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Revista Brasileira de Educação 59 Jovens e adultos como sujeitos de conhecimento e aprendizagem Marta Kohl de Oliveira Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo Trabalho apresentado na XXII Reunião Anual da ANPEd, Caxambu, setembro de 1999. O tema “educação de pessoas jovens e adul- tas” não nos remete apenas a uma questão de es- pecificidade etária mas, primordialmente, a uma questão de especificidade cultural. Assim, apesar do recorte por idade (jovens e adultos são, basicamente, “não crianças”), esse território da educação não diz respeito a reflexões e ações educativas dirigidas a qualquer jovem ou adulto, mas delimita um deter- minado grupo de pessoas relativamente homogêneo no interior da diversidade de grupos culturais da sociedade contemporânea. O adulto, no âmbito da educação de jovens e adultos, não é o estudante universitário, o profissional qualificado que fre- qüenta cursos de formação continuada ou de espe- cialização, ou a pessoa adulta interessada em aper- feiçoar seus conhecimentos em áreas como artes, línguas estrangeiras ou música, por exemplo. Ele é geralmente o migrante que chega às grandes me- trópoles proveniente de áreas rurais empobrecidas, filho de trabalhadores rurais não qualificados e com baixo nível de instrução escolar (muito freqüen- temente analfabetos), ele próprio com uma passa- gem curta e não sistemática pela escola e trabalhan- do em ocupações urbanas não qualificadas, após experiência no trabalho rural na infância e na ado- lescência, que busca a escola tardiamente para al- fabetizar-se ou cursar algumas séries do ensino su- pletivo. E o jovem, incorporado ao território da antiga educação de adultos relativamente há pou- co tempo, não é aquele com uma história de esco- laridade regular, o vestibulando ou o aluno de cur- sos extracurriculares em busca de enriquecimento pessoal. 1 Não é também o adolescente no sentido naturalizado de pertinência a uma etapa bio-psico- 1 Seria importante um aprofundamento a respeito da população de jovens incorporados aos programas de edu- cação de jovens e adultos já que, quando se fala dessa mo- dalidade de educação, o título abrangente não evita que a referência principal seja aos adultos, geralmente alunos das classes de alfabetização e das séries iniciais do ensino fun- damental. Neste ensaio isto também acontece, em razão es- pecialmente da linha de pesquisa da autora: quando não há menção explícita aos jovens, o sujeito de que se fala aqui é mais especificamente o adulto.

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Page 1: Eja - Marta Kohl

Revista Brasileira de Educação 59

Jovens e adultos como sujeitosde conhecimento e aprendizagem

Marta Kohl de OliveiraFaculdade de Educação, Universidade de São Paulo

Trabalho apresentado na XXII Reunião Anual da ANPEd, Caxambu, setembro de 1999.

O tema “educação de pessoas jovens e adul-tas” não nos remete apenas a uma questão de es-pecificidade etária mas, primordialmente, a umaquestão de especificidade cultural. Assim, apesar dorecorte por idade (jovens e adultos são, basicamente,“não crianças”), esse território da educação não dizrespeito a reflexões e ações educativas dirigidas aqualquer jovem ou adulto, mas delimita um deter-minado grupo de pessoas relativamente homogêneono interior da diversidade de grupos culturais dasociedade contemporânea. O adulto, no âmbito daeducação de jovens e adultos, não é o estudanteuniversitário, o profissional qualificado que fre-qüenta cursos de formação continuada ou de espe-cialização, ou a pessoa adulta interessada em aper-feiçoar seus conhecimentos em áreas como artes,línguas estrangeiras ou música, por exemplo. Ele égeralmente o migrante que chega às grandes me-trópoles proveniente de áreas rurais empobrecidas,filho de trabalhadores rurais não qualificados e combaixo nível de instrução escolar (muito freqüen-temente analfabetos), ele próprio com uma passa-gem curta e não sistemática pela escola e trabalhan-

do em ocupações urbanas não qualificadas, apósexperiência no trabalho rural na infância e na ado-lescência, que busca a escola tardiamente para al-fabetizar-se ou cursar algumas séries do ensino su-pletivo. E o jovem, incorporado ao território daantiga educação de adultos relativamente há pou-co tempo, não é aquele com uma história de esco-laridade regular, o vestibulando ou o aluno de cur-sos extracurriculares em busca de enriquecimentopessoal.1 Não é também o adolescente no sentidonaturalizado de pertinência a uma etapa bio-psico-

1 Seria importante um aprofundamento a respeito dapopulação de jovens incorporados aos programas de edu-cação de jovens e adultos já que, quando se fala dessa mo-dalidade de educação, o título abrangente não evita que areferência principal seja aos adultos, geralmente alunos dasclasses de alfabetização e das séries iniciais do ensino fun-damental. Neste ensaio isto também acontece, em razão es-pecialmente da linha de pesquisa da autora: quando não hámenção explícita aos jovens, o sujeito de que se fala aqui émais especificamente o adulto.

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Marta Kohl de Oliveira

lógica da vida.2 Como o adulto anteriormente des-crito, ele é também um excluído da escola, porémgeralmente incorporado aos cursos supletivos emfases mais adiantadas da escolaridade, com maio-res chances, portanto, de concluir o ensino funda-mental ou mesmo o ensino médio. É bem mais li-gado ao mundo urbano, envolvido em atividades detrabalho e lazer mais relacionadas com a socieda-de letrada, escolarizada e urbana. Refletir sobre co-mo esses jovens e adultos pensam e aprendem en-volve, portanto, transitar pelo menos por três cam-pos que contribuem para a definição de seu lugarsocial: a condição de “não-crianças”, a condição deexcluídos da escola e a condição de membros dedeterminados grupos culturais.

Com relação à condição de “não-crianças”,esbarramos aqui em uma limitação considerável daárea da psicologia: as teorias do desenvolvimentoreferem-se, historicamente, de modo predominan-te à criança e ao adolescente, não tendo estabeleci-do, na verdade, uma boa psicologia do adulto. Osprocessos de construção de conhecimento e de apren-dizagem dos adultos são, assim, muito menos ex-plorados na literatura psicológica do que aquelesreferentes às crianças e adolescentes. Palacios, emum artigo que sintetiza a produção em psicologiaa respeito do desenvolvimento humano após a ado-lescência, comenta como a idade adulta tem sidotradicionalmente encarada como um período de es-tabilidade e ausência de mudanças, e enfatiza a im-portância de considerar a vida adulta como etapasubstantiva do desenvolvimento. Enfatiza tambéma importância dos fatores culturais na definição dascaracterísticas da vida adulta:

Se cada período da vida é suscetível de se iden-

tificar com uma série de papéis, atividades e relações,

não cabe dúvida de que a entrada no mundo do tra-

balho e a formação de uma unidade familiar própria

são identificadas como papéis, atividades e relações da

maior importância a partir do final da adolescência.

[A forma como esses dois fenômenos ocorrem] e as

expectativas sociais em torno deles são claramente

dependentes em relação a fatores históricos, culturais

e sociais. (Palacios, 1995, p. 315)

No que diz respeito ao funcionamento inte-lectual do adulto, o mesmo autor afirma que

as pessoas humanas mantêm um bom nível de com-

petência cognitiva até uma idade avançada (desde lo-

go, acima dos 75 anos). Os psicólogos evolutivos es-

tão, por outro lado, cada vez mais convencidos de que

o que determina o nível de competência cognitiva das

pessoas mais velhas não é tanto a idade em si mesma,

quanto uma série de fatores de natureza diversa. En-

tre esses fatores podem-se destacar, como muito im-

portantes, o nível de saúde, o nível educativo e cultu-

ral, a experiência profissional e o tônus vital da pes-

soa (sua motivação, seu bem-estar psicológico...). É

esse conjunto de fatores e não a idade cronológica per

se, o que determina boa parte das probabilidades de

êxito que as pessoas apresentam, ao enfrentar as diver-

sas demandas de natureza cognitiva. (Palacios, 1995,

p. 312)

Embora nos falte uma boa psicologia do adul-to e a construção de tal psicologia esteja, necessa-riamente, fortemente atrelada a fatores culturais,podemos arrolar algumas características dessa etapada vida que distinguiriam, de maneira geral, o adul-to da criança e do adolescente. O adulto está inse-rido no mundo do trabalho e das relações inter-pessoais de um modo diferente daquele da criançae do adolescente. Traz consigo uma história maislonga (e provavelmente mais complexa) de expe-riências, conhecimentos acumulados e reflexões so-bre o mundo externo, sobre si mesmo e sobre asoutras pessoas. Com relação a inserção em situa-ções de aprendizagem, essas peculiaridades da eta-pa de vida em que se encontra o adulto fazem comque ele traga consigo diferentes habilidades e difi-culdades (em comparação com a criança) e, pro-vavelmente, maior capacidade de reflexão sobre o

2 Para uma discussão aprofundada da constituição dajuventude como conceito nas ciências sociais contemporâ-neas, ver Peralva e Sposito, 1997.

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Revista Brasileira de Educação 61

Jovens e adultos como sujeitos de conhecimento e aprendizagem

conhecimento e sobre seus próprios processos deaprendizagem.

Para além dessas características gerais, entre-tanto, tratar o adulto de forma abstrata, universal,remete a um certo estereótipo de adulto, muito pro-vavelmente correspondente ao homem ocidental,urbano, branco, pertencente a camadas médias dapopulação, com um nível instrucional relativamenteelevado e com uma inserção no mundo do traba-lho em uma ocupação razoavelmente qualificada.Assim, compreensão da psicologia do adulto poucoescolarizado, objeto de interesse da área de educa-ção de jovens e adultos, acaba por contrapor-se aesse estereótipo. Essa questão foi explorada, com re-lação especificamente ao funcionamento cognitivodo adulto pouco escolarizado, em trabalho anterior:

Parece haver um acordo sobre a existência de

uma diferença entre formas letradas e não letradas de

pensamento; é importante reiterar, entretanto, que

essa diferença não está claramente definida na litera-

tura, não apenas pela falta de investigacões mais es-

pecíficas a respeito do funcionamento cognitivo dos

grupos “pouco letrados”, mas também pela ausência

de uma teoria consistente sobre os processos intelec-

tuais dos adultos plenamente inseridos na sociedade

letrada. Nesse sentido, a modalidade de pensamento

à qual se opõe o pensamento denominado pouco le-

trado é, em grande medida, uma construção deriva-

da do senso comum. (Oliveira, 1995, p. 157)

Do mesmo modo, falar de um jovem abstratonão localiza historicamente qual é esse jovem, queconvive, pelo menos parcialmente, com pessoas deidade mais avançada em cursos escolares destinadosàqueles que não puderam seguir o caminho da esco-laridade regular, e que constitui objeto da área de-nominada “educação de pessoas jovens e adultas”.

Neste sentido é que se pode dizer, conformeafirmado anteriormente, que o problema da educa-ção de jovens e adultos remete, primordialmente,a uma questão de especificidade cultural. É neces-sário historicizar o objeto da reflexão pois, do con-trário, se falarmos de um personagem abstrato, po-deremos incluir, involuntariamente, um julgamen-

to de valor na descrição do jovem e do adulto emquestão: se ele não corresponde à abstração utili-zada como referência, ele é contraposto a ela e com-preendido a partir dela, sendo definido, portanto,pelo que ele não é. O primeiro traço cultural re-levante para esses jovens e adultos, especialmenteporque nos movemos, aqui, no contexto da esco-larização, é sua condição de excluídos da escola re-gular. O tema da exclusão escolar é bastante proe-minente na literatura sobre educação, especialmen-te no que diz respeito a aspectos sociológicos — re-lações entre escola e sociedade, direito à educação,educação e cidadania, escola, trabalho e classe so-cial — e aspectos pedagógicos ou psico-pedagógi-cos — fracasso escolar, evasão e repetência, práti-cas de avaliação.3

Para a presente discussão, o aspecto específi-co dessa ampla questão que se destaca é como asituação de exclusão contribui para delinear a es-pecificidade dos jovens e adultos como sujeitos deaprendizagem. Um primeiro ponto a ser menciona-do aqui é a adequação da escola para um grupo quenão é o “alvo original” da instituição. Currículos,programas, métodos de ensino foram originalmenteconcebidos para crianças e adolescentes que percor-reriam o caminho da escolaridade de forma regu-lar. Assim, a organização da escola como institui-ção supõe que o desconhecimento de determinadosconteúdos esteja atrelado a uma determinada eta-pa de desenvolvimento (por exemplo, desconhecera diferença entre aves e mamíferos e ter sete anosde idade seriam fatores correlacionados); supõe quecertos hábitos, valores e práticas culturais não es-tejam ainda plenamente enraizados nos aprendizes;supõe que certos modos de transmissão de conhe-cimentos e habilidades seriam os mais apropriados;supõe que certos aspectos do jargão escolar seriamdominados pelos alunos em cada momento do per-curso escolar. Essas e outras suposições em que sebaseia o trabalho escolar podem colocar os jovens

3 Ver, por exemplo, Aquino, 1997; Lahire, 1997; Pat-to, 1990.

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e adultos em situações bastante inadequadas parao desenvolvimento de processos de real aprendiza-gem. De certa forma, é como se a situação de ex-clusão da escola regular fosse, em si mesma, poten-cialmente geradora de fracasso na situação de esco-larização tardia. Na verdade, os altos índices deevasão e repetência nos programas de educação dejovens e adultos indicam falta de sintonia entre essaescola e os alunos que dela se servem, embora nãopossamos desconsiderar, a esse respeito, fatores deordem socioeconômica que acabam por impedir queos alunos se dediquem plenamente a seu projetopessoal de envolvimento nesses programas.

Um segundo ponto a ser mencionado no quediz respeito à especificidade dos jovens e adultoscomo sujeitos de aprendizagem relacionada com oprocesso de exclusão da escola regular é o fato deque a escola funciona com base em regras específi-cas e com uma linguagem particular que deve serconhecida por aqueles que nela estão envolvidos.Conforme discutido em trabalho anterior a respei-to de alunos de um curso de pós-alfabetização paraadultos,

o desenvolvimento das atividades escolares está ba-

seado em símbolos e regras que não são parte do co-

nhecimento de senso comum. Isto é, o modo de se fazer

as coisas na escola é específico da própria escola e

aprendido em seu interior. As mais óbvias dessa re-

gras, que configuram o “modelo escolar”, constituem

um estereótipo bastante generalizado em nossa socie-

dade letrada, mesmo entre indivíduos que nunca es-

tiveram na escola (e mesmo quando esse estereótipo

não corresponde exatamente às escolas reais em fun-

cionamento) — praticamente todo mundo sabe que na

escola há um professor que ensina e estabelece as re-

gras para um grupo de alunos que deve aprender e

obedecer; há um quadro-negro e carteiras e as pessoas

trabalham com cadernos, lápis e borrachas. Em nível

mais sutil, entretanto, dominar a mecânica da escola

e manipular sua linguagem são capacidades aprendi-

das no interior da escola e, ao mesmo tempo, cruciais

para o desempenho do indivíduo nas várias tarefas es-

colares. Muitas vezes a linguagem escolar mostrou ser

maior obstáculo à aprendizagem do que o próprio

conteúdo. Alunos que nunca haviam estado na esco-

la tinham grande dificuldade de trabalhar com a lin-

guagem escolar, enquanto que aqueles que já haviam

tido certo treino escolar demonstraram dominar a me-

cânica geral da escola e considerar os diversos tipos

de atividades como aceitáveis no interior do mundo

escolar, mesmo quando desconhecidas como ativi-

dades específicas. Entretanto, ainda que esses alunos

mais treinados soubessem bastante a respeito da ve-

rossimilhança das atividades desenvolvidas em clas-

se, a apresentação formal das tarefas escolares conti-

nuou sendo um obstáculo ao seu bom desempenho.

Compreensão de instruções, particularmente quando

por escrito, também constituía, ainda, grande parte do

problema a ser resolvido. (Oliveira, 1987, p. 19-29)

Ainda que o foco da presente discussão estejanos aspectos referentes ao conhecimento e à apren-dizagem, é importante mencionar ainda que a ex-clusão da escola coloca os alunos em situação dedesconforto pessoal em razão de aspectos de natu-reza mais afetiva, mas que podem também influen-ciar a aprendizagem. Os alunos têm vergonha defreqüentar a escola depois de adultos e muitas ve-zes pensam que serão os únicos adultos em classesde crianças, sentindo-se por isso humilhados e tor-nando-se inseguros quanto a sua própria capacidadepara aprender (Oliveira, 1989).

Além da referência ao lugar social ocupadopelos jovens e adultos definido por sua condição deexcluídos da escola regular, sua especificidade cul-tural deve ser examinada com relação a outros as-pectos que os definem como um grupo relativamen-te homogêneo no interior da diversidade de gruposculturais da sociedade contemporânea. Na medidaem que nos preocupamos, na presente discussão,com a questão do funcionamento intelectual, dacapacidade para aprender e dos modos de constru-ção de conhecimento, e como os adultos e os jovensque são objeto das práticas e reflexões sobre a edu-cação de pessoas jovens e adultas não pertencem aogrupo social dominante ou caracteristicamente ob-jeto das práticas educativas de que se ocupa a área

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Jovens e adultos como sujeitos de conhecimento e aprendizagem

da educação em geral, o problema que aqui se co-loca é o da homogeneidade e da heterogeneidadecultural, do confronto entre diferentes culturas e darelação entre diferenças culturais e diferenças nascapacidades e no desempenho intelectual dos sujei-tos. A pergunta básica que pode ser formulada aesse respeito é a seguinte: há ou não diferenças nofuncionamento psicológico em geral, e no funcio-namento cognitivo em particular, de sujeitos per-tencentes a diferentes grupos culturais? No casoespecífico aqui examinado, os jovens e adultos deque nos ocupamos, enquanto sujeitos de conheci-mento e aprendizagem, operam de uma forma queé universal ou que é marcada por uma pertinênciacultural específica?

Podemos identificar, na literatura, três gran-des linhas de pensamento sobre as possíveis relaçõesentre a cultura e a produção de diferentes modosde funcionamento intelectual: aquela que afirma aexistência da diferença entre membros de diferen-tes grupos culturais, aquela que busca negar a im-portância da diferença, e uma terceira, que recuperaa idéia da diferença em outro plano.4 A primeiraabordagem, que postula os grupos humanos comodiferentes entre si,

tem sua origem na descoberta, no século XVI, de po-

vos diferentes do humano “civilizado” conhecido até

então no Ocidente. Conforme explicita Laplantine

(1988), a imagem que o ocidental fez dos “selvagens”

descobertos no Novo Mundo oscilou entre a idolatria

do homem natural, belo, virtuoso, que vivia uma vida

coletiva harmônica e integrada na natureza, e o jul-

gamento desses povos como pouco mais que animais,

preguiçosos, feios, impulsivos, atrasados. De qualquer

forma, o outro, o desconhecido, tendeu a ser olhado

a partir do referencial do observador e de sua cultura,

e não compreendido de seu próprio ponto de vista.

O discurso etnocêntrico sobre o desconhecido

e exótico “selvagem” se reproduz, ao longo da histó-

ria das ciências humanas em geral e da antropologia

em particular, no discurso evolucionista sobre o ho-

mem “primitivo”, cujo desenvolvimento não teria al-

cançado, ainda, o nível de civilização de nossas socie-

dades complexas. Esse discurso penetra a área da psi-

cologia quando essa se interessa pela investigação das

possíveis diferenças nos processos psicológicos das

pessoas de diferentes grupos culturais. Particularmente

no que se refere ao funcionamento cognitivo, mem-

bros de sociedades ou grupos culturais que não são

urbanos, escolarizados, burocratizados e marcados

pelo desenvolvimento científico e tecnológico, são

compreendidos como menos desenvolvidos que “nós”

e classificados como primitivos, pré-lógicos, míticos

ou mágicos (e não científicos), sem capacidade para

o pensamento abstrato, mais baseados na imagina-

ção e na intuição do que na racionalidade (Cole &

Scribner, 1974, Goody, 1977). (Oliveira, 1997, p. 47)

No âmbito dessa abordagem também tem sidoproduzido um discurso sobre as possibilidades dedesenvolvimento e aprendizagem dos jovens e adul-tos. Eles teriam peculiaridades em seu modo de fun-cionamento intelectual, em grande medida atribuí-veis a sua falta de escolaridade anterior, mas tam-bém a características do modo de vida de seu grupode origem.5 Assim, se esses adultos não pensam deforma apropriada ou não são capazes de aprenderadequadamente, isso se deve a sua pertinência a umgrupo cultural específico. Subjacente a essa aborda-gem está uma postulação bastante determinista, quecorrelaciona, de forma estática, traços do psiquismocom fatores culturais que os determinariam.

A segunda abordagem busca a compreensãodos mecanismos psicológicos que fundamentam odesempenho de diferentes sujeitos em diferentes ta-refas, dirigindo-se à investigação daquilo que é co-

4 Ver Oliveira, 1997, para uma discussão dessa ques-tão em outro contexto.

5 Para uma cuidadosa revisão bibliográfica a respeitodessa questão, especialmente para a postulação do letra-mento como um “divisor de águas” entre duas formas di-ferentes de funcionamento psicológico, ver Ribeiro, 1999;ver também Kleiman, 1995; e Oliveira, 1995.

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Marta Kohl de Oliveira

mum a todos os seres humanos. Se não nega expli-citamente a existência de diferenças entre os indi-víduos e grupos culturais, essa abordagem de certaforma nega a relevância das diferenças para a com-preensão do funcionamento psicológico.

Em contraposição às posturas etnocêntricas e ao

evolucionismo presentes na primeira abordagem, que

buscava diferenciar grupos “primitivos” de grupos

“civilizados”, distinguindo processos psicológicos

mais e menos adequados, avançados ou sofisticados,

as pesquisas na área da chamada psicologia antro-

pológica passaram a enfatizar a necessidade de com-

preender processos psicológicos básicos, que estariam

subjacentes à enorme variedade de modos de vida,

crenças, teorias sobre o mundo, artefatos culturais e

criações artísticas presentes nos diferentes grupos hu-

manos. Essa contraposição teórica foi, muitas vezes,

motivada por uma reação ideológica à idéia de que há

seres humanos “melhores” e “piores”, ao posiciona-

mento da ciência como a forma mais adequada de

produção de conhecimento e à conseqüente situação

do próprio cientista como representante do tipo mais

avançado de sujeito na sua relação com os objetos de

conhecimento.

Michael Cole e Sylvia Scribner (1974), dois dos

principais investigadores contemporâneos das relações

entre cultura e pensamento, colocam explicitamente

a questão que dirige as pesquisas e reflexões dessa

segunda abordagem: as indiscutíveis diferenças obser-

vadas no funcionamento psicológico dos vários gru-

pos culturais seriam “resultado de diferenças em pro-

cessos cognitivos básicos ou apenas expressões dos

muitos produtos que a mente humana universal pode

produzir, dadas as grandes variações nas condições de

vida e de atividades culturalmente valorizadas?” (p.

172). Eles próprios procuram responder à questão,

demonstrando que não há evidências de que algum

grupo cultural tenha deficiências nos componentes

básicos dos processos cognitivos. Isto é, todo ser hu-

mano é capaz de abstrair, categorizar, fazer inferên-

cias, utilizar formas de representação verbal etc. Es-

ses processos básicos, disponíveis a todos, seriam mo-

bilizados em diferentes combinações, dependendo das

demandas situacionais enfrentadas por membros de

diferentes culturas. (idem, p. 51-52)

Como analisa Tulviste (1991), essa maneira de

enfrentar a questão acaba por considerar todas as cul-

turas e todos os modos de funcionamento como sen-

do aparentemente diferentes mas, na verdade, iguais

ou equivalentes. Todos somos inteligentes, todos pen-

samos de forma adequada, já que os mecanismos do

psiquismo são universais. Paradoxalmente, o contexto,

a cultura, a história, que parecem ser tão proeminen-

tes nessa abordagem que busca romper com o etno-

centrismo, seriam componentes quase que acessórios,

que apenas permitem, favorecem, promovem a emer-

gência daquilo que está posto como possibilidade psi-

cológica de todos os seres humanos. (Oliveira, 1997,

p. 52)

Permanece, aqui, o problema da origem dosmecanismos universais, já que, por um lado, a cul-tura não explica o que é universal, mas apenas o queé contingente, e, por outro lado, a postulação deuma fonte endógena não é endossada por todos osque buscam compreender as relações entre culturae funcionamento psicológico.

Se a primeira abordagem apóia-se numa pos-tulação determinista, que relaciona traços do psi-quismo com fatores culturais, essa segunda aborda-gem poderia conduzir a um relativismo radical e auma postura espontaneísta, que não admitiria ne-nhuma intervenção nos modos de funcionamentopeculiares a cada grupo cultural, já que todo conhe-cimento é igualmente valioso, toda visão de mun-do é legítima, todo conteúdo é importante. No casodos jovens e adultos, seu desenvolvimento psicoló-gico e suas modalidades de aprendizagem (e seusvalores, hábitos, atitudes, formas de organização doconhecimento) teriam que ser respeitados, restan-do pouco espaço para a intervenção educativa.

A terceira abordagem está claramente asso-ciada à teoria histórico-cultural em psicologia6 e

6 Ver Wertsch, 1988; Vygotsky e Luria, 1996; Riebere Carton, 1987.

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Revista Brasileira de Educação 65

Jovens e adultos como sujeitos de conhecimento e aprendizagem

poderia ser considerada a mais fecunda para a com-preensão das relações entre cultura e modalidadesde pensamento. Postula o psiquismo como sendoconstruído ao longo de sua própria história, numacomplexa interação entre quatro planos genéticos:a filogênese, a sociogênese, a ontogênese e a micro-gênese. Nascido com as características de sua espé-cie, cada indivíduo humano percorre o caminho daontogênese informado e alimentado pelos artefatosconcretos e simbólicos, pelas formas de significação,pelas visões de mundo fornecidas pelo grupo cul-tural em que se encontra inserido.

A imensa multiplicidade de conquistas psicoló-

gicas que ocorrem ao longo da vida de cada indivíduo

geram uma complexa configuração de processos de

desenvolvimento que será absolutamente singular para

cada sujeito. [...] Os processo microgenéticos consti-

tuem, assim, o quarto plano genético, que interage

com os outros três, caracterizando a emergência do

psiquismo individual no entrecruzamento do biológi-

co, do histórico, do cultural.

A dinâmica de relação entre esses domínios ge-

néticos define, para essa abordagem, uma posição cla-

ramente não determinista. O curso de desenvolvimen-

to suposto na pertinência à espécie e na maturação

individual só será realizado por meio da inserção do

ser humano no mundo da cultura, o que elimina qual-

quer possibilidade de consideração de alguma moda-

lidade de dotação prévia ou herança genética como

fonte primordial de formação do psiquismo. Isto é,

sejam os seres humanos diferentes ou não na origem,

o que importa para a compreensão de seu psiquismo

é o processo de geração de singularidade ao longo de

sua história. Ao postular a cultura como constitutiva

do psiquismo, por outro lado, essa abordagem não a

toma como uma força que se impõe a um sujeito pas-

sivo, moldando-o de acordo com padrões preestabe-

lecidos. Ao contrário, a ação individual, com base na

singularidade dos processos de desenvolvimento de

cada sujeito, consiste em constante recriação da cul-

tura e negociação interpessoal. Se assim não fosse, te-

ríamos culturas sem história e geração de sujeitos idên-

ticos em cada grupo cultural.

Emerge aqui a questão da recuperação da im-

portância das diferenças como cerne da própria abor-

dagem genética. Conforme discutido acima, essa é uma

abordagem que considera que o psiquismo é totalmen-

te construído na inter-relação entre os planos da filo-

gênese, ontogênese, sociogênese e microgênese, não

havendo nenhuma espécie de realidade psicológica

preexistente a esse complexo processo histórico, mas

sim uma necessária geração de singularidades. Postular

diferenças é, portanto, uma conseqüência necessária

dessa abordagem genética “forte”: se o psiquismo é

construído, a diferença é resultado necessário dessa

construção, e a compreensão das configurações par-

ticulares é o objeto mesmo da investigação em psico-

logia. (Oliveira, 1997, p. 56-57)

Além disso, toda psicologia seria cultural, namedida em que, caso seja eliminada a dimensão cul-tural na compreensão do psiquismo humano, res-taria apenas aquilo que é orgânico. Nesse sentido,

diferenças individuais e diferenças culturais fundem-

se em um mesmo fenômeno de geração de heteroge-

neidade, a partir do envolvimento de indivíduos em

diferentes atividades ao longo de seu desenvolvimen-

to psicológico. Conforme explicita Tulviste (1991),

pessoas diferentes, membros do mesmo grupo cultu-

ral ou não, pensarão sobre partes idênticas do am-

biente de formas diversas; e a mesma pessoa pode pen-

sar de maneiras diferentes, usando diferentes métodos,

estratégias e instrumentos conforme a atividade em

que esteja envolvida. (Oliveira, 1997, p. 58)

Não haveria, portanto, um único caminho de

desenvolvimento ou uma única forma de “bom fun-

cionamento” psicológico para o ser humano. Ao mes-

mo tempo, entretanto, o desenvolvimento psicológi-

co não está postulado como sendo totalmente em aber-

to, já que há limites e possibilidades definidos em ca-

da plano genético. Quando se considera uma deter-

minada instituição social no contexto de uma certa so-

ciedade, como a escola na complexa sociedade con-

temporânea, a reflexão tem que se referir tanto à pos-

sibilidade de múltiplas trajetórias para diferentes in-

divíduos e grupos como às especificidades culturais em

jogo, que definem a finalidade de tal instituição. A

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Marta Kohl de Oliveira

intervenção educativa teria que atuar sobre indivíduos

necessariamente diversos, no sentido de lhes dar acesso

àquela modalidade particular de relação entre sujei-

to e objeto de conhecimento que é própria da escola,

promovendo transformações específicas no seu per-

curso de desenvolvimento. (Oliveira, 1997, p. 60-61)

Alguns trabalhos de pesquisa contemporâneosdirigem-se exatamente a essa questão da constitui-ção da heterogeneidade entre indivíduos e entre gru-pos, focalizando sua atenção nas práticas culturaisque dirigem os processos de construção de diferen-tes aspectos do psiquismo. Sem a pretensão de umarevisão exaustiva da bibliografia pertinente, fora daspossibilidades de um trabalho como este, é interes-sante mencionar alguns desses trabalhos, que têmparticular relevância para o tema do conhecimen-to e da aprendizagem entre jovens e adultos. Ribeiro(1999) explora a natureza complexa do letramentocomo fenômeno cultural e das relações entre alfa-betismo e características psicológicas, enfatizandoa “impropriedade da postulação de que a dissemi-nação da linguagem escrita em si constitui o divisorde águas entre culturas tradicionais e modernas, ouainda, no plano psicológico, que a aprendizagem daleitura e da escrita por si só possa produzir mudan-ças psicológicas tais como desenvolvimento do pen-samento categorial ou ainda atitudes modernizan-tes” (p. 50). Afirma que em “sociedades complexaso fenômeno do alfabetismo é necessariamente he-terogêneo, comportando práticas em que se utilizaa linguagem escrita com intensidade e orientaçãodiversas. A variedade das práticas de alfabetismopossíveis e suas relações com outras peculiaridadesculturais de subgrupos são constitutivas da plura-lidade da cultura e, nessa medida, devem ser com-preendidas e valorizadas” (p. 245).

Vóvio (1999), num estudo recente sobre nar-rativas autobiográficas realizadas por alunos de cur-sos para jovens e adultos, constata que “não há umacorrelação positiva entre o nível de escolaridadedos sujeitos que participaram dessa pesquisa e a in-corporação crescente, por eles, de conhecimentosapreendidos na escola sobre a linguagem escrita na

produção de textos narrativos. No que se refere àprodução de autobiografias orais e escritas, nem odomínio da linguagem escrita, nem o nível de es-colaridade mostraram-se como elementos suficien-tes para explicar os desempenhos dos sujeitos” (p.201). Constata ainda que

não se podem generalizar os efeitos da aquisição da

linguagem escrita sobre a linguagem oral e sobre o uso

que as pessoas fazem delas. Sujeitos não ou pouco

escolarizados que participam de situações comunica-

tivas que demandam o planejamento do discurso, di-

rigidas a interlocutores desconhecidos que participam

indiretamente dessas situações (situações monológi-

cas), estão lidando com problemas cognitivos especí-

ficos. Estes exigem que os sujeitos regulem e reflitam

sobre seus discursos à medida que os constróem, ex-

plicitando informações e referências, selecionando o

vocabulário, o estilo e as construções sintáticas, fazen-

do previsões sobre o próprio discurso e sobre o modo

como seus interlocutores o estão recebendo. O meio

pelo qual se produz o discurso também impõe condi-

ções para sua produção, mas não pode ser tomado

como central no que diz respeito à utilização de ha-

bilidades cognitivas e conhecimentos lingüísticos usa-

dos por falantes e escritores. É preciso, portanto, con-

siderar como central as circunstâncias em que a co-

municação ocorre e o modo como as interações se

conformam nessas circunstâncias, especialmente as

estratégias e habilidades acionadas pelo locutor para

alcançar seu propósito comunicativo e a de sua au-

diência de ressignificar o discurso que a ela se dirige.

(p. 207)

Num trabalho realizado com crianças, Lahire(1997) dirige-se a problemas teórico-metodológi-cos extremamente pertinentes à presente discussão.Estudando casos de sucesso e de fracasso escolar,o autor busca compreender as “diferenças ‘secun-dárias’ entre famílias populares cujo nível de ren-da e nível escolar são bastante próximos. Semelhan-tes por suas condições econômicas e culturais —consideradas de forma grosseira a partir da pro-fissão do chefe de família —, como é possível queconfigurações familiares engendrem, socialmente,

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Revista Brasileira de Educação 67

Jovens e adultos como sujeitos de conhecimento e aprendizagem

crianças com nível de adaptação escolar tão dife-rentes? Quais são as diferenças internas nos meiospopulares suscetíveis de justificar variações, às ve-zes consideráveis, na escolaridade das crianças?” (p.12). Afirma que “a personalidade da criança, seus‘raciocínios’ e seus comportamentos, suas ações ereações são incompreensíveis fora das relações so-ciais que se tecem, inicialmente, entre ela e os ou-tros membros da constelação familiar, em um uni-verso de objetos ligados às formas de relações so-ciais intrafamiliares” (p. 17). Mas “a presença ob-jetiva de um capital cultural familiar só tem senti-do se esse capital cultural for colocado em condi-ções que tornem possível sua ‘transmissão’. [...] Épor essa razão que, com capital cultural equivalente,dois contextos familiares podem produzir situaçõesescolares muito diferentes na medida em que o ren-dimento escolar desses capitais culturais dependemuito das configurações familiares de conjunto.Podemos dizer, lembrando uma frase célebre, quea herança cultural nem sempre chega a encontraras condições adequadas para que o herdeiro her-de” (p. 338).

Para aprofundar a reflexão sobre as relaçõesentre pertinência cultural e cognição e sobre o pro-blema da heterogeneidade, é interessante ainda re-tomar, aqui, um trabalho de pesquisa da própriaautora sobre competências cognitivas exibidas emsituações de vida cotidiana por alunos de cursosnoturnos para jovens e adultos, residentes em umafavela na cidade de São Paulo (Oliveira, 1982). Sub-jacente ao desenvolvimento desse estudo estava aconcepção de que as pessoas aprendem a atuar cog-nitivamente nos ambientes específicos onde viveme é nesses ambientes que elas desempenham, repe-tidamente, tarefas significativas que envolvem ca-pacidades cognitivas. Em contraponto à primeiraabordagem discutida acima sobre as possíveis re-lações entre cultura e funcionamento psicológico,que afirma a existência da diferença entre membrosde diferentes grupos culturais, correlacionando, deforma estática, traços do psiquismo com fatoresculturais que os determinariam, esse trabalho depesquisa poderia ser considerado como pertinente

à segunda abordagem, ao buscar demonstrar quetodos os modos de funcionamento cognitivo sãoequivalentes, isto é, que todos os seres humanos sãointeligentes e pensam de forma adequada. Um tre-cho do próprio trabalho explicita com clareza essaposição:

Essas três características intimamente relacio-

nadas [os indivíduos não pertencem, originalmente, ao

ambiente onde vivem atualmente; a vida na comunida-

de é orientada para atividades conjuntas e interações

sociais e não para buscas individuais; os arranjos vi-

gentes nas diferentes esferas de vida são instáveis e

sujeitos a constantes mudanças], que demonstraram

permear o modo dos indivíduos organizarem sua vi-

da, estão fortemente ligadas às definições normalmen-

te aplicadas aos favelados, migrantes e indivíduos de

baixa renda em geral. Eles são vistos como carentes,

incompetentes e incapazes de lidar com as demandas

da vida moderna. Uma simples listagem das caracte-

rísticas que podem ser observadas como significativas

em suas vidas pode, realmente, levar a esse tipo de

interpretação. Eles são migrantes da zona rural nor-

destina, muito ligados ao seu local de origem e inte-

ragindo, em São Paulo, basicamente com indivíduos

provenientes do mesmo local; têm relações sociais ex-

tremamente intensas, cruciais para sua sobrevivência;

socializam a informação sobre os membros da comu-

nidade e até mesmo as competências necessárias para

lidar com as solicitações da vida diária; são muito de-

pendentes de alguns indivíduos centrais na comunida-

de; têm, no nível do discurso, um conjunto rígido de

padrões morais; são extremamente tendentes à violên-

cia e parecem inclinados a se tornarem delinqüentes;

seus arranjos são sempre confusos e sujeitos a mudan-

ças radicais; não planejam as coisas com antecedên-

cia e tendem a ser fatalistas. No entanto, quando é

possível perceber o que significa “vida moderna” para

esses indivíduos e quais são, de fato, as demandas des-

sa vida, essas características negativas devem ser en-

tendidas como formas eficientes de se lidar com essas

demandas. Elas são apenas comportamentos funcio-

nais adaptativos a uma situação de recursos materiais

escassos, falta de apoio de qualquer tipo de institui-

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Marta Kohl de Oliveira

ção pública, constante insegurança em todas as esfe-

ras de vida e total falta de recompensas por compor-

tamento “apropriado”. (Oliveira, 1982, p. 86-87)

O interesse em retomar aqui esse trabalho depesquisa reside no fato de que, embora tendo sidoestruturado para explorar a idéia de que processoscognitivos comuns a todos os seres humanos sãomobilizados em diferentes combinações, dependen-do das demandas situacionais enfrentadas por mem-bros de diferentes grupos culturais, os dados obti-dos muitas vezes apontaram para a heterogeneidadeno interior do grupo e para diferentes fontes quecontribuiriam para a constituição do funcionamen-to intelectual. A organização da produção em psi-cologia sobre diferenças culturais e sua relação como desenvolvimento psicológico em três grandes li-nhas de pensamento, realizada em 1997 (Oliveira,1997), explicita uma opção atual da autora por umaabordagem teórica. Essa abordagem pode ser uti-lizada, retrospectivamente, para uma reinterpre-tação de dados coletados e analisados de um outroprisma teórico. É como se o próprio material em-pírico mostrasse certa autonomia, não se deixandorestringir às possibilidades interpretativas do mo-delo utilizado. Assim, criada originalmente comouma pesquisa pertinente à segunda abordagem, po-dem ser encontrados nela elementos que subsidiama reflexão na linha proposta pela terceira aborda-gem, aquela que se apresenta como a que melhorexplica a emergência da complexidade do funcio-namento cognitivo.

O primeiro dado relevante que merece ser men-cionado é o fato de que, com relação ao modo deos indivíduos lidarem com as demandas da vidacotidiana, foram identificados diferentes níveis decompetência distribuídos pelos diversos membrosda comunidade. Em primeiro lugar haveria um ní-vel básico de competência, altamente condiciona-do pelas características do ambiente e disseminadoentre os membros da comunidade: qualquer pessoasabe como ir de casa ao trabalho, como prepararalgum tipo de alimento ou como lidar com dinhei-ro, por exemplo. Há um outro nível de competên-

cia que não é generalizado e que caracteriza algunsindivíduos como mais capazes que outros. Essesindivíduos são cruciais para a vida da comunidadee podem ter algumas vantagens no decorrer de suasvidas por serem capazes de lidar melhor com osrecursos disponíveis no ambiente. Domínio do sis-tema burocrático, bom conhecimento da cidade,capacidade de realizar boas trocas de produtos usa-dos são exemplos dessas habilidades.

No extremo desse nível mais elevado de com-petência encontram-se alguns indivíduos-chave nacomunidade, que foram denominados “focos decompetência”, por concentrarem a maior parte dashabilidades necessárias à solução dos problemasenfrentados pelos membros da comunidade em ge-ral. Três pessoas, moradoras da favela, foram iden-tificadas como “focos de competência” ao longo darealização da pesquisa. Uma delas era uma das pro-fessoras do curso de educação de adultos existenteno interior da favela e também educadora de crian-ças no Centro Comunitário do mesmo local, quesustentava, com seu trabalho, mãe e cinco irmãos.Ela dominava grande quantidade de “informaçõesúteis” (como encontrar um advogado ou um mé-dico, onde é o hospital mais próximo, como fazerpara adotar uma criança, por exemplo), conheciaa cidade muito bem e dominava o sistema burocrá-tico (como tirar documentos, preencher formuláriosetc.). Tinha, também, uma rede de relações compessoas de nível socioeconômico mais elevado, par-ticularmente por meio dos assistentes sociais e reli-giosos ligados ao Centro Comunitário. Seus familia-res e amigos não faziam nada sem seu apoio e aju-da, e ela era solicitada a realizar diversas tarefaspara outras pessoas. O próprio Centro Comunitá-rio apoiava-se muito em sua competência, disponi-bilidade e autoridade junto às crianças para desen-volver rotinas diárias e atividades extraordinárias.

Outro “foco de competência” era um parti-cipante do curso de adultos. Era um excelente alu-no e liderava o grupo na maior parte das ativida-des desenvolvidas em sala de aula. Também toca-va violão, sabia coordenar jogos de salão, escreveupeças de teatro, compôs músicas e criou roteiros de

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Jovens e adultos como sujeitos de conhecimento e aprendizagem

shows para os alunos apresentarem. Os demais alu-nos contavam com ele para tudo, não organizan-do nenhuma atividade nem tomando nenhuma pro-vidência sem sua iniciativa ou apoio. Ele tambémconhecia a cidade muito bem e dominava o siste-ma burocrático. A terceira pessoa identificada como“foco de competência” era um rapaz que poderiaser considerado um personagem central na comu-nidade. Sabia dirigir, tinha carro próprio e traba-lhava como motorista particular de um importan-te cantor popular. Sua ocupação dava-lhe não ape-nas um grande prestígio entre seus pares, mas tam-bém um conjunto de privilégios objetivos por estarem interação constante com “pessoas famosas” ecom membros de grupos de nível socioeconômicomais elevado. Os moradores da favela contavamcom ele quando necessitavam de transporte (prin-cipalmente em situações de emergência) e para ob-ter vários tipos de informação e ajuda.

É importante mencionar que, devido ao fatode que a interação da pesquisadora na favela foibaseada em seu envolvimento com a escola, a maio-ria de suas relações desenvolveu-se com membrosde alguns dos subgrupos sociais existentes na fave-la. A identificação de indivíduos como mais e me-nos competentes foi, portanto, referente à presen-ça de certos tipos de habilidades e não de outros.Os tipos de habilidades que foram observados têmduas características que os definem: são “moder-nos” (isto é, relativos à sociedade urbana, comple-xa, burocratizada) e são “positivos” (isto é, referem-se a atributos socialmente desejáveis). Pessoas com-petentes em outras esferas de vida não puderam seridentificadas no âmbito do estudo realizado. Entre-tanto, é bastante provável que haja indivíduos queconcentram tipos mais “tradicionais” de competên-cia (como parteiras, especialistas em cura com er-vas, artesãos), bem como pessoas extremamentecapazes em áreas não-positivas (como assaltantes,traficantes de drogas). Desse modo, o conceito de“foco de competência” ora utilizado é significati-vamente restrito.

Foram também observadas certas habilidades“extras” que parecem constituir certa vantagem pa-

ra o indivíduo que as possui, fazendo dele uma pes-soa bem-sucedida no ambiente da favela, sem ne-cessariamente implicar possibilidades de melhoriasconcretas em sua vida (tocar violão, coordenar jo-gos de salão, cozinhar tipos especiais de comida sãoexemplos dessas habilidades “extras”). O que dis-tingue essas habilidades daquelas acima menciona-das é sua relação com as demandas do ambiente:elas não são respostas às necessidades fundamen-tais das pessoas nas esferas de vida capturadas noestudo desenvolvido. É bastante provável, contudo,que habilidades que são supérfluas em um contex-to sejam essenciais em outros. A restrição do con-ceito de “focos de competência” a atributos moder-nos e positivos refere-se exatamente a essa questão.Isto é, dada a importância relativa de diferentes ha-bilidades em diferentes contextos, as competênciasidentificadas como relevantes no ambiente estuda-do são referentes apenas àquelas esferas de vidaapreendidas pelo estudo realizado.

Algumas das habilidades “extras” foram ob-servadas nos mesmos indivíduos que demonstrarampossuir habilidades relevantes acima do nível decompetência generalizado, mas outras foram obser-vadas em pessoas que apenas funcionavam no ní-vel básico de competência. Parece que, acima donível generalizado de competências básicas, diferen-tes indivíduos apresentam diferentes combinaçõesda habilidades mais e menos relevantes. Os “focosde competência” são as pessoas que concentram,mais que outras, muitas das habilidades necessáriaspara lidar com problemas cotidianos significativos.Além desses indivíduos com habilidades acima donível básico de competência, observou-se que algunssujeitos eram considerados por outros membros dacomunidade como indivíduos com menos do que ashabilidades básicas necessárias na vida cotidiana e,conseqüentemente, como pessoas não confiáveispara assumir responsabilidades no interior da vidada comunidade.

A identificação desses diferentes níveis de com-petência indica que não se pode postular que umgrupo de adultos, por compartilharem condições devida como morar em favelas e possuir baixa esco-

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Marta Kohl de Oliveira

laridade, funcione psicologicamente de forma ho-mogênea, oposta monoliticamente a uma outra mo-dalidade de funcionamento cognitivo. No caso emquestão, mostra-se evidente a grande heterogenei-dade dentro do grupo, o que torna bem mais com-plexa a tarefa de compreender o papel da culturana constituição do psiquismo.

Outro dado relevante obtido na pesquisa emquestão que aponta para o fenômeno da hetero-geneidade intragrupo diz respeito aos resultados daaplicação de testes de inteligência. Foram aplicadosdois testes não-verbais de inteligência geral (Testede Matrizes Progressivas de Raven e Teste Eqüicul-tural de Inteligência de Cattell).7 Com relação aoresultado global dos sujeitos nos testes houve, porum lado, grande homogeneidade em seu desempe-nho: todos obtiveram escores abaixo da mediana dequase todos os grupos nos quais as normas apre-sentadas nos manuais dos testes são baseadas. Alémdisso, não houve relação entre o resultado nos testese as seguintes características dos sujeitos: sexo, ida-de, população urbana do município de nascimento,tempo de vida em São Paulo, idade ao chegar emSão Paulo, ocupação dos pais, instrução dos pais.

Para além da mera comparação dos escoresbrutos com as normas dos testes, entretanto, os da-dos obtidos forneceram informações bastante sig-nificativas no que diz respeito à distribuição de es-cores no interior da amostra e às relações entre osescores e outras variáveis. Os testes discriminaramos diferentes sujeitos estudados e relacionaram-secom variáveis relevantes de seu ambiente. Isto é, em-bora todos os sujeitos tenham tido um desempenhocorrespondente aos níveis percentílicos mais baixosdos grupos incluídos nas normas dos testes, seuspróprios escores não foram simplesmente um con-

junto de escores igualmente baixos, acumulados deforma inexpressiva no extremo inferior de uma es-cala. Ao contrário, seus escores nos dois testes fo-ram altamente correlacionados e bem dispersos aolongo da faixa de desempenho desse grupo especí-fico. Seus resultados também tiveram claras relaçõescom educação, ocupação, salário mensal e compe-tência na vida cotidiana. Os sujeitos que haviamfreqüentado escola por um período mais longo, queestavam em séries escolares mais avançadas quan-do responderam aos testes, que obtiveram notasmais altas nos cursos de educação de adultos ondefoi realizada a pesquisa e que permaneceram naescola e passaram de uma série para a seguinte ten-deram a obter escores mais altos nos testes de inte-ligência. Os sujeitos que trabalhavam em ocupaçõesmais qualificadas e os que recebiam maiores salá-rios, bem como aqueles identificados como “focosde competência” e aqueles que mostraram “compe-tências relevantes” em situações da vida cotidiana,também tenderam a obter escores mais altos nos tes-tes. Esses resultados indicam que os testes mediramalgum atributo relevante dos indivíduos estudados,captando diferenças individuais em habilidades queestão relacionadas com a história de passagem pelaescola, com o desempenho na escola e no trabalhono momento de realização dos testes e com níveisde competência no interior da vida da comunidade.

O fato de os indivíduos identificados como“focos de competência” e aqueles que mostraram“competências relevantes” terem obtido escores maisaltos nos testes é compatível com as relações obser-vadas entre escores nos testes e ocupação, salário esucesso na escola. Isto é, os dois testes administra-dos parecem ter medido habilidades relacionadas aodesempenho dos indivíduos em esferas de vida quesão “modernas” e “positivas”. Uma vez que esfe-ras de vida mais tradicionais e menos desejáveis so-cialmente não foram observadas nesse estudo, nãoé possível discutir o significado das escores obtidosnos testes com relação a elas. É bastante provável,entretanto, que haja diferenças individuais em cer-tas áreas de competência que não foram captadaspor esses testes de inteligência geral. Algumas indi-

7 Está fora do âmbito do presente artigo uma discussãoa respeito do uso de testes em pesquisas sobre processoscognitivos, embora essa tenha sido uma das preocupaçõescentrais da investigação aqui focalizada. Para aprofunda-mento da questão, ver o relato completo da investigação emOliveira, 1982.

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Jovens e adultos como sujeitos de conhecimento e aprendizagem

cações desse fato residem nas relações entre os re-sultados nos testes e os outros níveis de competên-cia observados. Dos dois sujeitos que mostraram“capacidades extras”, um teve escores altos e o ou-tro escores relativamente baixos nos testes. Os re-sultados obtidos pelos cinco sujeitos consideradosabaixo do nível básico de habilidades necessárias navida cotidiana estão dispersos ao longo de toda aextensão da distribuição de escores. Um desses ca-sos, para mencionar um exemplo, é o de uma moçaque sofria de epilepsia e não era considerada capazde desempenhar tarefas que exigissem que ela ficas-se sozinha, ou de assumir responsabilidades quecorressem o risco de não serem cumpridas por causade seus imprevisíveis acessos epiléticos. Nos testes,entretanto, ela obteve um dos escores mais altos daamostra. Nesse caso, a alta capacidade identificadapelos resultados nos testes não corresponde à com-petência em contextos da vida cotidiana.

Há ainda um outro resultado relevante no quese refere à relação entre os escores obtidos nos tes-tes e outras características dos sujeitos, que tambémlevanta um tema importante a respeito do tipo dehabilidades captadas pelos testes e indica a impor-tância de considerar a heterogeneidade entre os su-jeitos: os seis sujeitos que declararam ter aprendi-do a ler e escrever fora da escola regular obtiveramescores mais altos do que aqueles que se alfabetiza-ram na escola regular quando crianças. Esse resul-tado é intrigante, pois as relações entre os resulta-dos nos testes e outras variáveis educacionais mos-traram que exposição à escola e desempenho esco-lar foram positivamente relacionadas ao desempe-nho nos testes. Não há nenhuma razão clara, por-tanto, para que os sujeitos que aprenderam a ler eescrever fora da escola tenham tido melhor desem-penho nos testes se a educação formal for conside-rada como uma fonte de habilidades. No entanto,o desenvolvimento de tais habilidades pode ter pre-cedido a instrução formal; as habilidades medidaspelos testes poderiam já estar presentes em maiorgrau nesses seis sujeitos e ter ao mesmo tempo fa-cilitado e ter sido desenvolvidas pelo processo dealfabetização fora da escola regular. Pode haver,

também, um componente de auto-estima na auto-classificação desses indivíduos como tendo apren-dido a ler e escrever fora da escola. Isto é, sujeitoscom maior capacidade teriam mais confiança emsuas próprias habilidades, a ponto de perceberemalgumas irregularidades em sua história de passa-gem pela escola como características de seu “auto-didatismo”. É possível que sujeitos com menor ca-pacidade e com o mesmo tipo de história de esco-larização não se tenham classificado como apren-dizes de fora da escola mas, contrariamente, tenhamatribuído seu processo de aprendizagem à sua pas-sagem curta e irregular pela escola. As diferençasna autopercepção teriam, portanto, causado dife-renças nas afirmações dos sujeitos sobre o tipo dealfabetização que tiveram.

Ainda com relação ao desempenho nos testes,foi possível observar que, além de diferenças em es-cores globais, os sujeitos apresentaram diferençasem sua forma de operar para resolver os itens dostestes. Isto é, os erros cometidos pelos sujeitos nãoconstituem um conjunto homogêneo de respostassimplesmente erradas. Eles são, ao contrário, resul-tado de diferentes operações incorretas desenvol-vidas no decorrer de um processo ativo de raciocí-nio. A comparação entre os tipos de erros cometi-dos pelos sujeitos que obtiveram os escores maisaltos nos testes e aqueles dos sujeitos com escoresmais baixos demonstrou que a diferença quantita-tiva no número de itens corretos é o resultado dediferenças qualitativas nos processos de raciocíniodesenvolvidos. Os sujeitos com melhor desempenhosão aqueles mais aptos a fazer abstrações e a foca-lizar a atenção em dimensões relevantes dos elemen-tos constantes dos diversos itens, a selecionar e uti-lizar operações diferentes conforme o tipo de pro-blema a ser resolvido ao invés de repetir um únicopadrão de raciocínio e a operar com as figuras apre-sentadas nos itens dos testes como um todo ao in-vés de operar de forma unidimensional com ele-mentos isolados.

Os resultados obtidos parecem mostrar a açãosimultânea de dois aspectos complementares dascapacidades cognitivas. Por um lado, membros de

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Marta Kohl de Oliveira

diferentes grupos culturais, nascidos e educados emdeterminados contextos socioculturais e capazes deoperar cognitivamente em resposta às demandasparticulares desses contextos e de acordo com o trei-namento específico neles obtido, respondem de for-ma diferente a diferentes tarefas cognitivas. Por ou-tro lado, no interior de grupos culturais relativa-mente homogêneos, há diferenças individuais em ca-pacidades que distinguem diferentes pessoas em seumodo de responder às demandas de seu contextode vida cotidiana e de lidar com tarefas cognitivasespecíficas.

Iniciamos este ensaio apontando para a ques-tão da homogeneidade do grupo de sujeitos nor-malmente envolvidos nos programas de educaçãode jovens e adultos e de sua diferença com relaçãoa outros grupos culturais. Embora freqüentementeconstituindo dois subgrupos distintos (o de “jo-vens” e o de “adultos”), tal grupo se define comorelativamente homogêneo ao agregar membros emcondição de “não-crianças”, de excluídos da esco-la, e de pertinentes a parcelas “populares” da po-pulação (em oposição às classes médias e aos gru-pos dominantes), pouco escolarizadas e inseridas nomundo do trabalho em ocupações de baixa quali-ficação profissional e baixa remuneração. Essa no-ção de homogeneidade intra-grupo (e de hetero-geneidade inter-grupos) levou à discussão de dife-rentes abordagens em psicologia a respeito das re-lações entre cultura e funcionamento psicológico,o que conduziu, no bojo da terceira abordagem, aum questionamento da própria idéia de homoge-neidade. Embora a pertinência a determinado gru-po cultural seja, sem dúvida, uma fonte primordialpara a formação do psiquismo e, portanto, para odesenvolvimento de formas peculiares de constru-ção de conhecimento e de aprendizagem, não po-demos postular formas homogêneas de funciona-mento psicológico para os membros de um mesmogrupo, já que o desenvolvimento psicológico é, pordefinição, um processo de constante transformaçãoe de geração de singularidades.

Assim, por um lado podemos arrolar algumascaracterísticas do funcionamento cognitivo geral-

mente associadas aos jovens e adultos de que trata-mos, tais como pensamento referido ao contexto daexperiência pessoal imediata, dificuldade de opera-ção com categorias abstratas, dificuldade de utili-zação de estratégias de planejamento e controle daprópria atividade cognitiva, bem como pouca uti-lização de procedimentos metacognitivos (Oliveira,1995). Por outro lado, sabemos que nesse mesmogrupo há pessoas que não apresentam essas carac-terísticas, assim como em outros grupos culturais,com outra história de formação intelectual, há pes-soas com essas mesmas características. A escola vol-tada à educação de jovens e adultos, portanto, é aomesmo tempo um local de confronto de culturas(cujo maior efeito é, muitas vezes, uma espécie de“domesticação” dos membros dos grupos pouco ounão escolarizados, no sentido de conformá-los a umpadrão dominante de funcionamento intelectual)e, como qualquer situação de interação social, umlocal de encontro de singularidades.

MARTA KOHL DE OLIVEIRA é pedagoga, douto-ra em Psicologia Educacional pela Stanford University eprofessora na Faculdade de Educação da Universidade deSão Paulo. Tem pesquisado e escrito sobre a abordagemhistórico-cultural em psicologia e sobre as relações entreescolarização e desenvolvimento cognitivo. É autora do li-vro Vygotsky: aprendizado e desenvolvimento, um proces-

so sócio-histórico (São Paulo: Scipione, 1993) e co-organiza-dora das coletâneas Literacy in human development (Nor-wood, NJ: Ablex, 1998) e Investigações cognitivas: con-ceitos, linguagem e cultura (Porto Alegre: Artes Médicas,1999).

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