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Sessão Especial 04 - As reconfigurações da relação público-privado no contexto do Plano Nacional de Educação 37ª Reunião Nacional da ANPEd 04 a 08 de outubro de 2015, UFSC Florianópolis EDUCAÇÃO SUPERIOR NO PNE (2014-2024): APONTAMENTOS SOBRE AS RELAÇÕES PÚBLICO-PRIVADO Lalo Watanabe Minto 1 Resumo O artigo trata de alguns aspectos relevantes para uma compreensão do Plano Nacional de Educação (PNE - Lei nº 13.005, de 24/06/2014), naquilo que se refere aos conflitos entre os setores público e privado no ensino superior (ES). Adota-se como procedimento a análise do texto final da Lei em foco e de seu anexo. Público e privado não são tomados como esferas autônomas e pré-determinadas, mas examinados em função dos conflitos sociais, políticos e econômicos que, no âmbito do ES, expressam disputas em torno de interesses de classe e de visões de mundo antagônicas. Nesse sentido, aponta-se que, a despeito das resistências e mobilizações possíveis durante as conferências municipais, estaduais e nacional, no conteúdo do novo PNE prevalecem os interesses privados no ES, conforme tendências consolidadas sobretudo nas últimas duas décadas. Palavras-chave: Plano Nacional de Educação; Ensino superior; Público-privado. Abstract This article discusses some relevant aspects to comprehend the National Education Plan (PNE Law n. 13.005/2014), as part of public-private relationships. We analyze the final text of this law and its goals and strategies attached. Public and private are examined on their basis of political, economic and social conflicts, expressing class interests and antagonistic visions of society. In this sense, we point out that despite the efforts to favor public education, noticed during the local, state and national conferences of education, the new PNE contents are favorable to the private interests on higher education, confirming tendencies of this education in the last two decades. Key words: National Education Plan; Higher Education; Public-private. Para tratar da educação superior à luz das configurações público-privado no âmbito do PNE, é preciso guiar-se pelo movimento real de desenvolvimento dessa educação. Estamos falando da dinâmica histórica e concreta da sociedade de classes contemporânea, fundada no antagonismo dos interesses gerais e particulares. Nesse sentido, seria inadequado analisar tais configurações como mero deslocamento da chamada fronteira entre as redes de ensino pública/estatal e privada/não estatal, sendo necessário ir além dessa identidade restrita. 2 1 Faculdade de Educação - Unicamp. 2 Evidentemente, não compactuamos com a forma de questionamento da identidade público-estatal, difundida com a reforma do Estado (anos 1990), cujo mote era ampliar o acesso a fundos públicos para

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Nacional de Educação

37ª Reunião Nacional da ANPEd – 04 a 08 de outubro de 2015, UFSC – Florianópolis

EDUCAÇÃO SUPERIOR NO PNE (2014-2024): APONTAMENTOS SOBRE AS

RELAÇÕES PÚBLICO-PRIVADO

Lalo Watanabe Minto1

Resumo

O artigo trata de alguns aspectos relevantes para uma compreensão do Plano Nacional

de Educação (PNE - Lei nº 13.005, de 24/06/2014), naquilo que se refere aos conflitos

entre os setores público e privado no ensino superior (ES). Adota-se como

procedimento a análise do texto final da Lei em foco e de seu anexo. Público e privado

não são tomados como esferas autônomas e pré-determinadas, mas examinados em

função dos conflitos sociais, políticos e econômicos que, no âmbito do ES, expressam

disputas em torno de interesses de classe e de visões de mundo antagônicas. Nesse

sentido, aponta-se que, a despeito das resistências e mobilizações possíveis durante as

conferências municipais, estaduais e nacional, no conteúdo do novo PNE prevalecem os

interesses privados no ES, conforme tendências consolidadas sobretudo nas últimas

duas décadas.

Palavras-chave: Plano Nacional de Educação; Ensino superior; Público-privado.

Abstract

This article discusses some relevant aspects to comprehend the National Education Plan

(PNE – Law n. 13.005/2014), as part of public-private relationships. We analyze the

final text of this law and its goals and strategies attached. Public and private are

examined on their basis of political, economic and social conflicts, expressing class

interests and antagonistic visions of society. In this sense, we point out that despite the

efforts to favor public education, noticed during the local, state and national conferences

of education, the new PNE contents are favorable to the private interests on higher

education, confirming tendencies of this education in the last two decades.

Key words: National Education Plan; Higher Education; Public-private.

Para tratar da educação superior à luz das configurações público-privado no

âmbito do PNE, é preciso guiar-se pelo movimento real de desenvolvimento dessa

educação. Estamos falando da dinâmica histórica e concreta da sociedade de classes

contemporânea, fundada no antagonismo dos interesses gerais e particulares. Nesse

sentido, seria inadequado analisar tais configurações como mero deslocamento da

chamada fronteira entre as redes de ensino pública/estatal e privada/não estatal, sendo

necessário ir além dessa identidade restrita.2

1 Faculdade de Educação - Unicamp.

2 Evidentemente, não compactuamos com a forma de questionamento da identidade público-estatal,

difundida com a reforma do Estado (anos 1990), cujo mote era ampliar o acesso a fundos públicos para

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Na sociedade capitalista o interesse privado corresponde ao movimento que o

capital opera, permanentemente, para viabilizar a geração de valor para acumular e

concentrar capital, o que faz por dentro e por fora da institucionalidade estatal. Já a

esfera do interesse público se estabelece nos espaços de contradição dessa lógica de

sociabilidade, em especial, no exercício do controle social sobre o capital, necessário

para evitar que sua destrutibilidade inerente o leve a eliminar suas próprias bases de

acumulação. Historicamente, a construção dessa esfera pública garantiu, por um curto

período e em poucos países, uma retração da base social de exploração do capital.

O caráter público (possível) do Estado moderno é um produto histórico da

mesma base material na qual se assentam as relações de classe e sobre a qual aquele se

erigiu. Não há, “a não ser na ideologia burguesa, um Estado ideal, espaço por excelência

da realização do público”. (MINTO, 2006, p. 282). Assim, a educação estatal poderia

ser caracterizada como esfera de interesse público, mas não confundida com a efetiva

realização de uma educação pública, impossível na ordem burguesa.

O movimento contemporâneo, porém, realiza-se em sentido oposto, de reversão

de conquistas e direitos sociais, num processo que amplia e potencializa as

desigualdades inerentes a esse sistema. Com a mundialização ocorre um

superdimensionamento da esfera dos interesses do capital, que, para manter sua lógica,

precisa se apropriar de todos os espaços possíveis de acumulação e realização de valor,

donde a ideologia de que o Estado deve ser reduzido e de que o mercado – esfera de

regulação direta pela lógica do capital – seja mais “eficiente” para organizar a vida

social.

Em meio a esse processo de reestruturação das formas de acumulação,

é que se produz, portanto, um redimensionamento desse público, que

progressivamente deixa de ser o espaço de controle social sobre o

capital, em prol de um privado que não apenas é o locus da

apropriação, da reprodução e acumulação do capital, mas que tende a

totalizar-se, passando a ocupar todos os momentos da reprodução

societal. A partir de então, o espaço antes ocupado por esta esfera

pública, passará a ser, progressiva e diretamente, ocupado pela lógica

do privado, do mercado, enfim, da acumulação capitalista. (MINTO,

2006, p. 85).

O interesse privado no campo educacional contemporâneo estará, assim,

permeado por essa maior abrangência do capital em relação a toda a sociabilidade e

que o setor privado – transmutado em “público não estatal” – pudesse utilizá-los como plataforma para

negócios. A isso se chamou de publicização, numa clara confusão com o termo privatização.

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atividades educacionais serão apropriadas como espaços privilegiados para a

acumulação. Em razão disso, mudanças fundamentais em sua estrutura e na sua relação

com o Estado se tornaram necessárias. A educação estatal, por sua vez, se mantém na

esfera da contradição, mas cada vez mais distanciada daquele caráter público pois

esvaziada dos mecanismos de controle sobre o capital de outrora.

Público-privado na educação superior: considerações históricas

Uma nova lógica de organização foi introduzida pelas reformas de 1968

(MARTINS, 2009), quando teve início uma expansão quantitativa do ES privado, que

se tornou predominante desde então. Esta expansão, porém, é uma das dimensões de um

processo mais complexo, não seu único veículo, da mesma forma que a mercantilização

não é exclusividade do setor privado. (MINTO, 2014, p. 250). Desde então, privatizar

[...] passou a denotar a organização e reorganização permanente do

nível superior de ensino nas condições do novo padrão de acumulação

capitalista pós-crise dos anos 1960/1970. A afirmação desse caráter

privatista não deve, contudo, criar a ilusão de que o papel do Estado

tenha sido diminuído ou neutralizado neste processo. (MINTO, 2014,

p. 263-264).

O papel do Estado continua a ser decisivo na política educacional. Mas é um

papel movente, que acompanha os conflitos de classe em sua dinâmica concreta e que,

em contextos como o predominante nas últimas duas décadas, sua posição é de estímulo

à lógica privatizante.

A reestruturação capitalista ampliou a heterogeneidade estrutural da base

produtiva brasileira, alterando as formas de inserção das classes e frações de classes

locais na dinâmica do novo padrão global de acumulação de capital. Nesse contexto, as

próprias frações burguesas locais vêm patrocinando um conjunto de políticas que

buscam inviabilizar a universidade como uma instituição autônoma. (LEHER, 2010, p.

29). A tentativa é de inviabilizar todo um projeto histórico – classista (burguês) mas de

base nacional-democrática – recolocado em pauta no processo de democratização pós-

Ditadura, para o qual a universidade tinha um papel a cumprir como centro estratégico

de produção científico-tecnológica.

Esvaziada desse papel, a heteronomia vem se tornando o modo de ser da

educação superior brasileira, num processo com dois sentidos principais: de

reestruturação das universidades “de excelência”, assoladas pelas panaceias do

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eficientismo, do produtivismo e da administração gerencial, onde se valoriza aqueles

setores e atividades mais afetas aos interesses dos grandes capitais; e, de crescente

mercantilização e de vinculação com o capital financeiro internacional3, nas IES

privadas, em sua grande maioria não universitárias ou arremedos de universidades.

Alguns estudos utilizam a expressão “nova burguesia de serviços” para se referir

a essa reorganização classista e sua atuação no campo da educação, contudo:4

[...] não se estabelece uma “nova” classe; uma fração daquela classe

[burguesia] se converte numa espécie de setor parasitário privilegiado

do processo de reforma do Estado e dos padrões de acumulação

vigentes, que são fundados na redefinição de prioridades políticas, no

redirecionamento dos fundos públicos em prol da acumulação, na

desarticulação das lutas da classe trabalhadora, na pressão por reverter

direitos e conquistas daquela classe, na estigmatização ideológica do

Estado e de tudo o que é estatal. (MINTO, 2014, p. 285).5

Em torno dessas novas tendências vem se formando, desde o final dos anos

1980, um arco de alianças, composto por novos organismos de classe para a defesa do

ES privado. Momentos importantes dessa mobilização foram, em 2005, a criação do

Fórum Nacional da Livre Iniciativa na Educação (RODRIGUES, 2007, p. 60-2); em

2008, o Fórum das Entidades Representativas do Ensino Superior Particular; e a

Associação Brasileira para o Desenvolvimento da Educação Superior (Abraes).

Eis um panorama do contexto em que a análise da relação público-privado no

PNE será feita. São conflitos que ditarão parcela decisiva dos rumos das políticas de ES,

definindo aquelas relações de acordo com a força e a capacidade de imposição dos

interesses das classes e frações de classes em disputa.

O novo PNE: uma primeira análise

Aprovado em 03 junho de 2014, no Congresso Nacional, o PNE entrou em vigor

no dia 25 daquele mês. Depois de muitas mudanças no projeto original, que já havia

incorporado de maneira bastante restrita as deliberações da Conae 2010, o texto

3 Sobre isso, ver: Sguissardi (2008), Leher (2010), Chaves (2010), Oliveira (2013), Silva Jr.; Catani

(2013). 4 Sobre a temática da burguesia de serviços no campo do ES, ver Rodrigues (2007) e Neves (2002).

5 Segundo a revista Forbes Brasil, cinco empresários com negócios na área do ensino – três diretamente

no ES – estavam entre os 150 bilionários do país. (150 BILIONÁRIOS..., 2014, p. 46-82).

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aprovado foi comemorado por várias razões, dentre as quais sobressai seu viés

privatista.6

O conjunto de motivos que faz do PNE um dos principais documentos da

política educacional é por demais conhecido para que seja necessário repeti-lo aqui.7

Um aspecto, porém, parece-nos essencial para facilitar um entendimento acerca da sua

elaboração: as ações do PNE, sobretudo quando envolvem a previsão de recursos

financeiros e a indicação clara de responsabilidades das esferas do poder público, é que

dão forma concreta às políticas educacionais. Setores críticos ao PNE 2001-2011 o

definiram como “carta de intenções” quando o então presidente FHC vetou, justamente,

as metas que implicariam ampliação dos gastos com educação.

Na elaboração de uma peça como o PNE abre-se a possibilidade de alterar as

linhas gerais de implementação das políticas para a educação. Para o setor privado,

representa uma possibilidade de reorganização dos seus interesses frente ao Estado,

mormente de ampliar as estratégias de captura do fundo público num contexto em que

os serviços se tornam cada vez mais estratégicos para frações da burguesia brasileira.

Mas estas são possibilidades e uma análise pormenorizada dos conflitos de

interesses que geraram “atrasos” na elaboração do PNE, foge ao escopo desse estudo.

Há, porém, um relativo consenso quanto ao fato de que o documento final da Conae

2010 trazia avanços frente às políticas vigentes para a educação no decênio anterior; e

que sua transformação no PL n. 8.035/2010, pelo governo brasileiro, não traduziu este

conjunto de deliberações, além de não apresentar um diagnóstico da realidade

educacional e do PNE anterior (OLIVEIRA et al, 2011, p. 488-489). Isso contribuiu

para neutralizar características que seriam fundamentais para quaisquer avanços

substantivos no ES público. Se o Documento de 2010 já continha tendências

convergentes com as políticas para o ES implementadas nas últimas décadas, as mesmas

foram consolidadas durante a tramitação do PL no Legislativo. (LIMA, 2014, p. 36-37).

Metas e estratégias para uma nova configuração público-privada

6 São conhecidas as vinculações entre parlamentares e IES privadas. Seu grau e abrangência na atual

legislatura, decerto é tema para outros estudos. Recorde-se, aqui, da grande presença desses

parlamentares, incluindo proprietários de IES, na Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos

Deputados, durante o primeiro mandato Lula, denunciada pelo Jornal do Brasil (UNIVERSIDADE...,

2006). 7 Os números 112, 124 e 125 da revista Educação e Sociedade (Cedes), são fontes de consulta

indispensáveis nessa temática.

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À medida que as ações empreendidas pelo capital, para ter acesso e controle

sobre o fundo público – via setor educacional, se diversificam e ganham complexidade,

torna-se difícil separar os interesses privados por áreas de atuação.8

Embora não seja o enfoque desse estudo, é lícito registrar que o viés privatista de

algumas das metas que tratam do atendimento educacional inclusivo, da expansão da

educação infantil, da educação de tempo integral, da educação profissional e de jovens e

adultos, também pode afetar os interesses do ES privado. Nelas, há traços de

continuidade com as políticas implementadas pelos últimos governos, favorecedoras das

parcerias público-privadas. Exemplos disso são as estratégias 1.7, 3.7, 8.4, 9.1 e 11.6 do

PNE, onde se introduziu a expressão “oferta gratuita” para se referir a instituições

privadas aptas a receberem recursos públicos para garantir atendimento nas áreas

citadas.

A seguir, exploraremos alguns dos eixos de conflitos no ES.

Expansão das matrículas

Duas tendências se chocam nesse aspecto: a de crescimento da oferta de vagas

no ES, por um lado, e a tendência de redução do número anual de formandos no ensino

médio, público-alvo principal do ES, por outro lado. Os ingressos efetivos no ES

crescem para além da demanda imediata gerada pelas conclusões na etapa anterior. Um

problema, aliás, cuja resolução demandaria avanços na construção do sistema nacional

de educação, que teve seu debate retomado durante a Conae 2009-2010, mas

descaracterizado no Congresso. Com efeito, essa não caracterização sistêmica9

repercute sobre a relação público-privado que o PNE pode viabilizar no ES. Observe-se

os dados do Inep:

Tabela 1 - Evolução do fluxo ensino médio-ES - Brasil, 2004-2013

Ano Concluintes do EM -

ano anterior (A)

Ingressos no ES (presenciais e à

distância) (B) B/A

2004 1.851.834 1.646.414 0,89

2006 1.858.615 1.965.314 1,06

2008 1.749.731 2.336.899 1,34

8 Uma das estratégias mais conhecidas é a de atuar em áreas correlatas ao ensino, como o mercado

editorial, onde há menos restrições à circulação e à acumulação do capital, inclusive o estrangeiro. 9 Sobre isso, ver MINTO (2014, cap. 5).

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2010 1.797.434 2.182.229 1,21

2012 1.825.980 2.747.089 1,50

2013 1.877.960 2.742.950 1,46

Fonte: Inep - Sinopse Estatística da Educação Superior 2013, 2012, 2010, 2008, 2006 e 2004;

Sinopse Estatística da Educação Básica 2012, 2011, 2009, 2007, 2006, 2003 (elaboração própria).

Iniciemos com a meta 03: universalizar, até 2016, o atendimento escolar para

toda a população de 15 a 17 anos e elevar, até o final do período de vigência deste

PNE, a taxa líquida de matrículas no ensino médio para 85%. Na primeira etapa, até

2016, as matrículas do ensino médio teriam que chegar a cerca de 10,3 milhões.10

Na

segunda, para 2024, atingir cerca de 8 milhões de jovens entre 15 e 17 anos

matriculados, tomando como base a projeção do IBGE de uma população de 9,4

milhões nessa faixa etária.

Em relação a 2013, 2 milhões de novas matrículas no ensino médio são

necessárias para cumprir a primeira meta, de curto prazo. No segundo caso, de longo

prazo, em vista da tendência de redução da população projetada pelo IBGE, é necessário

matricular mais 3 milhões11

de jovens dentro da faixa etária indicada, atingindo a taxa

líquida de 85%. São números expressivos tendo em conta que as matrículas nesse

ensino têm diminuído.

Embora seja difícil fazer projeções precisas, o cumprimento da meta 03

produzirá um efeito sobre a demanda por acesso ao ES, mesmo com o problema das

elevadas taxas de reprovação12

e de abandono no ensino médio. Também é razoável

supor que esta demanda se concentrará entre os setores mais vulneráveis da população,

aqueles que tendem a ser atendidos por programas como o Prouni e o Fies, podendo

gerar pressões por uma elevação da quantidade de matrículas mediadas pelo aporte de

recursos públicos às IES privadas. Somente com a universalização anunciada para 2016,

considerando que a taxa média de aprovação nessa etapa atinja cerca de 80%13

, teríamos

um contingente adicional de 1,5 milhão de estudantes que poderá “bater à porta” do ES

em poucos anos. A este se soma parte das 1,3 milhão de matrículas na EJA-ensino

médio (2013).

10

Número que equivale à população de 15-17 anos projetada para 2016 (IBGE, 2013). 11

A taxa líquida de matrícula em 2013 é de 59,3%. 12

Entre 1999 e 2011, essa taxa subiu de 7,2% para 13,1%. A taxa de abandono nessa etapa foi de 9,5%

em 2011. (BRASIL, 2014a, p. 62). 13

A taxa de aprovação do ensino médio (2010) foi de 77,2% (BRASIL, 2014a, p. 13).

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A meta 12 afeta diretamente a expansão do ES: elevar a taxa bruta de matrícula

na educação superior para 50% e a taxa líquida para 33% da população de 18 a 24

anos, assegurada a qualidade da oferta e expansão para, pelo menos, 40% das novas

matrículas, no segmento público. Vejamos a seguinte projeção:

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Tabela 2 – Projeção populacional e de expansão das matrículas (presenciais e à

distância) na educação superior brasileira para atingir as metas do PNE

2013 2024 2024-2013 (%)

Pop. 18-24 anos 23.945.816 23.399.619 -2,3

Matrículas em IES 7.305.977 (%) 11.699.810 (%) 60,1

Públicas 1.932.527 26,5 3.690.060 31,5 90,9

Privadas 5.373.450 73,5 8.009.750 68,5 49,1

Taxa de matrícula

Bruta 30,5 50,0 63,9

Líquida 15,5 33,0 112,9

Fontes: Inep - Sinopse Estatística da Educação Superior 2013; IBGE - Projeção da População 2000-

2060; projeção própria.

Sem avanços na construção do sistema nacional de educação, é improvável que

uma regularização do fluxo da educação básica seja suficiente para chegar aos 4,4

milhões de matrículas adicionais necessárias no ES. Se projetarmos para a próxima

década o mesmo percentual de crescimento do número total de ingressos no ES entre

2003 e 2013 (76,4%), supõe-se que seria até possível atingir a meta. A questão é: de

onde virá esse contingente de pessoas, se não dos egressos do ensino médio? Como a

participação entre as redes pública e privada se alterará pouco – dos atuais 26,5/73,5

passaria a 31,5/68,5, respectivamente, é provável que isso ocorra por meio de um ajuste

no ES privado, que há anos vêm tentando capturar esse „mercado‟ de pessoas com

diploma de ensino médio que deixaram o sistema escolar, bem como chegar – via EàD –

aos locais onde não há oferta de ES. (MINTO, 2014, p. 335-336).

Podendo contar com a garantia dos recursos públicos que serão destinadas, por

exemplo, ao Prouni e ao Fies; tendo a possibilidade de expandir a alternativa de baixo

custo do EàD; e não havendo no plano qualquer prioridade explícita para o

financiamento do ES público; no conjunto as metas podem representar uma

redistribuição de recursos públicos em favor do ES privado. Corre-se o risco de que os

poucos pontos percentuais de expansão relativa das matrículas no ES público sejam

obtidos ao custo de processos ampliados de precarização das condições de

funcionamento, de trabalho e de manutenção.

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O que está desenhado é um quadro similar ao que se constituiu durante a

vigência do Reuni (2007-2013). Observando a expansão das matrículas no ES público

entre 2004 e 2013 (59,1%), nota-se que esta foi concentrada entre 2007 e 2013 (50%),

com destaque para três características desse período: a) aumento do EàD nas

universidades federais (227%), enquanto as matrículas universitárias em geral

cresceram 61,6%; b) aumento de 227% nas matrículas presenciais do ensino não

universitário (Ifet / Cefet) e criação de 8 mil no EàD, antes inexistentes; c) expansão

“nas regiões menos desenvolvidas em que o mercado não se mostra atrativo à iniciativa

privada” (IPEA, 2015, p. 232).

Para que as matrículas do ES público cresçam 90% até 2024, sem metas de

financiamento claras, sugere-se que a estratégia principal a ser utilizada será a mesma

do Reuni: via diferenciação, favorecimento ao EàD e sem competir com o mercado do

ES privado em regiões “atrativas”. Talvez, por isso, as reivindicações das entidades

representativas desse ensino tenham se contentado em reforçar a inevitabilidade da rede

privada para o cumprimento da meta.14

Além disso, a não previsão de alteração da

lógica de articulação entre o ensino médio e superior, reforça que se tentou mesmo

garantir reserva ao ES privado, haja vista suas dificuldades crescentes para ocupação de

vagas.15

De 1990 a 2010, a relação candidato/vaga no ES privado caiu de 2,9 para 1,2,

sendo que a partir de 2000 este número não chegou mais a 2 (IPEA, 2014). E isso vem

ocorrendo mesmo com a vigência do Fies e do Prouni, em que a participação da oferta

de vagas por meio desses programas no total de ingressos por processo seletivo no ES

privado presencial saltou de 27%, em 2010, para 54%, em 2013. (IPEA, 2015, p. 223).

Um último aspecto também é elucidativo. Houve uma expansão vigorosa do

EàD entre 2007 e 2013, onde o setor privado tem 86,6% das matrículas. Isso talvez

explique o tratamento diferenciado que é dado a essa modalidade no PNE.

14

Sobre esses posicionamentos, ver HORTA (2015, p. 24-27), SILVA (2014) e HADAD (2014). 15

Não se está, aqui, referendando a ideia de que haja “vagas ociosas” no ES privado. A fragilidade desse

argumento advém da própria forma de organização das IES privadas, com forte presença de docentes

contratados sem estabilidade e com remuneração baseada em horas-aula (em 2013, 25% das funções

docentes era de tempo integral e 40%, horistas), com elevada relação alunos/professor, com reduzidos

investimentos em infraestrutura de ensino, bibliotecas, laboratórios de pesquisa e outros. O que se faz é

um lobby para ter acesso a recursos públicos, garantindo rentabilidade ao setor, haja vista que, mesmo

frente ao crescimento da suposta “ociosidade”, o número de matrículas não deixou de crescer na última

década. Sobre isso, ver também Helene (2014, p. 59-61).

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Quadro comparativo - PNE

Estratégia 12.3 13.8 12.20

Objetivo geral da

meta Expansão do ES Elevação da qualidade Expansão do ES

Instrumentos

previstos

- elevar a taxa de

conclusão média dos

cursos de graduação

presenciais nas univ.

públicas para 90%

- elevar para 18 a

relação estudantes /

professor

- ES privado: não

mencionado

- EàD: não mencionado

- elevar a taxa de

conclusão média dos

cursos de graduação

presenciais nas univ.

públicas para 90%, e

para 75%, nas privadas,

em 2020

- fomentar a melhoria

dos resultados de

aprendizagem via

desempenho no

ENADE

- EàD: não mencionado

- estender o Fies

e o Prouni aos

cursos superiores

presenciais ou a

distância, com

“avaliação

positiva”

Nota-se algumas tendências claras: 1ª) as metas/estratégias aqui arroladas,

condizentes com a lei que criou o Reuni16

, não se aplicam aos cursos à distância, isto é,

a 15,8% de todas as matrículas no ES (2013) – quase 1 milhão de matrículas privadas;

2ª) no quesito elevação da qualidade, o ES privado é tratado de forma mais “branda”

que o público; 3ª) por fim, o ensino à distância é „lembrado‟ quando se trata de receber

maior aporte de recursos públicos do Fies / Prouni.17

Pós-graduação, pesquisa e qualidade

Na meta 13 prevê-se a elevação da qualidade do ES e a ampliação do número de

docentes titulados no “conjunto do sistema de educação superior”. A meta é chegar a

75% dos docentes em efetivo exercício com mestrado ou doutorado, sendo pelo menos

35% de doutores. Nas nove estratégias arroladas, nada se diz sobre como chegar a esses

números. A questão só é tratada na meta 14, que prevê a elevação gradual do número de

matrículas na pós-graduação stricto sensu, mas suas estratégias nada dizem sobre

mecanismos de garantia dessa formação, à exceção daquela que indica a expansão do

Fies para a pós-stricto sensu privada (14.3). Estranha ainda a falta de articulação entre

essas e a meta 16, que prevê que 50% dos professores da educação básica tenha pós-

graduação, mas não prioriza a formação stricto sensu.

16

Lima (2015) afirma que o PNE transforma o Reuni em política de Estado. 17

Em tramitação no Legislativo, o PL 5.797/2009 estende o Fies e o Prouni aos cursos de graduação à

distância. Em maio de 2015, a Comissão de Educação da Câmara o aprovou. (BRASIL, 2015).

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Ao agregar essas duas variáveis – titulação docente e qualidade – sugere-se que

ambas são indissociáveis, porém, a concepção de qualidade mais explicitada pela meta é

aquela da estratégia 13.8, que tem como suporte justamente os critérios de

“produtividade” e “eficiência”, ao prever que a taxa média de conclusão dos cursos, no

setor privado, chegue a 75%, e, nas públicas, aos 90% já indicados na estratégia 12.3.

Explicita-se, então, um duplo tratamento entre IES públicas e privadas, fragilizando a

meta 13, haja vista que não há garantias de que o setor privado contratará profissionais

titulados na proporção exigida (o ES público praticamente já cumpre a meta), além de

estar submetido a uma exigência de “produtividade” menor, embora todo o discurso

dominante contemporâneo evoque a sua maior “eficiência”.

Em relação aos critérios de qualidade indicados, apenas reforça-se o que já

vigora nas políticas para o ES: estímulos à dita pesquisa aplicada, geradora de

inovações/patentes, à cooperação com empresas, à expansão das atividades à distância

e, ainda, à enigmática “competitividade internacional da pesquisa brasileira” (14.13).

Aqui, a influência dos interesses privados é incontestável, mormente dos setores ligados

aos grandes capitais – agronegócio, commodities e financeiro. (LEHER, 2010, p. 41).

Recursos financeiros para o ES

A meta 20 trata da ampliação do investimento público em educação pública, de

forma a atingir patamares progressivos: de 7%, em 2019 (5º ano de vigência); e de 10%

do PIB, em 2024 (décimo ano de vigência), mas não há garantia específica sobre o

financiamento do ES. Assim, tal ampliação de financiamento para as IES públicas

permanece num nível bastante abstrato (estratégia 20.3), quando não dependente de

diversas esferas de decisão e formulação de políticas, como aquelas que se referem ao

financiamento à pesquisa das agências públicas de fomento (estratégias 14.1, 14.11,

14.12). Por sua vez, os mecanismos previstos para expandir o financiamento público às

IES privadas são bem mais explícitos (estratégias 11.7, 12.6, 12.20, 14.3, 15.2).

Destacam-se, ainda, aquelas estratégias (14.1, 14.11, 14.12, 16.5) nas quais não

se esclarece qual será o destino dos recursos, podendo ser instituições e redes públicas

ou privadas. Com efeito, se há dúvidas quanto à distribuição dos recursos públicos que

o PNE permitirá realizar, está claro que dois mecanismos de transferência de recursos

para o setor privado serão favorecidos e ampliados na próxima década – Prouni e Fies –

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o que vem sendo demandado, sistematicamente, pelas entidades representativas do

setor.

Tomando como parâmetro o destino de recursos para as IFES, Chaves e Amaral

(2014, p. 46-48) mostram que, entre 1998 e 2012, não houve uma relação direta entre

evolução anual das receitas de impostos18

da União e as despesas com as IFES, não

obstante, o crescimento total das receitas foi superior (193%) ao das despesas (104%),

número este que se recuperou relativamente com o Reuni:

O aumento dos recursos evidenciado no segundo mandato do governo

Lula [...] não foi suficiente para alterar de forma significativa o acesso

da população nas IFES, nem contribuiu para reduzir o processo de

privatização desse nível de ensino no país. (CHAVES; AMARAL,

2014, p. 48).

Como os investimentos públicos na educação superior não cresceram

relativamente na década de 2000, oscilando na faixa de 0,7-0,8% do PIB (CHAVES;

AMARAL, 2014, p. 48), o que se observa é que os déficits de atendimento e

financiamento ao ES no país foram se acumulando de tal maneira que, mesmo que

sejam cumpridas à risca, as metas do PNE podem vir apenas a “ratificar” as tendências

vigentes, sem altera-las. Para os autores (p. 51-54), o suporte financeiro adequado à

expansão prevista implicaria passar dos 0,8% atuais para cerca de 1,54% do PIB

investidos no ES, já considerando o percentual de 10% do PIB aplicados em educação

ao final do decênio. Ainda assim, seria um valor per capita baixo na comparação com

outros países.19

O que as metas e estratégias ocultam

Aspectos omitidos ou implícitos no PNE também revelam muitos dos conflitos

de interesses de que estamos tratando nesse estudo. A tendência histórica de

crescimento do ES via diferenciação institucional e diversificação das modalidades de

ensino, processos esses reforçados nos governos FHC, Lula e Dilma, é um aspecto que,

ao ser „silenciado‟ no planejamento da expansão do setor, implica manter um espaço

crucial para o privado, principal beneficiário dessas tendências.

18

Principais recursos que, segundo a Constituição Federal, formam a base de cálculo para os

investimentos que devem ser feitos em educação. 19

Nessa projeção, em 2024 o Brasil estaria gastando com o ES cerca de 2.180 US$/PPP por pessoa entre

18-24 anos, menos da metade do que Israel, Coréia do Sul, Japão e Itália já investem.

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Há décadas, o princípio da indissociabilidade ensino-pesquisa, equivocadamente

chamado de “modelo único”, vem sendo desqualificado como inadequado e ineficiente

no Brasil. Isso ocorre porque esse formato não interessa às IES privadas, orientadas

antes de mais nada pela viabilidade econômica do empreendimento.20

O PNE aumenta

as possibilidades de favorecimento ao ES privado21

, mitigando a própria meta de

crescimento – já modesta – de matrículas no setor público.

No que tange ao privatismo nas IES públicas, o PNE também silencia sobre a

presença das “fundações de apoio” nessas instituições, que funcionam como

canalizadoras privilegiadas de recursos públicos para atividades privadas, muitas delas

sem controles e atreladas àquele tipo de pesquisa e organização que a meta 14 estimula,

fixada nos eixos da inovação e da internacionalização.22

Ademais, a diferenciação institucional e das modalidades de formação são

ampliadas como metas para o ES público, com base no já mencionado “modelo” Reuni.

Também permanecem intocados os atuais critérios quantitativistas de avaliação da

educação superior pública, tanto no que se refere ao controle do trabalho docente quanto

à lógica de financiamento da pesquisa por agências de fomento e políticas que

favorecem certos setores em detrimento de outros, com forte incidência de interesses

privados.

Considerações

Não tivemos aqui a pretensão de indicar pontos positivos e negativos do PNE. O

que se propôs foi uma análise que o situasse como parte de uma política educacional

que vem sendo implementada no período histórico recente. Nesse sentido, o plano não

destoa das tendências vigentes nas últimas duas décadas. Não há aqui, no entanto, uma

relação automática, pois os conflitos e as tensões que fundamentam tais políticas se

modificam na sua forma e dinâmica, mesmo quando, no essencial, seu conteúdo

permanece inalterado. Deve-se reconhecer o fato de que houve resistências e

articulações políticas que enriqueceram e arejaram os debates em torno do novo PNE,

durante as conferências locais, regionais e nacionais (2009-2010). Provavelmente, essas

20

Contribui para a indiferenciação entre IES com e sem fins lucrativos o fato de que, desde 2009, o Inep

não disponibiliza dados que especifiquem tais instituições. 21

Lima (2015) refere-se a uma “nova fase do privatismo” e da “certificação em larga escala”. 22

Há anos o assunto vem sendo denunciado pelas entidades sindicais da área, e já são de domínio

público. Recentemente, O Estado de S. Paulo o registrou (UNIVERSIDADES S/A, 2014).

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frustraram as expectativas do governo federal, que se viu instado a desfigurar o

documento final da Conae ao transforma-lo no PL n. 8.035/2010.

Sem ter a pretensão de encerrar nenhum dos muitos debates que se

desenvolverão em torno desse PNE, gostaríamos de convidar o leitor a algumas

reflexões que decorrem das questões expostas nesse estudo.

Em primeiro lugar, o PNE fortalece a indiferenciação entre público e privado no

campo da educação. Essa indiferenciação se expressa de várias maneiras e o foco aqui

foi mostrar seu caráter de conflito entre interesses de classes. No texto do plano, isso se

camufla ideologicamente em alguns pressupostos:

1) o ensino é um “bem” de natureza pública, livre para ser “acessado”, não

podendo ser apropriado privadamente. Advoga-se, assim, um ensino neutro, não

condicionado pela forma como é organizado socialmente;23

2) a transferência de recursos públicos para o ES privado é legítima, pois seu

objetivo último é “de interesse público”;24

3) do uso da expressão ensino gratuito25

para redefinir o significado formal de

educação pública, ensejando uma leitura que referenda o privado como

inexorável, em dois sentidos: de que sem as IES privadas não haverá

universalização do direito à educação superior; e de que, sem se deixar permear

pela lógica privada (eficiência), as IES públicas não contribuirão com a

democratização do acesso.26

Em segundo, o PNE ratifica que as transferências de recursos públicos para o

setor privado não são medidas transitórias, mas uma política de Estado. A declaração do

deputado Ângelo Vanhoni (PT-PR), relator do PNE aprovado pelo Congresso, foi

eloquente: “Essa política de financiamento [Prouni e Fies] foi acertada e no total

estamos falando de apenas R$ 13 bilhões por ano” (apud PASSARINHO, 2014).

23

É inegável o caráter ideológico e cínico dos posicionamentos que os representantes de Abraes e Abmes

apresentaram em audiência pública sobre o PL n. 8.035/2010, de 25/02/14, na Câmara dos Deputados. A

primeira defendeu que o ES privado tem o direito constitucional de receber recursos públicos pois está

garantindo a oferta de um direito social (HADAD, 2014); a segunda afirmou que “não existem dois tipos

de educação”: “com oferta pública ou privada, a educação é regida pelos mesmos princípios legais e

constitucionais”. (SILVA, 2014). 24

Meio e fim se dissociam, pois se entende que o fato do capital privado investir no ensino como forma

de se apropriar do valor produzido socialmente (lucro), não interfere no seu objetivo final. 25

Art. 5º, § 4º (BRASIL, 2014). 26

Esse é um assunto constante na imprensa brasileira, que tem sido majoritariamente favorável ao ES

privado, algo que reforça a necessidade de que sejam feitos mais estudos sobre as relações entre grandes

grupos de comunicação e setor educacional.

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Nacional de Educação

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Por fim, outra tendência recente que o PNE parece endossar é a de que a

educação superior privada, cuja história está muito ligada aos formatos institucionais

não universitários, passe a ter uma configuração em que as universidades com fins

lucrativos passem a disputar com as IES públicas os recursos destinados à pesquisa e

programas de pós-graduação. A recente extensão do Fies aos estudantes de cursos “não

gratuitos” de pós-graduação stricto sensu pode contribuir para isso. Outro motivador

desse movimento é indicado por Sousa (2013, p. 47):

[...] nas últimas duas décadas, verificou-se a criação e ampliação de

núcleos de pesquisa no âmbito do setor privado, o que tem sido

possível conquistar, em grande parte, pela absorção de pesquisadores

precocemente aposentados nas universidades públicas, em função da

política previdenciária definida a partir de 1995 com a Reforma do

Estado brasileiro [...].

No complexo movimento de expansão do ES privado, observa-se dois processos

que caracterizam a reestruturação capitalista: de concentração das atividades em grandes

grupos empresariais – que, dentre outras coisas, compram as IES menores; e de

diversificação das atividades, atrelando-se ao capital financeiro internacional e tendo

nas atividades de ensino (e, cada vez mais, na pesquisa) apenas meios para realização de

lucros. Por tudo isso, não há razões para supor que o PNE contribuirá para modificar a

educação superior que temos hoje: multifacetada, fragmentada, destituída de uma

organização sistêmica e amplamente privatizada. Uma educação que é eficaz no

atendimento de certos interesses: a) certificar pessoas em diferentes níveis,

conformando uma força de trabalho heterogênea e contribuindo para regular seu preço;

b) constituir-se como serviço lucrativo, tendendo a se comodificar e se

internacionalizar; c) permitir que o capital se aproprie dos benefícios produzidos no

complexo da inovação nas universidades estatais. (MINTO, 2014, p. 364-365).

Enfrentar os problemas do privatismo de uma educação cada vez mais dominada

pelos interesses do grande capital é um desafio crucial para todos os que se alinham na

defesa da educação pública. E uma coisa é certa: não se trata de uma luta restrita a esse

campo.

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UNIVERSIDADE S/A. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 12-14 abr. 2014.

[Reportagem especial].