a sua saída.

Tínhamos dito que Pinochet estabe-lece as normas legais, a estrutura bási-ca legal para privatizar os recursos do país. Agora, há que fazer uma ressalva. Quando Salvador Allende nacionaliza o cobre, a riqueza básica, ele incorpora essa nacionalização à Constituição po-lítica. O Chile se regia até esse minuto pela Constituição política de 1925. En-tão, através do Congresso, Allende in-corpora o direito inalienável, impres-critível e irrenunciável dos direitos do povo sobre todas as riquezas básicas da nação. Essa reforma legal, Pinochet não a pôde derrubar na sua Constitui-ção de 1980. A lei orgânica que rege o Estado é a Constituição. No entanto, José Piñera faz posteriormente um có-digo de mineração onde cria o conceito de “concessão plena”, e o que signifi ca? Dar direitos perpétuos sobre os recur-sos naturais de Chile. Vale dizer: atra-vés desse artifício legal, ele viola essas características que Allende havia dado à propriedade dos recursos. Então, por um lado a Constituição estabelece o di-reito dos chilenos sobre os recursos, e por outro lado um código de minera-ção, uma lei de nível inferior, estabele-ce que terceiros podem ter direitos so-bre esses recursos. É evidente que há uma contradição. A Constituição tem uma hierarquia sobre qualquer lei infe-

rior a ela. Há um ato claro de ilegalida-de. Vale dizer, todas as concessões mi-neiras que se dão desde essa data são atos claros de ilegalidade, porém se faz na prática, e segue sendo feito. A Co-delco, ao fi nal do período de Pinochet, em 1990, controlava 90% de produção mineira, o que signifi ca 1,1 milhão to-neladas de cobre. Ao fi nal de 18 anos, essa produção chega a 6 milhões de to-neladas ponderadas. O que signifi ca: o que Pinochet não conseguiu lograr em 20 anos, a Concertação o quintuplicou.

Por que “estatísticas ponderadas”? Trata-se de uma commodity vendida sem valor agregado?

Todas são estatísticas ponderadas, porque em realidade o que se está re-tirando não é cobre, mas concentrado de cobre, que é uma submatéria-pri-ma que eles a classifi cam segundo leis que as transnacionais defi nem. Aqui no Chile é a Cochilco a instituição pública, fi scal, que se encarrega supostamente de vigiar as operações. Eles entregam uma estatística que condensa toda es-sa extração.

É citado o período Allende como uma encruzilhada histórica para o país. Como foi a relação do governo popular com a indústria, uma vez que o setor mineiro foi privatizado com o golpe civil-militar?

Agora estamos fazendo 40 anos do primeiro ano do governo de Salvador Allende. Quando ele inicia, no ano de 1971, a primeira ação que faz é naciona-lizar a indústria têxtil. Havia articulação técnica e essa indústria absorvia grande quantidade de trabalhadores urbanos. Para garantir vestimenta para a popula-ção, Allende nacionaliza essa indústria, os trabalhadores têxteis são os primei-ros a conformar o que se conheceu pos-teriormente como a área social da eco-nomia, um conceito que na Venezuela ainda não está em prática, se bem é cer-to que Chávez nacionalizou empresas, mas não criou uma área social.

O que seria isso, uma área estratégica?

Claro. O primeiro que fez Allende foi começar a construir uma área estraté-gica na economia. O que se traduziu em que os trabalhadores urbanos tomas-sem consciência política mais rápido do que vinha historicamente se desen-volvendo, com isso tomaram consciên-cia do que podiam eles como trabalha-dores. Com isso, criaram-se novas ne-cessidades. O primeiro que se fez foi to-mar a indústria têxtil e logo os bancos. E outros setores da economia. De janei-ro a março de 1971, grande parte dos bancos chilenos havia entrado na área

social da economia, e em três meses Al-lende fez um controle da atividade eco-nômica bastante signifi cativo.

Na sua avaliação, qual a razão da derrota da Concertação para a direitista Aliança nas últimas eleições e qual o porquê da falta de uma alternativa política?

Porque [a Concertação] não deu cum-primento ao que supostamente ia reali-zar, na prática as pessoas se vão dandoconta, e em particular no primeiro anode governo [na década de 1990], quan-do se diz que há que fazer as coisas namedida do possível, o que signifi counão mudar nada do que Pinochet ha-via feito. Talvez os setores mais cons-cientes politicamente se deram con-ta que a Concertação é o que o impe-rialismo nos pôs em xeque, com o te-ma do plebiscito. O plebiscito foi feitoem 1988, quando Pinochet pergunta-va se seguia governando ou se chama-va eleições. Nesse minuto, não existiapadrão eleitoral. A população adulta foichamada a inscrever-se no padrão elei-toral por todos os partidos de esquerdae a Concertação. Foram chamadas elei-ções e ganhou a Concertação. Nessa en-cruzilhada, nos damos conta que fi rma-ram um pacto de garantia plena em queo centro de poder se manteria no apa-rato estatal, não se tocaria nisso. Entre1988 e 1990, são feitas manobras po-líticas e muita gente toma consciênciaque essa situação não ia mudar. Pino-chet concebeu um modelo neoliberale a Concertação segue em marcha es-te modelo que não se havia desenvolvi-do. Começou a privatização dos recur-sos naturais. Abre-se o Estado chilenopara receber investimentos estrangei-ros na lei mineira.

Recursos saqueados à luz do diaCHILE Economista aponta como recursos naturais foram o centro para a consolidação do neoliberalismo no país

O que é a ConcertaçãoCoalizão entre os partidos de centro-esquerda, em oposição à ditadura de Pinochet – Socialis-ta (OS), Radical (PRSD), Pela Democracia (PPD) e Democrata-Cristão (DC) –, a Concertação incentivou a população para o voto pela aber-tura no país, ainda em 1988. Governou o país desde a década de 1990, até a sua derrota, nas eleições presidenciais de 2009, para a Alianza para o Câmbio, de Sebastián Piñera.

QUEM É?José Manuel Flores é militante chileno desde o período da ditadura de Pinochet, economista e professor da Universidade de Santiago de Chile. Membro fundador do Comitê de Defesa do Cobre, colabora com a TV comunitária TV Umbrales, no bairro de Villa Francia (periferia de Santiago de Chile).

“O ex-ministro de energia, nos dias prévios ao confl ito, usou palavras que detonaram a reação das pessoas”

“Quando Salvador Allende nacionaliza o cobre, a riqueza básica, ele incorpora essa nacionalização à Constituição política”

“Pinochet concebeu um modelo neoliberal e a Concertação segue em marcha este modelo”

Manifestação no departamento de Magalhães contra a alta do preço do gás

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