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1 EDUCAÇÃO PELO TEATRO: A PROPOSTA SOFOCLIANA DE FORMAÇÃO FERNANDES GOMES, Renan Willian 1 (UEM) PEREIRA MELO, José Joaquim 2 (DFE/PPE/UEM) INTRODUÇÃO Nos séculos VI e V a.C., a Grécia passou por profundas transformações que trouxeram consigo a transição de uma Grécia mítica para uma preocupada com a razão. Essas duas maneiras de se orientar frente à sociedade e ao mundo, no entanto, não foram substituídas abruptamente, ao contrário, pode-se considerar esse período da história grega como o cenário da coexistência entre o mito e a razão. O surgimento da pólis grega foi um fator decisivo para isso, uma vez que possibilitou a discussão sobre o papel do homem como agente social, bem como o dos deuses como articuladores da vida grega. [...] as velhas divindades do Olimpo Homérico já tinham passado por uma outra, e decisiva transformação: tinham sido integradas ao horizonte da pólis, tornando-se representantes de uma religião cívica e politizada (Vegetti, apud VERNANT, 1994, p. 242). A transição dessas formas de orientação marcou profundamente a vida do cidadão grego, em função do rompimento com os valores consagrados pela tradição, particularmente aqueles relacionados com a concepção de homem. O herói clássico era um homem mitificado, senhor de qualidades e virtudes ímpares, detentor de poderes e privilégios legitimados por sua linhagem aristocrata. O poeta grego Homero (VIII, a.C.), porta-voz da aristocracia grega, apresentou em suas obras esse perfil de herói ideal dignificado pelos deuses. Ao exaltar o homem aristocrata, Homero também hipotecou-lhe virtudes modulares, como a honra, a amizade, a lealdade, a hospitalidade, o bem- falar, a bravura e o respeito, até mesmo pelo inimigo, quando este 1 Acadêmico de Letras (UEM) 2 Professor Doutor (DFE/PPE/UEM)

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EDUCAÇÃO PELO TEATRO: A PROPOSTA SOFOCLIANA DE

FORMAÇÃO

FERNANDES GOMES, Renan Willian1(UEM)

PEREIRA MELO, José Joaquim2 (DFE/PPE/UEM)

INTRODUÇÃO

Nos séculos VI e V a.C., a Grécia passou por profundas transformações que trouxeram

consigo a transição de uma Grécia mítica para uma preocupada com a razão. Essas duas

maneiras de se orientar frente à sociedade e ao mundo, no entanto, não foram substituídas

abruptamente, ao contrário, pode-se considerar esse período da história grega como o cenário

da coexistência entre o mito e a razão. O surgimento da pólis grega foi um fator decisivo para

isso, uma vez que possibilitou a discussão sobre o papel do homem como agente social, bem

como o dos deuses como articuladores da vida grega.

[...] as velhas divindades do Olimpo Homérico já tinham passado por uma outra, e decisiva transformação: tinham sido integradas ao horizonte da pólis, tornando-se representantes de uma religião cívica e politizada (Vegetti, apud VERNANT, 1994, p. 242).

A transição dessas formas de orientação marcou profundamente a vida do cidadão

grego, em função do rompimento com os valores consagrados pela tradição, particularmente

aqueles relacionados com a concepção de homem.

O herói clássico era um homem mitificado, senhor de qualidades e virtudes ímpares,

detentor de poderes e privilégios legitimados por sua linhagem aristocrata. O poeta grego

Homero (VIII, a.C.), porta-voz da aristocracia grega, apresentou em suas obras esse perfil de

herói ideal dignificado pelos deuses.

Ao exaltar o homem aristocrata, Homero também hipotecou-lhe virtudes modulares, como a honra, a amizade, a lealdade, a hospitalidade, o bem-falar, a bravura e o respeito, até mesmo pelo inimigo, quando este

1 Acadêmico de Letras (UEM) 2 Professor Doutor (DFE/PPE/UEM)

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demonstrasse ter os valores requisitados pela virtude, a qual lhe permitia, de alguma forma, identificar no outro o seu próprio valor — consciência que somente era adquirida quando do seu reconhecimento pela sociedade a que o herói estava vinculado (PEREIRA MELO, 2008, p.186).

Até então o cidadão grego se espelhava nesse modelo, mas, com a mudança na

orientação de pensamento, ele passa a sentir os reflexos dos novos tempos e esse ideal de

homem, cantado por Homero, perde o seu sentido de ser. Com isto, instaura-se um quadro de

conflitos e contradições: se de um lado o cidadão grego tinha a sua vida traçada pelos deuses,

cuja palavra e desejos não poderiam ser contestados sob pena de punições; de outro,

configurava-se a possibilidade de agir a partir da sua vontade, escrever a sua própria história e

responder por seus atos.

Estas questões foram devidamente representadas em expressões artísticas surgidas na

Grécia nesse processo de transformação, particularmente na tragédia: “[...] a contradição

trágica pode situar-se no mundo dos deuses, e seus pólos opostos podem chamar-se Deus e

homem, ou pode tratar-se de adversários que se levantam um contra o outro no próprio peito

do homem” (LESKY, 1996, p.31).

Significativas, nesse sentido, são as considerações de Lígia Militz da Costa e Maria

Luiza Ritzel Remédios:

O universo trágico pode ser concebido como uma crise cujo ponto central é a ambigüidade. Isso porque a tragédia é o resultado de um mundo que se apresenta como o choque entre forças opostas: o mítico e o racional. Desse modo, a função primordial da tragédia é a palavra poética que responde à situação do século V a.C. (COSTA; REMÉDIOS, 1995, p.8).

Ao discutir as crises vividas pela sociedade grega, a tragédia tinha por preocupação

orientar o cidadão nesse processo confuso e complexo de mudanças. Destarte, a tragédia, em

função de sua força dramática e características distintas dos demais gêneros literários, tornou-

se instrumento privilegiado para se discutir esse processo; e, como resultado, refletir sobre o

homem requisitado pela ordem social que se originava.

Mesmo quando pareça perigoso afirmar que as tragédias foram escritas com a

finalidade de educar o seu público, posto seu propósito ser obra de arte com finalidade cênica,

essa condição não dispensou que seus enredos estivessem em sintonia com os interesses da

pólis, discutindo um modelo de homem para aquele contexto histórico.

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O entendimento do significado pedagógico de uma peça de teatro passa por um

conceito de educação que se ajuste como princípio formador do homem nos seus mais

diferentes âmbitos; isto é, o conceito normativo e não normativo da educação3.

Desse modo, por meio de seus personagens, o poeta assumia uma função social, qual

seja, ser “o educador dos homens livres” (BONNARD, 1980, p. 206), que, neste momento, já

reivindicavam papel mais ativo na vida em sociedade.

Nessa mesma direção de argumentação, Werner Jaeger (1979, p.56) assevera: “a

concepção do poeta como educador do seu povo — no sentido mais amplo e profundo da

palavra — foi familiar aos gregos desde a sua origem e manteve sempre a sua importância.”

A tragédia, ainda, serviu de instrumento para que esse mesmo homem pudesse discutir

as suas angústias e preocupações, resultantes do processo de transição, conforme já

mencionado, do antigo mundo mitológico para o novo mundo orientado pela racionalidade.

Os mitos apresentados na tragédia não refletem já os valores tradicionais de uma época remota, idealizada. Pelo contrário, tornam-se o campo de batalha das lutas internas da cidade: antigas concepções de vingança cruel contra o novo legalismo cívico; as obrigações familiares contra as obrigações civis [...] as diferenças entre o governo autoritário e o democrático [...] (SEGAL, 1994, p.195).

Entrementes, vale ressaltar que o fato de ocorrer, nesse momento, um distanciamento

do mito, não significa que o cidadão grego excluiu de todo a presença dos deuses em sua vida.

O que ocorreu é que a ênfase dada a eles perdeu um pouco de sua força. Em outras palavras, o

poder por eles exercido sobre a vida do cidadão passou a receber menor destaque (JAEGER,

1979).

Dentre os tragediólogos e as tragédias que foram relevantes nesse período, optou-se

por discutir Sófocles (496-405 a.C), e a tragédia intitulada Édipo Rei, visto seu conteúdo

dramático versar, efetivamente, sobre a representação desse ideal de homem:

ÉDIPO Meus filhos, nova geração do antigo Cadmo, por que permaneceis aí ajoelhados portando os ramos rituais de suplicantes? Ao mesmo tempo enche-se Tebas da fumaça

3A concepção de educação expressa por essa pesquisa vai ao encontro de que o fenômeno educacional transgride as barreiras institucionais e se faz no meio econômico, social e cultural em que os indivíduos se inserem (ROCHA, 2007, p.60).

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de incesto e enche-se também de hinos tristes e de gemidos. Não reputo justo ouvir de estranhas bocas, filhos meus, as ocorrências, e aqui estou, eu mesmo, o renomado Édipo. (ÉDIPO REI, vv.1-8, p.19).

Dessa forma, Sófocles põe em destaque o homem a servir de exemplo, posto a sua

vontade e postura questionadora, cujo fio condutor — a racionalidade — já legitimava a sua

ação frente aos seus e a sociedade.

Como não poderia ser diferente, a nova orientação que se propunha dar à sociedade e à

existência humana requisitava assumir posições e responsabilidades. É nessa direção que

Sófocles encaminha o personagem central, Édipo, a chamar para ele, e não mais atribuir aos

deuses, a responsabilidade das suas ações: assassinato do pai e o casamento com a mãe, bem

como as conseqüências deles decorrentes.

CRIADO Ele esbraveja e manda que abram o palácio e mostrem aos tebanos logo o parricida, o filho cuja mãe... não posso repetir suas sacrílegas palavras; ele fala em exilar-se e afirma que não ficará neste palácio, vítima das maldições por ele mesmo proferidas (Édipo Rei, vv. 1525-1533, p. 86).

Sófocles, ao colocar em cena Édipo na plenitude de seus conflitos, põe em discussão a

crise do próprio cidadão grego, fronteiriço entre mito e razão, entre o homem submisso aos

desígnios divinos e a vontade humana. Todavia, a questão em foco é a chamada de

consciência em relação à existência e a situação desse homem em conflito.

ÉDIPO Ai de mim! Ai de mim! As dúvidas desfazem-me! Ah! Luz do sol. Queriam os deuses que esta seja a derradeira vez que te contemplo! Hoje tornou-se claro a todos que eu não poderia nascer de quem nasci, nem viver com quem vivo e, mais ainda, assassinei quem não devia! (SÓFOCLES, Édipo Rei, vv.1387-1392, p.82)

Nessa direção, num jogo cênico, Sófocles investiu Édipo de coragem e determinação

para vazar os próprios olhos, num exercício da sua vontade. Essa ação leva a personagem a

assumir a sua historicidade.

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CRIADO ...o rei tirou das roupas dela uns broches de ouro que as adornavam, segurou-os firmemente e sem vacilação furou os próprios olhos, gritando que eles não seriam testemunhas nem de seus infortúnios nem de seus pecados: “mas sombras em que viverei de agora em diante,” dizia ele, “já não reconhecereis aqueles que não quero mais reconhecer” (Édipo Rei, vv. 1503-1510, p. 86).

Ao apresentar vontade própria e agir guiado por ela, o comportamento de Édipo nega

o herói mítico, ao mesmo tempo em que possibilita ao homem grego, por meio da figura do

herói trágico, um espelho que refletia a sua própria situação de incertezas, dúvidas e

descrenças. Além disso, permiti-lhe refletir sobre si próprio, seu lugar no mundo e na

sociedade. Para além, lidar com os seus conflitos, dúvidas, medos e, ainda, com os rumos que

ele, como responsável por suas atitudes, poderia/deveria dar a sua existência efêmera.

Diante disso, o tragediólogo trabalha alguns aspectos: mostra ao cidadão grego a

necessidade de se buscar um novo modelo formativo que respondesse às necessidades dos

novos tempos que se organizavam e põe em discussão o fenômeno educativo.

Édipo investiga, examina, questiona, infere; usa a inteligência, a mente, o pensamento; ele sabe, descobre, revela, esclarece, demonstra, aprende e ensina; e seu relacionamento com seus semelhantes é o de um libertador e salvador [...] (KNOX, 2002, p.102).

Segundo Sófocles, para a sociedade grega em transição, fazia-se necessário um

homem de ação em todos os sentidos, particularmente, que assumisse a sua vida, o seu destino

e a sua sociedade. Uma vez assumida essa postura de questionar o que está posto, esse homem

começaria a mudar os rumos do que se acreditava ser imutável: o destino. Neste sentido, nos

dizeres de Arnald Hauser (1990, p. 128), “[...] o poeta é o guardião de uma verdade superior e

um educador que conduz o seu povo no sentido de um plano de humanidade mais elevado.”

Considerando o que foi exposto, considera-se que a obra sofocliana faz parte de um

movimento de lutas interiores e exteriores travadas pelo cidadão grego, no sentido de

conquistar o seu próprio “destino”, e, assim, dar lugar a ele mesmo na sua existência e na sua

sociedade. Dessa maneira, coloca-se a preocupação com a formação do homem helênico para

atender a nova ordem social.

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As questões, conforme se discutiu, apontam para o entendimento do caráter formativo

da tragédia de Sófocles, ou seja, da educação pelo teatro, mesmo que ela não traga consigo

essa intencionalidade. Daí deriva a sua importância para a compreensão da educação grega no

período em tela e para pensar Sófocles como um escultor de homens, motivo de estar inserido

na História da Educação grega de uma forma privilegiada.

Por isso, acredita-se que estudar a obra sofocliana permitirá compreender o modo

como esse autor entendeu a época na qual viveu, bem como a maneira com a qual discutiu as

contradições que particularizaram as transformações sociais da sociedade grega. E, a partir

destes referenciais, propor um processo formativo que poderia responder às necessidades do

seu tempo.

À luz da obra sofocliana, pode-se apreender lições significativas, particularmente no

que diz respeito à formação do homem, principalmente a formação daquele que responderia

às necessidades do seu tempo. A influência do poeta na formação do homem grego garante-

lhe espaço expressivo na História da Educação na Antiguidade, o que lhe remete à gênese da

tradição pedagógica ocidental, herança da cultura grega.

METODOLOGIA

Na proposta metodológica adotada, a preocupação foi demonstrar que o viés formativo

contido na trama sofocliana de Édipo Rei não foi fruto do acaso, mas sim, resultado das

transformações ocorridas na Grécia entre os séculos VI e V. Isso implica compreender a

organização da sociedade naquele momento histórico como a base sobre a qual se funda esse

processo formativo. Isto posto, discuti-se a arte e a educação a partir da dinâmica da

sociedade, isto é, como produto histórico dos homens.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considera-se que a obra sofocliana faz parte de um movimento de lutas travadas pelo

cidadão helênico, no sentido de conquistar o seu próprio “destino”, e dar lugar a ele mesmo na

sua existência e na sua sociedade. Assim, coloca-se a preocupação com a formação do homem

helênico para o novo tempo que se organizava.

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Em suma, essas questões apontam o caráter formativo da tragédia de Sófocles, isto é, a

educação pelo teatro.

Referêncais:

COSTA, Lígia M.; REMÉDIOS, Maria L. R. A tragédia: estrutura e história. São Paulo:

Ática, 1988.

HAUSER, Arnald, História da arte e da literatura. São Paulo: Mestrejou, 1990.

JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. São Paulo: Herder, 1979.

KNOX, Bernard. Édipo em Tebas. Trad. Margarida Goldsztyn. São Paulo: Perspectiva,

2002.

LESKY, Albin. A tragédia grega. 3ed. Trad. J. Ginsburg, G. Souza e A. Guzik: São Paulo:

Editora Perspectiva, 1996.

PEREIRA MELO, José Joaquim. Homero e a Formação do Herói. In: Pesquisa em

Antiguidade e Idade Média: olhares interdisciplinares. São Luís: UEMA, 2008, p.186.

ROCHA, Alessandro Santos. A formação do homem grego na perspectiva da trilogia

tebana de Sófocles. Maringá: UEM, 2007. Dissertação (Mestrado em Educação).

SEGAL, Charles. O ouvinte e o espectador. In. VERNANT, Jean-Pierre (org.). O homem

grego. Lisboa-Portugal: Editorial Presença, 1994, p. 173-198.

VEGETTI, Mario. O homem e os deuses. In. VERNANT, Jean-Pierre (org.). O homem

grego. Lisboa-Portugal: Editorial Presença, 1994, p. 229-254.