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Educação para as relações étnico raciais: a implementação da lei 10.369/03 e a análise
dos livros didáticos do ensino de História1
Maria Luciana Brandão Silva Assis2
Lílian Silva Oliveira3
Introdução
O presente trabalho se constitui como parte final do projeto de pesquisa iniciado no ano
de 2010, desenvolvido pelo Núcleo de Estudos da Cultura Africana e Afro-Brasileira (NEAB)
do Centro Universitário do Leste de Minas Gerais, UnilesteMG com o apoio da FAPEMIG.
Apresenta o estudo realizado em 2012, tendo como referência a análise de leituras
relacionadas â questão étnico-racial na contemporaneidade e análise de dois volumes do
livro didático destinado ao ensino de História do nível fundamental. Na primeira etapa foram
analisados os livros didáticos destinados ao 6º e 7º anos do Ensino Fundamental da coleção
didática Projeto Araribá - História - editora Moderna aprovada pelo PNLD de 20114. A
escolha dessa coleção se deu por ser uma entre as mais utilizadas pelas escolas públicas do
estado de Minas Gerais.
Dando continuidade ao estudo iniciado, serão apresentadas as análises dos livros
destinados ao 8º e 9° ano da mesma coleção. Através delas, buscamos verificar no material
em questão, como nos diferentes contextos e tempos abordados, os afrodescendentes foram e
são percebidos. Pretendemos assim, mediadas pela análise dos dois volumes, identificar as
representações construídas ao longo de nossa história e se preconceitos outrora criados,
persistem ainda na atualidade.
Destacamos que os estudos tomando por referência as análises dos livros didáticos, a
exemplo das publicações de Cassiano (2004), Chiavenato (1987), Miranda (2004), Silva
1 Projeto desenvolvido em 2012 no Programa de Iniciação Científica do UnilesteMG com o apoio da FAPEMIG. 2 Doutora em Educação pela FAE/UFMG e professora do UnilesteMG. [email protected] 3Graduanda em Pedagogia pelo Centro Universitário do Leste de Minas Gerais UnilesteMG.
[email protected] 4 O projeto iniciado em 2010 e concluído em 2011 foi desenvolvido pelo Núcleo de Estudos da Cultura
Africana e Afro-Brasileira (NEAB), contou com o apoio da FAPEMIG no Programa de Iniciação Científica.
2
(1995), Silva Filho (2005)5 se mostraram de fundamental importância para o melhor
entendimento do alcance e papel dessa ferramenta pedagógica não apenas no processo
ensino-aprendizagem, como também no reforço de valores e concepções já presentes na
sociedade. Como é sabido, esse artefato permite que o processo ensino aprendizagem se
realize, auxiliando a mediação necessária entre o professor/a6 e o aluno na produção do
conhecimento, na troca de suas experiências e saberes.
Ressalta-se que junto às informações presentes nos livros didáticos estão também de
forma mais sutil e velada valores, percepções, representações enfim, que podem interferir nas
concepções já existentes quer seja alterando-as, quer seja reforçando-as. Compreende-se
então, que a produção dos livros didáticos nada tem de neutralidade, pois eles trazem consigo
a marca de seus autores, isto é, intencionalidades e visões de mundo nem sempre registradas
de forma explícita.
As relações étnico-raciais na escola e a lei 10.639/2003
Assim como nas mais diversas relações presentes na sociedade, o ambiente escolar,
marcado pela diversidade e multiplicidade de identidades e valores, pode muitas vezes, na
convivência escolar cotidiana, propiciar tanto a produção como a reprodução de
discriminações diversas como a racial, a socioeconômica, de gênero.Esse contexto escolar,
espaço por excelência de possibilidades de aprendizado é responsável não só pela transmissão
dos saberes, como também pela produção e reprodução de crenças e valores. Essas por sua
vez, podem se verificar de forma a incentivar o preconceito e a discriminação racial, como de
forma oposta, incentivar a tolerância e o aprendizado da e na convivência multicultural e
5 CASSIANO, Célia Cristina de Figueiredo. Aspectos políticos e econômicos da circulação do livro didático de
história e suas implicações curriculares. In:História, 23, 1-2. São Paulo, 2004, p. 33-48. CHIAVENATO, José
Julio. O negro no Brasil. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987.MIRANDA, Sonia Regina e LUCA, Tania Regina
de. O livro didático de história hoje: um panorama a partir do PNLD. Revista Brasileira de História. São Paulo,
2004, v. 24, nº 48, p. 123-144.SILVA, Ezequiel T da. Livro didático: do ritual de passagem à ultrapassagem.. In:
Em aberto, Brasília, ano 16, nº 69 jan/mar. 1996. Site: http://www.rbep.inep.gov.br/index.php/emaberto/issue/view/76.
Acesso em 12/12/2012. SILVA FILHO, João Bernardo da. Os discursos verbais e iconográficos sobre os negros
em livros didáticos de História. Dissertação de mestrado. Faculdade de Educação. Universidade Federal de
Minas Gerais-UFMG. Belo Horizonte, 2005. 6 Com o objetivo de não tornar o texto repetitivo, utilizaremos os pronomes e substantivos no masculino
singular ou plural nos referindo também ao feminino singular e plural.
3
multirracial. Portanto, deve ser compromisso da escola contribuir para a minimização de
preconceitos culturalmente herdados por séculos. Em muitas situações vivenciadas no
cotidiano escolar, a exteriorização de preconceitos e de discriminações resulta de um processo
que não é isolado. Vivendo outras relações em outros espaços sociais, a criança, o jovem
estudante compartilham de valores e crenças construídos e compartilhados socialmente nas
demais instituições que fazem parte da sua realidade social.
Tais valores e crenças estão culturalmente tão arraigados e se manifestam de tal forma
nas práticas sociais que, na maioria das vezes, são entendidos e tratados como questões
“naturais” quando na verdade, resultam de construções histórico-culturais, que ao longo dos e
dos séculos foram sendo reforçadas. É neste contexto que pode ser compreendida a questão
étnico-racial.Sobre ela, podemos afirmar que na atualidade muitos são os desafios enfrentados
pelos professores, especialmente no que diz respeito à questão dos conteúdos de ensino a ela
relacionados, uma vez que eles não são estáticos ou definitivos. As abordagens variam e se
renovam segundo a produção de novas concepções historiográficas em se tratando dos
conteúdos de ensino de História, como formas de interpretação e análise do que está sendo
estudado.
Assim, não é demais destacar a importância da formação continuada como prática
recorrente do professor de Historia, para citar uma entre as inúmeras possibilidades de
atualização. A ilustração para essa afirmativa pode ser verificada na obrigatoriedade do
ensino da História da África e estudos relativos à cultura africana e afro-brasileira na
aplicação da Lei 10.639/037, não apenas na Educação Básica, como também nos cursos de
graduação História e Pedagogia, uma vez que são recentes as disciplinas específicas que
tratam desse tema.
7 A lei 10.639/03 altera os artigos 26-A e 79-B da Lei 9394/96 – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
(LDB) (BRASIL, 2003): Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares,
torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira. § 1° O conteúdo programático a que se
refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a
cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro
nas áreas social, econômica e política pertinente à História do Brasil. § 2° Os conteúdos referentes à História e
Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de
Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras. Art. 79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de
novembro como ‘Dia Nacional da Consciência Negra’ (BRASIL, 2003. n.p.).A Resolução CNE/CP 1/2004,
define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de
História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (BRASIL, 2004), fundamentada no Parecer CNE/ CP 3/2004.
4
Associado a pouca ou nenhuma discussão acadêmica mais sistematizada nos cursos de
graduação, nas escolas o reforço às discriminações étnico-raciais pode também estar
presente nas ferramentas e materiais pedagógicos utilizados, a exemplo dos livros didáticos.
Representando diferentes áreas do conhecimento, eles não apenas informam como uma dada
realidade é percebida, interpretada e representada, mas também como valores e percepções
estão presentes e podem ser internalizados e apropriados por cada um dos leitores e leitoras,
num processo dinâmico e permanente, pois o mundo é o que representamos. Assim, como
bem afirma Lana Siman8
(...) é necessário enfatizar que o sujeito constroi representações individuais
que não são simples reflexos das representações sociais, mas fruto de
processos de construção e reconstrução de símbolos socializados e
internalizados.(...). Como o sujeito se insere numa comunidade concreta e
simbólica, este não está condenado a simplesmente reproduzir esta realidade.
Ou seja, ao mesmo tempo em que este sujeito recria a realidade social e suas
representações ele é também modificado em sua própria relação com o
mundo. Dessa forma, os objetos presentes no meio social aparecem sob a
forma de representação, recriados pelos sujeitos. (2005: 352)
Uma maior atenção para as questões relativas às práticas contra o racismo, o
preconceito e a discriminação ganhou maior visibilidade a partir da Lei 10.639 de 09 de
janeiro de 20039. Entretanto, essa trajetória vem sendo percorrida desde a promulgação da
Lei de Diretrizes e Bases da Educação (9.394 /1996) considerada referência para mudanças
significativas que passaram a ocorrer na educação desde então.
A Lei 10.639/2003 bem como sua versão atual (11.645/2008), surge como uma entre
outras alternativas às visões estereotipadas e discriminatórias sobre negros, indígenas e seus
descendentes. Ela representa ainda, o resgate de uma história que há séculos, vem sendo
apresentada de forma distorcida e equivocada, herança cultural do mito da “democracia
8 SIMAN, Lana Representações e memórias sociais compartilhadas: desafios para os processos de ensino e
aprendizagem da História. Caderno Cedes, Campinas, vol. 25, n. 67, p. 348-364, set./dez. 2005.Disponível em
http://www.cedes.unicamp.br Acesso em 4/10/2012. 9 A institucionalização da Lei 10.639/2003, complementada pela atual Lei 11.645/2008, instaura a
obrigatoriedade do ensino de História da África e Cultura Afro-brasileira e História das populações indígenas,
nas escolas no âmbito público e privado da Educação Básica e Superior destinada à formação de professores.
5
racial” presente na sociedade a partir das produções de Gilberto Freire10. Esse mito
corresponde à ideia de que no Brasil, ao contrário de outros países, existe uma convivência
pacífica entre as varias etnias onde cada um tem chances iguais de sucesso, não havendo por
isso, o racismo.
Embora não se reportasse diretamente a essa expressão, o sociólogo Gilberto Freyre
foi responsabilizado pela criação deste “mito”. Isto porque, em sua obra Casa Grande e
Senzala, ele apresenta as contribuições do negro à sociedade brasileira contestando assim, a
sua inferioridade. Freyre apresenta ainda em seu livro, a harmonia presente nas relações
raciais no Brasil, defendendo que a distância entre negros e brancos se verificava mais no
plano econômico (diferença de classes sociais) do que por meio do preconceito racial. Essa
falsa ideia de “democracia racial” utilizada desde então, tem mascarado o racismo existente
nas relações sociais, amortecendo assim, consciências de muitos que preferem não identificá-
lo como prática real e cotidiana em nossa sociedade, ao mesmo tempo que impede uma maior
organização da população afrodescendente na luta por igualdade e respeito.
Para além dos avanços possíveis e esperados resultantes de políticas e legislações
educacionais nesse campo, muitos são os desafios a serem enfrentados. Em muitas situações,
o vivido e o praticado no espaço educacional tem sido diferente do esperado, uma vez que
professores encontram dificuldades em trabalhar a história da África, dos negros e
afrodescendentes em sala de aula, seja pelas lacunas presentes na sua formação inicial e
continuada, seja pela dificuldade em se ter acesso a um material didático mais consistente, ou
mesmo, pela própria dificuldade que muitos ainda têm em admitir a “democracia racial” não
como uma realidade, mas como uma construção ideológica que por séculos têm sido
utilizada para mascarar e escamotear relações discriminatórias e racistas vivenciadas também
no ambiente escolar. Associado ao discurso da democracia racial, está a existência da
diversidade e do multiculturalismo, que na prática tem sido negada por meio de ações diversas
de intolerância e de desrespeito. Como nos lembra Nilma Gomes(2006),
De fato, não é tarefa fácil para nós, educadores e educadoras, trabalharmos
pedagogicamente e inserirmos no currículo uma discussão profícua sobre
diversidade cultural, de um modo geral, e sobre o segmento negro, em
10 FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala. Introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil. 43. ed. Rio
de Janeiro: Record, 2001.
6
específico. Apesar de reconhecermos, pelo menos no nível do discurso, que
a construção social, cultural e histórica das diferenças, ou seja, a diversidade,
é algo de belo e que dá sentido à nossa existência, sabemos que, na prática,
no jogo das relações de poder, as diferenças socialmente construídas e que
dizem respeito aos grupos sociais e étnico-raciais menos favorecidos foram
naturalizadas e transformadas em desigualdades. ( 2006, p. 25)11
Se por um lado, a escola acaba por reproduzir visões distorcidas e preconceituosas, por
outro, o cuidado deve estar presente não apenas na conduta dos profissionais que nela atuam,
mas também nos livros didáticos destinados ao ensino de História para a Educação Básica
disponibilizados com a função precípua de informar e educar. Nesse sentido, a escola tem
sido também espaço de veiculação e reprodução de uma série de conceitos, ideias e práticas
que corroboram com a construção do mito da inferioridade do negro. Ao omitir conteúdos em
relação a história do país, relacionados à população negra, contribuições do continente
africano no processo civilizatório e ao reforçar determinados estereótipos, a escola contribui
fortemente para a constituição de uma ideologia de dominação étnico-racial.
Segundo os estudiosos da questão a exemplo de Cavalleiro (2000); Gomes (2006,
2005); Hasenbalg (1987; 2005), Munanga (1999, 2001); Rosemberg, (1987); Gonçalves e
Silva (1993)12, o negro chega aos currículos, apresentado principalmente pelos livros
didáticos, não como o humano negro, mas como exclusivamente o objeto escravo, como se
pudesse ser destituído de um passado, uma história e trajetória ou ainda, não tivesse
participado de outras relações sociais que não fossem a escravidão.
11 GOMES, Nilma Lino. Diversidade Cultural, currículo é Questão racial: desafios para a prática pedagógica. In:
Educação como prática da diferença. Anete Abramovicz, Lúcia Maria de Assunção Barbosa, Valter Roberto
Silvério (Orgs.). Campinas - SP: Armazém do Ipê (Autores Associados), 2006. 12 CAVALLEIRO, Eliane. Racismo e antirracismo na educação: repensando nossa escola. 3. ed. São Paulo: Selo
Negro, 2001. GOMES, Nilma Lino. GOMES, Nilma Lino. Alguns termos e conceitos presentes no debate sobre
relações raciais no Brasil: uma breve discussão. Educação antirracista: caminhos abertos pela Lei Federal nº
10.639/03. Brasília: MEC/SECAD, 2005. p. 39-62.. GHASENBALG, Carlos A. Desigualdades sociais e
oportunidade educacional a produção do fracasso. Cadernos de Pesquisa, v. 63, p. 24-26, 1987. MUNANGA,
Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil – identidade nacional versus identidade negra. Petrópolis,
RJ:Vozes, 1999. MUNANGA, Kabengele (org.) Superando o racismo na escola. 3. ed. Brasília: Ministério da
educação, 2001. ROSEMBERG, Fúlvia. Relações raciais e rendimento escolar. Cadernos de Pesquisa, n. 63,
nov., p. 19-23, 1987. SILVA, Petronilha Beatriz Gonçalves e. Diversidade étnico-racial e currículos escolares –
dilemas e possibilidades. Cadernos CEDES, Campinas, n. 32, p. 25-34, 1993.
7
Também a posição dos negros em relação à escravidão que tem sido via de regra
apresentada se divide em duas perspectivas opostas e excludentes com raras exceções: ora a
passividade, ora a extrema revolta e violência. Ainda, o continente africano, de forma geral,
tem sido mostrado como um continente primitivo, menos civilizado, atrasado, quando na
verdade há muito mais a ser dito sobre ele. Tais lacunas evidentemente contribuem para a
constituição da ideologia de dominação racial e da ideologia de inferioridade da população
negra. Estudos, especialmente os de análise de livros didáticos, a exemplo dos autores citados,
têm dado sustentabilidade à tese levantada. Em vários deles, o negro é apresentado com tons
de inferioridade ou permitindo uma interpretação distorcida a seu respeito em decorrência de
silenciamentos que até hoje persistem, observados nas abordagens dos livros didáticos.
Afrodescendentes na realidade e na literatura brasileira
Na realidade brasileira os resultados do tratamento dispensado às diferenças raciais é
têm deixado marcas e produzem resultados visíveis: crianças e jovens negros estão menos
presentes nas escolas, apresentam médias de anos de estudo inferiores e taxas de
analfabetismo bastante superiores em relação à população branca. Também, de acordo com a
pesquisa realizada pelo Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher
(UNIFEM), Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e Secretaria Especial de
Políticas para as Mulheres:
as diferenças raciais tendem a se perpetuar, caso não sejam empreendidas
ações voltadas a reverter o atual quadro, no qual as diferenças entre brancos
e negros impressionam.(...) Um dos momentos importantes que a
discriminação se faz presente na vida das pessoas é o momento de
socialização via inserção escolar. São os estabelecimentos escolares,
juntamente com as famílias, os espaços privilegiados de reprodução (e,
portanto, também de destruição) de estereótipos, de segregação e de
visualização dos efeitos perversos que esses fenômenos têm sobre os
indivíduos. Os indicadores educacionais expressam, com clareza, as
desigualdades a que negros estão submetidos e que, certamente, serão
levadas e reproduzidas de forma ainda mais intensa no mercado de trabalho.
(Retrato das Desigualdades, 2008:12)13
13 Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. Retrato das Desigualdades de gênero e raça. 3 ed. Análise
preliminar de dados do Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher (UNIFEM), Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) 2008.
8
Na sociedade brasileira a maior parte dos afrodescendentes têm pouco reconhecimento
social, vivem em locais impróprios, em condições precárias de saúde e segurança e
frequentam escolas sem preocupação ou preparação para recebê-los. Isso quando eles não
são obrigados a deixarem os estudos para trabalhar e ajudar no sustento da casa.
Na literatura didática essa situação de descaso não é diferente. Negros são abordados
apenas quando o assunto é escravidão, embora como os demais segmentos sociais, eles façam
parte da sociedade brasileira, e, nesse percurso tenham e têm participado da construção de
sua história, ao mesmo tempo em que vêm forjando a própria história. Tais considerações nos
remetem aos seguintes questionamentos aqui compartilhados: Como superar e ultrapassar a
imagem do negro associada exclusivamente ao passado e à escravidão, aos castigos, chibatas,
maus tratos? Que projetos e propostas têm sido desenvolvidos nas escolas, objetivando
evidenciar e combater a discriminação racial e os desdobramentos do mito da democracia
racial?
A exclusão dos afrodescendentes marcou e tem marcado a sociedade brasileira.
Mecanismos de dominação e poder foram utilizados para impor e justificar uma suposta
superioridade que, apesar da abolição da escravidão ocorrida no século XIX, se perpetua no
século XXI, por meio de diferentes formas e mecanismos, às vezes sutis, outras nem tanto.
De forma geral, indiferença e distanciamento são posicionamentos que podem ser
percebidos por parte de diferentes setores sociais diante das mais diversas situações de
dificuldades e desfavoráveis vividas pelos afrodescendentes. Associado a esse
distanciamento, o sentimento de superioridade é, nos dias de hoje, substituído e/ou
perpetuado por atitudes veladas ou não, de preconceito e discriminação como nos lembra
Milton Santos:
Ser negro no Brasil é, pois, com frequência, ser objeto de um olhar
enviesado. A chamada boa sociedade parece considerar que há um lugar
predeterminado, lá embaixo, para os negros e assim tranquilamente se
comporta... (Folha de São Paulo, Caderno Mais. 07 de maio. 2000)14
14 SANTOS, Milton. Ser negro no Brasil hoje. Disponível em: http://inculturacao.salesianos.br/wp-
content/uploads/2012/08/Ser-negro-no-Brasil-hoje-Milton-Santos-materia-da-Folha-de-S-Paulo.pdf Acesso em:
03/01/2013.
9
O papel do PNLD na escolha dos livros didáticos
Com o objetivo de garantir que produções didáticas bem estruturadas cheguem às mãos
dos alunos e não comprometam o aprendizado e a formação dos mesmos, o governo
federal, por meio do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) avalia os mesmos antes
de serem distribuídos às escolas15. Sob a coordenação do Ministério da Educação (MEC), o
PNLD tem sido desde sua institucionalização, uma entre outras políticas educacionais, que
objetiva que o acesso por parte dos alunos das escolas públicas aos livros de boa qualidade
se torne cada vez mais uma realidade concreta. A chegada dos livros didáticos nas escolas
corresponde à etapa final de um processo antecedido por etapas que envolvem discussões e
debates entre a União, as secretarias estaduais e municipais de educação acerca das suas
potencialidades e fragilidades, dos princípios didático-pedagógicos, que devem permear o
material didático para que assim, professores tenham em mãos um livro bem formulado e que
os jovens estudantes possam desenvolver um aprendizado significativo. Nas palavras dos
coordenadores e responsáveis pelo PNLD, este, além de ter se tornado cúmplice das
Secretarias de Educação,
é uma política do Estado Brasileiro que compreende a participação de vários
sujeitos. Os dirigentes e os técnicos do MEC e do o Fundo Nacional de
Desenvolvimento da Educação (FNDE), conjuntamente com os membros da
Comissão Técnica do PNLD, elaboram o edital que informa os critérios para
inscrição e participação dos detentores de direito autoral das obras didáticas
e, a partir desse passo inicial, juntam-se as ações de técnicos do Instituto de
Pesquisa Tecnológicas da Universidade de São Paulo que garantem a
qualidade técnica dos livros, passando pelos professores que são convidados
pelas universidades públicas para emitirem pareceres acadêmicos, chegando
agora ao público para o qual existe esse Programa: professores e alunos da
educação básica. (PNLD, 2011: 9)16
15 O Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) tem como principal objetivo subsidiar o trabalho
pedagógico dos professores por meio da distribuição de coleções de livros didáticos aos alunos da educação
básica. Após a avaliação das obras, o Ministério da Educação (MEC) publica o Guia de Livros Didáticos com
resenhas das coleções consideradas aprovadas. O guia é encaminhado às escolas, que escolhem, entre os títulos
disponíveis, aqueles que melhor atendem ao seu projeto político pedagógico.
16 BRASIL. Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica. PNLD. Guia de livros didáticos 2011:
História. – Brasília: 2011.
10
Sabemos que entre os materiais pedagógicos utilizados nas escolas, o livro didático é
sem dúvida, uma das ferramentas pedagógicas e um dos recursos didáticos mais utilizados,
uma vez que as políticas educacionais e em especial aquelas direcionadas de forma
específica ao uso do livro didático têm favorecido não só sua ampla utilização, como
cobrado dos autores e editoras uma produção e publicação mais criteriosa. A existência dos
critérios sugeridos pelo PNLD, tem favorecido um olhar mais cuidadoso das editoras sobre
esse artefato cultural. Nesse sentido, fica evidente a importância de sua utilização e seu peso
na formação dos alunos. Desse modo, os livros didáticos avaliados e oferecidos às escolas
têm, em várias situações, atendido às demandas que vão se apresentando no cotidiano
escolar nos últimos anos. A preocupação em trazer informações significativas e conteúdos que
possibilitem um diálogo com a realidade imediata dos alunos tem se manifestado, em
resposta às permanentes cobranças e demandas que vêm se apresentando por parte dos
diferentes atores sociais.
Vale destacar, no entanto, que de nada vale o acesso a um bom livro, se os professores
não tiverem a preparação adequada para utilizá-lo. Nesse processo, os professores
desempenham papel fundamental desde a escolha do livro didático, até as diferentes formas
de utilizá-lo e explorá-lo, tomando-o como mais uma ferramenta a auxiliar o seu trabalho.
Contudo, apesar de todo o processo de avaliação, de todos os cuidados que têm cercado a
publicação e divulgação dos livros didáticos, esses trazem consigo ideologias, concepções e
visões de mundo e sociedade que, longe de serem únicas e imparciais, representam uma
entre as varias possibilidades de interpretação e análise da realidade social.
É nesse aspecto que o trabalho do professor é insubstituível e especial no que diz
respeito ao trabalho com os conteúdos do ensino de História presentes nos livros didáticos e
que tratam de forma específica, da entrada dos negros africanos no Brasil, sua trajetória
histórica, bem como dos afrodescendentes em situações e momentos diversos, até os períodos
mais contemporâneos. Tais temas e assuntos, como os demais na produção historiográfica,
precisam ser analisados e discutidos por serem passíveis de não apenas uma interpretação,
mas quantas a documentação existente e as fontes utilizadas puderem sustentar .
11
Estudos e publicações como de Davies (1999), Fonseca (2005), Silva (1996)17, têm
repetidamente reforçado a tese que professores não devem utilizar o livro didático como
único recurso, mas um entre tantos outros a serem explorados no cotidiano escolar. Embora o
PNLD desde seu surgimento tenha como objetivo garantir a qualidade técnica dos livros
didáticos antes de serem distribuídos e utilizados, é necessário uma atenção especial na sua
escolha e sejam resultado de uma análise historiográfica mais crítica e contextualizada .
Considerando que a educação escolar caracteriza-se pela mediação didático pedagógica
que se estabelece entre conhecimentos práticos e teóricos, é sabido que o livro didático é um
importante recurso que auxilia os professores em sua prática pedagógica e, aliado a outros
meios metodológicos, se constitui como considerável ferramenta para uma aprendizagem
significativa. Contudo, pode também se constituir como mais um instrumento de
discriminação, se não receber por parte dos professores uma intervenção crítica, que instigue
os alunos a refletirem sobre a forma como os conteúdos são apresentados , pois como nos
mostra Silva,
os livros didáticos de História geralmente representam o negro na condição
de escravizado, em situação de submissão, sofrendo castigos corporais. Esse
tipo de representação faz com que o aluno negro não queira identificar-se
com os membros de sua etnia, sinta-se envergonhado. A formação da
identidade do aluno negro acaba sendo afetada muitas vezes de forma
profunda levando-o a crer que a situação de inferioridade em que a história
oficial o tem representado é natural. (1995:7)18
O estudo da imagem nos veículos de comunicação e, em especial naqueles de caráter
pedagógico como os livros didáticos, instaura no âmbito escolar, a necessidade de se
analisar com um maior cuidado a presença da imagem nessa ferramenta pedagógica, por
meio de ilustrações que representam o cotidiano dos sujeitos e grupos nos vários tempos e
espaços sociais e nas mais diversas situações. A relevância dessa análise reside no fato que
também essas imagens/ilustrações influenciam na construção da identidade social, por serem
elaboradas e reelaboradas socialmente, podendo interferir na maneira como nos
17DAVIES, Nicholas. Livro didático: apoio ao professor ou vilão do ensino de
história?:http://www.uff.br/departamentos/docs/_politica_mural/livro_didatico.doc Acesso em 12 /12/2012.
FONSECA, Selva Guimarães. Didática e prática de ensino de história: Experiências, Reflexões e Aprendizados.
4 ed. São Paulo: Papirus Editora, 2005. SILVA, Ana Célia. A discriminação do negro no livro didático.
Salvador: – Centro Editorial Didático e Centro de Estudos Afro-Orientais, 1995. 18 SILVA, Ana Célia. A discriminação do negro no livro didático. Salvador: – Centro Editorial Didático e
Centro de Estudos Afro-Orientais, 1995.
12
percebemos, assim como percebemos o outro. (SILVA FILHO,2005). Embora nosso estudo
não tenha como objeto a análise das ilustrações presentes nos livros didáticos é importante
ressaltar o peso que essas desempenham, principalmente por não serem num primeiro
momento consideradas por muitos professores e alunos como mais um recurso que marca e
demarca posições e valores em nossa sociedade, através de mensagens subliminares.
Estereótipos e silenciamentos
Entre importantes estudos que trouxeram reflexões sobre a questão racial e o racismo
no Brasil, destacam-se as produções Florestan Fernandes (1972), Octávio Ianni (2004) e
Munanga (1999)19. Esses estudos comprovam entre outros aspectos, que o racismo é um
elemento integrante da sociedade brasileira, embora um dos mitos fundadores da nação
brasileira tenha sido o de negação do racismo. A crença da convivência cordial e harmoniosa
das raças/etnias que compuseram a sociedade brasileira, aliada à construída crença da
inferioridade do negro, consolidou um quadro de desigualdade racial estrutural no país. Deste
modo, o racismo mesmo nos dias de hoje, toma formas especiais; ele é negado, se apresenta
de forma velada e nas palavras de Florestan (FERNANDES, 1972, p.42): “o brasileiro tem
preconceito de ter preconceito”20.
No entanto, é preciso ressaltar que nas últimas décadas a consciência da existência do
racismo tem aumentado na sociedade brasileira, muito em função das intervenções do
Movimento Negro em parceria com diversos setores da sociedade, contribuindo para a tomada
de posições mais propositivas por parte do Estado, a exemplo das políticas e legislação
educacionais. Felizmente também esse esforço dos diferentes segmentos sociais tem resultado
na mudança concreta de representações sobre os negros, que podem ser observadas nas
publicações diversas e, mesmo que de forma tímida e lenta, naquelas destinadas à utilização
19 FERNANDES, Florestan. O negro no Mundo dos Brancos. São Paulo: Difel, 1972. IANNI, O. Raças e classes
sociais no Brasil. SP: Brasiliense, 2004. MUNANGA, Kabengele.. Rediscutindo a Mestiçagem no Brasil:
Identidade Nacional Versus Identidade Negra. Petrópolis, R] : Vozes, 1999. 20FERNANDES, Florestan. O negro no Mundo dos Brancos. São Paulo: Difel, 1972
13
pedagógica nas escolas, demonstrando que a participação do negro em nossa história e
cultura vai muito além da escravidão.
Exemplo disso, é a comemoração do dia da Consciência Negra em 20 de novembro,
inicialmente criada em 1978, em homenagem ao aniversário de morte de Zumbi, o líder do
Quilombo de Palmares. A institucionalização da comemoração dessa data em detrimento do
13 de maio que rememora a assinatura da Lei Áurea, já é por si só, uma significativa
demonstração de que mudanças vêm ocorrendo na forma de ver essa questão. Na atualidade,
essa data, O dia da Consciência Negra, simboliza de modo especial, a luta permanente e
contínua do Movimento Negro representado pelas diversas entidades e movimentos em
defesa dos direitos, do respeito e igualdade de oportunidades aos negros e afrodescendentes
em nossa sociedade.
Entretanto, cabe ressaltar que embora muitas mudanças, estejam ocorrendo, o racismo
ainda marca presença e contextualiza os espaços das universidades, da mídia e da literatura
em muitos aspectos e situações, mesmo que de forma sutil, já que a sua prática é considerada
crime, desde a promulgação da constituição de 1988. A constatação dessa realidade pode ser
observada através da história do negro contada, e em grande parte silenciada, em diferentes
aspectos e momentos de sua história registrada nos livros didáticos. Esses, na maioria das
vezes, teimam em relacioná-la apenas à escravidão, embora essa história possa e deva ser
relatada de diversas formas. Diante dessa constatação permanecem sem respostas algumas
questões sobre as produções didáticas relativas aos negros e afrodescendentes. Entre elas,
assinalamos motivadas pela leitura de Proença Filho (2004)21 a seguinte questão: Por que
mesmo nos dias atuais, escritores se calam diante das inúmeras lutas e conquistas que vêm
ocorrendo ao longo de toda a historia? Repetindo o questionamento do autor, por que “a
prevalência da visão estereotipada permanece dominante?” (2004, p. 166).
Observações possíveis sobre os livros didáticos analisados
21 PROENÇA FILHO, Domício. A trajetória do negro na literatura brasileira. Estudos avançados. Revista do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Negro brasileiro negro nº 25, 1997, pp. 159-77, 2004.
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Como já mencionado, a análise se deu em dois volumes didáticos (8ª e 9º ano)22 da
coleção didática Projeto Araribá História - Editora Moderna23 aprovada pelo PNLD de 2011 e
escolhida entre aquelas mais utilizadas por professores da rede estadual de Minas Gerais.
As questões iniciais elaboradas na primeira fase do projeto continuam servindo como
mote na produção atual, que a seguir são descritas: Como o tema da cultura africana e
afrobrasileira tem sido abordado pelos livros especialmente a partir de 20003? Ainda
podemos encontrar estereótipos quanto à história dos negros no Brasil? Quais silenciamentos
sobre os afrodescendentes ainda persistem nos livros didáticos? Quais versões da escravidão
têm sido apresentadas por esses autores?
Tomando a questão étnico-racial e a questão dos escravos e afrodescendentes como
nosso objeto de estudo, buscamos na análise desses livros didáticos escolhidos responder as
seguintes questões, junto as iniciais acima descritas: Como identificar se os assuntos
abordados consideram os negros e sua história? Que outras relações sociais além de escravo
são reportadas aos negros na história brasileira? Quais são as abordagens relativas aos negros
e afrodescendentes para além dos conteúdos relativos à escravidão? Quais os papeis sociais
são apresentados quando eles são abordados em assuntos como movimentos sociais e
participação popular? Como a ausência e limitações de oportunidades sociais e educacionais
presentes entre negros em nossa sociedade são apresentadas?
Sabemos ser impossível responder a todas as perguntas apenas nessa breve artigo, assim
como também não nos foi possível realizar uma análise mais profunda e minuciosa, diante do
tempo disponível para a realização e conclusão da pesquisa. Entretanto, julgamos importante
registrá-las como forma de manter permanentes essas reflexões, indagações relativas ao tema.
Sobre os dois volumes dos livros didáticos analisados, deve ser ressaltado que no site
da editora há no portal da coleção, a indicação de um blog com a proposta de recursos
multimídia24 onde o conteúdo de Historia é contemplado. Como não foi nosso objetivo
22 Como já afirmado, a análise dos livros didáticos correspondentes ao 6º e 7º ano dessa coleção foi realizada
em trabalho anterior e produzida no artigo intitulado: “Usos e abusos dos livros didáticos e paradidáticos
representações sobre o negro e sua história nos livros didáticos”. 23 APOLINÁRIO, Maria Raquel (org.). História: ensino fundamental, 6ª. Projeto Araribá. São Paulo: Moderna,
2003.
24 De acordo com as orientações didáticas pedagógicas da coleção, destaca-se a observação feita para “Os
objetos multimídia - história: Seguindo as tendências educacionais, os materiais didáticos do Projeto Araribá
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analisar as atividades multimídias, elas não foram analisadas. Na apresentação desses volumes
analisados da coleção, temos a seguinte informação:
Os acontecimentos históricos são apresentados em ordem cronológica, com
aprofundamento de temas selecionados. Prioriza a postura crítica e a
formação ética, desenvolvendo atitudes e valores a partir da compreensão de
textos e de um conjunto completo de atividades. O livro impresso é
complementado por vídeos, filmes e animações que permitem uma maior
interação com o conteúdo. (http://www.moderna.com.br/arariba/historia).
A análise dos volumes em questão (8º e 9º anos), em seus diferentes capítulos nos
permite inferir que a apresentação dos capítulos, ao contrário do que é afirmado, se verifica de
forma superficial e não de forma aprofundada como anunciado. Não queremos com isso
afirmar que os livros devam trazer em seus textos uma produção minuciosa e detalhada, pois
sabemos não ser este o objetivo presente nesse tipo de material didático. Quanto às demais
possibilidades de competências de formação anunciadas como “postura crítica e a formação
ética, desenvolvimento de atitudes e valores a partir da compreensão de textos”, essas não se
efetivarão sem que haja uma postura propositiva do professor para este fim. Salientamos,
entretanto, que a menção de algumas problematizações a título de provocações sobre
determinados assuntos abordados no corpo dos textos resultariam, a nosso ver, em uma
significativa diferença, pois no processo de interação com o livro didático e na forma de
apropriação dos conteúdos, tais problematizações produziriam uma outra atitude por parte
dos professores e alunos.
Destaca-se ainda que as atividades propostas ao final de cada capítulo dos livros
analisados são apresentadas como sendo “atividades que desenvolvem habilidades de síntese,
interpretação, leitura de imagens e reflexão sobre os conteúdos de história.” Também estas,
na maioria das vezes, são propostas de forma superficial e não provocam por si só a aquisição
de tais competências anunciadas. Entretanto, não se pode afirmar que não haja uma intenção
de se alcançar o que foi apresentado. Também as propostas são padronizadas, não havendo
integram diferentes recursos digitais que apresentam novas possibilidades de ensino ao educador. O
conhecimento é construído de forma interativa e em contexto com o mundo do aluno, que está habituado com a
linguagem digital. (...) Com essa ferramenta, o estudante pode fazer anotações, grifar pontos importantes e
interagir de forma dinâmica com os recursos multimídia exclusivos, que estão disponíveis no portal da coleção”.
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assim, um tratamento específico para o tema discutido nas atividades anunciadas. Novamente
percebe-se que cabe ao professor direcionar e aprofundar as discussões para cada assunto
abordado, uma vez que apenas são mencionados no texto alguns aspectos a título de
informação.
Análise da livro do 8º ano da coleção escolhida
No livro do oitavo ano, o negro ganha destaque no tema escravidão, confirmando a
hipótese de que parece ser este o único tema em que ele é apresentado. Assim, algumas
unidades abordam a presença do negro privilegiando a sua condição de escravo. Dessa forma,
na Unidade 2 - A ÉPOCA DO OURO NO BRASIL - temos a referência a algumas situações
vividas pelos escravos na mineração, seu papel produtivo, as péssimas condições de trabalho e
as justificativas para as constantes rebeliões, fugas assassinatos de feitores e senhores e a
formação de quilombos como respostas dos negros diante da brutalidade da escravidão (8º
ano, p. 45).
Embora anunciadas, as propostas de aprofundamento, ou “de diálogo entre passado e
presente permitindo a compreensão de temas socialmente relevantes e a conexão de
conhecimentos” não são exploradas no desenvolvimento das atividades. Novamente
percebe-se a importância do professor para a condução e aprofundamento das análises
propostas, mesmo que superficialmente. A proposição de “interpretações divergentes,
desenvolvendo a percepção de que a história pode ser analisada sob vários pontos de vista”
pode ser ilustrada com a menção a dois historiadores: Kenneth, Maxwell e Laura de Melo e
Souza que se posicionam de forma diferenciada sobre as relações sociais nas áreas
mineradoras (8ª ano, p.47). Embora apareça de forma tímida, esse é um claro sinal de que o
processo de mudança na condução e interpretação da historia está em curso. Entretanto, mais
uma vez, percebe-se que as questões propostas aos alunos leitores sobre tais posicionamentos
são ineficientes para explorar o pensamento crítico e reflexivo, nas comparações entre
passado e aspectos da realidade. Outros exemplos ainda podem ser citados nessa unidade
como a presença das irmandades religiosas dos brancos e pretos, a presença de Chica da Silva
e das negras quitandeiras no cotidiano das vilas mineiras (8º ano, p. 50), que abrem espaço
para outras interpretações da cultura africana.
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Já na Unidade 8 intitulada O PERÍODO DAS REGÊNCIAS AO SEGUNDO
REINADO, os negros são lembrados nos capítulos na condição de escravos que tentam por
fim a escravidão africana, quando é apresentada a Revolta dos Malês num texto de meia
página (8º ano, p. 222), nada sendo explorado posteriormente de forma significativa nas
atividades propostas sobre essa questão. O mesmo ocorre no capítulo seguinte e último do
livro, quando o tema é “Abolição do trafico negreiro” sendo descritas as leis e as pressões
culminando com o fim do tráfico e seus efeitos para a economia. (8º ano, p. 234 a 237).
Sabemos que, sem dúvida o professor tem papel fundamental nesse processo, mas
reafirmamos como sendo de igual importância a contribuição que os autores dos livros
didáticos poderiam dar, se lançassem questões e deixassem registradas provocações para que
professores e alunos pudessem realizar valiosos debates sobre os temas abordados.
Análise do livro do 9º ano da coleção escolhida
Ao analisar o livro do nono ano, tomamos como referência as seguintes questões: Como
identificar se os assuntos abordados consideram os negros e sua história? Que outras relações
sociais além de escravo são reportadas aos negros na história brasileira? Quais são as
abordagens relativas aos negros e os afrodescendentes para além dos conteúdos relativos à
escravidão?
A Unidade 2 intitulada – A REPÚBLICA CHEGA AO BRASIL – o primeiro capítulo,
apresenta inicialmente a questão escravista no Brasil Imperial. O livro aborda a questão da
escravatura e discorre sucintamente sobre o fim da escravidão com a aprovação da Lei Áurea,
em 1888. Relaciona seu término, assinalando que o primeiro golpe contra a escravidão,
ocorreu em 1850, com a proibição do tráfico negreiro decretado através da Lei Eusébio de
Queiroz. (9º ano, p. 42) Tudo é escrito em um texto de meia página, não havendo no próprio
texto, qualquer indagação ou proposta de discussão sobre o tema ou levantamento de outras
hipóteses e razões para que a abolição da escravatura ocorresse.
É destacada ainda a Lei Rio Branco (Lei do Ventre Livre, de 1871), que declarava livres
os filhos de mulher escrava nascidos a partir daquela data. No entanto, também nesse texto,
indagações sobre o sentido e significado dessa liberdade poderiam ser apresentadas para que
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alunos e professores pudessem realizar uma discussão sobre as características e aspectos dessa
liberdade. Como uma criança totalmente dependente da mãe pode ser considerada livre, se sua
mãe não é?
Outra referência no livro analisado, diz respeito ao período pós-abolição para os ex-
escravos, que enfrentaram dificuldades de emprego, por não terem nenhuma qualificação
profissional. Além disso,registra que eles tinham que concorrer com trabalhadores imigrantes,
sendo obrigados a aceitar os trabalhos mais pesados e mal remunerados. (9º ano, p.44)
Novamente acreditamos que essas informações poderiam vir acompanhadas de
problematizações no corpo do texto que provocassem um debate sobre temas como liberdade
e condições de trabalho vividas ontem e hoje pelos negros e afrodescendentes.
Após o conteúdo, o tema traz uma reflexão sobre o fim da escravidão, com fragmentos
de dois textos de Joaquim Nabuco e logo após, propõe quatro questões subjetivas sobre os
fragmentos dos textos. Vemos nesse tipo de atividade uma importante oportunidade para
suscitar reflexões e comparações não só sobre o tema em estudo como também, sobre as
possíveis interpretações presentes na história, que não pode ser apresentada como única, como
na maior parte das vezes ocorre quando da abordagem dos fatos históricos.
Apresentamos a seguir, algumas passagens significativas desse volume abordado, que
apresentam a vida social do Brasil República que, no entanto, poderiam, a nosso ver, serem
melhor exploradas.
Quando no capítulo 4 é discutido A industrialização e o crescimento das cidades, o
processo de urbanização e, consequentemente, o aumento da imigração são abordados como
respostas às oportunidades de trabalho que o Brasil na época oferecia. Sobre as condições de
vida dos trabalhadores, o livro aponta que, em sua maioria, negros e pardos, viviam em
cortiços, um tipo de habitação onde viviam várias famílias, mas as autoridades procuravam
manter os trabalhadores longe dessas áreas. Apresenta ainda que, a construção de vilas
operárias, representou uma iniciativa dos patrões que tinham como objetivo conservar a mão
de obra das fábricas, mantendo os trabalhadores sob controle produtivo e bem comportados.
(9º ano, p.57)
O capítulo 5, intitulado O movimento operário na Primeira República, retrata como os
trabalhadores viviam nas fábricas, já que a jornada de trabalho se estendia por até 16 horas e
19
os salários eram muito baixos. A ausência de legislação trabalhista, somada a ausência de
regulamentação das condições de higiene e de segurança nos ambientes de trabalho, tornava
comuns os acidentes e as doenças. (9º ano, p.58)
O capítulo 6, Reformas e revoltas na capital apresenta a cidade do Rio de Janeiro, com
aparência europeia e a Avenida Central (hoje Avenida Rio Branco) um cartão-postal, que
copiava Paris. Lembra o texto do livro, que o centro do Rio de Janeiro não havia sido sempre
assim. No lugar da Av. Central havia antigos casarões do período Imperial. Segundo o texto,
nesses antigos casarões, vivia amontoada em cômodos de aluguel, uma população formada
principalmente por ex escravos e seus descendentes e a moradia imprópria, combinada às
precárias condições sanitárias, fazia com que epidemias fossem comuns, como a febre
amarela e a varíola. (9º ano, p. 60)
O processo de urbanização e a campanha higienista do início da República é também
mostrada ao abordar a reforma urbana e sanitária marcada por demolições, que expulsaram
da região central, a população mais pobre, obrigada a erguer barracos nos morros próximos
ou deslocar-se para áreas distantes do centro conhecido como os subúrbios da Estrada de
Ferro Central do Brasil, que hoje corresponde às favelas. (9º ano, p. 61)
Entendemos que mesmo que o texto seja apresentado sem maiores aprofundamentos,
como é comum aos textos de livros didáticos, o maior problema continua sendo em não serem
apresentadas, mesmo que sem o compromisso de maior aprofundamento para os leitores,
questões que poderiam ser exploradas pelos professores, relativas aos aspectos da vida
cotidiana, tão próximo dos alunos, como o trabalho, as condições de vida, saúde e de moradia
para as camadas populares e principalmente a composição dessas camadas como forma de
demonstrar e comprovar a ausência de oportunidades para a população pobre composta, não
por acaso, pelos negros e afrodescendentes.
Há ainda outro aspecto de grande valor a ser destacado que poderia ser indicado,
mencionado nesses textos no que diz respeito às questões sociais vividas hoje nos grandes
centros urbanos, a exemplo das favelas, da violência urbana, da exploração do trabalho não
qualificado, como desdobramentos de situações de abandono e completa ausência do Estado
brasileiro por meio de políticas públicas.
20
Em relação às atividades a serem realizadas pelos alunos, o livro apresenta seis,
relacionadas aos capítulos 4 a 6. Como já constatado no comentário sobre o volume anterior,
novamente se verifica que as atividades propostas poderiam instigar os alunos, no pensar
crítico reflexivo provocando-os a estabelecerem comparações entre o tempo estudado e o
tempo vivido. Ao contrário, as atividades propostas se distanciam desse princípio ao
proporem respostas que pouco estimulam a curiosidade, ao não desafiarem o raciocínio dos
leitores, propondo respostas que podem ser dadas com copias de partes do texto. A título de
ilustração apresentamos uma delas: “Registre o autor, o ano e o título da obra; ou Como eram
as condições de trabalho dos operários brasileiros do início da República”.
Continuando na análise do livro, chegamos à época contemporânea e na Unidade 8 -
A NOVA ORDEM MUNDIAL – e ao capítulo 6: Um balanço no Brasil contemporâneo. Para
analisá-lo apresentamos os seguintes questionamentos: Quais são os papeis sociais atribuídos
aos negros e como eles são percebidos, quando são apresentados temas como movimentos
sociais, construção do país, participação popular? Como a ausência e as limitações de
oportunidades econômicas, sociais, e culturais historicamente presentes na vida dos
afrodescendentes em nossa sociedade são tratados e podem ser relacionadas às atuais
questões econômicas, sociais, e culturais que os envolvem e fazem parte da realidade de sua
quase totalidade?
O capítulo em questão, retrata a modernização econômica do Brasil e com ela, seus
respectivos problemas, como as desigualdades sociais e o desemprego. O texto apresenta a
intensificação da urbanização no país e nas grandes cidades, o crescimento da violência, da
miséria e das desigualdades sociais. (9º ano, p. 252).
Outro assunto importante discutido nesse capítulo, se refere à educação básica no Brasil
como um dos direitos fundamentais da criança e um dos instrumentos essências à formação
de cidadãos críticos. O texto mostra que as condições socioeconômicas do Brasil interferem
no acesso e permanência das crianças e dos adolescentes na escola, como a necessidade de
trabalhar para melhorar a renda da família. Apresenta ainda, a baixa remuneração dos
profissionais do ensino, problemas de gestão dos serviços públicos e a grande desigualdade
social existente no Brasil ainda como forte obstáculo para garantir uma educação básica de
boa qualidade no país. (9º ano, p. 255).
21
Todas as questões abordadas são tratadas de foram genérica, tendo como referência
apenas as distinções de classe, como tradicionalmente ocorre nos livros didáticos. Entretanto,
sabemos que os dados e informações trazidas atingem mais a uma determinada parcela da
sociedade, não apenas por razões socioeconômicas, mas também por estarem associadas a
elas, questões étnico raciais. Entretanto, elas não são mostradas como se não fizessem parte
da realidade social brasileira.
Cabe destacar que em outra parte, o livro apresenta ainda, alguns conceitos históricos
em forma de um texto sucinto, que discute a questão do sistema de cotas raciais nas
universidades brasileiras, com argumentos de defensores e de críticos da reserva de vagas
para negros e índios (9º ano, p. 257) e em seguida, três atividades referentes ao texto lido. A
proposição no livro de temas que propiciam debates e discussões a exemplo do sistema de
cotas, merece aplausos, embora essa proposta tenha ocorrido de forma muito tímida nos
dois volumes analisados. Entretanto, vale destacar a relevância que tais debates e discussões
assumem, quando instigadas pelos autores dos livros didáticos demonstrando assim, o seu não
silenciamento, bem como serem evidenciadas e evidenciadas questões que têm atingido
ainda na atualidade, os afrodescendentes.
Embora saibamos não ser possível o aprofundamento nos textos e atividades de
aspectos dessa história diante dos objetivos para esse artefato, continuamos a insistir na
necessidade de provocações que serviriam como mote para discussões frutíferas na sala de
aula, contribuindo na formação humana e política dos alunos através dessa ferramenta
pedagógica podem também ajudá-los a exercitar a sua cidadania. Finalmente destacamos que
se por um lado é impossível responder de maneira aprofundada e detalhada a todas as
questões inicialmente apresentadas por nós para a análise dos dois volumes, por outro, fica
claro que embora na produção dos livros didáticos haja uma preocupação com as abordagens
que tratam a presença no período da escravidão, muito ainda há que ser mudado e
acrescentado em outros momentos de sua história.
Considerações finais
22
Seguindo os objetivos propostos no inicio da pesquisa realizada, pudemos constatar que
as questões relativas aos negros e afrodescendentes ainda continuam silenciadas parcial ou
totalmente em outros momentos que não o da escravidão. Este estudo evidenciou ainda que,
embora leis de inclusão destinadas aos afrodescendentes tenham sido criadas com objetivo de
minimizar as desigualdades sociais existentes e resgatar a própria trajetória do negro em nossa
sociedade nos mais diversos momentos da historia brasileira, as mesmas não são suficientes
para extinguir de fato um comportamento que está ainda enraizado em nossa cultura, que os
vê, apenas relacionados à escravidão, a não ser em raros momentos específicos.
As leituras e análises realizadas, nos permitem inferir que mais forte que as políticas e
legislações que tentam reverter esse quadro, são os valores e crenças introjetados, visões
estereotipadas que necessitam ainda de um tempo maior para serem desconstruídas, enquanto
a reconstrução de novos valores e visões estão sendo elaboradas para ocuparem
definitivamente seu lugar. Estes, felizmente estão sendo construídos na dinâmica dos
posicionamentos, ações e iniciativas que parecem inexistir, mas que estão presentes, através
dos movimentos sociais, da atuação de diferentes setores da sociedade incluindo aí, a postura
consciente e crítica dos educadores que atuam na Educação Básica e no Ensino Superior.
Nessa perspectiva, há a necessidade de novos estudos nesse campo. A história da África
e da cultura negra reserva descobertas sequer mencionadas pelos livros didáticos e
surpreendem pela trajetória de luta, conquistas, embora persistam os silenciamentos, as
negligências, os estereótipos, as discriminações. A luta atual pelo reconhecimento dos
direitos dos afrodescendentes como cidadãos e por igualdade de oportunidades já não mais é
solitária, podendo contar com o apoio e ações diversas. Assim, é preciso de forma contínua e
permanente, resgatar os valores de igualdade, respeito e valorização das diferenças, numa
sociedade marcada pela diversidade e pluralidade como é o caso de sociedade brasileira que,
em muitas situações, teima em não reconhecê-la como um dos aspectos fundantes de sua
identidade.
Manifestações como a Marcha Zumbi dos Palmares contra o racismo, pela cidadania e
pela vida, que ocorrem há décadas coordenadas também pelo Movimento Negro em parceria
com outras entidades como os movimentos sindicais e outros setores da sociedade são
demonstrações de reconhecimento que a escola é também lugar de formação de cidadãos,
23
pois lá todos estiveram. Assim, ao concluirmos fica claro para nós o destaque que deve ser
dado ao papel e atuação dos professores em sala de aula, não apenas na condução e
desenvolvimento dos conteúdos relacionados ao tema aqui trabalhado, como também nas
relações e condutas cotidianas que permeiam o processo educativo. Tais comportamentos, se
não analisados, podem estar servindo como reforço a uma situação que na retórica se defende
em extingui-la.