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1 Educação popular: formação da consciência e luta política 1 Mauro Luis Iasi 2 A formação política é uma das ações mais enfatizadas pelas organizações dos trabalhadores em seu processo de luta pela emancipação humana. Paradoxalmente, esta eterna prioridade, quase sempre é relegada na prática destas organizações. A cada encontro ou congresso dos movimentos e organizações das forças populares, a formação é reafirmada, para no próximo encontro detectarmos que aquilo que foi planejado não se realizou, ou, no limite, não se realizou da forma como se esperava. Por que isto acontece? Em nossa visão há uma certa mistificação do tema da “formação política” ou da “educação popular”, dependendo da maneira como o assunto é tratado entre nós. Por vezes a formação assume o perfil de uma mera transmissão da linha partidária, ou de uma doutrina, e, por outro lado, por vezes assume o papel supervalorizado de criadora da própria consciência que nos levará às transformações revolucionárias. De um lado, uma simples técnica de socialização de uma teoria transformada em receituário colado a determinados “modelos” que devem ser repetidos; de outro o espaço de formulação e elaboração de um suposto novo conhecimento que iluminará as mentes, levando a consciência em si, através do ato educativo, até uma consciência para si. Há um evidente exagero nesta polarização, no entanto, ela nos ajuda a compreender o movimento percorrido pelas experiências em formação política no Brasil e algumas de suas lacunas. Para nós a questão inicial a ser enfrentada é que a forma da educação popular, ou da formação política de quadros, está inseparavelmente ligada à maneira como as forças políticas entendem o processo de formação da classe e concebem o caminho de sua emancipação. A própria idéia de que há necessidade de um processo educativo especificamente voltado aos trabalhadores com vistas á socialização de um determinado 1 Tema tratado no Seminário de Educação popular e Lutas Sociais do CFCH da UFRJ no dia 18 de novembro de 2004 e que serviu de base para a fala no ato de lançamento do CEPA-EP - Centro de Estudo, Pesquisa e Ação em Educação Popular. Modificado para a presente publicação. 2 Mauro Luis Iasi é doutor em Sociologia pela FFLCH da USP, professor da UFRJ na Escola de Serviço Social e educador do Núcleo de Educação popular 13 de Maio.

Educação popular: Formação da Consciência e Luta Política

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    Educao popular: formao da conscincia e luta poltica1 Mauro Luis Iasi2

    A formao poltica uma das aes mais enfatizadas pelas organizaes dos

    trabalhadores em seu processo de luta pela emancipao humana. Paradoxalmente, esta eterna prioridade, quase sempre relegada na prtica destas organizaes. A cada encontro

    ou congresso dos movimentos e organizaes das foras populares, a formao reafirmada, para no prximo encontro detectarmos que aquilo que foi planejado no se realizou, ou, no limite, no se realizou da forma como se esperava. Por que isto acontece? Em nossa viso h uma certa mistificao do tema da formao poltica ou da educao popular, dependendo da maneira como o assunto tratado entre ns. Por vezes a formao assume o perfil de uma mera transmisso da linha partidria, ou de uma doutrina, e, por outro lado, por vezes assume o papel supervalorizado de criadora da prpria conscincia que nos levar s transformaes revolucionrias. De um lado, uma simples

    tcnica de socializao de uma teoria transformada em receiturio colado a determinados modelos que devem ser repetidos; de outro o espao de formulao e elaborao de um

    suposto novo conhecimento que iluminar as mentes, levando a conscincia em si, atravs do ato educativo, at uma conscincia para si.

    H um evidente exagero nesta polarizao, no entanto, ela nos ajuda a compreender o movimento percorrido pelas experincias em formao poltica no Brasil e algumas de suas lacunas. Para ns a questo inicial a ser enfrentada que a forma da educao popular, ou da formao poltica de quadros, est inseparavelmente ligada maneira como as foras polticas entendem o processo de formao da classe e concebem o caminho de sua emancipao.

    A prpria idia de que h necessidade de um processo educativo especificamente voltado aos trabalhadores com vistas socializao de um determinado

    1 Tema tratado no Seminrio de Educao popular e Lutas Sociais do CFCH da UFRJ no dia 18 de novembro de 2004 e que

    serviu de base para a fala no ato de lanamento do CEPA-EP - Centro de Estudo, Pesquisa e Ao em Educao Popular. Modificado para a presente publicao.

    2 Mauro Luis Iasi doutor em Sociologia pela FFLCH da USP, professor da UFRJ na Escola de Servio Social e educador

    do Ncleo de Educao popular 13 de Maio.

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    conhecimento essencial em sua tarefa transformadora, j implica em certos pressupostos, quais sejam: 1) h uma diferena entre aparncia e essncia, de forma que a simples vivncia da realidade no oferece a compreenso necessria das determinaes que sustentam uma particular forma de sociedade; 2) a compreenso de que as diferentes alternativas societrias correspondem a interesses de classe, o que nos leva a afirmar que

    tanto a manuteno da atual ordem social, como a possibilidade de sua superao envolve projetos histricos de determinadas classes sociais; 3) acreditar que as transformaes histricas podem ser um projeto consciente, que expressam uma intencionalidade, ou seja, que no caso da etapa proletria e socialista, as revolues no acontecem, mas tem que ser feitas; 4) compreender que na realizao de uma revoluo social, combinam-se aspectos objetivos (grau de avano das foras produtivas materiais e sua contradio com as relaes sociais existentes, grau de amadurecimento de uma situao revolucionria, crise nas cpulas, aumento da misria e angstia das massas, acirramento do movimento independente das massas, etc), com aspectos subjetivos, que Lnin identificou como a capacidade da classe revolucionria em produzir aes revolucionrias de massa que

    levem derrubada do poder da classe dominante e que envolvem a capacidade de elaborao de programas tticos e estratgicos produzidos pela compreenso das formaes

    sociais em suas particularidades, assim como a constituio dos meios organizativos capazes de produzir os vnculos diretos com o movimento vivo da classe.

    Como vemos, somente a partir destes pressupostos que faz sentido a necessidade da formao poltica, e por isso, tambm, acreditamos ns, que ela entra em crise no atual momento de defensiva poltica dos trabalhadores, no qual estes pressupostos so questionados. A ofensiva ps-moderna funda sua principal argumentao na afirmao da emergncia de uma sociedade ps-industrial, na qual as classes perderam a centralidade explicativa que antes representavam, ao mesmo tempo em que abrem suas

    baterias crticas contra o marxismo acusando-o de ser uma viso mal superada de hegelianismo reapresentando a classe trabalhadora como sujeito de uma histria transcendental, de um projeto teleolgico, ou seja, que Marx teria apenas substitudo o Esprito do Mundo de Hegel pelo proletariado, mas mantido toda a estrutura voluntarista e idealista do filsofo alemo.

    Neste cenrio de derrota e defensiva da luta dos trabalhadores, a formao

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    perde o sentido e a educao popular metamorfoseia-se em programas de incluso social, desenvolvimento de cidadania, educao para o trabalho, ou ainda assume a forma de meros atos de propaganda e de informao.

    Afirmamos que o trabalho educativo na perspectiva de uma educao popular revolucionria, s faz sentido para aqueles que acreditam, com ns, na

    possibilidade da classe trabalhadora poder tornar-se um sujeito histrico capaz de apresentar um projeto societrio alternativo contra a ordem do Capital. O registro ps-moderno rompe com a idia de sujeito histrico, diluindo-se na singularidade do acontecimento, no acaso da luta particular, alterando radicalmente o papel do conhecimento e da o papel do prprio intelectual orgnico, nos termos gramscianos. Como em nossa compreenso os aspectos subjetivos de um processo de construo de uma alternativa revolucionria se encontram em uma relao de unidade de contrrios com os aspectos objetivos, ocorre uma ao e reao recproca de forma que um dos aspectos pode, em certo momento, transformar-se em seu oposto, o que no caso significa que os aspectos objetivos podem levar conformao de uma conscincia revolucionria, assim como esta conscincia passa a agir como fora material quando se objetiva na ao da classe. Esta aproximao nos coloca numa situao delicada que a de afirmar que,

    assim como no acreditamos que as contradies objetivas e o processo de luta conduz mecanicamente s alteraes da conscincia, da mesma forma no podemos concordar que os impasses prticos da luta de classe possam ser resolvidos por uma mera ao educativa.

    O papel e a importncia da formao poltica encontra-se na fronteira desta disjuntiva, estando profundamente ligada maneira como compreendemos o processo de conscincia. O sujeito da transformao revolucionria assume a forma de uma classe social, mas esta no se apresenta sempre como uma classe no sentido de um sujeito histrico. Este argumento, que implica negar uma certa viso de que as classes seriam

    meros espaos determinados pelas posies relativas diante da propriedade e das relaes sociais de produo, nos remete ao conceito das classes como fruto de uma sntese entre

    inmeros fatores, que inclui, alm dos j citados, o processo de formao da classe em seu processo de luta e a conscincia de classe.

    Esta conscincia de classe no pode ser confundida com um de seus

    momentos, seja a alienao tpica da serialidade dos indivduos em disputa na sociedade do

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    capital, a conformao como uma classe em si da ordem capitalista na qual os trabalhadores procuram se amoldar como parte integrante, ou o momento de negao da ordem e de possibilidade de afirmao de uma autonomia histrica como classe para si. A conscincia um movimento que passa por estes momentos, um todo e como tal apenas o processo pelo qual tornou-se o que .

    Este movimento da conscincia no pode ser compreendido para alm do prprio movimento do ser da classe e, neste sentido, a classe trabalhadora, em seu processo

    de constituio enquanto classe passa, tambm, por processos que vo desde a serialidade inicial dos indivduos at momentos de amoldamento ordem do capital e de negao desta mesma ordem. Isto ocorre porque a classe trabalhadora , ao mesmo tempo, uma classe na ordem capitalista, sem que seja uma classe da ordem capitalista.

    Podemos ento concluir que estes diferentes momentos do processo de entificao da classe como classe, nos termos de Marx, encontram sua correspondncia em diferentes momentos da prpria conscincia de classe. Entretanto, se esta a base material, o aspecto objetivo da conscincia de classe, ela no determinada mecanicamente por apenas por ele, uma vez que intervm aspectos subjetivos, ou seja, produzidos pelos sujeitos revolucionrios e as organizaes, que moldam de certa forma a classe no sentido da negao ou do amoldamento. neste campo que a formao intervm de forma decisiva. A vivncia das contradies prprias do sistema capitalista pode levar os indivduos at formas de associao grupal, desde as mais imediatas at graus diferenciados de pertencimento de classe, mas este processo encontra seus limites nos contornos da formao das classes da sociedade do capital, no limite do que Marx chamaria de conscincia em si. A possibilidade de um salto de qualidade em direo a uma conscincia revolucionria se produz pela combinao, de um lado, da vivncia prtica dos impasses e impossibilidades de completar

    a emancipao dentro dos limites no superados de uma sociedade regida pelo capital, e por outro pela apropriao de instrumentos tericos que permitam ir alm das aparncias e

    compreender as determinaes profundas que esto na base das injustias e da explorao contra as quais a classe se move.

    Existe, portanto, trs dimenses distintas no que tange ao trabalho

    revolucionrio empenhado em constituir as chamadas condies subjetivas: a da agitao

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    que potencializa as contradies vividas individualmente at formas variadas de sociabilidade grupal, a da organizao que potencializa estes formas grupais desde nveis imediatos at graus maiores de pertencimento de classe (associaes, sindicatos, movimentos sociais, partidos, etc), e a da formao, propriamente dita, que acompanha este movimento no sentido de buscar as causas e determinaes da sociedade atual, tornando

    possvel uma leitura da realidade que seja capaz de autonomia histrica, nos termos de Gramsci.

    Algumas experincias histricas do trabalho educativo no campo da formao poltica, no atentaram para a diferena de natureza entre estes momentos, ou, como foi determinante nos momentos mais recentes deste processo, diluram estas diferenas na afirmao to comum segundo a qual tudo formao, ou tudo tem uma dimenso pedaggica. Desta maneira, a formao poltica acaba sendo confundida com uma mera agitao, e subordina-se ao, ou uma mera tcnica de homogeneizao (alis e da que deriva o termo formao - colocar na forma), subordinando-se a organizao. Seja como for, a formao perde sua especificidade.

    Segundo o que pensamos a formao encontra sua especificidade na tarefa essencial de socializar os elementos tericos fundamentais para que os elementos da classe

    trabalhadora possam constitu-la enquanto sujeito histrico, ou seja, capaz de apresentar uma alternativa societria com independncia e autonomia histrica. Para tanto os elementos que compem a classe precisam compreender a natureza particular da sociedade capitalista, suas determinaes e sua formao histrica, assim como a luta de sua classe, o movimento na histria da prpria constituio da classe trabalhadora enquanto classe, suas estratgias, suas epopias e derrotas, para retirar de cada gro da histria seus ensinamentos. Mas tambm, e fundamentalmente, apropriar-se de um mtodo, que tornou possvel estes saberes, que desvendou a economia poltica, que atravs da crtica da

    economia poltica logrou compreender o ser do capital em sua essncia, que buscando captar o movimento das formas chegou a compreender os processo pelos quais as formas se

    superam, que compreendendo a natureza singular da transformao que a sociedade especificamente capitalista em seu auge prepara, pode encontrar na classe trabalhadora o sujeito histrico desta transformao e, nesta forma particular, a possibilidade de uma

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    emancipao humano-genrica. Em uma palavra, a formao implica, a nosso ver, na

    apropriao do legado marxiano pela classe trabalhadora. A forma como tais objetivos foram pensados na tradio das organizaes socialistas e revolucionrias em nosso pas, marca as diferenas fundamentais no que tange as concepes da formao poltica e de educao popular. Em um primeiro momento

    devemos registrar que o processo de formao da classe trabalhadora brasileira carrega a herana das lutas populares e de resistncia que tm sua origem no passado colonial e

    escravista da formao social brasileira. Foi, entretanto, com o processo de transio para uma economia capitalista na

    passagem do sculo XIX para o sculo XX, que se inaugura uma organizao de classe que implicava em um trabalho especfico de formao ou educao. Nestes primrdios temos a rica experincia da corrente anarco-sindicalista e o desenvolvimento de mtodos extremamente criativos que foram responsveis pelo estabelecimento, de maneira pioneira, de uma cultura operria e emancipatria. O movimento anarquista foi responsvel por uma intensa militncia cultural, de um

    intenso trabalho de imprensa operria, da divulgao ampliada de ideais libertrios atravs de textos, peas teatrais, esquetes, piqueniques, manifestaes e, principalmente, da ao

    direta das lutas sociais e reivindicatrias. A atividade educativa era encarada como parte central da luta social e da afirmao da autonomia das organizaes operrias, inclusive na formao de escolas ditas formais controladas pelas organizaes libertrias. A educao libertria inseparvel de suas funes agitativas ligadas estratgia da ao direta, revestindo-se, por vezes, de uma nfase moral. Os limites desta primeira forma so proporcionais aos seus xitos encontrando sua forma mais desenvolvida nas greves gerais de 1917 e 1919.

    Evidente que a experincia anarquista no pode ser julgada por no se utilizar do referencial marxista, uma vez que fundamentava sua estratgia sobre ouros alicerces, entretanto, a categoria da ao direta implicava em recursos morais,

    profundamente anti-capitalista, que necessitavam ser massificados para se tornar eficazes enquanto arma poltica. O aspecto da compreenso da particularidade da formao social brasileira, o carter da sociedade, das classes e do Estado no Brasil, no chegou a constituir

    questo central na elaborao, e, portanto, no trabalho educativo-poltico anarquista.

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    O impacto da Revoluo Bolchevique na Rssia e os limites prticos das estratgias anarquistas, concorreram para a formao do PCB em 1922 e o incio de uma longa hegemonia da tradio comunista no Brasil que se estendeu at o golpe militar de 1964. Se na experincia anarquista a formao encontrava sua maior expresso na esfera da agitao e da formao de uma cultura operrio-libertria (sem que desconsideremos que a estas esferas ligava-se um intenso trabalho organizativo), a tradio comunista colocava sua nfase na organizao, de maneira que a formao assumia o papel de socializao de uma

    doutrina marxista, como sntese de um pensamento revolucionrio capaz de dotar de homogeneidade o corpo da classe enquanto partido. A eficincia desta forma, que pode ser medida pela longevidade da experincia organizativa dos comunistas brasileiros, tambm foi proporcional aos seus limites. Colocando a classe trabalhadora em movimento como um novo sujeito histrico, em muitos momentos como ator determinante de certas conjunturas, o PCB levou a formao poltica at um alto grau de organizao que atingia com grande eficincia a tarefa de multiplicao de militantes orientados por uma linha de ao comum. Entretanto, a formao, exatamente por isso, subordinou-se organizao e assumiu uma

    forma de socializao de uma linha de ao. O limite desta experincia, assim como da contribuio anarco-sindicalista,

    no deve ser medida pelo crivo do sucesso ou fracasso da estratgia adotada, mas atravs dos caminhos percorridos para a construo destas alternativas. O que nos chama a ateno que estas experincias que alcanaram ndices invejveis de aglutinao, organizao e mobilizao das massas operrias, que construram meios de educao e desenvolvimento de elementos culturais responsveis pelo estabelecimento de geraes de militantes convictos, fundaro suas estratgias em uma leitura bastante precria a respeito da particularidade da formao social brasileira.

    verdade que a tradio comunista deu um salto significativo nesta direo, atravs de estudos pioneiros como os de Octvio Brando e Astrogildo Pereira, entre outros, mas devemos notar que acabou por prevalecer a imposio de modelos

    comparativos que acabavam por ser determinantes, como no caso da definio de estratgias insurrecionais, como as de 1935, ou na definio de um carter Nacional Democrtico como a estratgia que prevaleceu na dcada de 50 e 60.

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    A prpria diversificao da esquerda brasileira tendo por tronco fundamental o PCB, ou a ele se contrapondo, acaba por confirmar esta tendncia. A fonte destes modelos pode ser encontrada na dinmica do movimento revolucionrio internacional e nos acontecimentos dramticos que emanavam das experincias de transio revolucionria em curso, como seria natural de se esperar. Desta maneira, com a hegemonia das concepes

    de Stalin na URSS, forma-se por contraste, no Brasil, a corrente trotskista, principalmente a partir do grupo 1 de Maio e depois da Liga Comunista Internacionalista; quando da ciso

    entre a URSS e a China, j na dcada de 60, tem inicio a formao de cises que procuram uma possibilidade de leitura maosta no Brasil, posteriormente ganhando forma com a criao do PC do B em 1962, da mesma forma que a crise da estratgia nacional democrtica do PCB com o golpe em 1964, levaria vrios grupos a se aproximarem do modelo guerrilheiro emanado da experincia bem sucedida da revoluo Cubana de 1959.

    De forma muito geral podemos afirmar que a opo por modelos alternativos no se dava por diferentes leituras da formao social brasileira, mas pela busca de parmetros encontrados nas experincias que obtiveram xito em cada perodo (Revoluo Russa, Chinesa, Cubana, etc.). Neste grau de pulverizao a formao poltica assume a forma de uma justificativa da superioridade de cada modelo em comparao aos outros, perdendo sua especificidade de permitir a apropriao de um mtodo de compreenso da realidade do qual derivasse as formulaes estratgicas adequadas particularidade brasileira, na verdade a traduo particular das leis gerais dos processos revolucionrios.

    Uma das caractersticas comuns a todas as experincias revolucionrias vitoriosas no sculo XX a que, em algum momento, suas vanguardas entraram em choque com uma determinada ortodoxia que lhes queria impor como modelo uma certa alternativa. Foi assim na revoluo russa com o rompimento da ortodoxia da II Internacional, foi assim na revoluo Chinesa ao superarem a imposio da estratgia Petrogrado, sustentada na viso

    insurrecional a partir das cidades operrias, afirmando a estratgia da Guerra Popular Prolongada, da mesma forma que a Revoluo Cubana soube encontrar seu caminho

    ultrapassando o crculo de giz da revoluo pacfica e se recusando a optar entre o caminho da insurreio urbana ou da guerra de guerrilhas com centralidade no campo, combinando de maneira original os dois caminhos para encontrar o seu prprio.

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    O que se encontra na base desta heterodoxia a capacidade de aplicar o mtodo como instrumento de compreenso de uma realidade particular luz de ensinamentos universais.

    Estas experincias contaram, cada uma ao seu modo, com aes de formao e educao, entretanto, esta ao nos casos descritos foram restritas formao dos quadros

    que compunham as organizaes de vanguarda e se estendiam s bases de apoio na classe atravs de aes que seriam melhor descritas como tticas de agitao e propaganda.

    Em momentos muito especficos, como o caso dos crculos de estudo do marxismo na Rssia, incentivados por Plekanov e depois Martov e Lnin, ou o trabalho educativo nas reas liberadas no caso Chins e Cubano, temos momentos prprios de formao combinados com aes revolucionrias em curso. Nestas experincias, mesmo considerando estas excees descritas, o verdadeiro trabalho de formao ocorreu aps as vitrias revolucionrias e no antes.

    Na tradio brasileira mais recente, aquela que emerge do final do ciclo autoritrio nos anos 70 e 80, curiosamente o trabalho de formao ganha o status de uma

    tarefa imprescindvel que deveria ser realizada antes e como condio sine qua non do processo revolucionrio. Criticando a forma que era identificada como vanguardista das

    experincias anteriores, no caso do Brasil principalmente o PCB, a incorporao da classe trabalhadora como sujeito direto de suas prprias lutas implicava na forma de massas das organizaes. Nesta aproximao a educao popular, termo que muitas vezes usado exatamente para fazer o contraponto formao poltica identificada como de quadros, converte-se no meio essencial da estratgia.

    Assim como a tradio anterior privilegiava o contedo, a nova tradio iria insistir na forma, entendida como a maneira de realizar a atividade respeitando as formas de pensamento e o conhecimento popular.

    Papel decisivo nesta alternativa teve a entrada de militantes catlicos ligados Teologia da Libertao e o desenvolvimento de um mtodo que orientava a ao destes

    cristos, o chamado VER, JULGAR e AGIR. A educao popular que prevaleceu neste perodo e que se imps como forma hegemnica na verdade uma sntese entre esta vertente crist e a antiga tradio marxista que se multiplicou nas organizaes polticos

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    militares nos anos de resistncia Ditadura e que reaparece no cenrio poltico com a abertura e a anistia no final dos anos 70. grosso modo, suas principais caractersticas so a forma de massas, a preocupao com as metodologias participativas, o vnculo com os movimentos sociais e uma certa relativizao do contedo. Na verdade esta maneira de entender a educao

    popular procurava afirmar duas diferenas essenciais: atribuir aos participantes o papel de sujeitos do processo educativo, levando a afirmao que nas atividades educativas produzido um novo conhecimento; e o vnculo direto com a organizao levando concluso, antes por ns referida segundo, a qual tudo formao.

    Os fundamentos da forma que assumiu carter hegemnico no perodo mais recente na educao popular encontram-se na famosa formulao segundo a qual, o processo educativo deve partir da prtica concreta, elevar-se at abstraes tericas para voltar prtica, transformando-a, afirmao que se sintetizou na frmula P-T-P. Conhecida como concepo metodolgica dialtica, nos termos de Oscar Jara e de seus seguidores no Brasil, esta concepo assumiu status de quase uma unanimidade, orientando as

    experincias formativas das principais organizaes dos trabalhadores no perodo, tais como a CUT, o PT e o MST, alm de inmeras iniciativas de organizao popular como as

    pastorais, movimentos populares, sindicatos e ncleos de educao. Assim como as experincias anteriores, esta forma particular atingiu uma

    grande dimenso, principalmente no seu aspecto de massa e nos vnculos que foi capaz de criar com as bases populares da classe trabalhadora, constituindo uma gerao de militantes sociais. Nas razes de sua eficincia encontramos algumas das razes de seus limites. A educao popular estendeu ao mximo sua amplitude, mas diluiu suas caractersticas iniciais classistas e anti-capitalistas, no chegando a formar uma verdadeira cultura socialista e, muito menos, revolucionria. Ainda que divulgadora de valores militantes, a

    crtica anti-capitalista raramente ultrapassava a crtica moral, fazendo com que a formao assumisse uma forma mista de agitao e tarefa organizativa, na verdade aglutinadora mais

    que organizativa.

    O verdadeiro limite desta forma no pode ser encontrado nela mesma, mas nas metamorfoses que a ao da classe sofreu no perodo, e que imps forma educativa

    funes muito distintas do que aquelas que inicialmente se anunciavam. Inicialmente

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    tratava-se de estabelecer um amplo movimento de massas de carter socialista como um dos braos de uma estratgica que se completaria com a ocupao de espaos institucionais, entre eles a participao em parlamentos e governos. Sabemos que a nfase se inverteu, de maneira que os movimento sociais se converteram no meio para a finalidade estratgica, que passou a ser a ocupao e manuteno dos espaos institucionais.

    Esta deformao levou a uma alterao profunda no carter da educao popular. No se tratava mais de formar militantes de um projeto socialista, mas de organizar massas que se tornariam bases eleitorais, seja para a disputa interna no partido, ou nas mquinas sindicais, seja para disputas eleitorais mais amplas. Pouco a pouco a poltica de formao se converte em uma poltica de informao ou de comunicao que perdia tanto sua capacidade agitativa, como a funo de ser formadora de uma homogeneidade na conduo de uma linha de ao.

    No caso especfico da CUT, como demonstra Paulo Tumolo, a formao poltica transitou para uma verso rebaixada de formao profissional; no caso do PT vivemos o desmonte de todo o programa de formao, que inclui um programa de formao

    de base e um programa de formao de formadores, sendo substitudos por estranhas e absolutamente ineficazes programas de educao distancia e veculos de comunicao e

    informao.

    Um dos indicadores deste desmonte pode ser encontrado na falncia do projeto das grandes escolas nacionais de formao, como o Instituto Cajamar e sua alternativa esquerda que foi representada pelo Instituto Nativo da Natividade.

    A poltica de formao do MST seguiu um caminho distinto, entretanto ainda apresenta em seus fundamentos vrias marcas desta mesma concepo hegemnica, tanto na concepo metodolgica como na forma, tendo inclusive, chegado proposta de uma Escola Nacional. Assim como o MST, outras entidades de formao seguiram trajetrias distintas, como o caso do Ncleo de Educao popular 13 de Maio (NEP) que, ainda que partindo da aceitao da concepo metodolgica dialtica, construiu uma trajetria bastante distinta, fundada em programas de formao unitrios para distintas realidades regionais e diferentes categorias e segmentos de classe, acabando por formular uma crtica substancial metodologia hegemnica apresentando, ainda que rudimentarmente, uma

    concepo alternativa. O NEP 13 de Maio chegou em 2009 sua 23 turma de monitores

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    com amplitude nacional, alm de contribuir com iniciativas regionais no Rio Grande do Sul, na Bahia e desenvolver algumas turmas no Paraguai.

    Estas experincias que parecem nadar contra a corrente encontram no perodo mais recente uma aparente paradoxal perenidade e crescem mesmo em perodos de claro descenso.

    Seja como for, podemos concluir afirmando, como em Karl Korsch, que a conscincia dos trabalhadores no mais que o outro aspecto do ser da classe e, por isso, os

    momentos de ascenso ou descenso do movimento real da classe deve implicar alteraes na sua expresso consciente atravs de movimentos de negao ou acomodao. A construo de alternativas revolucionrias encontram no instrumento da formao poltica a capacidade no de evitar os momentos de acomodamento, o que levaria a uma supervalorizao deste instrumento, mas de enfrent-los com uma qualidade superior e sobreviver s crises retirando delas os valiosos ensinamentos que construiro as futuras vitrias de nossa classe.