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Elsio Estanque
Joo Arriscado Nunes Centro de Estudos Sociais Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra
A universidade perante a transformao social e as orientaes dos
estudantes: O caso da Universidade de Coimbra*
1. Introduo
Qualquer reflexo sobre o sistema de ensino universitrio ter, como se sabe, de o
posicionar no contexto social mais vasto onde ele se insere. Para alm da sua autonomia
relativa, a Universidade sempre espelhou os problemas da sociedade. Ao mesmo tempo,
enquanto espao privilegiado de produo de conhecimento, consegue em muitos casos
diagnosticar antecipadamente novas tendncias e desafios que se colocam humanidade.
A fortssima expanso que o sistema universitrio portugus vem sofrendo nas ltimas
dcadas (sobretudo desde os anos setenta)1 , sem dvida, reflexo de que a Universidade se
democratizou, tornando-se acessvel entrada de estudantes filhos das classes trabalhadores,
mas ao mesmo tempo exprime tambm as novas contradies com que se debate o sistema de
ensino superior na actualidade. Desde logo, tornaram-se maiores as presses do mercado e as
exigncias de produo de um conhecimento aplicado e economicamente til. Paralelamente,
tornaram-se, a nosso ver, mais prementes os problemas que se prendem com a
responsabilidade social e cultural da Universidade na produo de massa crtica capaz
contribuir mais eficazmente para a modernizao da sociedade.
* O presente texto resulta do projecto de investigao, coordenado pelos autores, Universidade de Coimbra desafios para o sculo XXI, financiado pela Reitoria da Universidade de Coimbra e sediado no Centro de Estudos Sociais, que se encontra em fase de concluso. Os autores agradecem a colaborao de Teresa Maneca Lima, assistente de investigao do Centro de Estudos Sociais, que preparou a organizao dos dados aqui analisados. 1 Com a criao de dezenas de novos institutos e Universidades, pblicos e privados (incluindo o Politcnico, sero hoje cerca de 300 estabelecimentos), aumentou drasticamente o nmero de estudantes matriculados no ensino superior universitrio. De cerca de 50.000 que existiam no incio dos anos setenta (52.883 em 1975/76, cf. A. Barreto, 1996: 93) o nmero de estudantes do ensino superior aumentou para 340.000 (segundo os dados de 2001). O nmero de licenciaturas (s nas universidades pblicas) actualmente de 470. Para alm disso, a presena feminina no ensino superior suplantou largamente a masculina, com mais de 60% de mulheres nas universidades portuguesas.
A Universidade perante a transformao social e as orientaes dos estudantes
Quais os novos desafios e problemas que estas alteraes colocam ao conhecimento
cientfico produzido nas instituies de ensino superior? De que modo se est a repercutir o
enquadramento desse conhecimento nos programas de ensino e quais as condies da sua
disseminao na sociedade? Por outro lado, como que as novas geraes de estudantes
universitrios se relacionam com os saberes cientficos que lhes so transmitidos? Quais as
suas expectativas em relao aplicao prtica desses saberes? Que orientaes predominam
hoje entre os estudantes acerca da preparao para o exerccio de uma dada profisso? Qual a
sua sensibilidade perante as componentes terico-cientfica e prtico-profissionalizante
das aprendizagens que adquirem na universidade? Estas so apenas algumas das
interrogaes a que procuraremos responder ao longo deste texto. Comecemos por referir-nos
ao primeiro conjunto de questes, discutindo, necessariamente de forma abreviada, o
problema da produo de conhecimento cientfico e das suas implicaes sociais e polticas.
1.1. Conhecimento cientfico e sociedade
Tornou-se quase trivial, na literatura sociolgica, a caracterizao das sociedades
contemporneas do hemisfrio Norte (os chamados pases desenvolvidos) como
organizadas em torno do conhecimento resultante da investigao cientfica e do
desenvolvimento tecnolgico. Expresses como sociedade de conhecimento ou sociedade
de risco trazem para o centro da reflexo sociolgica o tema do conhecimento, dos seus
impactes e consequncias. Para alguns autores, a vida social pode mesmo ser considerada
como uma espcie de extenso, sem fronteiras definidas, da experimentao. Uma
experimentao socio-tcnica colectiva que decorre das intervenes que os recursos da
cincia e da tecnologia tornam possveis. Como acontece com toda a experimentao, tambm
aqui se depara com incertezas e com efeitos no-desejados das intervenes humanas e sociais
no mundo, que obrigam a problematizar o optimismo cientista e tecnocrtico das primeiras
dcadas posteriores Segunda Grande Guerra.
A estreita vinculao das transformaes sociais s transformaes nos modos de
produo do conhecimento encontram expresso em designaes como as de sociedade de
modo 2 ou conhecimento de modo 2 (Gibbons et al., 1994; Nowotny et al., 2001). A primeira
caracterizar-se-ia por uma complexidade crescente, pela transgresso das fronteiras entre
domnios da vida social como o econmico, o cultural ou o poltico e pela sua
desdiferenciao, e pela produo de incertezas como qualidade inerente a esse tipo de
sociedade. O conhecimento de modo 2, por sua vez, tenderia a substituir as demarcaes entre
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A Universidade perante a transformao social e as orientaes dos estudantes
formas de conhecimento, entre a investigao cientfica e o desenvolvimento tecnolgico e a
autonomia da investigao cientfica, pela produo de conhecimentos heterogneos no
quadro de sistemas abertos, associando uma diversidade de actores e de instituies ou
organizaes, sensvel procura e responsabilidade social, capaz de desenvolver aplicaes,
mas tambm de responder s implicaes da sua aco. As verses mais crticas desta
reflexo sobre as transformaes paralelas da sociedade e do conhecimento apontam para a
centralidade da incerteza e das suas implicaes para a produo do conhecimento e para a
responsabilizao social dos produtores de conhecimento. As diferentes variantes da tese da
sociedade de risco, teorizada em meados dos anos 80 por Ulrich Beck (Beck, 1992; Adam
et al., 2000), chamam justamente a ateno para o modo como as novas formas de produo
do conhecimento constroem e reconstroem a distino natureza-sociedade. A se sublinham
aspectos como a relao entre factos e valores, entre conhecimento e desconhecimento, a
identificao dos impactes temporais e espaciais da inovao de base cientfica e tecnolgica
como, por exemplo, e para mencionar apenas os casos mais bvios, os efeitos translocais e
intergeracionais das alteraes climticas decorrentes da produo de gases associados ao
efeito de estufa, ou as consequncias da tecnologia nuclear. Os riscos manufacturados,
prprios das sociedades de conhecimento conduzem, assim, proliferao de incertezas
caracterstica dessas sociedades e a uma atitude cada vez mais crtica em relao capacidade
das instituies existentes responderem a essa proliferao.
As duas principais respostas a esta situao tm assumido a forma, por um lado, da
emergncia do que Beck designou por subpoltico a mobilizao, organizao e
interveno dos cidados ou de grupos especficos ligados a causas ou a problemas
especficos, fora das instituies tradicionais e, por outro, da reflexividade social e
institucional a capacidade de alterar as formas de aco e de interveno em funo de uma
aprendizagem baseada na avaliao das consequncias verificadas ou previsveis de aces
anteriores. Uma e outra dessas respostas apoiam-se na produo e mobilizao de formas de
conhecimento, de competncia e de experincia que, cada vez mais, se aproximam do que
acima foi designado por conhecimento de modo 2. Perante esta reconfigurao de saberes e de
competncias, que papel podero ter as universidades?
Nas sociedades modernas, as universidades tm desempenhado um papel central
enquanto instituies de produo de conhecimentos, de interveno sobre o mundo na base
desses conhecimentos, e de formao dos produtores e utilizadores de conhecimentos. Esta
tripla misso da instituio universitria gerou, por sua vez, uma pluralidade de
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A Universidade perante a transformao social e as orientaes dos estudantes
configuraes de relaes da universidade com a sociedade. No novo contexto que acima foi
delineado, exige-se s universidades que sejam organizaes adaptveis, capazes de definir
novos domnios transversais e transdisciplinares de conhecimento e de competncias e novas
formas de responsabilidade social.
At que ponto correspondero as universidades, de facto, a estas exigncias? Podemos
identificar, aqui, trs tipos principais de obstculos redefinio das misses da Universidade
enquanto instituio.
O primeiro tem a ver com o contraste entre a organizao disciplinar e circunscrita das
unidades orgnicas tradicionais (como as faculdades e os seus departamentos) e das
formaes de licenciatura, por um lado, e as experincias de transversalidade em unidades de
investigao e nas formaes de ps-graduao.
O segundo decorre das dificuldades que as universidades tm encontrado em
participarem na co-construo ou co-evoluo do prprio mercado de emprego para
diplomados do ensino superior, pela sua relutncia em redefinir a oferta em termos
transversais, mais adequados s novas condies. A subordinao a uma noo de mercado
que tende a reproduzir as mesmas formaes, supostamente por exigncia dos c