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417 Eixo temático 5 A Educação Inclusiva e os processos de ensino e aprendizagem na Educação Básica TRABALHOS COMPLETOS A aprendizagem dos alunos com necessidades educacionais especiais Eixo temático: A Educação Inclusiva e os processos de aprendizagem na Educação Básica Autores: Martha Célia Vilaça Goyatá (Universidade do Estado de Minas Gerais); 98 Rita de Cássia Costa Teixeira (Secretaria de Educação de Belo Horizonte) Resumo: Este trabalho apresenta o resultado de pesquisa realizada com crianças e adolescentes matriculados na escola comum e no ensino complementar, no contexto da sala de recursos. Partindo do direito à ocupação dos espaços educacionais inclusivos, segundo orientações estabelecidas pelo Ministério da Educação, verificou-se uma aproximação entre os saberes dos sujeitos e as práticas escolares em curso. Para tanto, foi utilizado o método da pesquisa-ação tendo como ponto de partida a leitura coletiva do livro A E I O U de Ângela Lago, com o objetivo de obter novos recursos para a construção de uma narrativa própria dos alunos com necessidades educacionais especiais, diante de suas particularidades no âmbito escolar. O estudo nasceu da prática pedagógica na rede pública de educação da cidade de Belo Horizonte (MG) e ganhou forma com as observações e reflexões sobre os desenhos e relatos de alunos dos anos iniciais do ensino fundamental. Os registros gráficos que acompanhavam as situações vivenciadas por eles criaram um espaço alternativo para a produção do conhecimento capaz de viabilizar a relação ensino/aprendizagem, favorecendo a comunicação, entre outros aspectos subjetivos peculiares ao seu desenvolvimento. As atividades desenvolvidas culminaram na confecção de um livro intitulado O Mundo dos Animais, por meio de histórias escritas e ilustradas pelos alunos, o que possibilitou apreender os posicionamentos subjetivos no enfrentamento de suas dificuldades de aprendizagem, a partir do exercício de associar o conhecimento adquirido na escola a tudo o que lhes acontece na vida. Palavras-chave: inclusão, aprendizagem, necessidades educacionais especiais. INTRODUÇÃO No que concerne à temática da inclusão, a escola, na perspectiva de responder às necessidades educativas nomeadas como “especiais, tenta satisfazê-las com novos recursos 98 E-mail: [email protected]

Eixo temático 5 A Educação Inclusiva e os processos de ... · Classificação de Transtornos Mentais e de Comportamento do CID -10. Descrições clínicas e diagnósticas -1993)

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    Eixo temático 5 – A Educação Inclusiva e os processos

    de ensino e aprendizagem na Educação Básica

    TRABALHOS COMPLETOS

    A aprendizagem dos alunos com necessidades educacionais especiais

    Eixo temático: A Educação Inclusiva e os processos de aprendizagem na Educação Básica

    Autores: Martha Célia Vilaça Goyatá (Universidade do Estado de Minas Gerais);98 Rita de Cássia

    Costa Teixeira (Secretaria de Educação de Belo Horizonte)

    Resumo: Este trabalho apresenta o resultado de pesquisa realizada com crianças e adolescentes

    matriculados na escola comum e no ensino complementar, no contexto da sala de recursos. Partindo

    do direito à ocupação dos espaços educacionais inclusivos, segundo orientações estabelecidas pelo

    Ministério da Educação, verificou-se uma aproximação entre os saberes dos sujeitos e as práticas

    escolares em curso. Para tanto, foi utilizado o método da pesquisa-ação tendo como ponto de

    partida a leitura coletiva do livro A E I O U de Ângela Lago, com o objetivo de obter novos

    recursos para a construção de uma narrativa própria dos alunos com necessidades educacionais

    especiais, diante de suas particularidades no âmbito escolar. O estudo nasceu da prática pedagógica

    na rede pública de educação da cidade de Belo Horizonte (MG) e ganhou forma com as observações

    e reflexões sobre os desenhos e relatos de alunos dos anos iniciais do ensino fundamental. Os

    registros gráficos que acompanhavam as situações vivenciadas por eles criaram um espaço

    alternativo para a produção do conhecimento capaz de viabilizar a relação ensino/aprendizagem,

    favorecendo a comunicação, entre outros aspectos subjetivos peculiares ao seu desenvolvimento. As

    atividades desenvolvidas culminaram na confecção de um livro intitulado O Mundo dos Animais,

    por meio de histórias escritas e ilustradas pelos alunos, o que possibilitou apreender os

    posicionamentos subjetivos no enfrentamento de suas dificuldades de aprendizagem, a partir do

    exercício de associar o conhecimento adquirido na escola a tudo o que lhes acontece na vida.

    Palavras-chave: inclusão, aprendizagem, necessidades educacionais especiais.

    INTRODUÇÃO

    No que concerne à temática da inclusão, a escola, na perspectiva de responder às

    necessidades educativas nomeadas como “especiais”, tenta satisfazê-las com novos recursos

    98 E-mail: [email protected]

  • 418

    didáticos para os alunos com deficiência, transtornos globais de desenvolvimento99 e altas

    habilidades. Frente à questão do direito da criança, preconizado pelo Ministério da Educação, de

    acesso a outros dispositivos de apoio à aprendizagem, são oferecidos a ela, além da sala de aula

    comum, espaços educacionais inclusivos, como as salas de recursos multifuncionais (SRM).100 Vale

    salientar que o atendimento educacional especializado (AEE) visa desenvolver recursos

    pedagógicos para lidar com alunos matriculados nas escolas comuns, mas que, dadas suas

    particularidades - deficiências ou dificuldades de aprendizagem necessitam de estratégias e ações

    pedagógicas diferenciadas.

    A denominação NEE foi adotada pelo Ministério da Educação e refere-se a todas as crianças

    que: (a) apresentam diagnósticos distintos de deficiência (física, visual, auditiva e múltipla); (b)

    apresentam transtornos globais de desenvolvimento (TGD), incluindo condutas típicas referentes a

    síndromes e quadros psicológicos complexos, neurológicos ou psiquiátricos (psicoses e quadros

    afins); e (c) apresentam altas habilidades (superdotação).

    O professor do atendimento educacional especializado, imbuído do dever pedagógico

    corroborado por políticas públicas na perspectiva da inclusão, tenta encontrar soluções relativas aos

    impasses educacionais, no sentido de fazer valer as normas estabelecidas pelo MEC, garantir o

    sucesso escolar dos alunos e sua promoção social considerando as particularidades de aprendizagem

    desse público.

    Um aspecto considerado neste estudo, dentre outros, se refere à luta pelos Direitos

    Universais do Homem, travada ao longo dos anos que implicou em mudanças nos modelos de

    subjetivação da diferença. Segundo (MENDES, 2006), essas mudanças implicam não só em um

    novo olhar sobre a criança, mas aponta para questões referentes às transformações da escola na

    99 Estudos recentes no campo da educação se referem aos Transtornos Globais de Desenvolvimento com base na

    definição da Associação Mundial de Saúde (CID 10) - “São aqueles alunos que apresentam alterações qualitativas das

    interações sociais recíprocas e na comunicação, um repertório de interesses e atividades restrito, estereotipado e

    repetitivo” Nesse grupo estão incluídos alunos com autismo, síndrome de espectro do autismo e psicose infantil (OMS -

    Classificação de Transtornos Mentais e de Comportamento do CID -10. Descrições clínicas e diagnósticas -1993). 100 De acordo com a ORIENTAÇÃO SD nº 01/2005 da SECRETARIA DO ESTADO DE EDUCAÇÃO DE MINAS

    GERAIS as Salas de Recursos devem estar localizadas em escola comum ou especial, devendo o professor capacitado

    oferecer a complementação ou suplementação curricular, exclusivamente, para alunos que apresentam deficiências e

    condutas típicas, matriculados em escolas comuns: - apoiando o professor da escola de origem do aluno; - atendendo

    alunos de várias escolas da região; - usando equipamentos e recursos pedagógicos.

  • 419

    sociedade atual. No contexto da Educação para Todos passa a ser uma questão relevante, podendo

    ser localizada nos movimentos de Normalização e de Integração que surgiram na Europa na

    segunda metade do século XX, originados nos Estados Unidos na década de 1970. O Relatório

    Warnock, publicado pelo governo britânico em 1978, traz, pela primeira vez, o conceito de aluno

    com Necessidades Educativas Especiais, enfatizando como tratar esses alunos no ambiente escolar

    (BASTOS, 2003). Essa expressão “necessidades educativas especiais” encontra-se também na

    Declaração de Salamanca (1994) e refere-se a crianças e jovens cujas necessidades decorrem de

    suas capacidades e dificuldades de aprendizagem ressaltando ainda, a interação das características

    individuais dos alunos com o ambiente educacional e social. Esse documento representa um avanço

    na discussão sobre o tema e efetiva-se um movimento de tentar erradicar qualquer forma de

    discriminação em relação às crianças com particularidades de aprendizagem (BRASIL,

    MEC/SEESP, 2008).

    As observações e reflexões sobre uma experiência no atendimento educacional

    especializado (AEE), qual seja: a escritura de crianças e adolescentes em acompanhamento

    pedagógico complementar na sala de recursos multifuncionais (SRM), cujos registros em forma de

    construção de histórias acompanhadas de desenhos tinham como objetivos principais criar um

    espaço alternativo, fora dos parâmetros curriculares, para a produção do conhecimento e viabilizar a

    relação professor/aluno/aprendizagem, favorecendo, entre outros aspectos subjetivos peculiares ao

    desenvolvimento, a comunicação, a expressão, a percepção, a afetividade e a autonomia desses

    sujeitos. Compreende-se aqui que a expressão dos alunos com necessidades educacionais especiais

    (NEE) por meio de desenhos e construção de histórias pode exteriorizar elementos cognitivos e

    afetivos de uma linguagem própria, traduzida em signos e símbolos carregados de significação

    subjetiva e social.

    Nessa concepção, a complexidade do trabalho com esses alunos exige cada vez mais, um

    esforço de ampliação das ações educacionais e a consolidação da lógica inclusiva estabelece marcos

    para a efetivação do trabalho com as crianças e jovens com NEE, bem como a necessidade de

    reflexão sobre os modos pelos quais a escola pode atender ao objetivo mundial do direito à

    diferença. A esses objetivos, iniciados com os movimentos de integração escolar, responde o

    delineamento de uma série de serviços disponibilizados a esse grupo de alunos, entre eles a SRM.

    Nesses serviços, o currículo deve incluir as possibilidades de convivência entre os diferentes e o

  • 420

    espaço escolar deve incluir recursos especiais, para que a diferença nos modos de ensino-

    aprendizagem seja respeitada. Por um lado, isso significa ampliar os recursos desses sujeitos para

    lidar com os conhecimentos trabalhados na escola, posto que eles, muitas vezes, não correspondem

    à exigência curricular. Por outro lado, é preciso considerar que os movimentos de inclusão levam

    em conta as questões cognitivas que surgem como dificuldades de aprendizagem e outras questões

    que, muitas vezes, encontram-se associadas ao o meio social, familiar e cultural, trazendo impasses

    para sua vida escolar (GOYATA, 2011).

    Algumas indagações orientaram essa prática: as histórias e os desenhos construídos na SRM

    podem conter elementos indicadores do desenvolvimento cognitivo dos alunos? De que forma o

    desenho e a construção de histórias como expressões da subjetividade do aluno com deficiência,

    transtornos globais de desenvolvimento e altas habilidades (superdotação) podem contribuir para a

    reorganização do pensamento em sua função cognitiva, desdobrando-se em produção de

    conhecimento?

    A abordagem de crianças e adolescentes, como indica a referência teórica em Psicanálise,

    considera o sujeito capaz de dizer algo sobre sua experiência. No caso do estudo, perguntou-se aos

    alunos com algum tipo de deficiência, visível ou não, o que eles teriam a dizer sobre o livro AEIOU

    e em seguida como gostariam de escrever, ao que o grupo sugeriu a escrita de um livro cujo tema

    seria “os animais”. Pretendeu-se com isso levantar um debate sobre a inclusão escolar que não

    considerasse apenas a existência de um “melhor lugar” para os alunos diferentes dos considerados

    normais, mas um “lugar possível” de ser ocupado pelas crianças e adolescentes, considerando as

    suas prováveis singularidades no âmbito escolar

    Nessa direção, as especialidades das crianças com deficiências e transtornos globais de

    desenvolvimento significam a chance de valorizar o desejo de toda criança de tornar-se um adulto,

    portanto, de ser educada. A essa particularidade segue-se o desejo de aprender e as supostas

    necessidades educacionais não poderão ser totalmente satisfeitas, na medida em que toda e qualquer

    criança almeja uma educação (LAJONQUIÈRE, 1999). Considera- se que a inclusão do desejo de

    aprender demonstrada pelos sujeitos da pesquisa apresenta-se como a inclusão das experiências de

    vida dos alunos nos desenhos e nas narrativas, na medida em que aparecem elementos significativos

    de sua vida diária associados aos conteúdos escolares. Na construção das histórias para montar o

    livro e na forma singular como eles apresentam suas questões pessoais encontram-se os jogos

  • 421

    pedagógicos, a presença dos animais e de pessoas, questões éticas e de cidadania, relações

    parentais, questões de biologia, matemática, de higiene ambiental e outras. Segundo Lajonquière

    (1999, p. 115), é o produto da tensão que envolve a reconstrução do conhecimento; trata-se de “uma

    educação como substituição metafórica possível de germinar o desejo”. Importante considerar que

    parte da necessidade de educação que se faz presente na criança como estruturante de seu

    desenvolvimento psíquico e social se reapresenta, no desenho e na narrativa, como um saber a mais,

    como nova produção de conhecimento do espaço escolar (GOYATÁ; TEIXEIRA, 2013).

    A pesquisa procurou dar voz aos alunos, colhendo indícios significativos para a localização

    da posição dos sujeitos diante das atividades escolares com toda a complexidade daí decorrentes, o

    que se verificou na narrativa de cada um, na medida em que eles abordaram questões relativas à sua

    vida familiar, social e da comunidade onde vivem, incorporando-as às atividades escolares.

    1 A APRENDIZAGEM NO CONTEXTO DA SALA DE RECURSOS

    A sociedade atual tende a supervalorizar a linguagem - em particular, a linguagem escrita,

    como meio de comunicação em detrimento de outros meios de comunicação como gestos, ações e

    desenhos, principalmente se pensados como instrumento de avaliação da aprendizagem. O desenho,

    considerado muitas vezes como papel secundário na aprendizagem, pode facilitar a construção de

    textos e vice-versa, a resolução de problemas lógicos, pode representar um fato histórico, um

    contexto ou indicar um conhecimento adquirido.

    No caso desse estudo trata-se de observações e reflexões sobre uma experiência no AEE,

    qual seja: a escritura de crianças e adolescentes em acompanhamento pedagógico complementar na

    SRM, cujos registros em forma de construção de histórias acompanhadas de desenhos tinham como

    objetivos principais criar um espaço alternativo, fora dos parâmetros curriculares, para a produção

    do conhecimento e viabilizar a relação professor/aluno/aprendizagem, favorecendo, entre outros

    aspectos subjetivos peculiares ao desenvolvimento, a comunicação, a expressão, a percepção, a

    afetividade e a autonomia desses sujeitos. Compreende-se aqui que a expressão dos alunos com

    NEE por meio de desenhos e construção de histórias pode exteriorizar elementos cognitivos e

    afetivos de uma linguagem própria, traduzida em signos e símbolos carregados de significação

    subjetiva e social.

  • 422

    Uma vertente dessa reflexão buscou compreender o desenvolvimento cognitivo desse sujeito

    simbólico, cultural e histórico, representado pelos alunos que estudam na sala de recursos nos

    encaminhou para a opção teórica baseada na perspectiva histórico-cultural do desenvolvimento

    humano e suas implicações metodológicas de pesquisa, cujo representante é Lev

    SemionovitchoVygotsky (1896-1934) .

    Para Vygotsky (1987), pensamento e fala são dois processos não idênticos, pelo contrário,

    não há nenhuma correspondência rígida entre as unidades que os compõem. O fluxo do pensamento

    não é acompanhado por uma expressão simultânea da fala, ele tem estrutura própria e sua transição

    para a fala não é tarefa fácil. Para esse teórico:

    Quando desejo comunicar o pensamento de que hoje vi um menino descalço, de camisa

    azul, correndo rua abaixo, não vejo cada aspecto isoladamente: o menino, a camisa, a cor

    azul, a sua corrida, a ausência de sapatos. Um interlocutor em geral leva vários minutos

    para manifestar um pensamento. Em sua mente, o pensamento está presente em sua

    totalidade e num só momento, mas na fala tem que ser desenvolvido em uma sequencia.

    Um pensamento pode ser comparado a uma nuvem descarregando uma chuva de palavras.

    Exatamente porque um pensamento não tem um equivalente imediato em palavras, a

    transição do pensamento para a palavra passa pelo significado. Na nossa fala há sempre o

    pensamento oculto, o subtexto. (VYGOTSKY, 1987 p. 128).

    A teoria histórico-cultural explica que a criança é simbolista e seu desenho indica sua

    necessidade de atribuir significado às coisas. O movimento de produzir significado é complexo e

    supõe a ação do outro, por isso é possível produzir sentido de várias maneiras: com o gesto, com o

    silêncio, com a expressão facial, com o desenho, com a lembrança do passado incorporada ao

    presente. É possível, ainda, prever ações, organizar o tempo e o espaço, elaborar pensamentos,

    nomear e comunicar ideias (SMOLKA, 1995).

    Para Ferreira (1998), o desenho infantil é um objeto emergido do imaginário, do percebido e

    do real. A combinação desses elementos o torna objeto de investigação na exploração dos modos de

    pensar da criança, pois é imaginando, figurando e interpretando que a criança produz seu desenho e

    cria uma forma de linguagem capaz de comunicar seus pensamentos. A reflexão sobre os desenhos

    e sobre a construção das histórias produzidos pelos alunos com NEE considerou o processo de

    simbolização na constituição da subjetividade e, particularmente, a construção do conhecimento

    feita por esses alunos ao estudarem na sala de recursos.

    O desenho como forma de comunicação pode ser analisado com base em diversas áreas do

    saber. Nesse estudo, concebemos o desenho articulado às histórias como linguagem metafórica e

  • 423

    analógica. As metáforas estão na raiz do entendimento do mundo físico e são um fenômeno de

    cognição e não somente um fenômeno linguístico ou de comunicação (LAKOFF; JOHNSON,

    2002). Esses autores concluem que nosso sistema conceitual comum, aquele que orienta nosso

    pensamento e nossas ações, é fundamentalmente metafórico por natureza: uma ideia ou imagem nos

    remete a outra que se lhe opõe ou se lhe assemelha. Para Nagem (1997) e Duarte (2005), o

    conhecimento é construído a partir de um raciocínio analógico. O uso de analogias e metáforas

    como mediadores no processo de aprendizagem facilita a compreensão de conceitos e seu uso pode

    ser um indicador de aprendizagem. Isso porque tanto as analogias quanto as metáforas são

    construídas com base em, pelo menos, dois conceitos distintos: um desconhecido e outro que é

    familiar ao sujeito; ambas expressam formas de comparação complexas e tais comparações

    possibilitam a compreensão de ideias e conceitos abstratos. O princípio da aprendizagem com o

    apoio em analogias e metáforas é que o conhecimento prévio de um determinado domínio é a base

    para se adquirir conhecimento de um domínio novo.

    Frente aos objetivos propostos no estudo de identificar as particularidades no processo de

    aprendizagem de um grupo alunos que apresentavam necessidades educacionais especiais a

    pesquisa de campo no espaço escolar nos colocou, de antemão, em confronto com uma diversidade

    de situações cuja abordagem qualitativa não permite a generalização dos dados encontrados, como

    no caso dos métodos quantitativos, sendo a postura do pesquisador foi de manifestar-se somente na

    etapa final do trabalho (ALVES MAZZOTTI, 2001; FLICK, 2004). Nesse caso, o professor apenas

    deu apoio à ideia dos alunos de escrever um livro com escolha própria do tema que gostariam de

    trabalhar, usando como estímulo o livro de literatura infantil trabalhado anteriormente. Para tanto,

    foram observados mos seguintes passos: (a) atividade pedagógica de leitura do livro AEIOU de

    Ângela Lago e Zoé Rios (2008); (b) complementação dessa atividade utilizando-se outros livros do

    acervo da biblioteca; (c) produção de textos escritos de acordo com temas escolhidos pelo grupo e

    ilustração por meio de desenhos de acordo com habilidade específica de cada um; (d) confecção do

    livro pelos próprios alunos/autores com base na obra literária apresentada.

    Como resultado desse trabalho localizou-se uma linha de continuidade entre o que se

    aprendia na sala de aula comum e a construção do conhecimento na sala de recursos, a partir de

    saberes e práticas do cotidiano da vida escolar dos alunos associada a outras vivências familiares e

    da vida em sociedade dos mesmos.

  • 424

    As relações estabelecidas por alguns alunos entre a sala de recursos e sua vida passavam por

    situações experimentadas no ambiente cultural onde viviam, sendo que o significado desse espaço

    educacional encontrava-se nas relações entre a escola e o bairro, entre o familiar, o social e cultural.

    O desenrolar das narrativas remete os alunos às cenas que se diziam presenciar em sua

    comunidade, das quais se mostravam participantes, principalmente ao falar do desenho que as

    suscitavam. Tratava-se de histórias que envolviam relações características de certas comunidades,

    costumes, preferências, como demonstrado a seguir nas histórias e ilustrações do livro como

    resultado dessa atividade. Fragmento de texto produzido por uma aluna e ilustrado pelo colega:

    O gato e o rato O gato corre atrás do rato e ele não consegue escapar. O rato é mágico e o gato é

    vampiro. O gato é muito brincalhão. Ele precisa do rato. Quando o rato perguntou

    pelo gato ele disse: - “Nossa, nossa, assim você me mata...ai! ai! Se eu te pego!

    Delícia! E na brincadeira de esconde-esconde e pega-pega o gato acabou e foi dormir

    (Sujeito 1).

    Esse sujeito, ao construir sua história sobre “o gato e o rato”, apresentou como solução para

    descrever a brincadeira de esconde-esconde dos animais um verso de música popular de sucesso na

    época. E dessa forma acrescentou em seu texto: “Ai, se eu te pego, ai, ai se eu te pego. Assim você

    me mata...!” (ACIOLY; DYGGS, 2011).

    A onça

    Era uma vez uma onça que tinha Só que ela tinha muita

    preguiça para pegar a preza. Um dia, um veado apareceu.

    Perto da onça, ela estava brincando com seus filhotes e

    ela viu o veado. Preparou-se para correr atrás dele. Ela

    disparou atrás dele, pulou nele e matou. Então alimentou

    seus filhotes famintos e ensinou seus filhotes a caçar.

    Matar para sobreviver (Sujeito 2- arquivo).

  • 425

    O tamanduá e as formigas O tamanduá tem uma língua muito grande. Ele busca as formigas

    bem longe. O tamanduá tem a língua bem grande ele busca as

    formigas bem longe No formigueiro o tamanduá coloca o focinho e

    as formigas jogam água no focinho dele.. O tamanduá bandeira

    come formigas, cupins e ovos de aves (Sujeito 3 - arquivo pessoal).

    Outros textos produzidos pelos alunos:

    O Leão Era uma vez um leão triste, seu nome era Luis. Ele gosta de brincar com seu filho. Um dia

    Luis perdeu seu filhotinho por causa s por causa de muhurs fortes. Às vezes a mãe sai

    triste pelos cantos. Até que ela descobriu que ela iria ter mais filhotes. Às vezes o leão saia

    correndo ao lado de seus filhotes e ele disse para seu filhote que até quando ele é capaz de

    fazer uns oitenta quilômetros por hora. Às vezes caça sozinho, mas em geral caça com

    seus filhotes, às vezes com sossego captura sua presa, mas as vezes não. Com sua pata

    quebra o pescoço da vítima e assim eles voltam para casa com a barriga cheia (Sujeito2 -

    arquivo pessoal).

    O cavalo e seu filho Limão O cavalo fêmea teve um filhote chamado Limão. Era um menino brincalhão que gostava de

    brincar de esconde-esconde, futebol, pega-pega e outras brincadeiras. Um dia, uma chuva

    bem forte levou Limão para bem longe de SUS pais. A mãe de Limão e seu pai ficaram

    procurando nos pastos e florestas. E nada de achar o filhote. Limão gritou bem alto bé, bé,

    béééééé.....Seu pai escutou seu berro e foi atrás dele. Limão foi encontrado e junto com seus

    pais foram felizes para sempre. FIM

    A baleia

    A baleia vivia lá no fundo do mar. Ela ficava solitária lá no fundo do mar e saiu para

    procurar suas amigas e tomar um sorvete. Suas amigas e a baleia tiveram uma ideia: subir lá

    na terra e passear por lá. Elas viram um homem lá na terra e ficaram encantadas. Elas

    falaram: Que homem lindo! Desse dia em diante não voltaram mais para o mar e não

    saíram mais da terra. FIM

    O título do livro sugerido pelos alunos, O Mundo dos Animais, foi escolhido pelo grupo e

    cada aluno se dispôs a escrever sobre um animal ou seu bichinho preferido. A escrita das histórias

    foi tomando corpo e compartilhada com os colegas. Algumas ilustrações, inclusive a capa, ficaram

    a cargo de um aluno que apesar de ter baixa visão apresentava grande habilidade para o desenho.

    A reflexão e discussão levada a cabo neste trabalho partiu de uma coleta de dados realizada

    com 20 alunos que estudam na escola comum e no ensino complementar, no contexto da sala de

  • 426

    recursos. Tratou-se de valorizar a produção de conhecimento nesse espaço educacional levando em

    conta o esforço do exercício de aprender feito pelos alunos, que, de acordo com suas dificuldades

    específicas de aprendizagem, muitas vezes não corresponde ao que deles é esperado a partir do

    currículo oficial. Para tanto, foi proposto pela professora uma leitura coletiva de um livro da

    literatura infantil com o objetivo de obter recursos pedagógicos para o desenvolvimento da

    aprendizagem. Localizou-se nas respostas dos alunos à proposta de leitura e construção de histórias

    o desejo de aprender, na medida em que se deu vazão ao pensamento no exercício da escrita

    acompanhada do cuidado com os detalhes, tanto na construção da narrativa como da beleza das

    ilustrações. Essa atividade escolar foi de encontro aos acontecimentos da vida diária e comunitária

    do grupo, apresentando elementos indicativos de aprendizagem, cujos conteúdos remontavam ao

    currículo oficial por meio dos conhecimentos de biologia, matemática, ciência, gramática, meio

    ambiente e outros. Além disso, outros elementos subjetivos e significativos para o desenvolvimento

    da aprendizagem acompanharam esse momento de produção de conhecimento como, sexualidade,

    par parental, higiene ambiental, sentimentos de medo, prazer, agressividade e ternura, solidão e

    outros.

    No contexto da sala de recursos, os alunos com dificuldades na leitura e na escrita chegaram

    a demandar da professora copiar seu próprio nome em fichas no caderno ou fazer exercícios do

    livro didático, como é habitual na sala de aula. Essa demanda não foi considerada como uma

    exigência estabilizadora em termos do currículo oficial, e sim direcionada à nova produção de

    conhecimentos por meio da construção de textos ilustrados com desenhos feitos pelos alunos. No

    caso desta pesquisa, aspectos peculiares ao desenvolvimento, como a comunicação, a expressão, a

    percepção, a afetividade e a autonomia dos sujeitos, foram exteriorizados por meio do desenho e da

    narrativa e vieram carregados de elementos cognitivos e afetivos com significação subjetiva e

    social, juntamente às especificidades que concernem à aprendizagem desses sujeitos.

    A tensão que envolve a reconstrução do conhecimento encontra-se presente em seu aspecto

    singular, na expressão de cada um dos alunos verificada na diversidade das narrativas. Diante disso,

    faz-se necessário salientar que, as necessidades educacionais tornam-se especiais na medida em que

    existe um esforço de criação de sentido que nos surpreende, e sendo assim, os espaços educacionais

    de apoio pedagógico devem ser considerados como espaços privilegiados de aprendizagem,

    independentemente de serem caracterizados como complemento escolar.

  • 427

    A pesquisa possibilitou aos sujeitos se apropriarem de seus posicionamentos subjetivos no

    enfrentamento de suas dificuldades de aprendizagem, na medida em que as atividades pedagógicas

    desenvolvidas com o grupo culminaram na construção do livro intitulado por eles O Mundo dos

    Animais, cuja narrativa por meio da história e do desenho, do jogo com as palavras, da construção

    de frases e da ilustração, demonstrou o esforço dos alunos em associar sua produção discursiva a

    tudo o que lhes acontece na vida. Os resultados demonstraram que a atividade foi um indicador de

    aprendizagem.

    CONSIDERAÇÕES FINAIS

    Na linha de continuidade estabelecida entre o que se aprendeu anteriormente na escola e a

    produção do livro, ou melhor, os conteúdos provenientes do currículo oficial e as vivências fora da

    escola, conclui-se que o grupo estabeleceu uma aproximação entre os dois saberes e práticas em

    curso, demonstrada entre o cotidiano escolar e o cotidiano de suas vidas em geral.

    Observa-se ainda, que foi possível articular uma aproximação entre o que se aprende na

    escola em termos de currículo oficial e o que se espera do atendimento educacional especializado

    (AEE), na medida em que nas respostas dos alunos se encontrou elementos indicativos de seu

    desenvolvimento cognitivo, mas também outros elementos subjetivos carregados de conteúdos

    afetivos, sociais e culturais.

    Substituir as formas de manifestação do mal-estar decorrentes das dificuldades de

    aprendizagem por propostas de cunho pedagógico, lançando mão de atividades alternativas que

    valorizam o sujeito histórico - cultural, proporcionou ao grupo o desenvolvimento de suas

    potencialidades cognitivas e produção de conhecimento, numa aproximação dos saberes adquiridos

    nos livros às práticas cotidianas dos alunos no contexto da inclusão escolar.

    Localizou-se nas respostas dos alunos com necessidades educacionais especiais à proposta

    da professora de construir coletivamente um livro, oportunidades de novas estratégias de

    ensino/aprendizagem, ao se considerar a sala de recursos como espaços privilegiados para

    emergência da diferença, o que se observa na forma singular como as crianças e adolescentes

    conceberam essa proposta. Isso significa, por um lado, ampliar os recursos das crianças e

    adolescentes que apresentam deficiências, transtornos globais de desenvolvimento e altas

  • 428

    habilidades para lidar com os conhecimentos trabalhados na escola que, muitas vezes, não

    correspondem ao que delas é esperado em termos de exigência curricular. Por outro lado, atenuar as

    diferenças que extrapolam as dificuldades de aprendizagem, determinadas, também, pelo contexto

    social, cultural e subjetivo. Nesse sentido observa-se que, parte da necessidade de educação

    presente na criança, como estruturante de seu desenvolvimento psíquico e social, se reapresenta

    como um saber novo através da construção de imagens e narrativas, associadas às suas experiências

    de vida.

    Os significados atribuídos ao mundo dos animais expressos nos desenhos e nas narrativas

    dos alunos demonstraram que eles associaram as atividades pedagógicas de um espaço educacional

    comum a um espaço educacional complementar. Essa continuidade entre os dois espaços

    apresentou-se como um modo muito especial de dizer que não existe diferença entre eles e os

    demais conteúdos curriculares com os quais convivem nas salas comuns.

    Portanto, considera-se que as relações entre o AEE e a escola comum culminam no

    desdobramento de ações pedagógicas que, inseridas no contexto das políticas públicas de inclusão,

    favorecem uma aproximação entre os dois espaços educacionais, permitindo ainda uma reflexão

    sobre o novo posicionamento dos alunos em relação ao ato de aprender.

    Nesse sentido, faz-se necessário considerar que uma parte dessa necessidade de educação

    que já se faz presente na criança desde sempre, se apresenta como um saber a mais, nos desenhos e

    histórias escritas e narradas por elas.

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