Educação escolar, educação no lar

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    667Educ. Soc., Campinas, vol. 27, n. 96 - Especial, p. 667-688, out. 2006Disponvel em

    Carlos Roberto Jamil Cury

    EDUCAO ESCOLAR E EDUCAO NO LAR:ESPAOS DE UMA POLMICA

    C ARLOSR OBERTOJ AMILCURY *

    RESUMO:O princpio da obrigatoriedade escolar em instituies es-colares significa uma interveno dos poderes pblicos no sentido decriar espaos de socializao que conduzam a uma igualdade de opor-tunidades na oferta de conhecimentos bsicos e na aquisio de valo-res bsicos de referncia. Tal princpio tem sido objeto de contestaopor meio do movimento norte-americano dahome schooling j existen-te no Brasil. Alm de aspectos histricos muito importantes para acompreenso da obrigatoriedade em nosso pas, aponta-se para os tex-tos legais e sua interpretao oficial (interpretao resolutiva a esse res-peito) e para as concepes e argumentos que sustentam essas posies.Palavras-chave: Obrigatoriedade escolar. Educao no lar. Educao

    escolar: dever do Estado.

    S CHOOL EDUCATION AND HOME SCHOOLING : : POLEMIC SPACES

    ABSTRACT : The principle of compulsory school attendance meansan interference of the authorities to create socialization spaces thatlead to an equality of opportunities in the provision of basic knowl-edge and acquisition of basic reference values. Such principle hasbeen contested by the North-American movement for home school-ing, which has equivalents in Brazil. In addition to presenting his-torical aspects that are crucial to understand mandatory school at-tendance in Brazil, this paper points out legal texts and their official(definitive) interpretation and the conceptions and arguments thatground both positions.Key words:Compulsory school attendance. Home schooling. School

    education: States duty.

    * Doutor em Educao pela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo (PUC-SP) e pro-fessor adjunto da Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais (PUC-MG). E-mail :[email protected]

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    Introduo

    complexidade da vida contempornea, quer em sua dinmica co-tidiana, quer em qualquer das vertentes analticas s voltas com ofenmeno, por exemplo, da globalizao, vem se deparando com

    situaes aparentemente exticas. Caso de uma situao fora da tica a postulao da educao escolar no lar em um momento em que crescecada vez mais a importncia social e estratgica da instituio escolar.

    Merece uma ateno analtica a defesa da chamada educao (es-colar) domstica, ou na verso inglesahome schooling . Ela vem sendopostulada por famlias interessadas nessa forma domstica de educaoescolar. Constata-se a existncia de movimentos em prol da legalizaodessa forma escolar, sobretudo onde no haja um reconhecimento legaldessa proposta e em defesa de uma legitimidade onde essa legalizao j existe.

    Em nosso pas, essa situao tambm se faz presente a ponto deuma demanda familiar a esse respeito j ter chegado ao Superior Tribu-nal de Justia (STJ). Com efeito, uma determinada famlia oferecia aseus filhos menores essa forma de educao escolar e, apoiando-se ge-nericamente na legislao nacional, em convenes internacionais, re-

    ceosa da violncia urbana, da circulao de valores laxos fora da famliae ciente dos maus resultados dos alunos em avaliaes de desempenho,articulou-se com um estabelecimento de ensino privado de modo a as-sociar a transmisso de conhecimentos em casa, com a avaliao dosmenores em exames dentro dos mesmos padres que os estudantes co-muns do estabelecimento.

    Consultado o Conselho Estadual de Educao do Estado no qualo estabelecimento se situa, esse rgo normativo, prudentemente, en-tendeu, vista da complexidade do assunto, encaminhar ao ConselhoNacional de Educao (CNE) consulta a propsito da proviso legal dareferida iniciativa. Esse ltimo exarou parecer esclarecendo que, em re-lao educao bsica como um todo, especificamente com relao ao

    ensino fundamental, tal iniciativa no encontrava proviso legal. O pa-recer do Relator claro:

    Salvo melhor juzo, no encontro na Lei n.9.394/96, de 20 de dezembro de1996, Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional, nem da Constitui-o da Repblica Federativa do Brasil, abertura para que se permita a uma

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    famlia no cumprir a exigncia da matrcula obrigatria na escola de ensinofundamental.

    Tendo sido o dito parecer homologado pelo Ministro de Estadode Educao,1 a famlia impetrou mandado de segurana junto ao Su-perior Tribunal de Justia.2 Esse, por sua vez, denegou a segurana e,assim, confirmou a procedncia do teor do parecer do Conselho Nacio-nal de Educao. Diz o autor dessa denegao:

    Os filhos no so dos pais, como pensam os Autores. So pessoas com direi-tos e deveres, cujas personalidades se devem forjar desde a adolescncia emmeio a iguais, no convvio formador da cidadania. Aos pais cabem, sim, asobrigaes de manter e educar os filhos consoante a Constituio e as Leisdo pas, asseguradoras do direito do menor escola...

    Assim, respeitados o art. 90 daLDB e o art. 105, I b da Consti-tuio excetuado o caso do 4 do art. 32 daLDB, o ensino funda-mental tem nas instituies escolares devidamente autorizadas seu foroestabelecido e obrigatrio.

    Essa definio de um Tribunal maior e de um Conselho norma-tivo no produto de um voluntarismo qualquer. Trata-se de manda-mento legal e com base em uma longa histria, histria da educao,na qual se cruzam as temticas da oferta gratuita e da presena obriga-tria na escola. Como diz Bobbio (1987, p. 23): (...) existem refor-mas igualitrias que no so liberadoras, como, por exemplo, toda a re-forma que introduz uma obrigao escolar, forando todas as crianas air escola, colocando a todos, ricos e pobres, no mesmo plano, maspor meio de uma diminuio da liberdade. Ou como completa o mes-mo autor (1995, p. 113): Em geral, qualquer extenso da esfera p-blica por razes igualitrias, na medida em que precisa ser imposta, res-tringe a liberdade de escolha na esfera privada, que intrinsecamenteinigualitria (...). Tal restrio liberdade assim justificada porBobbio (1995, p. 114):

    O mesmo princpio fundamental daquela forma de igualitarismo mnimoprpria da doutrina liberal, segundo a qual todos os homens tm direito idntica liberdade, salvo excees a serem justificadas, implica que cada umlimite a prpria liberdade para torn-la compatvel com a liberdade de to-dos os outros, de modo a no impedir que os outros tambm usufruam dasua mesma liberdade.

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    Ora, a grande pluralidade institucional no mundo social implicatambm a distribuio social dos conhecimentos dentro das sociedadesmodernas. Assim, h que se reconhecer o papel original da famlia naaquisio de padres comuns e de um quadro social de referncias relati-vo a um sistema social. Nesse processo as crianas vo aprendendo a cum-prir papis e assumir valores bsicos de referncia a esse sistema, dando-se tanto uma ao objetiva da sociedade para a pessoa quanto uma aosubjetiva de recepo por parte da mesma. Nesse sentido, a famlia um

    agente original e imediato de socializao da criana. A socializao, naperspectiva interacionista de Mollo-Bouvier (2005) explicita que aintegrao do indivduo na vida coletiva tambmconhecimento de si e conhecimento do outro, construo de si e construo do outro.Como diz essaautora (2005, p. 393):

    (...) a socializao () um processo contnuo embora no-linear (isto submetido a crises) de ajuste constante de um sujeito a si mesmo, ao ou-tro e a seu ambiente social. A socializao compe-se de dessocializaese ressocializaes sucessivas. Ela a conquista nunca alcanada de umequilbrio cuja precariedade garante o dinamismo.

    Pode-se, ento, distinguir genericamente duas modalidades intera-tivas de socializao: a primria e a secundria. Pode-se atribuir sociali-zao primria o conceito amplo de educao e, nesse sentido, ela ocorrena famlia e em outros espaos. A socializao primria a primeira so-cializao que o indivduo experimenta em sua infncia, e em virtude daqual torna-se membro da sociedade (Berger, 1973, p. 175).

    Mas a famlia no d conta das inmeras formas de vivncia deque todo o cidado participa e h de participar para alm dessa pri-meira socializao. Na consolidao de formas coletivas de convivnciademocrtica a educao escolar dada em instituies prprias de ensi-no torna-se uma importante agncia de socializao secundria para avida social e formao da personalidade.3

    A instituio escolar, enquanto um lugar especfico de transmis-so de conhecimentos e de valores, desempenha funes significativaspara a vida social. Ela faz parte da denominada socializao secundriacomo uma esfera pela qual, junto com outras, a pessoa vai sendo influ-enciada (e influindo) por meio de grupos etrios, da insero profissio-nal, dos meios de comunicao, dos espaos de lazer, da participao

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    em atividades de carter sociopoltico-cultural, entre outros. SegundoBerger (1973, p. 175): A socializao secundria qualquer processosubseqente que introduz um indivduo j socializado em novos seto-res do mundo objetivo de sua sociedade.

    Como uma agncia socializante, a instituio escolar propicia tan-to a transmisso do acmulo de conhecimentos por meio do desenvol-vimento de capacidades cognoscitivas quanto a transmisso de normas,valores, atitudes relativas vida social.4

    por esta razo que o art. 205 da Constituio diz que a finali-dade da educao o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparopara o exerccio da cidadania e sua qualificao para o trabalho. En-tende-se dentro desse pleno desenvolvimento a aquisio de conheci-mentos e a socializao em matria de normas e valores em vista do con-vvio social. Estamos, pois, dentro de uma articulao entre o trabalhoe a cidadania.

    O trabalho a forma pela qual os membros de uma sociedadecriam condies para a reproduo das condies de sua existncia so-cial, buscando uma forma de insero que contenha a realizao dosindivduos.

    A cidadania um princpio da Repblica Federativa do Brasil (art.1, II) em que os pares se reconhecem como iguais na busca da realizaoda cidade boa e justa. E no h cidadania sem iguais, pontos mnimosde partida sem a construo de fins coletivos e sem a participao daspessoas, seja em organizaes coletivas seja em dinmicas que lhes asse-gurem a presena consciente nos destinos de sua comunidade.

    A educao escolar responde a um dos pilares da igualdade deoportunidades. A educao infantil, o ensino fundamental gratuito eobrigatrio e o ensino mdio, etapas constitutivas da educao bsicaem nossa organizao nacional da educao escolar, so determinantesna rede de relaes prprias de uma sociedade complexa como a nossae que, como se viu, objetiva a cidadania de seus membros inclusive sob

    a forma de uma socializao plena que inclui a qualificao para umainsero profissional, digna da pessoa humana como assevera o art. 3,III da Constituio.

    Logo, o atual ordenamento jurdico obriga a que todas as crian-as em idade escolar estejam matriculadas em escolas autorizadas.

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    Famlia e educaoPosta a determinao legal, cumpre questionar se a demanda dos

    pais defensores dahome schooling um pedido esdrxulo, ou seja, forada tica legal.

    A histria da educao nacional mediada pelo ordenamento jur-dico pode nos trazer elementos vlidos para um estudo e anlise daquesto.

    Nossa sociedade, com apoio do ordenamento jurdico, reconhe-ce ostatus predominante dos processos institucionais de socializao se-cundria nas unidades escolares. Para tanto, garante gratuidade nas es-colas pblicas em todas as etapas da educao bsica e determina aobrigatoriedade no ensino fundamental seja em escolas pblicas ou pri-vadas.5 A Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional, entretanto,reconhece que as instituies escolares possuem umstatus predominante e no absoluto junto educao escolar, de acordo com o 1 do art.1 da LDB. Essa mesma lei faculta, em especial no art. 24, II, c, opesvlidas de processos de ensino-aprendizagem com menor ndice deinstitucionalizao quando postulantes escolaridade querem realiz-laprosseguindo nela de modo institucionalizado. Nesse caso, o importan-

    te a capacitao verificada e avaliada do estudante, pela mediao dasunidades escolares devidamente autorizadas, observadas as regras co-muns e imperativas dos rgos normativos.

    A opo escolar pela via domstica tambm no responde com-plexidade das situaes prprias das sociedades contemporneas e dasociedade brasileira em matria de educao, conforme a definio doart. 1 daLDB.

    A legislao brasileira, ao tornar o ensino fundamental obrigatriopara todos, desde 1934 at 1988, no imps, nesse perodo, que, foro-samente, ele se desse em instituies escolares. Hoje, como se viu, h ummandamento interpretado e julgado a esse respeito pelo Superior Tribu-nal de Justia.

    O dever do Estado tem a competncia privativa de estabelecer asdiretrizes e bases da educao nacional (Constituio, art. 22, XXIV ), res-peitado o princpio da liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e di-vulgar o pensamento, a arte e o saber (art. 206, II). Tal incumbnciapara com a educao (art. 208 da Constituio) deve garantir o ensino

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    fundamental obrigatrio e gratuito (art. 208, I) inclusive com o apoiodos pais ou responsveis pela freqncia escola (art. 208, 3).

    A realizao desta obrigao e deste dever encontra nas institui-es escolares prprias seu lugar histrico consolidado e socialmentemais adequado. Alm de serem os lugares prprios do ensino, l tam-bm que o adolescente e o jovem aprendem a partilhar com os outrosos valores, as emoes e as contradies da convivncia social, postosnos princpios de igualdade, diferena e de respeito s regras do jogodemocrtico.

    Desde a Grcia Antiga, no coletivo da praa (gora), na plis que a cidadania se exerce, por ser l o lugar de realizao plena da li-berdade. Como diz Arendt (1991, p. 41):

    (...) a plis diferenciava-se da famlia pelo fato de somente conheceriguais, ao passo que a famlia era o centro da mais severa desigualdade.Ser livre significava ao mesmo tempo no estar sujeito s necessidades davida nem ao comando de outro e tambm no comandar. No significavadomnio, como tambm no significava submisso.

    Esta separao entre a isonomia da vida poltica e a hierarquia davida familiar se viu alterada quando, como diz Arendt (1991, p. 37):(...) a ascendncia da esfera social, que no era nem privada nem p-blica no sentido restrito do termo, um fenmeno relativamente novo,cuja origem coincidiu com o surgimento da era moderna e que encon-trou sua forma poltica no estado nacional.

    Se esta associao complexa e contraditria entre sociedade e po-ltica se torna predominante nas relaes prprias da sociedade moder-na, isto no quer dizer que se negue o direito da autoridade dos pais,ex generatione ou ex natura, na educao dos filhos e nem que a dimi-nuio dos papis atribudos famlia se fizesse sem problemas.6 Afinalnenhum ser humano nasce j pronto para ser um membro da socieda-de. Tal autoridade, prpria da unio conjugal (consociatio domestica) queprocriou, bsica para o desenvolvimento da personalidade e para a for-mao biolgica dos seres humanos, que exigem um largo perodo decuidados para que tenham condies de, no futuro, assumir o papel deadultos como participantes daconsociatio politica. As faixas etrias com-preendidas pela socializao primria necessitam do apoio constante epermanente dos outros, em especial dos pais.

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    O dever da famlia para com a educao implica uma posio deeducadora especialmente na faixa de 0 a 3 anos. Isso no significa a des-considerao do papel de uma orientao que os adultos possuem em re-lao s geraes mais jovens.7

    Embora em muitos pases, inclusive no Brasil, a obrigatoriedadecomece aos 6 anos, o mesmo no se d com as creches, embora se possapensar em uma desejabilidade, mesmo porque muitas e muitas famlia opleiteiem por razes ligadas ao mundo do trabalho e conscincia daimportncia da educao infantil para o conjunto da educao bsica.8

    Por outro lado, as sociedades, medida que se complexificam,destinam certas funes antes atribudas famlia , bem como no-vas funes, a instituies outras, umas sociais, outras vinculadas ao Es-tado. D-se, pois, uma dialtica entre a socializao familiar e a sociali-zao escolar. Nossa Constituio Federal reconhece o papel eminenteda famlia quando lhe d um captulo na Lei Maior (captulo VII doTtulo VIII) assinalando, no art. 227: dever da famlia, da socieda-de e do Estado assegurar criana e ao adolescente, com absoluta prio-ridade, o direito vida, sade, alimentao, educao, ao lazer, profissionalizao, cultura, dignidade, ao respeito, liberdade e convivncia familiar e comunitria (...).

    Assim, as famlias tm o dever jurdico de matricular seus filhosnas instituies escolares de modo a superarem, desde cedo, umegocentrismo prprio da infncia, um convite anomia; e a estabelece-rem com os outros relaes maduras de reciprocidade. Nesse sentido cabeo pensamento kantiano de que a pessoa sempre um fim e cuja autono-mia tem a reciprocidade do outro, repudiando a regresso do outro con-dio de meio.

    Mas, ao mesmo tempo, a Constituio reconhece o eminentepapel do Estado na busca da cidadania e na garantia de direitos queno decorrem nem da vida privada e nem do mercado. Se a Consti-tuio Federal reconhece, em captulo prprio, a famlia como baseda sociedade (art. 226), o art. 205 reconhece a competncia da edu-cao como dever do Estado e da famlia (que) ser promovida e in-centivada com a colaborao da sociedade (...). Explicitando, o art.208 dispe que este dever de educao ocorrer sob a forma de ensi-no que, por sua vez, deve ser juridicamente protegido em vista de suaefetivao e garantia.

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    Ao lado dessa dialtica entre educao e ensino (ou educao es-colar), comparece na Lei essa peculiar competncia concorrente no-competitiva entre sujeitos da ordem sociopoltica e sujeitos da ordemprivada, inclusive familiar. As disposies da Lei de Diretrizes e Basesda Educao Nacional pedem por uma participao das comunidadesescolar e local de modo a propiciar a valorizao da experincia extra-escolar (art. 3, X daLDB).

    A defesa da famlia comosocietas naturalis que assegura formasinstitucionais de reproduo da espcie e de manuteno e desenvolvi-mento dos filhos tem um vasto fundamento no direito. a chamada potestas ex generatione ou ex natura. Mas, ao mesmo tempo, de se afir-mar que os filhos no pertencem aos pais j que, ainda que menores, sopessoas dotadas de direitos e deveres que devem ser respeitados. Tal ocaso da Lei n. 8.096/90 como consta em seu art. 5: Nenhuma crianaou adolescente ser objeto de qualquer forma de negligncia, discrimina-o, explorao, violncia, crueldade e opresso, punido na forma da leiqualquer atentado, por ao ou omisso, aos seus direitos fundamentais.

    Ora, essa lei conhecida como Estatuto da Criana e do Adolescen-te (ECA ) coloca como um dos direitos fundamentais da criana e do ado-lescente o direito educao, cultura, ao esporte e ao lazer (captulo IV do Ttulo II) tal como a expresso em vrios artigos como o art.55: Ospais ou responsveis tm a obrigao de matricular seus filhos ou pupilosna rede regular de ensino. Esse artigo corroborado pelo art. 129 damesma lei, cujo inciso V assevera a obrigao de matricular o filho oupupilo e acompanhar sua freqncia e aproveitamento escolar.

    O problema se pe quando este fundamento se projeta para o con- junto da sociedade e se faz acompanhar de uma defesa da sociedadeorganicista. Nesta perspectiva, o Estado tido como uma mera extensoampliada da famlia, vista comocelula mater da sociedade e como lugar deidentificao entre o natural e o social. O Estado, nesta perspectiva, torna-se, assim, um agente subsidirio do poder familiar. Algo como esteve dis-posto na Constituio outorgada de 1937, como foi citado acima.

    Dentro desse ponto de vista pr-moderno, as opes familiares,por serem hierarquicamente fundantes e conaturais ao social, devem serrespeitadas pelo Estado. A famlia sendo o lcus da no-explorao eco-nmica, do poder hierrquico, e as escolas sendo uma extenso da fam-lia, as unidades escolares mediam a relao Estado/famlias, devendo es-

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    sas realizar a opo diferencial dos pais. Ainda dentro desta perspecti-va, esta opo deve ser subsidiada pelo poder pblico.9

    Dessa concepo organicista decorre uma desconfiana com rela-o a expresses como escola estatal, escola unificada ou escola nica, jque elas estariam impondo um padro de submisso da famlia ao Esta-do, quando a ordem natural ou sobrenatural preveria o contrrio.

    No so poucos os estudos e pesquisas que detectaram, na hist-ria da educao brasileira, momentos de uma acirrada polmica a esterespeito, em especial em momentos de definio legal no terreno daeducao. Muitas pginas foram escritas, muitos argumentos foram da-dos, muitos grupos de presso se fizeram presentes nos parlamentos, afim de defenderem um ou outro lado desta rumorosa e empolgantequesto (Cf. Cury, 1988, especialmente Captulo I).

    Cada vez que se v ou se rev o ordenamento jurdico bsico dopas ou da educao nacional, esta polmica comparece com vigor. A instituio que mais se empenhar na conjugao entre direito edu-cao e dever de famlia ser a Igreja Catlica, por meio de sua doutri-na e de seu magistrio.

    A forma de redao do art. 1 daLDB parece reabrir um ponto

    que a Constituio 1988 havia encerrado.O artigo 1 daLDB

    Este artigo d uma larga definio de educao de modo a a in-cluir os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, naconvivncia humana, no trabalho, nas instituies de ensino e pesqui-sa, nos movimentos sociais e organizaes da sociedade civil e nas ma-nifestaes culturais.

    Registre-se que, neste artigo, j fica claro que a referida lei assina-la como campo da educao muitas reas, incluindo nelas tambm osprocessos formativos que se desenvolvem na vida familiar. Ao mesmo

    tempo, dito no 1

    que esta Lei disciplina a educao escolar, que sedesenvolve, predominantemente, por meio do ensino, em instituiesprprias.

    Analisando sintaticamente o 1 do art. 1 daLDB, pode-se che-gar a uma anlise inicial. O esta Lei o sujeito da orao. O de-

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    monstrativo (esta) sugere a restrio do mbito de aplicabilidade da Lei,ante a definio ampla do art. 1.

    A restrio posta no 1, campo privilegiado pela lei, o daeducao escolar. Ou seja, passa-se da assinalao de campos da edu-cao para o disciplinamento legal da educao escolar. Essa ltima oobjeto direto regido pelo verbo transitivo direto disciplinar, verboeste modificado pelo advrbio de intensidade predominantementeque, por sua vez, aparecendo entre vrgulas adquire uma conotao en-ftica. Assim, de maneira clara, tal advrbio restringe os dois adjuntosadverbiais que se lhe seguem, ou seja, haveria predominncia de ummodo especfico de desenvolvimento da educao escolar o ensino e, em um lcus especfico as instituies prprias , sugerindo a no-exclusividade de ambos.

    Assim, a lei deixou um espao para disciplinar, ainda que dentrode uma modalidade no-predominante, o ensino em instituies forado lcus apropriado sem que tal procedimento, quando regulado pelossistemas, se torne ilcito ou ilegal.

    Mas a prpria lei, ao aproximar o predominante e o lcus apro-priado no corpo do mesmo artigo, deixa claro que, nesse caso excepcio-nal, a interao entre a instituio apropriada e a no-prpria desej-vel, pois, segundo o art. 208 da Constituio, retomado no art. 4 I daLDB, o ensino fundamental obrigatrio (...) dever do Estado. Alis,o art. 227 da Constituio impe s famlias o dever de assegurar, comabsoluta prioridade, do direito educao (...) em vista do acesso epermanncia na escola (...) (art. 206, I).

    Este advrbio de intensidade predominantemente acoplados instituies prprias significa que o ensino, dever do Estado coma educao escolar (art. 208 da Constituio) e dever do Estado coma educao escolar pblica (art. 4 daLDB), ser ministrado nas unida-des escolares dos sistemas e deve ser o primeiro em influncia e em es-fera de ao, devendo prevalecer sobre outros processos formativos.

    Este predomnio deve se materializar de modo especial nas faixas

    etrias significativas para a socializao secundria e que, hoje, se inicia,pelo menos, naquela etapa da educao infantil que a lei chama de pr-escolar e que se d na faixa de 4 a 6 anos de idade.10

    O art. 2 da LDBparece se referir a esta escalacronolgicaquando,de modo peculiar,inverte o eixosubstantivoposto no art. 205 da Cons-

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    A famlia seria, alm do dever que lhe cabe no princpio de auto-ridade advindo doex generatione em ser um lcus de educao, umainstituio capaz da liberdade de ensino a qual, por sua vez, seriaindicativo do direito do governo da casa (Bobbio, 1995) at comoanteposto ao governo do Estado, lcus da instruo pblica, como con-tinuam Mendona e Vasconcelos (2005, p. 22-23):

    Nas casas, muitos entendiam estar na sua vontade dar ou no instruoaos filhos, especialmente, quando o conceito de instruo pblica estavaidentificado com a freqncia a uma escola estatal. A escola no era vistacomo um lugar apropriado, seja por suas instalaes deficientes, seja peladiversidade de crianas e jovens que a freqentavam, ou ainda, pelo te-mor dos efeitos moralidade que poderia ocasionar tal reunio de meni-nos e, principalmente, de meninas.

    Exemplos sempre citados de formas de educao no lar so os dasmulheres preceptoras (muitas vezes estrangeiras) e os denominados tios-padres.11 Os ricos aprendiam a ler, escrever e contar em casa, sob a dire-o da me (quando esta no era analfabeta), de algum caixeiro mais ins-trudo, de um mestre-escola ou de um padre. Ultrapassado esse nvelingressavam nos colgios religiosos (...) (Costa, 1983, p. 196).

    Contudo, no se pode esquecer que, por longos anos, os interna-tos colegiais e semi-internatos foram um espao educacional privilegiadopelas famlias de posse.

    A renovao da sociedade brasileira, aps a chegada da Corte, incremen-tou a demanda de escolarizao. As famlias nativas, pressionadas peloscostumes europeus e por necessidades econmicas, passaram a desejarque os filhos tivessem um melhor nvel de instruo. Este movimento foiimpulsionado, a partir da segunda metade do sculo, quando foiconstruda a primeira via frrea e quando houve uma melhoria geral dosistema de transportes. As famlias rurais puderam, mais comodamente,enviar os filhos para os internatos da Corte ou das grandes capitais. A esse aumento da demanda correspondeu um sensvel aumento de estabe-lecimentos escolares. (Costa, 1983, p. 180)

    Mas essa continuidade de uma defesa do governo da casa nodeixa de revelar tambm histrica negligncia das nossas elites paracom o acesso de todos a uma escolarizao institucionalizada, dada aausncia de uma rede escolar pblica e sistemtica durante muito tem-po. O surgimento de um sistema oficial de ensino e de uma rede p-

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    blica de ensino das primeiras letras para todos ser muito tardio. Comodizem Mendona e Vasconcelos (2005, p. 21): Romper com esse mo-noplio e isolamento das famlias em relao formao de seus filhos uma tarefa que vai exigir do Estado fundamentao e demonstraode legitimidade na conduo de tal pleito.

    Isto no quer dizer que a possibilidade de se oferecer educaoescolar na famlia seja algo exclusivo ou original do Brasil. Pases euro-peus contemplam em sua legislao esta possibilidade, como o casoda Inglaterra ou da Frana.12 As nossas Constituies precedentes atual tambm associarama educao famlia no captulo prprio da educao, deixando entre-ver para alm de uma educao que lhe prpria, a possibilidade de ase dar tambm a instruo necessria.

    A Constituio de 1934 dispe no seu art. 149 que a educao direito de todos e deve ser ministrada pela famlia e pelos poderespblicos (...). O abortado Plano Nacional de Educao de 1937 dis-punha em seu art. 4 que A educao direito e dever de todos. In-cumbe especialmente famlia e aos poderes pblicos ministr-la a bra-sileiros e estrangeiros residentes no Brasil por todos os meios legtimos.Por sua vez, o art. 39 dizia: A obrigatoriedade da educao primria

    pode ser satisfeita nas escolas pblicas, particulares ou ainda no lar. Eseu art. 40 reiterava: Dos 7 aos 12 anos toda a criana obrigada afreqentar escola, salvo quando receber instruo no lar.

    A Constituio de 1937, outorgada pela ditadura do EstadoNovo, assevera em seu art. 125 que a educao integral da prole oprimeiro dever e o direito natural dos pais. O Estado no ser estranhoa esse dever, colaborando, de maneira principal ou subsidiria, para fa-cilitar a sua execuo ou suprir as deficincias e lacunas da educaoparticular. A Constituio de 1946 dizia, em seu art. 166, que a edu-cao direito de todos e ser dada no lar e na escola.13

    A Lei n. 4.024/61 repete, tambm, no seu art. 2 esta mesmaformulao constitucional e que tambm aparecer no art. 168 da

    Constituio de 1967. O art. 4 da Lei n. 4.024/61 tambm dizia que assegurado a todos, na forma da lei, o direito de transmitir seus conheci-mentos.Esta mesma lei, em seu art. 30 tambm diz:

    No poder exercer funo pblica, nem ocupar emprego em sociedade deeconomia mista ou empresa concessionria de servio pblico, o pai de fam-

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    lia ou responsvel por criana em idade escolar sem fazer prova de matrculadesta, em estabelecimento de ensino, ou de que lhe est sendo ministradaeducao no lar.

    Em 1966, o PareceCFE n. 474 busca disciplinar a obrigatoriedadeescolar justificando essa obrigao e propondo, por meio de um antepro- jeto de Decreto, a regulamentao de tal dispositivo inclusive criticandoo desinteresse dos pais e instando o poder pblico a retificar a desdia dosresponsveis seja a famlia, em reter o filho ou dele no cuidar, seja opoder pblico, em proporcionar escassas escolas e mais ainda escassa as-sistncia aos alunos (Cf. Documenta, n. 60, 1966).

    Tambm o mesmoCFE, anos mais tarde, se ocupou desta matriapor meio do Parecer 871/86 de 4/12/86, mas agora com referncia ex-plcita de educao no lar. Ao tratar de transferncias dentro do entoensino de 1 grau, o parecer diz:

    Nada faz crer que o legislador tivesse querido inovar, criando entraves for-mais para a livre passagem de uma escola para outra nas sries anteriores 5srie (antigo 1 ginasial). Nem seria conveniente ou coerente que o fizesse.Primeiramente porque a lei prev e a previso tem particular significaopara o ensino elementar que a educao pode ser dada no lar. Aprender asprimeiras letras no lar, ou na natural expanso do lar que a pequena escolameio informal, ao lado da casa, constitui prtica comum, que nenhum inte-resse humano ou social justificaria que a lei impedisse ou justificasse (...). Deresto, o artigo 30 da Lei 4.024 admite que o pai seja tido como cumpridordo dever de dar escola ao filho se fizer prova do que faz em casa.

    E a Lei n. 5.692/71 admitia a existncia de estudos equivalentesaos do ensino de 1 grau para efeito de ingresso no ensino de 2 grau, deacordo com o art. 21, nico. Algo similar ao que est estatudo na Lein. 9.394/96 no art. 44, II ao tratar da concluso do ensino mdio ouequivalente para ingresso no ensino superior.14

    A equivalncia sempre foi referida a uma situao comparativa en-tre estudos realizados em diferentes locais, processos, instituies ou mo-dalidades, cujos contedos, por meio de uma avaliao, se situam (ou no)dentro de um mesmo nvel e correspondendo a um grau de apreenso iso-nmica de componentes curriculares. Assim, com o pedido de equivaln-cia, acompanhado de avaliao, tanto se evita iniciativas arbitrrias quantose exige de um estudante, em matria de componentes curriculares, con-dies de acompanhar com xito a etapa de ensino postulada.15

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    Desse pequeno escoro histrico-jurdico, desde 1934 at a Cons-tituio de 1988, depreende-se que, mais do que fumus boni juris , huma legalidade lquida e certa de educao escolar no lar no ento cha-mado ensino primrio. Assim sendo, haveria impedimento legal de seconsiderar equivalentes, desde que devidamente avaliados, tambm es-tudos escolares realizados em famlia, em situao domstica, no casode se obedecer a legislao pertinente? Tal seria o caso do art. 24, II. cda atualLDB?

    A partir da Constituio de 1988 e, sobretudo, com o adventoda Lei n. 8.096/90 e da Lei n. 9.394/96, essa possibilidade de educa-o no lar para o ensino primrio deixa de constar de modo claro, dire-to, de sorte a configurar um direito lquido e certo com proviso legalexplcita e distinta.

    Se ambigidade havia a esse respeito, ela foi desfeita tanto porparecer especfico doCNE quanto por acrdo doSTJ.

    Com efeito, uma coisa a educao como se l no art. 1 daLDB,outra coisa a educao escolar. Se at o ano 1988 havia clareza quan-to possibilidade de educao escolar (ensino primrio) no lar, a partirde 1988, essa possibilidade passava por umtour interpretativo que po-dia oscilar entre a norma explcita e um entendimento desejvel da nor-ma por parte de determinados agentes interessados na manuteno datradicional educao domstica.

    As definies do rgo normativo nacional em 2000 e do rgo julgador em 2002, competentes na matria, no deixam mais dvida. Oensino fundamental obrigatrio em instituies escolares autorizadaspelo poder pblico.

    O artigo 24 daLDBO art. 24 faz parte do captulo prprio da Educao Bsica e de

    suas Disposies Gerais. Esse captulo trata das finalidades maiores, daorganizao e das regras comuns da educao bsica. Este artigo, no seutodo, diz o seguinte:

    A educao bsica, nos nveis fundamental e mdio, ser organizada de acor-do com as seguintes regras comuns:I - a carga horria mnima anual ser de oitocentas horas, distribudas por um

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    mnimo de duzentos dias de efetivo trabalho escolar, excludo o tempo re-servado aos exames finais, quando houver;II - a classificao em qualquer srie ou etapa, exceto a primeira do ensinofundamental, pode ser feita:a) por promoo, para alunos que cursaram, com aproveitamento, a srie oufase anterior, na prpria escola;b) por transferncia, para candidatos procedentes de outras escolas;c) independentemente de escolarizao anterior, mediante avaliao feita pela

    escola, que defina o grau de desenvolvimento e experincia do candidato epermita sua inscrio na srie ou etapa adequada, conforme regulamentaodo respectivo sistema de ensino;III - nos estabelecimentos que adotam a progresso regular por srie, o regi-mento escolar pode admitir formas de progresso parcial, desde que preser-vada a seqncia do currculo, observadas as normas do respectivo sistema deensino;IV - podero organizar-se classes ou turmas, com alunos de sries distintas,com nveis equivalentes de adiantamento na matria, para o ensino de ln-guas estrangeiras, artes ou outros componentes curriculares;V - a verificao do rendimento escolar observar os seguintes critrios:a) avaliao contnua e cumulativa do desempenho do aluno, com preva-lncia dos aspectos qualitativos sobre os quantitativos e dos resultados aolongo do perodo sobre os de eventuais provas finais;b) possibilidade de acelerao de estudos para alunos com atraso escolar;c) possibilidade de avano nos cursos e nas sries mediante verificao doaprendizado;d) aproveitamento de estudos concludos com xito;e) obrigatoriedade de estudos de recuperao, de preferncia paralelos ao pe-rodo letivo, para os casos de baixo rendimento escolar, a serem disciplinadospelas instituies de ensino em seus regimentos;VI - o controle de freqncia fica a cargo da escola, conforme o disposto noseu regimento e nas normas do respectivo sistema de ensino, exigida afreqncia mnima de setenta e cinco por cento do total de horas letivas paraaprovao.VII - cabe a cada instituio de ensino expedir histricos escolares, declara-es de concluso de srie e diplomas ou certificados de concluso de cur-sos, com as especificaes cabveis.

    Resta, ento, voltar-se ao art. 24, II, letra c daLDB, no qual pareceresidir um dos componentes dessa questo. Percebe-se que a constituiode conhecimentos, valores, atitudes e competncias, adquirida pela pes-

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    soa em espaos extra-escolares, pode, dentro do inciso II, letra c, vir areceber um reconhecimento formal. Para tanto deve estar devidamenteancorada na lei, nas normalizaes dos sistemas.

    O art. 24, II, c, uma vez regulamentado pelo respectivo rgo nor-mativo do sistema, uma forma de realizar, de modo recessivo, excepcio-nal e justificado, aquilo que deve se realizar de modo predominante em ins-tituies escolares: a obrigatoriedade de educao escolar presencial doensino fundamental em instituies escolares. A exceo, como sempre,deve ser justificada. Algo que a Frana exigia no sculo XIX e ainda exige.16

    A obrigao de inscrever os filhos no ensino fundamental respon-sabilidade dos pais de tal maneira que, em caso de evidente e obstinadaforma de negao deste direito, o Cdigo Penal, no seu art. 246, prev ocrime de abandono intelectual. Os pais ou tutores, responsveis poreles enquanto menores, ao se omitirem quanto instruo primria dosfilhos (leia-se hoje ensino fundamental) sero objeto de sano explcitada lei. O mesmo se diga do art. 6 da LDBao dizer que dever dos paisou responsveis efetuar a matrcula dos menores, a partir dos sete anosde idade, no ensino fundamental.17

    Tambm o art. 5 da mesmaLDBse volta para o cumprimento des-ta obrigatoriedade dentro de instituies prprias e sob a forma pre-sencial. O inciso III deste artigo compele os pais a zelarem pela freqn-cia escola.

    Cumpre apelar ao Conselho Tutelar, de acordo com aLDB, art. 12,VIII, e com o Estatuto da Criana e do Adolescente (ECA ), Lei Federal n.8.069/90, no caso de pais ou responsveis comprovadamente inconse-qentes com o dever de matricular seus filhos ou tutelados em escolas ouem caso de infreqncia. O dever do poder pblico em assegurar e ga-rantir o ensino fundamental obrigatrio se confirma pelo art. 87, 3 daLDB, verbis : Cada Municpio e, supletivamente, o Estado e a Unio, de-ver: I - matricular todos os educandos a partir dos sete anos de idade e,facultativamente, a partir dos seis anos, no ensino fundamental.

    A matrcula, ato formal pelo qual o aluno se torna membro for-malmente discente e devidamente habilitado a freqentar uma insti-tuio escolar, obrigatria para todos. Ela o assim de tal modo quesua oferta irregular atinge tambm os poderes pblicos, pois eles po-dem ter sido omissos ou coniventes nesse dever. Nesta medida, tam-bm os poderes pblicos podem estar includos no 2 do art. 208 da

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    Constituio Federal, que diz: o no-oferecimento do ensino obrigat-rio pelo poder pblico, ou sua oferta irregular, importa responsabilida-de da autoridade competente. Tal responsabilidade reconfirmadapelaLDBem seu art. 5.

    Outro modo de se afirmar a predominncia do ensino fundamen-tal a emenda constitucional 14/96 e da qual decorre a lei n. 9.424/96 que subvincula recursos constitucionais para a manuteno e desen-volvimento do ensino fundamental e valorizao do magistrio, bemcomo o Decreto n. 5.622/05 da educao a distncia.

    Portanto, a possibilidade do art. 24, II, c, algo excepcional,no a tica predominante na Lei , tendo-se em vista, por exemplo, o 4do art. 32 daLDB, que diz: o ensino fundamental ser presencial, sen-do o ensino a distncia utilizado como complementao da aprendiza-gem ou em situaes emergenciais. Mesmo assim, esta emergncia ouaquela exceo devem ser acompanhadas de justificativa e de avaliao,sob normatividade especfica.

    E no se pode deixar de apontar que a educao dada em fam-lia, em momento existencial de forte exigncia de convvio social, res-ponsabiliza os pais das teses ligadas home schooling pelas lacunas quea falta da escola implica.

    Concluso A reafirmao do valor da instituio escolar se d no s como lcus

    de transmisso de conhecimentos e de zelo pela aprendizagem dos estu-dantes. Ela uma forma de socializao institucional voltada para a supe-rao do egocentrismo pela aquisio do respeito mtuo e da reciprocida-de. O amadurecimento da cidadania s se d quando a pessoa se vconfrontada por situaes nas quais o respeito de seus direitos se pe pe-rante o respeito pelo direito dos outros. Ali tambm lugar de expressode emoes e constituio de conhecimentos, valores e competncias, tan-to para crianas e adolescentes como para jovens e adultos (Piaget, 1994).

    Um processo de educao escolar limitado ao mbito familiar cor-re o risco de reduzir o campo de um pertencimento social mais amplo ede petrificar a interiorizao de normas. Tal situao no a forma predo-minante estabelecida pela Lei n. 9.394/96, nem pela Lei n. 8.096/90,salvo na formarecessiva, excepcional , listada pelo Decreto n. 5.622/05.

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    compreensvel que, dada a cultura tradicional existente, dada aclareza existente sobre o assunto antes da Constituio de 1988, dado ocarter genrico de determinadas declaraes internacionais (das quais oBrasil signatrio), haja famlias pleiteando a possibilidade de educaoescolar domstica.

    Por isso preciso explicitar, justificar as razes dessa obrigatorie-dade e insistir na importncia do ensino fundamental na faixa etria pre-vista em lei, com a devida presena dos alunos em instituies prpriasde ensino presencial, em vista do pleno desenvolvimento do educando(LDB, art. 2).

    Em outros termos, preciso construir uma cultura relativa obrigatoriedade, cultura com base em valores calcados na dignidade doeducando, na importncia do dever do Estado e na busca da autono-mia e da afirmao de uma cidadania solidria e participante da vidasociopoltica.

    Recebido em maio de 2006 e aprovado em julho de 2006.

    Notas1 . Cf. ParecerCNE/CEB, n. 34/2000.2. Cf. Mandado de segurana n. 7.407 DF (2001/0022843-7).3 . Os defensores dahome schooling parecem dissociar o indivduo da sociedade mais am-

    pla e assim postulam o carter domstico da educao quase que restringindo o social aofamiliar. Por outro lado, alm de um certo acatamento dodeclnio do homem pblico, pa-recem revelar uma postura antiestatal na educao.

    4. Apesar de haver vrias concepes em torno da noo de socializao, ela no implica o su- jeito apenas como indivduo e nem como um sujeito passivo. Ela se remete tambm re-sistncia e crtica ao compartilhamento de regras e normas.

    5. A Carta Magna assegurou a todos o livre exerccio de qualquer atividade econmica e, nocaso de uma atividade ligada oferta da educao escolar, mediante autorizao dos rgospblicos competentes deve-se obedecer os arts. 206, III x 209, I e II x 170, III e o art.9 daLDB.

    6. No objeto deste artigo analisar as transformaes pelas quais passou e passa a famliaclssica. Mas, na aplicao da lei, preciso considerar tais transformaes.

    7. Considere-se aqui o papel das associaes de pais e mestres no contexto de uma gesto de-mocrtica, tal como expressa nossa Constituio e aLDB (cf. Piaget, 1974).

    8. De acordo com o ordenamento jurdico, a educao infantil dever do Estado, conformeo art. 208, inciso IV. Cf. tambmLDB, art. 4, IV.

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    9. Os defensores dessa concepo encontraro referenciais em autores que j circularam mui-to no Brasil tais como Joseph de Maistre e Louis-Ambroise de Bonald. Sobre De Bonald,cf. Cunha, 1996. Sobre De Maistre, cf. Romano, 1994.

    10 . A obrigatoriedade escolar, segundo as Leis n. 11.114/05 e n. 11.273/06, exigida a par-tir dos 6 anos, tornando de nove anos o ensino obrigatrio.

    11 . Vale lembrar aqui, como educao familiar antes do ginsio, o romance de Raul Pompia:O Ateneu.

    12 . Para efeito de comparao, leia-se o art. 7 da Lei de 28 de maro de 1882 da Frana, ver-so modificada pela Lei de 22 de maio de 1946 e que diz: Au cours du semestre delanne civile o un enfant atteint lge de six ans, les personnes responsables doivent,quinze jours au moins avant la rentr des classes, soit le faire inscrire dans une cole pu-blique ou prive, soit dclarer au maire et linspecteur dacadmie quelles lui ferontdonner linstruction dans la famille.

    13 . A Declarao Universal dos Direitos do Homem, da qual o Brasil signatrio, diz em seuartigo 26, 3: os pais tm prioridade de direito na escolha do gnero de instruo queser ministrada a seus filhos. J a Conveno Relativa luta contra a discriminao nocampo do ensino (1960) reitera a faculdade de os pais poderem optar entre os estabeleci-mentos da rede pblica ou privada

    14. A Lei n. 4.024/61 continha, no seu art. 37, a expressociclo ginasial ou equivalente paraefeito de matrcula na1 srie do ciclo colegial.O mesmo aparece no art. 69 que, para efei-to de admisso no ensino superior, aceitao ciclo colegial ou equivalente. A expressoestu-dos realizados sem observncia de regime escolar era expressamente vinculada prestao dos exames de madurezapara jovens maiores de 16 anos ou 19 anos respectivamente con-cluso do curso ginasial e do colegial (cf. art. 99).

    15 . Para uma viso normativa da equivalncia, dentro da vigncia da Lei n. 4.024/61, cf. Pa-recerCFE 274/64.

    16 . A Lei Jules Ferry, de 28/3/1882, sendo modificada no seu art. 16 pela Lei de 11/8/1936,diz: Les enfants qui reoivent linstruction dans leur famille sont, lge de huit ans, dedix ans et de douze ans, lobjet dune enqute sommaire de la mairie comptente,uniquement aux fins dtablir quelles sont les raisons allgues par les personnesresponsables et sil leur est donn une instruction dans la mesure compatible avec leur tatde sant et les conditions de vie de la famille. Le rsultat de cette enqute est communiqu linspecteur primaire.

    17. Sobre a obrigatoriedade, cf. Horta, 1998.

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