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0 ELOY BARBOSA DE ABREU A COLÔNIA CONSAGRADA: religiosidade, sociabilidade e política festiva em São Luís (séculos XVII e XVIII) São Luís 2006

ELOY BARBOSA DE ABREU · 2015. 8. 13. · ELOY BARBOSA DE ABREU A COLÔNIA CONSAGRADA: religiosidade, sociabilidade e política festiva em São Luís (séculos XVII e XVIII) Monografia

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    ELOY BARBOSA DE ABREU

    A COLÔNIA CONSAGRADA: religiosidade, sociabilidade e

    política festiva em São Luís (séculos XVII e XVIII)

    São Luís

    2006

  • 1

    ELOY BARBOSA DE ABREU

    A COLÔNIA CONSAGRADA: religiosidade, sociabilidade e

    política festiva em São Luís (séculos XVII e XVIII)

    Monografia apresentada ao Curso de História da Universidade Estadual de Maranhão – UEMA, para obtenção do grau de Licenciado em História.

    Orientador: Prof.ª Msc. Helidacy Maria Muniz Corrêa.

    São Luís

    2006

  • 2

    ELOY BARBOSA DE ABREU

    A COLÔNIA CONSAGRADA: religiosidade, sociabilidade e

    política festiva em São Luís (séculos XVII e XVIII)

    Monografia apresentada ao Curso de História da Universidade Estadual de Maranhão – UEMA, para obtenção do grau de Licenciado em História.

    Orientador: Prof a. Helidacy Maria Muniz Corrêa

    Aprovado em ___/___/____.

    BANCA EXAMINADORA

    __________________________________________________________________ Profª. Ms. Helidacy Maria Muniz Corrêa

    Orientadora

    __________________________________________________________________

    Profo. Ms. José Henrique de Paula Borralho

    __________________________________________________________________ Profo. Fábio Henrique Monteiro Silva

  • 3

    Aos meus pais, Maria e Hermano.

    Às minhas irmãs e aos meus irmãos.

    A todos os meus amigos

  • 4

    AGRADECIMENTOS

    Aos meus pais, pelo carinho, amor, dedicação e apoio durante os momentos de

    elaboração deste trabalho.

    Aos meus irmãos e minhas irmãs, Giordano, Marize, Marizeth, Maysa, Hermano,

    Marília e Marilene, pelo convívio, incentivo aos estudos e inspirações para a realização deste

    trabalho. Que legado vocês me proporcionaram. Essa é a vantagem de ser o irmão caçula.

    Aos meus sobrinhos e sobrinhas, Lucas, Marina, Danielle, Matheus, Yasmim, Gabriel,

    Giovanna e Beatriz, pelas brincadeiras e os momentos de descontração.

    À Mauro Fernando, pela maravilhosa companhia e dedicação que tem me

    proporcionado. Obrigado, seus incentivos me ajudaram demasiadamente.

    À Edyene, amiga (sobrenatural), irmã, companheira nos estudos e nos trabalhos.

    Quero abraçar e agradecer pelo convívio agradabilíssimo durante estes cinco anos. Obrigado

    pelos conselhos, pelo apoio e a pressão que me motivaram a escrever esta monografia. Sem

    você a piada não tem graça!

    À Professora Helidacy, minha orientadora, pelo exemplo de profissionalismo, pela

    orientação e incentivo à pesquisa e à escrita desta obra. Obrigado pelas oportunidades que me

    chegaram por seu intermédio.

    Aos professores Marcelo Cheche e Elizabeth Abrantes, pelas aulas maravilhosas e o

    auxílio, que me ajudaram a enfrentar as disciplinas de Estágio e o desafio de ser professor.

    Aos demais professores do curso de História, Lourdinha Lacroix, Henrique Borralho,

    Paulo Rios, Alan, Adriana Zierer, Júlia Constança, Ximendes e Fábio Monteiro, pela

    contribuição do conhecimento sobre história, que me proporcionou a formação acadêmica.

  • 5

    Aos alunos e ex-alunos do curso de História, pelo convívio durante estes cinco anos e

    apoio a esta pesquisa, especialmente a Arlindyane, que me auxiliou na pesquisa de alguns

    manuscritos.

    À Cibele, pela nobre amizade. Obrigado pelas adaptações feitas nos mapas presentes

    neste trabalho.

    À Joselma, pelo tratamento as ilustrações e arte gráfica da capa. Obrigado pela

    dedicação, carinho e amizade.

    À Elizabeth, pela companhia agradável e prestativa. Obrigado!

    Aos demais amigos que de algum modo me auxiliaram e me apoiaram pra que esta

    obra se concluísse. Especialmente, Nelma, Flávia Andresa, Elizene, Clícia, Patrícia, Carol

    Castro, Lívio Bruno, Esmênia e Sandro, Bruno Serra, Gabriela Melo, Rafael, Marilde, Nara,

    Jeane, Ritinha, Ana Lígia... Obrigado!

  • 6

    (...) Seja qual for a complexidade de uma festa religiosa, trata-se sempre de um acontecimento sagrado que teve lugar ab origine e que é, ritualmente, tornado presente. (...)

    (Mircea Eliade)

  • 7

    RESUMO

    A colonização da América Portuguesa traz em si um conjunto de sentidos que não podem ser

    como diz Alfredo Bosi, entendidos apenas como uma corrente migratória de europeus e

    africanos para o “Novo Mundo”. Para além das idéias de povoamento e exploração, o ato de

    colonizar pode ser pensado como uma resolução de carências e conflitos da Metrópole e

    também com retomada, em uma outra realidade, do domínio sobre a natureza e implantação

    do processo civilizador. Pensando a formação do Maranhão Colonial, sobretudo entre 1646 a

    1755, pela perspectiva da “dialética da colonização”, busca-se, neste trabalho, compreender a

    política empregada por Portugal na Colonização do Maranhão e a Teologia da Igreja Católica,

    tomando como objeto de pesquisa a festa de Corpus Christi, que pode ser descrita como:

    momento de afirmação da sacralização do poder real e do poder de representantes da política

    local, através do Senado da Câmara de São Luís; espaço de sociabilidade para a população e

    reafirmação a hierarquia política, social e religiosa. Através da investigação dos Termos de

    Vereações, que se encontram nos Livros Acórdãos da Câmara de São Luís, esta obra

    apresenta uma análise da configuração da Festa do Corpo de Deus como um espaço de

    representatividade simbólica.

    Palavras-chaves: Religiosidade. Festa. Representação. Sociabilidade.

  • 8

    ABSTRACT

    The colonization of Portuguese America brings in itself a set of meaning that they can’t be

    with says Alfredo Bosi, understood as only one migratory chain of Europeans and Africans

    for the “New World”. To beyond the ideas of populating and exploration. The act to

    colonize can be thought as a resolution of lacks and conflicts of the Metropolis and also with

    retaken, in one another reality of the domain on the nature and implantation of the civilize

    process. Thinking the formation of the Colonial Maranhão, over all between 1646 and 1755,

    for the perspective of the “dialectic of the colonization”, searches, in this work, to understand

    the politics used for Portugal in the Colonization of the Maranhão and the Theology of the

    Church Catholic, being taken as research object the party of Corpus Christi, that can be

    described as: moment of affirmation of the sacred of the real power and the power of

    representatives of the local politics, through the House’s Senate of São Luís; space of

    sociability for the population and reaffirmation and hierarchy politics, social and religious.

    Through the inquiry of the Terms of Vereações, that it find in Books Sentences of the House’s

    Senate of São Luís, this work presents an analysis of the configuration of the Party of the

    Body of God as space of symbolic representation.

    Key words: Religiosity. Party. Representation. Sociability.

  • 9

    LISTA DE ILUSTRAÇÕES

    Ilustração 1 Bandeira Real de D. João III – 1521..............................................

    28

    Ilustração 2

    Bandeira para a Índia e para América............................................ 28

    Ilustração 3

    Organograma demonstrativo da atuação administrativa na

    América Portuguesa.......................................................................

    34

    Ilustração 4

    Planta da cidade de São Luís de Frei João de Santa Teresa –

    1698.................................................................................................

    38

    Ilustração 5

    Brasão de Armas da cidade de São Luís......................................... 45

    Ilustração 6

    Livro de Horas do século XIV – Representação de São Jorge....... 51

    Ilustração 7

    Tipos de Bandeiras.......................................................................... 51

    Ilustração 8

    Uma procissão portuguesa do século XVIII................................... 52

  • 10

    LISTA DE TABELAS

    Tabela 1 As formas de representações sociais e religiosas na festa de Corpus Christi de 1647...........................................................................................

    48

  • 11

    SUMÁRIO

    1 INTRODUÇÃO........................................................................................................

    12

    2 CRUZES, ESPADAS, CONQUISTAS E EVANGELIZAÇÕES:........................ 20

    2.1 Construindo uma Teologia do Corpo de Cristo e uma religiosidade colonial........ 20

    3 OLHA LÁ! VEM PASSANDO A PROCISSÃO: O Corpo de Deus nas ruas..... 34

    3.1 O Senado de Câmara de São Luís e as festas......................................................... 34

    3.2 O tempo e o espaço da Festa de Corpus Christi em São Luís...............................

    36

    4 AS REPRESENTAÇÕES SIMBÓLICAS NA PROCISSÃO DE CORPUS

    CHRISTI....................................................................................................................

    43

    5 CONSIDERAÇÕES FINAIS: Propostas para uma continuidade.......................

    53

    REFERÊNCIAS........................................................................................................

    56

    ANEXOS.................................................................................................................... 64

  • 12

    1. INTRODUÇÃO

    O estudo humanístico, social, político, econômico, e ainda, religioso das

    manifestações festivas vem gerando hipóteses, teorias, conceitos, concepções e definições

    acerca do complexo objeto: festa. Gera-se, neste sentido, uma diversidade de interpretações,

    pois o que pode ser considerado festa para uns, pode não ser para outros. Ao mesmo tempo

    em que, por hora, tais produções, trazem soluções, ou aspectos, ou evidências, ou, numa

    possibilidade bem remota, soluções para as problemáticas levantadas, surgem novos

    questionamentos, o que faz da pesquisa uma prática constante, pois nunca se esgota as

    perspectivas de análise de uma determinada temática.

    Rita de Cássia Amaral (1998, pp.23-37), em sua tese de doutorado, aponta dois

    enfoques negativos sobre os escritos acerca das festas. Primeiramente, embora se tenha uma

    ampla batelada de obras sobre as festividades, para a maioria dos autores que as produzem,

    ignora-se os processos de construções dos eventos festivos e as razões para que eles

    aconteçam, adotando-se concepções a partir de situações particulares e depois generalizando-

    as. Outro fator preponderante é a rarefeita presença de reflexões teóricas sobre as festas,

    ficando-se apenas na superficialidade de suas descrições.

    No campo teórico das ciências humanas e sociais, é a partir de Jacob Burckhardt

    que “o termo festa aparece já, como categoria significativa”. Mas é com Durkheim, que os

    especialistas das ciências sociais vêm tentando amainar o caráter impreciso do vocábulo.

    Porém as conceituações dos tais cientistas são definições truncadas, porque incorporam as

    particularidades de um estudo de caso para conceituar festa (GUARINELLO, 2001, p.970). O

    próprio Durkheim a compreende como um evento exclusivamente religioso e sacramental.

    Para Freud, é um divertimento que gera momentos de descontrações e liberdade para as

    tensões reprimidas, invertendo o caráter rotineiro do cotidiano. Duvignaud a considera como

    um ato subversivo que desconfigura a ordem social e transforma-a no caos. E para Bakhtin, o

    evento festivo se apresenta como uma manifestação coletiva e popular que se caracteriza de

    forma divertida, hilariante e grotesca1.

    1 Sobre o debate, que permeou a segunda metade do século XX, acerca da festa enquanto objeto de estudo entre os cientistas sociais, confira: DURKHEIM, 1968; FREUD, 1974; DUVIGNAUD, 1991 e BAKHTIN, 1987.

  • 13

    Termo abstruso e por possuir uma ampla quantidade de situações, a festa precisa

    ser refletida no plural, preocupando-se, principalmente, com as particularidades do

    acontecimento festivo em questão e as possibilidades de interpretá-lo.

    O campo da pesquisa em História vem passando por um processo de ampliação.

    Há, hoje em dia, uma grande diversidade de objetos de estudos, que vão desde as relações

    sócio-econômicas até as representações culturais de um determinado recorte espaço-temporal;

    e também nas formas de abordagens de tais variedades de objetos, valendo-se principalmente

    não só de paradigmas da História como também, de outras ciências humanas e sociais, como

    a Antropologia, a Lingüística e a Psicologia. Nos últimos trinta anos, o olhar exclusivamente

    político ou econômico vem dividindo espaços de produções e publicações de trabalhos com

    correntes teórico-metodológicas que se caracterizam por possuírem uma perspectiva cultural

    sem determinismos, buscando um olhar historiográfico mais amplo, incluindo em uma

    pesquisa aspectos das representações de sociabilidade, dos relacionamentos políticos, das

    práticas culturais e econômicas. Atrelada a este contexto de mudanças paradigmáticas, a festa

    se constitui como objeto de estudo de recente para os historiadores.

    Sobre o aspecto das trajetórias de pesquisas acerca das festas nas ciências humanas

    e sociais, especialmente na História, no Brasil, István Jancsó e Iris Kantor (2001), divide a

    produção do conhecimento científico tendo as festas como fenômeno analisado em dois

    grandes momentos. Em primeiro lugar um grupo de trabalhos, produzidos no final do século

    XIX, que consistia em obras de memorialistas, viajantes, literatos e juristas, tratando de

    manifestações lúdicas orientadas em fundamentos ontológicos, éticos e raciais, dadas as

    necessidades de se explicar à nacionalidade brasileira sob a ótica da mestiçagem.

    Em segundo lugar, acompanhado ao movimento modernista, a institucionalização

    do ensino de ciências sociais e de contribuições de estudos de folcloristas sobre a cultura

    popular, na década de 1930, observou-se uma renovação nos estudos sobre manifestações

    festivas, produzidas nos centros universitários do Brasil.

    [...] As preocupações dos cientistas sociais centraram-se no impacto sobre as culturas tradicionais dos processos de urbanização acelerada no papel da mestiçagem, no sincretismo religioso, nos processos de aculturação e integração dos imigrantes estrangeiros à cultura local. Em relação à visão do período colonial, tais estudos tenderam a conceber o passado colonial

  • 14

    como “herança” ou “persistência” não superada no processo de modernização da sociedade brasileira após a revolução de 1930, com esta “herança colonial” explicando a persistência de certos códigos arcaicos presentes nas formas de sociabilidades marcadas na sua origem pelo escravismo. (JANCSÓ e KANTOR, 2001, p.06).

    Distanciando-se cada vez mais do caráter “pitoresco” e do “costumbrismo” do

    século XIX, os estudos sobre festas foram distinguindo-se dos trabalhos de cunho folcloristas,

    tornando-se, no final da década de 30 e início da de 40 do século XX, em produções mais

    singulares e menos generalizantes. Porém, não desmerecidos, os estudo sobre o folclore

    brasileiro, serviu de base para as produções de monografias, dissertações e teses sobre as

    manifestações festivas.

    Sobre os estudos historiográficos em relação à festa, percebe-se, ainda, a partir da

    década de 70, uma presença marcante, nos estudos brasilianistas, de concepções teóricas e

    modelos da historiografia francesa, exclusivamente da Nova História e da repriorisação a

    história acontecimental, fazendo-se uma abordagem antropológica dos fenômenos culturais e

    da politização da vida cotidiana. Sobre a atuação da Nova História, movimento que se

    desencadeou da Escola dos Annales em França, Mona Ozouf (1995, p.216), ao escrever

    sobre a Revolução Francesa, sob o viés da festa, apresenta um pouco do cenário das

    produções científicas, quando o fenômeno “festa” torna-se o centro das atenções no palco de

    objetos de estudos da História.

    Que espetáculo, atualmente, julgamos perfeito se não consegue torna-se uma festa? Que futurologia não nos promete festas? A festa invadiu o vocabulário do ensaio político, da crítica teatral, do comentário literário. [...] A história por outro lado, desde há muito tempo tem se preocupado conscientemente mais com os trabalhos e os esforços dos homens do que com os seus divertimentos ou, como se queria, com as suas diversões. Se as festas tornaram-se doravante, com pleno direito, objeto da história, deve-se isso à dupla instigação do folclore e da etnologia. Por freqüentar um e outro campo, o historiador aprendeu a levar em consideração a armadura que a ritualização dá à existência humana, mesmo que seja uma ritualização anônima, desprovida de regulamentação explícita ou de coesão coerente. Acrescenta-se que, com a psicanálise, a história aprendeu, ao mesmo tempo, o interesse que pode ter a colheita do aparentemente insignificante. (OZOUF, 1995, p.217).

  • 15

    Ozouf atenta para um desperta do s estudos sobre festa nos historiadores da década

    de setenta do século XX, e atribui esta mudança ao contato dos estudiosos da História com

    produções que versavam sobre o folclore e a etnologia. Freqüentando estes campos de

    pesquisa, foi que o historiador da Nova História aprendeu a encarar as ritualizações festivas

    como objeto de estudo, alicerçado pela teoria psicanalista, no intuito de se fazer uma história

    das mentalidades e dar sentido ao que parecia inicialmente insignificante.

    No Brasil, é também, a partir da década de setenta que se destaca uma terceira

    geração de estudos sobre festas, como sugerem István Jancsó e Iris Kantor (2001). Amparadas

    pela Sociologia, a Antropologia, a Literatura e inspirados na nova história cultural brasileira,

    tais produções tiveram um forte impacto na historiografia, principalmente já em meados dos

    anos oitenta. É nesse contexto que as últimas produções, no Brasil, sobre festas, tem sido

    escritas, dando-se preferência para o período colonial e o uso de um recorte temporal

    caracterizado pela longa duração, pelo fato de se trabalhar com documentações em série, que

    elucidam as dinâmicas das festas proporcionando a revelação de mudanças de significados e

    ações do pensar dos sujeitos envolvidos no espaço festivo.

    Pensando nestas considerações, acima apresentadas, o presente estudo, que tem

    como objeto a festa de Corpus Christi, busca compreender a construção da religiosidade,

    da sociabilidade e da política festiva na São Luís, Seiscentista e Setecentista, mais

    precisamente entre os anos de 1646 a 17922, através dos registros que trazem informações

    sobre a festa. .Ou seja, paralela a uma narrativa histórica sobre o evento já mencionado,

    preocupa fazê-la inserida num suporte teórico e contextual, no intuito de evitar o caráter de

    mera curiosidade.

    Há, neste sentido, um conjunto de escolhas e interesses, tais como, o recorte

    espaço-temporal, que privilegia a cidade de São Luís e os dois primeiros séculos de

    colonização portuguesa da cidade; as fontes primárias e os referenciais teóricos, que

    consistem na análise da documentação administrativa da Câmara de São Luís, sobretudo os

    Livros de Acórdãos, sob a ótica da História Cultural, que por hora contemplam os objetivos

    deste trabalho. A religiosidade que se refere é a que resulta de uma relação de conflitos e

    2 Este recorte temporal se dá em função da documentação, o acervo de livros manuscritos da Câmara de São Luís – principalmente os Livros de Acórdãos – que se encontravam disponíveis para manuseio e pesquisa, alguns inclusive, já transcritos.

  • 16

    coexistências entre nativos, negros e portugueses; a festa é a de Corpus Christi; o espaço é a

    cidade de São Luís e o tempo é o do início de sua construção e consolidação da colonização

    portuguesa. Tem-se, assim, um quadro em pedaços composto de festas, pessoas, ruas,

    representações simbólicas e temporalidade, que por meio da cientificidade da História,

    pretendeu-se escrever sobre o passado religioso da São Luís.

    A preocupação em se estudar a construção da religiosidade no Maranhão Colonial,

    sobretudo, especificamente, a cidade de São Luís, através da sociabilidade festiva,

    especialmente, entre os séculos XVII e XVIII, parte já desde os primeiros anos na Academia,

    quando nos deparamos com obras que versam sobre a história das religiões, na perspectiva

    das mentalidades, no Brasil e na Europa. Contribuíram também os contatos com

    manifestações religiosas do presente, sobretudo as relacionadas à religiosidade popular de

    descendências indígenas, européias e africanas, que evidenciam os processos de construções

    simbólicas das representações culturais em São Luís. Propôs-se, então, a produção de um

    conhecimento histórico do processo de formação do comportamento religioso da sociedade

    colonial da cidade de São Luís, tendo como objeto de estudo a Festa de Corpus Christi.

    Pretende-se com esta pesquisa contribuir com o estudo acerca dos primeiros

    séculos de colonização de São Luís e a temática da religiosidade e da sociabilidade festiva,

    numa perspectiva de renovação historiográfica. Neste sentido, o tema já mencionado

    anteriormente, que envolve questões do passado das construções religiosas, festivas e sociais

    de São Luís, pode oferecer interpretações que servem como explicações para as indagações

    sobre os fenômenos festivos e religiosos.

    Por meio do estudo crítico-analítico das fontes, que consistem nos Termos de

    Vereações, que se encontram, nos já mencionados, Livros de Acórdãos da Câmara de São

    Luís, desenvolve-se uma pesquisa quantitativa, com documentos em séries. As inquietações

    giram em torno das seguintes questões: se “a colonização dá um ar de recomeço e de arranque

    a culturas seculares”, então a festa político-teológica que é (re)produzida e a religiosidade que

    se impõe, durante o processo colonizador do Maranhão, possuem elementos de originalidade

    e diversificam-se das suas matrizes europeu-portuguesas? Qual o papel das representações

    simbólico-festivas para a implantação de uma colônia portuguesa na América, sobretudo no

    Maranhão?

  • 17

    A colonização da América Portuguesa traz em si um conjunto de sentidos que não

    podem ser entendidos “como apenas uma corrente migratória de europeus e africanos para o

    Novo Mundo” (BOSI, 1992, p.13). Para além das idéias de povoamento e exploração, o ato de

    colonizar pode ser pensado como uma resolução de carências e conflitos da Metrópole e

    também como retomada, em uma outra realidade, do domínio sobre a natureza e implantação

    do processo civilizador.

    Pensando a formação da São Luís Colonial, sobretudo entre 1619 a 1751, pela

    perspectiva da “dialética da colonização”, discutida por Alfredo Bosi, se busca, nesta

    pesquisa, compreender a relação entre a política empregada por Portugal na colonização do

    Maranhão e a Teologia da Igreja Católica, tomando como objeto a festa de Corpus Christi,

    que pode ser descrita como o momento de afirmação da sacralização do poder real, espaço de

    sociabilidade para a população e reafirmação da hierarquia política, social e religiosa.

    Intenta-se a utilização de uma História Cultural renovada em seus paradigmas,

    valorando a relação dialética entre a longa duração do processo de construção da religiosidade

    com o acontecimento, o evento festivo de celebração ao Corpo de Deus. “Considerando a

    história, com efeito, enquanto a convergência de documentos que permite estabelecer

    continuidades e variações” (D’ALESSIO, 1998, p.10), e que estas produções documentais

    são, sobretudo, representações. O diálogo com outras ciências humanas e sociais se fez

    necessário, no intuito de aprofundar as opiniões em relação ao ser humano e suas

    coexistências com os mundos real e imaginário. Portanto, sem deixar de lado a especificidade

    de estudo, o tempo histórico, paradigmas, da Antropologia Cultural e Religiosa, da Etnologia,

    da Sociologia e da Psicologia Social, foi fundamental para a efetivação do trabalho.

    Assim, a característica do estudo histórico no âmbito das mentalidades e da

    História Cultural situa-se “no ponto de junção do individual e do coletivo, do longo tempo e

    do cotidiano, do inconsciente e do intencional, do estrutural e do conjuntural, do marginal e

    do geral.” (LE GOFF, 1995, p.71). Interessam-me, então, nesta pesquisa, as matrizes

    religiosas que influenciaram na construção cultural do Maranhão, suas continuidades e

    rupturas, com o cuidado de analisar as circularidades culturais e as construções das tradições

    festivas e de alegorias religiosas.

  • 18

    Contudo, tal pesquisa não pôde ser realizada sem estar intimamente ligada “à

    história dos sistemas culturais, das produções de crenças, valores e equipamentos intelectuais,

    onde as culturas são construídas e transformadas” (LE GOFF, 1995, p.79). O estudo do

    período colonial de São Luís numa perspectiva cultural requer, portanto, os preceitos teóricos

    já citados anteriormente.

    Mas, partindo dos olhares que se direcionaram as fontes, quais comentários se

    pode versar com relação à festa do Corpo de Deus, na São Luís Colonial, principalmente entre

    os anos de 1646 a 17143? Aplicavam-se ao público4, ator e espectador do evento festivo,

    códigos de posturas para que não faltassem às solenidades, como descreve o termo de

    vereação feito em sete de maio de 16475, na Câmara da cidade de São Luís, onde, segundo o

    escrivão da dita Câmara, o juiz Pedro Vieira propõe que se façam posturas e assentos com

    suas devidas penalidades para aqueles que não estariam acudindo com suas obrigações as

    festas públicas.

    Partindo da teoria que define festa como “uma forma de ação coletiva”

    (GUARINELLO, 2001, p.971), observa-se a necessidade de atuação das categorias sociais, da

    época, convocadas pelo Senado da Câmara de São Luís, pois a festa era um momento de

    apresentação e reafirmação do pacto de sujeição do homem em relação a Igreja e da Colônia

    em relação a Metrópole. As representações simbólicas nas procissões de Corpus Christi e, em

    menor número de registros na documentação pesquisada, a na festa de São Sebastião, serviam

    de retóricas para a implantação dos ideais colonizadores e configuração da hierarquia social.

    Ver e fazer a festa significava ocuparem postos e exercer funções, que estavam

    intimamente ligados ao tipo de ofício desenvolvido: mecânico, ferreiro, mercante..., e ao

    segmento social pertencente, caracterizado pela cor da pele, origem familiar e função pública.

    Momento de exibição e de reunião, que põe em coexistência a diversificada população

    3 O recorte temporal que se fez entre 1646, ano do primeiro Livro de Acórdãos da Câmara de São Luís, até o ano de 1714, corresponde ao período, em que se constatou um grande volume de 4 A idéia de “público”, aqui presente, foi extraída do texto de João Adolfo Hansen, que diz: “[...] o público não pode ser entendido por meio de categorias iluministas que o definem como instância orientada pela livre-iniciativa crítica ou pela defesa da particularidade de um interesse ou de uma ideologia, que na sociedade de classes aparecem rotineiramente publicados como competição ou conflito com outros interesses e ideologias. No caso dos festejos colônias, o público não tinha autonomia crítica, ou seja, as representações dos festejos coloniais compõem a imagem da sua recepção prescritivamente, de modo que o destinatário é o testemunho da lei e da regra encenadas que reiteram sua posição subordinada. [...]” (JANCSÓ e KANTOR, 2001, p. 737), 5 SÃO LUÍS, Senado da Câmara. Termo de Assento. Escrivão: Frutuoso Paes. 07/ jul./ 1647.

  • 19

    colonial, mas que não a congrega, a festa era discursivamente construída de cima para baixo.

    Aplicada à sociedade, de modo coercitivo, através de multas e também prisões, exigia-se a

    confecção e expectação das festividades pelos oficiais, onde suas atividades apareciam

    representadas simbolicamente por meio de brasões em estandartes carregados pelos juízes de

    ofícios.

    Participar das festas públicas religiosas, que comemorava o Corpo de Deus, nos

    séculos XVII e XVIII, era cumprir ordens, livrar-se de punições e “sociabilizar-se”, segundo o

    modelo cristão obrigado pela Igreja Católica. Nesse macro-signo cabia espaço, ainda, para as

    subversões e conflitos sociais, questões que ainda merece ser discutida, pois as relações sócio-

    culturais são frutos dessas tramas e do jogo de resistência, fazendo surgir uma diversidade

    religiosa, que hoje caracteriza nosso catolicismo popular.

    Viajemos no tempo e vamos à Festa!

    São Luís, julho de 2006

    Eloy Abreu

  • 20

    2 CRUZES, ESPADAS, CONQUISTAS E EVANGELIZAÇÕES

    2.1 Construindo uma Teologia do Corpo de Cristo e uma religiosidade colonial

    Ao leitor já pode parecer claro que este trabalho objetiva discorrer sobre a festa de

    Corpus Christi em São Luís, tendo em vista o seu primeiro registro nos Livros de Acórdãos

    da Câmara, no ano de 1646, e avançando no tempo, à medida que, a garimpagem por

    informações nos manuscritos, proporcionou informações que colaboraram com a montagem

    do presente escrito. Porém, antes de se partir para a especificidade do tema, faz-se necessário

    uma apresentação e discussão do imaginário religioso europeu que antecedeu e permeou o

    período de colonização do Maranhão. Tal debate delimita-se, principalmente, no confronto de

    concepções teológicas, filosóficas e científicas, sobre o sacramento da eucaristia, prática

    devocional católica, que era valorada na festa religiosa que a homenageava – Corpus Christi.

    Longe de se cair no papel de historiador “ídolo das origens”6, mas há que se partir

    de um ponto, que consiste no surgimento da festa de Corpus Christi, no Brasil. Tratava-se,

    pois, de uma comemoração de origem européia e medieval, trazida pelos colonizadores

    lusitanos e realizada sob a organização dos Senados das Câmaras7 nas principais cidades do

    Brasil Colonial.

    No continente europeu a devoção foi instituída e promovida durante o século XIII.

    O culto a hóstia consagrada surgiu como forma de combate à heresia que negava a presença

    de Cristo no Sacramento da Eucaristia. Conhecida como o dia de Corpus Christi, a festa que

    6 Sobre a temática do ofício de historiador, confira: BLOCH, 2001. 7 “Elemento de unidade e de continuidade entre o Reino e seus domínios, pilares da sociedade colonial portuguesa nos quatro cantos do mundo, as Câmaras Municipais Ultramarinas foram igualmente órgãos fundamentais de representação dos interesses e das demandas dos colonos”. (BICALHO, 1998). “Além de suas atribuições institucionais, a Câmara colonial desempenhava uma importante função dentro da estrutura administrativa metropolitana, que era a de tornar visível e presente um rei que se encontrava em outro continente. Esta era uma questão fundamental para a estabilidade do Império Português e um dos mecanismos utilizados era um extenso programa de cerimônias litúrgicas e solenidades destinadas a festejar pomposamente a figura do rei, com as procissões institucionais como a Corpus Christi, os Te Deum Laudamus, com fogos, repiques de sinos, limpeza obrigatória de ruas e testadas, luminárias e janelas ornamentadas. Na Casa da Câmara, como local de trânsito constante dos moradores, o retrato do monarca reinante deveria estar obrigatoriamente instalado em lugar de honra e acessível aos olhares respeitosos dos súditos”. (CAMPOS, 2006)

  • 21

    teve seus primeiros registros na cidade de Leódio, também denominada de Festa do

    Santíssimo Sacramento, “era celebrada no segundo domingo após Pentecostes e foi

    oficializada pelo papa Urbano IV, em 1264 e reafirmada pelo papa Clemente V, em 1314”

    (AZEVEDO, 2002, p.448). A realização da festividade religiosa do Corpo de Deus, tinha e/ou

    ainda tem por objetivo, sob o viés teológico, festejar Jesus sacramentado, relembrando o

    relato bíblico, sobre a “última ceia”, presente nos Evangelhos do Novo Testamento8.

    A atitude ritualística e sagrada de Cristo narrada nos escritos bíblicos, tornar-se-ia,

    com a propagação do culto cristão, em um dos principais sacramentos da Igreja Católica – a

    Eucaristia. Símbolo da comunhão entre os cristãos, o Santíssimo Sacramento foi considerado

    o segundo grande cisma da cristandade, no tempo da Reforma Protestante. Como explicar, em

    plena re-efervescência da teoria do atomismo9, a transubstanciação – transformação do pão e

    do vinho em corpo e sangue de Cristo – durante o ritual da missa? Essa problemática da

    transubstanciação constituía-se na principal questão posta aos teóricos da Igreja Católica no

    século XVI. (WOORTMANN, 1997, p.85). Uma vez que a explicação do fenômeno

    transubstancial do ritual eucarístico fazia-se pela crença no poder espiritual da palavra divina.

    O atomismo, concepção que reaparece na revolução científica da modernidade

    européia, nas primeiras décadas do século XVII, era um perigo para o dogma central do

    cristianismo, segundo o jesuíta Vanni apud. Minois (1990, p.348), pois se são os átomos que

    produzem os efeitos de sensibilidade das substâncias, então na Eucaristia não há

    transubstanciação e o pão continua sendo pão. Com relação aos mistérios espirituais que

    escapavam aos sentidos, como o da Trindade, a explicação firmava-se nos argumentos

    filosóficos, porém o Santíssimo Sacramento contradizia o que era percebido pelos sentidos,

    havia, neste contexto, uma extrema necessidade em justificar sua verdade através da ciência,

    no intuito de tal mistério não se reduzir à pura magia, prática que o Catolicismo tanto

    combatia com seus tribunais da Santa Inquisição.

    Formula-se, com o tempo, mesmo anterior aos processos de readaptações

    teológicas de Lutero e Calvino, um acúmulo de dúvidas sobre a hóstia consagrada como o

    8 “[...] 26. E, quando comiam, Jesus tomou o pão e abençoando, o partiu, e o deu aos seus discípulos e disse: Tomai, comei, isto é o meu corpo [...]” (.....) 9 Doutrina de origem dos filósofos da Antiguidade Clássica Grega sustenta a idéia de ser a matéria formada de átomos que se agrupam em combinações causais e pro processos mecânicos. (HOLANDA, 1986, p.195).

  • 22

    verdadeiro Corpo de Cristo. Dentre tantos, Woortmann (1997) menciona os de Berenger, que

    no século XI argumentava ser “as aparências do pão e do vinho indissociáveis da substância;

    na melhor das hipóteses, poderia haver apenas consubstanciação – coexistência do pão e do

    corpo de Jesus Cristo após a consagração do sacerdote”.

    Já no século XIV, o autor destaca as críticas de Guilherme de Ockham10, que

    também fez oposição à física aristotélica.

    [...] Tudo que podemos conhecer são as propriedades dos objetos; não há distinção entre matéria e forma; a substância reduz-se à extensão. As qualidades, os acidentes não são uma realidade separada, mas o resultado de combinações diversas das partículas elementares da substância: a pedra é diferente do pão porque as partículas elementares da substância são agrupadas de maneiras distinta. Ora, se substância e acidentes são uma e a mesma coisa, a transubstanciação torna-se incompreensível. (OCCAM, Apud. WOORTMANN, 1997, p.86).

    A teoria de Guilherme de Occam também fundamentada no pensamento filosófico

    do atomismo deu embasamento para novas especulações acerca do mistério da consagração

    da hóstia, como a de Nicolau D’Autrecourt, que afirmava serem as qualidades das coisas

    puramente os resultados da combinação e do movimento dos átomos, substrato universal.

    Uma resposta sob a égide do pensamento católico cristão, veio com a reforma na

    ciência aristotélica. O clérigo Suarez, da Companhia de Jesus, já na segunda metade do século

    XVI, aponta à necessidade de se resolver a contradição da Eucaristia à luz da razão. A

    explicação que favorecia o ritual eucarístico encontrava-se na teoria da matéria de Aristóteles,

    tornando o milagre possível, ou seja, embora houvesse no pão uma quantidade de matéria

    suficiente para fornecer suas qualidades ou propriedades (cor, sabor, consistência...); através

    do milagre da consagração da hóstia no ritual da missa, relembrando as palavras de Cristo,

    tais qualidades ou propriedades subsistem, podendo ser o pão substituído pelo corpo de Jesus.

    Suarez acreditava nesta possibilidade de explicação do milagre do Santíssimo Sacramento,

    10 Teólogo e filósofo inglês, da ordem franciscana. Viveu entre os anos de 1285 a 1340, realizando estudos na Universidade de Oxford, que se apresentaram com uma postura nominalista. Para Ockham “o que existia no universo era apenas abstração; aos seus olhos, a metafísica era uma ciência vã; a inteligência humana não podia conceber Deus, que era totalmente livre; somente o singular se constitui enquanto real, porque oferecia matéria para o conhecimento”. Guilherme de Ockham foi condenado a morte pelo tribunal da Santa Inquisição em 1340. (PEDRERO-SÁNCHEZ, 2000, p.295).

  • 23

    porque metafisicamente podiam-se separar os acidentes das substâncias, salvando por meio da

    ciência a eficácia simbólica do ritual. (DUBOIS, 1995).

    Nos séculos XVI e XVII, a dúvida acerca da presença corpórea de Cristo na

    Eucaristia foi retomada pelo movimento de Reforma Protestante, sob o viés teológico,

    buscando a separação entre espírito e forma e recolocando a relação entre verdade e realidade.

    Para Lutero e Zwinglio havia certo dissenso sobre a verdade do símbolo da eucaristia, ou seja,

    como se dava a presença de Cristo na liturgia. Retomavam-se, assim os questionamentos de

    Occam.

    [...] O ponto de vista de Lutero distinguia-se do católico, mas retinha um componente central da concepção tradicional. A teologia católica defendia o princípio da transubstanciação, isto é, a transformação de uma substância em outra, explicando a presença real de Cristo no Sacramento da Eucaristia. Para Lutero, ao invés de transubstanciação, ocorre a consubstanciação, ou seja, a reunião de dois corpos na mesma substância, mantendo a presença de Cristo: o rito sagrado corporificava o real e verdadeiro ponto de interseção, ou consubstanciação da divindade no mundo profano; por isso, era eficaz. [...] (WOORTMANN, 1997, p.89).

    A concepção luterana optou por uma postura de meio-termo em relação ao

    mistério da hóstia, significando ao mesmo tempo o pão e o corpo de Cristo. Haveria no ritual

    uma invocação e uma reconstituição da presença de Jesus no pão.

    Se por um lado as elucubrações de Martim Lutero encontravam-se a meio-caminho

    da idéia de transubstanciação, pregada pelos clérigos, Zwinglio, por outro lado, propõe uma

    ruptura total com a concepção transubstancialista ao sugerir a abolição do sacrifício

    ritualístico. A Eucaristia, que ele interpretava “apenas como um símbolo externo da

    comunhão interna de todos os crentes em Cristo” (WOORTMANN, 1997, p.89.), passa a ser

    entendida como apenas uma rememoração da última ceia de Jesus com seus apóstolos e da

    sua morte na cruz para remissão do pecado mundial; ou seja, o pão não é o corpo de Cristo,

    mas o figura e o simboliza, significando a lembrança de sua morte física e sua ressurreição.

    A discussão teológica sobre a Eucaristia que perpassou a Idade Média e culminou

    na idéia dos reformistas, de que a eficácia da salvação encontrava-se na fé interna e não no

    ritual ou no símbolo religioso, levou a mudança nos ideais luteranos, calvinistas e católicos.

  • 24

    Na tentativa de se eliminarem transcendências e imanências medievais, buscou-se pressupor a

    possível separação entre o mundo espiritual e o material, contribuindo para a ruptura entre fé

    e conhecimento.

    [...] A Reforma desde Lutero, foi significativa por sua oposição a um sistema simbólico, cujo sentido já não era mais compreendido. Era necessário recodificar a linguagem (que inclui gestos, ritos e ícones) para restituir o sentido. O cristianismo havia construído um sistema simbólico – vale dizer, uma linguagem, - que cada gesto ou palavra em idioma ritual era capaz de produzir uma mensagem, tinha um significado. Com a perda do código, a liturgia perdeu o sentido, retendo apenas a forma [...] (WOORTMANN, 1997, p.93).

    As mudanças nos pensamentos religiosos que transitaram os séculos XV, XVI e

    XVII, foram caracterizadas pela oposição entre os sistemas de representações simbólicas do

    dogma católico, por parte das religiões resultantes dos ideais de Lutero, Calvino e Zwinglio.

    O impasse das idéias de transubstanciação e consubstanciação é apenas um exemplo do

    variado reformulamento feito pelos opositores protestantes, que se retoma neste trabalho, por

    apresentar um conflito de ordem teológica, filosófica e mesmo científica sobre o fato da hóstia

    representar ou mesmo se transformar no corpo de Jesus. Debate que adentrou o século XVII e

    que ameaçava os ideais de doutrinação das Américas, sobretudo a Portuguesa. Qual o sentido

    para Portugal de se tradicionalizar, em terras coloniais, as Festa de Corpus Christi?

    A Reforma Protestante foi um movimento de sentido religioso e doutrinário, que

    se caracterizou pelas multiplicidades de discursos por parte dos próprios integrantes da Igreja

    Católica, que intentavam suprir a necessidade imperiosa de reformá-la, sugerindo mudanças

    de acordo com aquilo que lhes favoreciam. Para as categorias sociais que se encontravam

    atreladas ao Estado, queria-se a redução do Poder Papal; para a nascente burguesia, a rejeição

    às elevadas taxas cobradas pelos serviços religiosos (batismo, casamento, missa, extrema-

    unção...); já os teólogos, intelectuais e cientistas, pretendiam a abominação de certos dogmas

    e aspectos doutrinais do culto católico – é neste contexto de conflito teológico que se insere o

    cisma da eucaristia – e por fim um quarto protesto que dizia respeito às atitudes

    desmoralizantes dos comportamentos de representantes da Igreja Católica (CHADWICK,

    1969, apud., ANDRADE, 2002, p.30).

  • 25

    Tinham-se, então, dois padrões de críticas em relação à religião católica, uma que

    estava direcionada as práticas e ações devocionais, administrativas e de condutas do clero; e

    uma outra que correspondia a questões teológicas e concepções que fundamentalizavam a

    religião. Inquietações que se fizeram presentes no contexto religioso já desde o século XIV,

    intensificando-se no Quinhentismo, com o aumento do Poder do Rei sobre os seus impérios,

    ficando a Igreja cada vez mais arraigada ao Estado.

    No que tange ao movimento Contra-reformista, este atuou como uma reação às

    criticas ao catolicismo, Maristela Andrade (2002, p.31), aponta o surgimento de dois grupos

    opostos dentro do mesmo movimento, os que se aproximaram das propostas dos reformistas

    protestantes, e os que repudiaram os ideais protestantistas.

    O movimento da Contra-Reforma envolveu a perspectiva de realização de reformas por iniciativa da própria Igreja, em razão do reconhecimento por parte dos seus representantes da necessidade delas [...]. A forma mais explícita de manter a diferença perante os protestantes era através do incentivo às práticas devocionais medievais, especialmente o culto a Virgem Maria, em que a fé católica assumiria um aspecto ostensivo exterior. Daí as raízes do catolicismo brasileiro não serem propriamente medievais, como tantos afirmaram, mas uma forma de revivalismo medieval adotado pela Contra-Reforma, ou seja, eram práticas que se inseriam em um outro contexto histórico com propósitos específicos [...] (ANDRADE, 2002, p.32).

    A ritualística católica medieval foi revisitada no intuito de revalorar atitudes

    devocionais posta em desmerecimento pelos protestantes, principalmente em terras coloniais.

    O teatro, que pregava o Auto Religioso, os sermões e o imaginário religioso presente em

    documentações burocráticas da Coroa portuguesa e do Brasil colonial, demonstram o

    atrelamento da Igreja com a Monarquia portuguesa e os mecanismos estilísticos e alegóricos

    utilizados pela aquela instituição para efetivar o doutrinamento de nativos, colonos e

    africanos, no intuito de aumentar o número de fies ao culto católico.

    Tornava-se, conforme o Estado Nacional Português se absolutizava, mais intenso o

    envolvimento da Monarquia nas “coisas” da Igreja, característica que emergiu a partir do

  • 26

    Edito de Milão11 no século IV e culminou na institucionalização do Padroado Régio,

    singularidade de Portugal e Espanha, (que perpetuou entre os séculos XV ao XVII), onde o

    Estado encontrava-se sobreposto as estruturas eclesiásticas. Neste sentido a presença de

    ordens religiosas da Igreja Católica no processo colonizador do Brasil atuou como força

    auxiliadora no processo de expansão, domínio e doutrinamento em terras de além mares

    portugueses.

    Seria a imposição das festas religiosas sob o viés da cultura portuguesa, também,

    uma estratégia de domínio e uma tentativa da teologia católica de recodificar a linguagem do

    ritual litúrgico, reavivando o sentido teatralizante de suas festividades e intensificando o uso

    de alegorias12 nos seus discursos evangelizadores e catequistas, – representados no modelo

    sacramental do sermão. Pode-se dizer que sim, partindo da concepção de Bosi (1992, p.12),

    que entende o processo de colonização das Américas como palco principal para estas re-

    significações, ao passo que “a colonização dá um ar de recomeço e arranque as culturas

    seculares”.

    A presença, nas Américas13, de representantes das nações européias, que se

    lançaram nas navegações pelo Oceano Atlântico (Espanha, Portugal, França, Inglaterra e

    Holanda), está marcada por um envolvimento religioso em tais expedições e iniciativas

    colonizadoras, expressas nos vestígios que se mantiveram com o tempo. No caso dos projetos

    hispânico e lusitano as expansões territoriais identificavam-se com um conceito teológico de

    propagação da fé cristã católica. A mentalidade de “escolha divina” fazia parte da concepção

    religiosa da Península Ibérica, difundindo-se um imaginário de entidades celestiais (santos,

    apóstolos, anjos...) responsáveis pela proteção do mundo. 11 Decretado em 313, consistia num conjunto de regulamentações religiosas do Império Romano resultante das reuniões entre Constantino e Licínio, acordando o princípio de liberdade religiosa a todos. Após ter vencido Majêncio na batalha de Ponte Mílvio, Constantino, Imperador de Roma, no século IV, reconheceu o Deus dos cristãos e lhes rendeu adoração, atitude que ficou conhecida como “a conversão de Constantino”. 12 Entende-se por alegoria como uma espécie de linguagem que expõe o pensamento por uma forma figurada. “Definida assim, a alegoria explica uma idéia por intermédio de imagens. Na história do Cristianismo e, de modo geral, em quase todas as religiões, a alegoria ocupa lugar importante. Na Bíblia, esse método expositivo é frequentemente empregado; em Alexandria, cidade egípcia, a alegoria era comum nos textos – e no falar – de seus teólogos. Na cultura grega, em particular, ganhou destaque ainda maior com os pensadores, numa época em que passaram a empregá-la nas narrativas de caráter mitológico. Nos poemas homéricos, principalmente – e posteriormente recolhida pelos judeus, que a transpuseram para a Bíblia – esse tipo de exposição foi utilizado amiúde. Inúmeras parábolas são encontradas no Novo Testamento”. (AZEVEDO, 2002, p.28). Para BURKE (1994, pp.39 e 40), a alegoria se constituía como uma linguagem bastante conhecida do século XVII, pelo menos entre as elites, representando geralmente deuses, deusas e heróis clássicos que estavam associados a questões da moralidade humana, porém nem sempre eram facilmente codificadas. 13 Veja os mapas do anexos A e B, nas páginas 65 e 66, respectivamente, que são representativos da presença portuguesa e espanhola na América do Sul.

  • 27

    Em carta intitulada “Cartas a los Reyes Católicos”, Cristóvão Colombo, inicia seus

    relatos acerca de sua viagem de Sanlúcar de Barrameda rumo ao Sul, com a seguinte frase:

    “Partí em nombre de la Santíssima Trindade el miércoles 30 de mayo de 1498 [...]”. Mais

    adiante, em outros trechos do referido documento, observa-se os constantes agradecimentos

    de Colombo a Deus e a Nossa Senhora pelas boas condições do mar e do vento favorável,

    fazendo com que chegassem aos arquipélagos da América Central.

    Os relatos de Colombo dão visibilidade para o aspecto de união entre conquistas

    políticas e promoção da fé cristã que fazia parte do discurso teológico ibérico. Perspectiva

    também assumida por Portugal, que delegava a si a incumbência de propagação do culto

    cristão católico, identificando o reinado terreno do monarca português ao reinado de Deus,

    justificando sob o ponto de vista teológico a colonização, como sugerem Azzi (2004, p.40) e

    Bosi (1992, p.15), respectivamente.

    [...] Essa mesma perspectiva teológica é assumida em Portugal. À medida que o reino lusitano era identificado com o reino de Deus, a conseqüência lógica era que a dilatação desse reinado espiritual ficasse condicionada à própria expansão lusitana. Os aspectos religiosos, políticos e econômicos estavam interligados na realidade político-espiritual da Cristandade. O enfoque da dilatação da fé constitui, portanto, outro componente importante da teologia católica luso-brasileira, merecendo uma análise mais detalhada. A dilatação da fé está, aliás, vinculada diretamente à idéia de fronteiras da Cristandade. A teologia da Cristandade era complementada pela elaboração teológica sobre a Conquista lusitana [...]. [...] As motivações expressas dos colonizadores portugueses nas Américas, na Ásia e na África inspiram-se no projeto de dilatar a Fé ao lado de dilatar o Império, de camoniana memória. E os puritanos que aportaram às praias da Nova Inglaterra também declararam: to perform the ways of God14 [...].

    A mentalidade religiosa portuguesa de “conquista e reconquista cristã”, já se fazia

    presente em Portugal, desde o século XII, no projeto de expansão do Cristianismo e negação

    da legitimidade sacramental de qualquer “alteridade, fosse ela representadas por árabes,

    judeus e, posteriormente, por africanos, indígenas e asiáticos” (ANDRADE, 2004, p.94). O

    14 Representar o caminho de Deus.

  • 28

    processo de colonização se alicerçou em duas pilastras de forças institucionais: a Igreja

    Católica e o Estado Português. A Cruz de Cristo funcionou como um elemento simbolizador

    desta aliança. Analisando as modificações nas Bandeiras Reis dos séculos XVI e XVII,

    observam-se como os símbolos religiosos foram parecendo nas representações político-sociais

    de Portugal, fazendo-se uso do discurso de necessidade civilizatória-evangelizadora dos

    nativos, legitimando a conquista.

    Ilustração 1: Bandeira Real de D. João III, 1521. Fonte: BRASÍLIA, 1993, p.32

    Ilustração 2: Bandeira para a Índia e para a América. Fonte: BRASÍLIA, 1993, p.33

    Na ilustração 1, aparece somente o Brasão de Armas de Portugal, abaixo de uma

    Coroa Real. A ilustração 2, utilizada em terás asiáticas e americanas, observa-se três formas

    de domínio, sobre tais terras: o político, representado pelo mesmo Brasão de Armas de

    Portugal, agora subeposto a uma Coroa Imperial; o econômico figurado pela a esfera armilar,

    que representava o comércio entre Brasil e Portugal15; e o religioso simbolizado na figura de

    um clérigo jesuíta, que exibe uma cruz, na extremidade direita da bandeira.

    15 Este emblema heráldico foi atribuído à colônia em decorrência da elevação do Brasil a categoria de principado, em 1645, por D. João IV. (

  • 29

    Neste sentido, entendendo a colonização sob a perspectiva alfrediana, que a

    considera como uma ação que envolve atitudes de ocupação, dominação, exploração e

    submissão de povos e da natureza, a religiosidade do colonizador, re-atualizada das suas

    raízes, afirma-se também como um aspecto universal, primordial e preponderante da

    humanidade, paralelamente as ações de sobrevivência e as relações políticas e/ou econômicas

    resultantes da ação predatória de exploração dos recursos naturais que “nova terra” lhes

    oferece. Se antes navegar foi preciso, habitar e cultivar a terra fazia-se necessário para

    manutenção do processo de colonização do Brasil.

    Além dos agentes físicos de operações econômicas, estão incluídas no processo as

    crenças, inseridas numa cultura religiosa que é re-significada, re-elaborada e hibridizada para

    dar espaço a uma política de doutrinação católica e conversão dos nativos. Das diversificadas

    ordens religiosas que participaram na ação colonizadora portuguesa do Brasil, a Companhia

    de Jesus destacou-se por institucionalizar a língua Tupi como língua geral buscando o

    rompimento da barreira da linguagem para maiores e melhores resultados nos trabalhos

    missionários de catequização indígena. Os autos religiosos e as procissões em dias de

    comemorações serviam como instrumento de exaltação da doutrina católica cristã e

    condenações das práticas religiosas das nações indígenas que tiveram contatos. Sob a

    perspectiva dicotômica maniqueísta da luta do bem (a fé cristã) contra o mal (crenças dos

    nativos), o teatro anchietano ao mesmo tempo em que condena dá visibilidade às culturas

    religiosas não cristãs e possibilita a resistência dos nativos por meio do sincretismo religioso.

    No Auto Religioso que foi apresentado na Festa de São Lourenço em um

    acampamento missionário no Rio de Janeiro, Anchieta (1973) apresenta como personagens

    três diabos que querem destruir a aldeia com pecados, aos quais resistem São Lourenço, São

    Sebastião e o Anjo da Guarda, livrando a aldeia e prendendo os tentadores que se chamavam:

    Guaixará, que era o rei, Aimbirê e Saravaia, seus criados. A fala de Guaixará, chefe e

    guardião da aldeia, antes da presença dos padres da Companhia de Jesus, condenam a virtude

    e os hábitos polidos dos estrangeiros.

    Esta virtude estrangeira Me irrita sobremaneira. Quem a teria trazido,

  • 30

    com seus hábitos polidos estragando a terra inteira? Só eu permaneço nesta aldeia como chefe guardião. Minha lei é a inspiração que lhe dou, daqui vou longe visitar outro torrão. Quem é forte como eu? Como eu, conceituado? Sou diabo bem assado. A fama me precedeu; Guaixará sou chamado. (ANCHIETA, 1973, p.4).

    O sistema de viver bem de Guaixará prezava pela não abolição e não

    constrangimento do prazer. Em versos cantados a encenação religiosa dos jesuítas vai

    delegando ao demônio atitudes da cultura nativa, como: beber cauim, se embriagar, lutar,

    bailar, adornar-se, andar pintado, tingir as pernas, empinado fumar e curandeirar e pintar-se de

    preto. Condena ainda o amancebamento, o canibalismo e a espionagem.

    No drama religioso de José de Anchieta a salvação e a libertação da aldeia

    encontravam-se na presença dos padres que ameaçavam as práticas demoníacas e infligiam a

    Lei Divina, que para os colonizadores encontrava-se na religião católica.

    QUINTO ATO Dança de doze meninos, que se fez na procissão de São Lourenço. 1º) Aqui estamos jubilosos tua festa celebrando. Por teus rogos desejando Deus nos faça venturosos nosso coração guardando. 2º) Nós confiamos em ti Lourenço santificado, que nos guardes preservados dos inimigos aqui Dos vícios já desligados nos pajés não crendo mais, em suas danças rituais, nem seus mágicos cuidados.

  • 31

    3º) Como tu, que a confiança em Deus tão bem resguardaste, que o dom de Jesus nos baste, pai da suprema esperança. 4º) Pleno do divino amor foi teu coração outrora. Zela pois por nós agora! Amemos nosso Criador, pai nosso de cada hora! (ANCHIETA, 1973, p.42).

    No último ato, no qual dançam doze meninos índios, o auto propõe o modelo de

    festa religiosa que se deve celebrar, a negação das manifestações religiosas dos nativos e

    aceitação de uma educação centrada na catequese dos padres da Companhia de Jesus,

    instaurando na colônia uma teologia da conquista e dominação das nações nativas, onde sobre

    o pretexto de tornar a alma escrava do Senhor, torna-se o índio escravo de colonos e jesuítas.

    A necessidade de uma religião institucionalizada, imposta pelo colonizador

    português e confrontada a outras práticas de culto e manifestações do sagrado, favoreceu o

    surgimento de um catolicismo menos ortodoxo, com a participação ativa de leigos ou beatos,

    que investiam principalmente na criação de eventos festivos, onde as representatividades

    governativas da metrópole e da colônia obrigavam a participação da população em tais

    manifestações festivas. Distanciando-se cada vez mais do catolicismo oficial, a religiosidade

    no Maranhão Colonial se constituiu por meio da dicotomia permitido/proibido, marcada por

    um processo de implantação da doutrina católica (obrigatória e oficial) em detrimento da

    tentativa de eliminação das religiosidades africanas e indígenas (considerada pelos

    administradores coloniais como ridicularias).

    Percebe-se, então, a presença de três aspectos importantes para a formação

    religiosa no Maranhão Colonial: a herança de crenças milenares, onde o sagrado e o

    misterioso se inserem no cotidiano do crente e orientam a vida prática; a religiosidade

    ontocrática, onde o religioso baseia-se no recurso intermediário mais próximo e sensível, para

    estabelecer um contato com o sobrenatural ou o divino, podendo ser personificados ou

    simbolizados; e a ausência ou presença irregular do padre, de modo que as práticas constantes

  • 32

    da religiosidade popular prescindiam do mesmo, sendo o padre substituído pelos leigos

    consagrados.

    No Maranhão a preocupação em se implantar uma religiosidade católica, está

    presente desde as primeiras tentativas de exploração do litoral norte do Brasil. A presença de

    franceses na Ilha de São Luís é marcada por um ritual religioso que pode ser descrito, com

    base nos relatos dos missionários padres capuchinhos, como uma missa seguida de procissão

    e fincamento de uma cruz na terra, acompanhada pela presença dos nativos.

    [...] Depois dos franceses, foi a cruz adorada pelos índios, um após outros, com modéstia e reverência sem igual. Adoraram-na primeiro os principais com particular devoção, como exemplo dado a todos os índios. [...] Seguiram-se depois os velhos e pessoas antigas, e afinal todos os índios presentes com ordem, sem confusão, uns após outros, e de mãos postas, ajoelharam-se perante a cruz, como nos viram fazer, adoravam-na, beijavam-na com todo o respeito, humildade e devoção, como se fossem em toda a sua vida educados pelo Cristianismo. [...] Erguendo a cruz, como já contei, foi benzida a ilha ao som de muitos tiros de artilharia do Forte e de nossos navios, em sinal de regozijo. (D’ABBEVILLE, 2002, p. 103).

    A narrativa de Abbeville, que alguns dos intelectuais maranhenses do final do

    século XIX interpretaram-na como relatos que atestam a fundação da cidade de São Luís por

    franceses, é considerada pela historiografia maranhense recente como apenas a descrição de

    um ritual de posse da terra à francesa. Apesar das merecidas críticas feita a obra de Abbeville,

    ela serve-me para ilustrar o imaginário religioso católico, ou ao menos o ideal de religião que

    se quer evidenciar, das nações do Velho Mundo que se lançaram no processo de colonização

    do Maranhão.

    Omite-se qualquer vestígio de resistência indígena ao contato com os franceses, e

    o cristianismo e suas formas de representações tornam-se fatores de supremacia para a suposta

    cordialidade entre ambos. Ou seja, o estranhamento e o confronto, comum a qualquer situação

    de contato entre alteridades, são amenizados pela presença da cruz; atribuindo-se aos índios

    atitudes e qualidades de cristãos. A doutrina religiosa cristã torna-se o instrumento pelo qual a

  • 33

    colonização é possível, pois esta, aos olhos dos colonizadores, civiliza os nativos que são

    considerados selvagens porque não conhecem a “verdadeira” religião.

    A Igreja Católica através de um discurso evangelizador reafirmou sua relação

    com o Estado Absolutista ao assegurar sua presença no pleito de disputa pelas regiões das

    Américas, sobretudo a região norte do Brasil. A colonização do Maranhão, que abrangia as

    regiões que hoje correspondem aos estados do Amazonas, Pará, Maranhão e Piauí, e

    consequentemente a construção da cidade de São Luís pelos portugueses, também se

    configurou por meio da aliança Estado e Religião. As festividades de Corpus Christi em São

    Luís, que se realizaram nos dois primeiros séculos de colonização da cidade, inserem-se neste

    contexto. Passemos a analisá-las

  • 34

    3 “OLHA LÁ! VEM PASSANDO A PROCISSÃO”: O Corpo de Deus nas ruas

    3.1 O Senado da Câmara de São Luís e as festas

    De modo geral as estruturas administrativas instaladas nas terras coloniais da

    América Portuguesa estão recheadas de modificações e amoldamentos das instituições de

    governo para cada região e período, que se pretende pesquisar. Paiva (2001, p.27), em artigo

    sobre o imaginário brasileiro acerca da colonização, apresenta um organograma, que diz ser

    simplificado e incompleto, mas que serve para compreender a gerência colonial no Brasil.

    Transcrito, aqui, na ilustração abaixo.

    ADMINISTRAÇÃO PORTUGUESA NO BRASIL COLÔNIA

    COROA

    CONSELHO ULTRAMARINO

    GOVERNADORIA GERAL

    TRIBUNAL DA RELAÇÃO

    COLÔNIA

    ↓ GOVERNO DAS

    CAPITANIAS ↓

    CAPITANIAS ↓

    OUVIDOURIAS ↓

    COMARCAS ↓

    SENADOS DA CÂMARA

    VILAS E CIDADES ↓

    CURATOS

    TERMOS FREGUEZIAS ↓

    BAIRROS PARÓQUIAS Ilustração 3: Organograma demonstrativo da atuação administrativa na América Portuguesa. Fonte: PAIVA, 2001, p.27.

  • 35

    Das instâncias políticas apresentadas no organograma acima, chamamos atenção

    para o Senado da Câmara, composto por Juizes, Vereadores, Procurador e Oficiais; e ainda, as

    Freguesias e Paróquias, por se constituírem enquanto instituições políticas e eclesiásticas,

    respectivamente, estando às mesmas diretamente ligadas a realização da Festa de Corpus

    Christi. A Câmara de São Luís foi criada durante o ano de 1619, tendo Simão Estácio da

    Silveira como seu primeiro juiz. João Francisco Lisboa (s/d., p.45), ao escrever sobre aspectos

    políticos de São Luís no período colonial, afirmou ser a “expansão da municipalidade” um

    fenômeno extraordinário expresso no poder político do Senado da Câmara, representado pelos

    “nobres”, sobre a cidade. Sob o seu regimento legislativo controladorista estavam à taxação

    do preço ao trabalho indígena, e outros trabalhadores livres; aos produtos manufatureiros dos

    oficiais mecânicos, tais como, a carne, o sal, a farinha, a aguardente, o pano e o fio de

    algodão, os medicamentos e, também as manufaturas que chegavam de Portugal.

    A promoção, o controle e a proibição de festas religiosas solenes ou populares

    competiam, também, a Câmara de São Luís. Tais atribuições se faziam pela via coercitiva do

    jogo político-legislativo de permissões e proibições. Das festas consideradas oficiais e

    realizadas pela Câmara, Lisboa destaca, além da procissão de Corpus Christi, as festas de São

    Sebastião, a do Anjo Custódio, a de Nossa Senhora da Vitória e a da restauração de Portugal

    em homenagem a D. João VI. Festividades “públicas ordinárias e regulares” eram compostas

    principalmente por missas cantadas e sermões, sendo a procissão uma peculiaridade da

    festividade corpo-cristiana.

    Ao mesmo tempo em que tais festividades legitimavam a hierarquia social e a

    cultura branco-européia; aos nativos e, posteriormente aos negros, a ação repressora era

    intensificada, restringindo ou proibindo suas práticas festivo-culturais. “Em vereação de 3 de

    novembro de 1686 deliberou-se que ninguém consentisse em seus quintais poracês16 do

    gentio da terra, e bailes de tapanhunos, salvo em tempo de festa e de dia” (LISBOA, s/d.,

    p.203). Existia, nesse sentido, uma cultura de matriz portuguesa, legitimada por meio da

    imposição e, do lado oposto, uma alteridade, inicialmente indígena e depois, também, negra

    que se intentava exterminar, mas que a ação repressora da magnificência política não deu

    conta, dada às estratégias sincréticas de salvaguarda das culturas indígenas e africanas, por

    parte dos agentes que as (re)produziam ou hibridizavam-nas.

    16 Termo de origem, que Tupi significa dança religiosa, dos índios ao som do maracá, do tambor e da flauta, acompanhadas de bebidas e tabacos (HOLANDA, 1986, p.1366).

  • 36

    3.2 O tempo e o espaço da Festa de Corpus Christi em São Luís

    A idéia de tempo e espaço são construções que divergem de uma sociedade para

    outra e que requerem a necessidade de “um situar-se” para que se possa vê-los e senti-los.

    Para Cardoso (2006, p.1) é possível que a concepção de espaço tenha surgido nas sociedades

    antigas primeiro que a de tempo, sobrepondo-se sobre esta última, ou seja, referia-se ao tempo

    partindo-se de uma noção espacial, onde algumas palavras (longo, curto, trás, frente, perto,

    distante...) que possuíam e/ou ainda possuem um significado relacionado ao espaço serviam

    para adjetivarem o tempo.

    Não se pretende, aqui, entrar numa discussão filosófica sobre as categorias tempo e

    espaço, mas parte-se das relações de sentidos entre ambas para se tratar da Festa de Corpus

    Christi, na cidade de São Luís, entre os séculos XVII e XVIII, sob a perspectiva das suas

    dimensões espaciais e temporais. A rua era por excelência o palco da festa corpo-cristiana, o

    espaço que ela percorria influenciava diretamente na sua duração. Composta por variados

    momentos e eventualidades, missa cantada, sermão, danças e procissão, as celebrações em

    solenidade ao Santíssimo Sacramento constituíam-se em acontecimentos cíclicos anuais,

    geralmente realizados nos meses de maio ou junho.

    O Estado Colonial do Maranhão e Grão-Pará, instituído em virtude da necessidade

    de se intensificarem as ações colonizadoras na região norte da América Portuguesa,

    estabeleceu-se pela Carta Régia de 13 de junho de 162117, compreendendo uma vasta

    expansão territorial18. Inicialmente teve a cidade de São Luís como capital até o ano de

    175319, porém Antônia Mota, em artigo sobre a temática das fortunas de famílias maranhenses

    no período colonial, aponta data divergente sobre a mudança de capital do Estado.

    [...] A imensa área abrangida pelo Estado foi sucessivas vezes delimitada obedecendo aos interesses colonizadores da coroa. A partir de setembro de 1751, com a redefinição de novas estratégias de defesa e colonização para

    17 C.f. MOTA, 2001. 18 Simão Estácio da Silveira (2001, p.38), em sua Relação sumária das cousas do Maranhão, publicado em 1624, relata, ao descrever o Maranhão, suas terras e seus rios, que “o sítio do Maranhão é uma baía que olha para o Norte, e terá como quarenta e duas léguas da ponta do Periá até a ponta do Cumã”, contendo esta área uma quantidade aproximada de vinte ilhas e ilhéus. 19 C.f. MEIRELES, 2001, p.71.

  • 37

    a região amazônica a capital passa a ser em Belém e o Estado passa a [ser chamado de] Grão-Pará e Maranhão. (MOTA, 2004, pp.51 e 52).

    Observa-se que a concepção de delimitação do espaço do Estado do Maranhão no

    século XVII foi bastante maleável, obedeceu a critérios de interesses luso-colonizadores na

    tentativa de solucionar problemas com relação aos avanços nas ocupações territoriais da

    região amazônica.

    A ocupação do ambiente da cidade de São Luís pelos colonos portugueses se

    estabeleceu desde o início do século XVII, intensificando-se à medida que a implantação do

    sistema agro-exportador, centrado no modelo de criação de engenhos de produção do açúcar,

    ampliava-se. A Carta Régia de 18 de junho de 1647 do Conselho Ultramarino, enviada ao rei

    D. João IV, disserta sobre a necessidade de se enviar, para a Capitania do Maranhão, cerca de

    cinqüenta casais da ilha de Santa Maria e São Miguel (AHU – ACL – CU - 009, Caixa: 02,

    Doc. 00215). Só em 1649, uma nova correspondência à D. João IV comunica sobre a chegada

    dos ditos cinqüenta casais ao Maranhão, mandados pelo Dr. Antônio de Albuquerque Coelho

    de Carvalho (AHU – ACL – CU - 009, Caixa: 03, Doc. 00278).

    O perfil urbano da São Luís Seis-Setecentista foi construído paralelo e

    condicionado ao movimento de povoamento da cidade. Em 1624 a área citadina correspondia

    a “vinte e duas léguas de [comprimento] e sete de [largura]” (SIVEIRA, 2001, p.38). Sua

    ocupação se fez no sentido de fora pra dentro, partindo do litoral para as regiões mais internas

    da ilha, cercadas palas fortificações de São Felipe, São Francisco (envoltos no mapa da

    ilustração 3 por círculos verdes), Itaparí e São José, que não aparecem no mapa abaixo. A

    planta da cidade feita por ocasião da invasão holandesa na região, entre a década de quarenta

    do século XVII20, representa além do projeto pelo qual foi construída a cidade, em formato

    ortogonal, onde as ruas teriam anchos estáveis e orientações conforme os pontos cardeais, a

    ampliação do setor urbano da região.

    20 Esta planta corresponde ao ano de 1641, foi copiada e publicada pelo Frei João José de Santa Thereza em 1698. Veja o mapa no anexo 08 desta obra.

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    1

    Ilustração 4: Planta da cidade de São Luís de Frei João de Santa Thereza, 1698. Fonte: MOURA, 1943 apud PALHANO, 1988, p. 271.

    Com a efetivação do processo de colonização do Maranhão liderada pelo Capitão-

    mor Jerônimo de Albuquerque, nos primeiros decênios Setecentista, foi providenciado o

    arruamento da cidade de São Luís, seguindo-se o projeto do Engenheiro-mor Frias de

    Mesquita. “No século XVII, São Luís contava com três estruturas urbanas: a cidade entre os

    muros construídos, pelo então Governador Bento Maciel parente (1638 – 1641), que ia da

    [atual] Avenida Pedro II até a Praça Benedito Leite; uma área pouco povoada por trás do atual

    Largo do Carmo; e as imediações do bairro do Desterro, um núcleo urbano mais adensado

    com uma população que se estendia até o Portinho, seguindo a margem do rio Bacanga,

    limitando-se a Rua Afonso Pena” (SÃO LUÍS, 2005, pp.22 e 23).

    LEGENDA Instituições religiosas 1 Igreja de Nossa Senhora da Vitória 2 Colégio dos Padres jesuítas 3 Igreja de São Jorge Percurso da Procissão de Corpus Christi 4 Igreja de Nossa Senhora do Carmo 5 Igreja de São João 6 Convento de São Francisco Fortalezas

  • 39

    No mapa acima, observa-se, ainda, que o controle religioso católico sob o espaço

    da nascente cidade de São Luís se fazia presente concomitantemente ao aumento das áreas de

    povoação do sítio urbano. As construções de capelas, ermidas, igrejas, conventos e catedral se

    fizeram atreladas às instalações de Ordens Religiosas Católicas na cidade, sob o aval do poder

    régio e municipal. “Entre 1616 a 1658, época em que a população total de São Luis era

    estimada em apenas 600 habitantes, já havia se estabelecido na cidade as quatro grandes

    Ordens Religiosas encarregadas da pacificação dos indígenas. Cronologicamente as Ordens

    eram: 1) os Capuchos Franciscanos e os Carmelitas, que foram os primeiros missionários

    portugueses no Estado, que chegaram em 1614 na expedição de Jerônimo de Albuquerque,

    que expulsou os franceses da Ilha; 2) os jesuítas, presentes na região já desde 1618 e em 3) os

    Mercedários, que entre 1654 a 1658 construíram em São Luís e em Alcântara uma igreja e um

    convento” (IPHAN/3ªSR, 2000, p.15).

    A preocupação com o aparato religioso e a construção de uma igreja católica que o

    representa-se esteve presente desde os primeiros anos da consolidação de um núcleo urbano

    colonial na Ilha de São Luís, intensificando-se com o tempo. Em uma carta, de 1 de janeiro de

    1624, assinada por Baltazar João Carneiro para o Governador do Maranhão, Francisco Coelho

    de Carvalho, encontram-se informações sobre a necessidade de se providenciar a construção

    de uma Igreja Matriz na cidade (AHU – ACL – CU – 009, Caixa: 01, Doc.: 0071).

    A dimensão da religião católica em São Luís se perpetuou de forma processual e

    construtiva. Superada a necessidade se erguer em terras ludovicense, a preocupação girou em

    torno dos utensílios religiosos utilizados nos rituais da liturgia católica. No comunicado do

    Conselho Ultramarino de 30 de Outubro de 1649, ao rei D. João IV, apresentou-se um pedido

    do Padre Valentim do Amaral, vigário da Igreja de São Luís no Maranhão, de uma ajuda de

    custo e o envio de instrumentos religiosos: ostensório, resplendor, cálice, custódia e âmbula.

    (AHU – ACL – CU – 009, Caixa: 03, Doc.: 00281).

    No que concerne à relação do espaço citadino com a festa do Corpo de Deus,

    primeiramente a preocupação da política festiva do Senado da Câmara de São Luís se

    consistia na abrangência da área cujos habitantes deveriam estar envolvidos na realização e

    assistência das festas públicas promovidas pelos funcionários da dita câmara. Em vereação

    feita no dia sete de junho de 1647, em que estiveram presentes o juiz Pedro Vieira, os

    vereadores (Manoel Nunes de Melo e Manoel de Carvalho), o procurador do Conselho João

  • 40

    Francisco e os homens bons do povo (o Sargento-mor Agostinho Correia, Luís Domingues e

    Francisco Alves Brito), através de posturas, criadas para sanar a ausência dos cidadãos nas

    festas públicas, demarcou-se a área e as “qualidades sociais” que estariam, daquele dia em

    diante, envolvidas nas festas promovidas pela Câmara.

    [...] Nesta cidade de São Luís do Maranhão, nas casas da Câmara, estando os oficiais dela juntos juízes e vereadores e o procurador do conselho [...]. Acordamos e mandamos que todo cidadão desta cidade de São Luís de qualquer qualidade que seja que a Câmara celebre festas e procissões, estando residente na cidade ou duas léguas ao redor, não acudir as ditas festas e procissões para [acompanhá-los] nos postos que lhes forem ordenados pague mil réis de pena as obras do conselho. [...] Acordamos e mandamos que todo o mercador vizinho desta cidade acuda pela sobredita maneira as ditas procissões e festas com suas folhas sob pena de dois cruzados para as obras do Conselho e da Câmara [...] (SÃO LUÍS. Senado da Câmara. Livro de Acórdão de 1647, p.22).

    A obrigação de assistir à festa rompia coma às barreiras do espaço urbano e das

    categorias sociais. A atuação na festividade deveria envolver a todos os cidadãos,

    independente de suas qualidades, de uma área que compreendia além do perímetro urbano,

    um em torno de duas léguas e, ainda, as cidades vizinhas.

    Não se pode localizar com precisão qual era o percurso oficial da procissão de

    Corpus Christi em São Luís, mas as pesquisas nos documentos referentes à festividade que

    contêm registros e informações, possibilitam uma aproximação em relação ao trajeto que o

    cortejo fazia nos dias de festas. Azzi (2005, p.274), relata acerca da tentativa do Bispo do

    Maranhão, D. Frei Antônio de Pádoa, em 1785, em querer modificar o trajeto da procissão de

    Corpus Christi, enviando à Câmara da cidade de São Luís um aviso comunicando que o

    percurso se faria pelas ruas da cidade alta. Porém o pedido do Bispo foi vetado pelo então

    governador José Teles da Silva e o Senado da dita Câmara, sob a alegação de se conservar o

    costume do percurso da Praia Grande, uma vez que a inspeção da procissão e sua

    realização competiam à Câmara e não ao Bispo.

  • 41

    Um outro espaço importante da cidade e local de passagem de procissões, ao que

    indica o Termo de Vereação feito em doze de janeiro de 1692, era a Rua de Amaro dos Reis.

    [...] e assim mais requereram os misteres do pano que prezentes estavam que era muito necessário a esta cidade o concerto da Rua de Amaro dos Reis por ser uma das principais da cidade e por ela ser a passagem do maior concurso de gente e de procissão [...] (SÃO LUÍS. Senado da Câmara. Livro de Acórdão de 1647, p.22).

    Seria a Rua de Amaro dos Reis local de passagem da procissão de Corpus Christi

    em dias de festas na cidade? Resposta difícil de precisar, atualmente, uma vez que as

    demarcações do espaço e, consequentemente, sua referenciação e localização, na São Luís

    Colonial eram extremamente pessoalizadas.

    Partindo-se da concepção de que a procissão se constituía no principal

    acontecimento da festividade, o tempo da festa girava em torno de tal evento, podendo ser

    dividido em o antes, em que por meio das seções de reuniões dos camaristas de São Luís

    eram requeridos a realização da festa e como esta deveria ser feita; o durante, onde no

    momento do cortejo além das situações de consagração da eucaristia, representações políticas,

    civis e religiosas e momentos de sociabilidade, firmava-se a vigilância por parte dos

    funcionários da Câmara para averiguarem se as determinações preestabelecidas estavam

    sendo cumpridas; e por último o depois, espaço para as possíveis condenações daqueles que

    não tornaram efetivo o que lhes foram determinados.

    [...] Aos vinte dias do mês [de maio do] ano atrás declarado nesta dita cidade de São [Luís] do Maranhão e na Casa da Câmara dela estan[do] nela juntos (sic) os oficiais da Câmara que nela ser[ve]m [...] o qual dito Procurador do Conselho João Pereira Borges requereu aos ditos oficiais da Câmara que se vinha chegando a festa do Corpo de Deus (sic) da cidade que suas mercês tratassem de fazê-la como era uso e costume e logo pelos ditos vereadores foi dito que eles estavam prestes para fazerem a dita festa do Corpo de Deus [...] (SÃO LUÍS. Senado da Câmara. Livro de Acórdãos de 1690, p.18). [...] Aos vinte e cinco dias do mês de junho de mil setecentos e noventa e um anos nesta cidade de São Luís do Maranhão e Casas da Câmara dela

  • 42

    onde foi vindo o Dr. Juiz de Fora Manoel de Pinho de Almeida e Lima Presidente do mesmo Senado [...] com os mais senadores abaixo assinados comigo Escrivão ao diante nomeado para efeito de se fazerem conferência e fazendo-se nela acordaram fossem notificadas as pessoas que foram avisadas para as insígnias da procissão de Corpus Christi e faltaram sem serem escusas [...] para na vereação se verem condenar [...] (SÃO LUÍS. Senado da Câmara. Livro de 1691, p.9).

    Essa variedade temporal que a festa proporcionava expressa na citação acima,

    demonstra a própria dinâmica de promoção da procissão por parte dos seus promotores, que

    girava em torno do dia de Corpus Christi. Havia o tempo de requerer, que antecedia o dia da

    procissão, em que os camaristas deliberavam o modelo a ser cumprido pelos oficias, juízes de

    ofícios e demais cidadãos, além de angariar recursos para os gastos com a missa cantada, o

    sermão e a cera que se queimava nas solenidades durante o dia de festa. E existia o tempo

    posterior à procissão, que era o momento de punir quem não contribuiu com a festa.

    O tempo do cortejo, que reiterava ou afrontava a ordem social instituída, pois

    gerava um espaço de sociabilidade e representação, constituía-se como o principal momento

    da produção festiva religiosa por parte dos camaristas de São Luís. Assunto para o próximo

    capítulo.

  • 43

    4 AS REPRESENTAÇÕES SIMBÓLICAS NA PROCISSÃO DE CORPUS CHRISTI

    As festas públicas dos séculos XVII e XVIII, em Portugal e no Brasil

    proporcionavam um contexto de produção de representações. Entendia-se, tal categoria,

    como um reconhecimento da autoridade nela concebida, percebida como um testemunho do

    poder de quem a utilizava. (HANSEN, 2001). Numa cultura de estruturação da sociedade

    marcada pela necessidade de distinção das categorias sociais de forma hierárquica, a efígie

    simbólica servia para conferir em ambientes públicos ou privados o grau de qualidade de uma

    pessoa ou grupo e suas relações de poder em função dos demais. “Construção discursiva ou

    simbólica do mundo social”, no qual as festas estavam inseridas, as representações nas

    procissões de Corpus Christi se faziam atreladas a um contexto de “coerções objetivas que

    limitavam e possibilitavam as referidas representações”. (HANSEN, p.736).

    Organizadas por instituições políticas e religiosas clericais ou leigas, – tais como,

    respectivamente, as Câmaras das principais cidades da Colônia e da Metrópole, a Igreja

    Católica e as Irmandades, – as representações presentes nas festividades, especificamente do

    Brasil Colônia, ligavam-se a um modelo de sociedade européia hirearquizante e a uma

    religiosidade católica. Intentava-se manter nos portugueses e implantar nos nativos e,

    posteriormente, nos negros africanos e seus descendentes nascidos no Brasil, os usos e

    costumes de Portugal, impondo-lhes dogmas e práticas do culto católico da Metrópole.

    Quanto ao uso de formas imagéticas ou expressões lingüísticas representativas da

    sociedade, seguiam-se as normas de condutas da legislação portuguesa. O quinto Livro das

    Ordenações Filipinas de Portugal, que tem como 92º título, Dos que tomão insígnias de

    armas, e Dom ou appellidos, que lhes não pertencem, prescreve como eram atribuídos os usos

    de Brasões das Armas e Apelidos e as devidas penalidades para aqueles que indevidamente

    utilizavam-se de um ou mais símbolos que não lhes pertenciam, fossem eles lingüísticos ou

    visuais.

    [...] Como os Brasões das armas e appellidos, que se dão áquelles, que per honrosos feitos os gamharão, sejão certos sinaes e prova de sua Nobreza e honra, e dos que delles descendem, he justo que essas insignias e appellidos andem em tanta certeza, que suas famílias e nomes se não confundão com as dos outr