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1 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 176, jan. 2009. EDITORIAL N este mês, iniciamos o vigésimo aniversário de fundação da APPOA. Reconhecemos os efeitos deste ato ao longo de uma trajetória e nos surpreendemos ao nos depararmos com sua vigência e trans- missão em momentos e lugares inesperados. Como devem ser as forma- ções do inconsciente, as quais procuramos dar lugar e reconhecer o impos- sível que as organiza. A aposta numa instituição que trabalhasse fortemente a circulação transferencial e a íntima articulação com a Polis, sem perder o rigor neces- sário, pode ser medida pelo lugar que a Associação constituiu nestes anos e pela responsabilidade que cada membro se sente imbuído, ao referir-se a sua filiação institucional e aos laços que estabeleceu com a comunidade. Ética com uma análise e com a história da psicanálise. Travessia em aberto, como não poderia deixar de ser. Abertura para novas perguntas que possibilitam revisar os conceitos de uma prática. Por isto, este ano retornamos aos fundamentos, as interro- gações sobre Neuroses e Psicoses. Sem buscar uma palavra final, mas deixando-nos trabalhar pelas contribuições que vem da clínica e do discurso do Outro. Adiantando um pouco algumas de nossas atividades previstas: nossa Jornada de Abertura será sobre o tema do Ciúme. Relendo Freud e conversando sobre a APPOA retomará o texto sobre Schreber. Estaremos lendo, ao longo do ano, o Seminário 3, de Lacan, As psicoses. Nosso Qua- dro de Ensino mostra uma diversidade e riqueza temática que marca um estilo. Sem falar no Congresso da Convergência que acontece em maio, na Argentina e mesmo nas diversas atividades articuladas com outras institui- ções. Este início de ano também está marcado pela renovação da Mesa Diretiva, onde uma nova gestão estará encarregada de conduzir a APPOA nos próximos dois anos. Não é por acaso que esta edição do Correio está dedicada à escrita da experiência, com contribuições de membros e interlocutores convidados. Pois é com a escrita que podemos pensar o que se inscreve, com o que foi dito, ao longo de uma trajetória.

EDITORIAL Nbonita-do-laço-de-fita, uma palavra : “minha história”! Menina-bonita-do-laço-de-fita ficou tão contente em encontrar-se com aquela palavra-isca que pronta-mente

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1C. da APPOA, Porto Alegre, n. 176, jan. 2009.

EDITORIAL

Neste mês, iniciamos o vigésimo aniversário de fundação da APPOA.Reconhecemos os efeitos deste ato ao longo de uma trajetória enos surpreendemos ao nos depararmos com sua vigência e trans-

missão em momentos e lugares inesperados. Como devem ser as forma-ções do inconsciente, as quais procuramos dar lugar e reconhecer o impos-sível que as organiza.

A aposta numa instituição que trabalhasse fortemente a circulaçãotransferencial e a íntima articulação com a Polis, sem perder o rigor neces-sário, pode ser medida pelo lugar que a Associação constituiu nestes anos epela responsabilidade que cada membro se sente imbuído, ao referir-se asua filiação institucional e aos laços que estabeleceu com a comunidade.Ética com uma análise e com a história da psicanálise. Travessia em aberto,como não poderia deixar de ser.

Abertura para novas perguntas que possibilitam revisar os conceitosde uma prática. Por isto, este ano retornamos aos fundamentos, as interro-gações sobre Neuroses e Psicoses. Sem buscar uma palavra final, masdeixando-nos trabalhar pelas contribuições que vem da clínica e do discursodo Outro. Adiantando um pouco algumas de nossas atividades previstas:nossa Jornada de Abertura será sobre o tema do Ciúme. Relendo Freud econversando sobre a APPOA retomará o texto sobre Schreber. Estaremoslendo, ao longo do ano, o Seminário 3, de Lacan, As psicoses. Nosso Qua-dro de Ensino mostra uma diversidade e riqueza temática que marca umestilo. Sem falar no Congresso da Convergência que acontece em maio, naArgentina e mesmo nas diversas atividades articuladas com outras institui-ções.

Este início de ano também está marcado pela renovação da MesaDiretiva, onde uma nova gestão estará encarregada de conduzir a APPOAnos próximos dois anos.

Não é por acaso que esta edição do Correio está dedicada à escritada experiência, com contribuições de membros e interlocutores convidados.Pois é com a escrita que podemos pensar o que se inscreve, com o que foidito, ao longo de uma trajetória.

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3C. da APPOA, Porto Alegre, n. 176, jan. 2009.2 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 176, jan. 2009.

SEÇÃO TEMÁTICA

PALAVRAS-ISCAS

Marieta Madeira RodriguesPaulo Gleich1

Simone Moschen Rickes

“Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavrapescando o que não é palavra. Quando essa não-palavra – a entrelinha –

morde a isca, alguma coisa se escreveu. Uma vez que se pescou a entrelinha,poder-se-ia com alívio, jogar a palavra fora. Mas aí cessa a analogia: a não-

palavra, ao morder a isca, incorporou-a. O que salva então é escrever

distraidamente”. (Clarice Lispector – Água Viva)

Menina-bonita-do-laço-de-fita escreve, escreve, escreve. Escreve sobre suas experiências como usuária da rede de saúde mental.Escreve sobre medicações e internações. Escreve sobre as pes-

soas que a cercam. Escreve suas fantasias. Não tem dificuldade algumapara escrever: seu texto é fluido, quase derramado no papel. O que lhe custaé terminar o escrito. Parece que só para de escrever por alguma razão exter-na a ela: a hora de ir embora, o fim do caderno. Não conclui. Compartilhaesse traço do interminável com os que escrevem com ela. Até o dia em queuma isca caiu sobre ela, ou melhor, sobre seu caderno... Mas antes deprosseguir com sua história, façamos uma curta viagem ao território onde elase inscreve.

É ao redor de uma grande mesa, numa sala localizada na labirínticaconstrução centenária que caracteriza o Hospital Psiquiátrico São Pedro,em Porto Alegre, que se reúnem, semanalmente, os participantes da Oficinade Escrita. Esses sujeitos, oriundos de unidades do Hospital ou de territóri-os localizados fora de seus muros, sejam eles loucos ou não, compartilham,

1 Estudande de Psicologia da UFRGS e aluno do percurso de Escola da APPOA.

Poderíamos pensar que quando o tema de trabalho é a escrita, ospsicanalistas nem sempre se sentem à vontade. Afinal, não foi sobreela que Freud fundou sua disciplina, mas antes sobre o que poderia

ser tomado como um anátema: a fala. Tal distinção, abordada por vezescomo uma oposição, já fez correr bastante tinta e, porque não acrescentar,bastante saliva também, associando-se a humores variados – desde brigasentre posições empedernidas e que marcaram época (lembramos aqui espe-cialmente a querela entre Derrida e Lacan), até paixões amorosas e promes-sas de casamento eterno (nos enlaces entre Freud e a literatura, sobretudo).

De um tempo para cá, no entanto, a inclusão do significante “escrita”no vocabulário psicanalítico tem demonstrado sua relevância e fecundidade,abrindo um amplo leque de questões a serem trabalhadas. Também por isso,esse número do correio da APPOA e o de março serão ambos dedicados aquestões concernentes a essa temática.

“Escritas da experiência” é o título de uma rede de pesquisa, coorde-nado por Ana Costa. Herança do seminário Passagens, lugar de trânsitoentre os litorais da psicanálise, e que permitiu a constituição de um espaçoaberto para o pensamento – uma u-topia, como diria Edson de Sousa, um denossos inspiradores nesse trabalho1. O topos em causa é o da experiênciaque nos concerne como analistas: lugar de encontro com o outro/Outro, noqual convocamos o sujeito a advir. Que isso possa se dar na escuta datransferência não apenas no consultório, mas em espaços tidos como nãousuais para o exercício da práxis analítica, é o que podemos acompanharnos textos que aqui se encontram; fieis à letra freudiana na aposta de que oinconsciente se dá a ler aonde houver um analista disposto a cifrá-lo e decifrá-lo.

Maria Cristina Poli e Simone Rickes

1 O Seminário Passagens, hoje transformado em núcleo Passagens – sujeito e cultura, foipor muitos anos coordenado por Ana Costa, Edson de Sousa e Lucia Pereira.

RODRIGUES, M. ...Et al. Palavras-iscas.

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SEÇÃO TEMÁTICA

mais encontrado. Algumas semanas depois do sumiço do Saco – e da con-fecção de um novo –, ao buscar o caderno de um dos escreventes, eis quenos deparamos com o velho Saco, que estava escondido, espremido entrecadernos do arquivo da Oficina! Resolvemos, então, juntar suas palavras àsdo novo. Na operação de transpor as palavras do Saco antigo para sua novamorada, o Oficineiro deixou cair, sem querer, sobre o caderno da Menina-bonita-do-laço-de-fita, uma palavra: “minha história”! Menina-bonita-do-laço-de-fita ficou tão contente em encontrar-se com aquela palavra-isca que pronta-mente pediu cola para fixá-la em seu caderno: a palavra agora era sua. Na-quele momento podia dispor não só das palavras que lhe vinham à cabeça(que não eram poucas), mas também dessa “minha história” que o Oficineirodeixara cair quando mudava as palavras de um Saco para outro. Escreveu eescreveu – entre folha e papel, cola e tesoura, palavra e isca – uma história,sua. Até que a história... acabou! Ali registrou um fim, uma interrupção nointerminável, um alívio.

Foi a partir da ausência do Saco de Palavras que pudemos aperceber-nos de seu lugar na Oficina. No encontro em que demos com sua perda, logodecidimos fazer um novo Saco, mas não sem antes escrever um texto sobreo “sumiço” do Saco de Palavras. Dentre os escritos que brotaram, destaca-ram-se as palavras do Bardo, oficinante-cantor, que surpreendeu-nos ao falarde sua relação com o Saco: “O Saco é importante para nós e será sempreimportante, porque através do Saco de Palavras tinha muito a nos ajudar nodesempenho da oficina. Parece brincadeira, mas o Saco de Palavras é paramim um saco de respostas para a minha memória e para meus amigosmotivo de diversão e razão”.

Freud, em um de seus derradeiros textos – “Construções em análise”,de 1937 –, se põe a pensar sobre esse modo de proceder do analista que,diante de um fragmento de história primitiva “esquecido” pelo paciente, ofertaalgo, uma palavra, para que ele possa transpor o abismo e seguir no trabalhoda associação livre. Para Freud, a “construção constitui apenas um trabalhopreliminar” (p. 294), um trabalho que deve desaguar na recuperação da con-dição de recordar por parte do paciente. “O caminho que parte da construção

naquele espaço, um laço comum a todos: as letras. Lá, são convidados adeixar suas marcas sobre o papel, a produzir um registro possível, um traçosingular que diga algo de sua subjetividade. A escrita produzida neste territó-rio, assim como seus habitantes, é plural. Não está em jogo, ali, a produçãoliterária socialmente valorizada – embora isso não esteja excluído do hori-zonte do trabalho –, mas sim a possibilidade de inscrever alguma marcasingular que possa ser testemunhada pelos colegas, cujas impressões, aoretornarem a quem escreve, demandam que o autor suporte os efeitos deseu escrito no outro.

“Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavrapescando o que não é palavra”.

Para que o trabalho se desenrole, os oficineiros se valem de váriosdispositivos, que funcionam como iscas para que algo venha a se produ-zir: essas iscas podem ser um texto, uma música, uma visita a um lo-cal, uma conversa... O Saco de Palavras, criado coletivamente em umdia em que a inspiração resistia a visitar a Oficina, constitui-se numpequeno “reservatório” de iscas. Para compô-lo, recortaram-se palavrase frases de revistas que, a partir de então, passaram a morar no Saco, àespera de que alguém as retirasse para inspirar seu trabalho. Ora cadaum retira uma palavra e escreve algo a partir dela; ora um participanteescolhe uma palavra para que outro possa com ela se inspirar; ora inven-ta-se um jogo com as palavras do Saco, para então desdobrá-las nosescritos.

“Quando essa não-palavra – a entrelinha – morde a isca, alguma coi-sa se escreveu”.

Em um dos encontros, a notícia de que o armário no qual são guarda-dos os materiais de trabalho havia sido saqueado recebeu os participantesda Oficina; tinha-se reavido o material, mas o Saco de Palavras não fora

RODRIGUES, M. ...Et al. Palavras-iscas.

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de volta a palavra rejeitada pelo Poeta, os oficineiros-analistas, inspiradospor Freud, aceitam seu gesto, deixando ao curso do trabalho os desdobra-mentos que possam vir a acontecer.

“Mas aí cessa a analogia: a não-palavra, ao morder a isca, incorporou-a”.

Um Saco de Palavras que inspira escreventes ímpares, como ooficinante-cantor que não se furta a homenagear seus colegas, entre eles opersonagem Saco de Palavras. Um Saco-personagem que permite a umPoeta pescar palavra para devolvê-la, dispensá-la. Uma palavra que cai doSaco e encontra guarida nas recordações e nas letras da Menina-bonita-do-laço-de-fita. Acasos, acolhidas. Da acolhida do acaso, acabamos por nostornar “doutores” neste trabalho em oficina, pois dela depende a aberturanecessária aos desdobramentos demandados pela complexidade dos obje-tos psíquicos, “incomparavelmente mais complicados do que os objetosmateriais do escavador, e [sobre o qual] possuímos um conhecimento insu-ficiente do que podemos esperar encontrar, de uma vez que sua estruturarefinada contém tanta coisa que ainda é misteriosa” (p.294). Misteriosastambém são as palavras que o Saco nos oferece, quando delas nos vale-mos, assim como o são os desdobramentos que elas produzem em quemas recebe e os efeitos que são colhidos quando os escritos por elas inspira-dos são compartilhados. Nesse terceiro tempo – do compartilhamento – nãoraro uma palavra, lida ou escutada distraidamente, se oferece a alguém comoisca, trazendo mais palavras à tona e, assim, alimentando as redes de pala-vras, memórias e construções que vão se tecendo em torno da mesa quereúne os escritores da Oficina. E não raro já não sabemos bem qual a pala-vra-isca-origem que fez começar a tessitura da rede, pois no compartilhamentoas palavras transitam fácil de boca em boca, de caderno em caderno, adqui-rindo múltiplas ressonâncias.

Compartilhar as construções parece ser o que ampara o movimentoda escrita na Oficina. Cada escrito, com suas particularidades, encontraguarida nos cadernos de cada um e no olhar e na escuta de oficinantes e

do analista deve terminar na recordação do paciente...” (p.300). Desta feita,um saco de respostas para a memória pode ser um reservatório importantede palavras-iscas para construções. Nele se encontram as tábuas e os pre-gos capazes de construir a ponte para uma travessia diante do abismo aber-to pela ausência das palavras. Nele se encontra a isca que permite pescar ofio da meada e retomar a infinita tessitura da rede de palavras que nos abrigadiante dos impasses da vida.

“Uma vez que se pescou a entrelinha, poder-se-ia com alívio jogar apalavra fora”.

Mas nem toda palavra que emerge desse reservatório fisga umamemória. Assim como “só o curso ulterior da análise nos capacita a deci-dir se nossas construções são corretas ou inúteis” (p.300), só o transcur-so dos encontros decide sobre a operatividade de uma palavra pescada do“saco de respostas”. Freud nos diz que aquilo que decide sobre a pertinênciaou não de uma construção não está na aquiescência ou recusa doanalisante, e sim no trabalho que ela inaugura ou na indiferença que deladecorre. Em outro encontro, durante nova rodada de “pesca” de palavrasdo Saco, o Poeta fisgou a palavra “ladrões”. Olhou-a, pensou um pouco e,com uma expressão de estranheza, devolveu-a ao Saco, para então deleretirar outra. Àquela palavra-construção, o Poeta, com seu gesto, disseum rotundo “não”. Freud, ao problematizar a negativa de um analisandoante uma construção, afirma que freqüentemente se trata de uma “resis-tência que pode ter sido evocada pelo tema geral da construção que lhe foiapresentada, mas que, de modo igualmente fácil, pode ter surgido de al-gum outro fator da complexa situação analítica” (p.297). Não nos é possí-vel, portanto – senão no a posteriori – situar o porquê da recusa do Poeta:talvez algum peixe-memória tenha mordido aquela isca, mas o pescadornão estava preparado para içá-lo; talvez a presença dos oficinandos-ouvin-tes, que receberiam suas palavras, o tenha inibido a discorrer sobre oassunto... São inúmeras as possibilidades. Assim como o Saco recebe

RODRIGUES, M. ...Et al. Palavras-iscas.

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RESTOS DISCURSIVOS

Maíra Brum Rieck

Nunca houve um tempo em que se pensa no presente sobre o mundovivido. Pilhas de livros e artigos sobre o início da modernidade eseus efeitos que perduram até hoje; o fim do patriarcado e as novas

configurações familiares, a criação do self-made man e sua incapacidade decriação de passado ou futuro; fim das castas e demarcações definidas; ilu-são de criação do nome próprio. Parecemos saber tudo o que há para sabersobre o tempo em que vivemos e, ao mesmo tempo, parecemos cada vezmais distantes de “sair” do mundo para “entrar” nele. Fazer parte do mundoenquanto sujeito, sujeito ao mundo.

É claro que não há como parar de pensar nisso se quisermos enten-der de onde falamos. Talvez seja apenas uma questão de cegueira daqueleque fala em seu tempo e não pode ver o que só no futuro poderá ser visto,mas o que chama atenção é o fato de que os discursos se repetem muito, epouca coisa se modifica. Escreve-se muito, lê-se muito pouco e o que se lêé uma repetição de tudo o que foi dito. Na tentativa de produzir algo novo,produz-se sempre o mesmo.

É claro que não há um texto final ou um texto sagrado. Um textosempre remete a outro texto, mas a questão é saber quando uma escritatem valor de escrita propriamente. Quais os textos que fazem marcas na-queles que os lêem e por quê.

Talvez hoje os escritos tenham valor de fala, fala vazia. Talvez hajatanta repetição justamente porque a velocidade do capitalismo impede queexperienciemos a realidade a ponto de não criarmos mais nada, nem mes-mo nós mesmos enquanto sujeitos. A questão é saber quando um texto temvalor de ato que remete o sujeito ao sem sentido, ao impossível da alteridade,ao desamparo – e não mais ao narcisismo, ao idêntico.

Foi na busca por restos discursivos do social que comecei a trabalharna Ong ALICE (Agência Livre para Informação, Cidadania e Educação), que

oficineiros, mesmo que não sejam bem compreendidos, mesmo que nãotenham rima, mesmo que não tenham razão aparente. Como nos diz Freud:“...os delírios dos pacientes parecem-me ser os equivalentes das constru-ções que erguemos no curso de um tratamento psicanalítico – tentativas deexplicação e de cura...” (p. 303). A marca deixada no papel, no caderno decada um, é uma tentativa de inscrição que se registra, e que retorna aosoficinantes a partir do compartilhamento. Sejam quais forem as formas comque se dá essa tentativa de inscrição – formas que variam desde poesias amúsicas, passando por ensaios e escritos autobiográficos até garatujas ourepetições de números –, é no compartilhamento entre pares-escritores, nosefeitos da acolhida desses escritos, que se dá a possibilidade de encontrarum lugar outro para aquilo que, para todos os sujeitos, não cessa de não seescrever.

“O que salva então é escrever distraidamente”.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

FREUD, S. “Construções em análise” (1937). In: Obras Completas. Rio de Janei-ro, Imago, 1980. v. 23.

LISPECTOR, C. Água viva. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1980.

RIECK, M. B. Restos discursivos.

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SEÇÃO TEMÁTICA

liares do que estrangeiras. Desejam, antes de tudo, transmitir. Transmissãoao Outro e aos outros que se tornou possível porque a história está sendopublicada em capítulos na revista “Norte, cultura no sul do mundo”, lida poraqueles que vivem no “centro” social.

Essa transmissão as obriga a lembrar, a falar, a errar por caminhosdesconhecidos de si mesmas. Caminhos estrangeiros que são sempreimprevisíveis, numa constante quebra de espelho, na medida em que o queencontram na escrita não são respostas, mas buracos. Contar histórias paraque as leiam as direciona insistentemente ao que Jacques Lacan chamoude impossibilidade da relação sexual, encontro impossível com a alteridade,mas um impossível que não podemos deixar de buscar para continuarmossendo sujeito do desejo. No impossível como única possibilidade, a buscaem si mesma acaba sendo o objeto de desejo e a própria vida.

Transmitir a letra, o buraco, o ponto de interrogação é se deparar comas lacunas da narrativa. Cria, no presente, o passado com sua dívida e ofuturo com seu eterno não-saber. Retira do futuro a possibilidade imagináriado gozo e abre-se portas para um desejar (intransitivo) com possibilidade decriação. De uma maneira que possamos transformar o mundo e não nosadequarmos a enunciados que não dizem do sujeito em questão.

Walter Benjamim nos ensina que o saber e o conhecimento vêm docompartilhamento da narrativa. Ao narrar, o narrador fala a alguém de suaexperiência e o inclui na narrativa. Aquele que escuta entra nela para perdê-la e sair transformado. Tradição compartilhada que vem de uma sabedoriaoriginada na experiência de vida. A transmissão é essa narrativa. É o queesse grupo de mulheres faz: transmite experiências que estavam condena-das a cair no vazio da história oficial.

Se os discursos de um tempo são amarrações que produzem forma,unidade, onde algo fica necessariamente de fora, o objetivo desse projeto ébuscar justamente esse Real do agora para poder, se não compreendê-lo,transformá-lo continuamente, ao invés de ser vivido como trauma. Que aescrita tenha valor de ato para essas mulheres, que tenha valor propriamen-te de uma escrita.

tem por objetivo fazer circular no centro social discursos marginalizados.Moradores de Rua, prostitutas, velhos, presidiários, loucos, hoje, têm seusdiscursos restritos à vitimização. Discurso do politicamente correto que nãocria nada.

Desse projeto nasceu “Mariposa, uma Puta História”, oficina de escri-ta com prostitutas de Porto Alegre, coordenada por mim e pela jornalistaRosina Duarte. Não entendíamos por que a prostituição continua sendo, nummundo rodeado por apelos sexuais 24 horas por dia, uma profissão margina-lizada, apesar de o sexual, como nos mostra Michel Foucault, ser o centrodo enigma humano há pelo menos três séculos.

Claramente, o que causa desconforto não é o discurso sobre sexo faladopor essas profissionais. Livros como o de Bruna Surfistinha viraram best-sellers. Estão na moda festas de classe média em prostíbulos, onde mulheresdançam “como putas” e realizam suas fantasias; cursos dados por prostitutasem despedidas de solteiras para “ensinar” mulheres a seduzirem seus parcei-ros, serem mais femininas. Todos parecem querer saber o que as prostitutastêm a dizer, querem saber seus segredos, os enigmas do outro sexo. Masninguém parece querer ouvi-las quando falam desde uma posição de sujeito.Sem segredos sórdidos ou de vítima, tornam-se invisíveis e desinteressantes.Não há o que consumir num discurso onde há alguém que fala.

O objetivo desse grupo era que pudessem mostrar a seus leitoresimaginários que o que são está para além da profissão que escolheram, estánas lacunas da escrita. Através da fala, de uma conversa informal, a narrativapassa a ter valor de experiência. E, no compartilhamento, fala com valor deescrita. Do testemunho ao testamento, deixam registradas suas históriasencarnadas pela personagem Fran, a prostituta, ou Ana Maria, “como é co-nhecida pelos íntimos”.

A personagem e a história são um mosaico de todas elas. Ficçãomisturada com realidade, diz de todas, mas não é nenhuma. O leitor imagi-nário é o estrangeiro, que desconhece a outra delas mesmas que não aprostituta. Desejam que as vejam com suas dúvidas, contradições e ambi-güidades, suas dores, sonhos e alegrias. Mostrar que são muito mais fami-

RIECK, M. B. Restos discursivos.

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SEÇÃO TEMÁTICA

OFICINANDO ENREDOS DE PASSAGENS:O ENCONTRO DO ADOLESCER

EM SOFRIMENTO COM A TECNOLOGIA1

Tatiane Reis Vianna

Esse trabalho busca investigar como se deu o desdobramento de en-redos e narrativas numa oficina de informática com jovens em atendi-mento ambulatorial no Centro Integrado de Atenção Psicossocial

(CIAPS) do Hospital Psiquiátrico São Pedro, refletindo também sobre osimpasses e passagens subjetivas que ali se evidenciaram.

Entendemos a narrativa, a partir da leitura de diferentes autores, comoessa costura de tramas: enredos no tempo e espaço que possibilitam que aexperiência, enquanto “travessia da existência” (Larrosa, 2002), possa serproduzida. São histórias que constituímos e nos constituem e que ensejamou não o desdobrar de outras. Estamos denominando como enredos essespequenos fragmentos de interesse em um ou outro assunto, temas que seenlaçam no tempo e espaço com a história singular de cada um, produzindoa trama narrativa.

O CIAPS é serviço de saúde mental que atende crianças e adolescen-tes ambulatorialmente e em internações breves. Nesse serviço, muitas ve-zes encontramos jovens marcados por empobrecimento de laços constitutivos,com fragilidades de diferentes ordens nas suas estruturações subjetivas, e,sobretudo, marcados por mandatos sociais estigmatizantes.

Consideramos a adolescência como um momento estrutural em queas narrativas do Outro, como alteridade simbólica constituinte do sujeito,são colocadas mais intensamente em questão. Assim, as saídas do adoles-cimento, quando ocorrem, podem se dar em uma via de realização desses

1 Este trabalho é um recorte da dissertação de mestrado com esse mesmo nome, apresen-tada ao Programa de Pós-graduação em Psicologia Social da UFRGS em agosto de 2008.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

FOUCAULT, M. História da sexualidade I: A Vontade de Saber. Rio de Janeiro:Edições Graal, 18 ed., 2007.

BENJAMIM, W. “O Narrador: Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”. In:Magia e Técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura.7 ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. (Obras escolhidas, v. 1).

VIANNA, T. R. Oficinando enredos de passagens...

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15C. da APPOA, Porto Alegre, n. 176, jan. 2009.14 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 176, jan. 2009.

SEÇÃO TEMÁTICA

Tratava-se da história de um gato chamado ‘Epaminondas’ e de seu dono,‘Gabriel’:

Era uma vez um gato muito brincalhão. Ele tinha um dono chamadoGabriel. Gabriel era um menino muito exibido. Epaminondas era um gatobranco e muito fofo que adorava leite, comer peixe e correr atrás de borbole-tas (Vicente).

Esse gato, segundo Anelise, era tímido.Certo dia, conta Davi, Epaminondas, o gato, tombou com outro gato,

chamado House, que significa ‘casa’. Davi explica que esse gato tinha essenome porque ficava o tempo todo dentro de casa. House, só saía de casapara incomodar os outros gatos. Vicente refere que House era chato ebobalhão e só gostava de fazer maldade para os outros. Anelise mencionaque Epaminondas ficou amigo de House.

Davi segue a história contando que Gabriel foi para escola e deixouseu gato em casa. Menciona que na escola inventou de fazer uma historinhasobre o gato, baseada no futuro dos dois.

Anelise acrescenta que Gabriel pensou em deixar os dois famosos.Davi continua boa parte da história: Quando terminou a aula, ele foi

direto para casa. Quando chegou, viu a casa toda revirada. Foi logo chaman-do: – Epaminondas!.

Gritou tão alto que sua mãe ouviu-lhe e disse:– Por que você está gritando, filho?Gabriel respondeu:– Olha só, mãe, o que Epaminondas fez.E você não viu nada?A mãe respondeu:– Mas como eu iria ver, se eu estava dormindo?Gabriel, muito esperto, respondeu:– E você não ouviu o barulho?– Quer saber!Não.“Foi uma bagunça!!”

mandatos. Contudo, podem também atualizar mudanças que incidam nacondição narrativa desses sujeitos, ou seja, na posição diante da qual sereconhecem em relação a essa alteridade simbólica e, decorrentemente,enunciam sua história e o seu destino.

Assim, o desafio do trabalho com crianças e adolescentes em sofri-mento, neste contexto social e institucional, tem nos convocado a buscarnovas alternativas, como a introdução das tecnologias digitais, que possamter alguma incidência na condição narrativa desses jovens2 .

Para isso levamos em conta o fato de que essas tecnologias tomama cena social hoje, incorporando-se ao desejo e à forma de relacionar eoperar dos coletivos, ao mesmo tempo, que disponibilizam novas oportuni-dades de conexão, compartilhamento e representação.

Entendemos que o modo de operar das tecnologias digitais tem opotencial de provocar flexibilizações em fronteiras rígidas, tais como: dentro/fora hospital, singular/coletivo, realidade material/realidade virtual. Essasflexibilizações, ao serem tomadas num espaço de escuta e compartilhamento,nos convidam a problematizar o que já está dado, tanto em relação às narra-tivas dos usuários, como àquelas que constituem os trabalhadores. Assim,torna-se possível produzir novas inscrições que digam desses deslocamen-tos de posições, dessas passagens.

Descreveremos a seguir uma história criada pelos jovens num chat epublicada, posteriormente, no blog do Projeto. Esta, foi denominada por elescomo “O menino e o Gato”.

Davi3 assume a liderança da construção dessa história, iniciando amesma, que foi sendo complementada por Vicente e também por Anelise.

2 Desde 2004, a equipe do CIAPS e a UFRGS (Pós-graduação em psicologia Social e pós-graduação em Educação) vêm introduzindo as tecnologias digitais no repertório dastecnologias de saúde do serviço através de um projeto de extensão denominado “Oficinandoem rede”.3 Os nomes citados nessa narrativa são fictícios.

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recursos, a partir da tecnologia digital, tem tido como efeito uma multiplica-ção dessas vias enunciativas e, decorrentemente, dos múltiplos sentidosque a narrativa ali produzida pode ensejar. É o que podemos analisar a partirdessa e de outras oficinas.

Um dos recursos, que aparece nesse Chat e em outros, é a possibili-dade de escolher um Nick (‘apelido’ na língua dos Chats), a partir do qual osparticipantes se apresentam. Anelise escolhe se apresentar como Gremistinha;Davi, como Clarck; Vicente, pelo seu apelido, Vi. Esse artifício dos nickspossibilita que, para além dos personagens construídos na história, elespróprios possam se constituir como personagens, multiplicado, com isso,suas possibilidades identificatórias e enunciativas.

Em relação aos personagens criados na ficção construída (Epami-nondas, House e Gabriel) vemos o quanto esta relação com o traço, quemuitas vezes os identifica diante do Outro, está presente. Epaminondas, naconstrução de Anelise era tímido. House, assim como Davi, gostava muitode ficar em casa. House, segundo Vicente, era chato e bobalhão e só gosta-va de fazer maldade para os outros, discurso muito parecido com o dizer dafamília de Vicente em relação a ele.

Também parece relevante, o lugar no qual é colocado o adulto dahistória: alguém que dorme e não vê nada da bagunça armada ao mesmotempo em que convoca o jovem à tarefa de fazer pará-la. Talvez essa passa-gem possa estar evidenciando, por um lado, o esvaziamento das funções dereferência na vida de alguns, por outro, a convocação para que produzamuma saída para situações construídas nessa história através do desfechoque resolvem dar.

A saída de casa com os amigos como algo que “bagunça” a orga-nização familiar, convocando a um novo ordenamento mais simbólico, lem-bra também o lugar que os semelhantes acabam ocupando na construçãodesse lugar Outro na passagem adolescente. Alteridade que acaba colo-cando em questão o lugar de origem, convocando os jovens a ter que se re-situar diante da sua história e dos lugares de referência até então constitu-ídos.

Estimulo a Vicente participar e ele me dita:– Epaminondas deixou restos de comida espalhados! Soltou pêlo nos

móveis!.Gabriel ficou muito brabo com Epaminondas porque ele teve que

limpar tudo!Davi segue novamente a história:– Mas, depois de muito tempo, eles resolveram... Quando foram para

o quintal, viram Epaminondas e House estragando a grama. Maria, mãe deGabriel ficou louca e disse:

– O que eu faço para eles pararem, filho?Gabriel pensou e disse:– Deixa comigo, mãe. Quando eu ler a historinha que fiz sobre

Epaminondas, ele vai parar de bagunçar.Gabriel chamou Epaminondas:– Sente-se quieto que eu vou ler uma historinha sobre você. Epaminondas sentou-se e ouviu seu dono falar. Depois de ouvir tudo

aquilo, Epaminondas nunca mais fez bagunça em casa ou qualquer outrolugar. Sobre o que falava a história? Eu não sei. É um mistério!

(Blog oficinandoemrede)

A construção dessa história coloca em questão o fazer histórias, uti-lizando-se para isso de temas surgidos nos enredos que vinham sendo fala-dos em encontros anteriores, como aqueles sobre amizade e o interessepelos bichos.

Se uma das características da narrativa, como mencionam Toufani eMoraes (2003), é a polissemia (multiplicidade de sentidos que contém) e apolifonia (várias vozes atuando simultaneamente4 ), a utilização de alguns

4 Caracterizadas pelas distintas posições enunciativas do sujeito, por exemplo, enquantonarrador, personagem, leitor, etc.

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Entretanto, é, sobretudo, o mistério do que está escrito que possibili-ta o desfecho da história e que aparece como nó central da trama da narra-tiva construída. Escritura essa que, na nossa leitura, aparece como metáforado Outro. Essa alteridade simbólica que, pela sua antecipação, possibilita ainscrição psíquica de um sujeito, mas que só se torna possível, como noslembra Costa (1998), “no próprio ato de produzir uma ficção”.(p.62)

Talvez Davi, enquanto um dos principais escritores dessa históriacoletiva estivesse nos falando dessa convocação à escritura, tão própria doadolescer, como também dos impasses e desejos ali colocados.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASCOSTA, Ana Maria M. A Ficção de si mesmo: interpretação e ato em psicanálise.

Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1998.LARROSA, Jorge. Notas sobre a Experiência e o Saber da Experiência, Revista

Brasileira de Educação n.19, jan./fev./mar./abr. 2002.TOUFANI, I.V; MORAES, J. A Família Narrada por Crianças e Adolescentes de

Rua: a ficção como suporte do desejo. Psicologia USP, São Paulo, v. 1, n. 14,p.1-14, 2003.

Leva-nos a pensar sobre esse momento de passagem, este trânsitoentre campos distintos, eu/Outro, familiar/social, que o adolescer convoca.Tal delimitação vem a se efetivar, como lembra Costa (1998), ou através dosatos ou através da produção de uma ficção que possa representar o sujeitonesse encontro de heterogêneos, ficção que ao mesmo tempo diga desseprocesso de alienação /separação do Outro.

A viabilização de escuta e o tornar disponível diferentes suportesobjetivam possibilitar que os diferentes sujeitos possam construir-se nessastramas, nessa escritura. Assim, o desenrolar dessa história, atualiza-nosalgumas questões como: ‘Estariam eles falando, principalmente Davi, doefeito que o criar histórias sobre o seu presente e futuro poderia ter paraeles?’ ‘Estariam falando sobre expectativas em relação a sua vida (Comofala Anelise – tornar-se famosa, ou como Davi – tranqüilizar-se ao se reco-nhecer numa história?).’

Observamos que Davi, nos momentos de busca individual nas ofici-nas, parecia bastante ocupado no resgate de histórias: a história da ONGmantenedora do abrigo onde morava, como também da oficina de serigrafiaque estava freqüentando, a história do fundador dessa ONG e a história doGrêmio. Essas histórias pareciam dizer de uma busca singular de um traçoque lhe possibilitasse tramar sua filiação simbólica, busca essa que vai leva-lo a atos como a fuga do abrigo (à procura de sua família de origem) e seuconseqüente afastamento das oficinas no decorrer do ano.

Esse processo nos remete a pensar na função da constituição deuma narrativa pessoal, da constituição de “uma ficção de si”, como mencio-na Costa (1998) como “o que possibilita dar suporte ao corpo lhe possibili-tando amparo no circuito das relações e no circuito das identidades” (p.121).

Essa ficção, sempre inconclusa e impossível de ser totalizada, é quepermite que o singular de cada um possa vir a se incluir numa ordem coleti-va. Processo que se torna mais trabalhoso (mas não impossível) para jovenscomo Davi, cuja apropriação de sua história, das marcas simbólicas que osingularizam, está dificultada em função do abandono familiar e dainstitucionalização.

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O paulista Alexandre Stokler, diretor e professor de teatro, em 2004,com o filme “Cama de Gato”, levou para o cinema uma espécie de versãonacional do “Laranja Mecânica”. O resultado do trabalho foi o que Calligaris(2004), em uma de suas crônicas da Folha de São Paulo, chamou de umaextraordinária imagem da adolescência contemporânea.

Com relação ao material da mídia, trabalhei com um acontecimentorecente ocorrido na Barra da Tijuca, bairro típico da nova classe média altado Rio de Janeiro. Em março de 2007, um grupo de jovens que se divertiapelas ruas, resolveu agredir uma trabalhadora que estava na parada do ôni-bus, a doméstica Sirley Dias de Carvalho Pinto. A justificativa foi de quepensavam tratar-se de uma prostituta3 .

Além destes acontecimentos e filmes, sublinho que há um significati-vo material sobre o tema. Depois do lançamento de “Laranja Mecânica”, nosanos 70, parece que o fantasma da gangue de jovens delinqüentes tomouvulto de fato nas histórias cotidianas de nossas cidades. Passadas quasetrês décadas da produção do filme, vivemos no Brasil, no ano de 1997, umasituação que lembra algumas nuances da narrativa.

Refiro-me ao episódio ocorrido em Brasília, que acabou por vitimar empleno 21 de abril o Índio Galdino. O pataxó Galdino Jesus dos Santos estavana cidade para as comemorações alusivas ao dia. Ele dormia em frente a umaparada de ônibus quando cinco rapazes, todos oriundos de famílias de classemédia e alta de Brasília4 , passando por lá, tiveram a idéia de queimá-lo.

O inusitado do ato foi a justificativa que deram: “só queríamos dar umsusto em um mendigo. Não sabíamos que era um índio5 ”. Ora, o que seráque estava em questão para estes jovens? Um mendigo é uma pessoa devalor humano menor? O que afinal outorga valor a uma vida? Por que se torna

3 Ver reportagem “Agressão à doméstica choca o país”, Zero Hora, 26/06/2007, p.44.4 Dentre os cinco rapazes estava o filho de um juiz federal e o enteado de um ex-ministro doSuperior Tribunal Eleitoral.5Dignidade incendiada, Revista Isto É, 30/04/97.

LABIRINTOS JUVENIS NA ATUALIDADE1

Roselene Gurski

Aquestão inicial para este trabalho construiu-se a partir de umaconstatação: a presença cada vez mais significativa de delitos e situ-ações de violência extrema praticados por jovens ditos de classe

média e alta noticiados na mídia. Verificamos a repetição dessas situaçõesnas notícias de jornais e revistas, nas escolas e também na clinica; passei ame interrogar sobre o quê das experiências destes jovens poderia estarretornando sob o manto de atos bizarros. Quais poderiam ser os vetores deepisódios violentos protagonizados por adolescentes que não padeciam deprivações sociais extremas?

Recolhi como material de discussão2, além de um grupo de notíciasveiculadas por jornais entre os anos de 1997 a 2007, algumas produçõesfílmicas cujas temáticas tratavam desta problemática. É preciso dizer que odiálogo com as produções da cultura não significou em nenhum momento aaceitação do teor das noticias de modo tácito, mas, sim um caminho deexcelência para pensar as problematizações do tempo de agora.

Embalada pela idéia de que seria mais interessante buscar os pontoscegos dos atos juvenis que vem nos interpelando do que chegar a uma redu-ção totalitária do “mal” que aflige os jovens de classe média (Adorno, 2003),escolhi o ensaio como inspiração de escrita.

Nas produções cinematográficas, depois do clássico “Laranja Mecâ-nico”, de Stanley Kubrick, lançado na década de 70, surgiram outras narrati-vas que discutiam os rumos de jovens de classe média com trajetórias su-postamente delinqüentes.

1 Fragmentos do trabalho “Labirintos Juvenis”, apresentado na IV Jornada do LAPPAP –Laboratório de Pesquisa em Psicanálise, Arte e Política, no Instituto de Psicologia da UFRGSem de agosto de 2008.2 Este trabalho é parte de minha tese de doutorado em Educação (Gurski, 2008).

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tirar a vida de um adolescente de 17 anos que se desentedera com um dosrapazes por causa de uma ex-namorada, mostram cálculo e frieza. Os diálo-gos flagrados pelos investigadores revelam que eles chegaram a calcularcomo escapar de uma punição: – O advogado que eu conheço absolveu umcara que matou a mulher com 75 facadas nas costas” (Jornal CorreioBraziliense, 11.04.07).

Quer dizer, o que começou como uma briga de ciúmes e rivalidadeentre dois rapazes quase se transformou em tragédia. Imbuído de raiva ojovem que planejava o assassinato do rival disse a um amigo em diálogo naRede: “Eu vou matar ele essa semana. Eu não quero pesar pro lado deninguém”, ao que o outro respondeu “pra fazer o mal tem q te a manhaveeiih... cabeça fria...tem que ser na filosofia de makiavel ... pasa no carrosem placa...mete 5 silver point. Amanhã vai tá tudo do mesmo jeito. A gentetá d boa e eu q fui agredido to na boa (Jornal Correio Braziliense, 11.04.07)”.

Nas palavras de Maria Isabel Pojo do Rego (2004), Brasília vem seconsolidando como uma cidade com altos índices de violência urbana, fatosurpreendente para uma cidade planejada e construída como símbolo deprogresso.

O interessante é que dentre os números da criminalidade do Planalto,os casos de jovens de classe média e alta envolvidos são cada vez maisnumerosos. O que será que faz a “ilha da fantasia”, redenção do poder, sím-bolo de um país que vai (ou ia?) para frente, sucumbir a uma criminalidadecujas origens não estão referidas ao sempre citado desfavorecimento sócio-econômico?

Pelas falas reproduzidas nos jornais, os jovens que planejavam o as-sassinato estavam convictos da impunidade, já sabiam inclusive com quemfalar para livrá-los das conseqüências do ato que planejavam executar. Lem-bramos que posições como essas revelam traços do antigo “clientelismo6 ”,

6 Para outros detalhes sobre o tema ver “Carnavais, Malandros e Heróis” de Roberto Damatta,Ed. Rocco, 1997.

possível desumanizar a tal ponto o sujeito das margens? Acaso alguns sujei-tos seriam mais matáveis (no sentido de extermináveis) do que outros?(Agamben, 2002)?

Este episódio parece ter despertado a consciência de que a violência,sempre associada às classes menos privilegiadas, não se configura em umaprerrogativa de pobres e negros.

Em “Cama de Gato”, vemos que ao longo da narrativa, o diretor apre-senta jovens envolvidos em uma espécie de vácuo de valores e referências,cuja maior dificuldade parece ser encarregar-se dos efeitos de seus atos. Asexperiências relatadas seguem um ritmo alucinado, no qual parece não so-brar muito tempo, nem espaço para a reflexão, tampouco para o silêncio.Em nome do prazer e da diversão – fala que se repete ao longo do filme – otrio que protagoniza a história comete atos cujos efeitos são realmente fa-tais. Um aspecto pontuado pelo diretor é uma pergunta sobre o lugar dosadultos. Onde estão as famílias destes jovens?

A história explora, especialmente, o que deveria ter sido o primeiro diade aula na universidade dos recém chegados à faculdade. Porém, ao invésde passar pelo rito de ingresso, típico deste momento, o trio não vai para afaculdade e, vive este dia com os elementos que, de algum modo, estãolicenciados a eles: drogas, festas, bebidas, sexo e violência.

Como será que os jovens acabaram nesse lugar? Que condições denosso tempo se apresentam ou se ausentam para produzir sujeitos cujasatitudes fazem pensar nessa espécie de vácuo de experiência? Quais condi-ções produzem essa “pouca” densidade subjetiva? Há realmente um empo-brecimento da experiência na vida destes jovens?

A fim de ilustrar a discussão, trago fragmentos de uma notícia publicadano Jornal Correio Braziliense em abril de 2007. A notícia trata de um episó-dio, no qual um grupo de rapazes planejou pela Internet o assassinato deoutro. O crime só não ocorreu porque a policia interceptou a ação antes:“Treino em clube de tiro, munição com alto poder destrutivo, plano de se-qüestro e até lugar para jogar o corpo. Os detalhes do planejamento traçadoem conversas pela Internet por 4 jovens da classe média de Brasília, para

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o terreno dos modos de representação na esfera pública, subtraindo, comisso, um dos lugares importantes para a legitimação das subjetividades ado-lescentes.

Analisar o dialeto violento destes jovens a partir da noção de esvazia-mento da dimensão da experiência é também uma forma de interrogar comooperamos e transmitimos a falta na atualidade (Costa, 2007)? Sua transmis-são acontece nas relações entre adultos e jovens, entre pais e filhos? Comoos adultos lidam com o par desejo e falta? Qual relação pode ser estabelecidaentre o empobrecimento da experiência e a falta da falta nas transmissões?

De todo modo, importa, sobretudo, perguntarmo-nos como construirexperiências que sejam potentes para o sujeito e seus laços. Será que nãoé possível constituir nenhuma espécie de novo nas relações atuais? Se porum lado, resta claro que, várias condições da cultura produzem efeitos nasubjetivação, por outro, não é demais questionar se não se pode reinventarnovos laços a partir de outras configurações.

Como disse Contardo Calligaris7 , em recente visita a Porto Alegre,nossa tarefa talvez seja inventar uma outra estética de vida para que, talvez,dela derivem modos de experiências éticas que sejam potentes para o sujei-to e seus laços.

Isso talvez seja parecido com o que se propõe a partir de um ensaio:ensaiar sempre abre a possibilidade de uma nova experiência com o presen-te. Ensaiar no pensamento, na escrita e na vida é não renunciar a umaconstante reflexão (Larrosa, 2004); é não tomar a notícia como um dado, éler nas letras das linhas e entrelinhas. Assim, se o ensaio tem a ver com ospontos cegos do objeto (Adorno, 2003), ensaiar seria como experimentaruma relação com a falta e com o real que suporte o inacabado e o não todo.

A idéia deste escrito foi ensaiar um outro modo de ver as problema-tizações acerca da violência juvenil de nosso tempo. Um modo de pensar as

7 Refiro-me aqui a palestra proferida pelo psicanalista durante o Seminário de Altos EstudosFronteiras do Pensamento, em 04/08/08, Porto Alegre.

velho conhecido nacional que, além de pautar atos ilícitos de nossos efebos,estão cotidianamente presentes na condução da política brasileira.

Neste sentido, parece que a solução dos jovens “aprendizes deMaquiavel” está bem de acordo com o que vivenciam: os pais não se furtamem dar um jeitinho, mostrando que é preciso sempre evidenciar “com quemse está falando”.

Na cena final, os três rapazes vão para o lixão de São Paulo. SãoPaulo a capital brasileira do dinheiro, da velocidade e do sucesso. Lugar dosvencedores, paradigma maior da Modernidade. Ainda que emoldurada porluxo e riquezas, sabemos que não há abundância que apague a necessida-de de um espaço para guardar os restos. Assim, mesmo sendo o espaço doque não vale mais, o lixão de uma cidade marca um lugar, o lugar do dejeto;pois foi para lá que, os três, após discutirem sobre o que fazer com oscadáveres, decidiram levá-los.

O que significa para o trio do filme, discutir questões caras as suasvidas em meio aos escombros e detritos? Será que o para além das mar-gens, a beira da cidade, acaba sendo um lugar de inscrição juvenil na atua-lidade? O que fazem com a pouca densidade e o vazio que se produz a partirdas condições do laço social atual?

Desde o conceito de experiência em Walter Benjamin (1933; 1936),pergunto-me que questões se constroem em tempos de ausência de condi-ções para que se dê uma experiência? Vivemos realmente este esvaziamen-to ou a experiência se apresenta de outros modos? O que os atos de vanda-lismo e violência inscrevem? Qual espécie de experiência afinal estaria sub-traída da vida destes jovens?

Uma das fortes hipóteses com a qual trabalhei refere-se à urgênciados jovens em confirmar a inscrição de si através das diferentes formas dese fazer representar no social. Tal necessidade psíquica, própria da opera-ção adolescente, somada ao empobrecimento das condições de construçãoda experiência e ao esvaziamento do espaço público como espaço legítimode representação, acabou por incrementar a dimensão das escritas violen-tas na adolescência de nosso tempo. De alguma forma, tal situação reduziu

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questões dos jovens que suporte, simultaneamente, articular o saber e afalta. Um modo de lidar com a tensão própria que caracteriza a juventude,criando labirintos que, mesmo na ausência de uma saída derradeira, sejamvias possíveis de serem percorridas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:ADORNO, T. W. “O ensaio como forma”. In: ______. Notas de Literatura I. São

Paulo: Duas cidades; Ed. 34, 2003, p. 15- 45.AGAMBEN, G. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte:

Editora UFMG, 2002.BENJAMIN, W (1933). “Experiência e pobreza”. In: _________. Magia, técnica,

arte e política. Obras escolhidas I. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 114-119.______. (1936). “O Narrador”. In: _____. Magia, técnica, arte e política. Obras

escolhidas I. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 197-221.CALLIGARIS, C. “Cama de Gato”. Folha de São Paulo, São Paulo, 18 set. 2004,

Caderno Mais.COSTA, A. M. “Escritas da experiência”. Seminário Especial. Programa de Pós-

graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.Porto Alegre: UFRGS, out. 2007. (comunicação oral)

GURSKI, R. Juventude e Paixão pelo Real: problematizações sobre experiênciae transmissão no laço social atual. Porto Alegre: UFRGS, 2008, (Doutoradoem Educação).

LARROSA, J. “A operação ensaio. Sobre o ensaiar e o ensaiar-se no pensamen-to, na escrita e na vida”. Revista Educação e Realidade, vol. 29, n. 1, p. 27-43,jan./jun. 2004.

REGO, M. I. P. (2004). Brasília: sede da violência urbanaDisponível em: http://www.urbanidades.unb.br/artigos_brasilia_violencia_urbana.htm

Acesso em 01 de abril de 2007. [10 p.]

TRANSMISSÃO DA CATÁSTROFE: TRANSCENDER EMPALAVRAS AS FRONTEIRAS DO HOMEM

Marcia Giovana Pedruzzi-Reis1

“[...] Tenho os olhos fechados; não quero abri-los, não, para que osono não fuja de mim, mas ouço os ruídos: este apito ao longe eu sei que éde verdade, não é da locomotiva do sonho. É o apito do trenzinho da fábrica,que trabalha dia e noite. Uma longa nota firme, logo outra, mais baixa de umsemitom, logo a primeira nota de novo, mas curta, truncada. Esse apito éimportante; é, de certo modo, essencial: tantas vezes já o ouvimos, ligadoao sofrimento do trabalho e do Campo, que se tornou seu símbolo, evocadiretamente a idéia do Campo, assim como acontece com certos cheiros,certas músicas.

Aqui está minha irmã, e algum amigo (qual?), e muitas outras pesso-as. Todos me escutam, enquanto conto do apito em três notas, da camadura, do vizinho que gostaria de empurrar para o lado, mas tenho medo deacordá-lo porque é mais forte que eu. Conto também a história da nossafome, e do controle dos piolhos, e do Kapo que me deu um soco no nariz elogo mandou que me lavasse porque sangrava. É uma felicidade interna,física, inefável, estar em minha casa, entre pessoas amigas, e ter tantacoisa para contar, mas bem me apercebo de que elas não me escutam.Parecem indiferentes; falam entre si de outras coisas, como se eu não esti-vesse. Minha irmã olha para mim, levanta, vai embora em silêncio.

Nasce então, dentro de mim, uma pena desolada, como certas mágo-as da infância que ficam vagamente em nossa memória; uma dor não tempe-rada pelo sentido da realidade ou a intromissão de circunstâncias estranhas,

1 Psicóloga, Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional,Instituto de Psicologia, UFRGS. Membro do LAPPAP – Laboratório de Pesquisa em Psicaná-lise, Arte e Política, da UFRGS.

REIS, M. G. P. Transmissão da catástrofe...

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uma dor dessas que fazem chorar as crianças. Melhor, então, que eu tornemais uma vez à tona, que abra bem os olhos; preciso estar certo de queacordei, acordei mesmo.

O sonho está na minha frente, ainda quentinho; eu, embora desperto,continuo, dentro, com essa angústia do sonho; lembro, então, que não é umsonho qualquer; que, desde que vivo aqui, já o sonhei muitas vezes, compequenas variantes de ambientes e detalhes. Agora estou bem lúcido, recor-do também que já contei o meu sonho a Alberto e ele me confessou queesse é também o sonho dele e o sonho de muitos mais; talvez de todos. Porquê? Por que o sofrimento de cada dia se traduz, constantemente, em nos-sos sonhos, na cena sempre repetida da narração que os outros não escu-tam? [...]” Primo Levi. É isto um homem? (1958; 1988).

Oprelúdio deste texto nos coloca diante de um angustiante sonho,transportando-nos para o acontecimento absolutamente maisavassalador do século XX. O italiano Primo Levi, um dos sobreviven-

tes do Holocausto, foi o sujeito do sonho, e autor do prólogo, marcando comsua escrita uma escolha. Talvez uma escolha do tipo que não se escolhe,mas que nos escolhe. Levi optou por empreender a árdua tarefa de adentrarnas profundezas das lembranças que o marcaram, de tentar representar oirrepresentável, de transmitir uma catástrofe de natureza única, humanamenteinexplicável, uma experiência abundante e intransferível. A catástrofe porexcelência da humanidade, nas palavras de Seligmann-Silva (2000, pp.75).Ao deparar-me com a narrativa inaudita do sonho que se repete, capitulei,encontrando nesta escrita alguns elementos para pensar a transmissão deexperiências, o testemunho, e o papel que a escrita opera diante destesintentos, elementos estes marcados, neste caso, justamente pelo intervaloentre a catástrofe e sua representação. Proponho, aqui, pensar o texto comocriação cultural, que extravasa o campo da clínica, do singular –compartilhamento que faz um recorte, onde o eu se apaga, e, ao circular, fazemergir uma questão em comum entre narrador e ouvinte. A psicanálise seaproxima, pois, como paradigma para pensar estes elementos.

Já aqui se apontam perguntas fundamentais: o que é experiência empsicanálise? O que é transmissão, e o que se transmite de uma experiên-cia? O que se transmite em uma narrativa escrita na primeira pessoa? E oque reside neste intervalo entre a vivência da catástrofe e sua representa-ção? A experiência, a priori, é tema benjaminiano por excelência, quem sedebruçou sobre a problematização da modernidade, no intervalo entre o em-pobrecimento da experiência autêntica, bem como das narrativas originais, ea transformação histórica ocorrida com a memória, a história e as identida-des coletivas e individuais. Falamos da experiência no sentido substancialdo termo, que, repousa sobre a possibilidade de uma tradição compartilhadapor uma comunidade humana, tradição retomada e transformada, em cadageração, na continuidade de uma palavra transmitida. Esta palavra tem adimensão de algo maior do que a simples existência individual; transcende eporta, simultaneamente, esta existência, referindo-se ao elemento simbólico(Gagnebin, 2006, pp.50). Benjamin (1992), ao se deter profundamente a res-peito deste declínio da capacidade de trocar experiências, curiosamente, enão por acaso, assinalará no justo ponto da Guerra – a Primeira, processoaprofundado ainda mais na Segunda – o início de um processo que nuncamais parou: “não é verdade que no final da guerra as pessoas voltavam mu-das dos campos de batalha? E não vinham mais ricas, mas sim mais pobresem experiência comunicável. O que dez anos mais tarde inundaria a literatu-ra sobre a guerra, era tudo menos a experiência que se transmite de bocaem boca”.

A perda da experiência acarreta, pois, outro grande desaparecimento:o das formas tradicionais de narrativas. Segundo Benjamin (1992), a verda-deira essência da narrativa contém em si uma dimensão utilitária, tecida nasubstância da vida vivida, que se traduz na sabedoria, sabedoria esta quenão se gasta – conserva toda a sua força e pode ser ainda explorada muitotempo depois de narrada. A arte de narrar tende a acabar porque o lado épicoda verdade, justamente a sabedoria, está a morrer. Esta sabedoria não dizrespeito aos grandes acontecimentos a serem transmitidos, mas à sabedo-ria recolhida no singelo do dia – ou da guerra. Sobre isso, nos diz Gagnebin

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(2006, pp.54): “esse narrador [...] não tem por alvo recolher os grandes fei-tos. Deve muito mais apanhar tudo aquilo que é deixado de lado como algoque não tem significação, algo que parece não ter nem importância nemsentido, algo com que a história oficial não sabe o que fazer; dentre esteselementos, localiza-se o sofrimento indizível da Guerra, por exemplo, numatransmissão daquilo que a ‘História oficial’ deixa no anonimato, tarefa estaque se traduz numa paradoxal transmissão do inenarrável”.

Primo Levi, no sonho cujo cenário é o Campo de Auschwitz da Segun-da Guerra, contrapõe a felicidade intensa por ser finalmente possível narrarsuas experiências de horror ao – este sim – verdadeiro desespero por quepassa ao perceber que seus ouvintes levantam-se e embora se vão. Gagnebin(2006, pp.57), a respeito deste sonho, lembra-nos que, ao fazer uso da pala-vra, teríamos nós, geração posterior aos herdeiros do massacre, que fazeressa função de ‘terceiro’ na relação torturador-torturado, ao restabelecer umespaço simbólico onde estes testemunhos possam circular. Acerca disso,magistralmente, explica: “deveria ser esta a função dos ouvintes, que, emvez disso e para desespero do sonhador, vão embora, não querem saber, nãoquerem permitir que essa história, ofegante e sempre ameaçada por suaprópria impossibilidade, os alcance, ameace também sua linguagem aindatranqüila; mas somente assim poderia essa história ser retomada e transmi-tida em palavras diferentes. [...] Testemunha não é só aquele que viu com ospróprios olhos [...] mas também aquele que não vai embora, que consegueouvir a narração insuportável do outro e que aceita que suas palavras levemadiante, como num revezamento, a história do outro: não por culpabilidadeou compaixão, mas porque somente a transmissão simbólica, assumidaapesar e por causa do sofrimento indizível, somente esta retomada reflexivado passado pode nos ajudar a não repeti-lo infinitamente, mas a ousar esbo-çar uma outra história, a inventar o presente”.

A tradição de uma transmissão oral autoriza narrador e ouvinte a in-corporar ao seu próprio relato a experiência do outro, propiciando um encon-tro de experiências temporal e geograficamente distantes, de experiênciastanto individuas quanto coletivas. É um imperativo, pois, que deva servir por

testemunha um ouvinte, apto a ouvir e compartilhar esta sabedoria, a partirda credibilidade que possa atribuir à narrativa. Assinalará Benjamin (1987)que é a partir da transmissão ao outro, numa dimensão de alteridade, que aexperiência se cria e recria. Apropriamo-nos de nossos registros de vivênciasomente através desta transmissão testemunhada. Ou seja: é nocompartilhamento, na narrativa de algo que é do mais íntimo, que se convocao ouvinte, ou leitor, a uma experiência compartilhada, vindo a tocar o maisuniversal da experiência, moldando-a no justo ponto em que aquele que nar-ra pode perceber o que lhe é singular como um singular partilhado. Ao mequestionar a respeito do legado escrito deixado por Levi, deparo-me comuma bifurcação: ao mesmo tempo em que parece submetido a uma exigên-cia de transmissão e de reconhecimento das marcas do passado, algo emseus questionamentos sugere a ousadia de uma re-escritura do futuro, nummovimento de não apenas escrever o passado, mas desenhar o destino deforma outra, talvez se ofertando para diferentes e novas cicatrizes – quiçátransformando a marca no real em uma cicatriz simbólica.

“A nossa língua não tem palavras para expressar esta ofensa, a ani-quilação de um homem”, nos diz Primo Levi. Temos demarcado, até aqui,que os eventos da Guerra colocam-se como anteparo que fere esta capaci-dade de testemunhar. Mas que marcas são estas, afinal, deixadas por umacatástrofe como a Guerra, tal como um flagelo da humanidade, e que tornavamudos e pobres em experiência seus sobreviventes? Que evento é este quebaliza a capacidade humana de narrar – e, conseqüentemente, de ouvir?Gagnebin (2006) nos dirá que aquilo que estes homens vivenciaram não po-dia mais ser assimilado em palavras. Mas o que é isso? Seligmann-Silva(2000), ao falar da Segunda Guerra como um poderoso buraco-negro da His-tória, eleva-a ao estatuto de divisor de águas que reorganiza toda a reflexãocientifica e historiográfica acerca do que é o real e sobre a possibilidade desua representação. O horror e a exterminação metódica do Holocausto tor-nam-no um objeto que escapa à representação, um evento literal, justamen-te por este caráter de excesso de realidade que o marca. Afirma o mesmoautor que na base da representação de uma experiência está a capacidade

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SEÇÃO TEMÁTICA

de universalização da representação, impossível diante da singularidade desteevento-limite. Perante a ausência de limites deste objeto, como então repre-sentar algo que vai além da própria capacidade de imaginar? Mas não nosaproximamos aqui, justamente, da definição freudiana de trauma?

Freud, contemporâneo a isso, nas Conferências Introdutórias (1915-1917) a respeito da Fixação em Traumas, deter-se-á no estudo das experiên-cias traumáticas dos sobreviventes da Primeira Guerra, que, atormentadospor suas lembranças, ainda assim não eram capazes de dizer qualquer pa-lavra a respeito do que viram, impossibilitados de colocar suas lembrançasem uma ordem simbólica. Em conclusões parecidas, Freud falará de trau-ma; Benjamin, de choque. Freud, assim, definirá o trauma como uma expe-riência que traz à mente, num período curto de tempo, um aumento de estí-mulo grande demais para ser absorvido, ocasionando um adiamento ouincompletude do que se sabe: assim, trata-se da incapacidade de recepçãode um evento transbordante, que ultrapassa os limites de nossa percepção,ocasionando uma ferida na memória na qual não ocorre uma experiênciaplena do fato vivenciado. Há ali, pois, a impossibilidade de uma resposta eelaboração simbólica frente à experiência de choque, em especial sob aforma de palavra, pelo sujeito. Cathy Caruth (1995, citada por Seligmann-Silva, 2000) dirá que o evento traumático não é assimilado de forma plenanaquele dado momento, mas tardiamente, acontecimento este de complexatemporalidade, numa possessão repetida daquele que o experienciou. As-sim, entende-se que a catástrofe deixará marcas as quais, por estarem gra-vadas, retornarão. A partir desta noção, Freud traçará a relação deste traumacom as memórias que insistem em se repetir – pelo automatismo da repeti-ção próprio da experiência traumática – mas que ao mesmo tempo resistemem serem compartilhadas. A vivência deste transbordante acarreta posterior-mente uma compulsão à repetição da cena traumática (Seligmann, 2000,pp.84) – compulsão esta que, acredito, encontramos na repetição do sonhode Levi, num retorno constante às cenas sem limites do Holocausto, traduzidastalvez pela angústia de precisar narrá-las, mas não conseguir; angústia detransformar a literalidade do real das cenas que vive em algo de simbolizável;

angústia, enfim, de não encontrar num terceiro a resolução deste “paradoxoda experiência catastrófica, que por isso mesmo não se deixa apanhar porformas simples de narrativa” (Seligmann, 2000, pp.8) .

Frente a essa repetição e diante da necessidade de simbolizaçãodesta literalidade que resiste brava à representação das metáforas, encon-tramos a escrita. Nosso sobrevivente, Primo Levi, preso ao contraditório emseu sonho, no intervalo entre o imperativo da necessidade de narrar acercada catástrofe vivida e a “impossibilidade de dar forma ao que transborda suacapacidade de pensar (Seligmann, 2000, pp.83)”, muito embora seu pesade-lo torne-se cruelmente real, de alguma forma narra, transmite e marca aHistória com suas experiências. A escrita parece, pois, operar num trabalhodo trauma, no sentido de libertação de imagens do passado, as quais fogemao controle da consciência, da memória, da própria História. Não mais inse-ridos em uma tradição de memória e narrativa viva e oral – Levi, nós – seria,quiçá, preciso inventar outras estratégias de compartilhamento e testemu-nho, bem como de conservação e mecanismos de lembrança? Aqui, memó-ria e esquecimento se entrelaçam e alternam, num movimento onde ao lem-brar, e escrever, adentra-se o campo da linguagem e transforma-se o literalem figurativo, para assim encontrar-se o esquecer, em que através do teste-munho pode-se alçar a libertação desta cena traumática do passado,recontada sob novo enredo. E não seria mesmo o lembrar uma forma deesquecer? E não seria mesmo o narrar uma forma de transcender em pala-vras as fronteiras do homem? E não seria, enfim, através da escrita, possíveltocar o passado e produzir efeitos de cicatrização e criação do novo?

Mais do que isso, a escrita, como forma de inscrição na História e naCultura, tem função de luta contra o esquecimento e a denegação de umhorror que não pode e não deve repetir-se, uma tarefa ética e política nosentido de sua rememoração – de uma memória ativa que transforma o pre-sente, no intuito crítico de recusar a repetição da destruição no mundo con-temporâneo. Levi parece, enfim, num primeiro esforço tentar dizer o indizível,numa elaboração simbólica do trauma que lhe permitisse continuar a viver(Gagnebin, 2006), e, simultâneo a isso, parece operar como testemunha de

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“O OSSO JOGADOR”

Christiane de Macedo Bittencourt

Acordou feliz. Era dia quente, vestiu a calça curta furada que já haviapassado pelo mais velho e a camisa rabona, presa por um só botão.

Como sempre fazia foi procurar a galinha. Ele a criara desde bempintinho, acariciava as penas, dava água e comida.

O irmão acordou mais velho nesse dia e a mãe prometeu galinhada.Ele tremera não havia galinha ali que não a sua.A mãe ordenou que fosse pedir a panela grande, da tia, emprestada.

Cada palavra sua retumbava como uma ordem do quartel, tamanha durezaem mulher tão franzina.

Saiu em disparada para ver se não perdia nada, acontecimento algum.Quando voltou ela já estava lá deitada no para-peito, sangrando a go-

tas finas no balde de lata.Enterrou a panela na cabeça, não queria deixar seus olhos verem o

que viu, nem os outros testemunharem suas lágrimas.Sua dor ecoou panela a dentro.O cheiro da comida enrolava as tripas desde cedo da manhã.De dentro vinha uma gosma espessa até a beira da garganta. Ele cuspia

grosso na areia quente e deixava o olhar fixo no cuspe até secar. Com umavarinha circulava a gosma. Nada mais preenchia sua cabeça, isso era tudo.

Nem a pobreza da família lhe parecia motivo para tanta crueldade.Mais tarde foi chamado para vir à mesa. O irmão comeu metade do

peito e com um ar satisfeito o convidou para jogar o osso jogador.O vencedor deveria comer a outra metade.Sua dor ao ver o osso partir-se só encheu-lhe de coragem, nada podia

obrigá-lo a comer esta galinhada. Tomou então a faca afiada e cravou com toda profundidade no pesco-

ço do irmão.Ao virar-se para trás ainda o viu sangrando a gotas finas no colo da mãe.

1 Psicanalista.

algo que não poderia – nem deveria – ser apagado da memória da humanida-de. Benjamin denuncia transformações históricas que remetem à perda damemória e da capacidade de compartilhamento. Diante disso, talvez do ca-samento entre a psicanálise e Benjamin, surja o mais fundamental: a possi-bilidade de criação do novo. Trata-se, pois, de inventar outras formas dememória e de narração, que a própria prática psicanalítica, por si só, nos dáexemplo, visto que pode ser compreendida como uma nova forma de aproxi-mação da dinâmica do lembrar e do esquecer, uma nova situação em termosnarrativos de fala e escuta, que permita ao sujeito fugir do enclausuramentoda repetição (Gagnebin, 2008, pp.61). De igual modo, permitamo-nos pensarde que forma a psicanálise pode atuar como um dos recursos da cultura narecuperação da experiência, bem como o que tem a ela a oferecer quando daanálise de testemunhos tais como o de Levi, que por outra via possivelmentenão encontrasse voz.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:BENJAMIN, W. (1987). Experiência e pobreza. In: Obras escolhidas. Vol. 1. 3º

Edição. São Paulo: Editora Brasiliense._____. (1992). O narrador. In: Sobre arte, técnica, linguagem e política. Relógio

D’Água Editores, Lisboa, Portugal.GAGNEBIN, J. M. (2008). Walter Benjamin: memória, história e narrativa. Em:

Revista Mente, cérebro e filosofia nº7 – O homem no caos do capitalismomoderno. São Paulo: Editora Dueto.

_____. (2006). Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Editora 34.FREUD, S. (1915-1917). Conferência XVIII: Fixação em Traumas – O inconscien-

te. Em: Conferências introdutórias sobre psicanálise. Edição standard brasi-leira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro:Editora Imago.

LEVI, P. (1988). É isto um homem. Rio de Janeiro: Editora Rocco.NESTROVSKI, A. & SELIGMANN-SILVA, M. (orgs.). (2000). Catástrofe e Represen-

tação. São Paulo: Editora Escuta.SELIGMANN-SILVA, M. (2000). A história como trauma. Em: _____. (2000). Catás-

trofe e Representação. São Paulo: Editora Escuta.

SEÇÃO ENSAIO

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RESENHA

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RESENHA

Em “A educação e o lugar dos ideais”, Carlos Kessler aborda a educa-ção na dimensão escolar, a partir de seu trabalho na formação de professo-res. Propõe discutir a educação considerando-a como parte integrante doprocesso civilizatório, dependente da veiculação dos ideais na cultura. Ana-lisa e alarga a função do professor, comparando-o a um agente cultural quetransmite a seus alunos que “estudar é uma viagem”. E viajar é preciso.

Em “A novela familiar contemporânea e a educação”, Roséli Cabistanianalisa algumas das transformações que têm passado a instituição familiar,particularmente, a família brasileira, partindo do que mudou no novo códigocivil. Lembra que o declínio da autoridade paterna não é nada recente ediscute com propriedade, o que ainda nos faz tratar essa questão comoatual.

Em “Admirável mundo novo”, Eda Estevanell Tavares afirma que a ca-pacidade do ser humano de criar o novo não está dada a priori, não é congê-nita. Situa o significante do Nome-do-Pai como o operador que encadeia atradição e a invenção, ou seja, a produção de novos significados. A autorasitua o encontro com o novo como corolário de uma procura de um significanteque responda sobre o enigma da origem. Aponta para a metáfora paterna, apossibilidade de inovação e discute o lugar do pai transmissor de saber enão como detentor absoluto. Um significante novo vem para sustentar a liber-dade subjetiva e impulsionar o sujeito a seguir recobrindo o real que persiste,alargando o domínio simbólico.

Em “Estruturar para não marginalizar: quando a educação começa aser possível”, Silvia Molina e Ivone Alves abordam como as operações pulsionaisinscritas numa rede significante, capacitam a criança a transitar no mundosimbólico. Demonstram o intenso percurso que a criança faz até chegar auma instância sociocultural, onde se localiza a instituição escolar que deve-rá ser primariamente estruturante e secundariamente educativa.

As autoras desenvolvem detalhadamente o processo de apropriaçãodo traço gráfico a partir das vivências corporais significantes no laço com oOutro primordial, além de darem conta das passagens que a criança vaiexperienciando na aquisição do domínio do ato de desenhar. Com isso estão

EDUCAÇÃO E FUNÇÃO PATERNA

RODRIGUES, Fátima e GURSKI, Roselene. Educação efunção paterna. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2008104p.

Educação e função paterna” é um livro queinova pela ampla e consistente discus-são que faz entre Psicanálise e Educa-

ção. Apresenta seis artigos e cada um deles,por um viés diferente, mas igualmente original,traz questões muito bem articuladas que contri-buem muito, não só, para quem trabalha nessainterface.

O texto de Roselene Gursky, autora eorganizadora dessa publicação: “Pais ou mestres? Notas sobre as fronteirasda família e da escola na educação contemporânea”, traz à tona um debatesobre a especificidade do ato educacional num cenário de erosão da autori-dade parental. Examina os efeitos nada promissores que a intervenção daescola, nos dias de hoje, tende a fazer, a saber, pela via da suplência.

Roselene faz um recorrido histórico sobre o nascimento da educaçãoinfantil até essa escola que conhecemos na atualidade, ou seja, como umainstituição formal de ensino. Demonstra a passagem da educação pública,comunitária e aberta, destinada a integrar as crianças na sociedade, visandoà inserção na coletividade para uma outra que visa basicamente ao desenvol-vimento de aptidões. Paralelamente à análise histórica da educação, a auto-ra analisa as mudanças na estrutura da família, abordando o individualismoatual, a partir das mudanças nos preceitos educativos e políticos. Finalizaseu trabalho lançando novas reflexões, a partir de uma abordagem crítica con-sistente sobre o processo corrosivo que sobrepõe o valor da verdade compro-vada cientificamente às expensas da transmissão que o professor pode viabilizardesde a sua experiência. Diz: esse processo “foi gradativamente esvaziandoo lugar de autoridade das diferentes instituições educativas” (p. 28).

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RESENHA

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AGENDA

JANEIRO– 2009

PRÓXIMO NÚMERO

Reunião da Comissão de EventosDia Hora Local Atividade

Reunião da Comissão de Aperiódicos

Sede da APPOA

Reunião da Comissão da Revista

ESCRITA E PSICANÁLISE

Reunião da Comissão do Correio

19h30min

14h30min

Sede da APPOA

Sede da APPOA

Reunião da Mesa DiretivaSede da APPOA21h8h30min

19h30min

08 e 22

08, 15,22 e 29

19

09, 16,23 e 30

09 e 23 Sede da APPOA

CALENDÁRIO DE EVENTOS 2009

Data Atividade

04 de abril08, 09 e 10 de maio29, 30 e 31 de maio27 de junho08 de agosto21 de setembro17 e 18 de outubro

Jornada de AberturaCongresso de ConvergenciaRelendo FreudJornada do Instituto APPOAJornada do Percurso de EscolaJornada do Percurso em Psicanálise de CriançasJornada Clínica

apresentados e articulados os pré-requisitos da constituição psíquica paraque a criança possa lidar com as exigências educativas atuais.

Por último, Fátima Lucília Vidal Rodrigues, que também organizouessa publicação, apresenta seu trabalho intitulado: “Escrita e psicose: aimportância de um terceiro”. A autora se vale de sua vasta experiência comoprofessora da rede pública para apresentar e discutir suas reflexões sobre aimportância de uma apropriada intervenção por parte do professor com ascrianças com funcionamento psicótico. Para isso, recorre à origem da escri-ta e a alguns pontos de sua história, discutindo as suas diferentes aborda-gens na escola e o seu conceito na teoria lacaniana. Trabalha sobre assingularidades do texto de um aluno que escrevendo, se “inscreve” numaescritura.

Desejo-lhes uma ótima leitura!

Beatriz Kauri dos Reis

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EXPEDIENTEÓrgão informativo da APPOA - Associação Psicanalítica de Porto Alegre

Rua Faria Santos, 258 CEP 90670-150 Porto Alegre - RSTel: (51) 3333 2140 - Fax: (51) 3333 7922

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Impressão: Metrópole Indústria Gráfica Ltda.Av. Eng. Ludolfo Boehl, 729 CEP 91720-150 Porto Alegre - RS - Tel: (51) 3318 6355

Comissão do CorreioCoordenação: Gerson Smiech Pinho e Marcia Helena de Menezes Ribeiro

Integrantes: Ana Laura Giongo, Ana Paula Stahlschmidt,Fernanda Breda, Márcia Lacerda Zechin, Maria Cristina Poli,

Marta Pedó, Mercês Gazzi, Norton Cezar Dal Follo da Rosa Júnior, Robson de Freitas Pereira e Tatiana Guimarães Jacques

ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGREGESTÃO 2007/2008

Presidência: Lucia Serrano Pereira1a Vice-Presidência: Lúcia Alves Mees2a Vice-Presidência: Nilson Sibemberg

1a Secretária: Lucy Linhares da Fontoura2a Secretárias: Maria Elisabeth Tubino e Ana Laura Giongo

1a Tesoureira: Ester Trevisan2a Tesoureira: Maria Beatriz de Alencastro Kallfelz

MESA DIRETIVAAlfredo Néstor Jerusalinsky, Ana Laura Giongo, Ana Maria Medeiros da Costa

Ângela Lângaro Becker, Beatriz Kauri dos Reis, Carmen Backes,Emília Estivalet Broide, Fernanda Breda, Ieda Prates da Silva, Maria Ângela Bulhões,

Maria Ângela Cardaci Brasil, Maria Cristina Poli, Maria Lucia M. Stein,Otávio Augusto Winck Nunes, Robson de Freitas Pereira, Siloé Rey e Simone Kasper

Capa: Manuscrito de Freud (The Diary of Sigmund Freud 1929-1939. A chronicle of events in the last decade. London, Hogarth, 1992.)Criação da capa: Flávio Wild - Macchina

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ESCRITAS DA EXPERIÊNCIA

N° 176 – ANO XVI JANEIRO – 2009 ISSN 1983-5337

S U M Á R I O

EDITORIAL 1SEÇÃO TEMÁTICA 2PALAVRAS-ISCASMarieta RodriguesPaulo GleichSimone Moschen Rickes 3RESTOS DISCURSIVOSMaíra Brum Rieck 9OFICINANDO ENREDOS DE PASSAGENS:O ENCONTRO DO ADOLESCER EMSOFRIMENTO COM A TECNOLOGIATatiane Reis Vianna 13LABIRINTOS JUVENIS NA ATUALIDADERoselene Gurski 20TRANSMISSÃO DA CATÁSTROFE:TRANSCENDER EM PALAVRASAS FRONTEIRAS DO HOMEMMarcia Giovana Pedruzzi-Reis 27

SEÇÃO ENSAIO 35“O OSSO JOGADOR”Christiane de Macedo Bittencourt 35

RESENHA 36EDUCAÇÃO E FUNÇÃO PATERNA 36

AGENDA 39