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Educação para a Sustentabilidade: Estratégia para Empresas do Século XXI - Revista Sinais Sociais - N18

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A Educação para a Sustentabilidade é um processo de desenvolvimento da cultura de sustentabilidade necessário à transformação dos processos produtivos de empresas que pretendem sobreviver no futuro. Na perspectiva da autora, o termo Educação para a Sustentabilidade é mais adequado para o trabalho voltado para o público interno, enquanto a Educação Ambiental é mais adequada para os trabalhos com a comunidade. Há também diferenças de abordagem, foco, metodologia de trabalho entre os dois conceitos. Seis aspectos são considerados fundamentais para um programa de Educação para a Sustentabilidade de sucesso: o negócio da empresa, a legislação vigente, os valores humanos, a abordagem técnico-científica, o tempo e o espaço. O paradigma da empresa tratada como uma máquina deve ser substituído pelo entendimento da empresa como uma organização viva. Não faz sentido desenvolver um processo educativo para máquinas, pois a máquina é um equipamento morto. Este artigo, portanto, parte de dois pressupostos: empresas são organismos vivos e devem ser tratadas como ambientes de aprendizagem, e a Educação para a Sustentabilidade é diferente da Educação Ambiental realizada para comunidades. Palavras-chave: educação para a sustentabilidade; produção mais limpa; liderança; educação ambiental para empresas; alfabetização ecológica Education for Sustainability is a process of developing a culture of sustainability required for transformation of production processes of companies that intend to survive in the future. In view of the author, the term EdS is more aplicable to the work with companies, while environmental education is best suited to work with the community. There are also differences in approach, focus, methodology of work between them. Six aspects are considered essential for an EdS program success: the company's business, the current law, human values, scientific-technical approach, time and space. The paradigm of company like a machine should be replaced by the understanding of the company as a living organization. There is no sense to develop an educational process for machines because the machine is a dead thing. This article, therefore, has two assumptions: companies are living organisms and must be treated as learning environments and EdS is different from the Environmental Education realizad to communities. keywords: education for sustainabiliti; clean production; lideership; enviromental education for companies; ecoliteracy

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v.6 nº18janeiro > abril | 2012SESC | Serviço Social do ComércioAdministração Nacional

SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.6 nº18 | p. 1-168 | JANEIRO > ABRIL 2012ISSN 1809-9815

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COORDENAÇÃO EDITORIALGerência de Estudos e Pesquisas / Divisão de Planejamento e DesenvolvimentoMauro Lopez Rego

CONSELHO EDITORIALÁlvaro de Melo SalmitoMauricio BlancoNivaldo da Costa PereiraSECRETÁRIO EXECUTIVO

Mauro Lopez RegoASSESSORIA EDITORIAL

Andréa Reza

EDIÇÃOAssessoria de Divulgação e Promoção / Direção-GeralChristiane CaetanoPROJETO GRÁFICO

Vinicius BorgesSUPERVISÃO EDITORIAL

Jane Muniz PRODUÇÃO EDITORIAL

Duas Águas| Ieda MagriREVISÃO

Elaine BaymaREVISÃO DO INGLÊS

Idiomas & ciaDIAGRAMAÇÃO

Livros & Livros | Susan JohnsonPRODUÇÃO GRÁFICA

Celso Clapp

SESC | Serviço Social do Comércio | Administração Nacional

PRESIDENTE DO CONSELHO NACIONALAntonio Oliveira SantosDIRETOR-GERAL DO DEPARTAMENTO NACIONALMaron Emile Abi-Abib

Sinais Sociais / SESC, Departamento Nacional - Vol. 1, n. 1 (maio/ ago. 2006)- . – Rio de Janeiro : SESC, Departamento Nacional, 2006 - .v.; 30 cm.Quadrimestral. ISSN 1809-98151. Pensamento social. 2. Contemporaneidade. 3. Brasil. I.

Serviço Social do Comércio. Departamento Nacional, 2006 - .

As opiniões expressas nesta revista são de inteira responsabilidade dos autores.As edições podem ser acessadas eletronicamente em www.sesc.com.br.

COMITÊ CONSULTIVO 2011Alexandre Palma (UFRJ)Andre Braz Golgher (UFMG-CEDEPLAR)Antonio Alkmim (PUC-RJ)Cesar Kiraly (UFF)Danielle Carusi (UFF)Denise Bragotto (PUC-Campinas)Edith Frigotto (UFF)Eduardo Gomes (UFF)Fernando Blanco (Banco Mundial)Flavio Ferreira (FFAU)Ilana Sender (UFRJ)José Cláudio Sooma Silva (UFRJ)Luiz Guilherme Vergara (UFF)Marcelo Kischinhevsky (PUC-RJ)Márcia Stein (UERJ)Maryane Saísse (UFRJ)Mauro Roese (UFRGS)Rafael Parente (New York University)Ronaldo Rosas Reis (UFF)

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APRESENTAÇÃO5EDITORIAL6SOBRE OS AUTORES8O DEBATE PARLAMENTAR SOBRE O PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA NO GOVERNO LULA10Anete B. L. IvoJosé Carlos Exaltação

EDUCAÇÃO PARA A SUSTENTABILIDADE: ESTRATÉGIA PARA EMPRESAS DO SÉCULO XXI48Deborah Munhoz

FAGULHAS DO AUTORITARISMO NO FUTEBOL: EMBATES SOBRE O ESTILO DE JOGO BRASILEIRO EM TEMPOS DE DITADURA MILITAR (1966-1970)78Euclides de Freitas Couto

JUVENTUDES, VIOLÊNCIA E POLÍTICAS PÚBLICAS NO BRASIL: TENSÕES ENTRE O INSTITUÍDO E O INSTITUINTE102Glória Diógenes

A MÁQUINA MODERNA DE JOAQUIM CARDOZO128 Manoel Ricardo de Lima

SUMÁRIO

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A revista Sinais Sociais tem como finalidade precípua tornar-se um espaço de debate sobre questões da contemporaneidade brasileira.

Pluralidade e liberdade de expressão são os pilares desta publicação. Pluralidade no sentido de que a revista Sinais Sociais é aberta para a publicação de todas as tendências marcantes do pensamento social no Brasil hoje. A diversidade dos campos do conhecimento tem, em suas páginas, um locus no qual aqueles que têm a reflexão como seu ofício poder-se-ão manifestar.

Como espaço de debate, a liberdade de expressão dos articulistas da Sinais Sociais é garantida. O fundamento desse pressuposto está nas Diretrizes Gerais de Ação do SESC, como princípio essencial da enti-dade: “Valores maiores que orientam sua ação, tais como o estímulo ao exercício da cidadania, o amor à liberdade e à democracia como principais caminhos da busca do bem-estar social e coletivo.”

Igualmente, é respeitada a forma como os artigos são expostos – de acordo com os cânones das academias ou seguindo expressão mais heterodoxa, sem ajustes aos padrões estabelecidos.

Importa para a revista Sinais Sociais artigos cujas fundamentação teórica, consistência, lógica da argumentação e organização das ideias tragam contribuições além das formulações do senso comum. Análises que forneçam elementos para fortalecer as convicções dos leitores ou lhes apresentem um novo olhar sobre os objetos em estudo.

O que move o SESC é a consciência da raridade de revistas seme-lhantes, de amplo alcance, tanto para os que procuram contribuir com suas reflexões como para segmentos do grande público interessados em se informar e se qualificar para uma melhor compreensão do país.

Disseminar ideias que vicejam no Brasil, restritas normalmente ao mundo acadêmico, e, com isso, ampliar as bases sociais desse deba-te, é a intenção do SESC com a revista Sinais Sociais.

Antonio Oliveira SantosPresidente do Conselho Nacional do SESC

APRESENTAÇÃO

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EDITORIALPeríodos de instabilidade e mudanças profundas nos colocam diante

do desafio de fazer opções fundamentais, convocando à reflexão os problemas que emergem na arena política, em grau e complexidade crescentes.

Pensar alternativas para o presente exige a atualização de questões sobre as formas de condução das políticas públicas concomitantemen-te à própria constituição dos novos sujeitos políticos. Se, por um lado, as estruturas já estão dadas, por outro, os agentes modificam tais es-truturas e são por elas modificados, em um processo transformador permanente.

A presente edição da revista Sinais Sociais traz artigos que problemati-zam a complexa interação entre o Estado e a sociedade na conformação da esfera pública democrática e instigam a cogitar que valores e sen-tidos sociais estão presentes, vivos, e podem constituir vetores para mobilizar o coletivo em favor da viabilização de um processo virtuoso, ainda possível, de sustentabilidade social, ambiental e ecológica.

Com base na trajetória dos debates parlamentares em torno do Programa Bolsa Família, o texto de Anete B. L. Ivo e José Carlos Exaltação discute os campos de disputas e forças institucionais, envolvendo relações de poder e de significados, que configuram a evolução das po-líticas sociais. Ainda no campo dos problemas multidimensionais que exigem articulação intersetorial e relações intergovernamentais, Glória Diógenes aborda a tensão entre os movimentos instituintes e as ações instituídas na esfera das políticas públicas da juventude, apresentando elementos para a desconstrução das representações normativas acerca dos jovens, das quais advêm formas conservadoras de conceber as po-líticas, sob a égide dos problemas sociais a serem combatidos. Nesse cenário de reordenação de forças, com a composição de redes híbridas que integram atores governamentais, corporativos e não governamen-tais, o artigo de Deborah Munhoz traz contribuições conceituais e metodológicas para o desenvolvimento de práticas de educação para a sustentabilidade empresarial, visando a novos patamares rumo a pa-drões sustentáveis.

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Euclides de Freitas Couto, ao explorar reflexivamente as construções narrativas da imprensa esportiva sobre a seleção verde-amarela entre 1966 e 1970, interpreta a “textualidade” da vida social, desvelando aspectos ideológicos e políticos de significação do esporte como palco de lutas simbólicas da sociedade brasileira.

Finalmente, o artigo de Manoel Ricardo de Lima discorre sobre a construção poética de Joaquim Cardozo, delineada por uma con-cepção de espaço-tempo que subverte a racionalidade moderna e convida a novas institucionalidades, com alargamento e interpenetra-ções de territórios, simultaneidades, ecos e reverberações.

Maron Emile Abi-Abib Diretor-Geral do Departamento Nacional do SESC

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SOBRE OS AUTORESAnete B. L. Ivo

Socióloga, doutora em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco, professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, pesquisadora do Centro de Re-cursos Humanos da Universidade Federal da Bahia e editora da revista Caderno CRH. Foi titular da Cátedra Simon Bolivar da Université de Paris III (2000); professora visitante da Université de Paris XII e professora do Mestrado em Políticas Sociais e Cidadania da Universidade Católica de Salvador (2009-2011). É autora dos livros Viver por um fio: pobreza e políticas sociais (Annablume, 2008); Metamorfoses da questão democrática: governabilidade e pobreza (CLCSO, 2001); O poder da cidade: limites da governança urbana (Edufba, 2000, em coautoria) e de vários artigos sobre Pobreza, desigualdades e políticas sociais, Estado e sociedade e Teoria social publicados em revistas e obras coletivas no Brasil e no exterior.

Deborah Munhoz

Diretora da HUB-C: inteligência em sustentabilidade, atua como palestrante e con- da HUB-C: inteligência em sustentabilidade, atua como palestrante e con-sultora em Gestão da Qualidade de Vida e Sustentabilidade. Mestre em Saneamento, Meio Ambiente e Recursos Hídricos e bacharel em Química pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Consultora em Produção Mais Limpa formada pelo Centro Nacional de Tecnologias Limpas do Senai. Professora de Sustentabilidade Empresarial e Projetos de Produtos e Processos com Eficiência Ecológica no MBA de Gestão de Negócios com ênfase em Meio Ambiente e na pós-graduação de Engenharia Ambiental Integrada do Instituto de Educação Tecnológica (IETEC); professora do curso de pós- graduação em Educação Ambiental, Agenda 21 e Sustentabilidade do Centro de Eco-logia Integral em Belo Horizonte, Minas Gerais. Trabalhou como técnica da Gerência de Meio Ambiente da Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais (Fiemg) e é pesquisadora independente nas áreas de desenvolvimento de lideranças e ecodesign de sistemas produtivos.

Euclides de Freitas Couto

Doutor em história pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), mestre em ciências sociais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e graduado em história pela mesma universidade. Atualmente é professor adjunto do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São João del-Rei. É membro dos grupos de pesquisa Sport: Laboratório de História do Esporte e do Lazer, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Laboratório de Arquitetura e Urbanismo Social, da Univer-sidade Federal de São João del-Rei. Nos últimos anos tem se dedicado aos estudos relacionados à história e à sociologia do esporte.

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Glória Diógenes

É professora doutora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará, coordenadora do Laboratório da Juventude, fundadora e ex-coorde-coordenadora do Laboratório da Juventude, fundadora e ex-coorde-nadora do Projeto Enxame – fazendo arte com gangues e galeras. Realizou uma série de pesquisas sobre a criança e o adolescente, todas publicadas: “Meninos e meninas de rua: cenário de ambiguidades” (1993); “Histórias de vida de meninos e meninas de rua” (1994); “Criança infeliz” – exploração sexual comercial de crianças e adolescentes em Fortaleza” (1998); “Personagens em foco: esses meninos e meninas moradores de rua” (1998). Tem artigos publicados nos livros: Abalando os anos 90: funk e hip hop (Roc-co,1997); Linguagens da violência (Rocco, 2000); Violência em tempo de globalização (Hucitec, 1999); Política e afetividade (Edufba, 2009); A juventude vai ao cinema (Autên-tica, 2009); Juventude em pauta: políticas públicas no Brasil (Petrópolis/Ação Educativa, 2011) e Juventudes contemporâneas: um mosaico de possibilidades (2011). Em 1998, como resultado de sua tese de doutorado, lançou pela Annablume o livro Cartografias da cultura e da violência – gangues, galeras e o movimento hip hop, seguido de: Itine-rários de corpos juvenis (Annablume, 2003); Cenas de uma tecnologia social: botando boneco (Annablume/Sesi/Fiec, 2004); Os sete sentimentos capitais: exploração sexual comercial de crianças e adolescentes (Annablume, 2008) e ViraVida – uma virada na vida de meninos e meninas no Brasil (Sesi, 2010).

José Carlos Exaltação

Sociólogo, mestre em Ciências Sociais pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal da Bahia com a dissertação O CadÚnico na identifica-ção e classificação social de “quem são os pobres do Brasil”. Atualmente é técnico de nível superior, analista ambiental, do Instituto do Meio Ambiente do governo do Estado da Bahia. Integrou a equipe da pesquisa Programas de Transferências Monetárias Con-Programas de Transferências Monetárias Con-dicionadas en Brasil (TMC), coordenada no Brasil por Anete Ivo (Fundación Carolina, março 2010).

Manoel Ricardo de Lima

Poeta, professor de Literatura Brasileira da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Publicou Falas Inacabadas (um livro-transparência com a artista visual Elida Tessler), Embrulho e Quando todos os acidentes acontecem (poemas); Entre per-curso e vanguarda, 55 começos e Fazer, lugar (ensaios) e As mãos (novela). Organizou as coletâneas A visita (com Isabella Marcatti) e A nossos pés. Tem artigos publicados em revistas e jornais no Brasil e no exterior. É coordenador editorial da Editora da Casa, de Santa Catarina, e coordena a coleção Móbile de miniensaios para a Lumme Editor.

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O DEBATE PARLAMENTAR SOBRE O PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA NO GOVERNO LULAAnete B. L. IvoJosé Carlos Exaltação

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Este artigo recompõe a trajetória dos debates parlamentares sobre os pro-gramas sociais, em especial o Bolsa Família, em contexto de disputa eleitoral (2003, 2004, 2006 e 2008). A análise apresenta os principais eixos temáticos do embate entre parlamentares de governo e de oposição no Congresso Nacio-nal, exibindo o caráter necessariamente conflitivo e não linear da política, seus avanços e recuos, o que caracteriza a luta em torno dos programas sociais. Esse processo representa uma luta por hegemonia na competição partidária: de um lado, os partidos lutam para garantir a sua própria reprodução e legitimidade, e, do outro, para construir respostas às demandas sociais, dentro do horizonte do possível. A despeito das estratégias de neutralização entre os atores políticos – partidos do governo e da oposição – sobre o Programa Bolsa Família, este ar-tigo mostra que a arena política do Congresso Nacional constitui-se um fórum privilegiado e democrático para a construção da política. Palavras-chave: arena política; políticas sociais; Bolsa Família; legislativo; pobre-za e desigualdades sociais

The article reconstructs the evolution of parliamentary debates focused on so-cial programs in Brazil; particular emphasis is given to Bolsa Família (Family Allowance) in the context of elections which took place in 2003, 2004, 2006 and 2008. The analysis presents the main differences of opinion in Congress between government members of parliament and those of the opposition, showing the necessarily conflictive and non-linear policies, the advances and retreats, which characterize the battle around social programs. This process represents a struggle for supremacy in the competition between parties: on the one side, the fight to ensure their own reproduction and legitimacy, and, on the other, to find answers to social needs, within the horizon of the possible. Despi-te the neutralization strategies among political actors – government parties and opposition parties alike – on the Bolsa Família Program, this article shows that the political arena of National Congress is a privileged and democratic forum for the building of policy. Keywords: political arena; social policies; legislative; poverty and social inequa-lities; development

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INTRODUÇÃO

Historicamente a construção das políticas na área social sempre en-volveu uma tensão política entre liberais ou socialistas a respeito do grau de comprometimento e responsabilidade do Estado com a área social. Ou seja, o embate sobre programas e direitos sociais, entre outros aspectos, implica tensões sobre o quanto a sociedade aceita redistribuir a riqueza nacional. Desse modo, também a avaliação de um programa social não é técnica apenas, mas mediada pelo jogo das forças políticas.

Nesse sentido, o debate sobre as políticas sociais envolve duas di-mensões associadas: uma conceitual a respeito da natureza do Estado social; e outra gerencial, que se refere à operacionalização das polí-ticas na esfera do governo. É no entremeio entre as concepções do Estado social e os modos de operar as políticas sociais no governo Lula, que o Programa Bolsa Família é debatido na arena política do Con-gresso Nacional, condicionando as formas de intervenção das políticas sociais pelo governo. O fio condutor da análise privilegiada neste tex-to é o Programa Bolsa Família, mas o debate entre os parlamentares recorre a outras políticas sociais, como o salário mínimo e as políticas de emprego mais estruturais e redistributivas como contra-argumentos da oposição, no sentido de sugerir uma mudança de curso do governo do Partido dos Trabalhadores (PT) em relação à defesa de políticas mais próximas à tradição sindical, sem que a oposição se contraponha diretamente ao Bolsa Família. O artigo, portanto, apresenta e discute as tensões, concepções e estratégias usadas pelo jogo político entre oposição e governo Lula acerca do Bolsa Família, expondo o caminho sutil de construção da luta política e partidária.

O Programa Bolsa Família, instituído em 2003 pelo governo do pre-sidente Luiz Inácio Lula da Silva, do PT, constituiu-se na grande plata-forma desse governo na área social. Originou-se de um conjunto de programas sociais de transferência de renda preexistentes, iniciados no governo anterior1, e sua implementação tem sido objeto de cons-tantes críticas da oposição e da mídia, que em diversos momentos

1 Do presidente Fernando Henrique Cardoso, do Partido da Social Democra-cia Brasileira – PSDB (1996-2002).

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consideram-no um programa de caráter assistencialista e uma grande estratégia de marketing eleitoral do governo PT2, como reafirmam al-gumas falas ao longo deste artigo. Essa crítica da oposição foi se mo-dificando na medida em que o governo exibiu resultados positivos da focalização e cobertura (massiva) dos beneficiários, reforçando sua legitimidade3.

Nos oito anos que envolvem o primeiro (2003-2006) e o segundo (2007-2010) mandatos do presidente Lula da Silva o programa expan-diu-se e consolidou-se, passando de 3, 615 milhões em 2003 para beneficiar hoje mais de 12 milhões de famílias, incorporando aos seus benefícios cerca de um terço da população brasileira (51 milhões de pessoas), ao mesmo tempo em que cresceram os índices de aprovação do governo. O caráter polêmico sobre a autoria política do programa; a cobertura extraordinária alcançada pelo Bolsa Família no território nacional, acompanhada por elevados índices de aprovação do gover-no e do presidente Lula4 e o reconhecimento internacional do progra-ma junto às agências multilaterais5 alimentaram as discussões entre a

2 Especialmente no período compreendido pela implantação do programa (2003) até a denúncia da rede Globo de 19 de setembro de 2004, a ser ana-lisada no item 1 deste artigo (2004).3 A natureza do jogo político e os novos modelos do Estado social (mais estra-tégico) aplicados amplamente na América Latina reorientaram gradativamente as concepções universalistas da Constituição brasileira para a adoção de uma política social focada sobre os estratos de renda mais baixos, estratégia con-siderada como a mais eficaz e justa, em benefício dos cidadãos com renda mais baixa.4 A área social foi uma das principais vitrines do governo do presidente Lula em virtude dos elevados investimentos no Programa Bolsa Família, que be-neficiou mais de 12 milhões de famílias. Segundo pesquisa do Datafolha de dezembro de 2006 (mês de encerramento do primeiro mandato), Lula obteve a maior taxa de aprovação de um presidente brasileiro ao final de mandato captada pelo instituto (que faz essa medição desde a volta do país à democra-cia) – 52% consideravam seu governo ótimo ou bom.5 O Bolsa Família tem sido recomendado pela Organização das Nações Uni-das para adoção em outros países em desenvolvimento (LINDERT, s/d e 2004). Estudos do Banco Mundial registram resultados mensuráveis positivos no consumo de alimentos, na qualidade da dieta e no crescimento das crianças (BANCO MUNDIAL, 2007).

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oposição e os governistas, que oscilam entre a crítica e o resgate da autoria política do programa pelos partidos, especialmente nos emba-tes entre o PSDB e o PT e seus respectivos aliados.

Este artigo apresenta uma síntese desses debates entre parlamenta-res governistas e oposicionistas, entre estes destacadamente o PSDB, e o PFL (Partido da Frente Liberal, hoje Democratas – DEM), no Con-gresso Nacional, em torno do Programa Bolsa Família. A análise toma por referência quatro períodos marcados pela disputa eleitoral: o ano de 2003, primeiro ano do mandato do presidente Lula da Silva, mo-mento de apresentação e discussão da proposta; o de 2006, relativo às eleições majoritárias para presidente, governadores, Congresso Na-cional e Assembleias Legislativas estaduais, quando o presidente Lula da Silva foi reeleito para o seu segundo mandato; e os anos de 2004 e 2008, correspondentes às eleições municipais. O contexto eleito-ral favorece a explicitação, na arena política, dos marcos diferenciais dos programas dos partidos, ou ao menos das concepções que os orientam. A trajetória desse debate no Congresso Nacional explicita, portanto, o uso por parlamentares e partidos de concepções distintas das ações sociais e suas considerações a respeito da exequibilidade e alcances do programa, ou seja, as “portas de saída” para a superação da pobreza, no Brasil. Essas tensões estruturam a dialética do poder sobre a área social, como movimentos de hegemonia e busca de le-gitimidade entre os partidos, e acabaram influenciando os processos decisórios do Executivo e as orientações efetivamente assumidas na implantação dos programas sociais.

O Bolsa Família tomou por base fundamentalmente o Bolsa Escola, maior programa do conjunto de políticas de transferência de renda focalizadas sobre os mais pobres. Essa conversão dá lugar a uma dis-puta entre o PT e o PSDB sobre a autoria do programa, especialmente quando o Bolsa Família alcançou níveis de cobertura elevados e ampla legitimidade política.

Em que pesem os reconhecidos méritos do Bolsa Escola, as iniciati-vas do PT já vinham ocorrendo desde 1991 na formulação de um pro-grama de garantia de renda aos mais pobres, quando foi apresentado no Senado o Projeto de Lei do Senador Eduardo Suplicy (PT) para um Programa de Garantia de Renda Mínima – PGRM (PLS nº 80/1991), que visava garantir a todos os cidadãos do país maiores de 25 anos de

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idade o direito a um determinado nível de renda. Em 8 de janeiro de 2004 foi aprovada a Lei 10.835, que instituiu a Renda Mínima6 e, no dia seguinte, a Lei 10.836 que criou o Bolsa Família. A lei da Renda Mínima previa sua aplicação de forma gradual, começando pelos mais necessitados, a partir da evolução de programas de transferência de renda, em especial do Bolsa Família.

O programa Bolsa Escola, implantado pelo PSDB, também se ins-pirou em iniciativas anteriores realizadas em algumas municipalida-des7, especialmente na exitosa experiência do Bolsa Escola no Distrito Federal, implementado pelo PT no governo de Cristóvão Buarque, em 1995. A concepção do programa baseava-se na tese do capital humano, segundo a qual a elevação do nível educacional das crianças beneficiadas ampliaria suas oportunidades de geração autônoma de renda, e contribuiria, portanto, no futuro, para interromper o ciclo intergeracional de reprodução da pobreza.

Em relação à perspectiva mais universalista de aplicação de uma renda mínima de cidadania, José Carlos Vaz (1995) apresentou o que seriam os principais pontos de discussão dessas políticas de transfe-rência de renda, que ainda alimentam muitas críticas: a) insuficiência de recursos municipais para dar sustentabilidade ao programa; b) o possível efeito de desestímulo ao trabalho, crítica inspirada nos deba-tes europeus, em países com Estado social consolidado, cujos sistemas confinaram os beneficiários na rede de seguridade social em razão da baixa remuneração do trabalho; e, ainda, c) as dificuldades de gestão do programa pelas limitações institucionais inerentes ao processo de seleção e controle de beneficiários.

Vaz considera que parte dessas críticas origina-se da realidade de países europeus, com Estados sociais consolidados e que o uso desses

6 A Lei nº 10.835/2004, de autoria do senador Suplicy, que institui a Renda Básica de Cidadania, foi sancionada por unanimidade no Senado em 8 de janeiro de 2004, mas ainda carece de regulamentação. 7 Lavinas (1998) relaciona os municípios com PGRM: Belém, Belo Horizonte, Boa Vista, Campinas, Catanduva, Ferraz de Vasconcellos, Franca, Guaratin-guetá, Guariba, Goiânia, Jaboticabal, Jundiaí, Mundo Novo, Limeira, Osasco, Ourinhos, Paracatu, Piracicaba, presidente Prudente, Ribeirão Preto, Santo André, São Francisco do Conde, São José do Conde, São José dos Campos, São Luiz, Tocantins e Vitória.

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argumentos é inadequado à realidade brasileira, diante do desempre-go estrutural e da informalidade do mercado de trabalho. Assim, a adoção de um programa de renda mínima no país ajudaria a minorar a precarização do mercado de trabalho.

Esses diversos argumentos, ainda que relativos aos programas de ren-da mínima, reaparecem no debate sobre o Programa Bolsa Família, na arena política do Congresso Nacional. Em todos os períodos analisa-dos são recorrentes as manifestações que questionam a capacidade do governo quanto à operacionalização do programa, cobrando eficácia no controle da elegibilidade e cumprimento das condicionalidades, su-gerindo irregularidades e falhas na sua aplicação. Gradativamente esse processo vai produzindo um deslocamento da concepção mais univer-salista inerente à Constituição brasileira de 1988 para uma perspectiva estratégica de focalização cuja operacionalidade implica “acerto” na elegibilidade dos beneficiários e, por consequência, a correta identifica-ção do público-alvo, ou seja, uma questão de gerenciamento técnico.

O presente artigo tematiza os principais eixos do embate entre par-lamentares de oposição e governo, nesta matéria, nos períodos de 2003, 2004, 2006 e 2008, demonstrando avanços e recuos, a mo-bilização de argumentos que operam a passagem da concepção da política para a discussão sobre governo e técnica de gestão (a foca-lização). Nessa passagem, a mobilização da opinião pública sugere a ideia de incompetência, erro e uso de velhas estratégias clientelistas pelo governo. Essa estratégia sutil dos discursos qualifica a vivência tensa no âmbito das forças sociais e dos partidos sobre a política do “possível”, como luta por hegemonia diante dos programas sociais nos contextos analisados. A seção conclusiva recompõe a trajetória dos debates parlamentares relativa aos programas sociais, particularmente ao Bolsa Família, e finaliza questionando a concepção do programa como estratégia de desenvolvimento endógeno.

1 APRESENTAÇÃO DO PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA (OUTUBRO A DEZEMBRO DE 2003)

O período compreendido entre a edição da Medida Provisória 132,

de 20 de outubro de 2003, que cria o Bolsa Família, até sua aprovação para conversão em lei, em 17 de dezembro de 2003, foi de discussões

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no Congresso Nacional sobre os pontos polêmicos do programa. Os deputados governistas defendiam a proposta de criação do programa, justificando a unificação dos diversos programas anteriores em função de operar com maior racionalidade institucional, o que aumentaria os investimentos sociais do governo, o valor médio dos benefícios e a cobertura do público-alvo. A oposição criticava o caráter excludente da proposta do programa em relação aos anteriores, especialmente quanto à linha de corte das famílias elegíveis8. Ademais, questionava a sua exequibilidade em termos de uma abrangência nacional.

Na apresentação da Medida Provisória 132 ao Congresso Nacional (21 de outubro de 2003), a base aliada do governo destacou os objetivos e pretensões institucionais do Bolsa Família, com vistas a racionalizar o gasto social, ampliar a cobertura do público-alvo e aumentar o valor dos benefícios e os investimentos federais no setor para execução do que viria a ser o principal programa nacional de transferência de renda, a exemplo do discurso do deputado Carlito Merss (PT/SC). Os deputados da oposição, além de defenderem a paternidade do programa, consi-deravam a proposta inexequível devido à falta de sustentabilidade or-çamentária, o que o transformava apenas numa “jogada de marketing” do governo, sem condições de efetivação. São exemplos dessa postura oposicionista os discursos proferidos por alguns parlamentares do PSDB, como o deputado Luiz Carlos Hauly (PSDB/PR), que em 21 de outu-bro de 2003, afirmou que o presidente [Lula] reuniu todos os projetos sociais implantados pelo governo Fernando Henrique, pelo governo Itamar e por outros, tirou seus rótulos e criou um novo programa para substituí-los; e o deputado Antonio Carlos Mendes Thame (PSDB/SP), que disse: “Gastou-se uma fortuna em marketing no programa Fome Zero [...] e agora vão gastar outra fortuna em marketing no Programa Bolsa Família”, e criticou a contratação de instituições estrangeiras para a

8 Os programas unificados no Bolsa Família tinham por público-alvo famílias com renda per capita de até meio salário mínimo. O Bolsa Escola estipulou uma renda de R$ 90,00, à época em que o salário mínimo era R$ 180,00 (Decreto nº 3.823, de 28 de maio de 2001). O Bolsa Família, porém, definiu duas categorias elegíveis: “pobreza extrema”, com renda per capita de até R$ 50,00, e “pobreza”, com renda de até R$ 100,00 para um salário mínimo que à época era de R$ 240,00.

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implementação dos programas e a mobilização de recursos da área de saúde para a execução dos mesmos.

As contradições entre oposição e governo não apresentavam con-tornos claros, já que, em realidade, a distinção entre o novo programa e os anteriores não estava claramente definida, dificultando aos opo-sicionistas a formulação de uma crítica mais contundente à proposta do governo sem que necessariamente atingisse suas próprias linhas de ação anteriores. Assim, o alvo das críticas reorientava-se não à pro-posta, mas, sobretudo, à competência técnica do governo, e à falta de sustentabilidade orçamentária.

Quando a Medida Provisória 132 foi incluída na Ordem do Dia, em dezembro 2003, os parlamentares da oposição foram mais incisivos em torno dos elementos que compunham o novo programa, tendo apresentado um número expressivo de Emendas (53) sobre a maté-ria. Contudo, não havia homogeneidade de posição entre esses parla-mentares, a exemplo do PSDB, que se dividia entre adiar ou apoiar a votação da Medida Provisória9. A relatoria do Projeto (Mensagem nº 145, 2003) justificou a urgência de votação pela “necessidade imedia-ta de tornar a gestão dos recursos públicos mais eficiente e de elevar o número de famílias atendidas nas ações sociais de governo” (p. 4), com vistas a que o “Programa Bolsa Família contribua efetivamente para reduzir a exclusão social, sem, contudo, gerar maiores ineficiên-cias à economia brasileira” (p. 9). Destacou, ainda, a busca de maior racionalidade e eficiência da administração pública: a “unificação dos programas federais de reforço de renda busca imprimir maior raciona-lidade e eficiência à administração pública” (p. 10).

O PFL10 e o PSDB, partidos da oposição, reforçaram aspectos “ne-gativos” da nova proposta, diferenciando-a das experiências anterio-

9 Os deputados Wilson Santos, PSDB/MT, e Antonio Carlos Pannunzio, PSDB/SP, são exemplos de posição contra e a favor ao adiamento da votação, respec-tivamente (Câmara dos Deputados, Ordem do Dia, 17 de dezembro de 2003).10 O PFL, partido originário da antiga Aliança Renovadora Nacional (Arena), tinha entre um dos seus políticos expoentes o senador Antônio Carlos Maga-lhães (PFL/Bahia,) autor da Emenda Constitucional de criação do Fundo de Combate à Pobreza (2000), que financia mais de dez programas sociais, inclu-sive o Bolsa Família. Daí possivelmente a ativa participação de parlamentares do PFL da Bahia nos debates em 2003.

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res, sobretudo pela linha de corte definida para aquelas famílias com renda per capita inferior a R$ 100,00. Apoiando-se no Decreto nº 4.102/2002 (Art. 3º, I), que regulamentava o Auxílio Gás, e na Lei 10.689/2003 (Art. 2º, §2º), que criou o Cartão Alimentação, ambos desenhados para famílias com renda per capita inferior a meio salário mínimo como potenciais beneficiárias das transferências monetárias, o que equivalia a R$ 120,00, os deputados oposicionistas consideravam que o novo programa era mais excludente que os programas anterio-res, impondo a necessidade de revisão do critério de elegibilidade. Ademais, o PSDB reivindicava a autoria do programa, demonstrando que muitas das características da nova proposta tinham caráter exclu-dente em função da nova linha de elegibilidade do programa, o que certamente envolvia custos políticos. “Dessa forma, muitas famílias que hoje recebem o Vale-Gás e os benefícios do Bolsa Escola e do Bolsa Alimentação ficarão de fora desses programas” (deputado Antonio Cambraia, PSDB/CE [OD, 17/12/2003]).

Diante desses argumentos críticos, o governo contra-argumenta que a execução anterior operava de forma caótica, e este seria o principal motivo para a baixa cobertura. “A unificação de programas, assim como a centralização da gestão do Cadastro Único, dos pagamentos e da ava-liação do Programa Bolsa Família proporcionará maior efetividade ao gasto social, o que certamente elevará o número de famílias beneficia-das” (deputado Odair, PT/MG, Parecer do Relator [OD, 17/12/2003]). O governo considerava que paulatinamente dever-se-ia agregar à transfe-rência de renda outras políticas emancipatórias. “Pretende-se, ao passo em que a máquina pública aufira ganhos de racionalidade e eficiência com o fim da sobreposição de ações, que sejam geradas outras políticas para as famílias beneficiadas, de forma a lhes permitir a emancipação econômica” (Parecer do Relator [OD, 17/12/2003]).

Em verdade, os partidos oposicionistas demarcaram espaço na ela-boração do projeto de “Conversão”, apresentando diversas Emendas11,

11 É significativo o número de Emendas apresentadas por alguns deputados nesse período. O maior destaque é José Carlos Aleluia (PFL/Bahia), então líder do PFL na Câmara, com 15 Emendas, seguido de seu correligionário, Claudio Cajado, com nove. Do PSDB, destacam-se os deputados Antônio Carlos Mendes Thame e Sebastião Madeira, com cinco Emendas cada um.

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como a revisão, pelo Executivo, dos reajustes tanto dos benefícios quan-to dos valores referenciais do programa, proposta pela Emenda de nº 1, do deputado Cláudio Cajado. Essas emendas, no entanto, foram rejeita-das em sua maior parte, de modo a não alterar o sentido original da pro-posta. Contudo, o próprio fato de assimilar-se os programas anteriores ao Bolsa Família já se constituía numa condição favorável à aprovação da proposta, ao mesmo tempo em que gerava um elemento conflitivo entre os partidos na luta pela hegemonia sobre a área social.

2 A IMPLANTAÇÃO DO PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA (2004) E AS IRREGULARIDADES NA CONCESSÃO DE BENEFÍCIOS

O ano de 2004 caracterizou-se como um importante período de “prova” e legitimação do Bolsa Família, quando o governo adotou, na área social em geral, algumas medidas impopulares, como a reforma do sistema previdenciário e restrições no reajuste do salário mínimo, exatamente em um ano de eleições municipais, no qual os programas sociais têm importante papel de formação da base de apoio popular dos partidos.

Os trabalhos parlamentares no Congresso Nacional foram antecipados por uma Convocação Extraordinária feita pelo presidente da Repúbli-ca, fato que gerou diversas especulações. De um lado, essa convocação indicava pressa do governo em aprovar seus projetos, e, de outro, o governo o fez em razão do ano eleitoral. Isso pode não ter sentido, uma vez que um dos itens da pauta da Convocação era justamente a Refor-ma da Previdência, alvo de grande polêmica e elevados custos políticos. De todo modo, quanto antes fosse discutida, mais tempo se teria para minimizar os efeitos políticos indesejáveis dessas medidas.

A discussão enveredou inicialmente para uma avaliação do desem-penho do Governo Federal durante o ano de 2003, primeiro ano do presidente Lula. Na sessão de abertura (19 de janeiro 2004) parte da oposição questionou o governo pela impropriedade da Convocação antecipada do Congresso. Segundo o deputado Sebastião Madeira (PSDB), “o volume de matérias a serem apreciadas – emendas consti-tucionais, medidas provisórias, projetos de lei – demonstra claramen-te que esta convocação será inócua, não resultará na aprovação de emendas ou leis”, e, em sua opinião, um dos resultados seria o desgas-

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te do Legislativo perante a população. Acusou-se o governo de falta de projeto para o país, criticando a reforma ministerial em processo como fisiologista e sem propósito. Nas palavras do então líder do PSDB, o deputado Jutahy Júnior, “trata-se de um governo baseado em inte-resses claramente clientelistas, fisiológicos, sem projeto, que faz uma colcha de retalhos na base de apoio, porque, como não existe projeto, é tudo baseado em interesses imediatos”.

O então líder do PT no Congresso – o deputado Nelson Pellegrino – proferiu discurso, destacando a conjuntura econômica favorável, com expectativas positivas em relação às suas projeções para o futuro próximo. Em se tratando dos “investimentos na área social”, obser-va que o Bolsa Família assume claramente o pilar da política social, garantindo a “mais de 10 milhões de brasileiros” o acesso diário à alimentação. Essa avaliação otimista do governo é complementada, ainda, por argumentos defensivos em relação às críticas da oposição, segundo as quais o governo teria posto o país em posição desfavorável ao seu desenvolvimento.

Nesse debate observa-se desencontro no âmbito da própria oposi-ção, pois na mesma sessão de abertura dos trabalhos no Congresso (19 de janeiro de 2004), um deputado do PFL (partido da oposição), Paulo Magalhães, saiu em defesa do governo, afirmando que o presidente Lula seria “o presidente da esperança dos brasileiros”. Ele defendeu a convocação antecipada e considerou que o desgaste da imagem do Legislativo ocorre quando parlamentares “usam os microfones para fa-zer politicagem”, referindo-se, aparentemente, aos discursos de alguns deputados do PSDB. Esse desencontro dos oposicionistas certamente se justifica pela iminente disputa eleitoral nos municípios. Exemplo dessa dissonância pode ser visto no discurso do próprio deputado Paulo Magalhães em 21 de janeiro daquele ano, com fortes acusações contra os gestores do município de Itiruçu, no sudoeste da Bahia, afir-mando a sua confiança em “ganhar as eleições naquele Município”. Em outras palavras, a defesa feita ao Executivo Federal sugere ser antes uma tática para capitalização dos ganhos políticos oriundos do Pro-grama Bolsa Família, que um alinhamento ideológico com o governo.

Paradoxalmente, a principal oposição nesse período aparece exata-mente nos parlamentares dissidentes do próprio PT, aqueles conside-rados “radicais”, expulsos do partido por terem se posicionado contra

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os rumos assumidos pelo governo do PT e votado contra as propostas do governo12. Em 11 de fevereiro de 2004, Luciana Genro (eleita pelo PT/RS), considerada à época uma deputada “sem partido”, critica o PT por sua tendência a assimilar-se ao PSDB, e também o governo, que, em sua opinião, teria capitulado ao projeto neoliberal. A deputada fundamenta essa posição, mostrando os resultados econômicos insig-nificantes e os indicadores sociais graves, como desemprego, redução da renda e violência, em razão da subordinação do governo a uma política econômica de juros altos.

Essa crítica foi reiterada por membros do PFL (expondo as contradi-ções da arena política), a exemplo do deputado Felix Mendonça, que afirma a discordância do seu partido em relação à política econômica: [seu partido é] “contra a política econômico-financeira adotada”13 e “no Brasil segue-se o caminho inverso da política econômica adotada por países que querem desenvolver-se”, afirma o deputado do PFL.

Importa esclarecer uma imensa diferença entre essas duas posições. Diferentemente dos parlamentares do PFL, a deputada Luciana Genro expõe uma posição ideológica crítica ao governo sobre o caráter da focalização adotada pelos programas sociais. Para a deputada, trata-se de uma política social subordinada aos ajustes impostos pela política econômica, desvinculada de problemas estruturais, como a elevação do desemprego. Segundo a deputada, o “foco do governo” se orien-

12 Os deputados Luciana Genro (RS), Babá (PA), e a senadora Heloísa Helena (AL), que junto ao deputado estadual João Fontes (SE) compunham o grupo de parlamentares “radicais”, por posicionarem-se contra as alianças formadas pelo PT, desde a campanha presidencial. Uma vez instituído o governo, estes parla-mentares mantiveram-se discordantes de medidas adotadas, que, segundo eles, contrariavam a postura histórica do partido, como as reformas da Previdência e Tributária, e ratificaram suas posições, votando contra essas reformas. Os de-sentendimentos culminaram na expulsão desses parlamentares pelo Diretório Nacional do PT, em meados de dezembro de 2003. Eles ganharam projeção nacional e foram acompanhados por uma legião de dissidentes do PT, também inconformados com a nova postura do partido, que para eles se insinuava mais à direita. Em junho de 2004 os radicais criaram o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), tendo a senadora Heloísa Helena como principal representante.13 Trata-se de um deputado do PFL e um dos principais apoiadores do gover-no anterior.

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taria mais pela política econômica hegemônica do que pelo encami-nhamento da questão social interna do país.

O governo justifica que seu objetivo não é “apresentar o melhor dos mundos”, mas reverter o quadro caótico das inúmeras políticas imple-mentadas pelo governo anterior, entre as quais se enquadram as políti-cas sociais focalizadas. Neste sentido, o discurso do deputado Professor Luizinho, do PT de São Paulo (29 de abril de 2004), é emblemático:

Herdamos um país, cujo patrimônio brasileiro foi todo dizimado; foi vendido o que foi construído com o suor e o sangue do povo brasileiro. Foram transformados em pó, em fumaça, 100 bilhões de reais do povo brasileiro. Aumentaram, de forma irresponsável, a dívida pública interna e a dívida externa, que chegam, hoje, ao patamar de 900 bilhões de reais.

Ou seja, o governo põe-se na condição de quem assume a missão de reconstruir um país quebrado por escolhas políticas anteriores equi-vocadas, que, segundo seus representantes, deveriam ser revertidas. Usando o argumento da racionalidade institucional para as políticas da assistência social, o deputado sugere cautela aos parlamentares go-vernistas quanto à definição do piso do salário mínimo – cujo valor a oposição critica, sugerindo ainda que a restrição do valor do salário mí-nimo proposto pelo governo permitiria investimentos compensatórios no Bolsa Família e no aumento do salário-família14. Nas palavras desse parlamentar, o governo estaria “protegendo os miseráveis com a política do Programa Bolsa Família” e o reajuste do salário-família permitiria “proteger a família que tem filhos e maiores necessidades”. É dentro desse contexto que o Bolsa Família ganha centralidade no debate15.

Durante a Ordem do Dia (29 de abril 2004), o líder do governo, de-putado Professor Luizinho, defende que o governo está perseguindo os objetivos do crescimento e do desenvolvimento sustentável para o

14 O salário-família é um benefício previdenciário a que têm direito o segu-rado empregado e o trabalhador avulso que tenham salário de contribuição inferior ou igual a remuneração máxima da tabela do salário-família. Em 2004 ele pulou de R$ 13,48 para R$ 20,00 para segurados que recebiam até R$ 390,00 de salário (MP 182/2004).15 O salário mínimo em 2004 foi reajustado a partir de 1º de maio, por meio da Medida Provisória nº 182, de 30 de abril, cuja aprovação pelo Congresso Nacional deu-se em 24 de junho, convertendo-a na Lei nº 10.888/2004.

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país, dentro das “condições possíveis, de forma responsável e segura”, oposta ao que se fizera na gestão anterior, segundo opinião do depu-tado. Para o governo, o caminho para beneficiar diretamente os mais necessitados está na transferência de renda focalizada. No que tange à questão salarial, a fórmula encontrada para alcançar as famílias mais necessitadas, respeitando-se as limitações orçamentárias, foi o reajuste do benefício do salário-família.

Essa postura alimentou os oposicionistas, que encontraram na atitude cautelosa do PT quanto ao aumento do salário mínimo uma ambigui-dade, considerada a sua história anterior de defesa dos trabalhadores. O líder do PFL, deputado José Carlos Aleluia (29 de abril 2004), questionou a capacidade gerencial do governo e considerou que este “não aprovou um valor para o salário mínimo maior, porque o salário mínimo é o reflexo dos equívocos de seu projeto de governo”. Em 23 de junho de 2004, com o debate sobre o salário mínimo ainda em aberto, mas já em vias de votação, o deputado do PSDB/SP, Aloysio N. Ferreira (entre outros) negou o argumento do governo relativo às limitações orçamentárias e atribuiu o caráter módico do reajuste do salário mínimo proposto pelo governo à escolha equivocada deste por investimentos em programas assistenciais, desprezando uma política mais vigorosa centrada no mercado de trabalho.

Dentro dessa mesma ótica, o governo já recebia críticas do próprio PT. A expulsão dos “radicais” não calou os descontentes da base go-vernista, notadamente da legenda petista. Em 25 de maio de 2004, o deputado Ivan Valente (PT/SP) disparou críticas ao seu governo. Apre-sentou dados históricos que exibem os níveis de defasagem do salário mínimo, criticou o módico reajuste oferecido pelo governo devido à sua política monetária, contrapôs-se aos argumentos de ameaça à Previdência e aos entes federativos, defendeu a distribuição de renda como mecanismo de justiça social via salário mínimo e colocou-se contra os programas de transferência de renda16. Ou seja, a prioridade

16 Ivan Valente votou contra a proposta do governo, defendendo um reajuste mais elevado para o salário mínimo, e sofreu então a sanção do partido, como ocorrera anteriormente, quando votou contra a reforma da Previdência. Em 2005, desfiliou-se do PT e ingressou no PSOL, partido pelo qual concorreu às eleições de 2006, tendo sido reeleito deputado federal.

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da intervenção social do governo via Bolsa Família estava longe de se constituir uma unanimidade na arena política em 2004, contrapondo- se a opção por políticas sociais focalizadas como o Bolsa Família às políticas estruturais mais amplas e distributivas, associadas ao mercado de trabalho mais universalista via aumento do salário mínimo.

Ante a resistência do governo em reajustar o salário mínimo acima dos R$ 260,00, o que correspondia a pouco mais de 8% do seu valor à época (R$ 240,00)17, as críticas dos dissidentes do PT encontraram res-sonância em outros parlamentares e no conjunto da oposição no ano eleitoral. Ou seja, o debate político na área social em 2004, alentado pelo ambiente eleitoral, contrapõe políticas vinculadas à remuneração do trabalho (o salário mínimo) às políticas de assistência social como o Bolsa Família. Nesse cenário, vale recobrar as promessas de campanha do PT quando defendia a duplicação do valor do salário, expondo contradições do partido quando no exercício do governo em relação às suas lutas históricas em defesa dos trabalhadores.

Superado o debate sobre o piso do salário mínimo, as discussões parla-mentares em torno dos programas sociais do Governo Federal seriam re-tomadas no segundo semestre, tendo como eixo estratégico as denúncias da imprensa de irregularidades na atribuição dos benefícios. No contexto do período eleitoral18 reaparecem especulações sobre o uso eleitoreiro do Bolsa Família, retomando acusações de 2003 do Congresso Nacional, quando da proposta de criação do programa. A imprensa fez denúncias contundentes de irregularidades na concessão de benefícios e na insu-ficiência de acompanhamento do programa pelo governo, ao mesmo tempo em que o Tribunal de Contas da União (TCU) divulgava relatório de auditoria solicitado pelo governo, desde 2003, cujo resultado aponta “irregularidades e limitações” do programa, desde sua concepção.

A disputa parlamentar desloca-se do Congresso Nacional para a opi-nião pública via imprensa. Uma das notícias de maior impacto foi

17 O valor do salário mínimo em 2003 era de R$ 240,00 (US$ 70,69) e, em 2004, R$ 260,00 (US$ 89,48), calculado com base na cotação de 3, 3950 (2003) e 2, 9056 (2004).18 Em 2004 ocorreram eleições municipais em dois turnos. A maior parte dos pleitos foi definida no primeiro turno, em 3 de outubro; o restante se deu no segundo turno, no dia 31 do mesmo mês.

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a denúncia de O Globo, veiculada em 19 de setembro de 200419, sobre o uso indevido do Bolsa Família na cidade de São Francisco de Itabapoana – Rio de Janeiro –, a poucos dias do primeiro turno das eleições. A reportagem acusa o então prefeito da cidade (PMDB), can-didato à reeleição, de distribuir senhas para o cadastramento do Bolsa Família pela secretaria municipal, exigindo das pessoas a apresentação do título de eleitor.

Essa denúncia mobilizou o governo, que imediatamente suspendeu as atividades do programa naquela cidade, mantendo o pagamento dos benefícios daqueles que já haviam sido antes contemplados. Com base em relatório da Corregedoria Geral da União (CGU) que con-firmava as irregularidades, o governo iniciou um processo de fiscali-zação. O resultado confirmou um conjunto de irregularidades: não havia cronograma do Governo Federal para implementação do pro-grama no município, o que não justificava o cadastramento (além de 708 famílias já registradas pela Secretaria de Educação e Cultura, mais 900 possuíam senha para o cadastramento); identificou-se um bene-ficiário que não estava recebendo o benefício, mas cujos saques estavam sendo realizados em seu nome; cartões magnéticos não foram entregues pela Caixa Econômica Federal aos beneficiários, e outros foram entregues sem a devida identificação do titular; entre outras irregularidades, como descrito pela CGU.

Curiosamente, no período que se seguiu a essas denúncias da im-prensa até o transcurso do 1º turno das eleições, não há registro de de-bates parlamentares na Câmara Federal sobre o assunto20. Poder-se-ia

19 De acordo com as informações apuradas, essa reportagem foi intitulada “A miséria como cabo eleitoral”. O arquivo original não está mais disponível na internet, assim, essas informações foram recolhidas de fontes distintas. Alguns artigos encontrados fazem referência à reportagem – a exemplo de “A implementação do Programa Bolsa Família: as experiências de São Francisco de Itabapoana e Duque de Caxias”, de Rosana Magalhães et al., disponível em: http://www.scielo.br (Ciência & Saúde Coletiva, 2007) –, mas também não oferecem link para o arquivo original, ou seus links já não funcionam (por exemplo: http://oglobo.globo.com/jornal/pais/145949815.asp). 20 Foram efetuadas buscas na seção específica do site da Câmara (www2.camara.gov.br/), com palavra-chave (Itabapoana, denúncia, Bolsa Família) e também abertas; por partido e também abertas, mas não há qualquer menção ao fato.

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atribuir a ausência do debate ao período denominado “recesso bran-co”, realizado em período eleitoral, quando os parlamentares delibe-ram priorizar suas campanhas nas suas bases, fazendo-se presente no Congresso apenas para votação de questões eventualmente conside-radas relevantes. Mas esse procedimento foge às regulamentações da atividade parlamentar e, por ínfimas que sejam, registram-se presenças no período eleitoral, a exemplo da sessão ocorrida em 21 de setembro de 2004, dois dias após a publicação da referida denúncia que registrou, somados os diferentes momentos, 12 oradores. Assim, uma hipótese para a ausência é que as denúncias foram dirigidas contra um candidato do PMDB, partido que em 2004 se encontrava cindido entre o apoio e o não apoio ao governo. Por outro lado, é possível que os partidos tenham sido cautelosos devido às coligações feitas no âmbito municipal, compartilhando candidaturas. No município objeto da denúncia estavam coligados ao PMDB21 tanto partidos que com-punham a base de apoio ao governo no âmbito nacional como outros da oposição, como o PFL e PSDB. Essa diferença entre alianças nacio-nais e as coligações locais pode ter inibido a crítica ao Bolsa Família, dado os custos políticos no contexto das eleições municipais. Além do mais, para a oposição, as denúncias não eram contra o programa, mas contra o governo, e outros elementos poderiam municiar a oposição.

De todo modo, o governo mobilizou-se na resposta a essas e outras denúncias sobre o Bolsa Família, à época. Não há elementos suficientes para se estabelecer uma relação direta entre a denúncia do caso de Itabapoana com algumas iniciativas tomadas pelo governo, mas, coinci-dentemente, o Governo Federal regulamentou o programa pelo Decreto nº 5.209/2004, em 17 de setembro, antecipando-se à reportagem do jornal O Globo exatamente em dois dias. Seja qual for a possível relação entre esses fatos, é perceptível que o Relatório da Auditoria do Tribunal de Contas da União sobre o programa pressionou a edição do Regula-mento do Bolsa Família. Essa auditoria havia sido solicitada, muito antes, desde 2003, pelo então ministro Extraordinário de Segurança Alimentar, José Graziano. O seu objetivo tinha em vista a avaliação dos programas

21 A aliança que reelegeu Pedro Cherene em 2004 (Coligação São Francisco pra Frente), a despeito das denúncias e acusações, aglutinou doze partidos diferen-tes: PMDB, PP, PSL, PSC, PFL, PSDC, PRTB, PHS, PTC, PSB, PSDB, PT do B.

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preexistentes: Cartão Alimentação, Bolsa Escola, Bolsa Alimentação, Auxílio Gás, Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti) e Agente Jovem (anteriores ao Bolsa Família), sobre possíveis problemas de operação para a implantação do Fome Zero. Como a maioria desses programas foi aglutinada ao Bolsa Família, a avaliação do Tribunal de Contas da União acabou concentrando-se sobre o programa do novo governo. Embora a divulgação dos resultados tenha ocorrido já ao final de setembro, o Governo Federal teve acesso à versão preliminar do seu conteúdo, de forma que os elementos levantados pela auditoria e as medidas corretivas sugeridas foram contemplados na versão definitiva da Regulamentação do Bolsa Família.

O Relatório da Auditoria do Tribunal de Contas da União identi-ficou uma série de problemas, como a ausência de critérios claros para seleção de beneficiários, além da renda declarada (como data de cadastramento, perfil municipal ou familiar); metas de cobertura pre-vistas até 2005 limitadas às já operadas pelos programas unificados, pelo que o previsto para 2006 representava um importante desafio; ausência de mecanismos efetivos de controle e acompanhamento das condicionalidades, com interrupção da experiência anterior desenvol-vida pelos Ministérios da Educação (Bolsa Escola) e da Saúde (Bolsa Alimentação); carência de informações e orientações aos municípios sobre o programa; veiculação de propaganda genérica governamen-tal, criando expectativas na população; inexistência das instâncias de controle social por falta da regulamentação do programa.

O Relatório da Auditoria do TCU expôs, assim, as fragilidades do Bolsa Família e não se furtou a imprimir um tom crítico ao compará-lo com os programas anteriores, no que se refere ao cumprimento das condi-cionalidades. O parecer da auditoria revela a importância das condicio-nalidades no desenho do programa22, cuja ausência de monitoramento, e mesmo de sanção em casos de seu descumprimento, comprometeria os objetivos implícitos de capacitação dos jovens para a superação intergeracional da pobreza pelo Bolsa Família (de inspiração do Bolsa Escola). “A obrigação de utilização dos serviços públicos estabelece cons-trangimentos que podem funcionar como barreiras de acesso àqueles

22 As críticas referiam-se aos parâmetros do Bolsa Escola e à importância do controle das condicionalidades para a eficácia da inserção na educação.

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que não fazem parte do público-alvo” (p. 30), afirmava o relatório. Se a solicitação desta auditoria pelo então ministro Graziano (2003) objetivava expor os limites dos programas vigentes e municiar o governo na implantação dos novos programas – Bolsa Família e Fome Zero –, o resultado da avaliação transferiu o ônus político das irregularidades constatadas nos programas anteriores completamente ao governo Lula.

O Regulamento do Bolsa Família (Decreto nº 5.209/2004) foi uma exigência institucional e evidentemente não atendeu exclusivamente às pressões da auditoria do TCU ou às denúncias da imprensa já que a conversão da MP nº 132/2003 na Lei nº 10.836/2004, que instituiu o programa, subordina um conjunto de aspectos gerenciais do programa ao seu regulamento, como as questões das condicionalidades (Art. 3º); do controle social (Art. 9º); da divulgação de lista de beneficiários (Art. 13, Parágrafo Único); da coibição de fraudes (Art. 14, §2º). Portanto, enquanto o Regulamento do programa não estivesse instituído, o Bolsa Família teria dificuldades de operar plenamente.

O governo gerenciou o conflito e bloqueou a ação da oposição, instituindo a Regulamentação do Programa pela qual se antecipava e dava respostas às possíveis críticas. A responsabilidade pelo acom-panhamento e fiscalização do “cumprimento das condicionalidades” previstas no Decreto (nº 5.209/2004) foi devolvida (ou reiterada) aos Ministérios da Educação e da Saúde (Art. 28). O controle social foi definido para ser exercido por conselhos específicos, respeitada a paridade de participação entre Estado e sociedade, por instância preexistente (Art. 29). A responsabilidade do município na execução e no controle do programa foi reiterada, sendo que a fiscalização e a apuração de eventuais denúncias ficaram com o Ministério de Desen-volvimento Social e Combate à Fome (Art. 33). Nesse contexto não se verificou debate importante na Câmara Federal, cujos parlamentares, no período, estavam mais envolvidos com suas bases eleitorais nas campanhas para eleições municipais.

O mesmo não ocorreu, porém, em relação às denúncias divulgadas pela imprensa em outubro, posteriores ao 1º turno das eleições muni-cipais. Elas parecem ter fornecido a evidência que faltava à oposição para fundamentar a sua crítica ao governo, sem refutar a essência do programa. A oposição voltou ao argumento da incapacidade gerencial do governo do PT, como vinha expressando desde o anúncio do

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programa, munida desta vez, de dados oficiais do TCU e da exposição das denúncias na mídia. Mais uma vez a imprensa apresenta denúncia de grande proporção, coincidentemente (ou não) a exatas duas semanas do 2º turno do pleito eleitoral, tal qual se dera no 1º turno.

Em 17 de outubro (2004), o Fantástico da rede Globo levou ao ar os resultados de uma investigação de sua autoria acerca do funcionamen-to do Bolsa Família em alguns municípios, expondo irregularidades na alocação dos benefícios. Os repórteres denunciaram casos de famílias beneficiadas pelo programa que visivelmente não se enquadravam no perfil de elegibilidade dos beneficiários, uma vez que possuíam patrimônio (casas confortáveis e veículos automotores), inclusive o caso de um empresário, proprietário de um hotel em Mato Grosso, com patrimônio incompatível com os critérios do programa. A essas evidências a matéria contrapôs a situação de famílias extremamente pobres e não contempladas. Denunciava, também, funcionários pú-blicos e apadrinhados políticos irregularmente beneficiados. Ademais, mostrava famílias contempladas, mas cujos cartões nunca chegaram a elas por dificuldades de operação da Caixa Econômica Federal na identificação e comunicação com os beneficiários.

Diante das evidências de incorreções no processo de elegibilidade e concessão dos benefícios, a reportagem conclui que “o governo não pode ter certeza de que o Bolsa Família está chegando às famílias que realmente precisam dele” e questiona a validade dos dados sobre o contingente de pobres no país: “O governo quer incluir cerca de 11 mi-lhões de famílias no cadastro único e assim habilitá-las a receber o Bolsa Família. Isso significa que, para o governo, cerca de 54 milhões de bra-sileiros passam fome. Não seria esse número alto demais?” Uma curiosi-dade no objeto desta denúncia é que todos os casos citados referem-se aos programas anteriores (Bolsa Escola, Bolsa Alimentação ou Auxílio Gás), mantidos em funcionamento enquanto não houve migração para o cadastro do Bolsa Família, e sem novas concessões (MP nº 132/2003, Art. 9), mas a reportagem denuncia “Falhas graves no Bolsa Família”.23

23 O Art. 9º da MP nº 132, de outubro de 2003, que trata da transferência dos programas anteriores para o Bolsa Família, veda a concessão de novos benefícios para os programas anteriores. Assim, as incorreções se referiam a concessões anteriores e não ao Bolsa Família.

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Essa denúncia alimentou os discursos oposicionistas na Câmara. No dia seguinte à exibição da reportagem (18/10/2004) houve manifes-tação generalizada dos parlamentares: o PSDB acusou o governo de “desvio de finalidade do programa”, conforme o deputado Bismarck Maia (CE). A tônica da oposição mudou: passou a reconhecer que o programa era bom, inclusive porque apenas aglutinava iniciativas anteriores do próprio partido (PSDB), e o problema estaria, portanto, nos maus gestores, e era inaceitável “que maus brasileiros conduzam dessa forma um programa de alta valia para muitos cidadãos, princi-palmente os mais necessitados”. O deputado Pauderney Avelino, do PFL (19/10/2004) afirma que a denúncia traz a “prova da ineficiência” de um “governo inoperante e incompetente [que] inchou a máquina administrativa com pessoas ineficientes e ineficazes, que não têm ca-pacidade para gerir a coisa pública”.

Os governistas reiteraram a defesa dos programas federais. Já no dia 18 de outubro (2004), o deputado Luiz Couto (PT/PB) considerou que “As políticas sociais do governo estão cumprindo o papel de atenuar carências e déficits que não podem ser compensados por meio de mecanismos de distribuição universais”. Corroborando a classificação de “maus brasileiros” utilizada pela oposição – como no discurso do deputado Bismarck Maia (PSDB/CE) em outro momento da mesma sessão –, o parlamentar petista transferiu às administrações locais a responsabilidade pelo quadro denunciado. “Prefeitos usam os pro-gramas sociais do governo, dizendo-se responsáveis por eles, com o único objetivo de comprar votos, manter a dominação política no Município e alterar a vontade popular”. E considerou que os proble-mas estavam majoritariamente no “cadastro realizado pelo governo anterior”, e que eram problemas pontuais, passíveis de correção, sem ameaças à estrutura do Bolsa Família.

Sintetizando, a luta política no período deslizou de um debate sobre a natureza e o caráter das políticas sociais do governo, que se contra-punha a políticas mais universalistas, como as de emprego e do salário mínimo, priorizando as políticas focalizadas, no primeiro semestre, para a criminalização do governo pela oposição, com base na irre-gularidade da aplicação dos benefícios, atrelados à avaliação de uma incapacidade gestionária do governo. Como não havia contestação da oposição quanto à natureza do programa, à exceção dos dissidentes

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petistas, o desafio do cumprimento da meta de 11 milhões de famílias beneficiárias até 2006 anunciava-se como possibilidade.

3 OS PROGRAMAS SOCIAIS EM ANO DE ELEIÇÃO PRESIDENCIAL (2006): REDISTRIBUIÇÃO E CRESCIMENTO

O ano de 2006 é marcado pelas eleições majoritárias, que elegem o presidente da República, governos estaduais, deputados federais e senadores, e que afetam mais diretamente o embate no Congresso Nacional em relação ao desempenho da Presidência da República. Neste contexto, a avaliação dos quatro anos do governo Lula (2003–2006) ganha destaque e a arena política polariza os resultados entre o mandato de Lula e o de Fernando Henrique Cardoso. Alguns resul-tados no desempenho social do governo Lula fortalecem agora a sua posição no Congresso: a) a abrangência de cobertura do Bolsa Família, alcançando as metas propostas; b) a melhoria no controle das condi-cionalidades; c) os aumentos reais do salário mínimo e d) a retomada dos indicadores do mercado de trabalho, num ambiente econômico favorável. Assim, o tema que centralizou o debate foi, mais uma vez, o novo patamar do salário mínimo. O Programa Bolsa Família foi pre-servado, sugerindo um cálculo estratégico de seu uso futuro por vários partidos da oposição.

Em relação ao salário mínimo, o governo saiu da sua postura cau-telosa, que marcara o início do mandato, para defender um aumento em patamares bastante elevados, em termos de valores reais nos últimos anos. O deputado Eduardo Valverde, na condição de líder do PT24, anunciou em 26 de janeiro de 2006 o reajuste do salário para R$ 350,0025, o que considera ser “o maior valor de compra dos últi-mos 40 anos”, resultado possível devido ao ambiente de estabilidade econômica no Brasil. Expondo mudanças no padrão redistributivo da renda no país, com base em dados do Instituto Brasileiro de Geografia

24 O líder titular do PT era o deputado Henrique Fontana, Eduardo Valverde parece ter realizado esse pronunciamento em nome da liderança, mas não foram encontradas informações que o justificassem.25 Em 1º de maio de 2005 o salário mínimo foi reajustado para R$ 300,00 (Lei nº 11.164/2005).

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e Estatística (IBGE), o deputado destacou a tendência de queda inédita dos índices de desigualdades. Os resultados positivos na redução das desigualdades no país são confrontados com dados de ampliação dos beneficiários dos programas federais de transferência de renda, re-qualificando o Bolsa Família como programa eficaz na superação das históricas condições de desigualdade social brasileira. A esses resulta-dos acrescenta as tendências de recuperação do mercado de trabalho, com “3,7 milhões de empregos com carteira assinada” e os investi-mentos realizados em educação básica. Esses dados de desempenho do governo Lula foram comparados pelo deputado com o quadro socioeconômico herdado do PSDB, em 2003, caracterizado por cresci-mento pífio, elevado desemprego da “camada mais empobrecida da população brasileira”, e, simultaneamente, por um “endividamento brutal” do país.

O confronto do Bolsa Família com os novos indicadores de desi-gualdade do país reabriu o debate sobre a pertinência das políticas de renda como caminho efetivo de superação da pobreza e das desigual-dades, apesar de muitos considerarem que esses resultados se devam, sobretudo, à recuperação do mercado de trabalho e do aumento do salário mínimo. Diante da melhoria desses indicadores sociais, a opo-sição contrapõe dados da mesma fonte (IBGE) que desqualificam a ação do governo em relação ao desempenho do mercado de trabalho. Referindo-se a um discurso atribuído ao presidente da República, em 31 de janeiro, o deputado Alberto Goldman, então líder do PSDB, exibe dados que demonstram ainda a persistência de um percen-tual de brasileiros ocupados com renda inferior a um salário mínimo. Segundo ele, em 2005, 14,5% dos trabalhadores ocupados estavam nessa condição, parcela que teria crescido gradualmente durante os três anos do governo Lula.

O líder do governo, deputado Arlindo Chinaglia (PT), reagiu a essas declarações, afirmando que não se pode estabelecer relação de cau-sa direta entre a renda inferior a um salário mínimo e o aumento da miséria no país, como insinuava o deputado Goldman. Para ele este dado, ao contrário, sugere que “o aumento de pessoas que recebem menos de um salário mínimo pode ter decorrido dos programas de transferência de renda, que visam tirar da situação de fome e miséria aqueles que ainda não conseguiram emprego”. Ou seja, a elevação

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do contingente de pessoas com renda abaixo de um salário mínimo, ao invés de constituir-se um indicador negativo, podia ser entendido como resultado da aplicação eficaz dos programas sociais de transfe-rência de renda, melhorando a condição de renda e a vida daqueles situados na condição de extrema pobreza.

Além de questionarem os indicadores de desempenho socioeconô-mico apresentados, os líderes dos partidos da oposição – PFL e PSDB –, questionaram a elevação contínua da carga tributária e o descon-trole e qualidade dos gastos públicos, argumentos próximos aos dos favoráveis aos ajustes fiscais e à reforma do Estado dos anos 1990. O deputado Rodrigo Maia (PFL) afirmou (31 de janeiro) que “os gastos públicos brasileiros são de péssima qualidade”, o que demonstra ingo-vernabilidade do presidente. Esse deputado vincula os discursos do PT e do presidente à campanha eleitoral, e afirma que “o presidente Lula está no palanque desde o primeiro dia do seu governo e dele não saiu e não sairá, porque não sabe governar”.

Diante da tese da oposição do “descontrole dos gastos públicos”, Arlindo Chinaglia (PT) defende uma atitude firme de orientação dos gastos públicos em favor dos mais pobres. Apresenta a evolução dos gastos sociais do governo Lula em relação ao último ano de desem-penho do seu antecessor, mostrando que, entre 2002 e 2005, estes variaram em mais de 300% e reafirmando que se elevariam ainda mais, em 2006, em benefício das famílias pobres. Reverte, portanto, a posição defensiva numa ofensiva contra os oposicionistas em relação aos projetos sociais. Pergunta a todos, então, se consideram ruim a opção do governo em benefício dos mais pobres.

Diante da melhoria dos indicadores sociais oficiais e das dificuldades da oposição em se confrontar diretamente com a agenda internacio-nal de luta contra a pobreza, os oposicionistas retornam à estratégia de denúncia de irregularidades e da incompetência administrativa: erros administrativos; corrupção; distorção de informações, entre outras, reorientam os debates sobre os programas e gastos sociais por longo tempo. Os governistas reagem homogeneamente – como se verifica nos discursos dos deputados petistas Maria do Rosário (30 de janeiro de 2006), Durval Orlato e Arlindo Chinaglia (31 de janeiro de 2006) –, comparando o desempenho entre os dois governos, favorável ao do PT, explicitando que as acusações de corrupção e/ou erros de gestão

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do governo na área social constituem uma fuga da oposição diante do êxito dos resultados sociais. Destacam o desempenho do governo na política econômica e a retomada de sua credibilidade internacional; as medidas em favor da agricultura familiar, da educação e outras e, nesse ambiente favorável, propõe a elevação do novo salário mínimo ao patamar de R$ 350,00.

Dando continuidade ao debate, a oposição desqualifica o discurso do governo e não segue a linha de discussão aberta anteriormente. A exemplo disso, o deputado do PFL, Rodrigo Maia (7 de março de 2006), afirmou que o discurso governamental “não passa de falsa peça publicitária”, um engodo, como supõe terem sido as promessas de campanha, e, em razão disso, profetiza que o PT não venceria as elei-ções daquele ano.

Esse discurso circular não se modificou ao longo do primeiro semestre e, ao final de maio de 2006, a MP nº 288/2006 que rea-justou o salário mínimo para R$ 350,00, foi posta na Ordem do Dia, tendo a oposição apresentado uma proposta de reajuste superior, de R$ 375,00, utilizada para fundamentar a acusação de que o PT havia traído os eleitores. Em 31 de maio de 2006 aprovou-se o reajuste pro-posto pelo governo. A cada sessão, porém, polarizava-se a competição eleitoral, com declarações contra e a favor das (pré) candidaturas do PSDB e do PT, prejudicando a agenda da discussão dos temas sobre projetos nacionais.

As discussões que remetem ao Bolsa Família reapareceriam somen-te após o primeiro turno das eleições, em outubro. No contexto das eleições presidenciais, a oposição passa à defesa do programa, assi-milando-o às iniciativas implementadas durante o governo do PSDB, considerando-o, portanto, um legado desse partido, do qual o presi-dente Lula teria se apropriado e atribuído nova roupagem.

Os deputados da situação, por sua vez, criavam um clima de inse-gurança para os setores mais pobres, beneficiários ou potencialmente beneficiários dos programas sociais, sugerindo possível risco de suspen-são desses programas, na hipótese de eleição do candidato do PSDB. Exemplo disso está no discurso do deputado Henrique Fontana (PT/RS), proferido em 9 de outubro de 2006, quando afirmou que “a eleição de Geraldo Alckmin significa o risco de venda da Petrobras, do Banco do Brasil e da Caixa Econômica Federal” e, dirigindo-se aos deputados de

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oposição, acusou-os de serem contra o Programa Bolsa Família. Para tornar fundadas essas suposições, os governistas remontaram aos argu- mentos que os partidos de oposição haviam usado outrora contra o Bolsa Família, chamando-o de “esmola, um programa eleitoreiro, que não prestava”, contrariando as suas atuais promessas de campanha. Nas palavras do deputado Fontana, tratava-se de um “oportunismo de véspera de eleição” e assim, “quem quer continuar com o Programa Bolsa Família vai votar no presidente Lula, que o construiu”.

De ambas as partes, no entanto, observa-se o uso do Bolsa Famí-lia como estratégia de campanha e de legitimação social, assumindo explicitamente o alvo da disputa eleitoral na tribuna da Câmara Fe-deral, como se o segundo turno dispensasse cerimônias em fazê-lo. Não foram localizadas mais discussões sobre a natureza e o conteúdo do programa, indicando o reconhecimento de sua plena legitimidade para as bases eleitorais dos partidos. O Bolsa Família reaparece pleno de virtudes e naturalizado como um “filho pródigo”, cuja paternidade é disputada acirradamente com a promessa de “acolhê-lo e bem tratá- lo” incondicionalmente por todas as facções políticas.

Diante da vitória e reeleição do presidente Lula, a oposição retoma as críticas. O Bolsa Família reaparece para a oposição (PFL) como um programa problemático e utilizado de forma eleitoreira. Já em 1º de novembro, dois dias após as eleições, o deputado Alberto Fraga (PFL) faz uso de uma máxima recorrente: “O crime compensa!” Em sua in-terpretação, a legitimidade do Bolsa Família fez com que a população ignorasse o caráter corrupto do governo, como que estabelecendo uma cumplicidade coletiva implícita ante os fatos largamente denun-ciados pela imprensa no decorrer do ano: “Dê-me uma cota do Bolsa Família, uma cesta básica e pode roubar”. Curiosamente essa é uma tradicional crítica que se faz às velhas oligarquias quanto ao uso eleito-ral da distribuição da cesta básica, assentadas nas práticas clientelistas e assistencialistas pela área social.

O PSDB voltou, então, a acusar a ineficácia do governo na área social, considerando que a unificação dos programas de transferência no Bolsa Família havia prejudicado o funcionamento de outras áreas, como educação e trabalho. A discussão sobre o rigor nas condiciona-lidades retornou quase na condição de monólogo, pela atmosfera da derrota eleitoral.

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Ao final do mês de novembro, no dia 27, esse debate foi reaqueci-do pela aprovação no Senado Federal da proposta do senador Efraim Morais, do PFL, de criação de um “13º salário” para o Bolsa Família, como se o programa fosse uma política substitutiva do salário. A base governista acusou a proposta de demagógica e inconstitucional, por comprometer o orçamento da União, ao tempo em que, mais uma vez, saiu em defesa do programa, expondo seus aspectos positivos e alguns impactos sobre a população beneficiária.

Diante disso, o PFL reagiu, transferindo a pecha de demagogia ao Bolsa Família, assimilando-o à institucionalização de uma prática (su-postamente clientelista) do “toma lá, dá cá”, de cunho estritamente eleitoreiro, em uma relação perigosa que articularia, na opinião do deputado Alberto Fraga, em 27 de novembro, um “governo corrupto” e um “povo miserável e ignorante”, a exemplo deste depoimento: “O miserável aceitou muito bem essa proposta e disse: ‘Recebo a cesta básica e deixo-o roubar’. De onde Lula arranjaria 58 milhões de vo-tos? Entre as pessoas de bem? Não! Entre as pessoas de opinião? Não! Entre a classe elitizada, politizada do país? Não!” Na interpretação do deputado Fraga, a recusa do mérito da proposta do senador Efraim pelo PT confirmaria que este partido teria no Bolsa Família apenas um instrumento de campanha e não a intenção de beneficiar efetivamen-te o público ao qual ele se destina.

4 AS “PORTAS DE SAÍDA” (2008): O BOLSA FAMÍLIA COMO INSTRUMENTO DE DESENVOLVIMENTO

A discussão dos governistas sobre o Programa Bolsa Família, em 2008, busca destacar seu papel no fomento ao desenvolvimento social interno sustentado, dados os seus efeitos sobre o emprego e a econo-mia popular. Essa dimensão comemorava resultados efetivos sobre a dinamização do mercado interno, atribuídos à conjugação das políticas de reajuste real do salário mínimo com as transferências condicionadas de renda aos mais pobres. O argumento central é que o consumo ge-rado por essas políticas assumiu importância maior que as exportações, no que tange à economia nacional: “O país está vivendo um exitoso ciclo de crescimento econômico, com distribuição de renda”, afirmou o deputado petista Eduardo Valverde, em 10 de março de 2008.

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Dias após, em 17 de março, o deputado José Genoíno (PT) proferiu discurso que tenta discutir as relações entre o Estado e o mercado, ca-racterizando distinções entre a direita e a esquerda, quanto à relação do Estado frente ao mercado: “O Estado é escravo do mercado, ou o Estado é o indutor e o articulador das políticas públicas e do cres-cimento econômico?” E esclarece a posição do PT: estaria localizado no campo da esquerda, mas abandonava a perspectiva “rupturista” para uma “processualista”. Em sua opinião, ao investir em distribui-ção de renda por meio dos programas sociais o governo afirma sua “identidade com a esquerda”. A título de exemplo, o deputado cita um artigo referência de um jornal que considerava o Bolsa Família o “maior programa de combate à pobreza do mundo” e que, associado ao programa social Territórios da Cidadania – destinado ao desen-volvimento regional–, conformaria uma solução para a desigualdade socioeconômica e regional no Brasil.

No dia seguinte, 18 de março, o deputado Vignatti do PT/SC anuncia a expansão do Programa Bolsa Família, com o acréscimo de um novo benefício variável destinado às famílias cuja composição tenha jovens estudantes entre 16 e 17 anos de idade26. Com essa ampliação, como explicou o deputado, os governistas se antecipavam e se preparavam para a Conferência Nacional da Juventude que seria realizada em bre-ve. “A extensão dos benefícios do Bolsa Família irá beneficiar milhares de jovens brasileiros, exatamente 1,157 milhão de jovens que estão deixando a sala de aula para buscar trabalho, sobrevivência”, anun-ciou. A medida é apresentada como uma forma de estímulo à edu-cação, evitando a prática do trabalho precoce, entre os jovens, pela possibilidade do incremento nos benefícios a que a família já faz jus.

Nessa linha de contabilização dos avanços e ganhos do Bolsa Fa-mília, a deputada Janete Pietá (PT/SP), em 1º de abril de 2008, apre-sentou dados de pesquisa realizada por uma instituição francesa que analisava a redução das desigualdades de renda no Brasil. A deputada conclui que esses resultados expressam uma conjugação exitosa da política econômica com investimentos sociais, como o Bolsa Família.

26 Trata-se do Benefício Variável Vinculado ao Adolescente, ou Benefício Va-riável Jovem (BVJ) como ficou conhecido, estabelecido pela Lei 11.692, de 10 de junho de 2008.

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A deputada destaca, ainda, a contribuição do programa para a eleva-ção dos índices de frequência escolar no país. Da parte da oposição, não se verificou manifestação referente ao Bolsa Família27, a não ser de forma indireta enfatizando as limitações ao “empreendedorismo”, como o fez o deputado Felipe Maia, do DEM, ao apresentar resultados do Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae). Segundo ele, a maioria dos jovens entrevistados abandona o projeto de se tor-nar empreendedor para disputar uma vaga no serviço público, dadas as dificuldades jurídicas, burocráticas e, sobretudo, a elevada carga tributária imposta às empresas. Esses argumentos afinados à tese da sobrecarga fiscal do Estado sugerem que o Bolsa Família não estaria promovendo “portas de saída”, nem autonomia aos seus beneficiários. Mesmo favorável ao programa, com esses argumentos o deputado desqualifica em parte o êxito positivo de estímulo ao mercado inter-no, festejado pelo PT e, por outro lado, retoma as velhas teses liberais de que a assistência é função dos setores privados e onera a sociedade com elevação da carga tributária. No início dessa discussão, o deputa-do refere-se ao Programa Bolsa Família como de natureza assistencial e limitado quanto ao horizonte de perspectivas, ou às “portas de saí-da” dos seus beneficiários.

A ênfase nos investimentos e nas relações entre as políticas sociais e a economia ganha importância no segundo mandato do presidente Lula com a introdução da sua relação com a dimensão do desen-volvimento, a partir do lançamento do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), ocasião em que muitos passam a defender maior sustentabilidade para o Bolsa Família. Em relação ao PAC, a deputa-da Luciana Genro (PSOL) afirma que seu partido não é contrário ao programa, mas identifica erros em sua concepção, bem como em seu uso eleitoreiro. Nesses termos, defende que o Bolsa Família seja uni-versalizado e convertido por lei em programa permanente. Avança, portanto, na defesa da “consolidação de uma rede de proteção”, que inspirou originalmente os esforços do PT, desde a proposta de Suplicy da criação de uma renda básica de cidadania, em 1991.

27 Nas buscas realizadas em discursos dos parlamentares do PT, PFL e PSDB, com a palavra-chave “Bolsa Família”, não houve retorno que indi-casse oposição.

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O deputado ACM Neto (DEM/BA), em 5 de junho, anunciou uma proposição de alteração da Lei nº 10.836/2004, que instituiu o Bolsa Família, no sentido de estabelecer um critério de reajuste anual do benefício. Propôs a adoção do Índice Geral de Preços de Mercado (IGPM), com base no resultado acumulado de doze meses. A medida justificava-se pelo suposto risco de reaparecimento da inflação, fato que teria sido comprovado por averiguação feita pelo seu partido. Mas essa proposta teria também um objetivo político, uma “clara demons-tração de que defendemos esse importante programa, cujas origens remontam ao Fundo de Combate à Pobreza, iniciativa do nosso parti-do, então PFL, hoje Democratas”28.

A despeito da relevância da “sustentabilidade de renda” dos benefi-ciários, reconhecidamente uma das fragilidades apontadas para o Bolsa Família, esse debate podia já estar preparando a arena eleitoral para a sucessão dos governos municipais, que aconteceria naquele ano. Sinaliza para isto o discurso do deputado Vitor Penido (DEM), que retorna à fiscalização da Controladoria Geral da União sobre o uso dos recursos federais pelos municípios. O deputado destacou dados do Bolsa Família, à época, voltando a criticar o governo em relação aos possíveis desvios do programa quanto à seletividade dos beneficiários e ao seu acompanhamento.

28 O deputado apropria-se, assim, dos benefícios políticos do Bolsa Família, des tacando o papel de seu avô [já falecido], o senador Antônio Carlos Magalhães, um dos principais líderes do PFL (atual DEM) que criou, com a Emenda Constitucional 31, em 2000, o Fundo de Combate à Pobreza, prevendo ações suplementares de nutrição, habitação, educação, saúde, reforço à renda fa-miliar e outras. Por dois anos, de junho de 2000 a junho de 2002, o fundo contou com um adicional equivalente a 0,02% do índice da CPMF. Em 2003 e 2004, esse valor subiu para 0,08%, mas com a extinção do tributo, em 2007, o fundo perdeu a sua principal fonte de recursos. Os recursos disponíveis na execução orçamentária do fundo em 2009 alcançaram um valor de R$ 67,83 milhões, dos quais R$ 21,46 milhões foram gastos na compra de alimentos da agricultura familiar para distribuição; R$ 598 mil para a construção de cisternas no semiárido; e R$ 45,76 milhões com o programa de transferên-cia de renda diretamente às famílias em condição de extrema pobreza (Lei 10.836/04). Em 14 de dezembro de 2010, a Câmara prorrogou a vigência do Fundo, que terminaria em 2010 (Agência Câmara de Notícias, 2010).

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O retorno da oposição às denúncias de irregularidades e incompe-tência do governo na gestão dos programas se expandiria para outras políticas e programas do governo. O líder do PSDB de São Paulo, o deputado José Aníbal, em 2 de julho de 2008, critica a execução orçamentária do PAC, afirmando que após um semestre da implemen-tação do programa, apenas 2,4% da previsão orçamentária haviam sido efetivamente pagas. Ele acusa o governo de “incompetência ge-rencial” e denuncia a existência de “corrupção” na execução do PAC. No mesmo discurso, o deputado adverte sobre os riscos de elevação “da inflação e os custos sociais de aumento do custo de vida”, que prejudicariam a maioria do povo. E retoma o argumento de defesa do nível de bem-estar da população, sobretudo dos assalariados, e não só dos programas assistencialistas, de cunho eminentemente eleitoreiro, segundo o deputado.

O líder do governo, o deputado Henrique Fontana (PT/RS), reagiu a esse discurso apresentando dados de investimentos do Governo Fede-ral, afirmando que na área social eles quadruplicaram. Sobre o Bolsa Família, o deputado defende o programa da acusação de uso eleitorei-ro, recorrendo aos critérios republicanos utilizados para a sua opera-cionalização. Reconhecendo o êxito do Bolsa Família e respondendo às críticas dos oposicionistas, o deputado José Genoíno (PT/SP), em 12 de agosto, apresenta novos dados que exibem a eficácia do programa na redução da pobreza em sete regiões metropolitanas, “fruto de pro-gramas sociais bem orientados e bem focados” e aumento do “núme-ro de empregos com carteira assinada”. No mesmo discurso refere-se à aplicação rigorosa das condicionalidades e da superação da pobre-za, que permitiram que “60 mil famílias [deixassem] voluntariamente o Bolsa Família para outras oportunidades”. E segue, defendendo uma concepção de Estado distinta do Estado mínimo liberal.

Diante do contexto recessivo internacional, o deputado Eduardo Valverde (PT), em 16 de outubro de 2008, proferiu discurso expres-sando seu otimismo em relação à situação de relativa estabilidade e consistência da economia do país. Apresentou dados de retomada do emprego entre janeiro e setembro e suas perspectivas até o final daquele ano. Segundo ele, o Brasil apresentava peculiaridades que o distinguiam da economia europeia por exemplo, pois a econo-mia interna sustentada, movimentada pelos cidadãos em geral, daria

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sustentação ao país. E recorre ao Bolsa Família, considerando-o res-ponsável por inserir grande contingente da população na esfera do consu mo interno.

Até o final do ano, os deputados governistas se revezaram na tarefa de apresentar e discutir aspectos positivos das políticas econômica e social do governo diante da atmosfera de crise financeira que insinuava ameaçar a estabilidade do país. Sinalizaram para a orientação acerta-da, voltada para uma economia real interna, que ganhou importância, no contexto da crise. O modelo de desenvolvimento do governo retornou ao centro do debate sobre as políticas sociais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: DISCURSOS E PERCURSOS

O debate no Legislativo demonstra uma evolução do Programa Bolsa Família, desde a sua proposição até o pensamento sobre suas funções em termos de um modelo de desenvolvimento. Os contextos descritos mostram avanços e recuos do governo e oposicionistas dian-te da legitimidade alcançada pelo Programa entre aqueles situados em condição de pobreza e sua repercussão internacional. Esse mo-vimento sinuoso expressa a essência do campo político, que consiste na construção de convivências conflitivas, na tensão entre garantir a reprodução dos próprios partidos e sua legitimidade, de um lado, e construir respostas às demandas sociais, dentro do horizonte possível, de outro. Inicialmente a ação do governo foi cautelosa em relação aos gastos sociais de forma a garantir governabilidade. A oposição reagiu à sua opção de melhorar a racionalidade institucional via unificação dos programas de assistência antes existentes, explicitando contradições do PT, quando cobrava compromissos dos governos anteriores com uma política distributiva de renda, de caráter estrutural e desenvolvi-mentista. Para tanto denuncia o reduzido aumento do salário mínimo, mais distributivo, subordinado a uma opção por programas assisten-ciais. Como parte do jogo político, o PT tentou neutralizar parte do discurso oposicionista sobre a sua “(in)capacidade de governo” e a suposta ameaça a benefícios sociais concedidos, reafirmando estabi-lidade em compromissos com a sociedade. O ano de 2006 fortale-ceu o governo, que exibiu os resultados exitosos das políticas sociais adotadas, garantidas por um ambiente de crescimento e estabilidade

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econômica, o que permitiu a adoção de uma política mais vigorosa de aumento do valor real do salário mínimo e a expansão da assistência focalizada sobre os mais pobres, que, associadas, possibilitaram au-mentos da renda dos segmentos com renda mais baixa e afetaram os históricos indicadores de desigualdade do país. Esses resultados, no que diz respeito à luta política partidária, respondiam aos argumentos da oposição sobre a suposta “incompetência e irracionalidade na ges-tão social”, tornando possível ao governo exibir a “prova da eficácia” da política adotada em contraposição ao desempenho do mandato anterior. A melhoria dos indicadores sociais em favor dos estratos de renda mais baixa do país e a recuperação do mercado de trabalho fortaleceram a posição do governo do PT no embate com a oposição, referendada por uma opinião pública internacional favorável aos pro-gramas sociais adotados pelo governo Lula. Diante da legitimidade alcançada pelo governo, a oposição contra-argumentou, deslocando a crítica do campo da assistência à pobreza para o das políticas mais estruturais de emprego, monstrando frágeis resultados em relação à qualidade dos postos criados no período.

Por fim, o ano de 2008 consolidou a legitimidade do Bolsa Família em todos os segmentos. Para alguns, como é o caso do PSOL, ele deveria evoluir para programas sustentados com base em direitos de cidadania, na defesa de uma rede permanente de proteção social, consolidando um novo modelo de desenvolvimento econômico e so-cial29. O governo reconhece os seus êxitos, destacando o caráter “vir-tuoso” das novas relações entre o mercado, o Estado e a sociedade, com base na consolidação do mercado interno, diante de uma crise internacional de grandes proporções, que marcou o ano de 2008. Os liberais reconhecem a importância e legitimidade do programa, mas questionam a sua eficácia quanto aos limites de emancipação da cida-dania no âmbito do mercado, própria à tese do empreendedorismo, devido aos enormes encargos fiscais do governo que bloqueiam as iniciativas autônomas da cidadania em empreendimentos econômicos e criticam o excessivo gasto social pelo Estado.

29 Esse caminho sugere consolidar a proposta original do PT (de Eduardo Suplicy) de criação de um Programa de Renda Mínima da Cidadania, caminho alternativo para a proteção social e acesso aos mínimos sociais.

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Em que pese a estratégia de diversos atores políticos – governo e oposição – em relação à apropriação dos resultados políticos do Bolsa Família e à competição partidária de bloqueios e impedimentos, fo-mentando custos políticos e sociais para o governo e a sociedade, a verdade é que a arena política do Congresso Nacional, especialmente da Câmara Federal, constitui-se um fórum privilegiado na fiscalização dos programas públicos, na definição dos caminhos e orientações das políticas públicas, que, mesmo precárias e tênues, influenciam uma concepção de desenvolvimento em curso como resultado de um cam-po conflitivo das várias forças sociais e políticas.

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EDUCAÇÃO PARA A SUSTENTABILIDADE: ESTRATÉGIA PARA EMPRESAS DO SÉCULO XXIDeborah Munhoz

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A Educação para a Sustentabilidade é um processo de desenvolvimento da cul-tura de sustentabilidade necessário à transformação dos processos produtivos de empresas que pretendem sobreviver no futuro. Na perspectiva da autora, o termo Educação para a Sustentabilidade é mais adequado para o trabalho vol-tado para o público interno, enquanto a Educação Ambiental é mais adequada para os trabalhos com a comunidade. Há também diferenças de abordagem, foco, metodologia de trabalho entre os dois conceitos. Seis aspectos são consi-derados fundamentais para um programa de Educação para a Sustentabilidade de sucesso: o negócio da empresa, a legislação vigente, os valores humanos, a abordagem técnico-científica, o tempo e o espaço. Palavras-chave: educação para a sustentabilidade; produção mais limpa; lide-rança; educação ambiental para empresas; alfabetização ecológica

Education for Sustainability is a development process of the sustainability cul-ture, required for the transformation of the productive processes of companies that intend to survive in the future. From the author’s perspective, the term Education for Sustainability is best suited for the work geared to companies, while environmental education is best suited for community projects. There are also differences in approach, focus and work methodology between them. There are six aspects considered essential for a successful Education for Sustai-nability program: the company’s business, the current law, human values, the scientific-technical approach, time and space. Keywords: education for sustainability; cleaner production; leadership; corpo-education for sustainability; cleaner production; leadership; corpo-rate enviromental education; ecoliteracy

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O CONTEXTO DA EDUCAÇÃO PARA A SUSTENTABILIDADE

A palavra “sustentabilidade”, praticamente desconhecida do grande público até 2009, passou a saturar os noticiários, discursos de lideran-ças políticas e empresariais e, principalmente, a propaganda. Como uma música tipo “chiclete”, o termo foi colado no discurso das agên-cias publicitárias, saturando o ouvido de consumidores e declarações corporativas sem, contudo, transformar significativamente o processo de produção e consumo. O mesmo pode ser observado nas políticas públicas. Dois importantes fatores contribuíram para despertar o inte-resse das empresas pela Educação Ambiental: o desafio de dar susten-tação ao seu Sistema de Gestão Ambiental, geralmente comprometido com o chamado efeito vaga-lume de seus programas ambientais inter-nos: ora acionado, ora apagado – também chamado efeito soluço, e a tendência dos órgãos ambientais de solicitar cada vez mais projetos de Educação Ambiental como condicionante do Licenciamento Ambien-tal. Há diferenças significativas, no entanto, entre o processo educati-vo voltado para a comunidade e o processo educativo voltado para o público interno de uma empresa.

Sem a pretensão de esgotar o assunto, compartilharei a seguir algu-mas aprendizagens obtidas durante o período em que trabalhei como técnica da Gerência de Meio Ambiente da Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais – (Fiemg) e do seu Núcleo de Produção Mais Limpa de trabalho, como representante da Confederação Nacional das Indústrias (CNI) no Comitê Assessor do Órgão Gestor da Política Nacional de Educação Ambiental e como consultora independente. No presente artigo tratarei especificamente do enfoque para o público interno, que optei chamar de Educação para a Sustentabilidade por motivos estratégicos. Em época da ascensão da Responsabilidade So-cial Empresarial, a Educação para a Sustentabilidade pode contribuir com a transformação profunda da cultura organizacional. Para isso, consultores e empresas públicas ou privadas precisam compreender as diferenças entre o enfoque e a metodologia usados para a comuni-dade – em que estão inseridas lideranças comunitárias, comunidade escolar e Organizações não Governamentais (ONGs) – e o enfoque e metodologia específicos necessários para o trabalho com o público in-terno. O paradigma da empresa tratada como uma máquina deve ser

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substituído pelo entendimento da empresa como uma organização. Não faz sentido desenvolver um processo educativo para máquinas, pois a máquina é um equipamento morto. Este artigo, portanto, parte de dois pressupostos: a) empresas são organismos vivos e b) a Educa-ção para a Sustentabilidade se diferencia da abordagem da Educação Ambiental para comunidades.

A Educação para a Sustentabilidade é um processo de desenvolvi-mento da cultura de sustentabilidade necessária ao público interno de uma empresa, sendo específica para cada modelo de negócio que pretende sobreviver no futuro. De maneira geral a Educação para a Sustentabilidade trabalha com focos específicos voltados para a sensi-bilização ambiental, prevenção de riscos, resolução de conflitos, pro-teção ambiental, conhecimento geral e específico sobre as questões ambientais locais e globais, saúde e segurança; capacitação, prepa-ração para certificações, redução de práticas indesejadas, percepção sistêmica, formação de agentes internos, mensuração e controle da poluição, mudança comportamental, autoconhecimento, empower-ment, implantação e sustentação do Sistema de Gestão Ambiental, res-ponsabilidade socioambiental, legislação ambiental, desenvolvimento de habilidades para proteção ambiental, cidadania e prática/ação.

É importante fazer uma distinção entre o Programa de Educação para a Sustentabilidade que este artigo enfatiza e a Educação Ambiental voltada para a Gestão Ambiental, que visa prioritariamente ao atendi-mento das necessidades da empresa para atender às condicionantes do licenciamento e às demandas da implantação do Sistema de Gestão Ambiental. A Educação para a Sustentabilidade é mais ampla, estando voltada tanto para a formação e o desenvolvimento do ser humano a partir da sua atividade na empresa quanto servindo de alicerce para a implantação de programas de produção mais limpa e ecoeficiência, assim como para o ecodesign do processo produtivo. A Educação para a Sustentabilidade inclui a Educação Ambiental para a Gestão Ambiental.

1 APRENDENDO A OLHAR A EMPRESA COMO UMA ORGANIZAÇÃO VIVA

A visão mecanicista e fragmentada do mundo concebe a empresa como um conjunto de partes, uma máquina, uma “coisa morta” que pode ser controlada e manipulada por pessoas adestradas (MOGGI,

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2001). Ainda que no início do século XXI fale-se muito sobre a era da participação, da cultura de redes, da inovação, da criatividade, em pensar fora da caixa, predomina entre os gestores a visão das pessoas como peças que podem ser programadas para executar tarefas e ser substituídas quando necessário. A empresa-máquina está dentro de um modelo tecnológico de sociedade que pode ser caracterizado por; a) numerosos acidentes, b) alto índice de poluição, c) tendência ao de-semprego, d) centralização e gigantismo, e) impacto destrutivo sobre a natureza, f) trabalho alienado do prazer, g) alta especialização e di-visão de trabalho, h) uso intensivo de capital e não de mão de obra, i) grande gasto de energia e recursos não renováveis, j) despreocupação com fatores éticos e morais, k) prioridade para a grande cidade e para a produção em massa e por fim, l) limites e inovações técnicas ditados pelo lucro e não por necessidades sociais.

Esses aspectos são apresentados detalhadamente no filme canaden-se de Jennifer Abbot e Mark Achbar, lançado em 2004, A corporação (título original: The Corporation). Compartilho da concepção de que empresas são organismos coletivos humanos e espelham exatamente os valores, a cultura e o inconsciente coletivo que rege a humanidade em seu momento atual a partir de uma trajetória histórica. Entendê-las e se relacionar com elas como seres vivos e dinâmicos permite a visão dos seus processos de desenvolvimento. Tais processos têm impulsos iniciais, mas não têm um fim. Durante sua história, a empresa muda o seu jeito de ser, que é sustentado pela cultura interna, pelas pessoas e, principalmente, pelas lideranças. Um ser vivo se caracteriza, entre outros aspectos, por apresentar processos vitais para que seus obje-tivos possam ser atingidos. Do nascimento à morte, um ser vive em constante processo de aprendizagem e transformação, sem perder sua identidade, seu padrão organizacional. Por essa razão, o modelo da empresa viva passa cada vez mais a ser considerado um paradigma de gestão. E, havendo vida, há esperança.

De acordo com Moggi (2001), no modelo tradicional de gestão podem ser identificadas cinco grandes áreas-problema:

1. Falta de motivação – inabilidade para motivar as pessoas para os objetivos da empresa. A maximização dos lucros a qualquer custo e a busca apenas de resultados quantitativos motiva somente o próprio dono do capital.

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2. Comunicação deficiente – o excesso de informação não permite que as pessoas mantenham o foco nas informações relevantes. Também pode ocorrer que a pessoa fique sem informações real-mente necessárias para seu trabalho. Comunicar é tornar comum, é diferente de informar. O avanço tecnológico não funciona sem o equivalente desenvolvimento humano e social.

3. Lentidão e atrasos – processos de mudança no mercado e na so-ciedade são cada vez mais acelerados. Empresas com estruturas rígidas não conseguem acompanhar as mudanças.

4. Ineficiência no uso dos recursos – caracterizada pelo excesso de carga de trabalho em todos os níveis da organização e por uma frenética agitação, não sobrando espaço para uma reflexão filosó-fica e estratégica serena.

5. Crise de liderança – a maioria dos referenciais traz modelos peda-gógicos para lidar com crianças e não andragógicos, próprios para liderar adultos livres e conscientes. Na concepção andragógica, a liderança precisa fazer a pergunta certa e não dar a resposta certa. Essa posição potencializa a aprendizagem do grupo e dos indi-víduos, o que é impensado na estrutura baseada no paradigma autoritário tipo “manda quem pode e obedece quem tem juízo”.

A Educação para a Sustentabilidade precisa observar tais pontos fra-cos no seu planejamento para não cair nas armadilhas das mesmas áreas-problema citadas. Sair da zona de conforto dá trabalho: como motivar o público interno a incorporar a variável ambiental no seu procedimento se ele não ganhará mais dinheiro por isso? As pessoas não trabalharão mais apenas para beneficiar o patrão. Como desen-volver novas formas de gerar valor respeitando a natureza? Como mobilizar as pessoas para incorporar a sustentabilidade na prática? A comunicação é extremamente estratégica e deve ser valorizada como parceira. Como estabelecer estratégias eficazes de comunicação para diferentes públicos? Como receber feedback da comunidade e melho-rar o processo produtivo? É fundamental o desenvolvimento de um plano de comunicação associado à Educação para a Sustentabilidade.

Um erro frequente das empresas é a informação tanto ao público interno quanto ao externo por meio de panfletos e considerar feita a comunicação. O fato de todos os empregados receberem um papel não quer dizer que leram e compreenderam o que nele está escrito.

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Como exemplo bem-sucedido de comunicação com diferentes públi-cos vale citar a experiência da Celulose Nipo-Brasileira S.A. (Cenibra), localizada em Belo Oriente, Minas Gerais. Para ter certeza de que as informações relevantes chegariam até seus empregados, a empresa lançou um jornalzinho agradável e interessante, que é fixado do lado de dentro dos banheiros. Para controlar melhor a eficiência de seu processo, criou uma exemplar “Rede de Percepção de Odores” pela qual pessoas de credibilidade da comunidade, voluntárias e articula-das em um raio de 42 quilômetros em relação à fábrica, servem de base para ações gerenciais relativas ao controle de odor, ajudando a empresa a corrigir e minimizar o impacto devido às emissões de com-postos de enxofre característicos do processo de fabricação de papel. Também estabeleceu um programa chamado “Vizinho Legal”, que realiza encontros sistemáticos com os produtores rurais das regiões vizinhas. Adotou o Cenibramóvel – um Centro de Educação Ambien-tal móvel que viaja pelos municípios estabelecendo uma comunica-ção direta com a comunidade. É comunicação olho no olho e boca a ouvido para minimizar os impactos e melhorar o processo produtivo.

2 SEIS ASPECTOS DA EDUCAÇÃO PARA A SUSTENTABILIDADE PARA EMPRESAS

Por que trabalhar com o público interno é diferente de trabalhar com a comunidade no que se refere às questões ambientais? Porque o processo educativo tem que ter foco no negócio, isto é, foco nos ti-pos de atividades econômicas que a empresa tem, particularmente no chamado core business, considerando as pressões de mercado a que estão submetidos, o orçamento, os custos e a legislação. Core busi-ness é uma expressão geralmente usada para referir ao negócio central de uma empresa. Uma das formas usuais de identificá-lo é observar a principal fonte de faturamento. Devido a sua importância, é tido como o alvo principal da gestão operacional e estratégica da empresa. Minha experiência profissional mostra que se o principal mercado da empresa não tem a sustentabilidade como um valor, dificilmente ela dispenderá tempo para trabalhar com seus funcionários e dinheiro de forma expressiva, ambos necessários em programas continuados. Provavelmente se aterá às exigências legais.

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Ignorar tais aspectos é dificultar o diálogo e perder energia e cre-dibilidade entre os demais setores da empresa, além de perder a oportunidade de contribuir significativamente para a transformação da cultura da organização. Geralmente o departamento de Comunica-ção e Marketing tem recursos muito mais significativos do que a área ambiental, embora a área ambiental seja estratégica para o funciona-mento da empresa. A Educação para a Sustentabilidade pode ser rea-lizada com recursos conjuntos, em parceria entre as áreas Ambiental, de Comunicação e Marketing e de Recursos Humanos.

São seis os aspectos que considero importantes para um programa de sucesso: negócios, técnico-científico, legislação, valores humanos, tempo e espaço. Como se pode observar na Figura 1, os seis aspectos estão inter-relacionados. Neste artigo enfatizarei o aspecto técnico-científico.

Figura 1Os seis aspectos da Educação para a Sustentabilidade em empresas

A abordagem do aspecto técnico-científico permite trabalhar a es-sência da Educação para a Sustentabilidade, uma vez que é funda-mental compreender o que seja a sustentabilidade. E isso se dá pelo conhecimento dos princípios ecológicos básicos, fundamentais para o ecodesign (ecoplanejamento) de sistemas produtivos. O conceito de sustentabilidade traduzido como obediência ao Triple Botton Line, isto é, um empreendimento é sustentável quando é socialmente justo,

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ambientalmente correto e economicamente viável, é profundamente limitado. Esse conceito é entendido pela Ecoeconomia como o de sustentabilidade média uma vez que, ao orientarem-se por ele, as empresas continuam operando com o modelo de produção e consu-mo sem considerar os limites dos ecossistemas. Como explica Capra (2002), para compreender o que é sustentabilidade é necessário um processo de alfabetização ecológica, entender os chamados princípios ecológicos e aplicá-los na criação, no desenvolvimento e na melhoria de produtos, processos e serviços.

Quando estudamos profundamente um ecossistema qualquer, seja o cerrado, a mata atlântica ou o amazônico, compreendemos que ele é sustentável, isto é, se mantém ao longo do tempo e em um determinado espaço de maneira dinâmica pela complexa interação dos vários ele-mentos que o compõem. A diversidade das formas de vida e das relações estabelecidas entre elas dentro do sistema, assegura a sua riqueza e a sua resiliência. Todos os organismos que habitam o planeta possuem uma história evolutiva conjunta, coevoluiram. Estão interconectados formando um sistema que atua em redes complexas (entrelaçadas) que sustentam a teia da vida, do qual pessoas e empresas fazem parte e de cujos serviços ecossistêmicos dependem para viver e para produzir.

A rede como um padrão de organização está presente em todos os sistemas vivos, a exemplo do sistema circulatório, das bacias hidrográ-ficas, das redes neurais, do sistema de circulação da seiva das plantas etc. Os organismos que compõem a diversidade de um ecossistema estão associados de maneira a cooperar ou competir entre si. Os sis-temas naturais são flexíveis, sendo capazes de manter as condições de vida por meio de sistemas autorreguladores que aceitam oscilações de temperatura, pH, concentração de nutrientes, densidade populacional das espécies etc., mas dentro de certos limites. Caso uma perturbação em um sistema ultrapasse seus limites de tolerância, sua capacidade de suporte, ele fica estressado, podendo entrar em colapso. A matéria e a energia fluem por meio dos sistemas naturais, sendo o sol a fonte de energia básica do planeta. A matéria flui pelos ciclos fechados enquanto a energia vai sendo transformada em trabalho e perdida na forma de calor nos ecossistemas. A matéria circula pelos chamados ciclos biogeoquímicos, tais como o ciclo do carbono, do oxigênio, do enxofre, da água etc.

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Uma vez compreendidos os princípios ecológicos da interdepen-dência, das redes, da associação, da coevolução, da diversidade, da flexibilidade, dos ciclos ecológicos e dos fluxos de energia, pode-se compreender o profundo significado do último e tão falado princípio da sustentabilidade. A sustentabilidade é uma propriedade emergen-te, ou seja, ela emerge a partir da complexa interação entre as partes de um todo (ecossistema). Para exemplificar, vou usar como modelo a formação da substância água, composta por átomos de oxigênio e hidrogênio.

A substância oxigênio é um gás indispensável para alimentar o fogo, enquanto a substância hidrogênio é um gás combustível. Quando am-bos reagem entre si formando um tipo específico de conexão, uma ligação química, surgem as moléculas da água, cuja propriedade emer-gente é de apagar o fogo e de ser líquida à temperatura ambiente. Todas as propriedades da substância água que conhecemos só existem porque átomos de oxigênio se uniram a átomos de hidrogênio for-mando moléculas de água. Não existiriam se não fosse essa ligação. Emergência, no sentido de emergir, surgir, brotar: este é o real sentido do princípio de sustentabilidade. A partir da alfabetização científica e ecológica compreendemos que é impossível haver uma empresa sustentável. Não existe um produto sustentável porque não é possível ser sustentável sozinho. A sustentabilidade não está em nós, mas entre nós. Dessa forma, a sobrevivência das empresas depende da sobrevi-vência dos ecossistemas e da sociedade. Depende, portanto, de um novo modelo de economia, já que o modelo atual não considera a finitude do planeta e a relevância nem dos sistemas naturais nem das pessoas (PENTEADO, 2005).

Nos últimos 300 anos, ciclos naturais foram fortemente abalados, abertos pelo processo industrial das tecnologias antropocêntricas. O maior desafio das empresas no século XXI é desenvolver sistemas produtivos de ciclos fechados, avançando do conceito de “Berço ao túmulo” para o conceito de “Berço a berço” (Cradle to Cradle – C2C). Vivemos em um planeta que por si só é um sistema praticamente fechado em que tudo está conectado a tudo: é o princípio da interde-pendência, difícil de enxergar quando se está limitado pela percepção dos fragmentos, da visão das partes. Redesenhar tecnologias e empre-sas em harmonia com a natureza é desafio do Ecodesign de Sistemas

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Produtivos. Já fazer entender as conexões entre os diferentes elos da rede que mantêm a vida no planeta, assim como as relações entre as atividades produtivas e os ciclos biogeoquímicos e fluxos energéticos, é desafio do aspecto técnico-científico.

A Educação para a Sustentabilidade precisa estar pautada no conhe-cimento técnico necessário para o bom desempenho das atividades da empresa, seja qual for o segmento. O melhor conhecimento técnico-científico não será suficiente se as pessoas não forem consideradas e respeitadas. Nesse sentido, o trabalho deve ser apoiado na Educação em Valores Humanos: paz, justiça, não violência, verdade e amor, sendo o amor compreendido em uma empresa como a inserção da ética do cuidado tanto com as pessoas quanto com a natureza tão lembrada pelo teólogo Leonardo Boff. Os programas devem agregar valor tanto para a empresa quanto para as pessoas, devendo ser executados em um tempo adequado e com o orçamento disponível. A maior parte das empresas em geral não entende a sustentabilidade como parte do seu negócio. Assim, é preciso tempo para o amadurecimento da cultura dentro da organi-zação. Isso requer muito estudo e muita habilidade do profissional que está conduzindo o processo. Começar pelo mais simples, aproveitando as condições que a empresa oferece para obter os melhores resultados possíveis é uma excelente estratégia. Com as vitórias conquistadas e uma forte argumentação apoiada na legislação, nas tendências de mercado, no marketing verde, na gestão dos riscos, no custo de não se realizar um bom trabalho, vai se desenvolvendo o programa gradativamente e de maneira consistente, fazendo o máximo de alianças internas.

O que vem acontecendo na prática hoje é que a legislação, assim como as mídias sociais, fazem pressão sobre as empresas que, por isso, já se abrem um pouco mais para programas ambientais consistentes para seu público interno e reservam centros de custos mais significa-tivos. Ainda falta muito para, num país como o Brasil, com o atual modelo econômico, qualquer processo educativo ser visto como investimento e não como custo para a empresa. Um dos principais argumentos é que pessoas vão e vêm enquanto as máquinas ficam. Com a predominância dessa forma de pensar, a indústria nacional não vai andar muito. Não adianta uma empresa investir em máquinas de última geração e não investir na qualificação e formação das pessoas que nela trabalham.

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Sem esses seis aspectos do conhecimento articulados em um Pro-grama Ambiental destinado ao público interno corre-se o risco de ser medíocre, ineficiente. A equipe ou profissional responsável não conquista o respeito e a confiabilidade de colegas de trabalho, dos empregados e gestores. A falta de habilidade na articulação desses aspectos contribui para a manutenção da percepção dos programas ambientais como “perfumarias” ou “adereços” por diferentes setores nas empresas. Observa-se fácil e rapidamente que muito do que se aprende nas melhores universidades não se aplica da mesma forma nas empresas. Deve-se trabalhar a abertura para o novo, cultivando a humildade para auscultar e aprender com empregados do chão de fábrica.

Há muitos desafios a serem superados. É preciso ter foco na defi-nição de objetivos de um programa de Educação para a Sustentabi-lidade, considerando a limitação dos aspectos do tempo, do lugar e dos recursos disponíveis, sendo esse último contemplado no aspecto “negócios”. Haverá mais recursos financeiros para investir em capaci-tação quando a sustentabilidade fizer parte efetivamente do negócio da empresa e não só do discurso do presidente. Isso vai depender do perfil dos acionistas ou do dono, da habilidade e credibilidade do profissional e da força dos elementos de pressão sobre a empresa. O montante disponível para investir em programas de Educação para a Sustentabilidade será maior quanto mais evoluída for a cultura am-biental de uma empresa.

Ainda hoje as empresas vivem uma cultura predominantemente reativa. O desenvolvimento da cultura ambiental tradicionalmente se desenvolve devido às pressões do mercado consumidor, de ONGs, da comunidade de entorno, dos órgãos ambientais, da legislação. Re-centemente tem crescido a pressão devida à escassez de recursos e às mudanças climáticas provocadas pela própria forma de produzir.

É preciso contribuir com qualificação de pessoal e com a huma-nização das empresas sem comprometer sua capacidade de atender contratos, suas demandas de trabalho. Não estou defendendo a ma-nutenção do consumo exagerado do qual padece nossa civilização. Chamo a atenção para o fato de que as melhores empresas possuem limites de tempo e de orçamento. A Educação para a Sustentabilida-de sempre será realizada em uma tensão entre o ideal e o possível.

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Para começar qualquer processo educativo é preciso aceitar a condi-ção de trabalho no tempo presente: o tempo disponível, a agenda, o lugar e o orçamento. Não no sentido passivo, mas tendo em mãos bons argumentos, deve-se negociar e, ao mesmo tempo, trabalhar a partir da realidade que se apresenta. Nem todas as empresas pos-suem local adequado para capacitação e o lugar de realização de um trabalho de Educação para a Sustentabilidade é muito importan-te, pois pode favorecer ou não a participação e a receptividade ao assunto.

A Educação para a Sustentabilidade precisa ser fortemente orien-tada para o negócio da empresa, para sua missão, para sua razão de existir. Sem considerar esses aspectos, os responsáveis pelo de-senvolvimento dos programas ambientais terão maiores dificuldades em transformar a empresa sem quebrá-la ou enfrentar grandes resis-tências internas. Assim como recomendo que os projetos observem esses pontos, recomendo também que os profissionais interessados em atuar com Educação para a Sustentabilidade junto ao segmento empresarial desenvolvam habilidades nas mesmas dimensões ante-riormente citadas.

3 CRIANDO OPORTUNIDADES DE MUDANÇA DE COMPORTAMENTO

Máquinas são operadas por pessoas, processos são supervisionados por pessoas. Empresas têm que lidar com todo tipo de problemas in-terligados, desde a operação inadequada de máquinas, a disposição inadequada de resíduos até o preenchimento equivocado de tabelas ou sabotagem da coleta seletiva. Muitos desses hábitos provocam per-das de certificação, multa e fechamento do empreendimento, aciden-tes ambientais, perda de credibilidade da marca. Para que ocorram mudanças comportamentais positivas e consistentes é necessário que a empresa trace estratégias e crie oportunidades para que as pes soas exercitem os valores aprendidos no processo de Educação para a Sus-tentabilidade. Mudança de hábitos, como, por exemplo, a mistura de resíduos de embalagens de sanduíches com rebarbas metálicas, re-quer tempo e exercícios. Exige rompimento de zonas de conforto e exemplo contínuo das lideranças. E isso dá trabalho. Um Programa de Educação para a Sustentabilidade apoiado pela alta direção deve prever

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situações desafiadoras e instigadoras para que os empregados bus-quem soluções com a aplicação dos conceitos e valores aprendidos. Não se trata de adestramento, condicionamento, mas da mudança de consciência de maneira que os empregados executem o procedimen-to correto mesmo quando ninguém estiver olhando. A empresa deve dar condições ao público interno para concretizar ações de proteção ambiental e/ou de autocuidado.

Os tomadores de decisão devem se perguntar: O que devemos e queremos mudar? Que oportunidades daremos aos nossos emprega-dos para que façam na prática aquilo que aprenderam dentro e fora da empresa? Como vamos monitorar a mudança comportamental? Que indicadores objetivos poderemos usar? É preciso especial atenção para as mensagens não verbais passadas pela empresa a seus empre-gados, quer seja no tipo diferenciado de comida servida aos gestores e à produção, quer seja na qualidade de café ou papel higiênico dos banheiros.

De nada adianta conscientizar as pessoas sobre a necessidade de respirar ar puro se os filtros do ar-condicionado não são limpos pe-riodicamente ou o “chefe” fuma na sala de reunião fechada e com o ar-condicionado ligado;ressaltar a importância de tratar bem a co-munidade de entorno quando o chefe grita com seus subordinados. A mudança verdadeira acontece na alma da empresa. A alta admi-nistração assim como a gerência média precisam abraçar a prática de valores socioambientais dentro da própria empresa para que a cultura do comando e controle dê lugar à cultura do cuidado, à cul-tura preventiva: cuidado com a saúde, fornecendo equipamentos de segurança de boa qualidade, reduzindo a exposição à contaminação química tanto de empregados quanto da fauna e da flora; cuidado com as relações no ambiente de trabalho, evitando fofocas e intrigas, praticando a manutenção preventiva em detrimento à manutenção corretiva; aquisição de produtos mais saudáveis; disposição adequa-da de resíduos; entre outros. Não adianta conscientizar a produção sobre o uso dos protetores auriculares e não oferecer protetores con-fortáveis. Na Tabela 1 são apresentados alguns exemplos de com-portamentos desejados e as condições para que sejam adotados, de acordo com a própria percepção de empregados de algumas empre-sas trabalhadas.

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Tabela 1Exemplos de comportamentos desejados e algumas

condições para serem adotados

Comportamento

desejado

Onde?

Quando?

Como? Por quê?

Eliminação da geração de serragem misturada com óleo (resíduo Classe 1)

Sala de máquinas

Em dois meses

Criação de tempo específico para treinamento dos funcionários do setor, incluindo a leitura e a discussão do manual de manutenção das máquinas; criação de programa de manutenção preventiva. Porque não há tempo destinado a esse tipo de treinamento e a disposição de resíduos Classe 1 é cara.

Eliminação de embalagens de marmitex jogadas no chão

Área externa do refeitório

Em três meses

Construção de um refeitório com dimensões adequadas ao número de funcionários atual e mais ventilado. Estudar a viabilidade para a instalação de um restaurante nos próximos anos para eliminação total dos marmitex. O atual refeitório é pequeno e não comporta a lavagem de pratos nem uma cozinha.

Redução do tempo de banho/consumo de água e energia

Vestuário masculino

Em quatro meses

Instalação de filtro para elimina-ção do pó de negro de fumo que entra pelas roupas dos funcio-nários. Porque o pó polui o ar interno da fábrica e adere à pele dos empregados da produção.

Redução da quantidade de comida deixada no prato

Bandejão da empresa

Em dois meses

Melhoria significativa da qualidade da comida; educação nutricional; criação de um sistema que permita que o funcionário se sirva à vontade e escolha o cardápio do dia seguinte. Porque a comida é ruim; muitos funcionários estão ficando obesos e outros desperdiçam a comida.

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Certa vez, durante a realização de um curso piloto de Educação para a Sustentabilidade em uma importante indústria automobilís-tica, constatei juntamente com um colega de trabalho, o contínuo cheiro de ácido em uma parte das dependências da produção. Par-ticiparam do curso parte da equipe de Sistema de Gestão Ambiental e empregados da linha de produção. Enquanto o pessoal da produ-ção se debruçou sobre o exercício para resolvê-lo, as lideranças de Sistema de Gestão Ambiental, de braços cruzados, batiam papo na maior parte do tempo. Que mensagem esses engenheiros estavam passando para suas equipes de trabalho? Esse é um bom exemplo de linguagem não verbal. Em seguida, durante a apresentação dos aspectos e impactos ambientais da atividade de determinado setor, um empregado comentou sobre o vazamento de ácido que eu tam-bém tinha percebido durante a visita. Imediatamente um dos líderes do Sistema de Gestão Ambiental rebateu a explanação: precisavam de um equipamento que ainda não tinham comprado e disse que a empresa não poderia lançar o gás para fora, pois criaria um proble-ma ambiental.

Que mensagem esse líder enviou para o funcionário e sua equipe, assim como para os consultores presentes? Frases não ditas, compor-tamentos e linguagem corporais são poderosas fontes de informação na condução de programas ambientais. O setor de limpeza e manu-tenção tem pontos de vista importantíssimos sobre o comportamen-to das pessoas e pode contribuir com excelentes sugestões devido ao tipo de trabalho que tem na organização. Como uma empresa implanta um Sistema de Gestão Ambiental sem a legítima partici-pação de sua equipe de produção no levantamento de aspectos e impactos ambientais? Esse tipo de participação contribui para o de-senvolvimento da visão sistêmica, do pensar coletivo e da ação em rede. A não participação gera os chamados procedimentos que não funcionam ou que são feitos para não serem cumpridos, exceto du-rante as auditorias. Isso contribui para o estresse da equipe técnica em véspera de auditoria.

Muitas das respostas a problemas enfrentados pelas empresas po-derão ser dadas pelas próprias equipes de trabalho, a exemplo dos chamados Ecotimes na implantação de Programas de Produção Mais Limpa. Durante um Projeto de Produção Mais Limpa que executei

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em uma fábrica de borracha, um dos problemas levantados pelo Ecotime foi a desordem dos banheiros masculinos utilizados todos os dias pelos empregados para tomar banho. A responsável pelo serviço de limpeza comentou que a quantidade de água usada era mui-to grande e que o vestiário era deixado muito bagunçado. A maior causa do consumo de água era o fato de a empresa não ter um filtro necessário para conter o fino pó de negro de fumo que era liberado durante a fabricação da borracha. Os empregados trabalhavam de blusa de manga comprida debaixo de um macacão e mesmo assim o pó impregnava seus corpos por baixo da roupa. O discurso do ba-nho rápido não tinha sentido, uma vez que a própria empresa não possibilitava uma condição mínima de higiene corporal. Além disso, toda a roupa dos funcionários era lavada em suas casas, por suas es-posas. Roupas que servem ao trabalho de empresas particularmente com esse tipo de atividade devem ficar sob a responsabilidade da empresa. Isso evita a contaminação de outras roupas da família, tais como peças íntimas femininas ou de crianças que por ventura pos-sam ser colocadas para lavar com os uniformes. Além do mais, é um exemplo de externalidade: a empresa externaliza os custos da lava-gem de uma roupa que sujou por sua incompetência em gerenciar seus resíduos, assim como parte da poluição que vai dos uniformes para o esgoto doméstico do empregado. A geração de resíduos está muito associada à questão de gênero. Geralmente os homens sujam duplamente: a empresa e suas roupas e as mulheres – esposas, mães, ou empregadas da limpeza –, limpam.

3.1 EXPERIÊNCIA DE FORMAÇÃO DE FACILITADORES INTERNOS DE PRODUÇÃO MAIS LIMPA NA INDÚSTRIA DO COURO

O desenvolvimento de um Projeto de Produção Mais Limpa para a Indústria do Couro, em 2001, teve como intenção a adoção de uma estratégia econômica, ambiental e tecnológica integrada aos proces-sos e produtos buscando aumentar a eficiência no uso de matérias- primas, água e energia. Esse aumento de eficiência é acompanhado da não geração, minimização ou reciclagem de resíduos gerados em todos os setores produtivos, com benefícios ambientais e econômicos para a empresa. Trata-se da incorporação de uma filosofia de fazer

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mais com menos, procurando sempre identificar o porquê da gera-ção dos resíduos. O projeto foi realizado dentro de um contexto que buscou o desenvolvimento da Indústria do Couro em Minas Gerais com menor impacto ambiental. Esse projeto teve como referência a pesquisa realizada pela Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais (Fiemg), conjuntamente com o Instituto Metas – Projeto Cresce Minas, que enfatizou os aspectos econômicos e conjunturais da pro-dução de couro no estado. Minha participação nesse projeto ocorreu num primeiro momento como coordenadora geral e responsável pela formação dos 17 facilitadores internos de Produção Mais Limpa. Em um segundo momento, como consultora de um curtume e de uma acabadora de couro.

Para facilitar o processo de implantação do projeto nas empresas, desenvolvi um curso básico para a formação de facilitadores de Pro-dução Mais Limpa fundamentado em seminários de Pedagogia Social de base antroposófica dos quais havia participado. O público, embo-ra profundamente conhecedor do seu negócio (produção e acaba-mento de couro), possuía nível de escolaridade diverso, variando de analfabetos a técnicos acostumados a intercâmbios com indústrias do exterior. Havia pessoas que estavam saindo de sua cidade pela primeira vez na vida. O seminário foi planejado da forma mais or-gânica possível. As manhãs foram destinadas à atividade intelectual com a abertura dos trabalhos voltadas para uma atividade corporal. Todas as tardes, após o almoço, foram realizadas atividades artísticas ou jogos cooperativos que respeitam o processo digestivo e favore-cem as relações humanas. O final do dia foi destinado à realização de uma tarefa que fizesse com que os participantes aplicassem o que aprenderam durante o dia de trabalho, sempre considerando a sua realidade dentro da empresa. A carga horária total foi de 40 horas, em regime de imersão total, no Clube do Trabalhador, na cidade de Betim, Minas Gerais. Dezessete pessoas participaram. O curso foi desenvolvido e conduzido levando em consideração o conhe-cimento do processo pelos participantes, possibilitando minimizar os problemas que poderiam surgir relacionados ao baixo grau de instrução de alguns indivíduos. Os assuntos abordados durante a se-mana foram: contexto ambiental da produção do couro; introdução à Produção Mais Limpa; consumo de água e geração de efluentes;

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resíduos sólidos; fazendo fluxogramas; a importância da negocia-ção e do planejamento; balanço de massa; indicadores; critérios de priorização; viabilidade econômica; sistemas de Gerenciamento Ambiental e Produção Mais Limpa; auditoria. Os títulos foram bem técnicos, dignos de um curso técnico ou de engenharia. A maioria dos gestores são engenheiros e não reconhecem linguagens muito diferentes. A forma com que o conteúdo foi abordado, no entanto, utilizou estratégias educativas e participativas por meio de trabalhos em grupos, dinâmicas e debates, contemplando os seis aspectos da Figura 1. Ao longo do curso, durante os debates e as apresentações de trabalhos, os próprios alunos foram sinalizando oportunidades de produção mais limpa. Alguns dos principais problemas apontados foram a grande geração de pó de rebaixadeira (resíduo Classe 1), o volume de efluente a ser tratado associado aos elevados valores das estações de tratamento, problemas relacionados à manutenção inadequada dos equipamentos (“gambiarras”) e problemas com-portamentais dos funcionários particularmente relativos a higiene, orga nização e manutenção dos uniformes. As máquinas utilizadas no processo de curtimento são antigas e obsoletas, proporcionando um alto grau de perdas. Entretanto, as empresas que atuam no processo de acabamento possuem equipamentos mais atualizados, com bom nível técnico e perda reduzida. Várias oportunidades de melhoria foram também apontadas pelos participantes.

3.2 O CASO DA PEQUENA EMPRESA DE MANUTENÇÃO EM POSTOS DE GASOLINA

Em 2004 fui procurada por uma empresária bastante sensibilizada para a questão da sustentabilidade e descontente com o comporta-mento de seus empregados. Sua empresa de pequeno porte atuava na área de manutenção de postos de gasolina e ela desejava iniciar um processo de melhoria e conscientização ambiental na condu-ção dos serviços e da apresentação dos empregados. As principais demandas trazidas pela proprietária da empresa eram: a) Conscien-tização em relação ao negócio da empresa no contexto da questão ambiental local e global; b) Como fazer com que seus empregados fossem mais organizados e zelosos, tivessem melhor apresentação?

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A organização e o zelo implicavam desde o cuidado com a limpeza do veículo, o bom estado e a organização das ferramentas até o cuidado com a aparência. A partir do briefing nasceu um pequeno programa baseado em três pilares: Ecologia Pessoal, Valores Hu-manos e Protocolo de Quioto. A ecologia integral é o referencial básico trabalhado pela ONG Centro de Ecologia Integral, em Belo Horizonte, na qual são sintetizados princípios trabalhados pela Uni-versidade da Paz. O conceito reúne as dimensões da ecologia pes-soal, social e ambiental. Esse conceito, entrelaçado com a Educação em Valores (O’DONNEL, 1994), quando apresentado à empresária, despertou profundo interesse, pois era um norte para as mudanças comportamentais que ela gostaria de ver em sua organização. Du-rante o trabalho foram apresentadas e debatidas as relações entre Educação Ambiental, qualidade de vida e questões ambientais glo-bais com ênfase nas Questões Climáticas e no Protocolo de Quioto. Foi feita a contextualização do negócio da empresa dentro do cená-rio ambiental global. Após essa fase, partiu-se para o trabalho com três perguntas norteadoras: O que me deixa estressado?; O que me deixa relaxado? e O que é possível programar? Esta última referia-se às atividades que os funcionários desempenhavam ao longo do dia. Eram perguntas diretamente relacionadas à geração de valor para o empregado. Comentarei a seguir as respostas referentes à primeira pergunta e suas implicações, conforme estão descritas na Tabela 2. As perguntas foram respondidas individualmente para depois se-rem socializadas. Os participantes foram solicitados a propor solu-ções para cada tópico considerado como gerador de estresse e as opiniões foram sintetizadas e socializadas. Todos participaram das atividades, à exceção da telefonista e de um técnico que precisou fazer um atendimento de emergência. Todos os atendimentos dos técnicos aos clientes foram programados respeitando a capacitação. Esta é uma prática extremamente rara e muito difícil de fazer, pois implica comprometimento absoluto do dono da empresa e, claro, depende do tipo de atividade que a empresa executa. Nesse caso, nós consultores devemos saber lidar e nos posicionar entre o que é ideal e o que é possível a partir da realidade apresentada.

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Tabela 2Alguns problemas e soluções apontados pelos funcionários da empresa

O que me deixa estressado(a)? Solução apontada

Reclamação por falta de atendimento quando ocorre na verdade um atraso

Rever o porquê do atraso: o funcionário está com excesso de serviço? O carro está desgastado? As condições da estrada impedem atender no tempo combinado?

Ter que voltar no meio do caminho para atender outro chamado

Revisão da área de atendimento: as áreas estão muito grandes?

Carro mal revisado Substituir a frota; o técnico tem que tomar conta do carro da mesma forma que o dono do posto deve tomar conta da bomba de gasolina; rever seguro do carro; programar revisão preventiva; ter carro reserva; melhorar a segurança do carro.

Falta de cooperação entre os técnicos. Alguns sempre estão disponíveis para ajudar os colegas que estão apertados, mas nem sempre os mesmos colegas ajudados estão disponíveis para ajudar outros.

Conscientização e cooperação entre os técnicos.

As soluções apontadas levaram a três dimensões de questionamento e soluções:

a) Postura da empresa – a empresária e a pessoa encarregada de divisão de tarefas deveriam rever a distribuição dos atendimentos no estado, evitando ao máximo que o funcionário, estando perto de Belo Horizonte, precisasse voltar à outra cidade para fazer um novo atendi-mento. Também ficou clara a necessidade de treinamento dos técni-cos e a substituição de alguns carros da frota.

b) Postura dos técnicos – durante as discussões sobre os atrasos do atendimento, foi levantada a necessidade de alguns colegas de tra-balho melhorarem sua performance, pois eram considerados muito

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lentos no atendimento dos chamados, causando atrasos sucessivos e gerando estresse a si e a outros. Também foi frisada a necessidade de cooperação entre todos. Outra necessidade evidenciada foi a de me-lhorar o cuidado dos técnicos com seus veículos de trabalho. Houve um debate sobre a influência da educação dos homens, particular-mente em Minas Gerais, em relação à cultura da limpeza e do cuidado tanto com suas roupas, com a higiene pessoal, quanto com o espaço de trabalho. Historicamente, tais tarefas sempre foram atribuídas às mulheres. Em pleno século XXI é necessário que homens e mulheres avancem sobre tal condicionamento cultural.

O cuidado é uma necessidade fundamental tanto para o bom de-sempenho junto ao cliente quanto para a autoestima. Houve uma discussão em torno de comunicação não verbal: que mensagem um carro organizado e um técnico de manutenção bem apresentado pas-sava aos donos de postos de gasolina? O cuidado com os veículos de trabalho era de responsabilidade dos técnicos e implicava limpeza, organização e disposição das ferramentas e correta manutenção do veículo. Não adiantava a empresa mudar a frota se o carro não tinha uma manutenção adequada. A manutenção dos carros é, sobretudo, um exercício da coerência com o negócio da empresa: manutenção de postos de gasolina. Não é aceitável que uma empresa de manu-tenção não seja capaz de manter seus veículos em estado satisfatório. Outro ponto fundamental é que um veículo sem manutenção adequa-da consome mais gasolina, pode causar acidentes, causando impactos negativos no ambiente. O cuidado com o carro era uma oportunidade de praticar a Ecologia Integral agindo local e pensando globalmen-te. Para essas discussões, a participação das três únicas mulheres da empresa foi fundamental. Tais discussões também foram conduzidas parcialmente na ausência proposital da empresária para que o público interno tivesse mais liberdade de expor sua ideias. c) Dimensão da cidadania – parte do problema no atendimento aos clientes no prazo estava relacionado às condições das estradas no estado. Esse ponto le-vou às discussões sobre a condição das estradas estaduais e nacionais, o uso dos impostos recolhidos e, em última instância, sobre a questão do voto consciente.

Durante os debates brotaram perguntas importantes para o pla-nejamento dos serviços e da filosofia de atendimento da empresa:

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a) Podemos mudar o prazo de atendimento? b) Podemos criar critérios para os prazos? c) É vantagem dar o número do celular do técnico para o dono do posto? Essa pergunta estava relacionada à queixa de que alguns clientes ligavam exageradamente para os técnicos, sem neces-sidade. E, por último, uma questão que considero mais profunda no trabalho: d) Quais são os critérios usados para atender as chamadas de urgências?

Considero essa pergunta especial porque fez com que a empresa pudesse pesar entre a questão econômica e a questão ecológica e humana envolvida nos critérios. Até aquele momento, os critérios usados para a definição de urgências eram: postos com vazamentos, clientes com riscos de acidentes, clientes chamados preferenciais por venderem mais e clientes que tinham apenas uma bomba e ela estava quebrada. Quando chegou nesse ponto, fiz outra pergunta: e) Consi-derando a questão do estresse de vocês, quais são os critérios justos? As respostas foram por unanimidade: vazamentos, riscos de aciden-tes e quando o cliente tiver uma bomba só e ela quebrar. A pressão exercida sobre a empresa tanto por si mesma quanto pelos clientes considerados preferenciais era muito grande. Ela precisava repensar a sua relação com alguns clientes para melhorar sua performance com outros. Precisava também reduzir sua própria carga de estresse. Todo o corpo técnico chegou a essa reflexão.

As soluções propostas e as perguntas levantadas ao longo do traba-lho apontaram para a necessidade de reflexão e de discussão inter-nas, de revisão do cálculo dos custos operacionais dos atendimentos, de revisão dos termos dos contratos estabelecidos assim como de um possível levantamento e adoção de padrões operacionais que possibilitem melhor gerenciamento do negócio. Devido à demanda de trabalho da empresa e em parte a demandas pessoais da própria empresária, as últimas horas do curso não puderam ser executadas. Parte das soluções foi implantada e, posteriormente, a empresária resolveu fazer um mestrado na área de combustíveis para aprimorar o seu negócio e melhorar o desempenho ambiental e a sua contri-buição social.

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3.3 EVITANDO O GREENWASH

As empresas vêm sendo pressionadas a mudar sua estrutura, o uso dos próprios recursos e dos recursos naturais, seus processos internos e sua cultura para incorporar a variável da responsabilidade socioam-biental. Nesse sentido, merece destaque o trabalho do Instituto Ethos de Responsabilidade Social, dirigido por Oded Grajew, que vem sis-tematicamente chamando as empresas à sua responsabilidade desde o acionista até a comunidade. Infelizmente são muito poucas as arti-culações entre os setores de Responsabilidade Social e os Programas Ambientais. Estreitar essa relação é estratégico e facilitar esse processo é uma tarefa potencial de profissionais que trabalham com Educação para a Sustentabilidade. Geralmente a empresa atua com esses dois setores de forma distinta e, o que é pior, muitas vezes na moda da Responsabilidade Social a empresa desperdiça dinheiro com inves-timentos discutíveis na área social, apenas por marketing. Arrisca sua própria marca nas armadilhas de um Greenwash (lustro verde). Por várias vezes em eventos nacionais Oded Grajew já chamou a atenção para os belos e caros relatórios de balanço socioambiental apresenta-dos para ninguém ler. O dinheiro empregado em ações embasadas em pesquisas, como estudos de percepção ambiental, pode trazer muito mais retorno para a empresa do que tais relatórios ou outras peças pu-blicitárias. Estamos na era da reputação. E reputação, ao contrário da imagem, não pode ser comprada. Não basta parecer que investe em sustentabilidade, é preciso efetivamente investir e mostrar nas diversas ações dentro e fora da empresa.

O início do século XXI vem acompanhado de iniciativas que buscam humanizar as empresas e avançar sobre a cultura do comando e controle. Uma dessas iniciativas para a transformação da cultura reativa em cultura proativa é, além do investimento na implantação de programas ambien-tais voltados para o público interno, investir em programas de desen-volvimento de fornecedores e na própria educação dos consumidores. O desenvolvimento da cultura ambiental do mercado consumidor e da rede de fornecedores assegura a evolução da própria empresa. É o prin-cípio de coevolução expandido aplicado à cadeia produtiva e ao país.

Embora a educação seja obrigação do Estado, as empresas brasi-leiras pagam muito caro por não terem pessoas com um bom nível

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educacional. As organizações que quiserem sobreviver e avançar não podem apenas esperar que o Estado cumpra a sua função. Di-ficilmente uma empresa poderá ter uma perspectiva de futuro prós-pero usando máquinas e tecnologias do século XXI operadas por pessoas que pensam e agem com “cabeça do século XVII”. Devem, estrategicamente, investir na educação do próprio público interno e, numa perspectiva de cidadania empresarial, apoiar candidatos po-líticos que assumam e honrem compromissos com uma educação pública de qualidade.

4 EDUCAÇÃO PARA A SUSTENTABILIDADE, FORMAÇÃO DE LIDERANÇAS E GESTÃO DE PESSOAS

A Educação para a Sustentabilidade deve estar associada a outras áreas do conhecimento voltadas para a gestão de pessoas e formação de lideranças. A forma predominante de administrar empresas utiliza um estilo piramidal de liderança herdado de exércitos e monarquias. No topo está o presidente (general), seguido do vice-presidente (co-ronel), gerentes intermediários (capitães e tenentes), supervisores (sar-gentos) e finalmente os empregados (soldados, tropas). Hunter (2004) ainda acrescenta um sexto nível na pirâmide, no qual inclui o inimigo e, curiosamente, o cliente. Embora os clientes sejam a razão de existir de uma empresa, seus empregados trabalham para agradar principal-mente ao “patrão”, ao seu superior. A empresa, assim, deixa de servir às necessidades do outro para servir às vaidades administrativas, ao ego dos líderes. A empresa se organiza segundo uma forma de poder “de cima para baixo”. Os programas de Educação para a Sustentabi-lidade devem contribuir para a mudança do modelo militar para um paradigma do servir, buscando alcançar o nível de equilíbrio entre a alma, a mente e o corpo da organização. Ao inverter o modelo pira-midal surge o modelo do serviço. No triângulo invertido, o presidente serve ao vice, que serve aos gerentes intermediários, que servem aos supervisores, que servem aos empregados que, por sua vez, servem aos clientes. Assim como nos sistemas biológicos, cada nível organiza-cional cumpre sua função ecológica na organização, que serve à co-munidade. O líder deixa de ser aquele que comanda para ser aquele que serve. É alguém que identifica e satisfaz as necessidades legítimas

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– exigências físicas ou psicológicas para o bem-estar do ser humano – de seus liderados e remove barreiras para que possam servir/executar bem seus trabalho. De tal equilíbrio resulta um ciclo vital e positivo formado pela competitividade, pela rentabilidade e pela criativida-de, transformando empresas comuns nas chamadas empresas plenas (TRAJAN, 2001).

Outra importante contribuição para a atuação no ambiente em-presarial é dada pela Pedagogia Social, que busca o desenvolvimento consciente do indivíduo e das organizações pela compreensão da edu-cação humana e sua missão, e pelo reconhecimento, e consequente valorização, das diferenças e sua importância para o funcionamento saudável do chamado organismo social. A Pedagogia Social atua em grupos e organizações de todos os setores e tem como um de seus pilares o olhar para os grupos ou organizações como seres vivos. Busca promover o desenvolvimento do próprio grupo a partir do estudo das relações entre o desenvolvimento do grupo e o desenvolvimento dos próprios indivíduos que o compõem.

A Pedagogia Social foi desenvolvida pelo médico antroposófico Dr. Bernard Lievegoed, na Holanda, como uma das aplicações das ideias formuladas em 1919 pelo austríaco Rudolf Steiner sobre organização social e chegou ao Brasil por meio de Pedro Smith, acionista e diretor da Giroflex (indústria de cadeiras e móveis para escritórios). O ser hu-mano, na visão antroposófica, é constituído pelo corpo físico (órgãos), pelo corpo astral (corpo de desejos para uma vida de sensações) e Eu (essência espiritual, consciência).

A Pedagogia Social tem uma visão trimembrada do ser humano, ou seja, o organismo é estruturado por três formas: é neurossensorial, rít-mico e metabólico. No sistema neurossensorial está o pensar, no rítmi-co o sentir e no metabólico o querer. Essa visão trimembrada permeia todas as áreas do conhecimento antroposófico, tais como a medici-na antroposófica, a pedagogia Waldorf e a agricultura biodinâmica. Ela também trabalha com o conceito de Trimembração Social, para o qual, a sociedade se estrutura pela vida espiritual, com as vertentes educacional e cultural, pela vida jurídica, com as vertentes política e social, e pela vida econômica, com a produção, o consumo e a dis-tribuição. Esses três membros constitutivos da sociedade obedecem aos ideais: liberdade para a vida cultural e espiritual (nível do pensar);

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igualdade na vida jurídica (nível do sentir/das relações) e no Estado; e fraternidade na vida econômica (nível do querer/agir).

Outra contribuição é dada pelo conceito SER (Sensibilização/Que-rer, Educação/Saber e Realização/Fazer) desenvolvido por Raimundo Soares, diretor do Instituto Orior de Pesquisa em Desenvolvimento Humano e Organizacional, professor e pesquisador do Núcleo Petro-bras da Sustentabilidade, da Fundação Dom Cabral em Belo Horizonte, Minas Gerais. De acordo com o conceito SER, uma liderança mais adequada para alavancar o processo de tomada de consciência nas organizações precisa estar orientada para quatro dimensões do conhe-cimento: de si, das pessoas, da tarefa e do mundo. Na dimensão da Sensibilização/Querer está a missão e o propósito da empresa, assim como seus valores. Na dimensão da Educação/Saber, encontram-se o conhecimento das pessoas, o tecnológico, da tecnologia gerencial e o holístico. Na dimensão da Realização/Fazer encontram-se a organiza-ção e os diversos sistemas da empresa (marketing, desenvolvimento de produtos, produção, recursos humanos e financeiros). Esse concei-to é semelhante à visão trimembrada utilizada pela Pedagogia Social. Somada a todo esse referencial teórico específico encontra-se a gran-de influência dos trabalhos do físico Frijof Capra (1995; 1996; 2002) que contribuíram significativamente para um ecodesign de sistemas produtivos a partir da compreensão dos princípios de alfabetização ecológica (MUNHOZ, 2004).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo é uma primeira tentativa de organizar minhas experiências e aprendizagens sobre a temática da Educação Ambiental em Empresas, assunto que vem gradativamente chamando a atenção no cenário nacio-nal. A Educação para a Sustentabilidade pode contribuir para os negócios da empresa, ajudando na formação de seus profissionais, no aumento da visibilidade e no bom posicionamento da marca perante o competitivo mercado global, no controle de desperdício e no aumento de produti-vidade. É o tipo de trabalho interno que, quando bem fundamentado e desenvolvido, constitui um meio de aprimorar a relação tradicional entre capital e trabalho, transformando a empresa em uma organização mais humana, mais coerente com sua razão social de existência.

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A Conferência de Tbilisi define a Educação Ambiental como um processo permanente, no qual indivíduos tornam-se conscientes do seu ambiente e adquirem conhecimento, valores, habilidades, expe-riências e determinação para agir individual e coletivamente, prevenin-do e resolvendo problemas presentes e futuros. Manter os processos permanentes é um desafio que as empresas ainda precisam vencer. Ao contrário de ações isoladas, como comemoração do dia da árvore, semana do meio ambiente etc., uma empresa que realmente incor-pore a Educação para a Sustentabilidade em sua gestão deve ter um programa estruturado no tempo e no espaço, com base em estudos de percepção ambiental de seu público interno, dotação orçamentária específica e profissionais capacitados para a sua realização e condu-ção. A incorporação da Educação para a Sustentabilidade como um programa contínuo será mais rápida quanto mais rápido o mercado das empresas internalizar a sustentabilidade como um valor. Um dos maiores benefícios que um bom programa ambiental voltado para o público interno proporciona é evitar o chamado “efeito soluço”, também chamado “vaga-lume”, do Sistema de Gestão Ambiental. A empresa que adota um bom programa de Educação para a Sustentabi-lidade evita o desgaste e o estresse das equipes de trabalho e mantém o comportamento de empregados o mais alinhado possível com sua política ambiental.

No sistema de gestão convencional, a Educação Ambiental e a Educa-ção para a Sustentabilidade são tidas como custo mas, à medida que os conceitos de sustentabilidade e de responsabilidade social vão entrando na cultura e na práxis das empresas, passam a ser compreendidas como benefício. A empresa passa a adotar uma postura mais proativa. A cria-ção de termos de referência para Educação Ambiental nos processos de licenciamento ambiental configura-se como uma tendência no cenário nacional. É necessário definir com urgência os critérios de qualidade, as formas de avaliação e os indicadores para os trabalhos de prestadores de serviços e projetos. O diversificado mundo da iniciativa privada tem necessidades, culturas e dinâmicas próprias que precisam ser estudadas, compreendidas e respeitadas pelos profissionais que nela desejam atuar. A solução dos problemas e a complexidade do ambiente organizacional apontam para a necessidade de uma abordagem sistêmica e para a for-mação de profissionais com visão empresarial.

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O desafio da Educação para a Sustentabilidade para empresas é, sem perder o foco do negócio, provocar mudanças de comportamento a partir do desenvolvimento da consciência e da liberdade dos indiví- duos associadas à implementação de oportunidades para a expressão de um comportamento saudável. Ao aumentar a capacidade de reco-nhecimento do ser humano nas diferentes esferas de poder organiza-cional, esse tipo de educação busca simultaneamente não só contribuir para a alfabetização ecológica (CAPRA, 2002), para a humanização das empresas, para a autonomia dos indivíduos e conscientização dos riscos como também para a aplicação dos princípios ecológicos no planejamento das ações e no desenvolvimento de produtos e serviços (Ecodesign). Sendo a Educação para a Sustentabilidade um processo, a mudança cultural necessária para sair do comportamento reativo para proativo também o é. A consciência e a liberdade de escolha em respeito à vida proporciona a ressignificação das relações entre a em-presa/ambiente interno, as partes interessadas e o capital. A empresa enquanto organização humana pode ser um espaço de aprendizagem do equilíbrio entre o Ser-cuidado e o Ser-trabalho (BOFF, 1999).

Programas educativos destinados ao público interno de empresas ainda são incipientes. Embora a Confederação Nacional da Indústria tenha publicado importantes documentos sobre a relação das indús-trias com o ambiente e entenda que as indústrias têm sério papel a de-sempenhar pela responsabilidade socioambiental para minimizar seu impacto negativo ao ambiente, ela mesma não reconhece a relevância da Educação para a Sustentabilidade. Como empresários e engenhei-ros gostam de dizer: não há como fazer uma omelete sem quebrar os ovos. Não há como uma empresa tornar-se social e ambientalmente responsável sem passar por um processo profundo de Educação para a Sustentabilidade nem sem transformar radicalmente sua forma de produzir. Não é possível ser parcialmente sustentável. É impossível ser sustentável sozinho.

Bem-vindo à era da cooperação.

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REFERÊNCIAS

BOFF, L. Saber cuidar: ética do humano: compaixão pela terra. Petrópolis: Vozes, 1999.

CAPRA, F. As conexões ocultas: ciência para uma vida sustentável. São Paulo: Cultrix, 2002.

CAPRA, F. O ponto de mutação. São Paulo: Cultrix, 1995.

CAPRA, F. A teia da vida: uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. São Paulo: Cultrix, 1996.

HUNTER, J. C. O monge e o executivo: uma história sobre a essência da liderança. 14. ed. Rio de Janeiro: Sextante, 2004.

MOGGI, J. Gestão viva!: a célula como modelo de organização. São Paulo: Gente, 2001.

MUNHOZ, D. Alfabetização ecológica: das pessoas às cadeias produtivas. In: LAYRARGUES P. P., (Coord.). Identidades da educação ambiental brasileira. Brasília: Ministério do Meio Ambiente, 2004. p. 141-155.

O’DONNEL, K. Raízes da transformação: a qualidade individual como base para a qualidade total. 2. ed. Salvador: Casa da Qualidade, 1994.

PENTEADO, H. Ecoeconomia: uma nova abordagem. São Paulo: Lazuli Ed., 2005.

TRAJAN, R. A. A empresa de corpo, mente e alma. São Paulo: Gente, 2001.

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FAGULHAS DO AUTORITARISMO NO FUTEBOL: EMBATES SOBRE O ESTILO DE JOGO BRASILEIRO EM TEMPOS DE DITADURA MILITAR (1966-1970)Euclides de Freitas Couto

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O artigo analisa as representações da seleção brasileira de futebol, construídas pela imprensa esportiva no período subsequente à Copa do Mundo de 1966, disputada na Inglaterra até o final da Copa do Mundo de 1970, realizada no México. Nesse intervalo entre as duas Copas, é possível constatar o desdobra-mento de um amplo debate sobre o futebol brasileiro, cujo enfoque central recaía sobre o estilo de jogo da seleção nacional. Se por um lado a grande imprensa, influenciada pelo discurso militar, incorporou ao métier futebolístico brasileiro elementos como a ordem, a disciplina e a preparação física, por ou-tro, os arautos do futebol-arte, cujo representante mais expressivo era Nelson Rodrigues, saíram em defesa do individualismo, da plasticidade e da capacida-de de improviso, componentes basilares da tradição futebolística brasileira. As análises de reportagens e crônicas extraídas de periódicos que circulavam na época indicam que o futebol brasileiro se tornou uma arena onde se dramati-zam as lutas simbólicas que se travam na sociedade. Palavras-chave: seleção brasileira de futebol; cultura; política; autoritarismo

The article analyzes the reports on the Brazilian Soccer team produced by the Sportive press subsequent to the 1966 World Cup held in England and up until the end of the 1970 World Cup, in Mexico. In the interval between the two World Cups it is possible to note the split in a big debate about Brazilian soccer, in which the central focus was the style of play of the national team. If, on the one hand, the biggest part of the press, influenced by the military discourse, added to Brazilian soccer ‘métier’ elements such as order, discipline and fitness, on the other hand, the heralds of the art of soccer, of whom the most expressive representative was Nelson Rodrigues, came out in defense of individualism, plasticity and ability to improvise, basic components of Brazilian soccer tra-dition. The analyses of reports and chronicles extracted from newspapers that circulated at that time indicate that Brazilian soccer became an arena where the symbolic struggles that are a bar on society are dramatized.Keywords: Brazilian soccer team; culture; politics; authoritarianism

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INTRODUÇÃO

É bastante difundida entre os estudiosos da história do futebol, como Linhales (1996) e Franco Júnior (2007), a constatação de que a con-quista da Copa do Mundo de 1970, realizada no México, foi resultado de um somatório de esforços iniciado no governo Costa e Silva e con-cluído pelo general Emílio Garrastazu Médici. Segundo essa interpreta-ção, os militares – vislumbrando a possibilidade de associar a imagem da seleção brasileira ao seu aparato propagandístico e reconhecendo que o sucesso no México poderia ser utilizado em prol da legitimação política do governo, promovendo sua imagem especialmente entre as grandes massas – colocaram em prática um sofisticado planejamento cujo objetivo era propiciar as melhores condições técnicas, administra-tivas e organizacionais para os trabalhos dos profissionais que dirigiam o selecionado brasileiro. Outros estudos, de cunho jornalístico, atri-buem o sucesso das “feras do Zagallo” às potencialidades individuais dos jogadores, que pertenceriam à mais brilhante geração de futebo-listas brasileiros, coroada nos gramados mexicanos com exibições da mais refinada versão do “futebol-arte”. O seleto grupo dispensaria, por-tanto, esquemas táticos, técnicos e preparação física: ganharia a Copa de qualquer forma; afinal, “jogava por música”. Menos preocupado com as razões da conquista, há também o minucioso trabalho realiza-do pelo historiador Carlos Fico (1997) que, ao investigar a construção do otimismo pela propaganda militar, sugere que a vitoriosa campanha brasileira em 1970, bem como os jogadores que dela participaram, ser-viram, de fato, como elementos centrais para a produção de diversas peças publicitárias veiculadas pelos governos militares.

Em se tratando de uma investigação histórica, todas essas aborda-gens são bastante úteis, posto que nos indicam alguns caminhos a percorrer, evidenciando não apenas os bastidores do futebol brasileiro no período em questão, mas também as ações desencadeadas pe-los militares no sentido de obter o controle político-administrativo do esporte e se apropriar do espaço simbólico promovido pelo futebol, transformando-o, especialmente no início da década de 1970, em um dos elementos mais expressivos da propaganda oficial (FICO, 1997).

Lançando mão de uma gama variada de metáforas, Nelson Rodrigues imputava ao espaço simbólico construído pelo futebol o local privile-

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giado para a compreensão dos sentidos da identidade nacional brasi-leira. Com efeito, por meio das incursões nas crônicas rodri gueanas é possível notar como o futebol, à medida que se popularizou, assumiu novos significados, tornando-se um fenômeno abrangente capaz de desvelar os conflitos, os interesses, os sentimentos e as lutas simbóli-cas1 travadas no mundo social.

No sentido de ampliar as possibilidades de entendimento do debate, simultaneamente à escolha do recorte temporal e do objeto de estudo, abriram-se algumas possibilidades de acesso aos vestígios, pistas e “si-nais” encontrados nos discursos dos intelectuais e jornalistas. Ao acom-panhar os elementos norteadores da pesquisa histórica reivindicados desde a Escola dos Annales2, abdicamos de quaisquer ortodoxias ou tentativas de hierarquizações em relação às fontes. Inicialmente, procu-ramos esmiuçar, captar e investigar as representações da imprensa acer-ca das questões culturais e políticas que envolviam o futebol brasileiro.

Para as pretensões deste estudo, não cabe neste espaço textual reali-zar um balanço pormenorizado de todas as implicações teórico-meto-dológicas e transformações epistemológicas decorrentes do processo de renovação da história, mas apenas compreender a importância delas. Tais mudanças tornaram o terreno da pesquisa histórica mais espinhoso e cercado de armadilhas. Ao nos depararmos com os periódicos, por exemplo, fez-se necessário um exame criterioso que implicou a realiza-ção de procedimentos metodológicos como a crítica interna e externa dos documentos3.

A pesquisa sobre as representações construídas pela imprensa em torno do futebol se iniciou pela busca de relatos sobre o período que antecedeu a Copa do Mundo de 1966, a partir do mês de abril de

1 De acordo com a formulação do sociólogo francês Pierre Bourdieu (1990, p.161-162), no âmbito objetivo, as lutas simbólicas são deflagradas pelas re-presentações individuais ou coletivas que procuram concretizar de modo vi-sual ou oral determinadas realidades circunscritas ao espaço social. 2 Sobre a questão da abertura e ampliação do campo das fontes históricas, consultar a abordagem clássica construída pelo historiador francês Lucien Febvre (1977). 3 Detalhes sobre esses procedimentos podem ser encontrados no manual ela-borado pelo historiador Jean Glénisson (1977), especialmente no capítulo IV, intitulado “A crítica dos testemunhos”.

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1966, e o mês de agosto de 1970, período que sucedeu a Copa do Mundo de 1970. O trabalho de levantamento das fontes teve início na Hemeroteca Pública do Estado de Minas Gerais e na Hemeroteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, ambas localizadas na cidade de Belo Horizonte. Na primeira foram encontrados os jor-nais Diário de Minas e Estado de Minas, além da revista Manchete. Na segunda, encontramos os jornais Correio da Manhã e O Globo.

O trabalho de levantamento dos periódicos teve sequência na ci-dade do Rio de Janeiro, mais precisamente no setor de periódicos da Biblioteca Nacional, onde encontramos um acervo bem conservado contendo a coleção completa do Jornal dos Sports que circulou entre os anos de 1931 e 1994. Esse acervo foi de fundamental importância para nossas pretensões analíticas, pois nele encontramos a maior parte das crônicas escritas por Nelson Rodrigues no período compreendido entre 1966 e 19704. Na Biblioteca Nacional, tivemos acesso também aos exemplares de O Globo e à revista Placar.

1 OS MILITARES ENTRAM EM CAMPO

Em dezembro de 1968, em audiência realizada no Palácio do Planalto – quando recebeu o então presidente da Confederação Brasileira de Desportos (CBD), João Havelange, o diretor da entidade, brigadeiro Jerônimo Bastos, e alguns deputados – o presidente Costa e Silva foi enfático:

O Brasil não pode perder a Copa de 1970. Temos que ganhá-la através da disciplina, de muito treinamento, hierarquia e patriotismo. (...) Temos que ter humildade. O jogador não pode perder-se pelo personalismo, como é o caso do Jairzinho, um jogador formidável, mas como ele dribla, meu Deus. Precisamos nos disciplinar para o jogo coletivo em benefício da seleção, como fazem os ingleses e alemães (Jornal dos Sports, 4 dez. 1968, p. 3).

4 A pesquisa abarcou todas as edições disponíveis do Jornal dos Sports no setor de microfilmagem da Biblioteca Nacional entre os anos de 1966 e 1970. A sequência analisada dos demais periódicos obedece aos períodos anuais conforme consta nas referências deste artigo.

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Além de demonstrar a importância adquirida pelo futebol, as pala-vras do presidente da República revelam também o novo paradigma político que se instaurava naquele período: o rígido controle da so-ciedade, que se distendia no disciplinamento das mentes e dos cor-pos, deveria abarcar igualmente o futebol (FLORENZANO, 1998, p. 13-14). Os jogadores incumbidos de representar a pátria deveriam assumir um novo papel social: o de soldado-jogador, disciplinado e militarizado, portanto obediente às ordens dos seus superiores. De re-pente, as credenciais referendadas apenas seis anos antes com a con-quista do bicampeonato no Chile – o futebol-arte e o individualismo; as características “sobrenaturais” atribuídas aos brasileiros – tornaram- se obsoletas. Com efeito, o fracasso da seleção na Copa da Inglaterra deixara brechas para que os militares, assim como os jornalistas, lan-çassem suas críticas contra a organização, os métodos de treinamento e o estilo de jogo brasileiro (Diário de Minas, 20 jul. 1966, p. 13).

Nessa mesma audiência, o presidente Costa e Silva, diante dos ape-los de João Havelange sobre a necessidade de investimentos financei-ros na preparação da seleção brasileira, mostrou-se “muito solícito”, afirmando que não pouparia esforços para ajudar o futebol brasileiro; e, como uma das primeiras medidas, incumbiu o dirigente de presidir o grupo de trabalho que iria redigir o novo projeto da Loteria Espor-tiva. De forma descontraída, o general afirmou que a loteria “daria tanto dinheiro ao futebol que, posteriormente, o próprio presidente da República iria à CBD para tomar empréstimos”. Com o intuito de estabelecer um controle ainda maior sobre a equipe, Costa e Silva também sugeriu a formação de uma Seleção Brasileira permanente, que seria custeada com os recursos advindos da Loteria Esportiva. A proposta consistia em formar uma espécie de time oficial do governo que excursionaria para disputar jogos promocionais durante todo o calendário esportivo do país. Entretanto, a ideia foi descartada imedia-tamente por João Havelange. Após o dirigente levantar uma série de argumentos desfavoráveis sobre a criação da “seleção permanente”, o presidente saiu convencido da inviabilidade de tal empresa (Jornal dos Sports, 4 dez. 1968, p. 3).

A preocupação do marechal Costa e Silva com o futuro do futebol no Brasil, sobretudo com a preparação da seleção brasileira para a Copa do México, não era um ato isolado de mais um presidente apai-

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xonado pelo jogo da bola. O futebol, assim como outros esportes, constituía-se naquele momento como um dos setores estratégicos do Estado. Mauro Betti (1991, p. 100) lembra que, a partir de 1968, os governos militares elevaram os esportes à “razão de Estado”, inserin-do-o, juntamente com a Educação Física, na planificação estratégica do governo. Assim, as políticas educacionais e esportivas deveriam adequar-se ao modelo econômico definido no Plano Decenal de De-senvolvimento Econômico (IANNI, 1977, p. 226). O estudo das legis-lações que vigoraram especialmente após o ano de 1968 indica que a Educação Física escolar passou a ser considerada prioridade para os governos militares. No bojo dos acontecimentos pós-AI-5, a chamada linha dura do governo recorreu a diversas estratégias que visavam ao controle político da população. Além de tornar obrigatória a Educa-ção Física em todos os níveis de ensino, o decreto nº 69.450, de 1º de novembro de 1971, recomendava a iniciação esportiva a partir da 5ª série do 1º grau (hoje 6º ano do Fundamental), estabelecia três au-las semanais para o Ensino Médio e ainda fixava os seguintes objetivos para a prática da Educação Física Escolar:

Consolidação de hábitos higiênicos; desenvolvimento corporal e men-tal harmônico; melhoria de aptidão física; despertar do espírito comu-nitário; despertar a criatividade; despertar do senso moral e cívico; emprego útil do tempo de lazer; perfeita sociabilidade; conservação da saúde; fortalecimento da vontade; aquisição de novas habilidades; estímulos às tendências de liderança e implantação de hábitos sadios (BRASIL, Presidência da República, decreto de lei nº 69.450, 1 nov. 1971, apud BETTI, 1991, p. 104).

A análise contextualizada do documento permite perceber que o uso da Educação Física como meio de promoção de atividades espor-tivas confiava à escola a função de oferecer atividades que ocupas-sem o tempo livre dos alunos. Além de fomentar a vocação esportiva nos jovens brasileiros, caberia à Educação Física desenvolver princí-pios como a hierarquia e a disciplina, e promover a “implantação de hábitos sadios”. Mauro Betti (1991, p. 106) acredita que, com essas medidas, a Educação Física escolar assumiu um novo status, já que ao esporte foi atribuída a dupla função da formação moral e esportiva.

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Segundo ele, sob o prisma da aptidão física e da projeção nacional via esporte de alto rendimento, a incorporação do conteúdo esportivo no ensino do 1º e 2º graus (hoje Fundamental e Médio) visava à forma-ção de novos talentos que seriam direcionados para as representações olímpicas e para o futebol.

A tentativa de “enquadrar” o esporte não se restringiu à esfera edu-cacional: a partir da promulgação da emenda constitucional no 1, de 17 de outubro de 1969, tornou-se competência da União legislar so-bre as normas relativas ao desporto. Após realizar o Diagnóstico da Educação Física e Desportos no Brasil, o governo Costa e Silva insti-tucionalizou a Política Nacional de Educação Física e Desportos com a criação do Departamento de Educação Física e Desporto (DED), órgão que passou a centralizar as ações do setor. No novo modelo tecnocrático, pautado no dirigismo absoluto, os militares passaram a controlar diretamente as ações político-administrativas no esporte, incorporando-o à lógica das relações políticas vigentes.

A ênfase no esporte de alto rendimento prevista pela nova políti-ca cumpria um duplo papel: além de objetivar a projeção nacional nas competições internacionais, o alto investimento na infraestrutura esportiva do país daria continuidade à lógica clientelística de redistri-buição de recursos, prática que contribuiu sobremaneira para a manu-tenção do poder pelo regime militar. Nessa mesma lógica, os cargos de chefia do Conselho Nacional do Desporto (CND) e da Confederação Brasileira de Desportos (CBD), entidades anteriormente influenciadas pelas ações clientelísticas das federações, passaram a ser ocupados pelo oficialato. Essa medida acabou rompendo com a hegemonia dos grandes clubes e, simultaneamente, reproduziu no espaço das rela-ções políticas que permeavam o futebol brasileiro o embate entre a Aliança Renovadora Nacional (Arena) e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB)5.

5 O almirante Heleno Nunes, além de presidir a CBD, tornara-se um dos lí-deres mais importantes da Arena. Suas ações na esfera esportiva respeitavam, sobretudo, suas prerrogativas partidárias e as diretrizes políticas definidas pela alta cúpula militar. Na condução da presidência da CBD, o almirante enfren-tou uma ferrenha oposição dos políticos e dirigentes ligados ao MDB (Correio da Manhã, 17 mar. 1970, p. 12).

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2 A FORMAÇÃO DO SOLDADO-JOGADOR

As mudanças anunciadas pela nova política esportiva rapidamente chegaram à seleção brasileira. Em 1969, para a formação da nova comissão técnica, foram recrutados profissionais formados em esco-las militares, como os preparadores físicos Admildo Chirol e Cláudio Coutinho. O projeto para a Copa do México incluía não somente a mudança dos nomes que coordenavam o futebol brasileiro, mas, principalmente, previa uma ruptura total com a mentalidade até en-tão vigente. Franco Júnior (2007, p. 142) avalia que a militarização da seleção brasileira teria sido uma resposta dada pela linha dura à desorganização e à ausência de uma preparação física adequada na Copa da Inglaterra, apontadas como razão do fracasso brasileiro na competição.

A nova comissão técnica formada pelos militares foi incumbida da missão de empregar na seleção brasileira os mais avançados métodos de treinamento físico e técnico, mesmo que para isso fosse necessá-rio dispor de grandes investimentos federais (Jornal dos Sports, 4 dez. 1968, p. 3). A condição física dos jogadores, apontada como o calca-nhar de Aquiles da equipe no Mundial anterior, tornou-se uma das principais preocupações da nova comissão. Não por acaso, Admildo Chirol, responsável pela preparação atlética, trouxe para a seleção um método revolucionário implantado com sucesso no Botafogo desde 1966. A metodologia consistia em treinamentos individualizados que seriam aplicados de acordo com as necessidades de cada jogador. Para colocar em prática o novo modelo, Chirol enumerou uma lista de exigências, dentre as quais solicitava à CBD a contratação de mais três preparadores físicos para auxiliá-lo; e também que a confederação destinasse um período de pelo menos três semanas para a aclimatação dos jogadores ao México, onde, segundo ele, a altitude poderia ofe-recer danos ao condicionamento físico dos atletas (Jornal dos Sports, 25 jun. 1970, p. 8).

Além do aperfeiçoamento da preparação física, a militarização da CBD visava, em um sentido mais amplo, o disciplinamento da seleção brasileira. O futebol, tido como o esporte mais representativo do povo brasileiro, também deveria traduzir nos gramados mexicanos os ideais

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formulados pela Doutrina de Segurança Nacional6. Ordem, disciplina, desenvolvimento e harmonia deveriam ser elementos incorporados ao comportamento e ao jogo da seleção de futebol. A imagem do joga-dor boêmio, desligado e fanfarrão, muito comum no início dos anos 1960, não combinava com o novo modelo requisitado pelos militares. Era preciso “transformar a mentalidade do jogador brasileiro”, dizia o presidente Costa e Silva em 1968.

É importante mencionar que tais transformações requisitadas pelos militares no comportamento do jogador de futebol não se iniciaram pela seleção brasileira. Logo após a eliminação do Brasil da Copa da Inglaterra, em 1966, desenvolveu-se um amplo debate sobre a neces-sidade de se incorporar novos métodos de treinamento às escolinhas dos clubes brasileiros. Entre os cronistas esportivos, técnicos de futebol e profissionais da Educação Física, ganhava unanimidade a ideia da implantação de um modelo conhecido como “preparação global”. O novo método aliava aos treinamentos técnicos e táticos a disciplina e a preparação psicológica, conteúdos que deveriam ser desenvolvidos por um profissional da área.

No entanto, a surpreendente contratação do jornalista João Saldanha7 para o posto de técnico da seleção brasileira de futebol – contra-tação a cargo do então presidente da CBD, João Havelange – veio na contramão dessa lógica. Além de manter estreitas ligações com o PCB, Saldanha era um dos combatentes mais engajados na luta contra a corrupção e contra as relações clientelísticas que envolviam a CBD e as federações estaduais de futebol. Durante a Copa de 1966, ele havia dirigido uma série de críticas à comissão técnica e ao próprio presidente João Havelange; por isso, a divulgação do seu nome como

6 Um dos itens da doutrina, conhecido como estratégia de ação indireta, vi-sava inserir a propaganda psicológica com o objetivo de controlar ideologica-mente as grandes massas. O futebol, especialmente no período da Copa do Mundo de 1970, tornou-se um dos símbolos mais requisitados pela Agência Especial de Relações Públicas (Aerp) para a promoção da imagem do governo. Sobre essa questão ver Fico (1997). 7 Saldanha dirigiu a seleção brasileira entre 4 de fevereiro de 1969 e 17 de março de 1970. Apesar da ótima campanha realizada nas eliminatórias para a Copa do México, foi substituído por Zagallo, técnico que comandou o sele-cionado brasileiro na Copa de 1970.

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o novo comandante do selecionado brasileiro surpreendeu grande parte da imprensa da época (Jornal dos Sports, 13 fev. 1969, p. 1). Na opinião do jornalista Luiz Mendes, a contratação de Saldanha não pas-sou de uma estratégia maquiavélica utilizada por Havelange. Como o dirigente almejava a presidência da Federação Internacional de Fute-bol (Fifa), as contínuas críticas proferidas por João Saldanha poderiam manchar sua imagem no plano internacional. Assim, trazer o inimigo para perto eliminaria seu poder de fogo (SIQUEIRA, 2007, p. 286).

3 ARTE X DISCIPLINA

Ao investigar o noticiário esportivo do período de quatro anos com-preendido entre as Copas do Mundo de 1966 e 1970, foi possível per-ceber consideráveis transformações no universo do futebol brasileiro. Visto por muitos como uma espécie de espaço sagrado onde, em uma abordagem straussiana, os ídolos carregavam consigo a síntese das qualidades profundas da população, o futebol parecia guardar cer-ta imunidade às transformações que ocorriam na esfera política. No entanto, a partir da eliminação precoce na Copa da Inglaterra, toda a organização administrativa, os sistemas de treinamento, os modelos táticos e até mesmo o estilo de jogo brasileiro foram colocados em xeque pelos militares. O futebol-arte, eleito pelos cronistas esportivos do início dos anos sessenta como a maior representação da identidade nacional, perdia espaço para novos paradigmas emergentes no ve-lho mundo: o planejamento, a preparação física e, principalmente, os inovadores padrões táticos implantados pelas seleções de Portugal, da Inglaterra e da Alemanha8. Expressões como “Para vencê-los teremos que imitá-los” e “É preciso mudar a mentalidade do jogador brasilei-ro” sinalizavam as mudanças que a parcela conservadora da imprensa desejava ver aplicadas ao futebol: somente uma radical transformação

8 Em entrevista publicada logo após a eliminação brasileira na Copa de 1966, João Havelange, presidente da CBD, “assumiu publicamente” a culpa pelo fracasso nos gramados ingleses. Segundo ele, a seleção brasileira não acom-panhou as mudanças ocorridas na preparação física e nos esquemas táticos, ambas promovidas pelas equipes europeias, sobretudo após o bicampeonato conquistado pelos canarinhos em 1962 (Manchete, 13 ago. 1968, p. 24a).

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na organização esportiva e, principalmente, na postura dos jogado-res faria com que o Brasil retomasse a hegemonia do futebol mun-dial conquistada nos anos anteriores. É interessante notar que este discurso, inicialmente disseminado pelos veículos de comunicação, logo ganhou coro no interior da caserna, como indicam as palavras do presidente Costa e Silva: “A evolução do futebol tem sido mais rápida do que a do próprio país. (...) Precisamos nos disciplinar para o jogo coletivo em benefício da seleção, como fazem os ingleses e alemães” (Jornal dos Sports, 4 dez. 1968, p. 3).

O discurso do chefe militar pode ser contextualizado no período em que, no interior da própria imprensa, se travava um caloroso debate acerca do futebol no Brasil. Após a eliminação dos canarinhos, ou seja, a partir do segundo semestre de 1966, começou entre os jorna-listas a caça às bruxas na seleção brasileira. Dezenas de reportagens e crônicas denunciavam a falta de organização, o excesso de jogadores convocados na fase de preparação e a indecisão da comissão técnica quanto à escalação do time titular. Entre os “condenados”, figuravam o técnico, Vicente Feola, o presidente da CBD, João Havelange, e até mesmo Pelé – o “Rei do futebol”, que também não foi poupado das acusações9. Como ocorrera na derrota de 1950, a perda do cetro na “terra da rainha” serviu para que novamente fosse colocada em xeque a qualidade do futebol brasileiro e apontados alguns vilões.

Em um segundo momento, ganhou destaque na imprensa a discus-são sobre o futuro da seleção e do próprio futebol brasileiro. A tônica do debate direcionou-se para temas como o estilo de jogo mais ade-quado, as metodologias de treinamento e, principalmente, sobre o tipo ideal do jogador de futebol. Nessas discussões era possível perceber duas posições distintas. De um lado, a maioria dos jornalistas, como Achilles Chirol, José Faria de Almeida entre outros, comprometida com os ideais do governo, assumia em suas crônicas o discurso disciplina-dor dos militares; palavras de ordem como disciplina, concentração,

9 Em declaração dada à imprensa, logo após a derrota para Portugal, Pelé di-zia-se desiludido com seu futuro na seleção brasileira. Segundo ele, os jorna-listas não compreendiam seus problemas de ordem física, exigindo que tivesse uma performance igual a de 1958. Assim, afirmava que pretendia abandonar a seleção e quiçá o futebol (Estado de Minas, 22 jul. 1966, 2ª seção, p. 1a).

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preparação física e obediência tática paulatinamente ganhavam legi-timidade no universo esportivo do país10. No outro extremo, algumas poucas vozes dissonantes, como a de Nelson Rodrigues, fortemente influenciada pela interpretação freyriana, defendiam a tese da superio-ridade do futebol-arte:

Amigos, leio uma entrevista do técnico alvinegro, Admildo Chirol, na qual ele condena “as estrelas solitárias do futebol atual”. Eu admiro os portadores de certezas definitivas, imutáveis. E o que se sente, nas palavras de Chirol, é que ele não faz a concessão de uma dúvida, de um “talvez”, de um “quem sabe?”. Não. Tudo, em Chirol, tem a ênfase na última palavra. Mas vejamos suas verdades. Diz ele que a Copa do Mundo de 66 veio trazer o “futebol brasileiro à realida-de”. Ao ouvir falar em “realidade”, poderíamos perguntar: – “Qual delas?” E, então, Chirol explica a “sua” realidade. Diz textualmente: “O personalismo não é mais concebido dentro de uma equipe, e sim o coletivismo.” Percebe-se que, ao falar assim, o simpático treinador vibra de certeza inapelável e eterna. Nada de estrelas, de homem-chave, de vedetismo. Todos iguais entre si como soldadinhos de chumbo (RODRIGUES, Nelson. “Utopia Fatal”. O Globo, 4 ago. 1966, s.p. grifo nosso).

Naquele contexto, a crônica de Nelson Rodrigues assumia feições de uma carta-resposta às recentes declarações do então técnico do Botafogo Admildo Chirol. O jornalista não admitia que o futebol-arte fosse tão facilmente superado pela disciplina tática e a pujança física introduzidas pelo coletivismo europeu. Na acepção do autor, retirar o individualismo do jogador de futebol brasileiro significava extrair sua alma, a essência de seu povo. Assim, como recorda Fátima Antunes, para o jornalista e escritor, “o universo do futebol se oferecia como palco ao desfile dos dilemas, das frustrações e dos dramas do homem brasileiro” (ANTUNES, 2004, p. 215). Nessa perspectiva, as improvi-

10 Subsidiando sua análise nos fundamentos da sociologia interpretativa, Simoni Guedes (1998, p. 45) argumenta que os jornalistas esportivos usam da sua credibilidade com o grande público para “transformar em realidade” determinadas ideologias e interpretações.

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sações, os dribles e a molecagem presentes nos gramados assumiam, nas crônicas rodrigueanas, a representação do caráter desse homem. Aproximadamente dois anos após a entrevista concedida ao Jornal dos Sports, Chirol se tornaria o responsável pela preparação física da sele-ção brasileira. Defensor ferrenho do futebol-força, ele implantaria mé-todos de treinamento inovadores; tanto que, após a Copa de 1970, o professor Chirol foi apontado por grande parte da imprensa como um dos maiores responsáveis pela conquista do tricampeonato mundial (Jornal dos Sports, 8 jul. 1970, p. 12).

No conturbado ano de 1968, em meio às grandes manifestações populares e à luta armada organizada pelos grupos dissidentes do Par-tido Comunista, a imprensa pregava uma mudança urgente na men-talidade do futebol brasileiro. A começar pela preparação física, todo o sistema de treinamento deveria se adequar aos padrões europeus. Em janeiro daquele ano, Aimoré Moreira, então treinador da seleção brasileira, anunciava para o próximo mês uma viagem de intercâmbio à Europa com o propósito de observar os modelos de treinamento físico e técnico:

O técnico trará da Europa livros, anotações e até filmes sobre a pre-paração física e, durante os 25 dias que estiver ausente do Brasil, fará um relatório circunstancioso para a CBD, já visando à Copa do Mundo do México. Muito importante é saber o que fizeram as seleções eu-ropeias para o próximo mundial. (...) O brasileiro criou uma imagem errada a respeito do seu poderio técnico. Vejam vocês: enquanto eles mandaram “olheiros” e mais “olheiros” para nos observar, nós fize-mos a mesma coisa. Muito pelo contrário. Tenho a impressão que o futebol brasileiro se considerava o maior do mundo, porque não dava bola para as observações dos adversários. Como resultado, eles assi-milaram o que tínhamos de melhor e nós estacionamos. Precisamos deixar de ser tão narcisistas... Para Aimoré, é necessário mudar-se a mentalidade do jogador brasileiro: – De um modo geral, os jogadores eram muito auto-suficientes. Os europeus sentiam-se inferiorizados na técnica e no poder de improvisação, e partiram para outros aspectos, esmerando-se mais no vigor físico (Jornal dos Sports, 11 jan. 1968, p.12, grifo nosso).

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Ao reconhecer os avanços do futebol europeu, o treinador da sele-ção requisitava não somente a mudança nos aspectos táticos e físicos do futebol brasileiro, mas uma completa transformação na mentali-dade, na postura e no comportamento do jogador de futebol. Utili-zando-se da autoridade de “treinador da seleção”, Aimoré procurava reduzir a importância atribuída ao craque e, por consequência, o pró-prio status do futebol-arte, por meio de adjetivações pejorativas. Na mesma reportagem, o treinador ainda conclamava a imprensa a se empenhar numa campanha em prol da preparação física:

– O que se tem de fazer – concluiu – é uma campanha com o auxílio da própria imprensa esportiva, no sentido de mostrar-se ao jogador brasileiro que só aumentando o índice físico pode melhorar. O próprio critério da CBD, revela isto: quando se convocar, entre um jogador bom tecnicamente outro, bom física e tecnicamente, preferiremos este último (Jornal dos Sports, 11 jan. 1968, p. 12).

As palavras do treinador são bastante reveladoras dos novos sentidos que iam sendo incorporados ao futebol. Se, para alguns, o sucesso do futebol brasileiro nas jornadas de 1958/62 continuava sendo um elogio do individualismo e da genialidade e motivo de orgulho da nação, a fala de Aimoré Moreira representava, por sua vez, o discurso oficial que reproduzia, de forma bastante fiel, o desejo dos militares. O futebol, apropriado definitivamente como um dos símbolos do país, deveria promover a exaltação dos valores disseminados pela caserna. Fundamentos como a ordem, a disciplina e o espírito coletivo deve-riam nortear não somente os treinamentos, mas se constituírem como elementos basilares do estilo de jogo e, principalmente, da conduta profissional e pessoal do jogador de futebol.

Não que essa fosse uma discussão restrita ao futebol. Naquele mo-mento, em diversos ramos de atividade, os meios de controle formais e informais impostos pelos militares forçavam a mudança de condu-ta de inúmeros profissionais. Principalmente nas atividades ligadas à cultura, à educação e à comunicação, a censura e o cerceamento das liberdades individuais modificavam substancialmente o trabalho de artistas, intelectuais, professores e jornalistas. No caso do futebol, grande parte da imprensa prestou um grande serviço ao governo, na

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medida em que procurou legitimar o discurso disciplinador proferido por treinadores, dirigentes e, muitas vezes, pelos próprios militares.

Obviamente, do mesmo modo que os entusiastas do futebol-força encontraram na imprensa um espaço privilegiado para difundir suas ideias, os poucos defensores do futebol-arte buscavam, por meio de suas crônicas, ampliar o debate sobre o melhor estilo de jogo para os brasileiros. Às vésperas da promulgação do AI-5, a publicação da crônica “Um debate sinistro”, escrita por Nelson Rodrigues, refletia as inquietações do jornalista com relação ao futuro da seleção nacional. Apesar de ser considerado pelos intelectuais de esquerda como rea-cionário e conservador, e de manter estreitos laços de amizade com membros da cúpula militar, Nelson Rodrigues refutava as tentativas de militarização do futebol brasileiro. Composta por nove tópicos, a crônica demonstra com clareza os rumos que tomava o debate futebo-lístico no Brasil, como podemos verificar neste fragmento:

Não sei se me entendem, mas tentarei explicar. O europeu faz um jogo de acordo com as suas virtudes e defeitos e, sobretudo, com seus defeitos. São duros de cintura, não sabem inventar, a sua fantasia é escassa ou nula, e a beleza não os interessa. Tiram partido, então, da sua saúde de vaca premiada. Daí as suas correrias furiosas, o ataque em massa e a defesa em massa. Bem alimentados há mil anos, um time europeu pode ir e vir os 90 minutos.

E, portanto, que devem fazer os brasileiros? Falta-nos a base física do inimigo. Dirá alguém que nosso profissional já tem o seu bom bife. Mas não se improvisa a saúde de um povo e repito: a saúde de um povo representa um trabalho de gerações. Se comemos bem há 15 dias, não adianta nada. Precisamos esperar mil anos de nutrição. E então, sim, já poderemos competir com a resistência animal dos europeus.

Por enquanto, temos que tirar partido das nossas características, isto é, das características que os outros não têm. Se os europeus jogam assim, por causa dos seus defeitos, nós jogaremos assado, por causa das nossas qualidades. Não temos o fôlego dos ingleses, ou alemães. Portanto, vamos apelar para a nossa imaginação, a nossa inventividade, a nossa originalidade e, até a nossa molecagem (RODRIGUES, Nelson. “Um debate sinistro”, Jornal dos Sports, 4 dez. 1968, p. 3, grifo nosso).

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Para além de se constituir apenas como uma simples crônica espor-tiva, as palavras de Nelson Rodrigues conseguem captar, no calor dos acontecimentos, as transformações paradigmáticas que entravam em curso no universo do futebol brasileiro. Em primeiro lugar, o jornalista percebe que os conhecimentos construídos pelo senso comum já não possuem a mesma legitimidade no interior do debate futebolístico. Se num passado recente o futebol era objeto de um debate democrático, no qual a validade dos argumentos não estava condicionada à espe-cialização do debatedor, naquele momento a introdução de modelos científicos de treinamento encontrava nos “especialistas” a credibili-dade necessária para sua disseminação. O discurso científico repro-duzido pelos representantes da imprensa conservadora apoiava-se principalmente nos últimos resultados conquistados pelos europeus na Copa da Inglaterra. A suposta superioridade europeia, credencia-da pelo sucesso do futebol-força, deveria servir, portanto, para que o todo o futebol brasileiro fosse repensado.

Em segundo lugar, a crônica rechaça a superioridade europeia, de-finida substancialmente pelos atributos físicos dos jogadores, a partir de argumentos que procuram, por um lado, evidenciar as limitações técnicas dos europeus e, por outro, exaltar a capacidade inventiva e o individualismo dos brasileiros. Ao argumentar que a genética pri-vilegiada dos europeus decorre de um processo nutricional que se desenvolveu ao longo de vários séculos, o jornalista procura desmi-tificar a ideia plantada pela imprensa de que os brasileiros poderiam adquirir tais atributos físicos se fossem submetidos aos modelos de treinamento europeus. Elencando elementos presentes no discurso da cultura da mestiçagem, Nelson Rodrigues insiste na tese de que as características sincréticas presentes no futebol brasileiro são determi-nantes para a nossa superioridade – fato que, segundo ele, pode ser comprovado pelos dados estatísticos extraídos das Copas do Mundo. Assim, ao postular a construção de um raciocínio lógico, o jornalista induz o leitor a acreditar que somente por meio do futebol-arte, do craque e das jogadas geniais poderíamos superar o futebol-força pra-ticado na Europa.

Por último, anunciando-se como um autêntico porta-voz do povo, Nelson Rodrigues lança a defesa do “autêntico futebol brasileiro”. Sua intenção consistia em, simultaneamente, invalidar a opinião da “maioria

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da imprensa” e legitimar os 80 milhões de brasileiros como os verdadei-ros sábios do futebol. Ao resgatar tais elementos, o jornalista ofereceu contrapontos recheados por um saudosismo de tonalidade extrema-mente nacionalista, os quais, naquela conjuntura, destoavam profunda-mente do discurso proferido pela maioria dos seus colegas de profissão.

Todavia, a implantação dos modelos europeus de treinamento logo se tornaria uma febre entre os técnicos brasileiros. No mês de janeiro de 1968, a manchete do Jornal dos Sports destacava: “Fla de método novo bota time para treinar peso” (Jornal dos Sports, 6 jan. 1968, p. 4). A matéria se referia a um “inovador” programa de treinamento muscular ministrado pelos preparadores físicos do rubro-negro cario-ca. A primazia atribuída ao treinamento físico alimentava as páginas esportivas de diversos jornais do país. O preparo físico, a disciplina e o espírito de equipe tornavam-se palavras de ordem que se encaixavam perfeitamente ao discurso e à mentalidade militar que era irradiada para todos os setores da sociedade, inclusive o futebol. Durante o período de preparação da seleção brasileira para a Copa do Mun-do do México, a tônica do discurso jornalístico exaltava princípios como racionalidade, competência, método e disciplina. A evolução do preparo físico dos jogadores da seleção era um dos pontos mais comemorados pela comissão técnica em matéria do Jornal dos Sports de abril de 1970 (“Rendimento deixa Admildo vibrando”, Jornal dos Sports, 10 abr. 1970, p. 3). Poucos dias depois, o mesmo periódico destacava em sua manchete: “Saúde é tema da Copa”. A matéria tra-zia anexos os depoimentos incisivos dos membros da comissão técni-ca brasileira – “Zagallo: título exige vigor; Coutinho: fracos não têm vez” – destacando a importância da preparação física para a Copa do México (Jornal dos Sports, 18 abr. 1970, p. 6). Às vésperas da estreia brasileira nos gramados mexicanos, foi a vez de a revista Placar estampar em sua capa uma manchete cujo tom pretendia tranquilizar a popu-lação acerca das condições de preparação dos jogadores: “México urgente: estamos com um supertime”. Ao contrário do que se possa inicialmente imaginar, a reportagem não se referia às virtudes extraor-dinárias de jogadores como Pelé, Tostão ou Rivelino, mas ao método de treinamento físico empregado pela comissão técnica, que visava, entre outros objetivos, superar os possíveis problemas de aclimatação à altitude mexicana:

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A influência da altitude na velocidade dos jogadores brasileiros é assunto bastante discutido no México. O período de superaclima-tação foi reduzido para três semanas, seguidas de apenas mais uma semana em Guadalajara. O medo geral é de que a parte final do trei-namento, que é exatamente a de velocidade, fique prejudicada por isso. O Capitão Cláudio Coutinho, preparador físico e supervisor da Comissão Técnica, explica que o problema não tem a gravidade que muita gente pensa: – Não houve prejuízos quanto à estrutura geral do treinamento. O que poderíamos dizer é que o ideal seria mais tempo. Quanto mais longo o período de aclimatação, melhor. A ver-dadeira aclimatação não se vai dar com nenhuma das equipes que vêm de fora. São necessários nove meses para isso. Todos dizem que a Seleção Brasileira está no apogeu, inclusive o Capitão Coutinho. Mas nenhum torcedor brasileiro conhece exatamente o mecanismo de duração do apogeu de um atleta, principalmente dos jogadores da Seleção atual: – Gostaria de explicar uma coisa: o atleta consegue obter seu rendimento máximo durante um curto período de tempo, mas isso em esportes como o atletismo, a natação que duram de quinze a vinte dias. Para um jogador de futebol é diferente. Temos de elevar ao máximo as qualidades físicas de um grupo e mantê- las durante uma competição mais longa, que não se decide em dez segundos ou em um minuto. Temos que visar ao apogeu médio do grupo. Acreditamos que a equipe brasileira venha a se manter em seu apogeu médio durante bastante tempo, mais que a duração da Copa do Mundo. Estaremos em situação pelo menos equivalente à dos outros competidores. Com toda certeza, vamos atingir um nível bastante acima daquele que normalmente se espera de um jogador brasileiro (Placar, n. 11, 29 mai. 1970, p. 7, grifo nosso).

Ancorado nos fundamentos da fisiologia do esforço, o capitão Cláudio Coutinho utilizava um vocabulário extremamente científi-co, tentando explicitar a metodologia do treinamento aplicado na seleção brasileira. Ao ressaltar os fundamentos do trabalho com os jogadores, demonstrava confiança com relação ao sucesso da sele-ção. É interessante notar que o próprio Coutinho reconhecia que os padrões científicos adotados tornavam o futebol cada vez menos inteligível ao povo. Às vésperas da Copa do Mundo, as discussões

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sobre futebol encontravam nos novos atores – preparadores físi-cos e fisiologistas – os pressupostos anteriormente elencados no imaginário popular. As expectativas anteriormente depositadas no craque, na improvisação e na superioridade do futebol-arte davam lugar ao planejamento, ao método e à eficiência (SOARES et al., 2006, p. 107).

Ao término da Copa do México, os “especialistas” se vangloriavam do sucesso obtido pela seleção, atribuindo aos novos métodos de trabalho os créditos pela conquista. Carlos Alberto Parreira, um dos responsáveis pela preparação física, requisitava a implantação do novo modelo nos clubes brasileiros:

Fizemos um trabalho pioneiro, assentado em bases científicas, dei-xando de lado empirismo, para mostrar que o sucesso só pode advir da maneira como se trabalhou. Procurou-se na seleção, respeitando a individualidade biológica dos jogadores, “individualizar o traba-lho”, fazendo com isso que cada jogador atingisse, normalmente, seu rendimento máximo. Fica uma experiência positiva e que deve servir como paradigma para as futuras seleções e para os próprios clubes. – Que os técnicos, desde os juvenis, sejam diplomados, porque só assim o Brasil fará uma revolução total em seu futebol (Jornal dos Sports, 9 jul. 1970, p. 12).

Atribuindo à ciência um lugar de destaque no cenário que se dese-nhava a partir da campanha do tricampeonato, o discurso do profes-sor Parreira marcava a tentativa dos defensores do futebol moderno de assumir a vanguarda do processo de treinamento esportivo nos clubes brasileiros. A revolução do futebol a que se referia o professor encampava transformações que envolviam desde aspectos práticos – como a organização, a logística e as preparações física e tática – até questões subjetivas – como a mentalidade e os padrões comporta-mentais do jogador.

Nessa nova configuração, requisitava-se a transformação completa do jogador em atleta de futebol. Para assumir essa nova função, já não bastavam a habilidade, a técnica, a magia e a ginga. A geniali-dade só era bem-vinda se viesse acompanhada da obediência, da disciplina e do espírito coletivo. Nesse cenário, a seleção brasileira,

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modelo para os clubes do país, cumpria um duplo papel: era labora-tório de experiências e vitrine da nova mentalidade. Com a militari-zação da comissão técnica e o desejo de se aplicar as mais avançadas metodologias de treinamento, não havia espaço para o individualis-mo, para atos de indisciplina ou comportamentos incoerentes com a função de soldado-jogador.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Se no âmbito das relações institucionais presenciamos, no período em questão, a ampliação dos mecanismos estatais de controle políti-co do futebol, a esfera das relações sociais não contrariou essa lógica. A disseminação do autoritarismo na orientação das condutas técni-cas e profissionais provocou mudanças substanciais no cotidiano da seleção e dos clubes. A militarização da CBD legitimou a introdução de práticas autoritárias que passaram a nortear as relações entre as comissões técnicas e os jogadores. Alicerçadas no paradigma cien-tificista absorvido pela Educação Física, os sistemas de treinamento implantados no futebol brasileiro exigiam maior esforço e dedica-ção dos atletas. A emergência dessa nova mentalidade conduziu a implantação de rígidos controles disciplinares nos clubes, controles que, para além das rotinas de trabalho, invadiam a vida privada dos jogadores. Respaldados pela imprensa, tais ideais procuravam disse-minar na sociedade o perfil do novo jogador, que exigia habilidade técnica, mas, acima de tudo, disciplina, bom caráter e afinação com os valores morais da época.

No entanto, a implantação do modelo “soldado-jogador” encon-trou diversas formas de resistência por parte dos cronistas esportivos e dos próprios jogadores. As crônicas rodrigueanas, fundamen-tadas numa visão “antropológica” do futebol, postulavam a ideia de que a imposição dos padrões de jogo europeu desvirtuaria o “caráter do homem brasileiro”. No universo dos jogadores, atitudes de desvio comportamental, como aquelas encontradas na carreira de Paulo César Caju, ou de contestação política, caráter assumido pela batalha judicial travada por Afonsinho contra o Botafogo, no início da década de 1970, revelam focos de resistência ideológica no interior do universo futebolístico (COUTO, 2009). Mesmo

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considerando que para a maioria dos jogadores a disseminação das práticas autoritárias não causou grande estranhamento ou revolta, as manifestações de descontentamento observadas nas trajetórias de alguns deles evidenciam que no palco do futebol travavam-se diferentes embates entre as visões de mundo dos atletas e as novas ideologias que contagiavam o imaginário social em tempos de ditadura militar.

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JUVENTUDES, VIOLÊNCIA E POLÍTICAS PÚBLICAS NO BRASIL: TENSÕES ENTRE O INSTITUÍDO E O INSTITUINTEGlória Diógenes

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Este texto tem como objetivo tentar compreender os caminhos traçados pelas políticas públicas de juventude e os significados dessas ações nas demandas e apelos pontuados no âmbito das práticas de violências juvenis. Não se trata de seguir indicadores estatísticos do impacto das políticas públicas de juventude. Pretende-se perceber até que ponto as ações, a priori codificadas sob o signo da violência e de seus sinais, são levadas em conta na produção da agenda das políticas públicas de juventude. As vias de discussão deste texto, portanto, são lançadas no foco de tensão entre os aspectos instituintes das práticas juvenis, muitas vezes identificadas sob o espectro do risco e do estigma, e os preceitos da integração e da participação, mobilizadas por meio das ações instituídas nas políticas públicas. A violência juvenil ora atua como enigma nos campos de estudos e intervenções dentro dessa temática, ora como oráculo. Seguiremos trajetórias de pesquisa e de intervenção que permeiam esses aspectos e a voz de seus interlocutores.Palavras-chave: juventude; políticas públicas; violência; ressignificação

The purpose of this text is to try to understand the ways by which public po-licies for youth have been developed and what such actions mean for the de-mands and appeals in the scope of juvenile violent acts. It is not a matter of following statistical data on the impact of public policies for the youth. It is intended to perceive how the actions, a priori, encoded under the sign of vio-lence and its marks are taken into account for setting the youth public policies agenda. It is out of the focus of tension between the establishing aspects of juvenile practices; identified many times under the specter of risk and stigma; and the integration and participation precepts, mobilized by the actions es-tablished within the public policies, that this text discussion possibilities are presented. Youth violence sometimes acts as an enigma in the study areas and in the interventions within this subject, other times it acts as an oracle. We will follow research and intervention paths which permeate such scopes and the voice of its interlocutors.Keywords: youth; public policies; violence; redefinition

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UM PRÓLOGO

Na condição de antropóloga urbana, de seguidora de trilhas juve-nis, de artífice de uma antropologia centrada no movimento de cor-pos na cidade, inicio este texto pontuando a necessidade de estudos e reflexões que, como uma vez evidenciou Foucault (1984, p. 168), possam descrever o mesmo movimento do boto, mamífero que vive no mar: efetuar um salto que possibilite a extensibilidade do olhar e um mergulho no mundo que se tece nas profundezas do oceano. E para isso é primordial mover o foco da visão, como bem pontuou Mary Douglas (1998), lançar-se na aventura da percepção de “como pensam as instituições” – aqui, no caso, as políticas públicas de ju-ventude no Brasil. Este texto não tem a pretensão de aferir os impac-tos quantitativos, as melhorias nas condições de vida da juventude, o alcance de iniciativas governamentais no que tange a faixa etária, gênero, níveis de renda, de escolaridade nos vários segmentos juve-nis. Ele se move em uma tentativa de compreensão dos caminhos e atalhos seguidos por essas políticas públicas e dos significados de suas ações institucionais diante de demandas e apelos que têm pon-tuado as práticas de juventudes.

A juventude é um conceito que exige de quem pesquisa, e mais ainda de quem atua nesse campo de construção específica das políti-cas públicas, uma necessidade contínua de decifração. Ela representa uma condição que mais se define por suas práticas, por suas formas diversas de atuação e de experimentação do que mesmo por concei-tuações e referenciais estáveis e fixos.

Falar em juventude é movimentar-se em um campo ambíguo de conceituação. A juventude se constitui como categoria social, no que tange à definição de um intervalo entre a infância e a vida adulta, apenas no final do século XIX, ganhando contornos mais nítidos no início do século XX. Ela é uma invenção moderna, sendo, desse modo, “tecida em um terreno de constantes transformações” (DIÓGENES, 1998, p. 93). Nesse sentido, qualquer esforço de registro acerca de sua condição e de seus modos de atuação deve ter como referenciais as práticas, os movimentos e as esferas de sociabilidade juvenil, muito embora o senso comum continue

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representando a juventude de modo negativo, por meio de estigmas e estereótipos. A depender do contexto sócio-político e econômico do qual se originam, os jovens são considerados perigosos, marginais, alie-nados, irresponsáveis, desinteressados ou desmotivados, e cada vez mais relacionados à violência e aos desvios de conduta (os meninos de rua, os arrastões, o surf ferroviário, as gangues, galeras e os atos de vandalismos) (KERBAUY, 2005, p. 8).

Certamente o viés negativo que aprioristicamente e comumente se impregna à percepção de tantos que estudam e atuam nesse campo conduz a dilemas e variações constantes.

Tal qual afirmamos em uma publicação recente (DIÓGENES; SÁ, 2011), a discussão acerca do tema juventude e a construção de uma agenda temática no âmbito das políticas públicas no Brasil atravessou as últimas décadas do século XX e o alvorecer do século XXI ora como oráculo, ora como enigma. A juventude apenas aparece como cate-goria especialmente destacada nas sociedades industriais modernas ocidentais como uma evidência da crise da modernidade (ABRAMO, 1994). Ela se evidencia como vitrine das tensões sociais, quase sem-pre sendo colocada como chave de entendimento, como uma porta de entrada para a compreensão de um feixe de outros fenômenos (DIÓGENES, 1998). Por se movimentarem no cerne de tensões mais amplas da sociedade brasileira, por ocuparem um lugar alocado num entre (nos aspectos geracionais, nos espaços das relações familiares, no âmbito das políticas públicas, nos marcos jurídicos da Lei), as in-dagações que recortam os estudos e pesquisas sobre esse tema quase sempre pendulam entre polos:

Situados no cerne das contradições, pesquisadores, gestores responsá-veis pela consecução e execução de políticas públicas e educadores embriagam-se nos limites do porquê e deixam de lado a pergunta- chave: como e em qual contexto esses sujeitos constroem os signifi-cados acerca de suas condições juvenis? (DIÓGENES, 2011a, p. 55).

Por um lado, no final do século XX, observava-se a proliferação de investigações, de esforços de compreensão, que se voltavam para o entendimento dos significados do conceito de juventude, e por

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outro se evidenciava o próprio cenário polifônico, múltiplo, quase sem fronteiras desenhado no campo das práticas juvenis. É como se na mediação entre intenção (o foco institucional das políticas públicas) e gestos (a pluralidade das experiências juvenis) houvesse um intrans-ponível fosso. Esse movimento entre instituído e instituinte continua oscilando, nos primórdios do século XXI, grosso modo, no intervalo das ações que buscam assegurar conquistas de natureza econômica (profissionalização, geração de emprego e renda) e outras balizadas por demandas sociais (cidadania, direitos, assistência, participação e acesso à cultura) (DIÓGENES, 2008). Além de todos esses aspectos, o movimento incessante de jovens na esfera pública muitas vezes atua fora dos limites institucionais (partidos, sindicatos, escolas, políticas públicas), criando e recriando ações e significados para experiências, algumas vezes efêmeras. São esses fatores que parecem ter aguçado a distância entre a esfera das vivências, das demandas juvenis e os tópi-cos que permeiam a agenda de políticas públicas.

Tomamos aqui de empréstimo as categorias de instituído e de ins-tituinte construídas por Castoriadis (1982) na sua reflexão acerca das instituições imaginárias da sociedade. Isso por considerar, no propósi-to desse diálogo, como instituído tudo aquilo que congrega significa-dos e pautas que ocupam o plano das políticas de juventude em torno do que já se sabe, do que se pressupõe, do que já se conhece; e como instituinte aquilo que se manifesta muitas vezes de forma encoberta, ainda pouco expressiva no âmbito mais amplo das experiências juve-nis, mas que ainda assim é capaz de provocar sentidos e repercutir, de forma mais ampla, no terreno das ações instituídas.

De modo geral, considero que a maior parte dos estudos e pesquisas desenvolvidos por mim individualmente e/ou sob minha coordenação tem se voltado para um conjunto de práticas juvenis exercidas dentro do mencionado plano instituinte: gangues, galeras, torcidas organiza-das, integrantes do movimento hip-hop organizado, crianças e ado-lescentes em situação de rua, pichadores, frequentadores de bailes funk, crianças e adolescentes em situação de exploração sexual1. Esse temário constitui o desenho da minha trajetória durante quase vinte

1 Ver Os sete sentimentos capitais: exploração sexual de crianças e adolescen-tes, de Glória Diógenes (Org.), 2008.

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anos de pesquisas, participações em eventos e cursos na universida-de. Após o doutorado, agreguei a condição de coordenadora de uma organização não governamental – Projeto Enxame2, fazendo arte com gangues e galeras de rua – por quase cinco anos e de gestora pública por seis3 anos, atuando na esfera da criança, adolescente, juventudes. Tudo isso me possibilita transitar, com mais facilidade, entre o que pensam, sentem e buscam os atores juvenis e a projeção de suas de-mandas no campo das políticas públicas.

Como estratégia de construção de uma reflexão menos ensaística, vou percorrer a trajetória de minhas pesquisas e reflexões sobre juventude, seus campos de interlocução, até alcançar o plano atual da produção e o diálogo com atores-pesquisadores dessa arena de produção temá-tica. Obviamente, faz-se necessário efetuar um recorte nesse universo amplo e complexo de experiências. Tendo em vista minha atuação mais marcante em intervenções e pesquisas das práticas de violência, vou me deter nas tensões que se constituem entre o plano institucional das políticas públicas e as práticas instituintes de violência juvenil.

1 POLÍTICAS PÚBLICAS DE JUVENTUDE E OS LABIRINTOS DA VIOLÊNCIA: AGENDAS DÍSPARES

A violência nem sempre figura como instância ativadora do processo denominado por Abad (2003) de desinstitucionalização da juventude. Esse percurso enuncia-se, esse é um ponto central, não necessaria-mente vinculado às práticas de violência que têm marcado tanto os discursos da mídia como dos setores de segurança pública. De modo geral, e posso afirmar isso como parte observante do fenômeno nas oportunidades em que acompanhei jovens do Enxame em visitas a museus e outros equipamentos públicos, nos vários percursos pela cidade, qualquer ação juvenil que contrarie os ritos normativos da segregação urbana pode ser codificada sob o signo da violência.

2 Essa experiência de criação e coordenação da ONG Enxame ocorreu no período de 2000 a 2004, no Morro Santa Terezinha, em Fortaleza.3 Por quatro anos presidente da Fundação da Criança e da Família Cidadã e por dois anos Secretária de Direitos Humanos, ambas da Prefeitura Municipal de Fortaleza, de 2005 a 2010.

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Outro elemento essencial corrobora com a discussão e a construção do imaginário social instituído em torno da violência juvenil. Prova-velmente, por muitas décadas atribuiu-se ao denominado processo de desinstitucionalização o critério da pobreza e do afastamento ou dificuldade de inserção do jovem no mercado de trabalho. Os limites entre instituinte e instituído no campo das juventudes seriam assim traspassados por estratégias discursivas de integração social, quase to-das alicerçadas sobre referentes da lógica da sociedade moderna do trabalho. Estava subentendida a ideia de que a violência seria neu-tralizada no momento em que as políticas de juventude abrissem e ampliassem instâncias de reconhecimento social por via da inserção no mundo do trabalho.

Tudo isso criou e ainda produz uma existência ambígua. Por um lado, os jovens moradores da periferia mobilizam-se por um senti-mento de autoexclusão, de não pertencimento e, controvertidamente, movimentam-se na busca de oportunidades no mercado de trabalho, impulsionados pela necessidade de inclusão. Por outro, constituem formas de sociabilidade capazes de reanimar e produzir um sentimen-to de grupo e instaurar uma fortaleza dos mais fracos, reforçando estig-mas e preconceitos e, muitas vezes, envolvendo esses jovens em ações de violência. Esses sinais de duplo sentido quase sempre têm orientado ações mutuamente exclusivas em um mesmo governo: enquanto uma Secretaria de Juventude ou alguma coordenação ou núcleo de ação governamental mobiliza eixos de promoção de direitos, paralelamen-te, sem dialogar com essas diretrizes, ações de repressão são aciona-das, provocando vias de exclusão e segregação, reforçando aquilo que Misse (2008, p. 10) chama de “sujeição criminal”. Esse quadro se aguça mais ainda quando se trata de jovens em situação de delin-quência. Segundo Misse, a sujeição criminal é exatamente esse processo por meio do qual um cidadão incriminado é transformado num não homem, em que o criminoso é transformado em bandido, isto é, num tipo social cuja afinidade com outros tipos e camadas sociais está esta-belecida no tempo de longa duração de nossa história. E, como aler-tamos em outro trabalho, “as práticas discursivas e não discursivas da sujeição criminal atingem jovens em conflito com a lei, identificando- os como jovens que podem ser mortos, no limite extremo do que está explícito na discursividade” (DIÓGENES; SÁ, 2011, p. 152).

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A sujeição criminal não apenas antecipa ações de contravenção e criminalidade, como cria dispositivos que facilitam a autopercepção desses jovens como violentos e perigosos. Se praticamente qualquer ato que pareça comprometer a ordem pública se consubstancia como prática de delinquência juvenil, acabamos constituindo políticas pú-blicas de juventude de costas para os significados que os grupos juve-nis atribuem às suas experiências e para uma cultura da violência que ultrapassa atos, linguagens e reações localizadas. O que parece mais grave, diante desse labirinto, é que o eixo das políticas públicas de juventude acaba se voltando para a promoção de vias positivas alicer-çadas sob ideais de integração e de participação. É como se houvesse um extensivo abismo entre as linguagens e práticas juvenis instituintes e os campos disciplinadores, repressores e de natureza compensatória promovidos pelas políticas públicas.

Produz-se um impasse entre demandas de representação e reconhe-cimento simbólico, muitas vezes acionados entre jovens, até mesmo por meio de ações de violência. Como já mencionei anteriormente (DIÓGENES, 1998), essas ações, em geral, atuam como uma estratégia de inclusão social às avessas, na qual as oportunidades no campo ma-terial, mediadas pelas políticas públicas de juventude, são mobilizadas como moeda de produção da cidadania. Sá (2011, p. 349) evidencia, numa instigante etnografia, a valorização que experimentam alguns jovens moradores de periferia ao alcançarem o codinome de “bichão da favela”: “é uma forma simbólica extremada de ‘vida louca’ e, por-tanto, do bicho louco que encarna a atitude guerreira na sua versão autodestrutiva e na versão heroica, que convergem”. A importância de ser considerado “o bichão da favela”, o pichador “que mais se garante”, o integrante de galera “mais afiado” no confronto com a po-lícia sofre uma tentativa de deslocamento, tentando ser corporificada na produção de um ethos juvenil participativo, integrado e produtivo nas várias vias de políticas públicas de juventude. O fascínio de poder que exerce a violência e o estar à deriva nos lugares mais inusitados da cidade não têm sido decodificáveis em uma política pública de juventude.

A conexão entre risco e fascínio foi destacada por Vogel ainda em 1991, quando tratava de experiências juvenis na cidade. O fascínio que a rua provoca é comumente associado à exaltação de um princípio

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compartilhado da fruição do tempo pela cadência e pelo ritmo do mundo da rua em detrimento da ordem relativa à disciplina e à regu-lação do tempo do trabalho. As políticas públicas de juventude, no afã da vontade de integração, muitas vezes se mobilizaram por programas de ressocialização vinculados à educação não formal, por meio de oficinas de capacitação profissional que, mais do que uma qualifica-ção para o trabalho, pretendem desviar a atenção dos jovens para a sedução exercida pelas ruas e pelos grupos “perigosos” de sociabilida-des juvenis. E, quanto mais o segmento juvenil parece fascinado pelo risco, quanto mais isolado de práticas sociais consensuais instituídas, mais ainda as políticas públicas de juventude acionam meios discipli-nares e docilizados de socialização (FOUCAULT, 1987).

Sejam quais forem as estratégias de ação de políticas públicas de juventude, quando se trata de atuação no campo da violência, têm atuado em campos díspares e intercomplementares:

a) Ações de natureza disciplinadora, voltadas para vertentes de “res-socialização”, tendo por base oficinas de profissionalização e a inserção em iniciativas de geração de renda.

b) Ações de natureza repressiva, provenientes da política de segu-rança pública, muitas vezes acionadas tendo como “capa” jurí-dica os preceitos socioeducativos preconizados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e, concomitantemente, associa-dos ao estigma da “sujeição criminal”.

c) Ações estruturais de longo prazo, como investimentos na saúde, na educação, na cultura, no esporte, dentre outros, protelando intervenções e diálogos no campo presente da violência.

Considero esse último eixo o mais controverso dos três. Criou-se uma ideia amplamente difundida de que fenômenos interpretados no campo da violência juvenil seriam transpostos por ações de longo prazo, de natureza estrutural. Soares (2003, p. 4) ressalta o hiato criado nas políticas públicas de juventude entre ações de longo e curto prazo:

Nesse nível, a intervenção efetivamente capaz de prevenir a violência e a criminalidade é aquela que visa à alteração das condições propi-ciatórias imediatas, das condições diretamente ligadas às práticas que se deseja eliminar; não é, portanto, ação voltada para mudanças

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estruturais, cujos efeitos somente exerceriam algum impacto desa-celerador sobre dinâmicas criminais em um futuro distante – o que, evidentemente, não significa que essas mudanças, de tipo estrutural, não devam ser realizadas. Embora necessárias e urgentes, não são suficientes, nem substituem as intervenções tópicas, via políticas sociais indutivas, nas dinâmicas imediatamente geradoras de violência.

O que fundamentalmente acontece é que as intervenções tópicas, às quais se refere Soares, provavelmente demandam das políticas pú-blicas ferramentas de ação que parecem escapar do plano “objetivo” dessas políticas, quais sejam:

a) Ao invés de atuar tendo por base o plano das dimensões normati-vas ligadas ao “dever ser”, as políticas públicas têm como desafio penetrar nos mundos de vida, nos códigos, nas lógicas e significa-dos de violência das práticas juvenis.

b) Tomando por base a perspectiva da cultura e de suas teias de significados (GERTZ, 1989), as políticas públicas de juventude enfrentam a amplitude e a diversidade das práticas culturais di-namizadas por diferentes juventudes em diferentes contextos – inclusive quase nunca levando em conta que corpos e territórios são dimensões amalgamadas no plano das práticas juvenis.

c) Para que se torne possível uma ação que potencialize outros afec-tos4 para além das mobilizações e pulsões de violência, é primor-dial a escuta, a possibilidade de expressão tanto de demandas materiais como aquelas de natureza simbólica.

De modo geral, esses atores institucionais, no altar das políticas pú-blicas, acionam signos e valores consubstanciados em parâmetros que pouco têm causado impacto e mobilizado os jovens desconectados de ideários do mundo adulto e das tradicionais formas de ascensão social. Os jovens se retraem, se enclausuram em redes sociais que muitas vezes se aproveitam de suas fragilidades e de sua falta de crença no futuro e, nesse universo paralelo, experimentam o ilícito e perdem ou se distanciam dos liames com o plano das instituições.

4 Deleuze e Guattari consideram que o afecto é “uma descarga rápida de emoção, o revide, ao passo que o sentimento é uma emoção sempre desloca-da, retardada, resistente” (1997, p. 79).

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A juventude parece sinalizar a ultrapassagem da correlação biuní-voca entre cidadania e inserção no mundo do trabalho. A crescente situação de desemprego e os salários que mais parecem degradar que valorizar os trabalhadores apontam novos signos de reconhecimento social. A expansão das demandas de consumo sem uma correspon-dência proporcional ao poder de compra parece lançar uma socieda-de que se constrói sob esses referentes numa condição generalizada de desesperança e medo. Partindo do pressuposto de que os jovens se projetam como termômetro e vitrine do que parece tornar público e visível nas tensões sociais, são eles os primeiros a tentar romper, ou simplesmente a se rebelar contra uma ordem que fala por eles e, con-comitantemente, os exclui.

Promete-se a eles o futuro e deles é retirado o presente, mesmo sendo arriscado e contraditório, e também, muito cedo, tira-se a possibilidade de reproduzirem, nos moldes atuais, percursos de vida trilhados por membros de suas famílias. Isso porque ser cidadão, nos nossos dias, é quase sinônimo de se colocar, de forma única e exclusiva, na condição de trabalhador, mesmo que os sinais dos tem-pos evidenciem novas tensões, como bem sinaliza Novaes (2003, p. 137-138):

Atualmente não é mais possível acreditar que a inclusão se dará fun-damentalmente pelo mercado de trabalho. Em primeiro lugar, por-que o trabalho está pesando cada vez menos na vida das pessoas. Cem anos atrás, em uma comunidade agrária com média de vida de 40 anos, começava-se a trabalhar aos cinco ou seis anos de idade e se trabalhava até morrer. Hoje, no Brasil, o tempo de trabalho repre-senta 40% do tempo da vida. Não é a principal parte da vida. Então, é preciso construir uma cidadania que não seja montada somente no trabalho.

Pergunto-me, então, se o trabalho “está pesando cada vez menos na vida das pessoas”, se a violência juvenil se coloca como um hieró-glifo a ser desvendado, ultrapassado no futuro, ou a ser extirpado no presente: que outras vias se podem trilhar para melhor percepção e intervenção nesse fenômeno?

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2 CORPO, CIDADE E VIOLÊNCIA: MÚLTIPLAS FRONTEIRAS

Nos meus estudos etnográficos sobre gangues, galeras, movimento hip-hop, torcedores de futebol, jovens moradores de rua e situação de exploração sexual, quase sempre me vi diante de uma intrincada rede de narradores. Como diz Calvino (1991), as cidades não encontram seus espelhos no mundo real. Muito mais do que os aspectos físico--geográficos, as cidades, conforme Ferrara (1993), embora visíveis, prescindem do olhar do observador, da relação que cada um mantém com o espaço, das suas usanças e dos elementos simbólicos que cons-tituem elos de pertencimento.

E quais os elementos dessa narrativa? São os múltiplos encontros juvenis na cidade, que estabelecem nexos entre o lugar, o corpo e os territórios. São os percursos, os usos, que inspiram sentidos e são os signos da cidade arquivados, marcados nos corpos. E, mais do que qualquer outro segmento, a juventude usa, experimenta e recria a cidade. A juventude parece perceber que o corpo é que escreve e inscreve a cidade num ampliado repertório de signos. As salas, as ins-tituições fechadas, os muros de atendimento calam ou deixam as nar-rativas da cidade em estado de latência; é como se faltasse tinta nos corpos para se fazerem ver e ganhar visibilidade pública.

Na condição de gestora pública, associada à de antropóloga urbana, muitas vezes, tal qual narrei no meu percurso antropológico (DIÓGENES, 2011b, p. 62), me vi limitada: “A tentativa de construção de um modelo baseado nas experiências locais, ‘costurado’ nas práticas e nos códigos culturais, tomando os sujeitos como partícipes dessa experiên-cia, gerou campos múltiplos de resistência.”

Essa percepção já havia sido ativada, ainda, na condição de coorde-nadora do Enxame. Isso porque, quando ultrapassávamos paredes da sede da ONG e íamos construindo narrativas nas “práticas da cidade” (CERTEAU, 1994), os discursos dos participantes também iam, gradati-vamente, descolando-se de tons normativos e assumindo conotações intensas, vívidas, dos múltiplos usos e construções do espaço. Muitas vezes, essas experiências juvenis5 fizeram emergir lugares que pare-ciam não existir de forma nítida e compactuada nos mapas urbanos.

5 Conforme descritas em Diógenes, 2006.

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Qual a relação entre a cidade, seus usos e narrativas com a violência juvenil e as estratégias mobilizadas pelas políticas públicas voltadas para esse segmento? Como diz Nelson Brissac (2004, p. 13), a paisa-gem é um muro. E são esses muros que traduzem as distâncias entre os corpos juvenis e seus dispositivos de expressão e representação pú-blica. A cidade a que nos referimos de modo geral nem é a mesma e nem é aberta para todos, embora se projete como esfera pública. A cidade, como bem enfatiza Deleuze (1997), é um espaço estriado, murado, pontuado por cercados e caminhos entre cercados. Os jo-vens proscritos da cidade oficial, da cidade pactuada por signos da mídia, dos guias de turismo, dos impérios do consumo buscam modos estridentes de comunicação, para que suas presenças traspassem os muros da paisagem e deem visibilidade aos mapas não oficiais. Se partirmos dos seguintes pressupostos acerca da condição juvenil con-temporânea, especificamente daquela que se sente deslocada e sem lugar, de que modos poderemos intervir nas e interpretar as práticas de violência juvenil na cidade?

a) A condição juvenil se tece no movimento, no nomadismo, mul-tiplicando movimentos e a sua própria lógica da inserção nos espaços da cidade.

b) Ela exibe corpos e estéticas com a finalidade de registrar e deixar ecoar sua condição de atriz da esfera pública.

c) Ela cria novos marcos, desfaz linhas costumeiras de segmentações, dos usos e funções do espaço: lugar de trabalhar, de morar, de lazer, de viver, de arriscar, de participar.

São esses fatores que, no geral, figuram como ilustres desconheci-dos nas políticas públicas de juventude. Acontece que o vácuo entre alguns corpos juvenis e a cidade provoca um sentimento de não per-tencimento, uma ruptura entre narrativas juvenis e um esgarçamento de referenciais de vínculos entre corpo e cidade. Uma cisão, como bem pontua Sennett (2001), entre “carne e pedra”. Até porque, mui-tas vezes, contraditoriamente, as codificadas práticas de violência ju-venil se efetuam como táticas para diminuir distâncias, para manter aproximação entre lugares e, sendo reprimidas antecipadamente, e não ressignificadas, muitas políticas públicas ignoram e neutralizam esses esforços.

Em uma pesquisa realizada sobre “jovens na metrópole”, Magnani

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(2007, p. 203) destaca, como os demais pesquisadores dessa coletâ-nea, as distintas modulações de usos e desfrute do espaço público, ressaltando que “cada um desses arranjos corresponde a uma forma específica de se expor, estabelecer laços, marcar diferenças, fazer es-colhas, colocar-se, enfim, na paisagem urbana diante dos outros e em relação a eles”. São os usos, os vínculos das juventudes com as cida-des, a percepção de se verem por meio dela que poderiam produzir outras modulações e significados às práticas de violências juvenis.

Ao realizar a “cartografia da cultura e da violência”, identifiquei que as trajetórias desses segmentos na cidade assumiam, realmente, uma lógica peculiar. Corpos em trânsito pareciam carregar signos do bairro, de filiações grupais, de gostos e preferências para onde fosse possível realizar encontros e representações públicas.

A territorialidade das gangues é móvel, cambiante, rompendo os li-mites físico-geográficos dos bairros de periferia. Ela segue o fluxo e as linhas de fuga (GUATTARI; ROLNIK, 1986) das metrópoles modernas. A territorialidade das gangues pressupõe uma movimentação cuja finalidade é tentar transpor a condição de anonimato (DIÓGENES, 1998, p. 148).

Ao me movimentar com as galeras em espaços diferenciados da cidade6, observava que os corpos pareciam “carregar” bairros, confi-gurações espaciais e reproduzir esses lugares no estádio, na praia, nos terminais rodoviários, nas circunstâncias em que se esboçava a neces-sidade da presença de um corpo coletivo. Usando uma terminologia “nativa”, significa dizer “ir de galera” para que o bairro, o lugar, se des-loque com os corpos e assuma visibilidade nos mais diversos espaços urbanos. Dominar um território é assumi-lo numa dimensão linguística e imaginária (SILVA, 2001, p. 16), e o lugar de transmudação de signos é o corpo. Desse modo, a cidade assume uma curiosa configuração na relação com os corpos juvenis e, consequentemente, com expe-riências mediadas pela violência, seguindo alguns desses pontos: a) O corpo inscreve a cidade nas narrativas; b) A cidade é uma ficção, uma

6 Ver também o livro resultante de outra pesquisa desenvolvida como bolsista do CNPq: Itinerários de corpos juvenis, de 2003.

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obra coletiva, com sentidos compactuados para além de fronteiras fí-sico-geográficas; c) A cidade não é apenas um lugar, um mero cenário físico-geográfico; d) A fixidez é uma invenção do mapa (DELEUZE, 1997); e) As cidades contemporâneas exigem uma constante produ-ção de imagens, exibição dos corpos que circulam e revelam histórias de “pedaços da cidade” (MAGNANI, 2007) e de seus moradores.

Tomando como referência a perspectiva complexa das conexões entre corpo e cidade, as práticas de violência juvenil assumiriam, con-forme Rifiotis (1997), uma peculiar positividade.

Obviamente que as práticas de violência explicitam a não aceitação de “um outro”, de certas regras sociais, da violação direta à ideia de Lei. Nesse sentido, a violência seria, por princípio, o campo de negação das diferenças. Porém, em certas circunstâncias, a violência pode che-gar até mesmo a atuar como força propulsora das diferenças. A vio-lência pode atuar como uma espécie de força dispersiva, voltada para a manutenção das diferenças, em contraponto à homogeneização que a centralidade dos poderes procura instaurar (RIFIOTIS, 1997, p. 5).

A violência, nesse marco referencial, projeta e congrega linhas de filiação, representação e expressão pública.

Ocupar a cidade, fazer valer estéticas, imagens, formas de viver e movimentar-se; ultrapassar barreiras da segregação urbana; estar nos shoppings, nas vias e locais destinados a usos específicos, ocupar e inverter usos urbanos, principalmente quando tais movimentações são realizadas por jovens da periferia, representa por si só um ato de vio-lência (DIÓGENES, 2011a, p. 61).

As políticas públicas de juventude, na maior parte das situações, recuam diante do imperativo que mais parece mobilizar os corpos juvenis para ações que provocam choque, que fazem estremecer a ordem pública, que dilapidam patrimônios e que tornam a cida-de um extensivo campo de disputas e querelas: as experimentações urbanas. Ao constituírem ações tendo por base esferas de participa-ções e representação instituídas (Conselhos de Juventude, Projovem, programas de profissionalização, de incentivo ao crédito jovem), as

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políticas públicas de juventude removem um campo fértil, embora muitas vezes ardiloso e permeado de riscos, das práticas instituintes nas várias esferas da cidade. As políticas públicas de juventude trans-mudam o fascínio pela cidade, vivenciado pelos jovens e referido por Vogel, em medo.

A violência vai sendo utilizada, paradoxalmente como elemento acio-nado para a segurança, como alerta para o risco de não misturar-se, do armar-se contra a possibilidade latente de aniquilamento e diluição das fronteiras ocasionada pelo temor do diferente. A violência torna-se o motivo e o dínamo da construção do ideário da segurança pública. Movemo-nos através do medo. Como bem afirma Khoury (2004, p. 5), “o medo do outro parece enclausurar o sujeito, sobretudo de classe média, que tem dificuldades de relacionamento e sentimento de soli-dão amplificado” (DIÓGENES, 2011a, p. 213).

Os jovens moradores de periferia, que por tantas vezes povoa-ram minhas trilhas etnográficas nas constantes idas ao Morro Santa Terezinha com o “Enxame”, nas ações desenvolvidas na qualidade de gestora pública, nos vários “itinerários de corpos juvenis”, tradu-ziram a necessidade de se fazer ver, ouvir, ler, participar e intervir na conexão entre seus códigos culturais e os que balizam as políticas públicas.

3 SEGUINDO VIAS DE MÚLTIPLOS ACESSOS: ARTES DE RESSIGNIFICAÇÃO DA VIOLÊNCIA NO CAMPO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE JUVENTUDE

A rota da discussão aqui trilhada me evocou uma passagem de uma curiosa crônica de Eduardo Galeano, que reproduzo a seguir:

O pastor Miguel Brun me contou que há alguns anos esteve com os índios do Chaco Paraguaio. Ele formava parte de uma missão evange-lizadora. Os missionários visitaram um cacique que tinha fama de ser muito sábio. O cacique, um gordo quieto e calado, escutou sem pes-tanejar a propaganda religiosa que leram na língua dos índios. Quando a leitura terminou, os missionários ficaram esperando.

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O cacique levou um tempo. Depois, opinou:– Você coça. E coça bastante, e coça muito bem.E sentenciou:– Mas onde você coça não coça (GALEANO, 1998, p. 30).

Os jovens usam, correntemente, uma figura de linguagem facilmen-te decodificada entre eles: “tirar de tempo”. Significa dizer estar na es-cola, nos programas governamentais, em instituições de “reabilitação” para usuários de drogas, mesmo que nenhuma delas coce, mobilize interesses e sentimentos de pertencimento. E aqui pontuo uma exten-siva experiência que tive, tanto no escopo da discussão acadêmica, como na esfera de intervenção concreta nas articulações entre arte e violência. No período de elaboração da tese de doutorado, que culmi-nou na produção do livro Cartografias da cultura e da violência (1998), nos muitos contatos com jovens inseridos de forma mais intensa em práticas de violência, percebi uma ausência de discurso e um modo de se expressar por meio de “pistas e vestígios” (GINZBURG, 1990). Foi nesse momento que identifiquei a necessidade de reportar minha atenção para marcas corporais, tatuagens, adereços como estratégia mobilizadora de falas e diálogos.

Não existe, praticamente, e isso pode ser detectado em todos esses vinte anos de experiência de pesquisa, uma fala específica dos jovens sobre a violência. Ela é uma categoria teórica, componente das mídias e dos programas governamentais. Daí o vácuo que se cria e se inten-sifica entre as experiências juvenis instituintes e o plano das ações instituídas. Nos percursos de pesquisa com outros interlocutores, fui percebendo a recorrência de uma consideração emblemática entre jovens que se dizem ex-integrantes de grupos praticantes de atos de violência: o uso da força da própria violência pode ser canalizada para outras práticas sociais e se constitui nos marcos da linguagem oral ou visual. Como uma analogia: agora, eu falo.

Na condição de oficineira de rap7, com um rapper do Morro Santa Terezinha, também oficineiro, integrante da posse “Consciência

7 Uma das “linguagens” do movimento hip-hop, significando ritmo e poesia, que mais se aproxima de uma crônica cantada da periferia.

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Armada”8, criei um programa que incluía o estudo e a apreciação de poetas e músicos da língua popular brasileira, denominado Oficina da palavra. E foram muitas as ocasiões em que presenciei a mudez da violência, cuja dimensão foi ressaltada por Hanna Arendt, na pro-dução de uma linguagem poética acerca do vivido, potencializada e canalizada para outros campos de interesse.

Um caso específico ficou marcado. Um jovem de apenas 16 anos afirmava, com veemência, que logo que tivesse força física mataria o pai, por tantas vezes ter presenciado cenas de violência dele contra a mãe. Obviamente, já sabia da quase inutilidade da construção de um discurso moralista, de teor religioso, de natureza normativa que se movesse por meio do poder para fazer o jovem mudar de opinião. Seria no processo paulatino de idas e vindas casa-rua-Enxame, na am-pliação de valores por meio de descobertas pessoais e na relação com o grupo, na potencialização de outros sentidos que ele, somente ele, poderia produzir um outro significado para sua vontade de violência.

Foi no dia de leitura e trocas em torno do poema de Vinicius de Moraes, “Operário em construção” que pude identificar a expressão de outros significados em relação à figura paterna. O pai, também pedreiro, tal qual aquele que conduz o lirismo dos versos de Vinicius, segundo o próprio jovem, nunca havia experimentado o gosto de ha-bitar, de usufruir de nenhuma de suas obras. E essa descoberta das vio-lências cotidianas que atravessa um operário em construção mobilizou o jovem a compor um rap em dois atos. No primeiro ele dizia da sua indignação, de seu desejo adiado de vingança. Ele compôs esse ato no momento da oficina e pediu para finalizar o rap em casa e trazê-lo no próximo encontro. E assim foi. No segundo ato, o pai assume outro lugar e o sentimento intenso de violência é transmudado para, como ele mesmo sublinhou no rap, uma revolta contra o sistema.

Além dessa, tantas outras situações evidenciaram o potencial da arte no plano das práticas de violência. E, possivelmente, para além do caso delineado, com um teor político subjetivo, o que mais parece ter conduzido a criação de outros planos de sentido foram ações de intervenção na cidade, por meio de grafite, murais e apresentações

8 É dessa forma, como posse, que os grupos do hip-hop ressaltam sua vincu-lação com a referência local de suas atuações.

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públicas de grupos de rap, projetando novos papéis e novas formas de representação pública: do “gangueiro”, “bandido” para o grafitei-ro destacado, para o rapper considerado e apreciado para além do seu bairro, ultrapassando a fachada (GOFFMAN, 2011) da “sujeição criminal”. Ao agregar, fundir, anexar experiências, a arte possibilita condensar, na aparente “obra” em si, como uma materialidade deli-mitada, um universo em pulsação. “Na arte se fundem de uma só vez o particular e o geral, a visão individual do artista e da cultura em que vive, expressando assim certas vivências pessoais que se tornaram em determinado contexto cultural” (OSTROWER, 1999, p. 17).

Passa longe daqui a noção idílica de que a arte liberta. Pelo contrá-rio, ela também pode ser plenamente utilizada como apaziguamen-to pulsional ou escape das tensões e conflitos que povoam escolas, políticas públicas e as instituições em geral. Como pontua Ostrower (1999), ela apenas propicia aproximações, minimiza rupturas de sen-tido. A vivência da arte, ao travestir-se de um objetivo limitado de inserção no mercado de trabalho e, consequentemente, da promoção da condição jovem/pobre/perigoso para trabalhador pode representar, também, mais uma instância de disciplinamento, de regulação da vida social, de institucionalização no lugar de uma prática essencialmente educativa. A pergunta é: até que ponto valores e crenças acerca de si, do outro e do mundo seriam ressignificados tendo como referente o mero reconhecimento público alcançado e compactuado no proces-so arte-educativo e na projeção de mais um figurante na sociedade moderna do trabalho? Ressignificar significa produzir outras figurações visuais, estéticas, orais, imaginativas para conteúdos limitados, pré--conceituados, normatizados sobre si e sobre o mundo. Significa pro-duzir um leque de possibilidades, de multiplicidades para dimensões intrinsecamente lineares e limitadas – como tantas vezes escutei: “Sou um jovem pobre de periferia, não tenho futuro” – uma outra visão das possibilidades de si, dentro do contexto cultural e do que carrega e traz consigo cada sujeito criador.

Para que a arte atue como propulsora de novos significantes para o campo da violência, como ressaltam Deleuze e Guattari (1995, p. 32), ela precisa se estabelecer como rizoma, fazer parte de uma ação da “máquina de guerra” e não da “máquina do estado”, mesmo que se desenvolva no contexto das políticas públicas de juventude: “O

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rizoma é feito somente de linhas: linhas de segmentaridade, de estra-tificação, como dimensões, mas também linha de fuga ou de desterri-torialização como dimensão máxima segundo a qual, em seguindo-a, a multiplicidade se metamorfoseia, mudando de natureza.”

A arte, assim como outros campos de experiência juvenil, pode pro-duzir rizoma multiplicando linhas de ação e produzindo outros signifi-cados para a mesma experiência, ganhando novos espaços na cidade. Isso significa dizer que mesmo se desenvolvendo no campo instituído das políticas públicas, voltadas, na maior parte das situações, para a inclusão da juventude no mercado de trabalho e nas vias de participa-ção e iniciativas institucionais, qualquer iniciativa de reconstruir teias da violência na cidade tem como desafio fazer emergir valores e ati-tudes do campo das práticas instituintes e, por dentro delas e a partir delas, desenhar novas possibilidades.

Ressignificar valores e atitudes dos jovens que se sentem excluídos, e são realmente excluídos do acesso a equipamentos e serviços urbanos mais diversos, nos seus lugares de vida, nas suas práticas de espaço e, concomitantemente, interligá-los a toda uma rede de direitos que os constituam como sujeitos atuantes para além de seus âmbitos costu-meiros de atuação e vivências. Nossa empreitada é a de criar políticas públicas de juventude que, no geral, quando distantes de suas aspi-rações, se apropriam ao seu próprio modo sem que se observe um envolvimento e uma mudança efetiva na condição de vida dos que usufruem dessas políticas (DIÓGENES, 2009, p. 283).

Deve-se alargar o propósito de políticas de juventude que atuem além da bela metáfora sintetizada na crônica de Eduardo Galeano, “mas onde você coça não coça”, e pensar em se costurar as diversas redes existentes em vez de se projetar uma integração da juventude pelos laços fracos que compõem as redes sociais (CASTELLS, 2009) e que têm por base restrita o mercado e as esferas institucionais de participação. É necessário

mobilizar redes que possuam potenciais de políticas públicas em suas formas não estatais, que multiplicam experiências fora e dentro das esferas constitucionais, mais do que o próprio Estado é capaz, tendo

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em vista sua relação fragilizada com os direitos constitucionais; redes capazes de garantir e ampliar direitos fundamentais (DIÓGENES; SÁ, 2011, p. 157).

CONSIDERAÇÕES FINAIS: PISTAS PARA AMPLIAR E RECRIAR VIAS

Alguns eixos norteadores podem ser levados em conta nesse terre-no tenso de relação entre políticas de juventude e campos múltiplos de práticas e versões acerca das experiências juvenis. O conjunto de indicações acerca da paisagem das políticas públicas de juventude no Brasil e de seus campos de possibilidades já foi apresentado no texto sobre juventude e segurança pública (DIÓGENES; SÁ, 2011, p. 158-159). Reproduzo-o aqui e assim, quem sabe, possamos em uníssono ampliar sentidos, apropriações, vínculos, vias de mão dupla na comu-nicação entre juventudes e políticas públicas e reconstruir por dentro e por fora as teias da violência.

a) Como indicador mais abrangente e de natureza estrutural, corro-boramos com a indicação de Luiz Eduardo Soares (2010, p. 299), destacada na pesquisa realizada sobre gangues no Distrito Fede-ral: “Necessidade de políticas públicas intersetoriais para enfren-tar problemas complexos, isto é, multidimensionais. A aplicação de tais políticas exige, entretanto, métodos de gestão integrados, forte coordenação política e uma nova agência na gestão pública, capaz de empreender essa integração.”

b) As políticas públicas de juventude devem assumir como parâme-tro o princípio do movimento e da singularidade. Isso significa dizer que os agentes, os educadores, os mediadores dessa política devem realizar o ato duplo de ação e intervenção: identificação dos eixos e preceitos da política por meio de códigos e da lógica própria dos vários atores e grupos que compõem, prioritariamen-te, o alvo dessa política. As ações devem cruzar as salas, os gabi-netes, os prontuários, os computadores e fazer retornar para esses espaços as demandas e vozes dos atores.

c) Tendo como interface a segurança pública, uma política pública de juventude deve priorizar a universalidade das ações e ter como lugar de intervenção os contextos concretos, os territórios e as

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linguagens nos quais será desenvolvida, devendo produzir sentido no conjunto de ações.

d) Para atingir seu escopo de universalidade, as políticas públicas de juventude precisam constituir-se no plano das relações locais, produzir sentidos nas ações e práticas singulares desenvolvidas pelas juventudes no seu cotidiano. Para que os jovens se colo-quem como sujeitos de direitos, faz-se necessário que eles atuem como sujeitos de sua própria existência, com seu repertório pró-prio, suas instâncias concretas de participação e ações que os mo-tivam a criar, a produzir e se relacionar.

e) Uma política de segurança pública de juventude deve partir do conjunto de inseguranças, seja material ou simbólica, dos temores e vazios que pontuam o cotidiano dos jovens de todas as esferas sociais. Ao invés de projetar de modo fechado os medos e vul-nerabilidades do “mundo adulto”, em relação às “desordens” e insurreições dos jovens, propõe-se identificar a eloquência das “quebras” de vínculos e do esgarçamento dos laços de sociabili-dade no campo próprio das práticas juvenis.

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A MÁQUINA MODERNA DE JOAQUIM CARDOZOManoel Ricardo de Lima

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Este texto é uma leitura crítica de algumas questões propositivas que armam o projeto de Joaquim Cardozo para a construção de sua poética com sua poesia e seus textos críticos sobre artes visuais, poesia e arquitetura. Essas questões sugerem uma releitura do moderno a partir dos impasses que giram em torno da arte para mover um conceito de história. Palavras-chave: poesia; modernidade; história

This text is a critical reading of some propositional questions which arm Joaquim Cardozo’s project for the building of his poetic with his poetry and his critical writings on visual art, poetry and architecture. These questions suggest a rereading of the modern starting from the impasses that revolve around art to move a concept of history.Keywords: poetry; modernity; history

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INTRODUÇÃO

A imagem que move a leitura crítica de algo do pensamento e da poética de Joaquim Cardozo em meio às releituras possíveis do mo-derno comparece anotada entre uma ideia já construída pelo senso comum e pelo olhar mais simples sobre as questões da modernida-de; e é talvez uma espécie de contorno pedagógico a uma primeira ideia do que se convencionou chamar modernidade, de um lado, modernismo do outro, ou moderno como um conceito e variações do conceito. É a imagem de um trem, com todos os seus entornos de barulho e solavanco, e na velocidade mais alta possível, invadindo uma estação. Num amplo da imagem, entre um misto de fascínio e sobressalto, a multidão que espera na estação – sempre de passagem – ao mesmo tempo em que rejeita a máquina num gesto suspen-so também procura se aproximar para adentrar os seus vagões. Aos poucos, enquanto articula um lugar para o pensamento, a multidão procura adaptar seus corpos à máquina, confortando-os por dentro da medida paradoxal do quanto é e do quanto pode um adequar-se, um ajustar-se, um moldar-se. Tudo isso para uma busca de equilíbrio entre homem e aparelho, entre humano e prótese. É um remaneja-mento social, uma “deportação da atenção, do face a face huma-no, do contato urbano, para a interface homem/máquina” (VIRILIO, 1999, p. 12).

Antes, num primeiro impulso, este movimento do homem é fei-to através do olhar, que é uma espécie de nova marca moderna, individual, particular, tomada como seminal e, portanto, também sintoma de um começar paradoxal, numa espécie de fronteira da alteridade radical; depois, ao penetrar a máquina, como um segun-do impulso, o movimento do paradoxo se anima, num indo e vindo ininterrupto, no fluxo e no contrafluxo, no desenho de um traço de duração que também, deixando-se penetrar, pode ser lido como elemento tátil da imagem dialética. Paul Virilio diz que uma rapidez do deslocamento ferroviário provoca na multidão um “tempo quase parado, um tempo que para eles passa com desesperadora lentidão, afetando-os com uma marcha lenta psicomotora que evita que eles se movam por si mesmos” (1996, p. 74). É esta a imagem que, como terceiro impulso, surge capturada pelas câmeras do cinematógrafo,

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e quando é exposta numa tela plana e de superfície se impõe como um estilhaço da noção de perspectiva clássica do espaço. A imagem surge abruptamente nessa tela plana, vem num crescendo em direção aos olhares fantasmáticos de uma multidão estupefata, vincando uma outra sugestão de tempo e uma quase assombração da imagem. A imagem vem sem desviar-se de seu eixo imaginário, vem de frente como uma manada de elefantes ou bois selvagens, desgovernada, vem em direção à massa (agora composta de ou-tro nome: espectadores) entre assustada e fascinada, que se esforça para tentar adaptar-se a esse outro aparelho e a essa outra dimensão do espaço que é o cinema. O cinema aponta para uma convergên-cia entre o mecânico e o orgânico, entre as características da noção de ambiente e as perturbações na percepção e no conhecimento do tempo e do espaço, e da história, e provoca de fato uma veleida-de de perigo e vertigem acerca da linguagem como representação. Uma linguagem que oscila entre o que seria um peso e o que seria uma leveza dos objetos no espaço do mundo, como experiência semovente da inércia e da aceleração do mais ordinário e precário da vida cotidiana.

Para adensar o plano prismático do quão comum essa imagem do trem se configura para o homem moderno, faço uso de duas ima-gens propostas por Walter Benjamin sobre o cinema: primeiro, ele propõe um alargamento da imagem que se elabora entre o homem e o espaço até o momento em que ela atinge a ilusão provocada pelo cinema; e depois, do quanto pode ser uma outra, que surge apenas porque é provocada a partir do cinema. Benjamin diz que há um perigo na constituição dessas imagens; diz que o cinema favorece o desmanche, que a imagem parece se desmanchar como aderência, ou mais propriamente, como experiência: “O cinema é a forma de arte que corresponde à vida cada vez mais perigosa, destinada ao homem de hoje. A necessidade de se submeter a efeitos de choque constitui uma adaptação do homem aos perigos que o ameaçam” (BENJAMIN, 1985, p. 25). Ao adaptar-se aos perigos, o homem pa-rece não se lançar mais no mundo de uma forma comprometida com ele, o homem aceita os desmontes do progresso e se desobriga, se resigna, torna-se isento, o que pode tornar o homem – ao ser en-golido pelo otimismo do progresso – um ser ausente de iniciativas,

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passivo, imóvel. Tanto que Benjamin chega a pressupor que é pos-sível uma tarefa social para o cinema, como se fosse uma emenda, ao tentar criar um equilíbrio entre o homem e a máquina, entre o homem e seus aparelhos de passagem e vida, de estar e de morar, porque o cinema explode com a noção de espaço, e arremessa o homem entre as ruínas, numa distância sem fim, para empreender caminho entre essas ruínas:

Uma das funções sociais mais importantes do cinema é criar um equilíbrio entre o homem e o aparelho. (...) Nossos cafés e nossas ruas, nossos escritórios e nossos quartos alugados, nossas estações e nossas fábricas pareciam aprisionar-nos inapelavelmente. Veio então o cinema que fez explodir esse universo carcerário com a dinamite dos seus décimos de segundo, permitindo-nos empreender viagens aventurosas entre as ruínas arremessadas à distância (BENJAMIN, 1985, p. 189).

UM

O alvoroço no modelo de espaço, de espaço cotidiano, criado por essas impressões sobre as imagens indica um pensamento acerca do trem como fulguração do moderno e, principalmente, do moderno como uma velocidade, uma política para a velocidade, uma concep-ção dromológica, uma dromologia, como indica Paul Virilio: “Dro-mologia vem de DROMOS, corrida. Portanto é a lógica da corrida” (1996, p. 46) e “Houve coincidência, com toda certeza, mas não há convergência entre o progresso dromológico e o que se conven-cionou chamar de progresso humano e social” (1996, p. 95). Assim, essa velocidade parece criar alguns impasses para que a imagem pos-sa ser, também, uma sugestão que se desloque e se descole para um outro sentido da experiência moderna, como a de abrir caminhos entre as ruínas por dentro e por fora de uma poética que passa a ocupar um lugar para outra “escavação da experiência” num contra a ideia protocolar do moderno, para agora propor um mover que é ao mesmo tempo o de reter e o de deixar ir, no tempo inseguro do instante, sem antes – sem depois – sem agora, como o senso

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proposto por Joaquim Cardozo do que poderia ser “uma paisagem, profundamente” por dentro de seu deserto íntimo, seu desterritório, para interferir radicalmente na catástrofe. Para Joaquim Cardozo, o trem comparece desde o começo numa outra esfera da paisagem fixa da máquina. Num relato (manuscrito, s.d.) intitulado “Na estação”, o narrador inscreve uma cena, a certa altura, que modula a relação do ser com a máquina para uma instância de sentido ausente; o trem está na memória como o mundo numa abertura cósmica a partir do espaço que nos toca e que também tocamos, mas agora desfeito e sem as dimensões mais arbitrárias do peso e da leveza como apenas imposições das leis da Física:

A princípio lembrava, de maneira vaga e indecisa, as diferentes pes-soas que viajavam, os que desciam nas diversas estações, em Areias, em Tejipió, em Socorro, em Jaboatão. Essas figuras quase apagadas de pessoas iam, aos poucos, aparecendo do fundo de minha me-mória; gente que eu evocava e ia reconhecendo, como também as paisagens onde passava o trem, com árvores altas nas colinas, com pequenos rios correndo embaixo nos profundos vales, com morros de pedras de onde a água límpida escorria. Nessa lembrança – eu ainda muito jovem e inexperiente – eu aparecia, como agora, senta-do naquele grande sofá esperando ou conversando com um compa-nheiro de trem; com Reinaldo, por exemplo, o pianista que voltava do cinema onde era chefe da pequena orquestra do, na época, mais importante cinema do Recife.

Mergulhado nessa meditação – não sei quanto tempo passei – veio- me a vontade de abandonar aquele lugar deserto, sem sopro sequer do vento mais leve, sem o som mais ligeiro de uma voz ou choro de criança. Por que estava ali dentro daquele silêncio?

Nancy diz que o espaço como busca de um sentido se faz numa miríade de mosaicos, que são deflagrações que se propagam com lenta fulguração, porque “la velocidad en cuanto inmóvil de movi-mientos que atraviesan el espacio menos de lo que lo abren y menos de lo que espacian a él mismo en sus móviles y sus mociones, univer-so en expansión y/o implosión” (2003, p. 65). O que diz Nancy pode ser apontado para o que Joaquim Cardozo escreve, neste pequeno

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trecho, como um silêncio ao sentido do mundo, o seu deserto por dentro do trem que explode e implode num mesmo tempo cósmico. Ou um trem que atravessa o seu próprio deserto de ser, uma espécie de “espacio-textura de espacios huidizos, curvos, invaginados (...), universo cuya unidad no es más que la unicidad em si abierta, dis-tendida, distanciada, difractada, desmultiplicada, diferida” (NANCY, 2003, p. 65). Aquilo que Benjamin também diz como uma espé-cie de recusa em pegar o trem do mundo moderno apenas como um hábito, e que relampeja numa inércia do coração, num saber de cor, pela acedia, “que desespera de apropriar-se da verdadeira imagem histórica, em seu relampejar fugaz” (BENJAMIN, 1985, p. 225), para escovar a história num contra mover, mover a história a contrapelo; esse contramover se dá numa reflexão sobre os despojos da história (que para ele são os bens culturais) e, principalmente, num contramover que refaz um lugar desses despojos mesmo que por meio do horror num sem sentido da história. Para Benjamin, nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie. É a isso que na Tese VI Benjamin chama de articular historicamente um passado, arrancar uma tradição do conformismo, apoderar-se dela para fazê-la relampejar num instan-te de perigo, num cairós. Mas é na “Tese IX Acerca do conceito de história”, a partir do anjo de Klee, o Angelus Novus, que Benjamin comenta sobre o que ele chama de uma “catástrofe sem trégua”, de uma catástrofe que se monta em “um amontoado de escombros que cresce até o céu”; porque para ele a simples ideia de um progresso linear da história (como a imagem do trem que entra numa estação e faz com que uma multidão crie o hábito de pensar que agora há um equilíbrio entre o gesto impensado e a prótese, um projeto de endocolonização) pode levar a uma repetição do passado, e com isso a novas catástrofes cada vez maiores e mais desoladoras. Diz a conhecida tese de Benjamin:

Existe um quadro de Klee intitulado “Angelus Novus”. Nele está repre-sentado um anjo, que parece estar a ponto de afastar-se de algo em que crava o seu olhar. Seus olhos estão arregalados, sua boca aberta e suas asas estão estiradas. O anjo da história tem de parecer assim. Ele

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tem seu rosto voltado para o passado. Onde uma cadeia de eventos aparece diante de nós, ele enxerga uma única catástrofe, que sem cessar amontoa escombros sobre escombros e os arremessa a seus pés. Ele bem que gostaria de demorar-se, de despertar os mortos e juntar os destroços. Mas do paraíso sopra uma tempestade que se emaranhou em suas asas e é tão forte que o anjo não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, para o qual dá as costas, enquanto o amontoado de escombros diante dele cresce até o céu (BENJAMIN, 1985, p. 226).

E é esse impasse do ser da história que vinca a poética de Joaquim Cardozo por dentro como um trem pelo deserto – “Alguém pergunta: ‘Estamos perto?’ E estamos longe” (FAUSTINO, 1985, p. 193) –, uma poética que arma um impasse ao ser para a história, na fulguração de uma imagem que desdobra todas as anteriores tratadas até aqui: um instante e uma interferência no museu de cabeças da história. Uma imagem que vem como o anjo de Klee na tese de Benjamin e que pode vincar a poética de Joaquim Cardozo como um agenciamento do problema moderno como se fosse um avesso do território, um peso às avessas, que pode estar ali, ou aqui, ou acolá, tanto faz, ou nem estar, já ter sido, como uma zona de fronteira, movediça, pantanosa, em que a própria noção de fronteira desaparece, sendo ela mesma um elemento incorporado, de incorporação; contraditório, às aves-sas, segunda natureza ou artificial, mas sempre e antes um campo de tensões, um com-fim, um deserto. Para Joaquim Cardozo a pintura de Klee cumpre um afastamento da pintura abstrata, porque “a nova arte ‘abstrata’ das ideias de Klee teria alcançado na cidade sagrada de Kaiman aquela objetividade do homem oriental, força, energia que não cessa e sempre se transforma, já presente na literatura védica” (CARDOZO, 1955).

Essa fulguração de um museu de cabeças comparece, pois, como uma imagem para ver o outro, como a dobra de uma paisagem para ver e um às avessas do que se contempla como visto, e está em uma peça de teatro de Joaquim Cardozo, intitulada Antonio Conselheiro, que foi publicada pela primeira vez em 1975. Roland Barthes nos lembra em seu livro Incidentes que a palavra teatro vem do grego e “vem de um

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verbo que quer dizer ‘ver’” (BARTHES, 2004, p. 54).1 Assim, a palavra teatro significa não só um gênero de arte, mas também uma ideia de casa, ou ainda uma ideia de lugar, de uma edificação, em que se apre-senta uma variação em tipos de espetáculo. Ela provém da forma grega théatron, derivada do verbo theaomai, que para nós significa “ver”, e do substantivo thea, que seria “vista”, no sentido de um panorama, ou uma paisagem, talvez. A forma em latim, por sua vez, é teatrum, que seria um lugar em que se vai para ver. No quarto quadro do segundo ato da peça (que tem dois atos), armando um lugar para uma imagem que está ali para ser vista, desenvolve-se uma cena central que é representada em uma galeria com vitrinas alinhadas, onde estão expostas algumas cabeças de alguns personagens da história, todas elas dispostas na mais perfeita e estudada ordem; e são todas elas cabeças que foram separa-das de seus corpos, decapitadas. O que está ali para se ver é um museu em formato de degraus, como o teatro grego, uma arena em degraus, como uma escada que sobe até o céu (cena que era muito comum no sertão nordestino), com as cabeças de São João Batista, de Maria Stuart, de André Chénier, de Cícero, de Maria Antonieta, de Maria Bonita, Lampião, de Tiradentes, de Ribas, de Antonio Conselheiro etc.

Esse museu de cabeças está ali como um cenário-suplementar da peça, e entram na sala as duas personagens protagonistas, que se

1 Um desdobramento a esse ver dito por Barthes em seu Incidentes, numa de suas anotações de flánerie, acerca de um certo “desejo de escrever”, na posição fundamental de “quem faz alguma coisa” como uma interdição para além da fala que suplica, diz: “Coloco-me na posição de quem faz alguma coisa, e não mais na de quem fala sobre alguma coisa: não estudo um produto, endosso uma produção; suprimo o discurso sobre o discurso; o mundo já não vem a mim sob a forma de um objeto, mas sob a de uma escrita, quer dizer, de uma prática: passo a outro tipo de saber (o do Amador)...” (BARTHES, 2004, VIII). O que deixa possível entender um risco de superfície do modernismo ausente, por exemplo, de Joaquim Cardozo. Numa parte do livro intitulada “Noites de Paris”, de 25 de agosto de 1979, Barthes traça uma proposição interrogativa aparentemente solta e que passa a fazer muito sentido nessa ausência; diz ele, quando volta para casa depois de perambular pela noite vazia, e de volta para a leitura de Memórias de além-túmulo, de Chateaubriand, sobre a história de Napoleão, “o verdadeiro livro”: “Sempre este pensamento: e se os Modernos estivessem enganados? Se não tivessem talento?” (BARTHES, 2004, p. 69).

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chamam João e Maria, um casal de namorados. E nada mais comum, gasto, usado, como representação dos casos de homonímia no sertão nordestino, do que os nomes João e Maria. Entre arvorados e dis-traídos, um por causa do outro, terminam por não prestar atenção nos objetos que lhes são apresentados por uma voz; voz que também não ouvem, ou não ouvem muito, apenas um breve rumor dessa voz que vem de um alto-falante (o alto-falante da história?) que esbraveja violentamente mesmo sem ser ouvido e anuncia para eles, fileira por fileira, as cabeças expostas nas vitrinas, cabeça por cabeça. Até que os gritos do alto-falante, que está ali também como uma espécie de personagem, vêm como um rumor da voz; e as vitrinas, agora todas apagadas, vão sendo iluminadas uma a uma, numa seriação vertigi-nosa e descontínua de silêncio e da história, iluminando também as cabeças para chamar atenção, como uma saliência, para o amontoado de escombros que cresce diante deles em cada estouro singular de luz e de nome. Eles agora têm os rostos voltados para um passado disfor-me, que não sabem, não conhecem, nem entendem, não ouvem e, ao mesmo tempo em que se questionam acerca do que tentam ver, trocam também impulsos amorosos.

O gesto entre as duas personagens é o tempo inteiro erótico e desejante, como numa fala de João para Maria: “Já não tenho mais palavras / Para contar-te o meu desejo; / Já não tenho gestos para possuir / O teu contato e fazer / eu tato em ti mais penetrante”, e na resposta de Maria a João: “Palavra! Tudo é palavra? Gesto! / Tudo é mesmo gesto. / Que venha aquele que há de ser, / Aquele que será único e para sempre / Em mim. A tua palavra é um voo, / O meu ges-to é um grito.” Entre a história e um desejo privado para uma outra história singular e erótica, a cena segue se desenrolando e sugerindo que as personagens agora estão no meio de uma cadeia de even-tos que aparece diante delas, e elas veem um lampejo, num cairós, que pode interferir na catástrofe que se amontoa em escombros, arremessada diante de seus pés por dentro do desejo que sentem. Joaquim Cardozo insere o gesto sobre a palavra, o gesto indefinido de João e Maria, convulsivo, descompassado, sempre outro, indefi-nidamente outro, que é uma suspensão para tocar um limite, para apontar e inscrever um limite, mas sem negociar, sem abolir a políti-ca da graça de uma potência num corpo comum; o de que escrever

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é para o outro, escrever significa, como disse Nancy, escrever a causa do outro. E assim, a seguir, se anuncia o quadro da peça, quando se ilumina a primeira vitrina, iniciada pela voz secreta e sem nome (e inesperada, como são todas as vozes que aparecem nos poemas e outros textos de Joaquim Cardozo) que sai do alto-falante, da apari-ção da primeira cabeça de São João Batista até a da última cabeça, de Antonio Conselheiro; seguem trechos:

Alto-falanteEsta é a cabeça de São João Batista,É a peça mais rica deste museu;Foi um santo, como todos sabem.A sua cabeça foi desejada por Salomé,A bailarina e amante de Herodes;Esta peça nos foi legada pela própria dançarina;Esta é a cabeça do primeiro santo: São João.

Maria (pára, volta-se para João e olha-o amorosamente nos olhos)João! Querido João! Quero mirar-meNo espelho d’água dos teus olhos, João:Quero receber o batismo dos teus olhos,O batismo do teu sangue.

(...)

João (erguendo um pouco os olhos para o alto)Ouviste uma voz? Parece que neste silêncioSoou uma voz... Uma voz inesperada...

Maria Uma voz? Só a tua eu ouço,Somente a tua voz é letra, é forma, é som,Somente a tua voz é carne, João.

Agora aparece iluminada a vitrina, onde está a cabeça de Cícero, o grande orador romano.(...)

João Já não tenho mais palavrasPara contar-te o meu desejo;

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Já não tenho gestos para possuirO teu contato e fazerO meu tato em ti mais penetrante.

Maria Palavra! Tudo é palavra? Gesto!Tudo é mesmo gesto.Que venha aquele que há de ser,Aquele que será único e para sempreEm mim. A tua palavra é um voo,O meu gesto é um grito.

(a vitrina anterior apaga-se, ilumina-se a seguinte) (...)

Maria (rindo alegremente)Sabes de que me lembrei, João?Aposto que não serás capazDe adivinhar.

João Ora, se sei...O teu riso é uma linguagemQue aprendi a entender desde cedo,Desde que te vi pela primeira vez.Tu te lembras daquele diaEm que entraste na Igreja do Bonfim,E com os olhos na imagem do Senhor,Sem saber por que, rezaste por mim.

Há um silêncio; o par de namorados continua a percorrer a galeria; ilumina- se agora uma vitrina, dentro dela está a cabeça com longos cabelos e barbas negras.(...)

João e Maria (a uma voz)Somos dois juntos, unidos: um par.Mas somos dois diversos,Dois que não somos parentes;Do nosso dois nascerão muitos,Muitos outros diferentes.

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Maria (só) – Sou uma flor, és o vento.

João (só) – És a terra, sou a semente.

Os dois – Murchando em ti, não morrerei.(...)

João (surpreso, afastando-se um pouco de Maria)Agora ouvi uma voz;Tenho quase certeza de que ouvi uma voz,Uma voz apagada, como vinda de muito longe,Como feita de gemidos,Como feita de choro e de fome.

Maria (encostando a cabeça no peito de João)Estou ouvindo, estou ouvindoMas é a música do teu coraçãoQue será em breve convertidaEm balbucios de bocas pequeninas, Em respiração e choro de crianças.

Continuando sempre a andar, o casal de namorados está quase próximo à saída da galeria. A voz no alto-falante anuncia mais uma cabeça.(...)

Alto-falante Enfim aqui está a última peçaConservada nesta galeria:Olhos fundos cheios de terra,Boca fendida como fenda de terra,Terra seca do Nordeste!É a cabeça de Antônio ConselheiroPatriarca de Canudos.– Região deserta e muda e triste –Guia de homens abandonadosNuma região convulsa e destroçada,

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Que aos seus olhos iluminadosPareceu uma terra prometida,E por isso a batizou de Belo Monte.

João Quando a minha música, Maria,Soará neste mundo feito em vozes?Em sons novos e generosos?Quando ela se transformaráEm rumor de passos vacilantes?Em algazarra de vozes infantis?

Maria Quando chegares ao alto do meu corpo deitado,E olhares o horizonte que de mim se vê;Quando subires, João, o meu Belo Monte.(Saem)

Nota: A relação entre o que diz o alto-falante e o que dizem João e Maria é de uma ordem linguística por assim dizer “semênica”. Há so-bre o que eles dizem uma certa influência dos ultra-sons (CARDOZO, 2001, p. 120-127).

Quando o alto-falante convida João e Maria a repararem na cabeça de São João Batista, Maria só vê João, como numa esfinge do desejo, as relações de sêmen, que têm a ver com começar, semear, relações semênicas. O que remete também a semema, que seria, por sua vez, um conjunto de semas, esses traços semânticos mínimos e sempre dependentes uns dos outros. E se esse quadro da peça esboça cumprir uma trajetória – que vai desde a cabeça de São João Batista, “a cabeça do primeiro santo”, até a cabeça de Antonio Conselheiro, nome que também é título, com “Olhos fundos cheios de terra, / Boca fendida como fenda de terra, / Terra seca do Nordeste!” –, essa fenda aberta na boca de Conselheiro, como se aberta na terra, cumpre também um lugar para a voz de um território deserto. A voz do alto-falante só se faz ouvir por João, mesmo como um rumor apagado, quando apare-cem as cabeças nordestinas: a de Lampião, depois a de Maria Bonita e, por fim, a de Antonio Conselheiro; é uma voz de choro e de fome, uma voz que geme: “Agora ouvi uma voz; / Tenho quase certeza de

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que ouvi uma voz, / Uma voz apagada, como vinda de muito longe, / Como feita de gemidos, / Como feita de choro e de fome.” Joaquim Cardozo propõe nesse quadro da peça o que é possível chamar, usan-do uma expressão dele, nos versos da terceira estrofe de seu poema “Os objetos antes da noite”, um mover do ser como uma arquitetura oscilante, um ante-ser, uma aparência: “De transparências inconstan-tes / De arquiteturas oscilantes / Parece que regrediram ao ser do ante-ser / À sugerência do que seriam antes da forma que lhes deram. / – O que aparece é o que parece: um parecer / No seio do que ainda não é noite.” Ou seja, um espaço para a ficção, e como tal, um espaço em que a literatura se apresenta “não como um documento da existência (o que acarreta, antes ou depois, concepções monumentalistas da cul-tura), mas como formação do mesmo viver comum, um saber da ex-periência tão impossível como necessário” (ANTELO, 2001, p. 27). Os trechos da peça, em que “predominam a multiplicidade, a exuberân-cia de quadros dispostos lado a lado, como num vagão” (LEITE, 2001, p. 9), além de tocar o impasse acerca da catástrofe, tocam também um segredo do ser como ausência quando armam uma encruzilhada, a partir do poder da ficção, nas falas incessantes do alto-falante, e são “uma recusa aos grandes discursos salvacionistas que exaram promes-sas e uma mal disfarçada piedade pelos famintos e desamparados” (LEITE, 2001, p. 9).

A ideia de exarar é, antes, a mesma ideia de abrir, de lavrar, de talhar, de vincar uma linha de fuga por dentro do deserto, mantendo-o ali como um espaço possível e aberto, ao fazer emergir o obtuso e algo mais do que ele, uma “autêntica estética da desaparição” (ANTELO, 2001, p. 31). O que também é possível pensar como a percepção de uma terra de nomadismo, e como tal, sem história, uma terra sem his-tória (expressão de Euclides da Cunha), aquilo que Raúl Antelo postula como uma “mescla entre a opacidade dos particulares e a transparên-cia dos universais” (2001, p. 35) e como uma possibilidade para se “representar o vazio do presente” (2001, p. 36). Enfim, seria “o excesso sem intercâmbio de uma significância local ou menor, que ainda não pertence à política atual embora já anuncie, pela sua própria desapa-rição, a política futura” (ANTELO, 2001, p. 31). Isso pode ser lido nas personagens João e Maria, nos seus rumores, nos passos vacilantes e ao mesmo tempo nos jogos amorosos de gozo para o outro, quando

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a cada fala um faz também falar o outro. É a voz política como har-pa eólica, solta no tempo para uma outra história possível, quando o sentido é tocado pelo vento da linguagem: “O sopro que te leva”, na fala de João, e “A liberdade em mim vem de ti somente”, quando os dois falam juntos e “Sou uma flor, és o vento”, na fala de Maria. O que passa a haver é a voz do outro e não mais a voz oficiosa da história que brada chamando atenção a um sopro de um tempo, porque a única penetração possível é aquela que leva ao silêncio e ao exterior de si: a experiência erótica, semênica, de começo. Quando o alto-falante anuncia a cabeça de Maria Bonita, João rapidamente se volta para Maria, olhando, e diz: “Como és bonita, Maria!”. E mesmo quando é anunciada a cabeça de Antônio Conselheiro, o que andou por um lu-gar deserto, mudo e triste, destroçado e convulso, um guia de homens abandonados que lhes prometeu uma terra nova, chamada de Belo Monte, Maria responde numa reprodução aparente da tela de Gustave Coubert, A origem do mundo, pintada em 1866, um ano antes da mor-te de Charles Baudelaire, num outro mover a um começar: “Quando chegares ao alto do meu corpo deitado, / E olhares o horizonte que de mim se vê; / Quando subires, João, o meu Belo Monte.”

O encanto de Joaquim Cardozo por Coubert, que pode ser lido nesta fala de Maria, vem do risco de uma convicção deste com a sua pintura e se explicita num comentário de um artigo publicado na Para Todos, nº 25, sobre o livro A paleta e o mundo do crítico português Mário Dionísio (dois volumes publicados respectivamente em 1956 e 1960). Joaquim Cardozo diz que a atitude de Coubert com a pintura é voluntariosa e está numa linha social-realista, uma linha vária, uma va-riedade num espaço complexo dos acontecimentos histórico-artísticos da modernidade. Diz também que Coubert comete uma pintura de convicção, o risco de uma convicção. Para Joaquim Cardozo, Coubert comete também, ao mesmo tempo, por meio dessa convicção, uma persuasão íntima.

Bataille aponta, acerca do erotismo, que “a experiência erótica nos leva ao silêncio” (2004, p. 397). E também que “O erotismo tem, de uma maneira fundamental, o sentido da morte. Aquele que apreende por um instante o valor do erotismo percebe rapidamente que esse valor é o da morte” (2004, p. 412-413). Diz ainda que “essa expe-riência efetivamente nos descompõe, ela exclui a reflexão calma, uma

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vez que seu princípio é nos colocar fora de nós” (2004, p. 408). O horizonte que chama atenção na fala de Maria é o do desejo, e dese-jo, como ficção da história e como convicção, é aquilo que pode nos colocar fora de nós. Ao mesmo tempo esse horizonte pode ser lido como certa impossibilidade de uma épica, como um pressuposto de um vazio para o território da história, e que o território como fora de nós não é senão o deserto. Como diz Raúl Antelo, no espaço da ficção “cabe, com efeito, não apenas o discriminado em outros espaços, mas o indizível e o rumor, o obtuso e o inconfessável, babel e algaravia” (2001, p. 26); assim, estamos diante de um museu de cabeças – quan-do o deserto se rompe – que se apresenta como um lugar para um estilhaço da história, para o cadáver da história.

DOIS

Em uma passagem de Rua de mão única, intitulada Souterrain, Walter Benjamin faz uma anotação muito aproximada ao museu de cabeças de Joaquim Cardozo numa imagem turva e estremecida de um cadáver de um homem que, ausente, toma a voz primeiro num rumor e num inconfessável, para afirmar uma morada aos monturos, uma casa desassemelhada, numa ruína do homem moderno, e numa reminiscência que se compõe por meio do esquecimento e num áti-mo dos vários tempos da vida, um seu cairós:

Esquecemos há muito tempo o ritual sob o qual foi edificada a casa de nossa vida. Quando, porém, ela está para ser assaltada e as bombas inimigas já a atingem, que extenuadas, extravagantes antiguidades elas não põem a nu ali nos fundamentos! Quanta coisa não foi enterrada e sacrificada sob fórmulas mágicas, que apavorante gabinete de rari-dades lá embaixo, onde, para o mais cotidiano, estão reservadas as valas mais profundas. Em uma noite de desespero eu me vi em sonho renovar tempestuosamente amizade e fraternidade com o primeiro companheiro de meu tempo de escola, que já há decênios não conhe-ço mais e de quem mesmo nesse instante mal me lembrava. Ao des-pertar, porém, tinha posto à luz do dia, era o cadáver desse homem, que estava emparedado lá, parecendo dizer: quem mora aqui agora não deve assemelhar-se a ele em nada (BENJAMIN, 1987, p. 12-13).

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Essa mesma imagem pode passar a ser, de alguma maneira, um trem-tempo, um tempo-trem, com capacidade e voracidade onívoras, numa espécie de modernismo “mais ausente do que participante”. Talvez até como uma construção de um tempo da experiência que pode ser chamado de cósmico, a tal luta cósmica, e que não tenha nenhuma ilusão do movimento. Um “tempo detergente” (uma ex-pressão sugerida em um poema do poeta português Ruy Belo) que traria por dentro dele mesmo uma imagem da vida cotidiana, engolida e inodora, uma imagem da vida pequena que compareceria agora como material antipoético, mas também, por sua vez, como único material poético possível a este tempo de impasses: da destruição da experiência/da construção do deserto – da destruição do deserto/ da construção da experiência. Tudo isso, numa genealogia do vazio, como possibilidade da experiência escavada e profunda, da experiên-cia-limite com o deserto, como deserto, como assombro e como um “princípio esperança”.

É o mesmo Benjamin que em seu texto “Imagens do pensamento”, ao falar de Nápoles, aponta essa casa, a partir de uma ideia nórdica, como “célula da arquitetura urbana” e, talvez, também como “a casa de nossa vida”, ao mesmo tempo em que diz de uma imagem do perder-se entre as casas, isto quando anota que “ninguém se orienta pela numeração das casas. São lojas, fontes e igrejas que dão pontos de referência. Nem sempre fáceis” (BENJAMIN, 1987, p. 148). De-pois acrescenta ainda: “A casa é muito menos asilo, no qual as pes-soas ingressam, do que o reservatório, do qual efluem. Não apenas de portas irrompe a vida. Não apenas para os átrios, onde sentadas em cadeiras, as pessoas executam seus afazeres, pois têm a faculdade de transformar o corpo em mesa” (BENJAMIN, 1987, p. 152). Como se houvesse uma miséria humana ao esgotar o princípio de um desejo com o desaparecimento do corpo e a imposição de um corpo imóvel, como uma mesa. E mais radical ainda ao dizer que “a casa tem ainda limites rigorosos” (BENJAMIN, 1987, p. 222), mas que se quebram continuamente, perfazendo também infinitas fronteiras que refazem o espaço-território de uma morada a partir de seu mais denso aniqui-lamento: é a casa sendo invadida e invadindo os espaços exteriores, provocando inúmeras encruzilhadas e desertos. É essa uma casa de encruzilhadas, essa morada que é ao mesmo instante dos homens sem

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morada fixa e de seus desertos e que passa a ser também, assim, a morada dos territórios desconfigurados, dos estilhaços do território e até mesmo do deserto e da miuçalha da história.

Desde o início de seu trabalho poético, Joaquim Cardozo já apon-ta um sentido de peso para o rumor e o inconfessável da palavra “mora” dentro de um contexto que lhe era primevo a um seu fazer, à palavra como gesto, ou como parte do fenômeno arquitetônico; a palavra numa poesia do concreto que se instaura como lugar, como casa, como morada. Essa mora, como partícula mínima e como vida pequena, cumpre uma morada desfeita que seria também um gesto na poética de Joaquim Cardozo, gesto que ele mesmo explicita entre construir e morar a partir do fenômeno da arquitetura: “A fenome-nologia do espaço arquitetônico implica assim no receber a imedia-ta compreensão de dois fenômenos: construir e morar” (CARDOZO, 1956). Esses dois modos de manifestação do fenômeno, na poesia de Joaquim, podem implicar, assim, outros prismas que suplantam e sustentam a questão da sobra, o caráter do estilhaço e de uma poé-tica que escapa às tensões de certa euforia nacionalista modernista brasileira por se colocar num desvão, numa espécie de fronteira ou “fronteira da alteridade radical” (a expressão é de Raúl Antelo, 2001, p. 31). Joaquim Cardozo diz que:

... , morar vem de mora, medida de uma demora, de um espaço de tempo, medida de uma voz, de um som: a vogal breve possui uma mora; a vogal longa possui duas; três, possuem certas vogais da língua védica, as pluti; e muitas moras possuem a vogal em certas neumas do canto gregoriano.

Nos entes que constituem, em seu conjunto, o fenômeno arqui-tetônico está sempre e muito presente essa unidade: até ao ponto de chamarmos morada ou moradias as casas que habitamos, e nesses entes também, a quantidade de morar é variável: moramos mais nas casas que habitamos do que naquelas em que trabalhamos, ou nos divertimos (CARDOZO, 1965).

É essa mora que é ao mesmo tempo um cerco e que indica um lu-gar para a ordem e também para um espaço desterritorializado, que indica um lugar vertiginoso da própria condição do espírito humano

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moderno e despedaçado, do ser como fragmento. Isso pode ser referendado naquilo que Giorgio Agamben, num pequeno e bonito ensaio intitulado Fábula e História – considerações sobre o presépio, propõe pensar como uma especulação da história envolvida no monu-mento que a representa como redenção, o presépio. Diz ele que nós, homens dessa esfiapada e extrema fímbria do século da história – este nosso tempo desde o moderno – tomamos como possibilidade o ges-to que “separa o mundo do presépio do mundo da fábula” (2005, p. 154) para criar uma contraposição a essa miuçalha da história, e que por meio do caco e do farrapo isolado numa “salvação do pequeno” (2005, p. 156) o mundo pode voltar a confiar numa esperança de um outro despertar histórico. A partir disso seria possível tomar cada re-talho num vir-a-ser imediata e historicamente completo, como talvez numa espécie de cairós, que concentra num átimo todos os vários tempos da vida. Diz Agamben que isso se insere numa cifra, e que essa cifra é a miniaturização, por onde se dá uma liberação profana do encanto. Diz que a natureza está para entrar na fábula; pedinte, ela solicita a palavra à história, e o homem não deveria permanecer mudo frente a esse encanto. O homem, em sua penumbra poética, numa noite escura, pode despertar a fabulação e desvelar aquilo que emer-ge do mistério da palavra, uma ampliação de seu próprio mistério.

É pois como homem trágico que não tem outra saída senão flertar com este plano tátil das sobras do mundo, em sua penumbra poética, e também do mundo particular que se fulgura na mora, na casa despe-daçada do território, como solidão e também como sentido de morte, que Joaquim Cardozo escreve um relato (manuscrito e sem data) com título de Minha tia Dondon. Esse relato está num conjunto de textos que têm origem numa vivência de Joaquim Cardozo nas regiões mais pobres do nordeste brasileiro e entre os seus habitantes. E é ao mesmo tempo uma experiência singular com a região Nordeste mais dentro e mais pobre para capturar não o seu fatídico e comum padecimento, o da seca ou de seus governantes injustos, mas para capturar a sua mais densa assombração. E capturar a assombração no Nordeste passa por uma experiência de desfazer o limite por dentro do instante como ponto inextenso e inapreensível, ou de des-limite com o corpo; passa por uma penetração naquela dimensão do erótico como pulsão ou sentido de morte, mesmo que esse sentido tome as beiras do macabro.

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Joaquim Cardozo, quando escreve sobre Guernica, de Picasso, por exemplo, diz que essa pintura é uma expressão de uma grande soli-dão, como as Soledades de Gôngora já antecipadas no pensamento espanhol por Jean Cassou, mas ao mesmo tempo chama atenção para que se possa atribuir a essa solidão um significado mais amplo, mais largo e mais livre das evidências de símbolo nacional. Picasso é, para ele, um artista não adaptado, nem a um estilo nem a nada, e que ficou mergulhado “numa investigação permanente, numa tensão de espírito sincera, fiel e voluntária” (CARDOZO, 1956, p. 9). Essa pintura, mes-mo que seja a partir dos desastres de uma guerra civil na Espanha, o país de Picasso, para Joaquim Cardozo cumpre também um assombro e um desvio, é uma pintura “animada por um violento sopro de tra-gédia, verdadeira tempestade torcendo as coisas e os seres vivos, des-conjuntando, decepando os membros do corpo humano, dos animais e dos objetos, mas tragicamente conservando-os ainda unidos numa arrumação caótica e macabra” (CARDOZO, 1956, p. 9).

A personagem Tia Dondon, então, é uma dessas assombrações e habita o limite extremo da experiência no emudecimento do indizível e, posteriormente, da antecipação da morte. Tia Dondon é como um chapéu solto no mundo, um inutensílio, como um poema. Abandona-da no fundo da casa, num quarto escuro, sem nenhuma janela e sem nenhuma outra fresta. Durante as tempestades, ela teimava em sair do quarto sempre muito assustada com os trovões e relâmpagos – “como se pode ajudar a cosmicização do espaço exterior no quarto” (BACHELARD, 1993, p. 45) –, como um fantasma de si mesma para catar num gesto de doçura vertiginosa as sobras das coisas quebra-das deixadas pela casa, principalmente os brinquedos quebrados das crianças espalhados pelo espaço infinito daquela casa grande do sertão: “Andava pelas dependências da casa, nos momentos em que ninguém se encontrava, apanhava o que achava no chão, abando-nado”. Depois, Tia Dondon crescia o gesto e remontava num outro movimento, para outra duração do espaço e para uma espécie de recomposição da história perdida a partir dos cacos soltos dos brin-quedos; ela refazia os brinquedos, ou fazia outros brinquedos para lhes recuperar a alma morta. Tia Dondon termina por incorporar uma preferência ao catar os breguessos no chão daquela casa, e com seu mover insano procura recompor a miuçalha da história, agora, para

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que cada breguesso seja historicamente completo. Isso se faz como um gesto piedoso, de compaixão, para dar às coisas abandonadas, como se num museu de cabeças da história, uma irradiação de vida e esperança numa arrumação caótica. Seguem alguns trechos do relato:

(...)Era muito velhinha a minha tia-avó, a quem chamávamos Dondon; era uma das irmãs do meu avô paterno e, como ele, preferiu morar com meu pai, não com as irmãs, com as quais não se dava bem. Morava num quarto da grande sala de jantar, quarto que era uma alcova, isto é, não tinha janela; e conservava também, sempre fechada, a única porta de entrada.(...)Principalmente a minha tia Dondon temia as tempestades quando elas apareciam no horizonte, sempre do lado do nascente, sobre a cajazeira grande. Ela saía nervosa do quarto, com um rosário na mão e uma campainha, dirigia-se para a janela que ficava na sala, bem à frente do seu quarto e, por detrás das reixas, ficava rezando o terço e tocando, de vez em quando, a campainha; não sei onde aprendeu esse feitiço, esse esconjuro para afastar tempestades; o fato é que sua magia parecia afastar da nossa casa o perigo da queda de um raio. Também era, nesses períodos de tormentas, o único motivo que a fazia sair do seu quarto, durante a noite; durante o dia, saía aos domingos para ouvir missa, apenas nos dias em que não chovia. Além disso, andava pelas dependências da casa, nos momentos em que ninguém se encontrava, apanhava o que achava no chão, abandonado; aliás, esperava que essas coisas desprezadas não fossem mais de uso; não pudessem, de qualquer maneira, ser procuradas: eram carretéis vazios de linha, que ficavam largados no chão, pelos cantos, sem préstimo; carretéis de vários tamanhos, cuja linha tinha sido usada na sala de costura e rolavam pelo chão; recolhia-os, guardava-os, sobretudo os de madeira, pela sua forma ainda firme e segura, bem-feitos, bem contornados, podendo, no seu entender, ser utilizados. Eram caixas de fósforo de vários tamanhos, também deixadas sem uso pelos cantos da casa; caixas de fósforos ou de caraduras, que tinham servido para guardar pequenos foguetes; frascos de perfumes vazios e outros tipos de invólucros, já também em desuso. Tia Dondon tinha preferência

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pelos brinquedos; os brinquedos que nós, meninos, recebíamos nos dias de festa; além das bonecas das meninas, pequenos trens, car-rocinhas, pequenos bois, cavalinhos de madeira que, logo depois de quebrados, são deixados como lixo, sem préstimo. Pelo Natal, pelo Carnaval, ou pelas festas do mês de junho, era grande a colheita que ela fazia. Pelo Natal e Ano Bom, ia recolhendo os velhos calendários substituídos pelos do novo ano; as flores que tinham figurado durante o ano, agora substituídas; pelo Carnaval, eram as bisnagas, eram sacos de papel picado, ainda cheios de confetes; eram as bombas de chei-ro não arremessadas durante os folguedos dos três dias de Carnaval. Pelas festas do mês de junho, guardava as caixas vazias de traques, as tabocas vazias atiradas, as tabocas dos busca-pés, dos foguetes do ar; bisnagas com cheiro e coloridas (destas, aliás, sempre envolvidas em papéis coloridos, deve ter feito uma grande coleção); mês de agosto, mês de muito vento; mês em que se usava, naquele nosso subúrbio, empinar papagaio; também os velhos gamelos, os buzamar, os jarros, as pipas, os livros, eram também guardados por minha tia.

Havia na sua atitude, nesse seu movimento, um gesto de compai-xão, de piedade pelas coisas mortas e abandonadas; recolhia-as assim, carinhosamente, como se aqueles objetos tivessem também uma alma, uma alma dispersa, erradia e que mais tarde viria novamente a eles se incorporar: de novo os brinquedos se refariam, suas cores voltariam ao brilho primitivo, as bisnagas vazias se encheriam outra vez de água perfumada para serem usadas em futuros carnavais; as tabocas, por sua vez, também ficariam cheias de pólvora e depois vol-tariam a fazer curvas no ar, explodindo em outros vindouros festejos de São João; em outros meses de agosto, os gamelos, as pipas, os lírios voariam; e assim sucessivamente, como se existisse um céu eterno para as almas das coisas inanimadas. Já muito velhinha, minha tia só pensava no céu para ela; desejava também um céu para todos; no seu conceito, todos tinham direito ao paraíso, que era prefigurado como uma reprodução perpétua. (...)

Tia Dondon pratica o gesto para a magia, uma profanação, que se dá por trás das rixas humanas na casa, porque pensava num céu para ela, para todos e para as coisas, tudo por dentro da ideia de um lugar melhor: “Já muito velhinha, minha tia só pensava no céu para ela;

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desejava também um céu para todos; no seu conceito, todos tinham direito ao paraíso, que era prefigurado como uma reprodução per-pétua.” A casa e a demência para tia Dondon habitam um desvão completo, cheio de silêncio e vazio atravessados por sua respiração difícil, “o sarrido comatoso”. E é no fazer falar o silêncio, no refazer da experiência emudecida e morta por meio da coleta dos cacos no chão da casa, os materiais disponíveis e ao alcance da mão, e da ordenação deles em uma outra série e num cairós – “como se existisse um céu eterno para as almas das coisas inanimadas” – que se pode pensar um outro sentido para a poética ausente de Joaquim Cardozo contagiada pelo deserto, porque só pode falar no deserto, mesmo que enviesado; Derrida diz que “o poeta protege o deserto que protege a sua palavra que só pode falar no deserto; que protege a sua escritura que só pode fazer sulcos no deserto” (DERRIDA, 2005, p. 60).

Essa poética então passa a ter como percurso – ou como um proje-to – o sentido da mora não para legitimar-se, mas para desdizer para ela mesma e dela mesma um lugar, como um peso do tempo que cria sulcos no deserto, as suas imagens de vinco, como uma casa de habitação ou como uma morada temporária e sem genealogia, um desterritório: a da experiência do não, uma poética às avessas, como desmantelo e contraimagem. Falo de uma espécie de espaço que se configura não mais numa imagem fixa da geografia moderna a partir do trem, por exemplo, mas de um trem-tempo e de um tempo-trem, que corta um tempo detergente, num modernismo ausente, e numa linha cruzada, uma encruzilhada, construída para imediatamente de-saparecer (uma estética da desaparição?). A partir dessa linha se des-fazendo, dessa morada desconfigurada, que incorpora uma ideia de peso em suas sobras, em suas beiradas, é que se pode atravessar uma sugestão da linguagem como morada, uma linguagem-morada, uma língua-morada, que se inarticula como unidade temporal pontuada por uma política da velocidade que se coloca sempre à margem, de lado, perfazendo, pervagando uma via férrea que se abre para um infinito. O projeto da poética de Joaquim Cardozo parece montar-se numa linguagem movente, como demora-duração, como linguagem- espera e, principalmente, como linguagem-dromológica. É uma ima-nência do território instável que desfaz a noção de lugar e propõe outra coisa, como uma espécie de desgeografização ou uma geografia

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rebelde, outro lugar e outra paisagem. Vittorio Gregotti diz que “nós sabemos perfeitamente que a paisagem, não só a antropogeográfica, é sempre construída historicamente enquanto decisão de destinação ou de resíduo, com exceção do puro deserto” (GREGOTTI, 1975, p. 67).

É a palavra mora, como lugar, e como problema da estrutura e das intenções de leveza no cerco da poética de Joaquim Cardozo, que apresenta uma inferência propositiva em algumas linhas cruzadas, numa outra modulação do moderno, e naquilo que se dista e se apro-xima de uma ideia de peso, como arquitetura nascente (que antes poderia ser vista como permanente). Como seria então uma poética que ao mesmo tempo em que toca uma ideia de peso toca também uma ideia da leveza? Ítalo Calvino, por exemplo, em seu livro Seis pro-postas para o próximo milênio, numa parte intitulada “Leveza”, aponta para duas possibilidades de percurso com a literatura a que ele chama de “vocações opostas”, em confronto. Diz que a primeira vocação é “fazer da linguagem um elemento sem peso, flutuando sobre as coisas como uma nuvem, ou melhor, como uma tênue poeira, ou, melhor ainda, como um campo de impulsos magnéticos” (1995, p. 27); e uma segunda vocação, ou proposta, que seria “comunicar peso à lin-guagem, dar-lhe a espessura, a concreção das coisas, dos corpos, das sensações” (1995, p. 27). Diz ele que tatear um princípio da leveza é também principalmente tatear um seu contrário, um princípio do peso, e confirma a proposta ao categorizar o peso como aquilo que a linguagem toma para si como espessura, concreção das coisas, dos corpos e das sensações, sem perder de vista, por outro lado, uma flu-tuação direcionada, como um voo de pássaro, e nunca o voo de uma pluma, porque leve demais, e sim o voo do pássaro como algo mais perto de um campo de impulsos magnéticos ou de uma tênue poeira.

Calvino ainda diz que a preocupação de Lucrécio, em sua De re-rum natura, era construir uma poética que retirasse o peso do mundo, mesmo que também estivesse preocupado em escrever o poema da matéria, mas uma poética da matéria que seria feita de partículas invi-síveis. Uma poética que provocasse a “dissolução da compacidade do mundo, numa percepção do que é infinitamente minúsculo, móvel e leve” (1995, p. 20). E termina por concluir que “a poesia do invisível, a poesia das infinitas potencialidades imprevisíveis, assim como a poesia do nada, nascem de um poeta que não nutre qualquer dúvida quanto ao

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caráter físico do mundo” (1995, p. 21). A poética de Joaquim Cardozo teria como um agenciamento possível as várias marcas de peso e to-dos os desfazimentos da leveza que se pautam num invisível da fala que suplica. Uma fala que não duvida do caráter físico do mundo, como propõe Calvino, e que também está atenta às suas potencia-lidades imprevisíveis, como aquilo que morre ou como uma poeira do corpo desejante que pode, num cairós, refazer a história em seus cacos e migalhas por meio de um encontro do deserto com o inespe-rado da assombração, o seu diverso. Esta torção de uma tênue poeira, que está no corpo como vinco de desejo, por sua vez, é a proposta de Bataille em sua Poussière: é uma linha tênue ou um impulso radical como uma épaisse couche, são as nappes que aparecem como uma sujeira do corpo erótico, o corpo que ao sulcar a história também a deseja. Bataille diz que essa poeira, provável, é uma configuração para um outro peso da história como um corpo que aparece numa “vasti-dão do imponderável”.

Bataille coloca em risco todo o peso pré-fabricado da história como um desafio também à leveza palpável de uma construção calculada (esse peso e leveza que atravessam e estão atravessados por um projeto de um certo pensamento da arte e da cultura modernas numa história de suas particularizações como instituição e como formas de poder), para também impor um desafio a um “si mesmo”, para inventar um desterritório por onde não se pode saber, por onde tudo é sobra e con-tingência, uma experiência do não. Bataille coloca a questão num pris-ma político para além dos artifícios da representação e para aquilo que é falta, e como tal é também desejo, graça, esperança, sopro, atenção e o que escapa à história por dentro do mistério, do milagre, do bestial, da profanação: a poeira da história. Diz Bataille, em sua Poussière:

Os contistas não imaginaram que a Bela Adormecida acordaria co-berta por uma espessa camada de poeira; também não pensaram nas sinistras teias de aranha que o primeiro movimento dos seus cabelos ruivos teria destruído. No entanto, tristes camadas de pó invadem sem parar as casas terrestres e deixam-nas uniformemente sujas: como se fosse questão de preparar os sótãos e os velhos quartos para a próxima entrada das assombrações, dos fantasmas, das larvas que o cheiro a mofo da velha poeira substanta e embriaga.

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Quando as gordas raparigas “criadas para todo o serviço” se armam de manhã com um grande espanador ou mesmo um aspirador elétri-co, talvez não ignorem de todo que contribuem, tanto como os mais incontestáveis sábios, para afastar os malfazejos fantasmas a quem a limpeza e a lógica repugnam. É verdade que qualquer dia a poeira provavelmente começará, uma vez que persiste, a vencer as criadas e a invadir imensos escombros dos edifícios abandonados, docas de-sertas: e nessa época longínqua já nada subsistirá capaz de afastar os terrores noturnos que agora nos faltam e nos transformaram nos mais rematados escriturários... (BATAILLE, 1994, p. 109-110).

Assim, ao dizer toda essa imagem corrosiva, e sugerir essa poeira como uma persistência, como combate e agressividade, como uma assombração que pode recuperar a magia ou a penumbra poética, num desvio erótico contra o discurso pedagógico e institucional mo-dernista, seria possível ver nessa imagem da poeira, ou a partir dela, a fímbria possível da história como um deserto entre o instante e a graça, o que a aproxima da poética de Joaquim Cardozo. Uma poéti-ca que além de não tocar em nada estaria como aquela que também não pode ser tocada, senão também como uma poeira, como um lime, como uma assombração capaz de afastar toda a lógica possível. Uma poética que se obriga a existir, e se obriga a existir no espaço para tornar-se espaço, para praticar o ermo por dentro do espaço, compor um deserto íntimo por dentro e por fora do espaço, o deserto como uma experiência do fora numa tentativa de criar uma disposição para sair do moderno, esse “tempo que não tem anestesia” (DÍDIMO, 1967, p. 11). No poema intitulado ARQUITETURA NASCENTE & PER-MANENTE de seu livro Signo estrelado, de 1962, pode-se retomar o princípio do começar, como gesto, e traçar uma leitura que viria a de-sembocar no seu projeto poético mais radical, a meu ver, que é o do TRIVIUM, publicado em 1970 e composto de três poemas: “Prelúdio e elegia de uma despedida”, “Canto da Serra dos Órgãos” e “Visão do último trem subindo ao céu”. Mas, primeiro, neste poema em ques-tão, Joaquim Cardozo raspa um conceito da arquitetura muito caro a ele, tanto quanto aquilo que diz Bataille: “A arquitetura é a expres-são do verdadeiro ser das sociedades, tal como a fisionomia humana é a expressão do ser dos indivíduos. No entanto, como fisionomias

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de personagens oficiais (prelados, magistrados, almirantes) é que esta comparação deve sobretudo fazer-se” (1994, p. 89).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O que interessa a Joaquim Cardozo é a arquitetura como uma aber-tura e como poeira, aquilo que pode atravessar o museu de cabeças da história como desejo, aquilo que vai de encontro ao monumento, para fugir, como também propõe Bataille, à ralé arquitetônica. “A arquitetura para o homem, fica portanto, um problema aberto”, diz ele no final do depoimento no Encontro Nacional dos 50 anos da Arquitetura Moderna Brasileira, no Rio de Janeiro, em novembro de 1971. A sua ideia é a de imaginar uma arquitetura para o homem, não com predominância da fisionomia humana como dissimulação, mas como uma via aberta que pode indicar também uma monstruosidade bestial que insta essa arqui-tetura a uma percepção simultânea do espaço, um informe, uma forma formante, uma forma imperfeita: “O mistério desses espaços vazios e fechados que o homem constrói para seu abrigo e a cujas relações, das partes para o todo, foi dado o nome de arquitetura” (CARDOZO, 1955, p. 9). Em um texto intitulado Dois episódios da história da arquitetu-ra moderna brasileira, publicado na revista Módulo n. 4, ele comenta, acerca da arquitetura de Oscar Niemeyer, que ele achava ser um artista de grande ação especulativa e que tinha como propósito liberar a for-ma arquitetônica, sem o prejuízo das funções da arquitetura que estão ligadas à vida humana e de algumas vulgaridades que dão a ela uma “impureza do ponto de vista estético”. É a partir do projeto da Pampulha, em Belo Horizonte, que Joaquim Cardozo insiste numa ideia de que a forma arquitetônica não repousa mais sobre uma geometria tradicional, mas agora numa outra geometria que impõe um desafio e uma oposição “às teorias estabelecidas, onde se investigam as possibi-lidades de novas funções matemáticas que não se subordinam a essas teorias introduzindo no pensamento dedutivo um sentido de aventura e talvez mesmo sugerindo uma ordem para a fantasia”. Para Agamben a aventura é, no homem moderno, “o último refúgio da experiência. Pois aventurar pressupõe que haja um caminho para a experiência e que este caminho passe pelo extraordinário e pelo exótico (contraposto ao familiar e ao comum)” (2005, p. 39).

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O poema ARQUITETURA NASCENTE & PERMANENTE, de Joaquim Cardozo, está publicado numa parte do livro dedicada a Oscar Niemeyer (a quem ele chama de “arquiteto-poeta”), a Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto e Thiago de Melo (a quem ele chama de “ar-quitetos da poesia”, mesmo que a expressão possa soar, a meu ver, um pouco estranha ao último) e abre assim para um subterrâneo da forma também no poema, como estrutura ou sistema, quando propõe uma espécie de “intervalo aberto” na sintaxe e na métrica, um intervalo que também pode ser lido como uma duração, ou seja, uma temporalidade imanente, uma emancipação do espaço, “uma abertura a uma duração ontológica” (DELEUZE, 1999, p. 37), porque há várias durações por den-tro do poema ao tocar o espaço de uma outra forma que vai desde uma permanência do que não se fixa até uma nascente daquilo que pode morrer, como potência de vida. Deleuze diz, a partir de uma leitura de Bergson e do conceito de durèe, que se há uma duração nas coisas, e se as coisas também duram, se faz necessário retomar as questões do espaço em novas bases. O espaço, então, não seria mais apenas uma forma exterior das coisas, ou um quadro que desnatura as coisas em sua duração, “uma impureza que vem turvar o puro, um relativo que se opõe ao absoluto” (DELEUZE, 1999, p. 38), e argumenta que será pre-ciso que o espaço “seja fundado nas coisas, nas relações entre as coisas e entre as durações”, (DELEUZE, 1999, p. 38). Este é um problema que Joaquim Cardozo chama de esforço (porque no cálculo estrutural, seu ofício, esforço tem a ver com uma espécie de teoria da deformação, por-que tudo é feito para que não se deforme nem deforme o “real” daquilo que constrói), mas para Joaquim Cardozo isso é um “estágio da experi-mentação em que o corpo se deformando começa a deformar, por sua vez, o corpo deformador” (CARDOZO, 1966, p. 22). O deserto sairia do que seria ermo e distância para um não ser de si mesmo, porque é um espaço para a liberdade, para aquilo que pode não ser.

Ele diz, na abertura do poema, que: “Na impossibilidade de determi-nar uma sílaba ideal de grandeza constante para servir de medida aos versos deste poema, resolvi construí-los de maneira que a diferença das suas medidas fique contida no intervalo aberto: sete e meia síla-bas – oito e meia sílabas.” Esse intervalo insere uma dança no poema, uma dança e uma leveza nesta dança, que vai da sugestão de uma outra nascente para a arquitetura, informe, até uma permanência

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desenfreada que só seria possível também como informe, ou seja, uma duração. O poema, assim, ao sugerir que não há nada a represen-tar, mas sim a assombrar como arché e durèe, parece reproduzir a questão de Bataille: “Como é que o espaço quebra, perante o nosso olhar que o pudor desvia, a continuidade que lhe é exigível” (1994, p. 97). Joaquim Cardozo termina o pequeno texto introdutório do poema dizendo que procurou usar uma variação de rimas, ou zonas de rimas: “Procurei ainda introduzir nestes versos algumas das minhas ideias sobre a rima; no texto aparecem assim rimas e zonas de rimas, toantes e consoantes, à direita e à esquerda, rimas antecipadas, rimas transitivas e reflexivas, rimas em diagonal, em composição triangular etc.” Maria da Paz Ribeiro Dantas diz que é a partir desse poema, de certa forma, que Joaquim Cardozo “introduz uma outra concepção de espaço” (2003, p. 73), o que abre um possível para que eu diga, num acréscimo, que não só outra concepção de espaço, mas outra concepção também para o espaço que se arma como deserto e como ermo no deserto, numa imagem do vinco: “Relevos de linha a cindir / O solo manso. Chão cortado, / Gravado de sulcos, de leiras / Floridas; desenhada gleba... / – A uma fachada se assemelha / De terra nítida e movida.” Maria da Paz, por sua vez, acrescenta que nesse poema o espaço se expande, sem esboçar uma fronteira fixa, sem limes; é a terra tocando a contingência do mar, que também se faz deserto, como está nos versos que dizem: “Espaço a se expandir tão longe / Mar aberto a proa de navio / Trens coleando rampas nos montes...”, ou nos que insinuam o informe: “Fumo de voz que se enevoa, / Pru-mo de luz desigualado, / Sumo da fruta arquitetônica: / – Suor da ação molecular – / Poeira da forma dissoluta.” Maria da Paz vai dizer que “a matéria que configura esse espaço é ainda a natureza, todavia incorporando o objeto construído à percepção de uma arquitetura cósmica. Os homens de todos os tempos vão chegando em multidão, reunindo-se em torno da edificação que pode ser a urbe, o templo ou o Aberto do mundo” (DANTAS, 2003, p. 73). Esse é um poema que toca por dentro o espaço indissolúvel do deserto, com seus homens fadigados de passado e presente, “Homens de todos os passados / Formas de formas esquecidas”, com seu rumor quieto e seu choro de infância para retomar a partir desse espaço contingente um “Riso de puras esperanças”.

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O poema – como uma dança das palavras numa velocidade de urgên-cia, numa arquitetura oscilante – tem a ver com um frêmito do simultâ-neo, expressão que Joaquim Cardozo usa para falar de alguns versos de Afonso Félix de Sousa publicados no livro Memorial do errante, de 1956, mas que também – como tenho apontado – o faz como se estivesse a dizer acerca de sua própria poesia. Ele comenta que os poemas se com-põem a partir de algumas especulações para atribuir uma “liberdade das palavras”, um “ritmo infinito”, uma “independência dos homens”, uma “vocalização arbitrária”; são poemas em que há uma pesquisa para uma pureza da palavra, para um som interior, que se desmaterializa do objeto por ela representado, como aquela fulguração do ritornelo. Depois, uma comparação dos versos de Afonso Félix com outros versos do poeta expressionista alemão August Stramm diz algo dessa relação como o que Haroldo de Campos anos depois, num texto sobre Stramm, chamou de “um gosto pelas aglutinações de palavras” (CAMPOS, 1997, p. 109) e depois de um “berrante lirismo exterior, resolvido no plano do texto: um cogente impacto de palavras – táctil-sonoro” (CAMPOS, 1997, p. 115). Os versos de Afonso Félix citados por Joaquim Cardozo, são: “E batem sinos nas nuvens, / batem no seu coração / que bate, bate – os cabelos! / que bate, bate – seu rosto! / que bate, bate – ‘Ó esplêndida / flor das águas, ó visão / que mais sonhei, e impossível, / não venhas, que é muito tarde. / Não me salves, perdição!”’. Os de August Stramm, também citados por Joaquim Cardozo, são: “Tränen Tränen / Dunkle Tränen / Goldne Tränen / ……… / Tränen / Funken” (que numa tradução aproximada seriam: “Lágrimas, lágrimas / Lágrimas escuras / Lágrimas douradas / ………… / Lágrimas / Fagulhas”).2 Ele argumenta

2 Esses versos fazem parte de um poema de August Stramm intitulado Die Menschheit (A Humanidade), poema que referenda a questão da repetição na poesia de Stramm. Segundo a professora da Universidade de Ciências Aplicadas de Zurique, e tradutora, Fabiana Macchi, em correspondência pessoal, Stramm faz uso desse recurso de listas de palavras – num estilo telegráfico – em uma sequência de repetições para construir um crescendo que vai até o grito; com isso procura registrar uma fragmentação e um despropósito da realidade, das experiências cotidianas. Ela comenta também que esse poema foi escrito entre 1914 e 1915, e se insere na crítica corrente do expressionismo à humanidade, ao rumo que a humanidade tomou a partir da I Guerra Mundial. A tradução de que faço uso foi feita e cedida por ela.

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então que “em Afonso Félix de Sousa a repetição se dá dentro de uma composição com propósitos mais largos, dentro de um poema de nítido valor objetivo, chegando, portanto, a resultados muito diferentes dos do poeta expressionista alemão” (CARDOZO, 1956, p. 16). E acrescen-ta que “os poemas do livro são compelidos, são dominados por uma visão do mundo mais geral, uma visão constituída por essa espécie de magia que nos dão as viagens, pela sensação instantânea das coisas que passam mais ligeiras, dos acontecimentos que se sucedem, ou melhor, se implicam numa sucessão quase simultânea” (CARDOZO, 1956, p. 16). Por fim, nessa dança das palavras em busca de um sen-tido sagrado para o leve, mas também como profanação, linguagem que estilhaça o sentido num impacto entre as palavras, “há esse frê-mito do simultâneo que está no limite das experiências, e no princípio dos milagres” (CARDOZO, 1956, p. 16).

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CARDOZO, Joaquim. Sobre o problema do ser e do estruturalismo arquitetônico. Arquitetura IAB, Rio de Janeiro, n. 45, p. 21-22, mar. 1966. Discurso de paraninfo, que deveria ser pronunciado na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo de São Paulo, em 1965.

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DELEUZE, Gilles. Bergsonismo. Trad. Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Ed. 34, 1999.

DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. Trad. Maria Beatriz Marques. São Paulo: Perspectiva, 2005. (Debates)

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FAUSTINO, Mário. Poesia completa, poesia traduzida. São Paulo: Max Limonad, 1985.

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GREGOTTI, Vittorio. Território da arquitetura. Trad. Berta Waldman e Joan Villá. São Paulo: Perspectiva, 1975.

LEITE, João Denys Araújo. Um teatro da morte: do sal da terra ao fogo dos homens. In: CARDOZO, Joaquim. O capataz de Salema/Antônio Conselheiro. Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 2001.

NANCY, Jean-Luc. El sentido del mundo. Trad. Jorge Manuel Casas. Buenos Aires: La Marca, 2003.

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NÚMEROS ANTERIORES EDIÇÃO 13

BIBLIOTECA E CIDADANIA Ana Ligia Silva Medeiros

ESCOLA E SAMBA: SILÊNCIO DA BATUCADA? Augusto César Gonçalves e Lima

O BRASIL, A POBREZA E O SÉCULO XXI Celia Lessa Kerstenetzky

O MERCADO DE TRABALHO METROPOLITANO BRASILEIRO EM 2009 Lauro Ramos

LINGUAGEM, PENSAMENTO E MUNDO Ludovic Soutif

EDIÇÃO 14

EDUCAÇÃO AMBIENTAL NO LICENCIAMENTO: UMA ANÁLISE CRÍTICA DE SUAS CONTRADIÇÕES E POTENCIALIDADES Carlos Frederico B. Loureiro

A RESPONSABILIDADE SOCIAL E AS ENTIDADES CORPORATIVAS Eduardo R. Gomes Leticia Veloso Bárbara de S. Valle

A MODERNIZAÇÃO DE SÃO PAULO EM DOIS TEXTOS DE JOÃO ANTÔNIO (1937–1996) Ieda Magri

DISCURSOS SOBRE O HAITI: O QUE O GLOBO E SEUS LEITORES TIVERAM A DIZER SOBRE O TERREMOTO DE 2010 Larissa Morais

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OBSERVAÇÕES SOBRE A CHAMADA MORTE DO AUTOR Paulo Cesar Duque-Estrada

EDIÇÃO 15

A DESORDEM DO MUNDO André Bueno ESCUTA, ARTE E SOCIEDADE A PARTIR DO MÚSICO ENFURECIDO Daniel Belquer

EDUCAÇÃO SUPERIOR NO BRASIL: O RETORNO PRIVADO E AS RESTRIÇÕES AO INGRESSO Márcia Marques de Carvalho

APRENDIZAGEM POR PROBLEMATIZAÇÃO Pedro Demo

A CIDADANIA ATRAVÉS DO ESPELHO: DO ESTADO DO BEM-ESTAR ÀS POLÍTICAS DE EXCEÇÃO Sylvia Moretzsohn

EDIÇÃO 16

REPERCUSSÕES DO ICMS ECOLÓGICO NA GESTÃO AMBIENTAL EM MATO GROSSO, BRASIL

Cristina Cuiabália Rodrigues Pimentel Sueli Ângelo Furlan A HORA DE IR PARA A ESCOLA Daniel Santos

CRIATIVIDADE Marsyl Bulkool Mettrau

ENTRE O DRAMA E A TRAGÉDIA: PENSANDO OS PROJETOS SOCIAIS DE DANÇA DO RIO DE JANEIRO

Monique Assis Nilda Teves

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GINÁSTICA ESCOLAR COMO DISPOSITIVO BIOPOLÍTICO-PEDAGÓGICO: UMA ANÁLISE DA RELAÇÃO ENTRE EDUCAÇÃO, SAÚDE E MORALIDADE EM FERNANDO DE AZEVEDO

Murilo Mariano Vilaça

EDIÇÃO 17

CIDADE MARAVILHOSA: ENCONTROS E DESENCONTROS NOS PROJETOS DE REMODELAÇÃO URBANA DA CAPITAL ENTRE 1902 E 1927José Cláudio Sooma Silva

A CAPTURA DO GOSTO COMO INCLUSÃO SOCIAL NEGATIVA: POR UMA ATUALIZAÇÃO CRÍTICA DA ÉTICA UTILITARISTAMarco Schneider

INOVAÇÃO, TECNOLOGIAS SOCIAIS E A POLÍTICA DE CIÊNCIA E TECNOLOGIA DO BRASIL: DESAFIO CONTEMPORÂNEOMarcos CavalcantiAndré Pereira Neto

RECENTES DILEMAS DA DEMOCRACIA E DO DESENVOLVIMENTO NO BRASIL: POR QUE PRECISAMOS DE MAIS MULHERES NA POLÍTICA?Marlise Matos

TRABALHO INFANTIL NO BRASIL: RUMO À ERRADICAÇÃORicardo Paes de BarrosRosane da Silva Pinto de Mendonça

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NORMAS PARA PUBLICAÇÃO

1 - A revista Sinais Sociais é editada pelo Departamento Nacional do Serviço Social do Comércio – SESC e tem por objetivo contribuir para a difusão da produção acadêmica, proporcionando diálogo amplo so-bre a agenda pública brasileira. A publicação oferece a pesquisadores, universidades, instituições de ensino e pesquisa e organizações sociais um canal plural para a disseminação do conhecimento e o debate sobre grandes questões da realidade social. Tem periodicidade qua-drimestral e distribuição de 5.000 exemplares entre universidades, institutos de pesquisa, órgãos governamentais de interesse, principais bibliotecas no Brasil e em todas as bibliotecas do SESC e SENAC.

2 - A publicação dos artigos e ensaios está condicionada à emissão de parecer de especialistas e dos membros do conselho editorial, garanti-do o anonimato dos pareceristas no processo de avaliação. Eventuais sugestões de modificação na estrutura ou conteúdo, por parte da Edi-toria são previamente acordadas com os autores. São vedados acrésci-mos ou modificações após a entrega dos trabalhos para composição.

3 - Os textos devem ser encaminhados para publicação ao e-mail [email protected], ou em CD (ao endereço a seguir), digitado em editor de texto Word for Windows, margens 2,5cm, fonte Times New Roman, tamanho 12, espaçamento entre linhas 1,5. As páginas devem ser numeradas no canto direito superior da folha.

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4 - O trabalho deve ser apresentado por carta ou e-mail do(s) autor(es), que se responsabilizam pelo seu conteúdo e ineditismo. A carta deve informar qual ou quais áreas editoriais estão relacionadas ao trabalho, para que este possa ser encaminhado para análise editorial específica.

A mensagem deve incluir ainda endereço, telefone e, em caso de mais de um autor, informar o responsável pelos contatos.

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5 - O texto deverá ter no mínimo 35.000 e no máximo 60.000 carac-teres (sem contar o resumo e as referências bibliográficas). Os resumos em português e em inglês (Abstract) que acompanham o texto devem ter entre 10 e 15 linhas, fonte Times New Roman, tamanho 10.

6 - O texto deverá conter: a) título do trabalho em português (no máximo uma linha);b) título abreviado;c) nome do(s) autor(es);d) resumo em português e em inglês;e) palavras-chave – máximo seis;f) referências bibliográficas apresentadas conforme as normas da

ABNT, NBR 6023/2002 e NBR 14724/2002;g) citações no artigo conforme NBR 10520/2001.

7 - Anexos, tabelas, gráficos, fotos, desenhos com suas respectivas legendas etc. devem indicar as unidades em que se expressam seus valores, assim como suas fontes. Gráficos e tabelas devem vir acom-panhados das planilhas de origem. Todos estes elementos devem ser apresentados no interior do texto, no local adequado ou em anexos separados do texto com indicação dos locais nos quais devem ser inse-ridos. Sempre que possível, deverão ser elaborados para sua reprodu-ção direta. As imagens devem ser enviadas em alta definição (300 dpi, formato TIF).

8 - Um currículo (incluindo dados pessoais: nome completo, endere-ço, telefone para contato e documentação própria) e um minicurrículo deverão ser entregues com o artigo. O minicurrículo deverá conter os principais dados sobre o autor: titulação acadêmica, cargo ocupado, áreas de interesse, últimas publicações, e-mail (se assim o desejar) etc. As siglas de instituições ou projetos devem vir por extenso. Ex.: Pontifícia Universidade Católica (PUC). O minicurrículo deverá ter entre 5 e 10 linhas, fonte Times New Roman, tamanho 10.

9 - As referências bibliográficas devem ser dispostas no final do artigo, em ordem alfabética e cronológica, de acordo com o sobrenome do(s) autor(es) que, em caso de repetição, deve(m) ser sempre citado(s).

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CAPÍTULOS DE LIVROS

DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Tratado de nomadologia: a máquina de guerra. In: DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Ed. 34, 1980. v. 5. p.14-110.

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ENSAIOS EM REVISTAS

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INTERNET

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Esta revista foi composta nas tipologias Zapf Humanist 601 BT, em corpo 10/9/8,5, e ITC Officina Sans, em corpo 26/16/9/8, e impressa

em papel off-set 90g/m2, na 52 Gráfica e Editora Ltda.

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