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SUMÁRIO Introdução ................................................................................................................................. 3 Capítulo 1: Abuso do direito, função social da propriedade e condomínio edilício ........... 9 1.1. A relação jurídica condominial como elo entre situações jurídicas subjetivas ................... 9 1.2. A atuação da autonomia privada no condomínio edilício ................................................. 11 1.3. Abuso do direito e sua aplicabilidade nas relações jurídicas reais .................................... 18 1.4. Abuso do direito e função social da propriedade .............................................................. 27 Capítulo 2: Critério de rateio de despesas ........................................................................... 37 2.1. As despesas condominiais e os critérios de divisão .......................................................... 37 2.2. Abusos na escolha e na alteração do critério de rateio das despesas................................. 43 Capítulo 3: As partes comuns de uso exclusivo ................................................................... 55 3.1. A utilidade patrimonial...................................................................................................... 64 3.2. O critério da utilidade existencial...................................................................................... 72 3.3. A hipótese inversa: privatização da parte comum de uso comum..................................... 85 3.4. Conseqüências na retomada e na concessão do uso exclusivo da parte comum ............... 85 Capítulo 4: Vagas de garagem............................................................................................... 88 4.1. As diferentes naturezas jurídicas ....................................................................................... 88 4.2. Alienação e aluguel ........................................................................................................... 93 4.3. Situações abusivas ............................................................................................................. 96 Capítulo 5: O condômino anti-social .................................................................................. 100 5.1. O conceito de condômino anti-social .............................................................................. 101 5.2. Critérios para a aplicação da multa.................................................................................. 110 5.3. Possibilidade de exclusão do condômino anti-social ...................................................... 121 Conclusão .............................................................................................................................. 129 Referências bibliográficas .................................................................................................... 136

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INTRODUÇÃO

O surgimento, no Brasil, do condomínio edilício, teve origem no desenvolvimento

urbano. Conforme as cidades cresciam, e aumentava a densidade populacional, diminuía a

quantidade de espaço disponível para as construções isoladas, o que fazia subir,

paulatinamente, o preço dos terrenos. Isso tornou o condomínio especial cada vez mais

interessante para o construtor, que nesse tipo de empreendimento via incrementar o seu

volume geral de vendas, e com isso o lucro. Para os adquirentes, o condomínio edilício

representava a possibilidade de comprar um imóvel a preço mais acessível, em local mais

próximo ao trabalho.

O instituto do condomínio edilício – ou propriedade horizontal – foi importado do

Direito Francês para o nosso ordenamento jurídico, e desde então vem sendo desenvolvido,

especialmente a partir da Lei 4.591/64, a Lei de Condomínios e Incorporações.

Como resultado de um intenso movimento de expansão dos centros urbanos ocorrido

nas últimas décadas e do desenvolvimento do mercado imobiliário, há atualmente, no Brasil,

“estruturas monumentais de condomínios, empreendimentos que abrigam, em seu bojo, a um

só tempo, shopping centers, apart-hotéis, hotéis em sistema de time-sharing, prédios

residenciais, prédios comerciais, tudo a partir da convenção entre os condôminos, expressão

da autonomia privada”.1 Nos grandes centros, já começa a se desenvolver um novo conceito

de condomínio, onde em um só terreno podem existir edifícios residenciais, casas, prédios

comerciais, shopping centers e até mesmo hotéis.2

Essas organizações, grandes ou pequenas, comerciais ou residenciais, ao mesmo

tempo em que abriram novos horizontes – jurídicos, econômicos e sociais - para a exploração

da propriedade, acabaram por permitir, justamente em razão de sua complexidade, a

ocorrência de uma panóplia de situações de exercício abusivo do direito, envolvendo os

condôminos e as pessoas que integram o universo condominial.

1 TEPEDINO, Gustavo José Mendes. Os direitos reais no novo Código Civil. In: Temas de direito civil, t. II. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 165. 2 Vide, por exemplo, o condomínio Parque Cidade Jardim, na cidade de São Paulo, ainda em fase de construção. Ali, num terreno de 72.000m², está prevista a construção de nove torres residenciais, um spa, um hotel e um shopping center.

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Três exemplos cotidianos, abaixo arrolados, ilustram e denunciam o quão tênue pode

ser a linha que divide o exercício regular do direito do exercício abusivo:

(i) o art. 1.336, inciso I, do Código Civil de 2002, com a redação que

lhe conferiu a Lei 10.931/04, estipula, tal como já fazia a Lei

4.591/64, um critério legal para o rateio das despesas condominiais,

consistente na divisão segundo a fração ideal de cada unidade.

Todavia, o próprio legislador, de forma expressa, permitiu que os

condôminos estipulassem outros critérios de rateio na convenção de

condomínio, desde que aprovados por pelo menos 2/3 do total de

comunheiros. Que critérios seriam esses? Até onde poderia caminhar a

criatividade dos signatários da convenção? Seria lícito, por exemplo,

que 2/3 dos condôminos aprovassem um rateio no qual o terço

restante tenha que arcar com todas as despesas?

(ii) no tocante às partes comuns, é lícito que um ou mais condôminos

usem determinados locais de forma exclusiva, desde que autorizados

pela convenção de condomínio ou pela assembléia geral. Indaga-se,

então, qual o quorum necessário para que essa autorização seja válida.

E, uma vez concedida, é possível revogá-la sem a anuência do

condômino beneficiado pela autorização? Ainda: e se a ocupação da

área comum ocorreu sem autorização, ou pelo menos sem contar com

o quorum necessário?

(iii) as vagas de garagem, por sua vez, sempre foram motivo de

desavença entre os condôminos. Como se sabe, elas podem ter quatro

naturezas distintas: unidade imobiliária autônoma, unidade imobiliária

acessória, parte comum de uso exclusivo, e parte comum de uso

comum. Cada hipótese tem as suas próprias características, e também

conseqüências diversas. Vale aqui a indagação antes feita: se a vaga

de garagem de um co-proprietário tem a natureza de parte comum de

uso exclusivo, podem os demais condôminos retirar-lhe esse direito

sem a sua concordância? A assembléia geral tem poderes para vedar o

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parqueamento de determinados automóveis, restringindo o uso da

vaga e, por conseqüência, limitando os modelos de veículo que o

condômino pode utilizar no prédio? Em que medida?

Por outro lado, a leitura do novo Código Civil, especialmente do capítulo dedicado ao

condomínio edilício, revela que uma das grandes novidades do Código é a possibilidade de

aplicação de multa ao condômino anti-social.

O parágrafo único do art. 1.337 do Código Civil, ao fazer uso expresso do termo,

estabelece que o co-proprietário ou possuidor que, em razão do seu reiterado comportamento

anti-social, gerar incompatibilidade de convivência com os outros comunheiros e possuidores,

sujeitar-se-á a uma multa no valor de até dez cotas condominiais, “até ulterior deliberação da

assembléia”.

Mas, da leitura do citado dispositivo legal, uma série de indagações salta ao ar. Note-

se que a lei determinou a aplicação de multa ao condômino anti-social, sem, no entanto,

definir o condômino anti-social. Quem, então, poderá ser considerado como tal? Com base em

que critérios os demais condôminos poderão taxar um morador de anti-social, aplicando-lhe,

em conseqüência, a multa prevista na lei?

Além desses questionamentos, cabe indagar o que o legislador quis significar com

“reiteração” e “incompatibilidade de convivência”. Afinal, quais seriam os requisitos para a

aplicação da multa de cinco cotas condominiais prevista no art. 1.337 do Código Civil?3 Em

que situações estarão os demais condôminos agindo com abuso do direito de multar? Poderá a

assembléia geral expulsar o co-proprietário ou possuidor anti-social, com base no parágrafo

único do mesmo dispositivo legal?4

Não há dúvidas de que se faz necessário estabelecer, para as situações acima

identificadas e para todas as demais nas quais os condôminos se encontrem, critérios seguros, 3 Art. 1337. O condômino, ou possuidor, que não cumpre reiteradamente com os seus deveres perante o condomínio poderá, por deliberação de três quartos dos condôminos restantes, ser constrangido a pagar multa correspondente até ao quíntuplo do valor atribuído à contribuição para as despesas condominiais, conforme a gravidade das faltas e a reiteração, independentemente das perdas e danos que se apurem. 4 Art. 1.337. (...) Parágrafo único. O condômino ou possuidor que, por seu reiterado comportamento anti-social, gerar incompatibilidade de convivência com os demais condôminos ou possuidores, poderá ser constrangido a pagar multa correspondente ao décuplo do valor atribuído à contribuição para as despesas condominiais, até ulterior deliberação da assembléia.

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em sintonia com os valores vigentes no ordenamento jurídico, de forma a se identificar e

controlar o eventual exercício abusivo do direito.

Eis, portanto, a primeira parte do problema que se pretende enfrentar na dissertação:

averiguar, nos instrumentos jurídicos que regem a vida condominial, quais são os limites de

atuação da autonomia privada. E mais do que isso: identificar quais são os critérios de

legitimidade das obrigações, restrições e direitos criados no bojo dessa coletividade. O

trabalho procurará demonstrar que a intervenção da autonomia privada na seara condominial,

em desconformidade com esses limites, configura abuso do direito.

É claro que, para tal demonstração, será preciso verificar previamente se a atuação da

autonomia privada está reservada unicamente ao campo obrigacional, como entende boa parte

da doutrina nacional, que permanece muito apegada ao dogma da taxatividade, ou se ela

atinge também os direitos reais.

Como se sabe, o ordenamento jurídico brasileiro, no que se refere aos direitos reais,

adota o sistema do numerus clausus, que tem como corolário dois princípios: taxatividade e

tipicidade. O primeiro deles diz respeito à fonte dos direitos reais, isto é, somente o legislador

pode criar um novo direito real, não sendo lícito à autonomia privada esse papel inovador. Já

o princípio da tipicidade diz respeito ao conteúdo; aqui, ao contrário do que muito se apregoa,

é possível a atuação da autonomia privada para a conformação desses direitos, entre os quais

está a propriedade, e mais especificamente, o condomínio edilício.

Igualmente será preciso analisar se o instituto do abuso do direito, informado

principalmente pelo princípio da função social da propriedade, efetivamente é aplicável no

âmbito das relações jurídicas reais. A nosso ver, a resposta há de ser afirmativa.

Após analisar brevemente as teorias sobre o abuso do direito, o estudo adotará a

posição dos juristas que consideram o ato abusivo como uma categoria autônoma, com as suas

próprias características, e não como ato ilícito puro. Seria, na verdade, o exercício anti-social

de direitos, camuflado por uma aparente licitude.

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Ainda no primeiro capítulo, o trabalho procurará mostrar a estreita relação entre abuso

do direito e violação ao princípio da função social da propriedade, pois é esse princípio,

albergado pela Constituição – e que se informa, por sua vez, pelos demais princípios

constitucionais, notadamente o princípio da dignidade da pessoa humana –, que permite a

identificação do exercício abusivo de um direito dentro do universo condominial.

Se fosse possível reduzir o tema a uma única frase, ela assim ficaria: não será abusivo

o exercício das faculdades de usar, fruir ou dispor, das partes comuns e privativas, que atender

à função social desses bens, e, portanto, em consonância com os princípios e valores

constitucionais. E vice-versa.

Encerrado o primeiro capítulo, que, como visto, fixa os parâmetros teóricos e dá o fio-

condutor a todo o trabalho, será hora de descer das nuvens e deitar olhos no dia-a-dia do

condomínio, e analisar, sempre com base nas premissas já estabelecidas, as situações que

mais comumente permitem o exercício abusivo da propriedade condominial.

Nessa ordem de idéias, o segundo capítulo dedicar-se-á ao critério de rateio de

despesas, e aqui tentaremos demonstrar que não basta o atendimento ao quorum legal para

que a eleição ou alteração do rateio seja válida; mais importante que o quorum, será atender

ao princípio que veda o enriquecimento sem causa.

No terceiro capítulo, que terá como foco as partes comuns de uso exclusivo de um

condômino, ou de alguns deles, questionar-se-á o entendimento atual de que a concessão ou a

retomada dessas áreas só se possa dar com o consenso unânime dos consortes. Nessa tarefa, o

critério da utilidade – patrimonial e existencial – surge como uma ferramenta capaz de

orientar o intérprete na solução do caso concreto, evitando abusos de quem, em regra, tem o

poder de veto na deliberação da matéria, seja para conceder o uso da parte comum, seja para

retomá-lo.

O capítulo seguinte investigará os limites das restrições que a coletividade

condominial pode impor ao uso, à fruição e à disposição das vagas de garagem por cada um

dos comunheiros. A função social da propriedade, também aqui, servirá como parâmetro para

se saber se, por exemplo, é legítima a estipulação de um sistema de rodízio das vagas.

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O quinto e último capítulo buscará estabelecer parâmetros objetivos para se determinar

quem é o condômino anti-social, já que a lei, com acerto, não trouxe tal definição. A

conclusão a que se chegará é que esse conceito caminha de mãos dadas com o instituto do uso

anormal da propriedade. A dissertação, já com base na noção de condômino anti-social,

analisará os requisitos legais para a imposição da multa de até dez cotas condominiais prevista

no parágrafo único do art. 1.337 do Código Civil. E finalmente, tratar-se-á de uma questão

polêmica: a possibilidade (ou inexistência dela) de exclusão do condômino anti-social.

Mostrar-se-á, com a análise da questão atinente ao condômino anti-social, que o abuso do

direito se aplica não apenas no controle da autonomia privada dos condôminos. Ele também

pode se tornar uma eficaz ferramenta na regulação do uso nocivo da propriedade horizontal e

das punições aplicadas em razão dessas infrações.

Para o desenvolvimento da dissertação, será imprescindível, também, o

reconhecimento de que o condomínio edilício, assim como todo o direito privado, precisa ser

reconstruído à luz da nova ordem constitucional, de modo a priorizar sempre, no ambiente

condominial, as situações existenciais, em detrimento daquelas meramente patrimoniais.

Mãos à obra.

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CAPÍTULO 1: ABUSO DO DIREITO, AUTONOMIA PRIVADA E CONDOMÍNIO

EDILÍCIO

1.1. A relação jurídica condominial como elo entre situações jurídicas subjetivas

A tradicional discussão sobre a estrutura da relação jurídica real se estabelece entre os

partidários da Escola Clássica, ou Realista, e entre os adeptos da Escola Personalista. Para a

primeira, e relação jurídica se estabelece entre o titular do direito real e a coisa, existindo,

assim, apenas o sujeito ativo. Já para os personalistas, as relações jurídicas só podem se

estabelecer entre pessoas, de modo que existiria, sim, o pólo passivo, que seria ocupado por

toda a sociedade.

Entretanto, como ressalta Pietro Perlingieri, a maior parte da doutrina, sem razão,

adota o conceito de relação jurídica como elo entre sujeitos regulado pela norma. Mas, como

aduz o autor, há casos em que a relação jurídica não possui sujeitos determinados, e outras em

que ele sequer existe; em se tratando da situação proprietária, de um lado há o titular do

domínio, e de outro está a coletividade, que tem o dever de respeitar essa situação, existindo,

por isso, uma relação entre dois – ou mais – centros de interesses, entre situações subjetivas,

sem que isso implique em uma relação entre sujeitos. 5

Por isso, estamos adotando, como marco metodológico, o que consideramos ser uma

terceira corrente, capitaneada por Pietro Perlingieri, segundo a qual tanto o sujeito, como a

coisa, são elementos externos à relação jurídica real. O sujeito é o titular; a coisa é o objeto. O

elemento interno seria a ligação entre o interesse do titular da situação jurídica real e o

interesse da coletividade, se e enquanto não houver um sujeito determinado.

5 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil: introdução ao direito civil constitucional. Trad. Maria Cristina de Cicco. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 114: “(...) pode existir uma relação juridicamente relevante entre dois um mais centros de interesses sem que ela se traduza em relação entre sujeitos. Portanto, a relação jurídica não é entre sujeitos, mas entre situações subjetivas, ainda que essas situações pertençam ao mesmo sujeito”.

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Esse sujeito que se relaciona com o titular do direito real, uma vez determinado,

poderá ser, inclusive no universo do condomínio edilício, o Poder Público ou o particular,

nesse caso, o titular de outro direito real (relação entre usufrutuário e nu-proprietário de uma

unidade autônoma), o co-titular do mesmo direito real (relação entre dois condôminos de um

mesmo apartamento, ou entre os diversos condôminos no tocante às partes comuns), ou ainda

o titular de uma situação jurídica não-proprietária (relação entre locatários de um edifício, ou

entre um locatário e os demais condôminos). Em outras palavras, a relação jurídica real pode

conectar uma situação subjetiva a outra, geralmente uma outra situação subjetiva patrimonial,

mas que pode perfeitamente ser existencial.

Enquanto nas situações obrigacionais a satisfação do crédito depende da atuação

positiva ou negativa do devedor, nas situações reais o titular exerce um poder direto sobre a

coisa, daí a confusão estabelecida pela corrente Realista de que a relação se estabelece entre

sujeito e coisa.

Em suma: para nós, relação jurídica real é a ligação entre duas situações subjetivas,

representadas pelos interesses do titular do direito real sobre a coisa, que sobre ela exerce um

poder direto, e da coletividade (e/ou do sujeito determinado), que deve respeitá-lo.

Essa noção de relação jurídica como elo de interesses é importante para a análise do

tema objeto desta monografia sob a ótica civil-constitucional, eis que esses interesses em jogo

é que, no caso concreto, são ponderados à luz dos valores vigentes no sistema, a fim de se

saber qual deles, ou ambos, e em que medida, devem ser tutelados. É o caso, por exemplo, da

discussão sobre a possibilidade de aplicação de multa de até dez cotas condominiais, relativa

ao condômino anti-social, tendo por fundamento a reiterada falta de pagamento de tais cotas.

Considerar a relação jurídica real como ligação entre situações subjetivas tem ainda

outras conseqüências. Ela nos permite concluir, por exemplo, que a reunião de todas as

unidades autônomas de um edifício em nome de uma só pessoa não extingue o condomínio

edilício. O que caracteriza esse tipo de condomínio é a existência de partes privativas (com

fração ideal) e partes de propriedade comum, as quais, por sua vez, podem ser de uso comum

ou de uso exclusivo. Não importa em nome de quem ou de quantas pessoas se encontrem as

unidades imobiliárias.

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Finalmente, essa concepção é útil para o controle da legitimidade da autonomia

privada dentro do condomínio edilício, especialmente na hipótese em que,

exemplificativamente, a convenção de condomínio for aprovada por um condômino único,

detentor de 100% das frações ideais.6

Não nos parece legítimo, apenas para ilustrar, que uma pessoa aprove uma convenção

que isente a cobertura de contribuir para as despesas condominiais, com o objetivo de vender

as demais unidades imobiliárias, vindo a tornar-se um comunheiro privilegiado, isento de

qualquer pagamento, sendo as despesas (inclusive aquelas geradas pela sua unidade)

suportadas exclusivamente pelos demais condôminos. Em nossa opinião, essa cláusula,

aprovada com evidente abuso do direito, e violação do princípio da função social da

propriedade,7 pode vir a ser contestada por um futuro proprietário, ainda que, sob um ângulo

estritamente formal, a convenção e, por conseguinte, a referida cláusula pudesse ser

considerada válida e eficaz, eis que aprovada pelo quorum legal (art. 1.333 do Código Civil).

Analisado o aspecto estrutural da relação jurídica real, passa-se a examinar, no

próximo item, a possibilidade de haver ou não autonomia privada na relação condominial.

1.2. A atuação da autonomia privada no condomínio edilício

Nas relações jurídicas reais há um dever da coletividade, erga omnes, de caráter

absoluto, classicamente identificado como uma das principais características dos direitos

6 Não custa lembrar que a convenção de condomínio, mesmo não registrada, obriga os demais condôminos, presentes e futuros. É o que decorre do art. 1.333 do Código Civil. Quanto a esta vinculação, mesmo quando o atual Código não havia entrado em vigor, confira-se MATTIETO, Leonardo. Convenção de condomínio não registrada: súmula 260 do Superior Tribunal de Justiça. Revista Trimestral de Direito Civil, n. 9, pp. 223-229, jan/mar 2002. 7 Nas palavras de André Gondinho: “É certo, por outro lado, que o exercício do direito de propriedade sofre, não é de hoje, inúmeras e variadas restrições. Há muito tempo o direito de propriedade deixou de ser a senhoria absoluta do proprietário no exercício das faculdades de usar, gozar e dispor. O direito de vizinhança, os direitos reais sobre coisa alheia, e o poder de polícia são alguns exemplos de restrições comumente impostas ao direito do proprietário. A função social da propriedade, todavia, não se confunde com nenhuma destas restrições. A função social não surge do Texto Constitucional como mero limite ao exercício do direito de propriedade, mas como princípio básico que incide no conteúdo do direito, fazendo parte de sua estrutura. Não se pode elaborar um conceito de propriedade sem função social”. GONDINHO, André Pinto da Rocha Osorio. Direitos reais e autonomia da vontade: o princípio da tipicidade dos direitos reais. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 145.

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reais. Além deste, pode haver – e geralmente há – um centro de interesses já individuado (o

condômino, o usufrutuário, o imóvel serviente, e assim por diante). Com base nisso, e também

na unidade do sistema jurídico, Pietro Perlingieri sustenta, com razão, que não existe uma

precisa separação entre situações obrigacionais e reais.8

Na sociedade contemporânea, os pilares do direito civil foram alterados. A

propriedade e o contrato deixaram de ser meios de acúmulo e circulação de riqueza, para se

tornarem, na atual ordem constitucional, em instrumentos de realização da pessoa humana, e

na medida em que atendem a essa função é que são ou deixam de ser tutelados pelo

ordenamento.

Tal como ocorreu com a dicotomia público-privado, hoje a distinção entre direitos

reais e obrigacionais torna-se cada vez mais tênue e menos justificável. Há cinco evidências

principais disto.9

A primeira delas diz respeito ao caráter absoluto dos direitos reais, de eficácia geral,

pode-se afirmar, como já demonstrado acima, que esse caráter erga omnes perde importância

no momento em que se determina quem é o sujeito que ocupa o outro pólo da relação jurídica

real, pois a partir daí a relação se estabelece entre essas pessoas.10 Além disso, a eficácia geral

não é uma exclusividade dos direitos reais, o mesmo ocorrendo com os direitos da

personalidade. E por outro lado, os princípios da solidariedade e da boa-fé objetiva vêm

suavizando o dogma da relatividade dos contratos. Existem, inclusive, as obrigações com

8 Ob. cit., p. 204. 9 Cf. MAURO E SILVA, Roberta. Relações reais e relações obrigacionais: propostas para uma nova delimitação de suas fronteiras. In: Obrigações: estudos na perspectiva civil-constitucional. Coord.: Gustavo Tepedino. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, pp. 73 e ss. 10 Isso implica, por exemplo, no reconhecimento de que a obrigação de não fazer, do direito obrigacional, e a obrigação negativa, pertencente ao direito real, estão bastante próximas, e que o seu distanciamento não é tão grande quanto ressaltado pela doutrina clássica, exemplificada no seguinte exemplo de Washington de Barros Monteiro: “Cumpre, todavia, não confundir a obrigação de não fazer, de natureza especial, com a obrigação negativa, de caráter geral, correlata aos direitos reais. Pela primeira, o próprio devedor diminui sponte propria sua liberdade e atividade. O direito surge da relação obrigacional estabelecida entre credor e devedor; obriga-se este, especificamente, a não praticar certo ato, que, de outra forma, poderia realizar, não fora o vínculo a que deliberadamente se submeteu. Pela segunda, ao inverso, ninguém vê particularmente delimitado seu campo de ação; apenas se impõe a todos os membros da coletividade, abstratamente considerados, o dever de respeitar o direito alheio, posição que constitui normalidade para a vida jurídica... Os traços distintivos são, pois, característicos: a obrigação de não fazer é de natureza particular ou especial, a obrigação negativa inerente aos direitos reais, geral e abstrata. Pela primeira, compromete-se o devedor, especificamente, a abster-se da prática de determinado ato, pela segunda, a obrigação é vaga e indeterminada - não prejudicar o direito alheio. A primeira constitui relação de direito pessoal, só vincula o próprio devedor; a segunda configura direito real, atingindo todos os seres da comunidade, indistintamente, oponível erga omnes”. MONTEIRO. Washington de Barros. Curso de direito civil, v. 4, 1ª. Parte. 33. ed. Rio de Janeiro: Saraiva, 2007, p. 49

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eficácia real,11 que embora não se confundam com as obrigações reais (propter rem),12 com

elas se assemelham. Isto é, também nesse aspecto (relatividade versus erga omnes), a

distinção entre direitos reais e pessoais parece ser apenas de grau.

Uma segunda evidência da aproximação entre relações reais e obrigações: se é

verdade que nas situações reais o titular exerce um poder direto sobre a coisa, não havendo

intermediação do devedor, também é verdade que, em muitas situações, como nas servidões

de passagem em que o dono do prédio serviente precise abrir um portão, ou no condomínio

edilício, quanto ao uso das partes comuns, e mesmo quanto à obrigação de pagamento das

cotas condominiais, surgem as obrigações reais negativas e positivas, onde o titular do direito

real dependerá da atuação de outra pessoa para que possa exercer o seu direito com plenitude,

podendo surgir a figura do inadimplemento. Mais uma vez, portanto, direitos reais e

obrigacionais se aproximam.

Em terceiro lugar, o sistema jurídico, além de unitário e ordenado, é aberto e móvel,13

e por isso sensível à mudança dos valores da sociedade, especialmente se revelados no Texto

Constitucional, que, no caso brasileiro, estabeleceu um novo paradigma, que é o da

prevalência das situações existenciais sobre as situações patrimoniais.14 As situações jurídicas

são complexas e geralmente, em uma relação jurídica real, há o aspecto creditório, e vice-

versa. Se em um outro momento essa divisão se justificava plenamente, hoje é preciso

averiguar cuidadosamente até que ponto ela ainda é necessária, e mais, se tal como se

apresenta, essa divisão não dificulta a realização do projeto constitucional de funcionalizar as

situações patrimoniais às existenciais.

Mas não é só. A propriedade, tida na sua forma pura, como nos direitos reais menores,

deixou de ser uma relação de subordinação (da coletividade) para se tornar uma relação de

cooperação, assim como ocorre com os direitos obrigacionais. E a determinação do seu

conteúdo e de sua tutela passou a depender, na relação jurídica real, das situações subjetivas

11 OLIVA, Milena Donato. A responsabilidade do adquirente pelos encargos condominiais na propriedade horizontal, Revista Trimestral de Direito Civil, n. 26, pp. 67-105, abr/jun 2006. 12 Sobre as obrigações propter rem, v. MESQUITA, Manuel Henrique. Obrigações reais e ónus reais. Coimbra: Almedina, 2003; e ARAÚJO, Barbara Almeida de. As obrigações propter rem. In: TEPEDINO, Gustavo (coord.). Obrigações: estudos na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, pp. 99-120. 13 CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito, 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996. 14 MORAES, Maria Celina Bodin. A caminho de um direito civil constitucional. Revista de Direito Civil, Imobiliário, Agrário e Empresarial. São Paulo, n. 65, jul/set 1993, p. 23.

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em jogo, inclusive não-proprietárias, que se relacionarem com o titular do direito real. Tal

como acontece nas relações obrigacionais.

O quinto fator é o mais importante, ou, pelo menos, o que mais interessa aos objetivos

deste trabalho. No direito obrigacional, vigora o princípio da autonomia da vontade, segundo

o qual as partes possuem liberdade na criação de direitos e obrigações. Em se tratando de

direitos reais, todavia, vale o princípio do numerus clausus,15 que se desdobra nos princípios

da taxatividade – que diz respeito à fonte dos direitos reais –, e da tipicidade, que se relaciona

com o conteúdo desses direitos.16

O princípio da taxatividade17 significa, em suma, que as partes não podem criar um

direito real não previsto taxativamente em lei, ficando esse poder reservado apenas ao

legislador.18 No Brasil, os direitos reais estão enumerados no art. 1.225 do Código Civil,19

mas também são encontrados na legislação especial, sendo um exemplo a alienação fiduciária

em garantia, instituída pela Lei 9.514/97. O sistema brasileiro de controle da criação de

15 É interessante citar que na Espanha vigora o sistema do numerus apertus, onde a Lei Hipotecária estabelece, logo em seu artigo primeiro: “El Registro de la Propiedad tiene por objeto la inscripción o anotación de los actos y contratos relativos al dominio y demás derechos reales sobre bienes inmuebles”. 16 A propósito, Gustavo Tepedino ensina que “o sistema do numerus clausus, em verdade, exprime-se de dois modos. Significa a taxatividade das figuras típicas, quando examinadas do ponto de vista da reserva legal para a criação dos direitos subjetivos. Traduz-se, ao revés, no princípio da tipicidade propriamente dito, quando analisado sob o ângulo de seu conteúdo, significando que a estrutura do direito subjetivo corresponde a previsão legislativa típica. A taxatividade refere-se à sua fonte e a tipicidade às modalidades do exercício dos direitos, uma e outra conforme a dicção legal”. TEPEDINO, Gustavo. Teoria dos bens e situações subjetivas reais: esboço de uma introdução. In: Temas de direito civil, Tomo II. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 143. Sobre o assunto, v. tb. NEVES, Gustavo Kloh Müller. O princípio da tipicidade dos direitos reais ou a regra do numerus clausus. In: BODIN DE MORAES, Maria Celina (coord.). Princípios do direito civil contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pp. 413-435; e TEPEDINO, Gustavo José Mendes. Autonomia privada e obrigações reais. In: Temas de direito civil, t. II. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pp. 275-304. 17 Segundo André Gondinho, “os defensores do numerus clausus costumam apresentar uma série de inconvenientes à existência de um sistema aberto de direitos reais (numerus apertus), que pode, assim, ser resumida: a) a constituição de um direito real depender de formalidades legais, tais como a publicidade imobiliária, pois um sistema aberto dificultaria o funcionamento dos registros; b) a possibilidade de se constituírem situações jurídicas inconvenientes, sob o ponto de vista econômico-social, como, v.g., todos os vícios que imputaram a organização feudal da propriedade; c) a possível permissão de constituição de ônus ou vinculações ocultas, em prejuízo de terceiros adquirentes. Dessa forma, e resumidamente, os defensores do princípio do numerus clausus observam que uma criação indiscriminada de direitos reais, pela simples atuação da autonomia da vontade, poderia resultar em graves inconvenientes para terceiros, para a segurança das relações jurídicas, para a economia fundiária e para o próprio capitalismo nacional”. Ob. cit., pp. 49-51. 18 ASCENSÃO, José de Oliveira. A tipicidade dos direitos reais. Lisboa: Petrony, 1968, p. 377. 19 “Art. 1.225. São direitos reais: I - a propriedade; II - a superfície; III - as servidões; IV - o usufruto; V - o uso; VI - a habitação; VII - o direito do promitente comprador do imóvel; VIII - o penhor; IX - a hipoteca; X - a anticrese; XI - a concessão de uso especial para fins de moradia; XII - a concessão de direito real de uso”. Os incisos XI e XII foram incluídos pela Lei nº 11.481, de 2007.

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direitos reais, rígido, enumera taxativamente, no art. 167, I, da Lei de Registros Públicos (Lei

6.015/73), os títulos passíveis de registro.20

Quanto ao princípio da tipicidade, e ao contrário do que os manuais sempre pregaram

de forma acrítica,21 existe sim um espaço para a atuação da autonomia privada, na modelação

dos direitos reais.22 Essa autonomia é maior ou menor conforme o instituto em questão, e está

sujeita a um controle constitucional de legitimidade.

Uma vez verificado que a situação jurídica em questão atende aos requisitos

estruturais de determinado direito real tipificado, o magistrado, antes de aplicar a disciplina

20 Art. 167 - No Registro de Imóveis, além da matrícula, serão feitos. I - o registro: 1) da instituição de bem de família; 2) das hipotecas legais, judiciais e convencionais; 3) dos contratos de locação de prédios, nos quais tenha sido consignada cláusula de vigência no caso de alienação da coisa locada; 4) do penhor de máquinas e de aparelhos utilizados na indústria, instalados e em funcionamento, com os respectivos pertences ou sem eles; 5) das penhoras, arrestos e seqüestros de imóveis; 6) das servidões em geral; 7) do usufruto e do uso sobre imóveis e da habitação, quando não resultarem do direito de família; 8) das rendas constituídas sobre imóveis ou a eles vinculadas por disposição de última vontade; 9) dos contratos de compromisso de compra e venda de cessão deste e de promessa de cessão, com ou sem cláusula de arrependimento, que tenham por objeto imóveis não loteados e cujo preço tenha sido pago no ato de sua celebração, ou deva sê-lo a prazo, de uma só vez ou em prestações; 10) da enfiteuse; 11) da anticrese; 12) das convenções antenupciais; 13) das cédulas de crédito rural; 14) das cédulas de crédito, industrial; 15) dos contratos de penhor rural; 16) dos empréstimos por obrigações ao portador ou debêntures, inclusive as conversíveis em ações; 17) das incorporações, instituições e convenções de condomínio; 18) dos contratos de promessa de venda, cessão ou promessa de cessão de unidades autônomas condominiais a que alude a Lei nº 4.591, de 16 de dezembro de 1964, quando a incorporação ou a instituição de condomínio se formalizar na vigência desta Lei; 19) dos loteamentos urbanos e rurais; 20) dos contratos de promessa de compra e venda de terrenos loteados em conformidade com o Decreto-lei nº 58, de 10 de dezembro de 1937, e respectiva cessão e promessa de cessão, quando o loteamento se formalizar na vigência desta Lei; 21) das citações de ações reais ou pessoais reipersecutórias, relativas a imóveis; 22) (Revogado pela Lei nº 6.850, de 1980); 23) dos julgados e atos jurídicos entre vivos que dividirem imóveis ou os demarcarem inclusive nos casos de incorporação que resultarem em constituição de condomínio e atribuírem uma ou mais unidades aos incorporadores; 24) das sentenças que nos inventários, arrolamentos e partilhas, adjudicarem bens de raiz em pagamento das dívidas da herança; 25) dos atos de entrega de legados de imóveis, dos formais de partilha e das sentenças de adjudicação em inventário ou arrolamento quando não houver partilha; 26) da arrematação e da adjudicação em hasta pública; 27) do dote; 28) das sentenças declaratórias de usucapião; 29) da compra e venda pura e da condicional; 30) da permuta; 31) da dação em pagamento; 32) da transferência, de imóvel a sociedade, quando integrar quota social; 33) da doação entre vivos; 34) da desapropriação amigável e das sentenças que, em processo de desapropriação, fixarem o valor da indenização; 35) da alienação fiduciária em garantia de coisa imóvel; 36) da imissão provisória na posse, e respectiva cessão e promessa de cessão, quando concedido à União, Estados, Distrito Federal, Municípios ou suas entidades delegadas, para a execução de parcelamento popular, com finalidade urbana, destinado às classes de menor renda; 37) dos termos administrativos ou das sentenças declaratórias da concessão de uso especial para fins de moradia; 38) (VETADO); 39) da constituição do direito de superfície de imóvel urbano; 40) do contrato de concessão de direito real de uso de imóvel público. 21 Veja-se, por exemplo, PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de direito civil, v. IV. 22. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. __. 22 Como dá conta o seguinte acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro: “LOTEAMENTO. REGRAS CONVENCIONAIS IMPEDITIVAS DO DESMEMBRAMENTO DOS LOTES, BEM COMO DA CONSTRUÇÃO EM CADA QUAL DE MAIS DE UMA HABITAÇÃO FAMILIAR. O remembramento de lotes para a constituição de condomínio fechado, permitindo a construção de unidades em numero superior ao dos lotes remembrados, importa em inequívoca afronta as regras convencionais, na medida em que configuraria uma forma disfarçada de desmembramento. Irrelevância, no caso, das normas edilícias permissivas do remembramento”. TJRJ. 1ª. Câmara Cível. Apelação Cível 1998.001.03298. Rel. Des. Amaury Arruda de Souza. Julgado em 13/10/1998. Acórdão unânime.

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jurídica a ele relativa, deve fazer o necessário juízo de valor acerca das eventuais cláusulas

apostas pela autonomia privada, no sentido de averiguar se são – e em que medida –

merecedoras de tutela.

Autonomia privada não é arbítrio e é sujeita a controle, sob pena de se retornar ao

dogma da vontade como valor em si. Uma análise que atente apenas para os aspectos

estruturais acaba por não considerar a singular (e cada vez mais freqüente) atuação da

autonomia privada, no âmbito do conteúdo de cada direito real, com vistas a moldar seus

interesses à situação jurídica real pretendida. O controle judicial deve ter como paradigma o

comprometimento interno e funcional dos institutos jurídicos reais com a realização dos

valores da Constituição Federal.

Gustavo Tepedino, discursando sobre o controle de legitimidade das cláusulas da

convenção de condomínio, mostra que a restrição à propriedade, examinada sob um novo

prisma hermenêutico, não torna ilícita, por si só, a cláusula convencional. O verdadeiro

parâmetro para a análise de validade do negócio jurídico condominial deve ser informado pela

função social da propriedade: será legítima a cláusula, e, portanto, não abusiva, se e enquanto

ela estiver de acordo com a função social da propriedade condominial.23 André Gondinho, na

mesma linha, entende que a restrição à qual a autonomia negocial dos condôminos se sujeita

encontra um seguro critério no “bem-estar da comunidade condominial”.24

Mas o fato é que essa autonomia sempre existe. A doutrina sempre invocou o numerus

clausus para diferenciar os direitos reais dos direitos de crédito, onde vigoraria o princípio da

atipicidade e onde se faria presente a autonomia da vontade. Mas como se vê, essa é apenas

23 Nas palavras do autor: “A legalidade das restrições impostas pela convenção, portanto, em tema de condomínio edilício, reclama novas bases hermenêuticas, não sendo inválida uma cláusula pelo mero fato de interferir na propriedade privada, mas, diversamente, tendo sua invalidade vinculada à violação do domínio inserido em concreta relação jurídica, isto é, voltado para o atendimento de sua função social. É ilícita tanto a cláusula que limita arbitrariamente o domínio, sem que se justifique através de interesse constitucionalmente tutelado, quanto aquela que concedesse a um dos condôminos poderes excessivos, cujo exercício ensejasse o desrespeito à função social da relação condominial (...). Mais adequado, portanto, como critério de aferição da legalidade da convenção da multipropriedade, apresenta-se a verificação, em cada cláusula, de sua compatibilização com a função social da multipropriedade, destinada a permitir a utilização de uma pluralidade de titulares sobre um mesmo suporte físico, e tendente em última análise, a viabilizar o efetivo aproveitamento dos bens econômicos, de forma distributiva e racional, no tempo e no espaço, em benefício do interesse (individual e familiar) extrapatrimonial, constitucionalmente tutelado, relativo ao acesso à segunda casa e ao lazer, como manifestações da personalidade humana.”. TEPEDINO, Gustavo. Multipropriedade imobiliária. São Paulo: Saraiva, 1993, p. 118. 24 Ob. cit., p. 115. O mesmo autor ressalta que a função social da propriedade é um freio ao exercício anti-social da propriedade, incidindo sobre o conteúdo do direito, e integrando a sua estrutura. Ob. cit., p. 145.

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uma diferença de grau, e nem tão grande assim, porque na seara contratual é cada vez maior a

intervenção legislativa, especialmente em prol do contratante vulnerável.25

Se é verdade que a autonomia privada dos condôminos pode atuar em um grande

número de situações, criando, conformando, restringindo e extinguindo direitos sobre as

partes comuns e até mesmo sobre as partes de propriedade exclusiva,26 por outro lado é

preciso estabelecer um controle de legitimidade da autonomia privada nas relações jurídicas

condominiais.27

Essa preocupação quanto ao limite de atuação da autonomia privada nos negócios

condominiais não é exclusiva do sistema brasileiro, e já existia em outros países. Por

exemplo, a Lei francesa que regula o condomínio edilício traz, na alínea 2 do artigo 8º, o

princípio de que a convenção de condomínio só pode impor restrições aos direitos dos

condôminos na medida em que sejam necessárias em razão da destinação do imóvel.28 Na

Itália, admite-se, inclusive, que a convenção de condomínio estabeleça quais são os limites de

25 Em se tratando de contrato, ninguém mais duvida da restrição à liberdade das partes no estabelecimento do conteúdo contratual. Desde a Consolidação das Leis do Trabalho, e depois com o Código de Proteção e Defesa do Consumidor e a Lei do Inquilinato, é cada vez mais evidente como a autonomia da vontade não é um princípio contratual absoluto; ele precisa se adaptar aos novos princípios contratuais, notadamente, os da boa-fé objetiva, do equilíbrio econômico, e da função social, que, filtrados constitucionalmente, passam a conceber o contrato, nas palavras de Teresa Negreiros, “como um instrumento a serviço da pessoa, sua dignidade e desenvolvimento”. NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. __. Para uma aprofundada análise da evolução da teoria contratual e de sua historicidade, v. ROPPO, Enzo. O contrato. Trad. Ana Coimbra e M. Januário C. Gomes. Coimbra: Almedina, 1988. 26 Mesmo em se tratando de loteamento, admite-se a validade de restrição convencional ao uso da propriedade, como o direito de construir ou desmembrar o lote. Cf. AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Restrições convencionais de loteamento. Obrigações propter rem e suas condições de persistência. In: Estudos e Pareceres de Direito Privado. São Paulo: Saraiva, 2004, pp. 311-324. 27 TEPEDINO, Gustavo. Teoria dos bens e situações subjetivas reais..., p. 145: “Muito mais fértil, todavia, será investigar, na dinâmica da atividade econômica privada, os negócios jurídicos e as cláusulas que, inseridos nos tipos reais predispostos pelo Código Civil, possam ser estabelecidos sem a reprovação do sistema. Trata-se de um número formidável de negócios jurídicos a regular, por exemplo, servidões, mútuos garantidos por cédulas rurais, vendas condicionais, pactos antenupciais, locações com cláusula de vigência em caso de alienação, vendas condicionais, além dos já aludidos empreendimentos de shopping centers, multipropriedade imobiliária, utilização de espaços em cemitérios e os chamados condomínios de fato, cujo conteúdo varia, com freqüência impressionante, no curso do tempo e das relações que, concretamente, se estabelecem, alterando, significativamente, o conteúdo de situações reais ou com eficácia real. Se tais negócios, por um lado, constituem-se em sinal eloqüente da vitalidade e da inteligência do operador econômico, a merecer indiscutivelmente tutela jurídica, hão de ser controlados, de outro lado, de modo a que respondam não às pressões do mercado, mas aos princípios e valores do sistema civil-constitucional”. 28 O texto da lei é o seguinte: “Le règlement de copropriété ne peut imposer aucune restriction aux droits des copropriétaires en dehors de celles qui seraient justifiées par la destination de l'immeuble, telle qu'elle est définie aux actes, par ses caractères ou sa situation”.

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tolerabilidade no prédio.29 No entanto, a ausência de dispositivo legal específico no Brasil não

foi impedimento para que a jurisprudência reconhecesse os limites impostos à convenção de

condomínio.30

Para o desenvolvimento deste trabalho, o relevante é que a convenção de condomínio,

as deliberações da assembléia geral, e os demais instrumentos condominiais, podem,

inegavelmente, estabelecer uma série de direitos, obrigações e até penalidades entre os

comunheiros e possuidores. O que se buscará investigar é quando esses limites são

extrapolados, caracterizando o abuso do direito.

1.3. Abuso do direito e sua aplicabilidade nas relações jurídicas reais

A figura do abuso do direito31 começou a surgir ainda no direito romano, mas, pode-se

afirmar que foi na França, através de construção jurisprudencial,32 que o abuso do direito, tal

como compreendido nos dias de hoje, isto é, como doutrina autônoma e científica, surgiu.33

29 Cf. ressaltam Silvio Rezzonico e Matteo Rezzonico: “Peraltro, la disciplina delle immissioni o degli atti emulativi può essere derogata da un regolamento condominiale di origine negoziale. In tal senso la sentenza della Cassazione 15 marzo 1973, n. 750 ha precisato: ‘Quando un condomino, nel godimento della cosa propria o della cosa comune, dia luogo ad immissioni moleste e dannose nella proprietà degli altri condomini, il conflitto deve essere risolto secondo i criteri dettati dall´art 844 c.c., ma tale esigenza viene meno in presenza di un regolamento condominiale di tipo negoziale che specificamente disciplini l´utilizzazione delle cose proprie e comuni, stabilendo limiti e divieti precisi e rigorosi che rendano inammissibile il ricorso al criterio di normale tollerabilità ed al contemperamento equitativo delle esigenze della produzione con le ragioni della proprietà”. REZZONICO, Silvo; e REZZONICO, Matteo. Manuale del Condominio. 2. ed. Milano: Il Sole 24 Ore, 2003, p. 585. 30 Assim decidiu o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul: “Cada condômino pode usar e fruir, com exclusividade, de sua unidade autônoma, segundo as suas conveniências e interesses, bem como usar as partes e coisas comuns, desde que resguarde os interesses coletivos e não cause obstáculo ao bom uso das partes comuns pelos demais condôminos. A convenção de condomínio não poderá impor restrições a seus direitos dominiais, outras que não as exigidas para a adequada e razoável tutela ao bem da coletividade”. TJRS. 1ª. Câmara Cível. Apelação Cível 29.316. Rel. Des. Athos Gusmão Carneiro. Revista de Jurisprudência Brasileira, v. 34, p. 243. 31 Marcel Planiol considerava a expressão “abuso do direito” uma logomaquia. Dizia o autor francês que o direito cessa onde começa o abuso, e não se poderia exercer abusivamente um direito, pois um mesmo ato não poderia ser, simultaneamente, conforme e contrário ao direito. No original: “Mais il ne faut pas en être dupe: le droit cesse où l´abus commence, et il ne peut pas y avoir tout à la fois conforme et contraire au droit”. Traité élémentaire de droit civil, t. II. 2. ed. Paris: Libraire Générale de Droit et de Jurisprudénce, 1901, p. 297. 32 A teoria teria sido uma forma de reação e resistência à visão absolutista e individualista da dogmática tradicional. MATHIAS, Guilherme Valdetaro. O abuso do direito. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. __. 33 Cf. FERREIRA, Keila Pacheco. Abuso do direito nas relações obrigacionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 16-18.

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Tendo em vista que o Código Napoleônico não continha qualquer dispositivo que

limitasse ou impusesse limites ao exercício dos direitos em geral, e diante dos abusos que

passaram a ocorrer em decorrência do exercício desses direitos, a jurisprudência francesa

passou a reprimir condutas abusivas, por meio de decisões judiciais. Os tribunais franceses,

portanto, no século XIX, ao analisarem casos concretos, nos quais a aplicação pura e simples

da lei acabava por causar injustiças, desenvolveram a teoria do abuso do direito.34

Naquele momento histórico, a idéia de solidariedade já começava a ganhar espaço nas

obras doutrinárias e nas decisões judiciais, em contraposição ao individualismo, que, até

então, reinava no contexto jurídico e social. O pensamento de que as sociedades deveriam

estar preocupadas em garantir o justo equilíbrio entre os direitos subjetivos foi se tornando

cada vez mais forte.

Os direitos subjetivos não deveriam mais ser considerados como realidades isoladas.

Sabendo-se que a vida em sociedade gera, inevitavelmente, conflitos de interesses individuais,

deveria o ordenamento garantir não só o exercício do direito por seu titular, mas também que

esse exercício não se desse em afronta ao interesse coletivo, aos anseios da própria sociedade.

Os direitos subjetivos deveriam ser exercidos, por isso, em conformidade com o

sistema jurídico em que estavam inseridos. A teoria do abuso do direito surgiu, assim, como

uma forma de impedir que as injustiças se perpetrassem. O espírito da lei deveria prevalecer

sobre a sua letra fria.

Com essa idéia, apareceram diversas teorias, principalmente na França e na Itália, que

tentaram apontar que critério deveria ser utilizado para identificar o exercício abusivo de um

direito subjetivo.35 As duas teorias mais importantes são a subjetiva e a objetiva.

34 FERREIRA, Keila Pacheco. Ob. cit., p. 18. 35 Entre as teorias mais conhecidas, Léon Duguit, que a partir do abuso do direito negava a própria concepção do direito subjetivo; Mario Rotondi pregava o abuso do direito como fenômeno sociológico; Marcel Planiol, invocando a logomaquia já citada anteriormente, ressaltava que o ato abusivo, por ser ilícito, não poderia ser considerado como o exercício de um direito. Para René Savatier, o abuso do direito surgia quando o seu exercício resultava em um dano anormal; Georges Ripert asseverava que o abuso do direito era resultado da subordinação da lei positiva aos princípios morais, superiores a ela; Louis Josserand (Relatividad y abuso de los derechos. In: Del abuso de los derechos y otros ensayos. Santa Fe de Bogota: Temis, 1999), dividindo os direitos em três categorias – não causados, de espírito egoísta e de espírito altruísta – concluiu que o critério do abuso do direito deveria ser retirado do desvio do direito da sua finalidade ou função social, seja ela qual for: econômica, moral, egoísta ou desinteressada. A crítica que se fez à concepção de Josserand consistia no fato de que ela exigia, ainda, elementos subjetivos, já que o autor pressupunha necessário saber o motivo que impulsionou o

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Em apertada síntese, a teoria subjetiva sustenta que o critério para se aferir o abuso do

direito é a intenção do seu titular. Deve ele ter o desejo, a vontade de prejudicar outrem. Se

não estiver imbuído desse objetivo, ainda que o exercício do seu direito cause enorme dano,

não haverá abuso. As primeiras decisões da jurisprudência francesa sobre o abuso do direito

abarcaram esta teoria.

Por outro lado, a teoria objetiva não se preocupa com a intenção do titular do direito.

Para os seus defensores, o abuso do direito se verifica quando a finalidade própria do direito

não está em conformidade com a atuação no caso concreto. Se a finalidade econômica e social

do direito subjetivo não for respeitada por seu titular, estar-se-á diante da figura do exercício

abusivo do direito.

A teoria objetiva é, sem dúvida, amplamente majoritária nos dias atuais, inclusive nos

países estrangeiros. E isso porque a teoria subjetiva, a nosso ver, engloba apenas uma parte do

que vem a ser o abuso do direito. É inegável que alguém que age com o fim de causar

prejuízo será responsável pelos danos que causar. A teoria objetiva também abraça essa idéia.

Mas, deixar de fora desse instituto os inúmeros casos em que o titular do direito não tem o

animus de prejudicar, mas acaba causando danos porque o exercício do seu direito não se deu

em conformidade com os anseios sociais, não parece razoável.

No Brasil, o abuso do direito não foi acolhido expressamente pelo Código Civil de

1916. Mas a doutrina já sustentava que o exercício irregular de um direito por seu titular era

proibido pelo ordenamento jurídico, utilizando-se, para tanto, de uma interpretação a

contrario sensu do artigo 160, I, que afirmava não constituir ato ilícito o praticado no

exercício regular de um direito reconhecido. Desde então já se discutia a autonomia do abuso

do direito, ou a ausência dela, em relação ao ato ilícito. Pontes de Miranda, por exemplo,

sustentava que o abuso do direito “é ato ilícito, porque exercício irregular”.36

O Código Civil de 2002, inspirado na redação do artigo 334 do Código Civil

português, sanou a omissão do Código anterior, disciplinando, no artigo 187, a figura do

titular do direito a agir desta ou daquela maneira. Para um estudo aprofundado dessas teorias, v. SÁ, Fernando Augusto Cunha de. Abuso do direito. Lisboa: Almedina, 1973 (2ª. reimpressão em 2005). 36 Tratado de direito privado, v. II, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977, p. 311.

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abuso do direito, ao dispor que “também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao

exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela

boa-fé ou pelos bons costumes”.

Ocorre que, ao utilizar a locução “também comete ato ilícito” na parte inicial do citado

dispositivo, o legislador não encerrou as discussões doutrinárias no sentido de se saber se a

norma contida no atual artigo 187 permitiria considerá-lo como uma categoria autônoma em

relação ao ato ilícito. O embate entre as teorias objetiva e subjetiva também permaneceu,

embora os adeptos da segunda corrente não exijam mais, necessariamente, a intenção do

agente, bastando a presença da culpa.

Alguns doutrinadores, como Humberto Theodoro Junior, sustentam que o Código

Civil adotou a teoria subjetiva, sendo fundamental, pelo menos, a culpa do agente para se

configurar o abuso do direito. Além disso, ele seria uma espécie de ato ilícito.37

O raciocínio dos adeptos da corrente subjetiva decorre, principalmente, de um

silogismo: se, pela dicção do artigo 187, o exercício abusivo de um direito configura ato

ilícito, e se o ato ilícito tem como um dos seus pressupostos a culpa ou o dolo, logo, não

haverá abuso do direito sem que haja, no mínimo, a culpa do agente.

Todavia, é dominante a posição de que o legislador, não obstante a parte inicial do

artigo 187, adotou a teoria objetiva. Daniel M. Boulos sustenta que o referido dispositivo legal

trouxe a concepção objetiva do abuso do direito, e que para ficar caracterizada a

antijuridicidade do ato a intenção do agente não é levada em conta; não se requer nem mesmo

a consciência de quem pratica o ato.38

37 Afirma o autor: “De tal sorte, o abuso do direito, previsto no art. 187 do novo Código, corresponde a ato culposo, porque é com base na conduta culposa lato sensu que legalmente se define o ato ilícito, a cujo gênero se filiou o exercício abusivo de direito. Mas, não há necessidade de submetê-lo ao rigor de somente acontecer com o concurso de dolo do agente. A culpa, em qualquer dos seus graus, presta-se a configurar o ato ilícito e, por isso, servirá também para a configuração do abuso do direito”. THEODORO JUNIOR, Humberto. Comentários ao Código Civil, v. 3, t. 1. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 127. Rui Stoco também sustenta que o Código Civil consagrou a culpa como pressuposto da responsabilidade do agente. Confira-se: “...não há como afirmar que o art. 187, que está situado no Título III, relativo aos atos ilícitos possa dispensar esse fundamento... No campo de incidência do art. 187, o abuso do direito só se converte em ato ilícito se presente um dos atributos da culpa, tal como previsto no art. 186: ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência”. Responsabilidade Civil. In: O novo Código Civil – estudos em homenagem ao Prof. Miguel Reale, p. 806. 38 BOULOS, Daniel M.. Abuso do Direito no novo Código Civil, São Paulo: Método, 2006, p. 135: “Ao contrário do que alguns poucos autores brasileiros de renome vêm afirmando, a norma contida no artigo ora

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Keila Pacheco Ferreira, igualmente, defende que o atual código adotou o viés objetivo

no que toca o abuso do direito, por não exigir a presença da culpa para a sua configuração,

mas unicamente o exercício em desconformidade com os limites impostos pela sua finalidade

social, pela boa-fé e do padrão de comportamento que dela exsurge, e também pelos bons

costumes e pela consciência jurídica predominante.39

No tocante à autonomia dogmática do instituto, Heloísa Carpena também é taxativa

em diferenciar o abuso do direito do ato ilícito, distinguindo-os pela natureza da violação

contida em cada um deles, e colocando o primeiro em uma categoria em separado. Para a

autora, o sujeito, quando abusa do seu direito, aparentemente está agindo de acordo com a

regra legal, embora uma análise do caso de acordo com os valores em razão dos quais aquele

direito fora reconhecido, revela a ilegitimidade do exercício. Há, aqui, um descumprimento

dos limites axiológico-materiais.40

Vale também ressaltar a posição de Gustavo Tepedino, Maria Celina Bodin de Moraes

e Heloisa Helena Barbosa, que, embora criticando a definição do Código segundo a qual o

comentado traz a concepção objetiva do abuso do direito. Trata-se da consagração legislativa da teoria objetiva da ilicitude que, como visto, defende que o juízo de valor que redunda na antijuridicidade do ato não leve em conta o espírito e sequer a consciência do sujeito que o praticou”. Sobre o embate das teorias, v. tb. CARPENA, Heloísa. Abuso do direito nos contratos de consumo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 22 e ss. 39 FERREIRA, Keila Pacheco. Abuso do Direito nas Relações Obrigacionais, Editora Del Rey, p. 142: “O legislador do Código Civil de 2002 optou pela concepção objetiva, ou finalista, do abuso do direito, pois não exige culpa para a sua configuração, mas sim, que, no exercício dos direitos, o titular exceda os limites impostos pela sua finalidade ou missão social, pelo padrão de comportamento dado pela boa-fé ou pela consciência jurídica dominante, proclamada pelos bons costumes”. Vilson Rodrigues Alves, bem antes do advento do atual Código Civil, já defendia a teoria objetiva. ALVES, Vilson Rodrigues. Uso nocivo da propriedade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992, p. 341. Caio Mario da Silva Pereira, embora se filie à teoria objetiva, põe como requisito, a nosso ver sem razão, a ausência de vantagem para o titular do direito. Confira-se: “Não importa, na caracterização do uso ilícito do direito a deliberação de malfazer – animus nocendi. É suficiente determinar que, sem esta indagação extremamente subjetiva, abusa de seu direito aquele que leva o seu exercício ao extremo de convertê-lo em prejuízo para outrem sem vantagem para si mesmo”. PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de direito civil, v. I. 22. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 675. 40 Confira-se: “O que diferencia as duas espécies de atos é a natureza da violação a que eles se referem. No ato ilícito, o sujeito viola diretamente o comando legal, pressupondo-se então que este contenha previsão expressa daquela conduta. No abuso, o sujeito aparentemente age no exercício de seu direito, todavia, há uma violação dos valores que justificam o reconhecimento deste mesmo direito pelo ordenamento. Diz-se, portanto, que no primeiro, há inobservância de limites lógico-formais e, no segundo, axiológico-materiais. Em ambos, o agente se encontra no plano da antijuridicidade: no ilícito, esta resulta da violação da forma, no abuso, do sentido valorativo. Em síntese, o ato abusivo está situado no plano da ilicitude, mas com o ato ilícito não se confunde, tratando-se de categoria autônoma de antijuridicidade”. CARPENA, Heloísa. Abuso do direito no código de 2002. Relativização de direitos na ótica civil-constitucional. In: TEPEDINO, Gustavo (coord.). A parte geral do novo código civil – estudos na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 381. Guilherme Valdetaro também considera que o ato abusivo é uma categoria autônoma, possuindo as suas próprias características, não sendo um ato ilícito puro. Ob. cit., p. __.

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abuso do direito seria espécie de ato ilícito, defendem a interpretação do instituto como uma

ilicitude lato sensu:

Não foi feliz, todavia, o legislador de 2002, ao definir o abuso do direito como espécie de ato ilícito. A opção legislativa contraria a doutrina mais moderna do abuso do direito, que procura conferir-lhe papel autônomo na ciência jurídica. Assim sendo, o art. 187 do CC, que define o abuso de direito como ato ilícito, deve ser interpretado como uma referência a uma ilicitude lato sensu, no sentido de contrariedade ao direito como um todo, e não como uma identificação entre a etiologia do ato ilícito e a do ato abusivo, que são claramente diversas.41

A melhor orientação, realmente, parece ser aquela segundo a qual é desnecessário que

o titular do direito tenha o objetivo de lesar outrem – ou mesmo que aja com culpa – para que

se configure o abuso do direito. Não há que se indagar se estão presentes elementos

subjetivos. Para a antijuridicidade da conduta, basta a desconformidade com a boa-fé, a

função social ou os bons costumes. Tem-se aqui um ilícito objetivo que dispensa a culpa

como elemento para sua configuração.42

A investigação da presença da culpa lato sensu deve, por outro lado, ser feita para a

configuração do ato ilícito descrito no artigo 186 do Código Civil. Este sim define o ilícito

subjetivo, que exige a presença dos clássicos requisitos da conduta culposa, nexo de

causalidade e dano.

O que pretende o ordenamento jurídico coibir, no artigo 187, é que se invoque uma

faculdade prevista em lei, aparentemente de forma adequada, para alcançar objetivo que não é

legítimo e que não é tolerado pelo ordenamento segundo os princípios nele vigentes. Para a

verificação do abuso do direito, é necessário (i) o uso do direito de uma forma legal; (ii) o

dano ocasionado a outrem, em decorrência do exercício deste direito;43 e (iii) o excesso dos

limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.44

41 TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA, Heloisa H; e MORAES, Maria Celina B. de. Código civil interpretado conforme a constituição da república. V. I. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 342. Ainda sobre o assunto, v. tb. PINHEIRO, Rosalice Fidalgo. O abuso do direito e as relações contratuais. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. 42 Nesse sentido, aliás, é o Enunciado 37 da primeira Jornada de Direito Civil – STJ, sob a coordenação do Ministro Ruy Rosado de Aguiar Junior: “A responsabilidade civil decorrente do abuso do direito independe de culpa, e fundamenta-se somente no critério objetivo-finalístico”. 43 A bem da verdade, não seria necessário o dano propriamente dito; seria possível caracterizar o abuso com a simples ameaça. 44 Para Milton Flávio de Almeida Camargo Lautenschläger: “Identifica-se a ocorrência do abuso de direito (a) no comportamento emulativo, ou seja, na ação ou omissão destinada a causar prejuízo a outrem; (b) no

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Estes limites previstos no art. 187 são verdadeiras condições para o exercício legítimo

do direito, de forma que, desrespeitado qualquer um deles, o exercício do direito será

reprovado pelo ordenamento jurídico. E vale destacar que as três expressões contidas no

citado dispositivo “fim econômico ou social”, “boa-fé” e “bons costumes” são conceitos

jurídicos indeterminados que permitirão ao julgador adaptá-los, diante das peculiaridades do

caso concreto e da realidade social em que o caso está inserido.

Pergunta-se, então: é possível aplicar o abuso do direito nas relações jurídicas reais, ou

o seu campo estaria restrito à responsabilidade civil?

Milton Lautenschläger indaga, justamente, se a teoria do abuso do direito adquiriu

autonomia bastante para ser aplicada em outras áreas além da responsabilidade civil. Se a

resposta for negativa, então a única conseqüência seria a condenação de quem agiu com abuso

a indenizar que em razão desta conduta foi prejudicado. Mas se se concluir no sentido

positivo, então o abuso do direito pode ensejar a anulação do ato ou do negócio jurídico,

como, aliás, soa até evidente.45

Não parece mesmo haver nenhuma dificuldade em se aplicar o abuso do direito no

âmbito das relações jurídicas reais, inclusive as condominiais, até pelo fato de que essa teoria,

quando nasceu nos tribunais franceses na metade do século XIX, foi utilizada para julgar

casos envolvendo atos emulativos de proprietários que abusavam do seu direito. Em um deles,

o proprietário construiu uma imensa chaminé, falsa, com o objetivo de fazer sombra no

imóvel vizinho.46

comportamento que, embora desprovido de caráter emulativo, não gera vantagem ao agente e revela-se desvantajoso ao terceiro; e (c) no comportamento que, embora imponha utilidades para um e desutilidades para outrem, se mostre, numa análise da jurisprudência e/ou da doutrina pelo magistrado, contrário aos valores, princípios e máximas de condutas que compõem a ‘utilidade conceitual e valorativa’ do Código Civil”. Abuso do Direito. São Paulo: Atlas, 2007, p. 51. 45 Ob. cit., p. 105-106: “O problema é saber se a teoria do abuso do direito deve ficar circunscrita ao âmbito da responsabilidade civil, ou se ela adquiriu autonomia suficiente para ser aplicada em outras searas. Vale dizer, se se entender que a sua abrangência se limita àquela da responsabilidade civil, a única conseqüência do ato abusivo seria a sujeição, de quem o praticou, ao pagamento da indenização; enquanto que, se se entender que ela avança sobre outros horizontes, novas conseqüências poderiam dele advir. (...) verificada a presença do abuso do direito na prática de negócios jurídicos, este poderá ensejar não só a obrigação de reparar os danos por ele causados, morais e patrimoniais, como também a nulidade do ato ou negócio jurídico, nos termos do artigo 166, II, VI e VII”. 46 Amaral, Francisco. Direito civil: introdução. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 199.

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No caso mais célebre, e considerado um leading case, um proprietário rural, cujo

imóvel se situava ao lado do hangar de dirigíveis Clement-Bayard, construiu enormes objetos

de madeira sobre os quais colocou quatro lanças de ferro. Com isso, o vizinho pretendia

dificultar, ou mesmo impedir, o trânsito dos dirigíveis, e tornar-se inconveniente o bastante a

ponto de convencer a empresa a adquirir o seu imóvel por um preço elevado. O Tribunal de

Apelação de Amiens, em acórdão de 2 de novembro de 1912, decidiu que o direito de

propriedade era relativo, não absoluto, e que ele não poderia ser exercido com o único

propósito de prejudicar o vizinho e especular o preço da sua terra.47

De tão discutida, a teoria dos atos emulativos veio a merecer por parte do legislador do

Código de 2002 o parágrafo segundo do artigo 1.228, segundo o qual “são defesos os atos que

não trazem ao proprietário qualquer comodidade, ou utilidade, e sejam animados pela

intenção de prejudicar outrem”. Embora o abuso do direito não exija, para se caracterizar, a

intenção de prejudicar, esse dispositivo legal é mais uma prova de como o direito real é um

campo fértil para a aplicação desse instituto.48

Na seara condominial, o abuso do direito se aplica, especialmente, para frear a tirania

da maioria, quando ela possuir os quoruns legais ou convencionais para a aprovação de

determinada matéria, ou mesmo para impedir que o veto abusivo, quando determinado

assunto depender da unanimidade dos condôminos.

Na França, a lei condominial, de 28/12/1966, com o objetivo de proteção da minoria,

prevê, na alínea 2 do artigo 22, que na hipótese de um dos condôminos deter mais da metade

das frações ideais, os seus votos serão reduzidos à soma dos votos dos demais condôminos.49

Entretanto, a própria doutrina francesa não vê o dispositivo como uma solução definitiva para

47 Ob. cit., p. 199. 48 Vale ressaltar a opinião de Gustavo Tepedino, para quem o parágrafo segundo do art. 1.228, ao vedar os atos emulativos, é inócuo: “Os atos emulativos, úteis no passado para se construir a doutrina do abuso do direito, tornam-se totalmente desnecessários no sistema atual, sendo a função social um elemento interno do domínio, um pressuposto de legitimidade. Com efeito, muito antes de se caracterizar um ato emulativo, a propriedade perde a sua legitimidade constitucional se o proprietário deixar de promover os valores sociais associados à titularidade do domínio”. Os direitos reais... Ob. cit., p. 159. Na verdade, muitas vezes não existe essa antecipação da perda da função social em relação ao ato emulativo, pois é possível que o proprietário, mesmo cumprindo a função social em vários aspectos, possa, em relação a uma situação específica, ter a intenção de prejudicar alguém. Assim, a verdadeira infelicidade do dispositivo legal está mais em exigir o elemento subjetivo do que propriamente vedar o ato emulativo. 49 No original: “Chaque copropriétaire dispose d'un nombre de voix correspondant à sa quote-part dans les parties communes. Toutefois, lorsqu'un copropriétaire possède une quote-part des parties communes supérieure à la moitié, le nombre de voix dont il dispose est réduit à la somme des voix des autres copropriétaires”.

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o problema das votações.50 O Brasil não possui regra semelhante, e realmente ela não parece

adequada, já que poderia criar incontáveis situações de injustiça com o controlador das

frações ideais, e não evitaria, por si só, o abuso dos minoritários.

Gustavo Tepedino, em matéria condominial, lembra que o art. 1.334 do Código Civil

não estabeleceu entre as cláusulas obrigatórias da convenção a previsão do fundo de reserva, o

que poderia abrir as portas para algum condômino se recusar a participar do seu rateio. O

autor, ao opinar no sentido da legitimidade e obrigatoriedade da deliberação assemblear que o

instituir, ressalva que “não se pode aceitar a imposição de fundo de reserva abusivo”, e que

ele “deve ser compatível com o patrimônio imobiliário”.51

O Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios julgou lide em que o

condomínio abusou do direito de cobrar as cotas condominiais, ao sujeitar o condômino

inadimplente ao constrangimento de ver o seu débito comunicado ao seu superior hierárquico.

O acórdão, também com base no princípio da dignidade da pessoa humana, condenou o

condomínio ao pagamento de danos morais:

RESPONSABILIDADE CIVIL. CONDOMÍNIO. CONDÔMINO INADIMPLENTE. COMUNICAÇÃO DA INADIMPLÊNCIA AO SUPERIOR HIERÁRQUICO DO DEVEDOR. ABUSO DE DIREITO. (...) A despeito de caracterizada sua mora e qualificada sua inadimplência, ao devedor é assegurado o respeito à sua dignidade e honorabilidade pessoais e o resguardo da sua intimidade, de forma a serem preservados os atributos da sua personalidade, sendo vedada sua exposição a ridículo e sua sujeição a situações constrangedoras por ocasião da cobrança do débito que o aflige. 2. A comunicação da situação de inadimplência do condômino – policial militar – ao seu superior hierárquico e sua qualificação como devedor renitente e inadimplente contumaz caracterizam-se como abuso no exercício dos direitos titularizados pelo condomínio, qualificando-se como ato ilícito e fato gerador do dano moral ante os constrangimentos aos quais fora submetido e as ofensas que experimentara na sua dignidade, decoro e conceito pessoal e profissional, rendendo ensejo a uma compensação pecuniária. (...) . 4. Recurso conhecido e improvido. Unânime.52

50 KISCHINEWSKY-BROCQUISSE, Édith. La copropriété des immeubles bâtis, 3. ed., Paris: Librairies techniques, 1978, p. 646: “Un copropriétaire majoritaire ne peut plus désormais imposer sa volonté à l´assemblée, mais de nombreux auteurs pensent que cette mesure est tout à fait innoportune. Nous adoptons cette même attitude. En effet, il se produira désormais souvent un conflit d´égalité entre le copropriétaire anciennement majoritaire et les autres coproprietáires. L´ássemblée ne pourra alors prendre aucune décision en présence d´un partage égal de voix”. 51 Os direitos reais... Ob. cit., p. 165 52 TJDFT. 1ª. Turma Recursal dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais. Apelação 2004.06.1.003606-9. Relator Juiz Teófilo Rodrigues Caetano Neto. Julgado em 07/12/2004. Acórdão Unânime.

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O mesmo Tribunal considerou que exerce abusivamente o direito de propriedade o

condômino que faz mal uso de seu imóvel, prejudicando o sossego dos demais consortes:

DIREITO CIVIL. RELAÇÕES DE VIZINHANÇA. PRINCÍPIOS DA RAZOABILIDADE E DA NORMALIDADE. RUÍDOS EXCESSIVOS E CONSTANTES. DANO MORAL CARACTERIZADO. I. As relações de vizinhança devem ser pautadas pelo respeito mútuo, pela lealdade e pela boa-fé. O exercício das prerrogativas dominiais e possessórias não pode extravasar os limites da razoabilidade e da normalidade de molde a prejudicar a segurança, o sossego e a saúde das pessoas que habitam os prédios vizinhos. II. O proprietário ou possuidor do imóvel deve eximir-se de atitudes nocivas à segurança, ao sossego e à saúde das pessoas que habitam o prédio ou a unidade vizinha, sob pena de incorrer em abuso de direito e, por conseguinte, de praticar ato ilícito. (...) V. Como direitos imanentes à pessoa humana, os direitos da personalidade contemplam sua integridade física, moral, psíquica, emocional e intelectual. No plano dos direitos da vizinhança, a lei ponderou os interesses envolvidos e priorizou a proteção ao sossego e à saúde, sobretudo visando ao resguardo desses atributos da personalidade. VI. Afetados o sossego e a qualidade de vida pelo barulho e vibração incessantes provocados pelo maquinário indevidamente instalado, exsurge o dano moral pelo comprometimento da integridade física e psíquica do vizinho.53

Como se vê, o abuso do direito pode ser um poderoso instrumento na composição das

lides condominiais, colaborando para a construção de um condomínio edilício

constitucionalizado, onde terão sempre prevalência as situações existenciais, cumprindo-se a

função social da propriedade. É sobre essa função social, aliás, que passamos a discorrer.

1.4. Abuso do direito e função social da propriedade

Não parece suscitar dúvida o fato de que o abuso do direito pode ser amplamente

aplicado no âmbito das relações jurídicas reais e, por conseguinte, em matéria de condomínio

edilício. Essa é precisamente uma das razões de ser desta dissertação. Mas não basta abrir as

portas para a aplicação do instituto; é necessário apoiar o abuso do direito em princípios e

parâmetros objetivos, que orientem o operador do direito e reduzam a insegurança jurídica.

53 TJDFT. 6ª. Turma Cível. Apelação 2004.01.1.062863-7. Rel. Des. James Eduardo Oliveira. Julgado em 04/07/2007. Acórdão Unânime.

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Com esse desiderato, nos capítulos seguintes tentaremos identificar, no universo

condominial, situações específicas em que o abuso do direito pode se fazer presente, e a partir

de casos pontuais buscaremos extrair os critérios que devem orientar o intérprete na

identificação do abuso. Mas antes é preciso traçar uma premissa, qual seja: a de que no

condomínio edilício, o exercício não abusivo da propriedade é informado, especialmente, pelo

princípio da função social da propriedade.

O artigo 187, que acolheu o abuso do direito em nossa legislação civil, dispõe que

abusa do direito aquele que “ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu

fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.

O artigo 182, parágrafo segundo, da Constituição Federal, estatui que a propriedade

urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da

cidade expressas no plano diretor. O artigo 39 da Lei 10.257/01, repetindo o disposto na

Constituição, vai além, impondo ainda o “atendimento das necessidades dos cidadãos quanto

à qualidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das atividades econômicas”.

O parágrafo primeiro do art. 1.228 do Código Civil, de modo expresso, abraçou a

função social da propriedade, ao estabelecer que esse direito deve ser exercido “em

consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados

... a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e

artístico ...”.

Gustavo Tepedino, sobre a função social da propriedade, destaca que ela é responsável

pelo controle de legitimidade funcional desse direito, e impõe ao titular o dever de respeitar

situações jurídicas e interesses não proprietários socialmente tutelados, atingidos pelo

exercício do domínio.54

Pietro Perlingieri há muito já professava a função social como fator de legitimidade do

direito de propriedade. O titular do domínio só recebe a tutela do ordenamento jurídico na

medida em que o seu comportamento está de acordo com os valores vigentes. Se o

54Os direitos reais no novo código civil..., Ob. cit., p. 158.

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proprietário não atribui ao seu bem a função que dele se espera, o direito a ele conferido perde

a razão de existir.55

Vinte anos após a promulgação da Constituição da República, a doutrina civilista, no

início tão indiferente ao texto constitucional, e resistente em interpretar o Código Civil à luz

do Texto Maior, e não o inverso, parece finalmente ter se apercebido da verdadeira revolução

pela qual passou a propriedade.56 A propriedade, antes tida como um direito quase absoluto,

com seus limites definidos externamente, dentro dos quais o proprietário era livre para exercer

o direito como bem lhe aprouvesse, hoje encontra a função social como a sua própria razão de

existir, de modo que os direitos dos proprietários serão tutelados se e enquanto exercidos de

acordo com esse princípio.57

Conforme se observou com acuidade, em se tratando da propriedade filtrada

constitucionalmente, não se pode admitir uma mera redução quantitativa dos poderes

proprietários. Agora, a situação proprietária envolve não apenas o titular do domínio, mas

terceiros também, e a balança penderá para um lado ou para o outro dependendo de qual

solução atenderá melhor, no caso concreto, o fim constitucional.58

55 PERLINGIERI, Pietro. Introduzione alla problematica della proprietà. Napoli: Jovene, 1970, p. 71: “Se Tício obteve reconhecimento pelo ordenamento jurídico da propriedade de um determinado bem e essa propriedade tem uma disciplina inderrogável fora dos poderes do titular, fora da autonomia privada, e se nessa disciplina existem determinadas obrigações de comportamento por parte do proprietário, isso significa que só recebeu do ordenamento jurídico aquele direito de propriedade na medida em que respeite tais obrigações, na medida em que respeite a função social do direito de propriedade. Se o proprietário permanece inadimplente e não se realiza a função social da propriedade, ele não é mais merecedor de tutela de parte do ordenamento jurídico: não existe mais razão para tutela, não há mais razão para o direito de propriedade”. Ainda na doutrina italiana acerca da função social da propriedade, v. BIANCA, C. Massimo. Diritto Civile: la proprietà, v VI, Milano: Giuffrè editore, 2005, p. 170 e ss; e RODOTÀ, Stefano. Il terribile diritto. Studi sulla proprietà privata. 2. ed. Bologna: Il Mulino, 1990, p. 31 e ss. 56 Francisco Eduardo Loureiro escreve que “a propriedade é uma relação jurídica complexa, que reúne não só um feixe de poderes, como os de usar, gozar, dispor e reivindicar a coisa, mas também deveres em relação a terceiros proprietários e a terceiros não-proprietários. Ao lado dos tradicionais poderes que fazem da propriedade um valor de sinal positivo, há, também, valores emergentes, que têm como universo de referência o sistema social”. A propriedade como relação jurídica complexa. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 43-44. 57 TEPEDINO, Gustavo José Mendes. Contornos constitucionais da propriedade privada. In: Temas de direito civil, Tomo I,. 3ª. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 323. 58 Não se pode deixar de invocar mais uma vez as palavras de Gustavo Tepedino: “A propriedade constitucional, ao contrário, não se traduz numa redução quantitativa dos poderes do proprietário, que a transformasse em uma ‘mini-propriedade’, como alguém, com fina ironia, a cunhou, mas, ao reverso, revela uma determinação conceitual qualitativamente diversa, na medida em que a relação jurídica da propriedade, compreendendo interesses não-proprietários (igualmente ou predominantemente) merecedores de tutela, não pode ser examinada ‘se non costruendo in una endiadi le situazioni del proprietario e dei terzi’. Assim considerada, a propriedade (deixa de ser uma ameaça e) transforma-se em instrumento para a realização do projeto constitucional”. TEPEDINO, Gustavo José Mendes. Contornos constitucionais..., ob. cit., p. 323

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Salvatore Pugliatti expôs que a propriedade não pode ser concebida sob um aspecto

unitário. Como relação jurídica complexa, o mais correto seria falar em “propriedades”,59

pois o regramento variará conforme o contexto em que a propriedade estiver inserida: o

tratamento que se confere à propriedade privada não é o mesmo atribuído à propriedade

pública; o mesmo se diga com relação às propriedades urbana e rural. Igualmente, o

tratamento varia conforme se analise a propriedade exclusiva, e a propriedade em

condomínio.

No condomínio edilício, os vizinhos são mais numerosos e mais próximos, o que

aumenta os conflitos surgidos em decorrência da convivência forçada. Assim é que Flavia de

Almeida Viveiros de Castro, ao discorrer sobre os direitos de vizinhança, mostra que a função

social da propriedade tem o seu conteúdo preenchido pelo princípio constitucional da

solidariedade. No condomínio socialmente funcionalizado, a liberdade deve trazer consigo a

responsabilidade, e o individualismo deve ceder lugar à tolerância e à solidariedade.60

Carlos Edison do Rego Monteiro Filho, em artigo sobre o direito de vizinhança no

Código Civil de 2002, também destacou a funcionalização do direito de propriedade, e sua

aplicação na relação entre vizinhos. O autor, na mesma linha de Salvatore Pugliatti,61

explicitou que a propriedade moderna possui, tal como a propriedade oitocentista, os aspectos

estruturais, consubstanciados nos poderes de usar, fruir e dispor da coisa (elemento interno) e

59 PUGLIATTI, Salvatore. La Proprietà nel Nuovo Diritto. Milano: Dott. A. Giuffrè Editore, 1964, p. 149: “Il problema permane, anzi si pone più decisamente, quando si afferma che, allo stato delle attuali concezioni e discipline positive dell´istituto, non si può parlare di un solo tipo, ma si deve parlare di tipi diversi di proprietà, ciascuno dei quali assume un suo aspetto caratteristico”. 60 Diz a autora: “O direito ao respeito é inerente à condição humana e permite o pleno exercício da cidadania e da dignidade em um ambiente de normais turbulências causadas pela convivência forçada (no caso dos condomínios), pela contigüidade e pela vizinhança. Abandona-se a perspectiva individualista, prevalecente outrora, para aderir à visão fraterna e tolerante do homem e de seu direito de propriedade, que se propõe inclusivo e funcionalizado e que permite a cada um fazer uso do que é seu de forma a propiciar a mesma utilização ao seu vizinho, sem que um venha a causar dano ou a prejudicar o outro, com liberdade, mas também com responsabilidade”. CASTRO, Flavia de Almeida Viveiros de, Solidariedade social, tolerância e direitos de vizinhança. In: TEPEDINO, Gustavo e FACHIN, Luiz Edson (coord). O direito e o tempo: embates jurídicos e utopias contemporâneas – Estudos em homenagem ao Professor RICARDO PEREIRA LIRA. Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 2008, p. 626. Ainda sobre direito de vizinhança, v. BESSONE, Darcy. Direitos reais. São Paulo: Saraiva, 1988, pp. 197 e ss. 61 Esse autor italiano, ainda na década de 60, já afirmava: “Quando si voglia porre la questione dell´autonomia di un istituto, non solo appare evidente, in astratto, l´isufficienza della considerazione strutturale, che è certamente unilaterale, ma non ci vuole molto ad intendere che la considerazione funzionale si colloca spontaneamente in primissiomo piano. Non soltanto la struttura per sè conduce inevitabilmente al tipo che si può descrivere, ma non individuare, bensì inoltre la funzione esclusivamente è idonea a fungere da criterio d’individuazione: essa, infatti, dà la ragione genetica dello strumento, e la ragione permanente del suo impiego, cioè la ragione d’essere (oltre a quella di essere stato)”. Ob. cit., p. 300.

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de reaver o bem de quem o possua injustamente; todavia, a atual propriedade tem,

especialmente, o aspecto funcional, que a transforma qualitativamente.62

De fato, a função social da propriedade, como princípio, serve para preencher

axiologicamente as cláusulas gerais e os conceitos jurídicos indeterminados, em matéria de

direito de vizinhança (o que inclui o condomínio horizontal), e como parâmetro de

interpretação da conduta dos condôminos. A conduta ecologicamente correta, e o respeito à

dignidade da pessoa humana, são fatores determinantes para perquirir se a função social está

sendo atendida e, conseguintemente, se o uso da propriedade é nocivo ou não, e se deve ser

tolerado.63

Luiz Edson Fachin, ao tratar do abuso do direito de propriedade, ressalta a prevalência

do interesse coletivo sobre o individual:64

Por essa razão, tome-se como exemplo o direito de construir e o de usar um imóvel cujo exercício encontra limites quer no direito privado, sempre que o uso ou a construção causarem incômodos insuportáveis à vizinhança caracteriza abuso do direito de propriedade (...) Impende notar que, ao falar-se em conflitos de vizinhança, se extrapola a esfera estritamente individual, seja do proprietário ou possuidor que age com abuso, seja do vizinho que sofre a repercussão danosa. A adequação entre o interesse individual e o interesse coletivo se impõe. Os limites jurídicos se expressam na fronteira entre o privado e o público, com apreciação dos casos concretos, e no confronto entre interesses transindividuais, prevalece o de maior alcance.65

62 MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rego. O direito de vizinhança no novo código civil. Revista da EMERJ, jul/2002 a abril/2003, p. 159: “O tema liga-se diretamente à função social da propriedade, de índole constitucional, que permeia toda a estrutura do direito de propriedade. Hoje em dia, já é quase pacífico que a propriedade tem – ao lado do seu aspecto estrutural, formado por seus elementos econômico e jurídico (elemento econômico, ou interno, é a senhoria, a possibilidade de usar, fruir e dispor, e o elemento jurídico, ou externo, é a possibilidade de repelir as ingerências alheias) – um aspecto funcional, por força de ditame constitucional, que deve permear os aspectos econômicos e jurídicos do instituto”. 63 Carlos Edison do Rego Monteiro Filho prossegue: “Cumpre destacar, outrossim, um outro aspecto que me parece fundamental: o conteúdo da cláusula geral de vizinhança, à luz do texto do artigo 1.277 do novo Código. Como bem destacado pelo Professor Gustavo Tepedino, o preenchimento desse conteúdo há de ser feito sob os ditames da carga axiológica constitucional. De fato, o magistrado deverá perquirir a função social, o atendimento ao meio ambiente, a dignidade da pessoa humana, enfim, todos os valores que são carreados pela Constituição, para que se verifique se, naquele determinado caso, o exercício é nocivo, se provoca interferências, melhor dizendo, que devam ser coibidas”. Ob. cit., p. 162. 64 Convém ressalvar que nem sempre o interesse público vai prevalecer sobre o interesse particular, especialmente se isso importar na violação da cláusula de tutela e promoção da dignidade da pessoa humana. Há de se fazer, em cada caso concreto, a ponderação pertinente. 65 FACHIN, Luiz Edson. Direitos de Vizinhança e o novo Código Civil brasileiro. Revista Trimestral de Direito Civil, jan/mar 2004, p. 55-56.

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Inegavelmente, função social da propriedade e abuso do direito são noções que

caminham juntas. Luiz Edson Fachin, no mesmo artigo acima citado, refere-se à função social

da propriedade, ao tratar do direito de passagem forçada do imóvel cravado em relação ao

imóvel vizinho. Diz o autor que “ao propiciar ao possuidor ou proprietário do prédio vizinho

acesso à via pública, porto ou nascente, está a lei a ampliar a utilização do imóvel que serve

de passagem a outrem, instando-o a cumprir, ainda que em parte, uma dada função social”.66

Ainda na vigência do Código Civil de 1916, a Oitava Câmara Cível do Tribunal de

Justiça de São Paulo, em acórdão relatado pelo Des. José Osório,67 julgou uma ação

reivindicatória de uma grande área, que, embora reconhecidamente esbulhada, transformara-

se numa comunidade de baixa renda. O relator, invocando a função social da propriedade,

entendeu que a remoção dos moradores seria “uma correção cirúrgica de natureza ético-

social, sem anestesia, inteiramente incompatível com a vida e a natureza do direito”.

Esse acórdão, alguns anos depois, e também antes do atual Código Civil, veio a ser

invocado pela Sexta Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul,

que apreciou uma lide idêntica, ficando a ementa com o seguinte teor:

AÇÃO REIVINDICATÓRIA. IMPROCEDÊNCIA. Área de terra na posse de centenas de famílias, há mais de 22 anos. Formação de verdadeiro bairro, com inúmeros equipamentos urbanos. Função social da propriedade como elemento constitutivo do seu conceito jurídico. Interpretação conforme a Constituição. Inteligência atual do art. 524 do CC. Ponderação dos valores em conflito. Transformação da gleba rural, com perda das qualidades essenciais. Aplicação dos arts. 77, 78, e 589 do CC. Conseqüências fáticas do desalojamento de centenas, senão milhares, de pessoas, a que não pode ser insensível o juiz. Nulidade da sentença rejeitada por unanimidade. Apelação desprovida por maioria.68

66 Ob. cit., p. 63. 67 TJSP. 8ª. Câmara Cível. Apelação 212.726-1/8, julgamento em 16.12.1994. Acórdão unânime. In: Justiça e Democracia, Revista Semestral de Informação e Debate, 1 (1996), p. 239-242. 68 TJRS. 6ª. Câmara Cível. Apelação Cível 597163518, Des. Relator (vencido) João Pedro Freire. Julgado em 27/12/2000. Os trechos a seguir transcritos revelam com precisão o espírito do voto vencedor: “(...) É nesse contexto, penso eu, que devem ser examinadas as regras do Código Civil sobre posse e propriedade, ainda mais que esse estatuto, como se sabe, começou a ser elaborado no século XIX, tendo entrado em vigor em 1917, sendo agora um bom velhinho com mais 80 anos de idade, já um pouco desgastado e caquético. Talvez seja um lugar comum, mas não se pode deixar de atentar em que ao tempo da elaboração do Código Civil vivia-se economia de base agrária, antiga, praticamente alheia ao meio urbano. Em tal quadra da vida nacional, o direito constitucional brasileiro não reconhecera ainda direitos humanos fundamentais para os quais a garantia da posse de certas coisas é mais indispensável do que a dos direitos reais patrimoniais, nem reconhecera a função social da propriedade. (...) Por isso mesmo, as regras que dizem respeito a tais conceitos fundamentais não podem ser interpretadas hoje com os olhos do universo cultural da época em que o Código foi promulgado. Quando se estabeleceu no art. 524 do Código Civil o reconhecimento do direito de propriedade privada, com contornos de gozo absoluto e ilimitado, estava-se embebido numa concepção de mundo que hoje não mais

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Realmente, os exemplos na nossa jurisprudência envolvendo abuso do direito e função

social da propriedade são inúmeros.

O Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, analisando uma lide envolvendo

direito de vizinhança, na qual um vizinho pedia demolição do imóvel alheio, construído com

abuso do direito, invocou o direito fundamental de moradia dos habitantes do imóvel

irregular, para converter o pleito demolitório em perdas e danos:

AÇÃO DE REPARAÇÃO DE DANOS PELO USO NOCIVO DE PROPRIEDADE. Réu que construiu prédio no terreno vizinho ao da autora em desrespeito às normas administrativas e legais, caracterizando abuso do domínio e violação dos limites da propriedade, em vista de sua função social. Ponderação entre os direitos à intimidade, privacidade e tranqüilidade da autora e o de moradia dos inquilinos, que habitam no imóvel do réu, bem como o de propriedade deste, afastando, por isso, o pleito demolitório, em respeito ao interesse público em questão, pela aplicação do artigo 1.228 do Código Civil. (...).69

vigora. (...) Na espécie em julgamento, no acirrado e complexo conflito de valores entre os que desde muito abandonaram a propriedade, doando-a ao município em busca de vantagens pessoais (a doação, lembro, estava condicionada à realização de obras públicas em propriedades vizinhas também do domínio da família Magnabosco), e as milhares de pessoas que habitam a gleba, que lutaram e continuam lutando por sua urbanização, transformando-a com seu trabalho, impondo a abertura de ruas, conquistando equipamentos urbanos (luz elétrica, telefones, templos religiosos, casas de comércio, fábricas), entendo que o Poder Judiciário deve se inclinar pelos últimos, de forma consentânea com os princípios fundamentais da Constituição da República. (...) Prossigo observando que não mais existe na espécie em julgamento a gleba de terras objeto da reivindicação: transformou-se em cidade, não apresenta mais as qualidades essenciais anteriores. Embora o imóvel ainda lá permaneça fisicamente, para o direito a existência física não é o fator decisivo, consoante denotam os mencionados incisos I e III do art. 78 do Código Civil. O fundamental, como ressalta ainda aqui, o voto vencedor e condutor do Des. José Osório, que estou reproduzindo em suas linhas fundamentais, é que a coisa seja funcionalmente dirigida a uma finalidade viável, jurídica e economicamente. Daí a conseqüência, para mim inafastável e inarredável, o direito de reivindicar foi suprimido pelas circunstâncias assinaladas. (...) Com essas considerações, rogando vênia ao eminente relator, nego provimento ao recurso, ressalvando aos apelantes o direito de pleitearem indenização frente a quem de direito”. 69 TJRJ. 1ª. Câmara Cível. Apelação Cível 2006.001.46486. Rel. Des. Maria Augusta Vaz. Julgado em 17/10/2006. Acórdão unânime. A relatora invocou expressamente o fenômeno da constitucionalização do direito civil: “O atual paradigma do ordenamento jurídico nacional vem testemunhando, desde a promulgação da Constituição da República de 1988 e das subseqüentes evoluções no posicionamento tanto da doutrina quanto dos Tribunais, o reconhecimento da constitucionalização do direito civil. Neste cenário, as normas e valores fundamentais presentes na carta magna, de eficácia plena ou mesmo contida, vêm se espraiando sobre as relações negociais privadas, impondo a observação de preceitos de ordem pública e das garantias para a plena realização e dignidade da pessoa humana. Na esteira desse pensamento, que segue a noção de função social da propriedade, prevista expressamente no artigo 5º, XXIII da CRFB, o direito não pode ser exercido de forma absoluta e ilimitada por seus titulares, tendo em vista a necessidade de sua harmonização e integração com os demais dispositivos norteadores da norma maior. (...) Todavia, embora se configure legítima a pretensão da autora para que cesse a interferência indevida sobre sua propriedade, em virtude da má utilização da propriedade alheia, em violação aos limites de sua função social e desrespeito à privacidade e domínio de terceiros, o pleito demolitório da autora não deve proceder, ante a necessidade de ponderação entre o direito da

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O Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, por sua vez, condicionou o exercício

do direito de um condômino de limitar o uso da garagem do condômino vizinho à

demonstração de efetiva utilidade do ato, para atendimento à função social da propriedade,

sob pena de haver abuso do direito:

O direito de propriedade, numa visão moderna deve ser exercido, observando-se a sua função social, a socialidade e boa-fé objetiva, princípios aplicados aos direitos de vizinhança, não devendo haver limitações à propriedade alheia sem comprovação de prejuízo, da ocorrência de ato ilícito, sob pena de se configurar tais limitações em abuso do direito. A mera postulação dos apelantes, sem comprovarem que prejuízo estariam tendo, a necessidade e utilidade que teriam com a eventual concessão da tutela jurisdicional a seu favor, ou seja, seu interesse de agir, requerendo a limitação por si só do uso da garagem de seus vizinhos, e o fechamento das aberturas no teto da garagem, a meu aviso, configura abuso do direito , que deve ser reprimido.70

Em outra decisão do mesmo Tribunal mineiro, considerou-se abusiva a tentativa de

um condomínio residencial de fazer cessar a atividade de uma costureira, cujo trabalho

significava a concretização da função social da sua propriedade. Eis um trecho do voto:

Cumpre ressaltar que a atividade da Apelante não constituiu uma instalação de sala de atelier ou costureiras, como vedado pelo art. 5º do Regimento Interno. Conforme exposto alhures, o ofício da Apelante é doméstico, para sustento próprio e da sua família, e não em alta escala. Vedá-la, portanto, seria verdadeiro abuso de direito, infringindo a garantia constitucional do exercício de profissão (art. 5º, XIII). Especialmente em dias como os atuais, de dificuldades econômicas, em que os índices de desemprego estão cada vez maiores. O caso em apreço constitui, assim, realmente, a concretização da função social da propriedade.71

propriedade e de não interferência da autora com as garantias de moradia e do interesse público, não só do réu, mas também dos inquilinos ora residentes no prédio construído, tanto mais que tinha ela a possibilidade de ter ajuizado ação de nunciação de obra nova e não o fez.” 70 TJMG. 17ª. Câmara Cível, Apelação 889297-7. Rel. Des. Luciano Pinto, julgado em 08/03/2007. O acórdão ficou assim ementado: “APELAÇÃO CÍVEL- AÇÃO COMINATÓRIA- DIREITO DE VIZINHANÇA- CONDIÇÃO DA AÇÃO- INTERESSE DE AGIR- INEXISTÊNCIA- EXTINÇÃO DO FEITO -O interesse de agir, uma das condições da ação, se consubstancia na utilidade- necessidade do provimento jurisdicional pleiteado, não se confundindo com o interesse primário, substancial. - Inexiste interesse processual quando a tutela jurisdicional pretendida não trouxer alguma utilidade do ponto de vista prático para a parte, como se deu nesta seara, devendo ser observada a função social da propriedade, evitando-se abuso do direito e limitação injustificada da propriedade alheia, observando-se, pois, a boa- fé objetiva e a socialidade, princípios insculpidos também no tocante aos direitos de vizinhança”. 71 TJMG. 2ª. Câmara Cível, Apelação 414.373-5. Rel. Des. Roberto Borges de Oliveira, julgado em 30/03/2004: “AÇÃO DE CONSIGNAÇÃO EM PAGAMENTOS - MULTA CONDOMINIAL - EXERCÍCIO DE PROFISSÃO - TRANSTORNO AOS DEMAIS CONDÔMINOS - INOCORRÊNCIA - NÃO-CABIMENTO. - É indevida a cobrança de multa de proprietária de apartamento residencial, que exerce atividade doméstica de costureira em

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O Tribunal de Alçada Cível, também de Minas Gerais, utilizou-se da função social da

propriedade, e do instituto do abuso do direito, para proibir a construção de um muro que

traria prejuízo aos vizinhos:

A propriedade é o ente medular do direito das coisas, pois constitui-se no mais amplo dos institutos dessa natureza, tratando-se de um direito real que recai diretamente sobre um bem imóvel ou móvel próprio, cujo titular pode usar, gozar, dispor e ainda reivindicar a coisa. Muitos dizem que a propriedade é um direito absoluto, exclusivo e perpétuo, consistindo o absolutismo na idéia de que o proprietário exerce sobre o que é seu o poder jurídico total, usando e desfrutando do bem da maneira que lhe convier. Contudo, não há como negar que a evolução das noções jurídicas civilísticas, renegando o individualismo exacerbado e dando uma maior ênfase ao social, fizeram com que esse caráter absoluto viesse a ser mitigado, levando à acentuação das restrições ou limitações ao direito de propriedade, inspiradas nos direitos dos vizinhos e principalmente na supremacia do interesse público. (...) Tais restrições são ainda mais acentuadas nas hipóteses de condomínios, principalmente naqueles denominados horizontais, que têm como características a presença de unidades autônomas de propriedade exclusiva dispostas em andares ao lado de uma comunhão do terreno e das partes comuns do edifício. Nesses casos, o grande número de proprietários e portanto de interesses próprios, aliado à natureza do instituto, que pela essência faz surgir áreas comuns passíveis de utilização por todos, geram uma quantidade considerável de conflitos, que devem ser solucionados pela utilização conjugada das normas dos direitos de vizinhança e condomínios existentes no Código Civil de 1916, das normas da Lei 4591/64 e ainda pelas disposições municipais que possam ser aplicadas. (...) Mesmo se assim não fosse, tem-se como descabida a tese levantada, pois trata-se de um condomínio de apartamentos, cuja planta foi aprovada pelo setor competente do Município, sendo o edifício construído nos moldes da aprovação pública e todas as unidades adquiridas também dessa forma, não se admitindo a mudança unilateral do projeto original por parte dos recorrentes. Improcede também a assertiva posta nas razões de que a construção do muro não impediria a entrada de luz solar e de ar no apartamento dos recorridos. As fotografias de fls. 44/45 demonstram o absurdo da situação fática surgida com o muro levantado, sendo certo que a atitude dos recorrentes constitui-se em flagrante abuso do direito. 72

Pietro Perlingieri professa que o abuso é o exercício contrário ou em desconformidade

com a função do direito.73 O autor mostra que as situações jurídicas subjetivas sofrem uma

limitação interna “pelo conteúdo das cláusulas gerais, e especialmente daquela de ordem

sua residência, sem desvirtuar o uso previsto na Convenção ou causar transtornos aos demais condôminos. - Preliminares não conhecidas e apelação provida”. 72 TAMG. Apelação Cível n° 2.0000.00.390244-5/000. 3ª Câmara Cível. Relator: Juíza Albergaria Costa. j. 07/05/2003. Ementa: AÇÃO COMINATÓRIA E NUNCIAÇÃO DE OBRA NOVA - CONDOMÍNIO HORIZONTAL - DIREITO DE PROPRIEDADE - RESTRIÇÕES - NORMAS DO MUNICÍPIO - CONSTRUÇÃO IRREGULAR - FACHADA. 73 Ob. cit., p. 122.

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pública, de lealdade, de diligência e de boa-fé, que se tornaram expressões gerais do

princípio de solidariedade”. O princípio da solidariedade, como se acabou de ver, também

impacta na funcionalização da propriedade. Perlingieri arremata afirmando que “o não-

exercício e o exercício segundo modalidades diversas daquelas que derivam da função da

situação subjetiva devem ser considerados abusos”.74

Como bem ressaltou Heloísa Carpena, o legislador de 2002, ao estipular parâmetros de

boa-fé, bons costumes e fins sociais e econômicos, submeteu o exercício do direito aos

valores sociais que eles exprimem, permitindo a conciliação entre autonomia individual e

solidariedade, e provocando a abertura do sistema jurídico, e a harmonização das normas com

a realidade social.75

Assim sendo, e a partir do que foi visto no presente capítulo, ficam estabelecidas as

premissas sobre as quais desenvolveremos a dissertação a partir de agora: os condôminos,

através da convenção de condomínio e das deliberações da assembléia geral, têm certa dose

de liberdade para determinar padrões e vicissitudes em relação ao condômino anti-social. Mas

essa liberdade deve ser exercida dentro de certos limites, e de acordo com os princípios

constitucionais, sob pena de se caracterizar o abuso do direito.76

Nos capítulos seguintes, o trabalho dedicar-se-á a investigar no cotidiano condominial

as situações mais comuns em que o abuso do direito se faz presente.

74 Ob. cit., p. 122. 75 O abuso do direito no código civil de 2002... Ob. cit., p. 394: “A adoção da teoria do abuso do direito constitui um dos aspectos da constitucionalização do Direito Civil, tendência marcante do nosso tempo e característica do Estado Social, possibilitando a permanente oxigenação do sistema ao permitir a adequação das normas à realidade social, em constante mutação”. Carlos Fernández Sassarego comunga desse entendimento: “Se se trataría así del incumplimiento de un genérico deber impuesto por el ordenamiento positivo al titular del derecho, dentro de una específica situación jurídica subjetiva. O, de no existir un dispositivo expreso en dicho ordenamiento, estaríamos frente a un acto que es contrario a los principios generales del derecho, como aquel de la buena fe y de las buenas costumbres, principios que se inspiran preponderantemente en el valor de la solidariedad”. SESSAREGO, Carlos Fernández. Abuso del derecho. Buenos Aires: Depalma, 1992, p. 144. 76 No mesmo sentido em que Gustavo Tepedino leciona: “Assim sendo, convém repisar, à conta de reafirmar a linha metodológica enunciada, o critério geral para o exame de legitimidade dos atos da convenção: a validade das cláusulas convencionais deve ser compatível não somente com as regras inderrogáveis expressamente ditadas pela Lei 4.591/64 mas, principalmente, com os princípios constitucionais, situados no ápice do ordenamento, focalizando o condomínio em perspectiva de relação jurídica de cooperação e solidariedade, destinado a cumprir a função social da propriedade”. Multipropriedade imobiliária. São Paulo: Saraiva, 1993, p. 120.

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CAPÍTULO 2: CRITÉRIO DE RATEIO DE DESPESAS

2.1. As despesas condominiais e os critérios de divisão

No condomínio edilício, as despesas se dividem em ordinárias e extraordinárias.

As despesas ordinárias referem-se à manutenção rotineira e administração do

condomínio, sendo exemplos: (i) salários, encargos trabalhistas, contribuições previdenciárias

e sociais dos empregados do condomínio; (ii) consumo de água e esgoto, gás, luz e força das

áreas de uso comum; (iii) limpeza, conservação e pintura das instalações e dependências de

uso comum; (iv) manutenção e conservação das instalações e equipamentos hidráulicos,

elétricos, mecânicos e de segurança, de uso comum; (v) manutenção e conservação das

instalações e equipamentos de uso comum destinados à prática de esportes e lazer; (vi)

manutenção e conservação de elevadores, porteiro eletrônico e antenas coletivas; (vii)

pequenos reparos nas dependências e instalações elétricas e hidráulicas de uso comum; (viii)

rateios de saldo devedor; (ix) criação e reposição do fundo de reserva; e (x) o seguro da

edificação.

Despesa extraordinária é, por eliminação, toda aquela que não se enquadra como

despesa ordinária, isto é, que não se refira à administração ou manutenção rotineira do

condomínio. São elas, dentre outras: (i) obras de reformas ou acréscimos que interessem à

estrutura integral do imóvel; (ii) pintura das fachadas, empenas, poços de aeração e

iluminação, bem como das esquadrias externas; (iii) obras destinadas a repor as condições de

habitabilidade do edifício; (iv) instalação de equipamento de segurança e de incêndio, de

telefonia, de intercomunicação, de esporte e de lazer; e (v) despesas de decoração e

paisagismo nas partes de uso comum.

Não é incomum encontrar nos condomínios quem confunda cota extra com despesa

extraordinária, inobstante sejam elas coisas bem distintas. Cota extraordinária é aquele valor a

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mais que eventualmente é rateado entre os condôminos quando o caixa do condomínio está

sem recursos. Quando o valor da cota ordinária é insuficiente para fazer frente às despesas

mensais, o síndico vê-se obrigado a emitir cotas extras, para evitar um déficit crescente. Isso

nada tem a ver com despesa extraordinária, que, aliás, pode ser realizada sem que haja

emissão de cota extra; para isso, basta que o fundo de reserva disponha do saldo necessário

para os gastos que serão realizados em caráter extraordinário.

O art. 1.336, I, do Código Civil, com a redação que lhe deu a Lei nº 10.931/2004,

estipula que as despesas condominiais são rateadas na proporção da fração ideal de cada

condômino, salvo disposição diversa da convenção de condomínio.77

Esse critério já era previsto no art. 12, parágrafo primeiro, da Lei nº 4.591/64,78

revogada em parte pelo atual Código Civil, e a intenção do legislador parece ter sido atribuir a

cada comunheiro a obrigação de contribuir proporcionalmente ao percentual de propriedade

detida nas partes comuns, representada pela fração ideal: se, exemplificativamente, a fração

de um condômino é de 1/10, ele tem 10% das partes comuns, e, por isso, deve arcar com a

décima parte das despesas totais do prédio.

A fração ideal é a conexão entre a propriedade exclusiva e a propriedade coletiva. É

ela que liga a unidade imobiliária às partes comuns do condomínio. Daí que, em se tratando

de condomínio edilício, toda parte de propriedade exclusiva, necessariamente, deve ter a sua

correspondente fração ideal, ou então será uma parte comum, de uso exclusivo ou de uso

comum.

A redação original do parágrafo terceiro do artigo 1.331 do Código Civil de 2002

estipulava que a fração ideal no solo e nas outras partes comuns deveria ser “proporcional ao

valor da unidade imobiliária, o qual se calcula em relação ao conjunto da edificação”. A já

citada Lei 10.931/2004 alterou esse dispositivo, passando a dispor que “a cada unidade

imobiliária caberá, como parte inseparável, uma fração ideal no solo e nas outras partes

comuns, que será identificada em forma decimal ou ordinária no instrumento de instituição

77 Art. 1.336. São deveres do condômino: I - contribuir para as despesas do condomínio na proporção das suas frações ideais, salvo disposição em contrário na convenção. 78 Art. 12. (...) §1º. Salvo disposição em contrário na Convenção, a fixação da quota no rateio corresponderá à fração ideal de terreno de cada unidade.

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do condomínio”. Com isso, o cálculo da fração voltou a ser livre, tal como previa o artigo 7º

da Lei 4.591/64.79

Fração ideal e critério de rateio de despesas não se confundem. A primeira, como dito,

fixa o percentual de propriedade que o condômino possui em relação às partes comuns; o

segundo define a proporcionalidade com que o co-proprietário participará das despesas

relativas a essas mesmas partes comuns. Tome-se como exemplo uma cobertura que possui a

fração ideal de 1/100 do terreno e demais partes comuns, e que nesse condomínio as despesas

sejam divididas na proporção das frações ideais de cada condômino. Se o critério de rateio for

alterado, e essa cobertura passar a contribuir com 1/30, isso não importará na modificação da

sua fração ideal de terreno, que continua intacta.

O legislador, apenas supletivamente, estabeleceu que a divisão das despesas seja feita

na proporção da fração ideal,80 mas como se viu, a própria lei admite, expressamente, que os

condôminos, por intermédio da convenção condominial, estipulem outro critério para a

divisão das despesas, que não guarde relação com as frações ideais de suas unidades

autônomas.

Um critério alternativo encontrado comumente nos condomínios é aquele que prevê a

divisão das despesas conforme a área da unidade imobiliária de cada condômino. Adotada

essa regra, o proprietário de um apartamento que tenha uma área de duzentos metros

quadrados pagará, mensalmente, o quádruplo da quantia com a qual contribui o dono de um

apartamento de cinqüenta metros quadrados.

A lógica desse critério, aparentemente justo, reside no fato de que, quanto maior for o

imóvel, mais ocupantes ele terá e, portanto, maior o impacto que ele representará no

orçamento do edifício. Todavia, não é preciso refletir com profundidade para concluir que não

79 Art. 7º O condomínio por unidades autônomas instituir-se-á por ato entre vivos ou por testamento, com inscrição obrigatória no Registro de Imóvel, dêle constando; a individualização de cada unidade, sua identificação e discriminação, bem como a fração ideal sôbre o terreno e partes comuns, atribuída a cada unidade, dispensando-se a descrição interna da unidade. 80 Essa mesma proporcionalidade, também supletiva, foi fixada em se tratando de contagem de votos na assembléia geral, conforme se vê do parágrafo único do artigo 1.352: “Os votos serão proporcionais às frações ideais no solo e nas outras partes comuns pertencentes a cada condômino, salvo disposição diversa da convenção de constituição do condomínio”.

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existe proporção necessária entre a área de um apartamento e o número de habitantes;81 além

disso, o número de ocupantes, com o passar do tempo, flutua consideravelmente em razão de

diversos fatores: (i) numa mesma família, com a chegada e a ida dos filhos; (ii) com a troca de

uma família maior, que se muda para outro edifício, por outra menor, que chega, ou vice-

versa; (iii) no caso de unidades comerciais, em razão do tipo de atividade e da quantidade de

funcionários.

Outro critério de rateio de despesas difundido nos condomínios é o que separa as

unidades autônomas em grupos distintos, levando-se em conta o uso potencial dos serviços e

partes comuns: lojas com saída apenas para a rua, que nunca se servem dos empregados do

condomínio, nem dos elevadores, não contribuem com as despesas a eles relativas;

apartamentos sem direito a vaga na garagem não participam do rateio relativo ao manobrista;

coberturas com piscina pagam 20% a mais no tocante à conta de água, e assim por diante.

Esse parâmetro, quando corretamente aplicado, é o que, a nosso sentir, mais se aproxima do

ideal, por evitar generalizações que quase sempre levam a distorções, e por considerar a

situação concreta e as especificidades do condomínio.

A aprovação original do critério (quando aprovada a primeira convenção) depende do

voto de apenas 2/3 do total de titulares de frações ideais, por força do disposto no art. 1.333

do Código Civil.82 Contudo, o entendimento sobre o quorum mínimo para a alteração desse

critério não é pacífico.

João Batista Lopes defende que a “alteração pelo quorum de 2/3 só é admitida se não

implicar prejuízo a direitos subjetivos (...). Qualquer mudança que importe prejuízo a direito

adquirido só será possível com a aprovação unânime dos condôminos”.83 Esse mesmo autor

81 Como, aliás, já decidiu o Superior Tribunal de Justiça: “DIREITO CIVIL. DESPESAS CONDOMINIAIS. CRITÉRIO DE RATEIO NA FORMA IGUALITÁRIA ESTABELECIDO EM CONVENÇÃO CONDOMINIAL. ADMISSIBILIDADE. A assembléia dos condôminos é livre para estipular a forma adequada de fixação da quota dos condôminos, desde que obedecidos os requisitos formais, preservada a isonomia e descaracterizado o enriquecimento ilícito de alguns condôminos. O rateio igualitário das despesas condominiais não implica, por si só, enriquecimento sem causa dos proprietários de maior fração ideal. Recurso parcialmente conhecido e, nessa parte, provido”. REsp 541317/RS, Rel. Ministro Cesar Asfor Rocha, Quarta Turma, julgado em 09.09.2003, DJ 28.10.2003, p. 294. 82 Art. 1.333. A convenção que constitui o condomínio edilício deve ser subscrita pelos titulares de, no mínimo, dois terços das frações ideais e torna-se, desde logo, obrigatória para os titulares de direito sobre as unidades, ou para quantos sobre elas tenham posse ou detenção. 83 LOPES, J. Batista. Condomínio. 8ª ed., Rio de Janeiro: Revista dos Tribunais, 2003, p. 73: “Não pode a assembléia alterar a forma de uso e destinação das partes comuns em prejuízo de direitos subjetivos de qualquer condômino. Daí se conclui que só a unanimidade dos condôminos poderá autorizar alterações dessa

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ressalta que a assembléia geral não pode alterar o uso e a destinação das partes comuns do

condomínio se essa modificação influir negativamente na esfera subjetiva de um ou mais

condôminos. O mesmo disse ele em relação à alteração do critério de divisão das despesas.84

Partidário da mesma opinião, João Nascimento Franco afirma que a participação de

cada co-proprietário nas despesas condominiais segundo determinada proporção prevista na

convenção configura um direito subjetivo, e como tal só pode passar a ser diferente se contar

com o voto da unanimidade dos condôminos.85

Pedro Elias Avvad, outro especialista no assunto, também considera que o critério de

rateio, uma vez estabelecido, confere direitos individuais aos condôminos, e que, dessa forma,

a modificação depende da anuência de cada um deles.86

Como se vê, para a doutrina, a alteração do critério de rateio, embora não encontre

previsão expressa na lei, invade a esfera subjetiva dos condôminos cuja participação se

elevaria com a mudança; isto é, estar-se-ia retirando do condômino o direito de pagar as cotas

condominiais segundo uma proporção até então vigente. E, por isso, seria necessário o voto da

unanimidade dos comunheiros.

Os Tribunais, todavia, divergem sobre o assunto, havendo decisões87 que consideram

lícita a mudança promovida com o voto de dois terços do total de condôminos88 – pois se está

natureza. Por igual, não pode a assembléia alterar critério estabelecido na convenção quanto às despesas de condomínio, para, por exemplo, agravar os encargos de determinados condôminos”. 84 Ob. cit., p. 167. 85 Nas palavras do autor: “A cota-parte só poderá ser alterada por decisão unânime, de que participem, inclusive, os diretamente atingidos pela alteração, uma vez que constitui direito subjetivo de todos os condôminos, insuscetível de modificação pela maioria, o de contribuir para as despesas segundo o critério estipulado na convenção”. FRANCO, J. Nascimento. Condomínio. Rio de Janeiro: Revista dos Tribunais, 1997, p. 214. 86 AVVAD, Pedro Elias. Condomínio em Edificações no Novo Código Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 188. O trecho é o seguinte: “Essa proporção, uma vez fixada, atribui direitos individuais a cada um dos condôminos, e qualquer modificação que venha a ser feita, certamente, importará em redução para alguns e acréscimo para outros. A modificação ou alteração em direito adquirido de algum condômino só poderá ser procedida com a aquiescência do próprio interessado”. 87 “ACÃO DE COBRANÇA. COTAS DE RATEIO DE DESPESAS CONDOMINIAIS. AUSÊNCIA DE QUORUM DE 2/3 EM ASSEMBLÉIA PARA ALTERAÇÃO DE CONVENÇÃO. NULIDADE. Ao contrário do que alega o Condomínio, a decisão tomada para o rateio das despesas do orçamento anual vai contra o que determina a Convenção, configurando alteração, sendo assim o quorum da Assembléia para alteração de Convenção foi desrespeitado, ensejando nulidade, pois não alcançou dois terços dos condôminos. Sentença que se mantém”. TJRJ. 13ª. Câmara Cível. Apelação 2007.001.08548. Rel. Des. Lindolpho Morais Marinho. Julgado em 08/08/2007. Acórdão Unânime. Ainda: “Direito civil. Condomínio. Convenção. Alteração da convenção no que concerne a forma como é feita o rateio das despesas condominiais, a qual passou a ser de acordo com a fração

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diante de uma alteração na convenção, cujo quorum está previsto em lei (art. 1.351 do Código

Civil) – e outras que exigem, como a doutrina, a unanimidade de votos.89

Nossa opinião sobre o quorum necessário, na verdade, é uma mescla das duas

correntes que acabamos de citar. Para nós, o critério de rateio de despesas será alterado com

2/3 dos votos desde que nesse universo estejam incluídos todos os co-proprietários

prejudicados com a alteração do modo de divisão; leia-se: aqueles que perderão a sua isenção,

ou que sofrerão um aumento permanente na sua quota-parte. Com isto queremos dizer que o

condômino beneficiado com a mudança não poderá, por isso mesmo, alegar prejuízo; se o

quorum legal tiver sido alcançado, seria um contra-senso exigir a sua participação na votação.

Porém, não importa qual das três possibilidades de quorum mínimo se escolha, o fato

é que todas elas constituem apenas a regra, pois, conforme se eleja uma das correntes, poderá

haver em dada situação ou a maioria que possua os 2/3, ou o condômino que tenha o poder de

veto, e nesse caso, um deles poderá estar agindo com abuso do direito, que justifique a

aprovação – ou reprovação – da matéria por quorum diverso. É o que passamos a estudar.

ideal. Inconformismo de um dos condôminos, proprietário de uma das coberturas, em razão da majoração da sua participação nas despesas do condomínio. Em função disso, ajuizou anulatória da assembléia geral extraordinária. Por outro lado, o condomínio ajuizou cobrança das cotas condominiais. (...) No mérito, alega que tal alteração somente poderia ser realizada se fosse aprovada por unanimidade. Ressalta ter ocorrido ofensa ao seu direito subjetivo, eis que teria direito adquirido ao regime anterior. (...) Analisando - se o processado, verifica - se que a assembléia geral extraordinária em questão, ocorreu em 15/03/02, quando o novo código civil ainda não estava em vigor. Portanto, tal ato deve ser analisado sob a égide da lei 4.591/64, a qual a convenção tem que se compatibilizar. Sintonia entre o art.25 da lei 4.591/64 e o parágrafo terceiro do art.15 da convenção, dispondo que qualquer modificação da convenção deve observar a aprovação mínima de 2/3, o que ocorreu na hipótese. Por outro lado não há que se falar em direito adquirido ao critério anterior. Precedentes deste TJRJ”. TJRJ. 3ª. Câmara Cível. Apelação 2006.001.27038. Rel. Des. Ronaldo Rocha Passos. Julgado em 03/04/2007. Acórdão Unânime. 88 “Declaratória. Condomínio. Convenção. Assembléia geral extraordinária. Alteração da convenção no que se refere apenas ao rateio das despesas condominiais. Quorum. Maioria simples. Possibilidade. Ausência de violação ao direito de propriedade dos autores-apelantes. Sentença correta. Improvimento do recurso”. TJRJ. 1ª. Câmara Cível. Apelação 2007.001.61538. Rel. Des. Maldonado de Carvalho. Julgado em 11/12/2007. Acórdão Unânime. 89 “Apelação Cível. Ação de cobrança de cotas condominiais, no procedimento sumário, julgada procedente. Despesas de lojas situadas em condomínio. Exclusão determinada em convenção. Alteração posterior, através de assembléia geral extraordinária. Argüição de nulidade daquela decisão, pela falta de unanimidade de votos. Pedido contraposto. Alegação não desmentida nos autos, através de prova hábil. Sentença correta. Desprovimento do recurso. Decisão unânime”. TJRJ. 7ª. Câmara Cível. Apelação Cível 2003.001.02803 (conferir). Rel. Des. José Mota Filho. Julgado em 08/04/2003, Acórdão Unânime. No seu voto, disse o relator: “Realizada a convenção em abril de 1979, ficou estabelecido que as lojas deixariam de concorrer no rateio das despesas de condomínio, tendo em vista a não utilização dos serviços e partes comuns (fls. 100). Posteriormente, no ano de 1997, decisão adotada em Assembléia Geral Extraordinária veio incluir as lojas na contribuição da taxa de condomínio. (...) Em conseqüência, admitindo a existência de pedido contraposto e não demonstrado ter ocorrido decisão unânime na alteração da convenção, a sentença está correta”

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2.2. Abusos na escolha e na alteração do critério de rateio das despesas

A questão, neste momento, é saber se, quando da instituição do condomínio, e seu

conseqüente surgimento, pode haver abuso do direito na escolha do critério de rateio de

despesas.

Como já se asseverou – e este é o ponto nevrálgico deste trabalho, que não se pode

perder de vista –, a propriedade condominial deve ser exercida de modo a cumprir a sua

função social, sob pena de não merecer a tutela do ordenamento.

No que concerne ao critério de rateio de despesas, é bastante comum surgirem

situações em que um ou mais condôminos enriquecem sem causa, à custa dos demais. A

vedação ao enriquecimento sem causa, cuja origem está no Direito Romano - nemo potest

lucupletari, jactura aliena – já era considerada como um princípio geral de direito ainda na

vigência do Código Civil de 1916, e hoje se encontra explicitado no art. 884 do Código de

2002.90

Também já se ressaltou que, em decorrência da constitucionalização do direito,

fenômeno que incluiu o direito civil, todos os princípios gerais de direito e institutos devem

ser relidos à luz da Constituição Federal, pois é ela que os fundamenta e os legitima.91 O

Texto Maior, em seu artigo 3º, estabelece como um dos objetivos fundamentais da República

a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, e é nesse contexto que a vedação ao

enriquecimento se encaixa, e é com esta leitura constitucional que todos os dispositivos legais

decorrentes desse princípio devem ser aplicados.

Com isto se quer dizer que a propriedade condominial não cumprirá a sua função

social quando os poderes a ela inerentes forem exercidos de modo a provocar o 90 O estudo particularizado do enriquecimento sem causa está além dos limites deste trabalho, e para evitar um desvio de rota, não será aqui desenvolvido. Para uma análise mais aprofundada, v. CAMPOS, Diogo Leite de. A Subsidiariedade da Obrigação de Restituir o Enriquecimento. Coimbra: Almedina, 2003; MOREIRA ALVES, José Carlos. Enriquecimento sem causa em caso de nulidade alegada por Órgão Público, de contrato de locação de serviços. Arquivos do Ministério da Justiça, nº 129, março de 1974, pp. 19/28; e ALVIM, Agostinho. Do enriquecimento sem causa. Revista dos Tribunais, n. 259, pp. 3/36, 1957. 91 Para uma fértil abordagem dos princípios gerais de direito frente aos princípios constitucionais, v. BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 21. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, pp. 228-266.

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enriquecimento sem causa do seu titular. E desse exercício anti-social poderá se configurar o

abuso do direito do co-proprietário.

O condomínio edilício pode ser criado por ato entre vivos (incorporação imobiliária ou

escritura de instituição de condomínio) ou por testamento. O meio mais comum é a

incorporação imobiliária:92 quando o memorial de incorporação93 é registrado no cartório de

registro de imóveis competente, nascem as matrículas das diferentes unidades imobiliárias – a

construir –, cada uma delas, necessariamente, com uma fração ideal do terreno e das partes

comuns; e com o registro do memorial surge também, no mundo jurídico, o condomínio

edilício.

Embora o memorial de incorporação contenha apenas uma minuta da futura

convenção de condomínio, nada impede que o incorporador – ainda titular da totalidade das

unidades – aprove a minuta desde logo, e junto com ela o critério de rateio de despesas do

condomínio cujo edifício ou conjunto de edificações ainda não foi construído. Considerando

que, segundo o Código Civil, o critério de rateio de despesas é cláusula obrigatória da

convenção (art. 1334, I), e tendo em vista que o art. 1.333 considera aprovada a minuta

assinada pelo(s) titular(es) de dois terços das frações ideais, dúvida não resta quanto ao direito

do incorporador de aprovar a convenção, que irá vincular os futuros adquirentes de unidades.

Imagine-se a seguinte situação: o incorporador de um prédio com trinta apartamentos,

objetivando permanecer com a cobertura, atribui a essa unidade a fração ideal de 0,35. Com

92 A incorporação imobiliária, regulada pelos artigos 28 e seguintes da Lei nº 4.591/64, é a atividade exercida pelo incorporador com o objetivo de promover e realizar a construção, para alienação total ou parcial, de edificações ou conjunto de edificações compostas de unidades imobiliárias (casas, apartamentos, salas, lojas e vagas de garagem). 93 O memorial de incorporação é o conjunto de documentos que, em suma, atestam a idoneidade do incorporador, a inexistência de óbices à venda das futuras unidades, e as características de todo o empreendimento, conferindo segurança jurídica ao negócio e proteção aos adquirentes. Dentre os documentos obrigatoriamente apresentados pelo incorporador, e previstos no art. 32 da referida Lei, se incluem: (i) o título de propriedade de terreno; (ii) as certidões negativas de impostos federais, estaduais e municipais, de protesto de títulos de ações cíveis e criminais e de ônus reais relativamente ao imóvel, aos alienantes do terreno e ao incorporador; (iii) o histórico dos títulos de propriedade do imóvel, abrangendo os últimos vinte anos; (iv) o projeto de construção devidamente aprovado pelas autoridades competentes; (v) o cálculo das áreas das edificações, com a discriminação da área global, da área das partes comuns, e com a indicação de cada tipo de unidade a respectiva metragem de área construída; (vi) o memorial descritivo das especificações da obra projetada; (vii) a avaliação do custo global da obra, com a discriminação do custo de construção de cada unidade; (viii) a discriminação das frações ideais de terreno com as unidades autônomas que a elas corresponderão; (ix) a minuta da futura convenção de condomínio; (x) o atestado de idoneidade financeira do incorporador, fornecido por estabelecimento bancário que opere no país há mais de cinco anos; e (xi) as plantas contendo o número de veículos que a garagem comporta e os locais destinados à guarda dos automóveis.

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isso, a sua unidade, sozinha, será titular de mais de um terço das partes comuns. A convenção

por ele aprovada, quanto à contagem dos votos, adota o critério previsto no parágrafo único

do art. 1.352 do Código Civil, que é o da proporcionalidade em relação à fração ideal.

Finalmente, no tocante às despesas, ele estipula que os titulares dos 29 apartamentos-tipo

pagarão as despesas igualmente, na proporção de 1/29 cada, ficando a cobertura isenta de

todas as despesas.

Quando o condomínio é instalado, e as despesas surgem, os 29 condôminos se dão

conta da injustiça, e pretendem retirar a isenção da cobertura, o que implica na alteração do

critério de divisão de despesas, que passaria de 1/29 para 1/30 por condômino. Como se viu,

doutrina e jurisprudência divergem sobre o quorum mínimo para a alteração do critério de

rateio de despesas, mas para o nosso exemplo ele é irrelevante, e podemos nos ater ao mínimo

incontroverso, ou seja, 2/3 do total de votos (0,6667). Ora, ainda que os 29 condôminos

consigam a proeza de se unirem a ponto de todos eles, por si ou por seus procuradores,

comparecerem à assembléia cuja ordem do dia é a mudança do rateio, ainda assim eles,

juntos, terão apenas 0,65 do total, quando seria necessário 0,6667 para a alteração da

convenção. Em outras palavras, o titular da cobertura teria o poder de veto. E do ponto de

vista estritamente legalista, os co-proprietários restantes nada poderiam fazer.

Entretanto, esse direito de veto do proprietário da cobertura, utilizado com o propósito

de manter a sua isenção das despesas, estaria sendo, no caso concreto, exercido de modo

abusivo, pois em desacordo com o princípio que veda o enriquecimento sem causa. A

proibição ao abuso do direito atuaria aqui como limite à autonomia privada, e abriria as portas

para que os condôminos restantes (0,65) deliberem sobre a alteração no critério de rateio.

Ainda no tocante à alteração do critério do rateio de despesas, a Décima Primeira

Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro julgou um caso em que o

proprietário de um apartamento tentava anular a deliberação da Assembléia Geral que

decidira, pelo voto da unanimidade dos condôminos restantes, alterar o critério de rateio de

despesas, e aumentar a cota-parte desse condômino que, por previsão da própria convenção,

anexou o terraço da cobertura ao apartamento, transformando-o em duplex. O acórdão, ao

desprover o recurso, e manter a sentença que julgara improcedente o pedido anulatório, assim

o fez por considerar que a convenção vedava o voto do condomínio em assunto de seu

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interesse particular, e por ter ocorrido um considerável aumento da área do apartamento.94 O

Tribunal, para decidir, aplicou, no caso concreto, princípios como função social da

propriedade, boa-fé, vedação ao enriquecimento sem causa e vedação ao abuso do direito.

Embora o resultado seja o mesmo - possibilidade de alteração do critério de rateio sem

a concordância do condômino prejudicado - há diferenças entre os dois casos: (i) no primeiro,

a cobertura desfrutava de isenção, enquanto no segundo o condômino já participava do rateio;

(ii) no segundo caso os condôminos alcançaram o quorum legal (dois terços dos votos), o que

não ocorreu no primeiro; (iii) na hipótese analisada pelo acórdão, a convenção de condomínio

proíbe o condômino de votar em assunto em que tenha particular interesse, sendo que no

exemplo imaginado não há essa restrição.

Ainda há outras situações, tendo como pano de fundo o critério de rateio de despesas,

em que o abuso do direito se manifesta.

94 A ementa é a seguinte: “Apelação cível. Ação declaratória com vistas a anular deliberações de A.G.E. de condomínio, em que se atribuiu a propriedade do telhado do prédio ao apartamento imediatamente inferior, com alteração das frações ideais das unidades e das respectivas cotas condominiais. 1 - Cuida-se de recurso interposto com vistas a que sejam declaradas nulas as decisões tomadas na A.G.E. realizada pelo Condomínio réu em 10/07/2006, na qual foram modificados os artigos 3° e 4° da Convenção condominial, alterando a fração ideal correspondente aos apartamentos do prédio, e, conseqüentemente, o valor das cotas condominiais. 2 - A Convenção de um Condomínio é um ato-regra, repositório de direitos e deveres recíprocos dos condôminos, ao qual voluntariamente estes se submetem quando de sua redação. Sua natureza jurídica é estatutária e seu caráter normativo cogente alcança não apenas os que a aprovaram originalmente, mas se protrai no tempo e alcança todos aqueles que futuramente venham a ingressar no condomínio, não importando em que condição. 3 - A atribuição de uma fração ideal para cada unidade imobiliária, identificada em forma decimal ou ordinária, é um dos requisitos para a existência de um condomínio (art. 1331, § 3º, CC/2002). 4 - A Convenção condominial não possui natureza perpétua, podendo ser alterada segundo os interesses dos condôminos, obedecido o quorum especial de 2/3 (dois terços), exigido pelo art. 1351 do Código Civi1/2002. Ademais, a lei substantiva civil não limita e nem discrimina as matérias que podem ser objeto de deliberação e de alteração por parte das assembléias condominiais.5 - A deliberação que transferiu a propriedade da área do telhado para os recorrentes, anexando-a à do apartamento destes e alterando as frações ideais correspondentes às 10 (dez) unidades residenciais, foi tomada pela totalidade dos votos dos demais condôminos, eis que a Convenção dispõe em seu § 4º do art. 9° que é vedado ao condômino votar em assunto em que tenha particular interesse. A anexação da área do telhado à do apartamento 501 já era prevista na Convenção do prédio Villar. 6 - As obras de transformação do apartamento em duplex foram aprovadas e aceitas pela Prefeitura Municipal, que quase dobrou o valor do IPTU, e a modificação já se encontra devidamente registrada na matrícula do imóvel no 5° Oficio de Registro de Imóveis, praticamente duplicando a área do apartamento original. Pode-se mesmo considerar que ocorreu uma doação por parte dos demais condôminos para os recorrentes de considerável e valorizada área que era de propriedade comum de todos. 7 - Ademais, direito de propriedade, inclusive dos recorrentes, está subordinado aos seguintes princípios regedores do direito positivo: (a) o da função social e econômica da propriedade; (b) o da boa-fé nas relações em sociedade; (c) o da razoabilidade e o da proporcionalidade, que impede o excessivo beneficio de um em detrimento ao direito do outro; (d) o que veda o abuso do direito (art. 187, CC/2002); (e) o que veda o enriquecimento sem causa; e (f) o princípio do nemo venire contra factum proprium, ou seja, a ninguém é dado exercer posições contraditórias em uma mesma relação jurídica (no caso, defender arduamente o valioso bônus alcançado, mas alijar, também com denodo, os respectivos ônus dele decorrentes, como se nada houvesse lucrado). Recurso improvido”. TJRJ. 11ª. Câmara Cível. Apelação Cível 36043/2007. Des. Rel. Roberto Guimarães. Julgado em 19/12/2007.

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Normalmente os shoppings centers não são construídos sob o regime condominial.95 O

proprietário do edifício, para ter maior liberdade na fixação, manutenção e alteração do tenant

mix,96 não aliena as lojas, mas tão somente as aluga. Mas existem diversos casos em que o

dono do empreendimento resolve, efetivamente, vender pelo menos parte das unidades

imobiliárias.

Em Brasília, um empreendedor construiu um edifício destinado a ser, inicialmente,

apenas uma galeria de lojas, e com isso vendeu boa parte das unidades. Posteriormente, com o

objetivo de ampliar o empreendimento, e transformar a galeria em verdadeiro shopping

center, recomprou as unidades que havia alienado, com exceção de algumas cujos

proprietários não quiseram vendê-las.

Como dispunha do quorum necessário (a sociedade era titular de 95% das unidades), a

empreendedora aprovou uma nova convenção de condomínio, segundo a qual: (i) as despesas

ordinárias do shopping seriam assumidas, por efeito das locações, pelos locatários (art. 71);

(ii) o rateio das despesas seria efetuado considerando-se o Coeficiente de Rateio de Despesas

(CRD), fixado em cada contrato de locação, atribuído ao condômino/locatário, pela

empreendedora ou pela locadora (art. 75); e (iii) cada condômino/locatário concorreria para

pagamento das despesas, em determinado mês, com a expressão resultante da multiplicação

do seu CRD, sobre o total das despesas apuradas naquele mês, após a dedução dos valores que

as lojas âncoras, os cinemas e as dos contratos temporários inferiores a um mês contribuírem.

(art. 75, parágrafo primeiro).

Como não queriam se sujeitar ao rateio segundo o CRD, os condôminos de duas lojas

ingressaram em juízo questionando a validade dessas cláusulas da convenção, e pretendiam

que o rateio fosse realizado segundo a fração ideal de cada unidade. O pedido autoral foi

julgado improcedente em primeira e segunda instâncias, e o litígio chegou ao Superior

Tribunal de Justiça. Por maioria (3 a 2) o recurso especial não foi conhecido, mas os

Ministros deixaram transparecer o seu entendimento quanto ao mérito. O acórdão ficou assim

ementado:

95 O que tem ocorrido com maior freqüência é a instituição de fundos de investimento imobiliário, regulados pela lei 8.668/93, e fiscalizados pela Comissão de Valores Mobiliários. 96 O tenant mix é um plano de distribuição espacial das lojas, conforme a sua atividade (vestuário, alimentação, utilidades, lojas âncoras, dentre outros), de modo a otimizar o faturamento do shopping como um todo.

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RECURSO ESPECIAL - DESPESAS CONDOMINIAIS - CRITÉRIO DE RATEIO - CONDÔMINOS PROPRIETÁRIOS E LOCATÁRIOS - PRETENSÃO DE REVISÃO DA INTERPRETAÇÃO CONFERIDA A CLÁUSULAS DE CONVENÇÃO DE CONDOMINIO - IMPOSIÇÃO DO ÓBICE SUMULAR N.º 05⁄STJ. 1. Não raramente, na formação de um shopping, ao condomínio pro indiviso, superpõe-se um condomínio por unidades autônomas, regulado pela Lei n° 4.591⁄64, hipótese em que a implantação reclama máxima cautela na definição e regulamentação da amplitude das respectivas áreas de uso comum e forma de sua utilização pelos condôminos, bem como no tocante ao rateamento de despesas, a fim de impedir o surgimento de graves dificuldades operacionais, neste contexto, a Convenção de Condomínio visa estabelecer definições, firmar diretrizes administrativas e fixar as regras de custeio dos encargos condominiais, obrigando a todos os condôminos, nos termos do art. 9º, da Lei nº 4.591⁄64. 2. In casu, o cerne da contenda reside em responder se é possível extrair das cláusulas da Convenção de Condomínio a previsão de um critério, distinto do legal (art. 12, § 1º, da Lei n.º 4.591⁄64) de fixação da quota para o rateio das despesas do condomínio aplicável aos proprietários de unidades autônomas. Tal questionamento foi respondido tanto pelo Juízo singular quanto pelo Colegiado de apelação, que concluíram, de forma uníssona, a partir de uma interpretação conjugada das cláusulas 11 e 75 da Convenção condominial, que os proprietários de unidades autônomas são definidos como condôminos, estando, deste modo, sujeitos, tal como os locatários, à previsão do rateio das despesas do condomínio com base no CRD (coeficiente de rateio de despesas). 3. Conferir solução diversa à causa demandaria a realização de outra exegese do pactuado, com cuidadosa análise das cláusulas da Convenção condominial a fim de averiguar a possibilidade de se extrair entendimento no sentido de que o critério de divisão de encargos previsto é adstrito, unicamente, aos locatários. Logo, há de se reconhecer que o conhecimento do especial, na espécie, implica na análise do acerto de decisão lastreada puramente em interpretação de cláusulas contratuais, esbarrando, portanto, no enunciado da Súmula nº 05⁄STJ . 4. Recurso especial não conhecido.97

O Relator Ministro Ruy Rosado de Aguiar, que dava provimento ao recurso, e nesse

sentido ficou vencido, entendeu que a convenção de condomínio, ao dizer que o CRD seria

previsto em cada contrato de locação, na verdade deixou de prever um critério de rateio para

as lojas não alugadas, e que por isso deveria prevalecer o critério legal, supletivo, de divisão

das despesas de acordo com a fração ideal:

No caso, segundo referido no r. acórdão, “a convenção estabeleceu que os proprietários de unidade autônoma devem contribuir para as despesas do condomínio da mesma forma que os locatários, aplicando-se o coeficiente de rateio de despesas”, pelo que seria incabível o pagamento com base na fração ideal de cada unidade, a teor do par. único do art. 12 da Lei 4.591⁄64.

97 REsp 493.723/DF, Rel. Ministro CESAR ASFOR ROCHA, Rel. p/ Acórdão Ministro JORGE SCARTEZZINI, QUARTA TURMA, julgado em 22.08.2006, DJ 19.03.2007 p. 354.

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Mas o mesmo r. julgado transcreve o disposto no art. 75 da Convenção, segundo o qual "o rateio das despesas será efetuado considerando-se o coeficiente de rateio de despesas (CRD), fixado em cada contrato de locação, atribuído ao condômino⁄locatário, pela empreendedora ou pela locadora". Como se vê, o coeficiente de rateio de despesas é aquele fixado em contrato de locação, o que serve para os locatários. Já os proprietários das unidades, que não firmam contratos locatícios, e assim são apenas condôminos, para eles não foi definido o coeficiente de rateio. Portanto, a regra legal que dispõe sobre a cobrança com base na fração ideal, para os condôminos, somente poderia ser afastada se na convenção houvesse norma dispondo sobre o CRD devido pelos condôminos. Inexistindo esse pressuposto, não se aplica a eles a ressalva prevista na lei. 4. Ainda levo em conta que os autores celebraram contrato de compra e venda de unidade integrante de uma incorporação, e com isso se habilitaram a participar de um condomínio regulado pela legislação própria. Agora, porque houve alteração nos planos da incorporadora, esta quer atribuir aos primitivos adquirentes os encargos do shopping, com rateio de despesas para as quais não concorreram e que não estavam previstas no negócio que celebraram com a ré. Essa alteração feita a benefício da incorporadora, hoje empreendedora do shopping, não pode ser passada aos primitivos compradores, salvo se para tanto houvesse disposição legal ou cláusula expressa na convenção definindo o modo pelo qual deveriam contribuir, em substituição à previsão legal. Não me parece adequado que essa mudança da natureza do empreendimento, que alterou a sua feição jurídica e o seu propósito econômico, feita depois da venda das unidades e para benefício da incorporadora - que se transformou em empreendedora de shopping e criou para isso uma empresa -, não me parece possa tal modificação, superveniente e unilateral, atingir a condição jurídica do primitivo adquirente, integrando-o como lojista no mix de um shopping center e cobrando dele despesas próprias de tal posição, onerando-o com encargos que ele não pode suportar. É bem visível a situação desconfortável em que foram colocados os autores. Se fossem locatários, a dificuldade no pagamento das despesas do shopping levaria à simples rescisão do contrato de locação, e eles poderiam transferir seu negócio para outro local. Proprietários, não lhes é permitida essa opção. Investiram o que tinham na compra do imóvel, que não podem simplesmente abandonar ou devolver, nem fechar a loja, ao mesmo tempo em que não têm condições de suportar as despesas de rateio que lhes são impostas. É possível que os proprietários tenham alguma vantagem com a localização das lojas âncoras e com o mix implantado no local, mas disso decorrem grandes custos, como se pode ver pela inadimplência desses empreendimentos e rotatividade dos lojistas (em Porto Alegre, de todas as lojas que inauguraram o Shopping Iguatemi, apenas quatro permanecem), não sendo exigível que os primitivos contratantes do negócio de compra e venda a isso sejam submetidos.98

98 O Ministro Aldir Passarinho Junior, também vencido, disse o seguinte: “Se o cidadão comprou uma certa unidade, imaginando poder arcar com aquele custo e também com a manutenção daquele imóvel em determinadas circunstâncias que haviam sido contratadas na época, a alteração da destinação efetivamente não pode ser compreendida dentro de uma tese de que a minoria deve se socializar naquela despesa, porque houve uma mudança significativa da proposta do empreendimento. Nessas circunstâncias, há que ser ressalvado o direito anteriormente configurado, ainda que se possa admitir que em um empreendimento mais sofisticado possa haver um benefício para os proprietários originários; mas, de qualquer forma, eles não fizeram essa opção”.

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O Ministro Jorge Scartezzini, no seu voto de desempate, e apesar de não conhecer do

recurso, asseverou que os lojistas não podiam invocar em seu favor a alteração do projeto

original, pois eles tiveram oportunidade de revender as suas unidades, e, no entanto,

decidiram permanecer no local, mesmo sabendo das mudanças que iriam ocorrer, até porque a

decisão de não vender era animada pela expectativa de que o seu faturamento aumentaria. O

Ministro também considerou o fato de que o CRD, em um shopping, se justificava, em razão

das peculiaridades operacionais, distintas de um condomínio comum. Confira-se:

Quanto à alegada afronta ao art. 12 da Lei nº 4.591⁄64, porém, perfilho a orientação exarada pelos e. Ministros FERNANDO GONÇALVES e BARROS MONTEIRO, de molde que, havendo a necessidade de se revolver a análise das cláusulas da Convenção Condominial para o deslinde da controvérsia trazida à esta Corte pela via especial, é de se aplicar o verbete sumular nº 05⁄STJ, sendo, portanto, de rigor o não conhecimento do recurso. Com efeito, infere-se dos autos que os autores, ora recorrentes, adquiriram, na qualidade de promitentes-compradores, as unidades nºs 3 e 4 do Shopping Top Mall, empreendimento que, de início, correspondia a um mero agrupamento de lojas, tal como uma galeria, de cunho, portanto, essencialmente imobiliário. Outrossim, é assente que, ampliado o projeto original, o empreendimento passou a assumir as características de um shopping center, cujo escopo básico é a locação das lojas, razão que levou à criação da Top Mall Administradora de Condomínios Ltda., ora recorrida. Consumada a desnaturação do empreendimento originário foi proposta aos proprietários de unidades autônomas a revenda dos aludidos imóveis à empresa recém-criada, o que não foi aceito pelos autores, consoante afirmam em sua peça inicial. Destarte, faz-se mister destacar que, embora louvável a preocupação com a proteção do direito dos primitivos adquirentes em face da alteração das feições jurídica e econômica do empreendimento, é certo que lhes foi oferecida a oportunidade de não se integrar ao projeto de formação do shopping por meio da revenda das unidades autônomas à incorporadora. De igual modo, é importante ressaltar que um shopping center, por definição, corresponde a um centro comercial planejado, sob administração única e centralizada, composto de lojas destinadas à exploração de ramos diversificados de comércio, na sua maior parte, objeto de locação, ficando os lojistas sujeitos a normas contratuais padronizadas que visam à conservação do equilíbrio da oferta e da funcionalidade, para assegurar a convivência integrada e otimizar o faturamento. Tal projeto envolve um conceito de mercado e aproveitamento que estabelece uma disposição especial para as lojas, denominado tenant mix. Assim, por certo, de toda essa especificidade decorrem aproveitamentos aos proprietários, que demonstraram interesse em permanecer integrados ao empreendimento. Não raramente, na formação de um shopping, ao condomínio pro indiviso, superpõe-se um condomínio por unidades autônomas, regulado pela Lei n° 4.591⁄64, hipótese em que a implantação reclama máxima cautela na definição e regulamentação da amplitude das respectivas áreas de uso comum e forma de sua utilização pelos condôminos, bem como no tocante ao rateamento de despesas, a fim de impedir o surgimento de graves dificuldades operacionais, tal como no caso em apreço.

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Neste contexto, a Convenção de Condomínio visa estabelecer definições, firmar diretrizes administrativas e fixar as regras de custeio dos encargos condominiais, obrigando a todos condôminos, nos termos do art. 9º, da Lei nº 4.591⁄64. Assim sendo é de interesse frisar que, na situação em comento, não se questionou nas instâncias ordinárias acerca da qualquer irregularidade na aprovação da Convenção de Condomínio, cuja interpretação motiva a presente lide.

Em nossa opinião, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios andou bem

em manter a sentença de primeiro grau, que julgou improcedente o pedido dos autores. À

primeira vista, parece unilateral, em favor do empreendedor, o critério previsto na convenção,

de estipular o CRD em cada contrato de locação. Porém, a cláusula condominial não chega a

ser abusiva, pois: (i) o CRD das unidades desses condôminos representantes dos 5% passou a

ser calculado de acordo com o mesmo critério previsto para as unidades alugadas,

respeitando-se a isonomia entre os condôminos (locatários ou não); (ii) em caso de abuso na

fixação da CRD desses condôminos, aí sim, poderiam eles se insurgir, mas não contra a

convenção propriamente dita, e sim contra o ato da empreendedora, que neste caso estaria

rateando as despesas em desacordo com a convenção.

A situação das lojas com saída para a rua também sempre ensejou discussão em

relação às despesas do edifício. Essas unidades, normalmente, não se beneficiam de nenhum

dos recursos do condomínio: não utilizam – nem sequer potencialmente – os empregados, os

elevadores e demais partes comuns. Por isso, os condôminos titulares dessas unidades sempre

tentaram se isentar das despesas ordinárias do condomínio.

Na doutrina, a questão nunca foi totalmente pacífica.99 Os nossos tribunais,

99 J. Nascimento Franco coloca assim a questão: “(...) se um condômino não tem, em razão do tipo ou localização de sua unidade, ensejo de utilizar-se de um serviço ou coisa de propriedade comum, a ele só devem ser rateadas despesas se a Convenção expressamente o determinar, uma vez que, no condomínio em edifícios – ensina Salvat – conjugam-se três elementos, ou seja: a propriedade comum, uso ou gozo, e encargos. Logo, onde não existe o uso ou gozo da coisa comum não há obrigação de suportar as correspondentes despesas de manutenção. A título de exemplo, pode ser dado o caso do proprietário de loja, com acesso direto à via pública, que não tem necessidade de utilizar-se do elevador, do abastecimento de água, luz e força do edifício, da antena coletiva de televisão. Não usufruindo tais serviços, comuns, isento está ele de contribuir para sua manutenção”. Ob. cit., p. 204. O entendimento de Caio Mário da Silva Pereira é o mesmo: “Cumpre, entretanto, observar que não se podem atribuir os ônus de tais despesas a comunheiros que nada têm, direta ou indiretamente, com serviços que nenhuma utilidade lhes prestam. Está nesse caso o proprietário de loja no rés-do-chão, e com saída livre, quanto às despesas de manutenção de elevadores. Está nesse caso aquele que é proprietário de apartamento sem direito a garagem, quanto às despesas com esta. E, assim por diante, em outras hipóteses análogas. Mas é evidente que prevalece, e obriga, a disposição em contrário, inserta na convenção de condomínio”. Ob. cit., p. 143. Pontes de Miranda, entretanto, não fez a ressalva de poder a convenção estipular

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igualmente, sempre se dividiram, e ainda hoje em dia não é possível prever o resultado de

uma demanda desse tipo, havendo decisões isentando os lojistas,100 e outras determinando que

eles participem do rateio, pelo simples fato de serem condôminos, sendo irrelevante que elas

não desfrutem dos serviços condominiais.101 O Superior Tribunal de Justiça entende que o

lojista que não se utiliza dos serviços do condomínio, em princípio, não precisa contribuir

para as respectivas despesas,102 salvo se a convenção assim determinar, hipótese em que a

cláusula convencional é válida e obrigatória.103

Em que pese a posição largamente majoritária, que permite à convenção de

condomínio obrigar o lojista ao pagamento das despesas comuns, mesmo quando ele não

utiliza – sequer potencialmente – os serviços condominiais, parece mais correto vincular a

em contrário, obrigando o proprietário da loja (Tratado de Direito Predial, t. 2, Rio de Janeiro: José Konfino Editor, 1952, p. 187). 100 Como dá conta o seguinte acórdão do Tribunal de Alçada do Estado de Minas Gerais: “DESPESAS CONDOMINIAIS. LOJAS AUTÔNOMAS. DESPESAS COMUNS. COTA-PARTE LIMITADA AOS SERVIÇOS DISPONÍVEIS E ÚTEIS. Se a apelante não se utiliza dos serviços de elevadores ou de conservação e limpeza interna do edifício, obviamente não tem que participar das despesas correlatas. O art. 12, da Lei n. 4.591/1964, bem como a própria convenção de condomínio, são textuais ao dispor que os condôminos devem participar das despesas comuns, aqui compreendidas, porque justo e equânime, a comunhão sobre as despesas das quais participem”. TAMG. 5ª. Câmara Civil. Apelação 327088-4, Relator Juiz Brandão Teixeira. Julgado em 26/04/2001. Acórdão Unânime. 101 TJRJ. 7ª Câmara Cível. Apelação Cível 2002.001.27615. Rel. Des. Jose Mota Filho. Julgado em 17/12/2002. Acórdão Unânime: “Apelação Cível. Ação de Cobrança de cotas condominiais julgada procedente. Propriedade do imóvel que não afasta a idéia de se achar integrando um condomínio, como admite o próprio apelante. Loja com saída independente para a rua. Questão irrelevante, desde que existente o condomínio, o rateio das despesas é obrigatório, nos termos da Lei nº. 4.591/64 e da Convenção. As ligações próprias de água e luz não exoneram o condômino do pagamento das despesas em favor do condomínio. Cota-parte em rateio. Art. 12, da Lei nº. 4.591/64. Valores determinados através de assembléias. Sentença correta. Desprovimento. Decisão unânime”. 102 "CIVIL. CONDOMÍNIO. LOJA AUTÔNOMA. DESPESAS COMUNS. OMISSÃO DA CONVENÇÃO. COTA-PARTE LIMITADA AOS SERVIÇOS DISPONÍVEIS E ÚTEIS. RECURSO PROVIDO. I - A convenção do condomínio é que deve prever o critério de rateio das despesas comuns, nos termos do art. 12 da Lei 4.591/64. II - Sendo omissa a convenção, a utilização ou não dos serviços comuns, a quantidade do seu uso e a impossibilidade de renúncia do condômino aos serviços prestados conduzem ao critério da disponibilização do serviço a cada unidade, para fins de cálculo da cota-parte das despesas condominiais". Superior Tribunal de Justiça, RESP 144619/SP, Reg. 199700580318, Quarta Turma, julgado em 5/8/1999, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, pub. DJ 14/2/2000, p. 34. O Relator assim discorreu em seu voto: "... em princípio as despesas referentes aos serviços não disponíveis para algumas unidades, seja por desnecessidade, seja por inutilidade, não devem ser cobradas de seus proprietários. Em outras palavras, se não convencionado diversamente, da soma das despesas a serem rateadas deve ser excluída, em relação a essas unidades, a parcela referente aos serviços que a elas não são úteis ou necessários, ou que não estejam disponíveis”. A Terceira Turma possui o mesmo entendimento: “Condomínio. Loja térrea. Despesas. Do rateio das despesas de condomínio não se pode resultar deva arcar o condômino com aquelas que se refiram a serviços ou utilidades que, em virtude da própria configuração do edifício, não têm, para ele, qualquer préstimo”. REsp 164.672/PR, Rel. Ministro Eduardo Ribeiro, Terceira Turma, julgado em 04.11.1999, DJ 07.02.2000, p. 154. 103 “CONDOMÍNIO. LOJA TÉRREA COM ACESSO INDEPENDENTE. COTAS CONDOMINIAIS. CRITÉRIO DE RATEIO EXPRESSO NA CONVENÇÃO DE CONDOMÍNIO. VALIDADE. Havendo disposição expressa na convenção de condomínio, estabelecendo o critério de rateio dos encargos condominiais ordinários, prescindível é que haja outra regra específica obrigando o proprietário da loja térrea a arcar com essas despesas.Recurso especial conhecido, mas improvido”. REsp 537.116/RS, Rel. Ministro Barros Monteiro, Quarta Turma, julgado em 04.08.2005, DJ 05.12.2005, p. 330.

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obrigatoriedade de contribuição à utilização da edificação, não prevalecendo, nesse caso, a

cláusula da convenção que imponha ao lojista esse dever. Obrigar o condômino a contribuir

para o custeio de despesas mensais que não guardam relação com a sua unidade é gerar, para

os demais condôminos, um enriquecimento sem causa.

O art. 1.340 do Código Civil, incorporando esse princípio da vedação ao

enriquecimento sem causa, reforça essa interpretação, ao dispor que “as despesas relativas a

partes comuns de uso exclusivo de um condômino, ou de alguns deles, incumbem a quem

delas se serve”.104 Desta forma, se apenas os condôminos restantes beneficiam-se dos serviços

dos empregados, dos elevadores e de outras partes comuns do edifício, apenas eles devem

arcar com as despesas deles decorrentes.105

O fato de algumas lojas utilizarem-se, por exemplo, da água do edifício, não deve

ensejar maniqueísmos. Bastará, no caso, que a loja participe do rateio concernente à conta de

água, na proporção prevista na convenção de condomínio para as demais despesas.

104 Nesse sentido, confira-se o acórdão do TJRJ, de lavra da Des. Katia Torres: “APELAÇÃO CÍVEL. CONDOMÍNIO EDILÍCIO. VAGAS DE GARAGEM. As despesas relativas a partes de uso exclusivo de um condômino, ou de alguns deles, incumbem a quem delas se servem. Se o edifício tem vagas de utilização privativa de algumas unidades, não é razoável que usufrutuária de apartamento desprovido de tal acessório seja onerada tanto quanto os usuários das mesmas. Inteligência do artigo 1.340 do Código Civil. Existência de relação jurídica de natureza obrigacional entre as partes que confere ao Condomínio, legitimidade para figurar, com exclusividade, no pólo passivo da relação processual, não havendo que se falar em litisconsórcio necessário, tampouco em desrespeito aos limites objetivos da coisa julgada. Recurso a que se nega provimento”. TJRJ. 19ª. Câmara Cível. Apelação Cível 52.969/07, j. 30.10.2007. 105 Nas vilas e loteamentos fechados, não existe um condomínio, pois cada casa está construída em um terreno totalmente independente dos demais. Porém, é comum que os moradores dessas localidades constituam uma associação, que passa a cobrar as despesas de conservação e segurança do local. A matéria ainda é controversa nos nossos tribunais, mas a jurisprudência, em sua maioria, entende que mesmo o morador que não estiver associado está obrigado a contribuir para as despesas das quais se beneficia, pelo princípio da vedação ao enriquecimento sem causa. A tendência, no Superior Tribunal de Justiça, é que prevaleça a posição em favor dos moradores: “EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. RECURSO ESPECIAL. ASSOCIAÇÃO DE MORADORES. TAXAS DE MANUTENÇÃO DO LOTEAMENTO. IMPOSIÇÃO A QUEM NÃO É ASSOCIADO. IMPOSSIBILIDADE. - As taxas de manutenção criadas por associação de moradores, não podem ser impostas a proprietário de imóvel que não é associado, nem aderiu ao ato que instituiu o encargo”. (EREsp 444.931/SP, Rel. Ministro Fernando Gonçalves, Rel. p/ Acórdão Ministro Humberto Gomes de Barros, Segunda Seção, julgado em 26.10.2005, DJ 01.02.2006 p. 427). Porém no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, existe até uma Súmula em favor das associações: “Súmula n.º 79. ASSOCIAÇÃO DE MORADORES. CONDOMÍNIO DE FATO. COBRANÇA DE DESPESAS COMUNS. PRINCIPIO DO NÃO ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA. “Em respeito ao princípio que veda o enriquecimento sem causa, as associações de moradores podem exigir dos não associados, em igualdade de condições com os associados, que concorram para o custeio dos serviços por elas efetivamente prestados e que sejam do interesse comum dos moradores da localidade.” Uniformização de Jurisprudência n.º 2004.018.00012 na Apelação Cível n.º 2004.001.13327 – Julgamento em 04/04/2005– Votação: por maioria – Relator: Des. Sérgio Cavalieri Filho – Registro de Acórdão em 15/07/2005 – fls. 6469/6487. Na doutrina, é possível encontrar autores relevantes que consideram justa a pretensão das associações. Cf. MATTIETTO, Leonardo. O condomínio de fato no direito brasileiro contemporâneo. In: TEPEDINO, Gustavo e FACHIN, Luiz Edson (coord). O direito e o tempo: embates jurídicos e utopias contemporâneas – Estudos em homenagem ao Professor Ricardo Pereira Lira. Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 2008 p. 671-673.

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Assim, uma deliberação da assembléia geral, que atribua às lojas o dever de contribuir

para as despesas relativas a partes comuns por ela não utilizadas, entrará em choque com o

art. 1.340 do Código Civil, podendo ser questionada judicialmente.

Embora a aprovação do critério de rateio por apenas 2/3 dos condôminos possa

parecer, para muitos, a solução que salta aos olhos, por contar com o apoio dos artigos 1.333 e

1.351, ambos do Código Civil, a sua aplicação literal daria margem a muitas injustiças. Com

base nela, dois terços dos condôminos terão, como se viu no caso da cobertura, a chancela

para atribuir ao terço restante o pagamento de todas as despesas do edifício!

Os parâmetros para se solucionar adequadamente os casos envolvendo essa matéria

devem ser os seguintes: (i) em regra, bastam 2/3 dos titulares de frações ideais para aprovar o

critério de rateio de despesas (art. 1333, Código Civil); para modificá-lo, deve haver no

mínimo 2/3 do total de condôminos, sendo que nesse conjunto devem estar incluídos todos os

condôminos prejudicados pela deliberação, isto é, que verão aumentada a sua cota-parte na

divisão dos gastos; (iii) estar-se-á diante de um exercício abusivo do direito sempre que um

condômino, ou grupo de condôminos, utilizando-se do fato de terem alcançado os votos

necessários, ou de possuírem o poder de veto, criarem uma situação (ou se recusarem a

modificá-la) em que o princípio previsto no art. 1.340 do próprio Código seja claramente

violado; e (iv) configurado o abuso do direito, abrem-se as portas para, excepcionalmente,

impedir ou permitir, conforme o caso, a alteração do critério de rateio.

Dito de outro modo: (i) ainda que se adote a posição minoritária encontrada na

jurisprudência, e se reconheça a apenas 2/3 dos condôminos o direito de alterar o critério de

rateio de despesas, mesmo sem o voto dos prejudicados; ou (ii) no caso de se adotar a posição

majoritária – atribuindo aos condôminos prejudicados o poder de veto; em qualquer hipótese

essa alteração do critério (ou a sua manutenção) deverá observar a proporcionalidade entre o

direito de usar – entendido como a potencialidade, e não apenas como uso efetivo – e a

obrigação de pagar.

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CAPÍTULO 3: AS PARTES COMUNS DE USO EXCLUSIVO

A principal característica do condomínio edilício é conjugar a propriedade comum

com a propriedade exclusiva.106 Enquanto no condomínio voluntário não há distinção entre

partes comuns e partes privativas, o mesmo não ocorre no condomínio horizontal.107 As partes

de propriedade exclusiva do condômino são assim identificadas sempre que possuírem fração

ideal, e, podem ser livremente alienadas e gravadas (Código Civil, art. 1.331, parágrafo

primeiro). As partes de propriedade comum, por sua vez, podem ser de uso comum, ou de uso

privativo de um ou de alguns condôminos, conforme o quadro a seguir:

CondomínioEdilício

Partes depropriedade exclusiva

(unidades imobiliárias)

Partes depropriedade comum

aptos., salas, lojas,vagas, terraço(e respectivas

frações ideais)

de uso comum de uso exclusivo

terraço, vagassolo, telhado, redes, portaria, playground,

terraço, vagas

106 Sobre partes comuns no condomínio edilício, v. NICOLETTI, Adriana. Manuale del Condominio. 12. ed. Roma: Buffetti Editore, 2006, p. 29 e ss. 107 Milena Donato Oliva ressaltou muito bem as três marcantes diferenças entre os dois condomínios. Confira-se: “Ao propósito, cabe destacar que o condomínio edilício derroga as três principais regras do condomínio ordinário. Primeiramente, no condomínio relativo, ao contrário do ordinário, a situação de indivisão não é temporária, mas permanente. Além disso, no condomínio ordinário nenhum condômino tem o direito de dar posse, uso ou gozo a estranhos sem o consenso dos demais consortes, ao passo que no condomínio edilício, sendo livre a todo proprietário de uma unidade usá-la por si, ou por outrem, cedendo-a em aluguel ou a qualquer outro título jurídico, “conseqüência é que lhe não pode ser negado o direito de ceder a posse, o uso e o gozo das partes comuns do prédio”. Por fim, no condomínio ordinário, caso algum dos condôminos queira alienar sua parte na coisa comum, deverá oferecê-la aos demais consortes, que têm direito de preferência na compra. No condomínio edilício, de outra parte, qualquer condômino tem o direito de alienar a sua unidade a estranhos, sem audiência ou anuência prévia dos consortes”. OLIVA, Milena Donato. Condomínio e subjetividade. In: TEPEDINO, Gustavo e FACHIN, Luiz Edson (coord). Diálogos sobre direito civil, v. II. Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 2008, p __.

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Assim dispunha o artigo 3º da Lei 4.591/64:

O terreno em que se levantam a edificação ou o conjunto de edificações e suas instalações, bem como as fundações, paredes externas, o teto, as áreas internas de ventilação, e tudo o mais que sirva a qualquer dependência de uso comum dos proprietários ou titulares de direito à aquisição de unidades ou ocupantes, constituirão condomínio de todos, e serão insuscetíveis de divisão, ou de alienação destacada da respectiva unidade. Serão, também, insuscetíveis de utilização exclusiva por qualquer condômino. (os grifos são nossos).

A interpretação literal da parte final do artigo 3º levava, num primeiro momento, a se

acreditar na impossibilidade de haver partes de propriedade comum de uso exclusivo.

Todavia, essa não foi a interpretação que prevaleceu, como destaca João Nascimento Franco:

Em síntese, nos Tribunais predomina entendimento de que, havendo autorização regular dos condôminos, ou expressa previsão no instrumento de instituição do condomínio, pode ser concedido o uso exclusivo de áreas e coisas pertencentes à coletividade condominial, principalmente se forem contíguas às unidades que estruturalmente se vincularem e que, por isso, não possam ser utilizadas por outros condôminos sem passarem por dentro dessas unidades... Nesses casos, nada mais razoável do que proporcionar o uso exclusivo ao titular da unidade contígua, que arcará com o custeio de sua conservação, aliviando o condomínio dessa despesa, porque são áreas estruturalmente desafetadas do uso comum e úteis apenas para o titular da unidade autônoma contígua.108

João Batista Lopes também sempre entendeu que “a utilização, em caráter exclusivo,

de coisas comuns poderá ser admitida se de acordo todos os condôminos”. 109 Essa também é

a posição de Marco Aurélio S. Viana, que ao discorrer sobre a transformação de um espaço

ocioso em vaga de garagem, disse que isso é uma “mudança de destinação da coisa comum, a

processar-se em Assembléia Geral Extraordinária (...). A deliberação reclama

unanimidade”.110 Gustavo Tepedino, entretanto, defende o quorum de 2/3 para a alteração das

partes comuns, ou outro fixado pela convenção.111

108 J. Nascimento, ob. cit., p. 165-167. 109 Ob. cit., p. 81 110 Ob. cit., p. 29. 111 Nas palavras do autor: “A alteração do chamado estatuto real, atinente às áreas comuns, está a exigir, igualmente, o quorum fixado para a alteração da convenção, ou outro por esta determinado”. Multipropriedade... Ob. cit., p. 123.

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Com a entrada em vigor do atual Código, o resquício de polêmica existente parece ter

sumido, já que a parte final do caput do artigo 3º da Lei de Condomínios não foi transportada

para a lei nova.112

Visto que a privatização da coisa comum condominial é admitida, indaga-se: uma vez

que uma determinada parte comum do condomínio seja de uso exclusivo de um condômino,

podem os demais retirar dele esse direito, sem a sua anuência?

A nossa indagação, como sói acontecer, dirige-se aos casos em que a posse da área é

justa, assim considerada aquela que não possua vício objetivo, isto é, que não seja violenta,

clandestina ou precária, nos termos do art. 1.200 do Código Civil. Posse violenta, como se

sabe, é aquela adquirida mediante força física ou grave ameaça que gere fundado temor na

vítima. A posse clandestina, a seu turno, é adquirida às ocultas, ou mediante o uso de

artifícios para iludir quem tem a posse. Finalmente, a posse precária é obtida por abuso de

confiança, quando o esbulhador retém indevidamente a coisa que deveria ser restituída ao

possuidor. Se fosse possível traçar um paralelo entre essas modalidades de posse injusta e os

tipos penais dos crimes contra o patrimônio, a posse violenta corresponderia ao roubo; a

clandestina equivaleria ao furto; e a posse precária seria representada pela apropriação

indébita.113

Nos casos de esbulho, é evidente que o condomínio poderá reintegrar-se na área

indevidamente ocupada pelo condômino. Vide, a título de exemplo, o seguinte acórdão do

Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, no qual o condômino, sem autorização

da assembléia geral, invadiu e construiu em área comum de uso comum:

APELAÇÃO CÍVEL. CONDOMÍNIO. AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE CUMULADA COM DEMOLITÓRIA E COBRANÇA DE MULTA CONDOMINIAL. PRELIMINAR DE NULIDADE DO DECISUM. A sentença prolatada bem fundamentou a solução da demanda, em atenção ao conjunto probatório carreado aos autos. Inexiste nulidade a ser declarada. MÉRITO. Obras construídas pela apelante que invadem área comum do edifício. Ausência de autorização. Vedação constante na Convenção

112 João Batista Lopes confirma: “Como se vê, houve supressão da parte final do art. 3º da Lei 4.591/64 (“serão também, insuscetíveis de utilização exclusiva por qualquer condômino”). Diante disso, não mais subsiste a controvérsia sobre a admissibilidade de os condôminos, por unanimidade, autorizarem a utilização, por consorte, em caráter exclusivo, de coisas ou partes comuns do edifício”. Ob. cit., p. 80-81 113 A equiparação não é correta, juridicamente, principalmente porque os tipos penais referem-se apenas aos bens móveis; mas é válida se utilizada com o objetivo meramente didático.

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Condominial. Desconformidade dos demais condôminos. Prejuízo à ventilação e à luminosidade dos demais apartamentos. Demolição que se impõe. Pagamento de multa prevista no Regimento Interno, autorizada pelo Código Civil e pela Lei n° 4.591/64. Manutenção da sentença.114

Porém, em casos excepcionais, a obrigação de devolver a posse da parte comum

invadida pode ser afastada, como se denota dos dois acórdãos a seguir.

No primeiro acórdão, do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, o

condômino, autorizado a ocupar um determinado espaço, construiu além do permitido; mas

verificou-se que a demolição do excesso importaria na inutilização de todo o restante. No

caso, especialíssimo, foi decisiva a inércia do condomínio, que somente ajuizou a ação após o

encerramento da obra. Confira-se:

CONDOMINIO DE EDIFICIO. ACRESCIMO EM APARTAMENTO DE COBERTURA. OBRA NAO AUTORIZADA EM AREA COMUM. TEORIA DO FATO CONSUMADO. CONDENACAO EM PERDAS E DANOS. Apelações cíveis. Ação de reintegração de posse c.c. demolitória. Construção de acréscimos à apartamento de cobertura em telhado incluindo área excedente à autorizada em assembléia. Rejeição da preliminar de inépcia da inicial. Descabimento do procedimento especial da ação de nunciação de obra nova. Obra concluída quando do ajuizamento da ação. Legitimidade ativa do condomínio. Construção em local anteriormente constituído por telhado. Dependência comum. Utilização que depende da autorização dos condôminos. Autorização em AGO para a utilização de 62,10 m². Construção realizada em área de 103,05 m². Área excedente que se encontra totalmente integrada à área cuja ocupação foi autorizada. Pleito demolitório. Ausência de razoabilidade. Teoria do fato consumado. Inviabilidade de demolir-se "meia sala de estar", "meio banheiro", ou mesmo "todo o closet", que apesar de construído em área não autorizada, serve de ligação entre o banheiro e outra área coberta, valendo-se do mesmo raciocínio em relação à área descoberta. Conversão da obrigação de fazer em perdas e danos. Inteligência do art. 461 par. 1. CPC. Maior pena de multa prevista na convenção que se mostra irrisória. Valor a ser apurado em liquidação por arbitramento considerado o valor de mercado. Inteligência do art. 475-D CPC. Procedência do pedido de cessação das obras pelo autor ante os indícios de que iniciaria a construção de terceiro pavimento com o prolongamento de muro já construído irregularmente. Multa cominatória. Inteligência do art.461 "caput" c.c. par.5. c.c 287 CPC. Demolição da nova construção erguida pelo apelado no curso do processo em prazo certo, multa diária. Sentença reformada em parte. Desprovimento do primeiro apelo. Provimento parcial do segundo.115

114 TJRS. 19ª Câmara Cível. Apelação 70014960066. Rel. Des. JOSÉ FRANCISCO PELLEGRINI. Julgado em 13/02/2007. Acórdão Unânime 115 TJRJ. 5ª. Câmara Cível. Apelação 2007.001.32994. Rel. Des. CRISTINA TEREZA GAULIA, Julgado em 18/09/2007. Acórdão Unânime.

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No segundo acórdão, do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, a

localização física da área apropriada pelo condômino era excepcional: um pequeno terraço

que somente se podia acessar pelo interior do imóvel. A situação não foi criada pelo

condômino; já existia desde a construção do prédio. Nessas circunstâncias, a área,

fisicamente, só podia mesmo ser de uso exclusivo do imóvel, a não ser que se criasse um

direito de passagem que tornaria a unidade totalmente devassada pelos demais condôminos:

APELAÇÃO CÍVEL. CONDOMÍNIO. REINTEGRAÇÃO DE POSSE DE ÁREA COMUM. USO EXCLUSIVO DE UM CONDÔMINO EM FACE DA LOCALIZAÇÃO DA ÁREA. É inviável impor à condômina restrição ao seu direito de propriedade determinando-lhe que dê passagem à coletividade condominial ao “terraço dos fundos”, acessível tão-somente pelo seu imóvel. Atualmente constitui-se porção condominial comum, mas de uso restrito. (...) Negaram provimento a ambos os recursos.116

Mas o foco deste capítulo é saber se o condômino, após tornar-se titular, por

autorização expressa do condomínio, do uso exclusivo de determinada área comum, pode ser

privado desse uso, sem a sua própria concordância.

João Nascimento Franco defende que não. Para ele, a totalidade dos votos

condominiais é necessária “nos casos de alienação, oneração ou concessão de uso de parte

comum; ou alteração ... da fração ideal e dos direitos dos condôminos nas áreas e coisas de

uso comum”.117

116 TJRS. 17ª Câmara Cível. Apelação 70018729152. Rel. Des. ALZIR FELIPPE SCHMITZ. Julgado em 09/08/2007. Acórdão Unânime. Vale a pena transcrever o seguinte trecho do voto: “(...) Merece destaque ainda parte da fundamentação sentencial que afirma ter sido “opção ou falta de planejamento do condomínio, estabelecer como de área de uso comum parte de imóvel, cujo acesso só é possível através de passagem sobre área restrita. Então, não pode pretender estabelecer servidão, quem criou a situação de encravamento. É certo que o imóvel alheio pode ser onerado com direito de passagem, porém cada situação merece um exame especial, preponderando a conclusão de onerar-se o menos possível a propriedade de terceiro. Na hipótese, o autor utiliza a área comum para lazer e a ré utiliza sala comercial e depósito para seu estabelecimento comercial (Pizzaria San Marino – fl. 02). Então, repito, permitir a passagem frustraria a atividade econômica da requerida e não há como impor este gravame à autora”. Ou seja, embora em tese exista a possibilidade-futura de o condomínio autor reaver a posse da área comum, atualmente de uso e gozo exclusivo da demandada-apelada, hoje a configuração do bem impede o provimento. Sendo irrelevante o fato de o mal-planejamento da obra ser do construtor, incorporador ou dos condôminos. Os fatos estão postos e a melhor solução efetivamente foi aquela alcançada pelo juízo monocrático. O terreno em questão, embora seja comum, atualmente é de uso restrito”. 117 Ob. cit., p. 104.

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Da mesma forma entende o Superior Tribunal de Justiça, ao decidir que, em se

tratando de partes comuns de uso exclusivo, é necessário o voto da unanimidade dos

comunheiros:

CIVIL. CONDOMÍNIO. CONVENÇÃO. QUORUM NECESSÁRIO PARA ATRIBUIR OS DIREITOS ADVINDOS DA PARTE IDEAL. I – A doutrina e a jurisprudência são acordes em proclamar que deve ser unânime o quorum necessário para atribuir direitos a condôminos relativos à sua parte ideal. (...)118

O Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, invocando os precedentes do STJ,

atribuiu o mesmo destino ao litígio envolvendo a alteração de uma garagem:

Apelação cível. Ação anulatória. Assembléia geral ordinária. Alteração de área comum. Quorum exigido. Unanimidade. Não obstante a concordância da maioria dos condôminos com a alteração de parte comum do condomínio, o art. 628 do Código Civil de 1916 proibia expressamente a alteração de coisa comum sem o consentimento dos outros co-proprietários. O egrégio Superior Tribunal de Justiça já firmou o entendimento de que a alteração proibida a que se refere o aludido artigo diz respeito àquela que muda o destino da coisa ou lhe transforma o modo de ser, o que indubitavelmente, ocorreu no presente caso. Tendo a construção da garagem atingido a destinação da coisa comum, uma vez que anteriormente havia no local um jardim e parte do apartamento para porteiro, sem a anuência da unanimidade de condôminos, assiste razão ao apelante, sendo nula a assembléia geral realizada, devendo as partes comuns, alteradas em decorrência de deliberação na referida assembléia, ser reconduzidas ao estado anterior. Recurso ao qual se dá provimento.119

O Supremo Tribunal Federal, quando ainda tinha competência para julgar os litígios

privados, antes do advento da Constituição Federal de 1988, já havia dito que “para modificar

ou afrontar direito de cada condômino sobre as coisas comuns, alterar o destino de fração

autônoma do prédio, não basta o voto da maioria, mas necessário é o assentimento de todos

os consortes”.120

De fato, soa no mínimo estranho, pelo menos à primeira vista, que um condômino

possa ter o seu direito de uso da parte comum não apenas restringido, mas completamente

118 STJ. 4ª. Turma. Resp 62.133/RJ. Rel. Ministro Waldemar Zveiter. Julgado em 29.08.1995. DJ. 06.11.1995, p. 37.568. Acórdão Unânime. 119 TJERJ. 12ª. Câmara Cível. Apelação Cível 50.851/07. Rel. Des. Mario Assis Gonçalves. Julgado em 18/12/2007. Acórdão Unânime. 120 STF. 2ª. Turma. RE 71.285-PR. Rel. Min. Antonio Neder. Julgado em 18/10/1974.

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retirado. Vale dizer, em um dia ele está autorizado a utilizar-se do local, e no dia seguinte ele

não poderá mais fazê-lo.

O fato de não ser a parte comum, no caso em análise, propriedade exclusiva do

condômino, não torna o argumento convincente, pois o direito ao uso não é comum, e sim

exclusivo. Se assim fosse, poderia o locador retomar o imóvel do locatário em outras

hipóteses que não aquelas expressamente elencadas na Lei nº 8.245/91,121 sob o simples

argumento de que o locatário, ao contrário dele, não possui a propriedade do imóvel locado,

mas tão somente o direito ao uso exclusivo.

Como se sabe, o direito ao uso exclusivo não é intocável. Se o direito em relação a

uma unidade autônoma, no condomínio edilício, já está sujeito a algumas restrições, com mais

razão se pode restringir o uso exclusivo de uma parte comum. Por exemplo, não pode o

condômino, ainda que as dimensões da vaga o permitam, estacionar no local mais de um

veículo – um carro e uma motocicleta.122 Parece indiscutível a possibilidade de limitação ao

121 São elas as hipóteses previstas nos artigos 9º; 46, §2º; 47; 50, parágrafo único; 52; 53; 57 e 66. 122 Nesse sentido, confira-se acórdão da 12ª. Câmara Civil do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, proferido nos autos dos Embargos Infringentes 27.342-2, em que foi relator o Desembargador Dínio Garcia: “(...) ressalvada expressa autorização do regulamento condominial, a vaga em garagem dá ao seu titular o direito de nela guardar um único veículo, mesmo que as dimensões permitam que nele seja abrigado mais. (...) Estacionados, à custa de manobras delicadas (vale dizer, arriscadas), dois veículos na vaga do autor, a saída de seus ocupantes haveria de ser feita através de box vizinho, o que já implicaria em ofensa à posse do respectivo proprietário. E se este, no uso de direito igual ao postulado pelo autor, também viesse a colocar dois veículos em sua vaga, nem mesmo as portas dos veículos poderia ser abertas. E bem se pode imaginar o que aconteceria na garagem se todos os condôminos pretendessem dar, às suas vagas, a mesma utilização postulada pelo autor. Afinal, o exercício da propriedade não pode ser colocado em nível de extremado individualismo, que ignore os interesses coletivos”. RJTJESP 82/287. Apud Lopes, João Batista, ob. cit., p. 147. Note-se que na causa julgada estava-se diante de um box de garagem, considerado como propriedade exclusiva, o que não impediu o julgamento em favor do condomínio. Ressalve-se, ainda, que há acórdãos permitindo o duplo parqueamento, se isso não traz prejuízo aos demais proprietários: “PRETENSÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER C/C COBRANÇA. DELIBERAÇÃO CONDOMINIAL. ESTACIONAMENTO DE MOTOCICLETAS. ÁREA ESPECÍFICA. RÉU QUE ESTACIONA MOTO JUNTO AO AUTOMÓVEL NA VAGA DE GARAGEM VINCULADA AO SEU APARTAMENTO. Sentença de improcedência. Legalidade da conduta do réu. Ausência de regra que a proíba. Inobservância do quorum quando da criação de estacionamento próprio para motos. Inocorrência de violação a direito da vizinhança. Mantença. Deliberação condominial. Fechamento de uma área na garagem, com destinação específica à guarda de motos, a fim de cumprir exigência de contrato de seguro de motos firmado pelo condomínio. Inobservância de quorum. Vício formal. Ausência de expressa vedação de estacionamento de motos nas vagas ordinárias. Ausência de irregularidade na conduta do apelado. Opção do apelado em pactuar um seguro particular para sua moto. Intuito de dispensar a cobertura pelo seguro condominial. Inexistência de justificativa para a imposição de estacionamento na área restrita para motos, ao invés de em sua vaga convencional, e, tampouco, para o pagamento da mensalidade do aludido estacionamento. Princípio da congruência entre o pedido e a sentença, que não restou violado. Afastamento da mencionada deliberação, que foi apontada como matéria de defesa. Fotografias. Vaga de estacionamento ampla, que comporta o automóvel e a moto sem qualquer prejuízo aos demais usuários da garagem. Uso em conformidade com o inc. IV do art. 1336 do CC. DESPROVIMENTO DO RECURSO”. TJERJ. 8ª. Câmara Cível. Apelação Cível 45.403/07, Rel. Des. Celia Meliga Pessoa. Julgado em 09/10/2007. Acórdão Unânime. Marco Aurélio S. Viana também defende a possibilidade de o condômino estacionar mais de um veículo na vaga, e traz um bom argumento: “(...) o

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direito de uso.123 Todavia, o foco agora é a revogação do direito, que é um passo além da

restrição.

Seria possível comparar a privatização das partes comuns edilícias à permissão

prevista no direito administrativo?

A permissão é um ato administrativo unilateral,124 precário e discricionário, gratuito

ou oneroso, por meio do qual a Administração Pública permite que o particular execute um

serviço público – permissão de serviço público – ou então utilize privativamente bens

públicos. Nesta segunda categoria – a permissão de uso125 – a autorização para a utilização do

bem pode ser cancelada a qualquer momento, como inclusive já decidiu o Superior Tribunal

de Justiça,126 salvo se a permissão tiver sido concedida por prazo determinado, hipótese em

que o ato, tido como verdadeira concessão de uso, deve ser precedido de licitação (Lei nº

simples fato de o condômino ser titular de uma vaga não impede que ele guarde mais de um veículo, desde que a área seja compatível (...) Trata-se de um erro de perspectiva: o que deve ser examinado é o espaço destinado a cada condômino. Se o aproveitamento da área por um ou mais veículos não fere idêntico direito dos demais condôminos, a utilização é legal e conforme a índole da propriedade horizontal”. Ob. cit., p. 13. 123 Como exemplifica o seguinte acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro: “APELAÇÃO. Condomínio edilício. Vagas de garagem demarcadas em 2002. Nulidade da assembléia que assim deliberou, por irregularidade na convocação. Outra assembléia, em 2006, manteve a distribuição das vagas, presente e vencido o condômino, não residente, que não fora convocado em 2002. Vício sanado, prevalecem as disposições da lei civil quanto à obrigatoriedade das decisões assembleares tomadas por maioria absoluta, em matéria que não exige unanimidade (CC, art. 1.351, parte final). Recurso a que se nega provimento”. TJERJ. 2ª, Câmara Cível. Apelação Cível 38.365/07, Rel. Des. Jesse Torres. Julgado em 25/07/2007. Acórdão Unânime. 124 não possui, portanto, natureza contratual. 125 Nas palavras de Hely Lopes Meirelles, “permissão de uso é ato negocial unilateral, discricionário e precário através do qual a Administração faculta ao particular a utilização individual de determinado bem público. Como ato negocial, pode ser com ou sem condições, gratuito ou remunerado, por tempo certo ou indeterminado, conforme estabelecido no termo próprio, mas sempre modificável e revogável unilateralmente pela Administração, quando o interesse público o exigir, dados sua natureza precária e o poder discricionário do permitente para consentir e retirar o uso especial do bem público”. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 27. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 493. Maria Sylvia Zanella Di Pietro conceitua o instituto de forma idêntica: “é o ato unilateral e discricionário pelo qual o Poder Público faculta ao particular o uso privativo de bem público, a título precário”. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 14. ed. São Paulo: Atlas, 2002. p. 218. 126 “Processual Civil. Recurso Ordinário em Mandado de Segurança. Ato Administrativo. Permissão de uso de imóvel municipal por particular. Natureza precária e discricionária. Possibilidade de cancelamento. Previsão contratual. Ausência de direito líquido e certo. 1. A autorização de uso de imóvel municipal por particular é ato unilateral da Administração Pública, de natureza discricionária, precária, através do qual esta consente na prática de determinada atividade individual incidente sobre um bem público. Trata-se, portanto, de ato revogável, sumariamente, a qualquer tempo, e sem ônus para o Poder Público. 2. Como a Administração Pública Municipal não mais consente a permanência da impetrante no local, a autorização perdeu sua eficácia. Logo, não há direito líquido e certo a ser tutelado na hipótese dos autos. 3. Comprovação nos autos da existência de previsão contratual no tocante ao cancelamento da permissão debatida. 4. Recurso não provido”. STJ. Rel. José Delgado, RMS 16280/RJ, 1ª T., DJ 19 abr. 2004, p. 154.

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8.666/93), e o particular terá direito a indenização na hipótese de retomada antecipada do

bem.127

Realmente, não é absurdo dizer que as partes comuns equivalem ao bem público entre

os condôminos, até passível de utilização exclusiva por ou alguns deles, mediante expressa

previsão, e que a permissão poderia ser revogada a qualquer tempo.

Com isto queremos dizer que, em tese, o condomínio tem, sim, o direito de pleitear a

recuperação da área cujo uso exclusivo um dia fora outorgado a um ou alguns dos

condôminos. Mas não em qualquer caso. Se o uso exclusivo tiver sido concedido em caráter

perpétuo, e isso constar do título de propriedade, então somente em hipóteses raríssimas –

como o abandono – seria admitida a retomada pelo condomínio.

Há de existir um motivo para a pretensão condominial. O condômino não pode ser

alijado de seu direito simplesmente porque a maioria assim o deseja. Que critério, então, deve

pautar o intérprete, na análise de tais situações?

A nosso sentir, a utilidade é o critério essencial que vai determinar se o direito será ou

não mantido.128 Se, de um lado, é importante perquirir a utilidade que o condomínio pretende

atribuir à parte comum em disputa, da mesma forma, é necessário analisar, em cada caso

concreto, a utilidade da área para o proprietário.

Ora, mas o que se quer dizer com utilidade? Uma parte comum útil, no sentido que

nos confere o dicionário, é aquela que serve para alguma coisa; que pode ter algum uso ou

serventia; que seja, enfim, proveitosa ou vantajosa. No entanto, essa conceituação parece um

tanto vaga e pouca ajuda oferece aos objetivos deste trabalho, que, a essa altura, é de saber em

que casos, na retomada e na manutenção de uma parte comum de uso exclusivo, o

condomínio ou o proprietário estarão agindo com abuso do direito.

127 Vide Maria Sylvia Zanella di Pietro: "No entanto, existem verdadeiras concessões de uso que são disfarçadas sob a denominação de permissão de uso, tendo a natureza contratual; isto ocorre especialmente quando ela é concedida com prazo estabelecido, gerando para o particular direito a indenização em caso de revogação da permissão antes do prazo estabelecido. Neste caso, a permissão de uso está sujeita a licitação." DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Permissão de Serviço Público e Permissão de Uso. Quando cabe a Licitação. In: Temas Polêmicos sobre Licitações e Contratos. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 41. 128 O critério da utilidade, como adiante se verá, também se fundamenta no princípio da função social da propriedade.

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É preciso buscar, no sistema jurídico, o fundamento e os parâmetros objetivos, capazes

de orientar, a priori, a solução de cada caso concreto. Nessa ordem de idéias, a utilidade,

juridicamente considerada, pode ser dividida em duas vertentes: a utilidade patrimonial, e a

outra, vista sob o prisma existencial.

3.1. A utilidade patrimonial

A utilidade patrimonial é dada pela classificação civilista clássica das benfeitorias,

bens acessórios,129 estampada já no Código Civil de 1916, e repetida no artigo 96 do Código

Civil atual:

Art. 96. As benfeitorias podem ser voluptuárias, úteis ou necessárias. § 1o São voluptuárias as de mero deleite ou recreio, que não aumentam o uso habitual do bem, ainda que o tornem mais agradável ou sejam de elevado valor. § 2o São úteis as que aumentam ou facilitam o uso do bem. § 3o São necessárias as que têm por fim conservar o bem ou evitar que se deteriore.

129 Ao lado das benfeitorias, os outros bens acessórios – integrantes do bem principal, e em relação aos quais vigora o princípio da gravitação jurídica – são os frutos, os produtos e as acessões. As pertenças, embora também sejam consideradas acessórias, não integram o bem principal. Os frutos são utilidades que a coisa principal periodicamente produz, cuja percepção não diminui a sua substância. Quanto à natureza, os frutos podem ser naturais, industriais e civis. Naturais são os frutos cuja criação deriva da ação da natureza, como as frutas, as crias e os animais. Frutos industriais são os que decorrem da atividade criadora do homem. Frutos civis são os rendimentos que a coisa periodicamente produza em razão de uma relação jurídica. Quanto ao estado, os frutos - naturais e industriais - podem ser pendentes, percipiendos e percebidos. Frutos pendentes são os que ainda não se apresentam prontos para a percepção; percipiendos são os que já poderiam ter sido colhidos, mas não foram, e percebidos são os que já foram colhidos. Os frutos civis podem, ainda, ser classificados como vencidos e vincendos. Os produtos são utilidades que a coisa produz periodicamente, mas cuja percepção ou extração, ao contrário do que ocorre com os frutos, diminui a sua substância. São exemplos os metais preciosos de uma mina. As acessões são acréscimos realizados a uma coisa já existente, de forma natural (aluvião, avulsão, formação de ilhas e abandono de álveo) ou artificial (construções e plantações), que importam em união física com aumento considerável de volume. Assim, se a estrutura do playground de um edifício é aproveitada para abrir uma garagem, realiza-se uma benfeitoria. Mas se um galpão contíguo é construído numa área vazia para servir de garagem, realiza-se uma acessão artificial, havendo considerável aumento de volume da coisa principal. Finalmente, as pertenças são aquelas que, não constituindo parte integrante do bem, se destinam de modo duradouro ao uso, serviço ou aformoseamento do bem principal. A pertença tem como características: (a) um vínculo intencional - econômico, e não material - estabelecido por quem faz uso da coisa, colocado a serviço da utilidade do principal; (b) um destino duradouro e permanente ligado à coisa principal, e não apenas transitório; (c) uma destinação concreta, ficando a serviço da coisa, ou para seu aformoseamento. As pertenças não se confundem com os imóveis por acessão intelectual, pois enquanto estes se referiam à qualidade imobiliária, as pertenças não são bens móveis, sendo objeto de relações jurídicas próprias. O legislador de 2002 não pretendeu uma mera alteração terminológica, já que inverteu a regra: os bens que antes se tinha por incorporados intelectualmente aos imóveis passam a ter tratamento autônomo.

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A classificação constante da lei civil considera os bens reciprocamente, pesando a

utilidade de um bem em relação ao outro. Como disse Caio Mario, “avalia-se a benfeitoria em

função do acréscimo de utilidade ou de valor que tiver trazido à coisa”.130

Por sua vez, a utilidade do bem acessório (no caso, a benfeitoria) em relação ao bem

principal, será maior ou menor em função da sua destinação. Como bem afirmou Teresa

Negreiros,131 invocando San Tiago Dantas, uma piscina construída em uma casa residencial

pode destinar-se simplesmente ao lazer, e nesse caso a benfeitoria será considerada

voluptuária; ou então a piscina pode se localizar em um hotel, para a utilização dos hóspedes,

e nessa hipótese, a benfeitoria será útil.

O principal objetivo da citada autora em seu livro foi classificar os contratos em

função da utilidade existencial do bem objeto do negócio jurídico. Para isso, Teresa Negreiros

investigou, mediante a análise da classificação dos bens, se e em que medida o bem em

relação ao qual se exerce um direito pode afetar o conteúdo desse direito; em outras palavras,

se e em que medida o regime jurídico se modifica em razão da destinação conferida ao

bem.132

Abra-se aqui um parêntese para sublinhar que, realmente, o Código Civil, em mais de

um momento, demonstra que a destinação do objeto pode determinar a regulação que incidirá

sobre ele. É o caso, por exemplo, dos bens fungíveis e infungíveis.133 O art. 85 estipula serem

fungíveis os bens móveis que podem ser substituídos por outros da mesma espécie, qualidade

e quantidade, e infungíveis aqueles que não podem sê-lo. Entretanto, se uma menina ganhou

uma caneta bic de seu primeiro namorado, ou usa a caneta como amuleto nas suas provas, e

um amigo a pede emprestada, para essa menina a caneta é um bem infungível, por causa do

valor afetivo que a caneta encerra, que a torna destinada a ser conservada enquanto memória

130 Caio Mario, Instituições..., v. I, p. 277. 131 Confira-se: “a construção de uma piscina numa casa particular pode ser destinada a mero deleite, e será voluptuária; ou pode destinar-se a aumentar a utilidade de um hotel, caso clássico em que a mesma melhoria deixa de se considerar voluptuária e passa a ser considerada útil”. Ob. cit., p. 425. 132 Ob. cit., p. 415. 133 A fungibilidade geralmente decorre da natureza do bem, mas também pode vir da vontade das partes ou do seu valor histórico, como é o caso, v.g., de um vaso da dinastia Ming, o qual hoje em dia é infungível enquanto registro histórico, mas na época nada mais era do que um utensílio doméstico perfeitamente substituível. A diferenciação entre bens fungíveis e infungíveis é relevante: (i) para distinguir os contratos de mútuo (art. 586) e de comodato (art. 579); (ii) para o contrato de depósito de bem fungível ser tratado como mútuo (art. 645); (iii) para a compensação das dívidas (art. 369); e (iv) para o cumprimento de testamento, em que se deixe bem fungível (art. 1.915).

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ou como objeto de superstição. Afinal, a classificação do bem não deve ser feita a priori,

devendo considerar a situação jurídica em sua concretude.134

Igual alteração ocorre com os bens consumíveis e inconsumíveis. Enquanto os bens

inconsumíveis são aqueles que suportam uso continuado, sem prejuízo do seu perecimento

progressivo e natural, consumíveis são os bens móveis: (i) cujo uso importa destruição

imediata da própria substância, como ocorre com os alimentos; (ii) que não são destruídos

pelo uso, mas são destinados à alienação: o aparelho celular de uma loja especializada, os

livros de uma livraria; e (iii) os assim determinados pela vontade: garrafa de licor rara apenas

exposta à exposição pública.135 Como se vê, um mesmo bem, a depender das circunstâncias

do tempo e do lugar, e também conforme a destinação que se lhe conferir, assumirá diferentes

roupagens, sujeitando-se a distintas conseqüências jurídicas.136

Fechado o parêntese, retornemos às benfeitorias. De fato, inúmeros são os exemplos

em que a natureza da benfeitoria pode flutuar de voluptuária para útil, e de útil para

necessária, dependendo da destinação que a ela se confira. A troca da cabine do elevador pode

ser necessária, caso a anterior esteja em péssimas condições, e o objetivo da troca seja

viabilizar a continuidade do uso do elevador; pode ser útil, caso a troca, embora não sendo

essencial, vá importar na melhora do seu uso, com botões mais visíveis e sensíveis, portas

com sensor a laser e mais rápidas, e melhor ventilação e iluminação; e, finalmente, a nova

134 Na lição de Pietro Perlingieri: “As mesmas classificações das prestações e dos bens que constituem seu objeto são proponíveis não em abstrato, mas em relação ao contexto normativo da concreta relação; de maneira que fungibilidade ou infungibilidade, genericidade ou especificidade não são qualidades intrínsecas dos bens como tais, estaticamente considerados, mas somente avaliações em relação a uma peculiar ordem de interesses. O mesmo bem pode ser considerado ora fungível ora infungível conforme a obrigação tenha uma ou outra forma”. Perfis... Ob. cit., p. 212. 135 Os termos consumível e inconsumível devem ser entendidos não no sentido físico, e sim no sentido econômico-jurídico. Do ponto de vista físico, não existe nada no mundo que não se altere, não se deteriore, ou não se consuma com o uso. Não se duvida que a utilização mais ou menos prolongada acaba, mais cedo ou mais tarde, por consumir tudo quanto se encontra no planeta. Porém, juridicamente, bem consumível é apenas aquele que se destrói com o primeiro uso. O objetivo do legislador, com essa noção, é garantir que as coisas, mesmo após divididas, possam manter a mesma destinação. Embora às vezes coincidam, não se pode confundir a fungibilidade com a consumibilidade, pois pode haver bem consumível infungível (manuscritos raros colocados à venda), e bem inconsumível fungível (utensílio doméstico, que pode ser substituído por outra da mesma marca, embora sendo inconsumível). Em suma: a fungibilidade indica possibilidade de substituição; enquanto que a consumibilidade traz a idéia de não renovação. 136 Um exemplo da diferença de regulação pode ser encontrado no parágrafo primeiro do art. 1.392 do Código Civil. Após o caput estipular que, salvo disposição em contrário, o usufruto estende-se aos acessórios da coisa e seus acrescidos, o parágrafo primeiro estabelece que, se, entre os acessórios e os acrescidos, houver coisas consumíveis, o usufrutuário, em razão da existência de tais bens, tem o dever de restituir, ao final do usufruto, as que ainda houver e, das outras, o equivalente em gênero, qualidade e quantidade, ou, não sendo possível, o seu valor, estimado ao tempo da restituição.

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cabine pode ser uma benfeitoria voluptuária, se, não trazendo qualquer melhora no

desempenho do elevador, seja apenas mais bonita ou agradável.

Mas não apenas isso. A natureza da benfeitoria edilícia também pode se alterar

dependendo do tempo e do lugar em que o prédio se situa, e também da sua destinação –

residencial ou comercial. Na década de 70, quem duvidaria que a instalação de câmeras na

portaria do edifício e em outras partes comuns seria considerada um luxo tecnológico ou, no

máximo, uma benfeitoria útil?

Hoje em dia, especialmente nos grandes centros urbanos, em que a violência já se

encontra disseminada, e os ataques aos edifícios são freqüentes, esses aparatos são aliados

indispensáveis na busca de mais segurança para os condôminos.

Também não será surpresa se daqui a alguns anos a instalação de máquinas de

elevadores que consumam fontes alternativas de energia, ou de torneiras automáticas, que

sejam mais econômicas – e, portanto, mais ecológicas – deixará de ser apenas uma atitude

politicamente correta e financeiramente aconselhável, para se transformar em uma verdadeira

imposição ambiental, pela escassez de energia elétrica e de água – e como tal venha a ser uma

benfeitoria não apenas útil, mas necessária.

Essa mesma classificação utilizada para as benfeitorias pode ser utilizada para as

partes comuns de uso exclusivo.

Enfim, na ponderação entre os interesses do condomínio e do titular do direito ao uso

exclusivo de determinada parte comum, não se pode dar ao caso a solução por demais

simplista de vincular a revogação do uso exclusivo ao voto da unanimidade dos co-

proprietários. É preciso, no caso concreto, verificar, em primeiro lugar, se essa parte é

necessária, útil ou voluptuária em relação à unidade autônoma; depois, impende saber, da

mesma forma, a essencialidade da destinação que o condomínio pretende atribuir a ela.

Deste parâmetro decorrem várias conseqüências.

Em primeiro lugar, se o local não tiver qualquer utilidade para o condomínio – nem

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sequer voluptuária – não há que se cogitar da devolução pelo condômino dessa área; a não ser,

evidentemente, que ele assim deseje.

O Superior Tribunal de Justiça, no julgamento de um recurso que envolvia a

privatização de um final de corredor, seguiu esse princípio – utilidade para o condômino

versus inutilidade para os demais – e permitiu que o proprietário do apartamento continuasse

a ocupar o espaço reivindicado pelo condomínio. O acórdão também levou em conta a boa-fé

objetiva com que atuava o condômino, que fizera a ocupação – já antiga – pautado em

deliberação – embora com quorum insuficiente – da assembléia geral. Confira-se:

PROCESSUAL. CIVIL. CONDOMÍNIO. ÁREA COMUM. UTILIZAÇÃO EXCLUSIVA. USO PROLONGADO. AUTORIZAÇÃO DA ASSEMBLÉIA CONDOMINIAL. PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA. RAZÃO PONDERÁVEL. INOCORRÊNCIA. - Detenção concedida pelo condomínio para que determinado condômino anexe à respectiva unidade, um fundo de corredor inútil para uso coletivo. Decorrido longo tempo e constatada a boa-fé, o condomínio, sem demonstrar fato novo, não pode retomar a área objeto da permissão.137

Além disso, a retirada do uso exclusivo não pode ser fruto de uma retaliação. O

condômino, por mais anti-social138 que venha a ser considerado, não pode sofrer, como

punição, a perda, por exemplo, do uso exclusivo do terraço.

Entretanto, se a anti-sociabilidade tiver relação direta e imediata com o uso nocivo do

terraço – o proprietário é useiro e vezeiro nas festas de arromba, ou no uso de entorpecentes

no local, ou na falta de manutenção, causando infiltrações nos andares inferiores – pode ser

que a medida se justifique, em casos nos quais nem mesmo uma ação cominatória foi capaz

de resolver definitivamente o problema.

137 REsp 325870/RJ, Rel. Ministro Humberto Gomes De Barros, Terceira Turma, julgado em 14.06.2004, DJ 20.09.2004 p. 280. De fato, a decisão não foi inédita, e apoiou-se em dois outros precedentes daquele Tribunal Superior. O primeiro, no Recurso Especial 214.680, relatado pelo Ministro Ruy Rosado de Aguiar: “Área destinada a corredor, que perdeu sua finalidade com a alteração do projeto e veio a ser ocupada com exclusividade por alguns condôminos, com a concordância dos demais. Consolidada a situação há mais de vinte anos sobre área não indispensável à existência do condomínio, é de ser mantido o statu quo. Aplicação do princípio da boa-fé (suppressio)." E o segundo da relatoria da Ministra Nancy Andrighi, no Recurso Especial 356.821: “Diante das circunstâncias concretas dos autos, nos quais os proprietários de duas unidades condominiais fazem uso exclusivo de área de propriedade comum, que há mais de 30 anos só eram utilizadas pelos moradores das referidas unidades, pois eram os únicos com acesso ao local, e estavam autorizados por Assembléia condominial, tal situação deve ser mantida, por aplicação do princípio da boa-fé objetiva.". 138 Anti-social no sentido do art. 1.337 do Código Civil, conforme tratado no Capítulo 5.

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Em segundo lugar, o condomínio não poderá exigir a retomada da área se a destinação

que se pretende dar a ela for apenas voluptuária. Ainda que a parte comum tenha, para a

unidade, uma utilidade também voluptuária, não haverá razão relevante o suficiente a ensejar

a extinção do direito até então exercido pelo condômino.

Nessa ordem de idéias, mesmo contando com a manifestação de vontade da

unanimidade dos titulares restantes – ou seja, ainda que houvesse quorum suficiente para a

mudança da convenção de condomínio – seria abusiva – e, conseqüentemente, anulável – a

deliberação assemblear que, sem a anuência do condômino detentor do uso exclusivo do

terraço no qual existe uma piscina, determinasse a retomada dessa piscina para o uso comum

do edifício.

Enfim, em se tratando de destinação voluptuária, não há porque prevalecer o interesse

coletivo em detrimento do interesse individual.

Assim, o proprietário que, nessas circunstâncias, resistir à retomada de sua área pelo

condomínio, estará, em princípio, exercendo o seu direito dentro dos limites legais.

Diz-se em princípio porque essa gradação – necessária, útil e voluptuária – comporta,

na riqueza e na variedade das situações reais, uma série de sutilezas: embora duas partes

comuns possam ser úteis, uma delas pode ser utilíssima ou pouco útil, ou mais necessária, ou

mais ou menos voluptuária do que a outra. O mesmo se passa na ponderação entre a utilidade

da parte de uso exclusivo do condomínio e a destinação pretendida pelo condomínio: embora

ambas sejam úteis, por exemplo, a utilidade em relação à unidade imobiliária pode ser

consideravelmente maior do que a melhoria que essa área provocaria no uso das partes

comuns.

Como se vê, dentro de uma mesma categoria é possível admitir diferentes graus de

voluptuariedade. Pode ser que o deleite ou recreio que o condômino tenha com o terraço,

mesmo não ferindo as normas de direito de vizinhança,139 seja a criação de besouros, sem

qualquer finalidade científica; trata-se apenas de um gosto bastante estranho. Nesse caso,

estaremos diante uma destinação voluptuária irrelevante, assim chamemos, e se o condomínio

139 As quais serão objeto do capítulo 5, quando tratarmos do condômino anti-social.

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aprovar junto à Prefeitura a construção de uma piscina que vá servir de lazer a todo o prédio,

não é difícil perceber a enorme diferença entre as duas situações (voluptuária relevante versus

voluptuária irrelevante), que autorizariam, nessa hipótese restrita, e apesar da destinação

voluptuária, a reivindicação do local pelo condomínio.

A nosso sentir, a coisa tornada comum, para justificar a retomada, deve agregar valor

às demais partes comuns não só no sentido de melhorar – consideravelmente, não pode ser

qualquer melhora – o uso delas, como preferencialmente ser essencial para a sua manutenção

ou existência. Com isto queremos dizer que não apenas na destinação voluptuária, mas

também na destinação meramente útil – adjetive-se: pouco útil – não poderá o condomínio ter

de volta a parte cujo uso um dia foi concedido ao condômino em caráter exclusivo, salvo,

como se viu, se o uso atribuído pelo condômino for, além de voluptuário, irrelevante.

A terceira conseqüência da aplicação da classificação das benfeitorias é que se para o

lugar pleiteado pelo condomínio estiver projetado um uso comum de natureza útil – insista-se,

muito útil, e aquela área tem, em relação à unidade imobiliária, uma utilidade voluptuária –

ainda que relevante, a desvinculação será legítima. Se o prédio possuir uma garagem muito

ruim, onde quase todas as vagas necessitam de manobreiro, e alguns apartamentos nem direito

a vaga têm, e se a retomada de uma área no térreo que um determinado condômino utiliza

como local de recreação – uma piscina e uma churrasqueira – mostrar-se como única solução

arquitetônica para resolver o problema do estacionamento, fazendo criar vagas novas e

desbloqueando as já existentes – o que, nesse aspecto, favoreceria inclusive o condômino

prejudicado pela retomada – o condomínio poderá exigir a devolução da área que afinal de

contas lhe pertence, não obstante o prejuízo ao condômino.140 Aqui, a destinação muito útil

prevalece sobre o uso voluptuário do comunheiro, ainda que relevante.

Em quarto lugar, se a parte comum de uso exclusivo for necessária em relação à

unidade autônoma, e o condomínio quiser – ou melhor, precisar – atribuir a esse local uma

destinação igualmente necessária, prevalecerá, diante dessa equivalência, o interesse da

coletividade em detrimento do interesse individual do comunheiro.

140 O direito à indenização será tratado adiante.

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Essa situação ocorre quando, v.g., o apartamento possui a ele vinculado uma área de

serviço, externa ao imóvel, com um tanque e um varal, que os moradores e seus empregados

utilizam para lavar e secar as roupas da família. Porém, essa parte comum, de uso exclusivo e

necessário em relação à unidade autônoma, veio a se tornar essencial para adequar o prédio a

uma norma qualquer imposta pelas autoridades públicas: o Corpo de Bombeiros, por

exemplo. Ora, embora a perda dessa área vá causar inegáveis transtornos ao condômino, não

se poderia, em nome da funcionalidade ideal do apartamento, colocar em risco a segurança da

edificação. Seria, portanto, abusiva a conduta do proprietário que se negasse a devolver o uso

da área à coletividade.

Aliás, o legislador do Código Civil assim entendeu, quando, no artigo 1.285, previu o

direito de passagem forçada em favor do imóvel encravado. Na ponderação entre o direito do

primeiro proprietário de não dar passagem ao vizinho, e a necessidade deste de acessar a via

pública, realiza-se um juízo de utilidade, que faz com que a tutela seja concedida ao

segundo.141

O quadro comparativo entre as diversas situações seria, em medida de aproximação, o

seguinte:

Volup. - Volup. + Útil - Útil + Necessária - Necessária +

Necessária + não não não não não sim

Necessária - não não não não sim sim

Útil + não não não não sim sim

Útil - não não não não sim sim

Voluptuária + não não não sim sim sim

Voluptuária - não sim sim sim sim sim

Utilidade da benfeitoria em

relação à unidade autônoma

Destinação que se quer atribuir à parte comum reivindicada

A retomada pelo condomínio é legítima?

141 Vide o seguinte trecho de Luiz Edson Fachin: “Justifica-se esse direito pela necessidade do possuidor do prédio encravado: com efeito, haverá direito de passagem forçada, segundo o art. 1.285, quando o imóvel não tiver acesso à via pública, nascente ou porto. Não basta a simples comodidade, ou seja, que o acesso seja mais próximo pelo prédio vizinho. Servirá o prédio dominante o prédio que, a juízo de utilidade, mais facilmente a isso se prestar, observadas as condições naturais dos imóveis. O juízo é, pois, de utilidade; não se trata, assim, de apreciação de conforto. Útil, na hipótese, aproxima-se do indispensável, configurando-se como necessário”. Direitos de Vizinhança..., ob. cit., p. 63.

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O quadro acima, se por um lado parece conferir um parâmetro útil para a ponderação

entre as infinitas situações que podem ser encontradas nos edifícios condominiais, não deve

induzir o intérprete à sua aplicação desatenta e acrítica, sem o apego à individualidade dos

condôminos – pessoas humanas – que fazem parte dos casos em análise.142

Isso porque em todos os casos que se acaba de trazer à tona, a perspectiva da utilidade

é meramente patrimonial, pois o enfoque é a reciprocidade entre os bens – a benfeitoria e o

principal; dito de outro modo, a qualificação do bem acessório é feita em relação ao bem

principal. É preciso, agora, analisar a utilidade da parte comum sob outro prisma: o

existencial.

3.2. O critério da utilidade existencial

Já demonstramos no item 1.2 que a linha divisória entre os direitos reais e pessoais é

cada vez mais tênue e menos justificável, e que em razão disso os institutos desses dois

ramos, outrora tão distantes, podem facilmente se emprestar.

Seguindo novamente Teresa Negreiros, a autora, em sua tese de doutoramento,

transformada em livro, invoca o paradigma da essencialidade como ponto de partida para um

novo enfoque da classificação dos bens, com reflexos no direito contratual, buscando

contribuir para que as relações jurídicas privadas se tornem, à luz da ótica civil-constitucional,

mais humanas, equilibradas, e menos centradas na autonomia privada. É imperioso distinguir

os interesses existenciais dos meramente patrimoniais e submeter estes àqueles, de forma a

142 Maria Celina Bodin de Moraes, ao analisar o problema do dano moral, nos confere uma pista de como encarar o problema: “(...) hoje o pensamento dominante (...) pode ser assim resumido, como faz S CAVALIERI: ´ (...) provado que a vítima teve o seu nome aviltado, ou a sua imagem vilipendiada, nada mais ser-lhe-á exigido provar, por isso que o dano moral está in re apsa; decorre inexoravelmente da gravidade do próprio fato ofensivo, de sorte que, provado o fato, provado está o dano moral´. Esta ilação, porém, tem tido como conseqüência lógica (...) o entendimento subjacente de que o dano moral sofrido pela vítima seria idêntico a qualquer evento danoso semelhante sofrido por qualquer vítima, porque a medida, nesse caso, é unicamente, a da sensibilidade do juiz, que bem sabe, por fazer parte do gênero humano, quanto mal lhe causaria um dano daquela mesma natureza. Agindo-se desta forma, porém, ignora-se, em última análise, a individualidade daquela vítima, cujo dano, evidentemente, é diferente do dano sofrido por qualquer outra vítima, por mais que os eventos danosos sejam iguais, porque as condições pessoais de cada vítima diferem e, justamente porque diferem, devem ser levadas em conta. Na primeira perspectiva, seria razoável (porque talvez mais justo) defender a criação de uma tabela, um rol no qual seriam especificadas todas as espécies de danos morais consideradas merecedoras de tutela pelo ordenamento jurídico, ao lado das quantias a serem pagas por cada um deles. Já na segunda perspectiva, ao contrário, será preciso ajustar a indenização em conformidade com a pessoa da vítima, e é este justamente o problema maior da reparação do dano moral na atualidade: quais são os critérios que devem servir a compor a indenização?”. BODIN DE MORAES, Maria Celina. Danos à Pessoa Humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 160-162.

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construir um sistema jurídico que seja voltado para a pessoa e para a satisfação de suas

necessidades básicas.143

Realmente, apesar de ser a destinação do bem definida pelo homem – geralmente, o

proprietário –, a destinação levada em conta pelo Código Civil é a patrimonial; ou seja, a Lei

considera a função que a benfeitoria – ou pertença – desempenha em relação ao bem

principal. A função que os bens desempenham no tocante à pessoa – a destinação existencial

– é considerada apenas indiretamente.144

Um pouco antes, a mesma autora já dissera que o critério da utilidade dos bens,

funcionalizados em decorrência da releitura do Direito Civil sob o prisma constitucional, deve

considerar as necessidades da pessoa, o que transforma a tripartição em bens essenciais, úteis

e supérfluos.145

Pois bem. Se até então a possibilidade de retomada da área de uso exclusiva vinha

sendo analisada, unicamente, através das lentes da utilidade patrimonial, essa relevante idéia

nos leva, a partir de agora, ao segundo critério: o da utilidade existencial. Sim, porque o fato

do condomínio edilício situar-se na seara dos direitos reais, isto, evidentemente, não significa

que as partes comuns e privativas não estejam a serviço da realização existencial da pessoa

humana. Recusar a existência de um critério extrapatrimonial, na hipótese, seria negar a

unidade do sistema.146

Em um sistema unitário, os princípios constitucionais oxigenam todas as áreas, e

iluminam todos os institutos jurídicos, não havendo mais lugar para uma análise estanque, 143 Ob. cit., p. 504. 144 A autora, retornando à análise da piscina, observa: “Neste contexto, voltando ao exemplo da casa, pergunta-se: e uma piscina destinada à prática de exercícios necessários à conservação da saúde de um deficiente físico que habite a casa, como deveria ser classificada? Sob a perspectiva patrimonialista que rege a matéria no Código Civil, ainda assim esta piscina, porque está sendo classificada em relação a outro bem (bens reciprocamente considerados – este é o ponto de vista), parece permanecer enquadrada como voluptuária. Qualifica-se em atenção à função socioeconômica da casa – servir de residência -, desconsiderando-se as condições concretas da pessoa que nela reside”. Ob. cit., p. 426. 145 O texto da autora é o seguinte: “Por outras palavras, a releitura, à luz da Constituição, da dogmática civil, com base na sua funcionalização à promoção dos valores existenciais, leva a que o critério da utilidade dos bens seja também considerado em função dos interesses existenciais, ou seja, levando-se em conta a natureza das necessidades humanas que o bem se destina a satisfazer. Assim é que a lógica que preside à tripartição das benfeitorias deverá, agora em função e na medida das necessidades humanas, resultar na classificação dos bens em essenciais, úteis ou supérfluos”. Ob. cit., p. 50 146 Sobre a concepção de sistema jurídico, v. Claus-Wilhelm Canaris. Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito, trad. A. Menezes Cordeiro, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989, especialmente p. 104 e ss.

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contrapondo-se direito público e direito privado.147 Muito menos razão há, por isso, para tal

embate em se tratando de direitos reais e direitos pessoais.

Na mesma linha segue Heloisa Helena Barboza, ao afirmar que o constituinte de 1988

impregnou de deveres existenciais as relações jurídicas reais, “que de fato contribuem para a

concretização dos direitos da personalidade148 e tutela da dignidade humana”.149

Nesse ponto, cabe fazer uma ressalva sobre o que se afirmou quanto à destinação dos

bens e sua regulação jurídica no Código Civil: nem sempre a destinação existencial é

considerada apenas indiretamente. É o caso do bem de família.

O bem de família chamado voluntário está previsto no Código Civil.150 O artigo 1.711

do Código Civil estipula que os cônjuges, ou a entidade familiar, podem destinar parte de seu

patrimônio para instituir bem de família, desde que não ultrapasse um terço do patrimônio

líquido existente ao tempo da instituição.

147 Segundo Maria Celina Bodin de Moraes, “acolher a construção da unidade (hierarquicamente sistematizada) do ordenamento jurídico significa sustentar que seus princípios superiores, isto é, os valores eleitos pela Constituição, estão presentes em todos os recantos do tecido normativo, resultando inaceitável, por conseqüência, a rígida contraposição direito público-direito privado. Os princípios e valores constitucionais devem se estender a todas as normas do ordenamento, sob pena de se admitir a concepção de um “mondo in frammenti”, logicamente incompatível com a idéia de sistema unitário.” MORAES, Maria Celina Bodin. A caminho de um direito civil constitucional. Revista de Direito Civil, Imobiliário, Agrário e Empresarial. São Paulo, n. 65, jul.-set. 1993, p. ___. Sobre a crise da separação entre direito público e direito privado, v. GIORGIANNI, Michele. O direito privado e as suas atuais fronteiras (1961). Trad. Maria Cristina de Cicco. Revista dos Tribunais, n. 747, 1998, p. 35-55. 148 Quanto aos direitos da personalidade, sobre eles, por tempos, digladiaram as teorias unitária e atomística, ambas apegadas a um viés patrimonialista, tentando encaixar a pessoa na estreita moldura do direito subjetivo, na categoria do “ter”, o que limitava a proteção da personalidade aos seus momentos patológicos, tornando a tutela insuficiente, tipificada e setorial, incapaz de tutelar a pessoa na era de incertezas em que vivemos. A personalidade humana é um valor jurídico insuscetível de tipificação, de modo a se proteger as múltiplas e renovadas situações em que a pessoa venha a se encontrar. A personalidade não é um direito, mas um valor, o valor fundamental do ordenamento. Cabe ao intérprete ler o novelo de direitos dos arts. 11 a 23 do CC/2002 à luz da Constituição. Não há espaço de liberdade privada que não tenha o seu conteúdo redesenhado pelo texto constitucional. Trata-se de uma transformação qualitativa de cada um dos institutos do direito civil, iluminados pelo Texto Maior. A escolha da dignidade da pessoa humana como fundamento da República, associada ao objetivo de erradicação da pobreza e de redução das desigualdades sociais, juntamente com o valioso princípio de não exclusão de quaisquer direitos e garantias, mesmo que não expressos, desde que decorrentes dos princípios adotados pelo texto maior, configuram uma verdadeira cláusula geral de tutela e promoção da pessoa humana, tomada como valor máximo pelo ordenamento. (art. 1o., III + art. 3º., III + art. 5 o., § 2o). A pessoa, à luz do sistema constitucional, requer proteção integrada, que supere a dicotomia direito público e direito privado e atenda à cláusula geral fixada pelo texto maior, de promoção da dignidade humana. 149 BARBOZA, Heloisa Helena. Perspectivas do Direito Civil Brasileiro para o próximo século. In: Revista da Faculdade de Direito, Rio de Janeiro: UERJ, v. 6, p. 27-40, 1998-1999, p. 35. 150 Na verdade, esse instituto já integrava o ordenamento jurídico brasileiro desde o Código Civil de 1916, que posteriormente contou com as regras adicionais trazidas pelo Decreto-lei nº 3.200/41, este último alterado pelas Leis 2.514/55 e 6.742/79.

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O bem de família, para ser considerado como tal, deve consistir, alternativamente: (i)

em prédio residencial urbano ou rural, destinado a domicílio familiar, podendo ser incluídos

os seus acessórios e pertenças; ou (ii) em valores mobiliários, cuja renda será aplicada na

conservação do imóvel e no sustento da família. Uma vez instituído o bem de família, incide a

regra prevista no art. 1.715, que torna esse bem isento de execução por dívidas posteriores à

sua instituição, salvo as que provierem de tributos relativos ao prédio, ou de despesas de

condomínio. Por outro lado, o bem de família somente pode ser alienado após o

consentimento dos interessados e seus representantes legais, e ouvido o Ministério Público,

em procedimento judicial próprio.

Como se vê, a proteção ao bem de família voluntário, segundo a normativa do Código

Civil, depende não apenas da vontade dos cônjuges ou da entidade familiar, mas também de

uma formalidade, consistente na lavratura de um testamento ou de uma escritura pública151 e

seu respectivo registro, conforme prevê o artigo 1.711.

Essa espécie de bem de família, se possuía certa relevância na época em que o projeto

do Código Civil foi concebido, já nasceu, em 2002, de certa forma anacrônica,152 pois a Lei nº

8.009/90, doze anos antes, trouxe para o ordenamento uma segunda espécie de bem de

família, cujas regras básicas são as seguintes: (i) o imóvel residencial próprio do casal, ou da

entidade familiar153 é impenhorável e não responde, salvo em alguns casos arrolados na

própria lei,154 por dívidas civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza,

contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam;

151 Exceção feita, naturalmente, aos imóveis cujo valor não exceda trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País (Código Civil, art. 108). 152 Na feliz expressão de Teresa Negreiros, o bem de família voluntário, com o advento da Lei 8.009/90, tornou-se uma espécie de “fóssil jurídico”. (Ob. cit., p. 433). 153 Independente de manifestação de vontade prévia do casal ou da entidade familiar, ou de qualquer formalidade, como ocorre com o bem de família voluntário. 154 O bem de família pode ser penhorado nos processos movidos: (a) em razão dos créditos de trabalhadores da própria residência e das respectivas contribuições previdenciárias; (b) pelo titular do crédito decorrente do financiamento destinado à construção ou à aquisição do imóvel, no limite dos créditos e acréscimos constituídos em função do respectivo contrato; (c) pelo credor de pensão alimentícia; (d) para cobrança de impostos, predial ou territorial, taxas e contribuições devidas em função do imóvel familiar; (e) para execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade familiar; (f) por ter sido adquirido com produto de crime ou para execução de sentença penal condenatória a ressarcimento, indenização ou perdimento de bens; e (g) por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação. Esta última hipótese, trazida pela Lei 8.245/91 – Lei do Inquilinato – teve a sua constitucionalidade questionada em ações ao redor do país. No Supremo Tribunal Federal, o Ministro Carlos Velloso chegou, em decisão monocrática proferida no Recurso Extraordinário 352.940, a declarar a inconstitucionalidade do art. 3º, VII, da Lei 8.009/90, mas o plenário, no julgamento do Recurso Extraordinário 407.688, em que foi relator o Ministro Cezar Peluso, considerou, por sete votos a três, o referido inciso constitucional, ficando vencidos os Ministros Eros Grau, Carlos Britto e Celso de Mello.

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(ii) a lei considera como residência um único imóvel utilizado pelo casal ou pela entidade

familiar para moradia permanente;155 (iii) quando a residência familiar constitui-se em imóvel

rural, a impenhorabilidade restringe-se à sede de moradia, com os respectivos bens móveis, e,

nos caso da pequena propriedade rural trabalhada pela família, à área limitada como tal; (iv) a

impenhorabilidade, que pode ser alegada em qualquer processo de execução, compreende o

imóvel sobre o qual se assentam a construção, as plantações, as benfeitorias de qualquer

natureza e todos os equipamentos, inclusive os de uso profissional, ou móveis que guarnecem

a casa, desde que quitados, com exceção dos veículos de transporte, obras de arte e adornos

suntuosos, que podem ser penhorados; (v) se o casal, ou a entidade familiar, tiver vários

imóveis utilizados como residência, a impenhorabilidade recairá sobre o de menor valor,

salvo se outro tiver sido eleito como bem de família voluntário; (vi) se o imóvel não for

próprio do casal ou da entidade familiar, e sim alugado,156 a impenhorabilidade aplica-se aos

bens móveis quitados que guarneçam a residência e que sejam de propriedade do locatário; e

(vii) a lei não protege quem, sabendo-se insolvente, adquire de má-fé imóvel mais valioso

para transferir a residência familiar, desfazendo-se ou não da moradia antiga; nessa hipótese,

o juiz pode transferir a impenhorabilidade para a moradia familiar anterior, ou anular a venda,

determinando a penhora do imóvel mais valioso.

O bem de família do Código Civil de 2002, embora tenha começado a vigorar apenas

em 2003, foi concebido ainda na década de 70, época do anteprojeto do atual Código, e

basicamente repetiu o modelo do Código Civil de 1916. Por isso, não é incoerente dizer que o

bem de família da Lei 8.009/90, apesar de estar a mais tempo em vigor, é um modelo mais

recente.

O mais interessante de se notar, na comparação entre os dois tipos, é que o modelo

codicista do bem de família condicionava a proteção da família a uma manifestação de

vontade dos cônjuges ou da entidade familiar157, enquanto a Lei especial claramente

privilegiou os interesses extrapatrimoniais; ela expandiu e flexibilizou o conteúdo do bem de

família, que objetiva proteger não apenas a moradia, mas também a satisfação das

necessidades básicas das pessoas que habitam no imóvel, como se infere de diversos acórdãos

155 Mais à frente, ver-se-á que o Superior Tribunal de Justiça conferiu ao artigo 1º da Lei 8.009/90 uma interpretação no sentido de estender o benefício ao imóvel alugado. 156 Embora a lei refira-se à locação, a proteção, a nosso ver, deve ser estendida a outras hipóteses de ocupação do imóvel, como o comodato. 157 Se bem que no regime de 1916, esta proteção se restringia ainda mais, já que dependia da vontade do “chefe de família” (art. 70).

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do Superior Tribunal de Justiça. Citem-se alguns deles, úteis para os propósitos deste

trabalho.

No primeiro acórdão, o Ministro Humberto Gomes de Barros enfrentou a questão de

saber que bens se incluiriam no conceito de adornos suntuosos, já que tais objetos, por força

do art. 2º da Lei 8.009/09, são penhoráveis. Após afirmar que a lei em questão “foi concebida

para garantir a dignidade e funcionalidade do lar”, e que “não foi propósito do legislador,

permitir que o pródigo e o devedor contumaz se locupletem, tripudiando sobre seus

credores”, decidiu o Ministro, acompanhado de seus pares, que “se a residência é guarnecida

com vários utilitários da mesma espécie, a impenhorabilidade cobre apenas aqueles

necessários ao funcionamento do lar”. Assim, “os que excederem o limite da necessidade

podem ser objeto de constrição”; e que, portanto, “se existem, na residência, vários aparelhos

de televisão, a impenhorabilidade protege apenas um deles”.158

Sublinhe-se que o acórdão exclui da noção de suntuosos os bens que não forem

“necessários ao funcionamento do lar”, ou seja, aqueles que “excederem o limite da

necessidade”. Daqui se extrai que a interpretação conferida à expressão “adorno suntuoso”,

não traz a noção de bem de valor elevado, considerado em si mesmo, mas sim em relação à

sua destinação, à função que ele desempenha no lar e em relação às pessoas que o habitam, e

não em relação a outros bens, como ocorre na classificação das benfeitorias antes analisada.159

158 STJ. Corte Especial. Recurso Especial 102.000-SP. Rel. Min. Humberto Gomes de Barros. Acórdão Unânime. Julgado em 01/06/1997, DJ. 15/12/1997. 159 Mostra disso é o acórdão relatado pelo Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, no qual se apreciou a penhorabilidade de um teclado musical utilizado por uma filha de um executado em detrimento dos interesses creditórios do banco exeqüente. Consta da ementa: “Não obstante noticiem os autos não ser ele utilizado como atividade profissional, mas apenas como instrumento de aprendizagem de uma das filhas do executado, parece-me mais razoável que, em uma sociedade marcadamente violenta como a atual, seja valorizada a conduta dos que se dedicam aos instrumentos musicais, sobretudo quando sem o objetivo do lucro, por tudo que a música representa, notadamente em um lar e na formação dos filhos, a dispensar maiores considerações. Ademais, não seria um mero teclado musical que iria contribuir para o equilíbrio das finanças de um banco.”. STJ. 4ª. Turma. REsp 218882/SP, Rel. Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira. Acórdão unânime. Julgado em 02.09.1999, DJ 25.10.1999. No mesmo sentido: “PROCESSUAL CIVIL - EMBARGOS À EXECUÇÃO - PENHORA - TV - PIANO - BEM DE FAMÍLIA - LEI 8.009/90 - ART. 649, VI, CPC. I - A Lei 8.009/90 fez impenhoráveis, além do imóvel residencial próprio da entidade familiar, os equipamentos e móveis que o guarneçam, excluindo veículos de transporte, objetos de arte e adornos suntuosos. O favor compreende o que usualmente se mantém em uma residência e não apenas o indispensável para fazê-la habitável, devendo, pois, em regra, ser reputado insuscetível de penhora aparelho de televisão. II - In casu, não se verifica exorbitância ou suntuosidade do instrumento musical (piano), sendo indispensável ao estudo e futuro trabalho das filhas da Embargante. III - Recurso conhecido e provido”. (REsp 207.762/SP, Rel. Ministro Waldemar Zveiter, Terceira Turma, julgado em 27.03.2000, DJ 05.06.2000 p. 155)

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Em outro acórdão, também envolvendo uma televisão, o Ministro Garcia Vieira

afirmou ser ela “um bem necessário à vida familiar, não só para o lazer, como também como

informação e instrução”. Nesse mesmo julgamento, o Ministro concluiu que “a máquina de

lavar, o ventilador e o aparelho de ar condicionado são também necessários à vida familiar e

não podem ser considerados como adornos suntuosos”.160

Denota-se, por outro lado, certo maniqueísmo nesses julgados: o que não é necessário,

então deve ser considerado suntuoso. Porém, desde então a jurisprudência do Superior

Tribunal de Justiça veio, aos poucos, polindo a classificação, e o seguinte acórdão relatado

pelo Ministro Luiz Fux sintetiza bem essa evolução, ao decidir que o fato de não ser

indispensável à moradia não faz do aparelho de ar condicionado um bem suntuoso. O acórdão

ficou assim ementado:

PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO FISCAL. BEM DE FAMÍLIA. APARELHO DE AR CONDICIONADO. IMPENHORABILIDADE. LEI N.º 8.009⁄90. 1. É impenhorável o imóvel residencial caracterizado como bem de família, bem como os móveis que guarnecem a casa, nos termos do artigo 1.º, e seu parágrafo único, da Lei n.º 8.009, de 25 de março de 1990. Precedentes: AgRg no AG n.º 822.465⁄RJ, Rel. Min. José Delgado, DJU de 10⁄05⁄2007; REsp n.º 277.976⁄RJ, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, DJU de 08⁄03⁄2005; REsp n.º 691.729⁄SC, Rel. Min. Franciulli Netto, DJU de 25⁄04⁄2005; e REsp n.º 300.411⁄MG, Rel. Min. Eliana Calmon, DJU de 06⁄10⁄2003. 2. O artigo 2.º da mencionada Lei, que dispõe sobre a impenhorabilidade do bem de família, aponta os bens que devem ser excluídos da impenhorabilidade, quais sejam: veículos de transporte, obras de arte e adornos suntuosos. 3. In casu, os bens de propriedade dos recorridos, sob os quais externa o exeqüente a pretensão de fazer recair a penhora (aparelhos de ar condicionado), não se enquadram em nenhuma das hipóteses previstas no referido dispositivo, pelo que não há falar em ofensa ou negativa de vigência a lei federal. 4. Recurso especial a que se nega provimento.161

Em seu voto, o Ministro Luiz Fux destaca serem “impenhoráveis os aparelhos de ar

condicionado que guarnecem a residência dos ora recorridos, uma vez que, apesar de não serem

indispensáveis à moradia, usualmente são mantidos em um lar, não sendo considerados objetos de

luxo ou adornos suntuosos”.

160 STJ. 1ª. Turma. REsp 118205/SP, Rel. Ministro Garcia Vieira. Acórdão Unânime. Julgado em 03.03.1998, DJ 27.04.1998. 161 REsp 836.576/MS, Rel. Ministro Luiz Fux, Primeira Turma, julgado em 20.11.2007, DJ 03.12.2007 p. 271.

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Essa decisão mostra que, para o Superior Tribunal de Justiça, existe uma escala,

correta a nosso ver, dos bens que guarnecem a casa: necessários (ou melhor, essenciais), úteis

e suntuosos (ou supérfluos), os dois primeiros protegidos pela redoma da impenhorabilidade,

e o último não.

Mas não apenas isso. A noção de bem de família, também no que diz respeito ao

imóvel em si considerado, vem se alargando progressivamente, especialmente após o advento

da EC nº 26/2000, que incluiu no rol dos direitos sociais previstos no art. 6º da Constituição

Federal o direito à moradia. A interpretação literal do artigo 1º da Lei 8.009/90 leva a crer que

tão somente o “imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar” é impenhorável.

Contudo, o mesmo STJ, utilizando-se da interpretação teleológica,162 em diversas

oportunidades, já decidiu que merecem igual proteção: (i) o imóvel em que reside uma única

pessoa, independente de seu estado civil – solteira, separada, divorciada ou viúva;163 (ii) o

162 Sobre interpretação teleológica e interpretação axiológica, v. LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 6. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1988, p. 471 e ss; ENGISCH, Karl, Introdução ao Pensamento Jurídico. Trad. J. Baptista Machado. 6. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1988, p. 115 e ss; e PERLINGIERI, Pietro, Perfis... Ob. cit., p. 71 e ss. Quanto a este último autor, cite-se o seguinte trecho, no qual se critica a interpretação literal: “O brocardo in claris non fit interpretatio apoia-se do pressuposto que a norma está isolada empiricamente. Mas ela é sempre fruto da sua colocação no âmbito do sistema. A norma nunca está sozinha, ela existe e exerce a sua função unida ao ordenamento e o seu significado muda com o dinamismo do ordenamento ao qual pertence. O princípio de legalidade não se reduz ao respeito aos princípios fundamentais, implicando, ao revés, a coordenação entre eles e o contextual conhecimento do fato concreto, de maneira a individuar a normativa mais adequada e compatível com os interesses e valores em jogo. Portanto, a interpretação é, por definição, lógico-sistemática e teleológico-axiológica, isto é, destinada à promoção dos novos valores constitucionais. Assim, é preciso banir o ensino do in claris non fit interpretatio, até porque a ocorrência do casus legis será sempre uma hipótese excepcional. (...) Em um ordenamento aberto, os enunciados normativos expressos não são exaustivos em si mesmos; eles devem ser especificados de acordo com o que dispõe a tábua de valores que é a base do ordenamento. A interpretação axiológica representa a superação histórica e cultural da interpretação literal.A legalidade constitucional impõe uma interpretação da norma ordinária à luz dos valores constitucionalmente relevantes, de forma que limitar-se à letra clara ou ao sentido próprio das palavras (se é que isto é possível) ou à intenção do legislador, passado ou presente, significaria colocar-se fora desta legalidade (...) Se toda norma exprime sempre um princípio, este deve ser confrontado com os princípios fundamentais. Não existe uma previsão legislativa para aquele caso específico, e sim para uma série de casos similares ou matérias análogas. Nesse sentido, a interpretação é sempre analógica. É difícil separar as hipóteses previstas na lei daquelas não previstas; estas últimas seriam dedutíveis somente com base em semelhanças relevantes com hipóteses já previstas. Diante da inesgotável verdade dos casos concretos, a norma representa para o intérprete um modelo a ser seguido, não um comando específico para um específico destinatário. A norma não quer um intérprete servil, mero imitador, mas sim um intérprete racional que saiba seguir o modelo e extrair da figura legal um figura análoga para o caso. (...) Uma interpretação por graus (primeiro, a interpretação literal, depois, se não houver clareza, subsidiariamente, a interpretação lógica) mal se adapta a uma concepção de direito na legalidade constitucional”. Ob. cit., pp. 71-76. 163 “CIVIL - IMÓVEL - IMPENHORABILIDADE - A Lei nº 8.009/90, o art. 1º precisa ser interpretada consoante o sentido social do texto. Estabelece limitação à regra draconiana de o patrimônio do devedor responder por suas obrigações patrimoniais. O incentivo à casa própria busca proteger as pessoas, garantido-lhes o lugar para morar. Família, no contexto, significa instituição social de pessoas que se agrupam, normalmente por laços de casamento, união estável, ou descendência. Não se olvidem ainda os ascendentes. Seja o parentesco civil, ou natural. Compreende ainda a família substitutiva. Nessa linha, conservada a

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imóvel que, mesmo não sendo habitado pelo casal ou pela entidade familiar, está alugado para

terceiros, e dele a família retira o aluguel para a sua subsistência;164 e (iii) o imóvel em que

residam os ascendentes ou descendentes do devedor, desde que o imóvel não possua tamanho

suficiente para abrigar toda a família.165

A importância de se invocar, aqui, a questão do bem de família, especialmente aquele

previsto na Lei 8.009/90, é evidenciar o enfoque da destinação existencial, que faz da pessoa,

e não de outro bem, o foco, o eixo, o ponto de referência para a classificação, no caso do

condomínio edilício, das partes comuns de uso exclusivo. E nem poderia ser diferente, eis

que, na atual ordem constitucional, as situações existenciais têm indiscutível primazia sobre

as situações patrimoniais. Dito de outro modo, a propositura do critério da utilidade

existencial, embora não venha expressamente previsto nos esquemas de classificação do

direito civil, não surge do nada; pelo contrário, o próprio sistema mostra que esse parâmetro

não é inédito166; aliás, está ele fundamentado justamente na Constituição Federal, que instituiu

uma cláusula geral de tutela e promoção da pessoa humana e sua dignidade.

teleologia da norma, o solteiro deve receber o mesmo tratamento. Também o celibatário é digno dessa proteção. E mais. Também o viúvo, ainda que seus descendentes hajam constituído outras famílias, e como, normalmente acontece, passam a residir em outras casas. "Data venia", a Lei nº 8.009/90 não está dirigida a número de pessoas. Ao contrário - à pessoa. Solteira, casada, viúva, desquitada, divorciada, pouco importa. O sentido social da norma busca garantir um teto para cada pessoa. Só essa finalidade, "data venia", põe sobre a mesa a exata extensão da lei. Caso contrário, sacrificar-se-á a interpretação teleológica para prevalecer a insuficiente interpretação literal”. (REsp 182223/SP, Rel. Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro, Sexta Turma, julgado em 19.08.1999, DJ 10.05.1999 p. 234, REPDJ 20.09.1999 p. 90) 164 “BEM DE FAMÍLIA. IMÓVEL LOCADO. IRRELEVÂNCIA. ÚNICO BEM DA DEVEDORA. RENDA UTILIZADA PARA A SUBSISTÊNCIA DA FAMÍLIA. INCIDÊNCIA DA LEI 8.009/90. ART. 1º . TELEOLOGIA. CIRCUNSTÂNCIAS DA CAUSA. PRECEDENTE DA TURMA. RECURSO DESACOLHIDO. I - Contendo a Lei n. 8.009/90 comando normativo que restringe princípio geral do direito das obrigações, segundo o qual o patrimônio do devedor responde pelas suas dívidas, sua interpretação deve ser sempre pautada pela finalidade que a norteia, a levar em linha de consideração as circunstâncias concretas de cada caso. II - Dentro de uma interpretação teleológica e valorativa, calcada inclusive na teoria tridimensional do Direito-fato, valor e norma (Miguel Reale), faz jus aos benefícios da Lei 8.009/90 o devedor que, mesmo não residindo no único imóvel que lhe pertence, utiliza o valor obtido com a locação desse bem como complemento da renda familiar, considerando que o objetivo da norma foi observado, a saber, o de garantir a moradia familiar ou a subsistência da família. (REsp 159213/ES, Rel. Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, Quarta Turma, julgado em 20.04.1999, DJ 21.06.1999 p. 162) 165 “CIVIL. BEM DE FAMÍLIA. O prédio habitado pela mãe e pela avó do proprietário, cujas dimensões (48,00 m2) são insuficientes para também abrigar sua pequena família (ele, a mulher e os filhos), que reside em imóvel alugado, é impenhorável nos termos da Lei nº 8.009, de 1990. Recurso especial conhecido e provido. (REsp 186210/PR, Rel. Ministro Ari Pargendler, Terceira Turma, julgado em 20.09.2001, DJ 15.10.2001 p. 259) 166 Outro exemplo de que o ordenamento, em outras situações, leva em conta a essencialidade do bem, para estabelecer o regime jurídico a ser observado, está na Lei nº 9.472/97 (Lei Geral de Telecomunicações). Os serviços de telecomunicação por ela regulados são divididos em dois regimes, público e privado, e no regime público, depreende-se do teor do art. 65, §1º (“Não serão deixadas à exploração apenas em regime privado as modalidades de serviço de interesse coletivo que, sendo essenciais, estejam sujeitas a deveres de universalização”) uma subdivisão, em serviços essenciais e não-essenciais. Essa hierarquização determina que a intervenção do Poder Público será maior conforme a publicidade e a essencialidade dos serviços prestados.

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Esses dois critérios – utilidade patrimonial e utilidade existencial – não são opostos;

muito pelo contrário, a utilidade patrimonial, aferida segundo a classificação dos bens, deve

servir de ponto de partida para a classificação das partes comuns de uso exclusivo disputadas

entre o condomínio e o proprietário.

A constitucionalização do condomínio edilício impõe que esse instituto de direito civil

– assim como o contrato e a propriedade –, e tudo o que a ele disser respeito, seja interpretado

de acordo com os valores vigentes no ordenamento, que colocam a pessoa humana – e suas

situações jurídicas existenciais – em primeiro lugar.

Daí que a classificação das partes comuns segundo apenas o sistema tradicional seria

insuficiente, por não considerar a função que essas partes comuns podem exercer na tutela ou

na promoção da dignidade da pessoa humana, elevada ao vértice do ordenamento jurídico

pela Constituição Federal de 1988. Na atual ordem constitucional, a preferência é da pessoa, e

não do patrimônio considerado em si mesmo.

Da mesma forma que o paradigma da essencialidade de Teresa Negreiros167 propôs

uma diferenciação entre os contratos tendo como base a destinação – existencial – do bem

cuja aquisição ou utilização venha a ser objeto do contrato, pode esse critério, que classifica

os bens em essenciais, úteis e supérfluos, ser utilizado para a classificação das partes comuns

no condomínio edilício, e com isso orientar a identificação das situações em que estará

presente o abuso do direito.

Sob a ótica civil-constitucional, portanto, o titular do uso da parte comum condominial

terá maior ou menor tutela – leia-se, direito de mantê-la ou de reivindicá-la – de acordo com o

grau de utilidade existencial a ela atribuída. O grau de utilidade existencial, a seu turno, será

maior conforme a parte comum seja mais essencial, assim entendida como sendo aquela mais

apta a satisfazer as necessidades existenciais do condômino.

Em se tratando de investigar a ocorrência de abuso do direito no âmbito condominial,

vê-se que é perfeitamente possível a adoção do critério da utilidade existencial, em conjunto

com a utilidade patrimonial. Mas, afinal, que situações concretas permitiriam a aplicação

167 Ob. cit., p. 450.

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desse critério? Sem dúvida, elas são inúmeras, e podem ser basicamente representadas por

dois exemplos.

É perfeitamente lícito ao instituidor de um condomínio de casas, construído sobre um

grande terreno, e que possua largas extensões de partes comuns, vincular, por ocasião da

criação do condomínio, um espaço de mil metros quadrados ao uso exclusivo de uma das

casas, seja para torná-la mais valiosa, e permitir uma venda em melhores condições, seja

porque o incorporador pretende residir no imóvel, e dispor da área da forma que melhor lhe

convenha, respeitada, é claro a convenção.168

Vinte anos se passam, tendo o condômino proprietário da casa – e, por conseguinte,

titular do direito ao uso exclusivo da área em questão – construído no terreno de mil metros

quadrados, com recursos próprios, uma quadra de tênis, e ao lado um campo de futebol,

regularmente utilizados pelo condômino, por seus familiares e amigos. Até que a

administração do condomínio, após contatos com a Prefeitura local, passa a vislumbrar a

utilização do espaço – de propriedade comum – de modo a emprestá-lo ao Município, em

comodato de longo prazo, para que ali se construa uma escola pública. Convocada a

assembléia, todos os condôminos, com exceção apenas do titular do direito ao uso exclusivo

da área em questão, aprovam a nova destinação. Essa deliberação assemblear seria válida?

A resposta tradicional é simples e imediata: em se tratando de alteração de destinação

de partes comuns, a unanimidade é fundamental, e nesse sentido, qualquer dos condôminos

teria o poder de veto.

Há quem se insurja, a priori, contra a unanimidade. Para Pedro Elias Avvad, esse

quorum máximo incentiva os oportunistas e os aproveitadores e vai ao encontro de idéias

como o absolutismo e o totalitarismo que já deviam estar banidas de toda e qualquer

sociedade organizada. Para ele, a exigência da obtenção da unanimidade é um obstáculo à

168 Roger de Carvalho Mange defende ser abusiva a reserva de parte comum pelo instituidor do condomínio, com fundamento nos artigos 3º e 9º, §3º, ambos da Lei 4.591/64: “Era e é muito comum nas incorporações imobiliárias a reserva, pelos incorporadores, do uso exclusivo de certas partes comuns do edifício, como o telhado e as paredes externas para a exploração de anúncios comerciais. Essa praxe abusiva tornou-se, agora, frente ao dispositivo expresso da lei, proibida”. RT 357/60. Entretanto, essa sempre foi a posição minoritária, e com o advento do Código Civil de 2002, ela parece fadada a desaparecer, pois, como já ressaltado, a parte final do artigo 3º da Lei 4.591/64 foi suprimida na atual redação do parágrafo primeiro do artigo 1.331. Ressalte-se ainda que o mesmo autor, em parecer publicado posteriormente (RT 497/42), admitiu a possibilidade da incorporadora reservar determinadas áreas (paredes laterais) e utilizá-las a título de comodato.

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evolução e ao progresso, na medida em que permite que interesses ilegítimos sejam

protegidos pelo ordenamento.169

Em nossa opinião, porém, a unanimidade, especialmente quando expressamente

prevista em lei, deve, em regra, prevalecer. Em outras palavras, é direito do condômino votar

contrariamente à vontade da maioria. Ora, mas se esse direito não existisse, e o ato fosse

ilícito,170 não haveria razão para discuti-lo aqui. O instituto do abuso do direito tem como

vocação maior justamente a sua aplicação naqueles casos em que o direito, embora revestido

de aparente licitude, é exercido, independente da presença de culpa ou dolo, além dos limites

a ele impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo seu fim econômico ou social.

A Constituição Federal, em seu artigo 205, estabelece que a educação é direito de

todos e dever do Estado e da família, devendo ser promovida e incentivada com a colaboração

da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da

cidadania e sua qualificação para o trabalho. Mais à frente, referindo-se à criança e ao

adolescente, o artigo 227 atribui à família, à sociedade e ao Estado o dever de assegurar, com

absoluta prioridade, dentre outros, o direito à educação. Esses dois artigos demonstram o que

ninguém mais duvida: a educação, especialmente a da criança e do adolescente, é um direito

fundamental.

Assim, se a área abrigará uma escola pública, servindo para a promoção de um direito

fundamental, a sua destinação deve ser tida como essencial. E como tal, forçoso será concluir

que a retomada pelo condomínio será legítima, e abusivo o exercício do direito pelo

condômino que votar contra a devolução da área. A solução, por privilegiar interesses

extrapatrimoniais relevantes, é a que melhor se coaduna com os princípios constitucionais.171

169 Eis o que diz o autor: “a exigência de unanimidade ignora o natural anseio do ser humano pelo progresso e pela evolução e, ao contrário disso, dá abrigo aos pusilânimes, agasalha interesses subalternos, propicia meios para proteção de interesses ilegítimos posto que aparentemente tutelados pelo direito. A unanimidade incentiva os oportunistas, os mais frios, os aproveitadores. A idéia de unanimidade lembra subserviência incondicional, a negativa da coexistência dos contrários, o absolutismo e o totalitarismo que deveriam, de há muito, ter sido extirpados das sociedades organizadas”. Ob. cit., p. 177. Como o próprio autor bem lembra, o quorum de 2/3 para a demolição do prédio em ruínas, dispensando a unanimidade, foi trazido pela lei 6.709/79, que alterou o art. 17 da Lei 4.591/64, e o seu projeto foi impulsionado como reação à situação de um proprietário de um prédio em situação calamitosa na Av. Atlântica, em Copacabana, Rio de Janeiro, que sem justo motivo se recusava a consentir com a demolição do edifício. 170 No sentido estrito, tal como empregado pela teoria objetiva do abuso do direito. 171 Note-se que a área destinada à escola não estaria sendo utilizada pelos condôminos, a não ser aqueles cujos filhos nela fossem matriculados. Esse fato, contudo, é irrelevante, pois o que importa é a destinação essencial em prol da pessoa, seja ela condômina ou não.

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Nesse caso específico, por estar em jogo um interesse público – a construção de uma

escola municipal – parece legítima a aplicação, por analogia, dos artigos 1.277 e 1.278 do

Código Civil. O primeiro deles confere ao proprietário ou possuidor o direito de fazer cessar

as interferências prejudiciais advindas do imóvel vizinho. O artigo seguinte, a seu turno,

exclui esse direito “quando as interferências forem justificadas por interesse público, caso em

que o proprietário, ou possuidor, causador delas, pagará ao vizinho indenização cabal”.

Esse mesmo exemplo mostra a insuficiência de se analisar o caso sob a ótica

meramente patrimonialista, abraçada pela classificação codicista dos bens considerados

reciprocamente. Pelo critério da destinação patrimonial, o novo uso da área – escola pública –

seria considerado, no máximo, útil, tendo em vista a sua função em relação às demais partes

comuns do condomínio, e como tal não autorizaria a retomada. Os dois critérios – patrimonial

e existencial – devem, por isso mesmo, andar de mãos juntas.

Outro bom exemplo consiste na área no pavimento térreo de um prédio, onde existe

uma piscina. Dissemos anteriormente que o condomínio, desde que vá atribuir à área

reivindicada uma destinação pelo menos muito útil, pode, de acordo com o critério da

utilidade patrimonial, exigir a retomada. Entretanto, vale a pena resgatar o trecho antes citado

de Teresa Negreiros, quando a autora indaga:

(...) pergunta-se: e uma piscina destinada à prática de exercícios necessários à conservação da saúde de um deficiente físico que habite a casa, como deveria ser classificada? Sob a perspectiva patrimonialista que rege a matéria no Código Civil, ainda assim esta piscina, porque está sendo classificada em relação a outro bem (bens reciprocamente considerados – este é o ponto de vista), parece permanecer enquadrada como voluptuária. Qualifica-se em atenção à função socioeconômica da casa – servir de residência -, desconsiderando-se as condições concretas da pessoa que nela reside.172

De fato, analisada a destinação da piscina sob o prisma existencial – permitir a terapia

de uma pessoa humana portadora de necessidades especiais – a essencialidade daquela área

para o condômino salta aos olhos, o que permite uma solução diversa para o caso: nessas

circunstâncias, o comunheiro que votar contra e resistir à retomada da área que usa com

exclusividade não estará agindo com abuso do direito.

172 Ob. cit., p. 426.

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3.3. A hipótese inversa: privatização da parte comum de uso comum

Em regra, se uma área do condomínio é de uso comum de todos, não há razão para o

condômino exigir o uso exclusivo dela, pois ele já tem direito a utilizá-la, em conjunto com os

demais comunheiros. Seria preciso imaginar uma situação em que a utilização de determinada

área, em razão da sua natureza física, não tem como ser simultaneamente usufruída por todos,

ainda que em momentos diferentes.

Entretanto, como a diversidade da vida vai muito além da imaginação do autor, o

presente trabalho, embora em mínimas linhas, precisa, por rigor metodológico, admitir a

ocorrência desses casos.

Talvez uma dessas situações hipotéticas envolva a vaga de garagem demarcada. Se um

condômino, em razão de qualquer limitação física insuperável – ele precisa, por exemplo, de

um determinado espaço para entrar e sair com a sua cadeira de rodas do veículo –, necessitar

de uma vaga com uma área lateral mínima, e se na garagem somente uma vaga atender a essas

condições, nada mais lógico e razoável do que garantir a esse condômino o direito de utilizar

a referida vaga com exclusividade.

Para a resolução desses casos, apurando-se a ocorrência de abuso do direito por parte

do condômino ou do condomínio, os critérios da utilidade patrimonial e existencial, e seus

respectivos fundamentos, aplicam-se igualmente, e por isso nos reportamos ao que até aqui foi

dito quanto a eles nos itens 3.1 e 3.2.

3.4. Conseqüências na retomada e na concessão do uso exclusivo da parte comum

Vimos que há situações em que o uso exclusivo de determinada parte comum do

condomínio pode ser por este retomada, ou exigida pelo condômino, dependendo das

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circunstâncias do caso concreto, isto é, da destinação dada à área pelo condômino ou pelo

consorte, e daquela que eles pretendam dar a ela.

Mas quais seriam as conseqüências nesses casos? O condômino que perdeu o uso

exclusivo deve arcar com os prejuízos que normalmente esse despojamento acarreta?

Se o uso exclusivo a que o co-proprietário fazia jus era legítimo, e se a perda desse

privilégio implicou na desvalorização da unidade imobiliária, então caberá ao condomínio

indenizar esse prejuízo. O valor de mercado de um imóvel em condomínio leva em conta não

apenas as características particulares do bem – tamanho, localização, acabamentos, idade.

Também são consideradas as partes comuns de uso comum – beleza da fachada, decoração da

portaria, áreas de lazer, e muitas vezes as partes de uso exclusivo dessa unidade. Um

apartamento com direito a duas vagas na garagem vale mais do que um imóvel que só tenha

direito ao uso exclusivo de uma vaga. Então, se o imóvel é despojado de um desses locais de

uso exclusivo, que passa a ser de uso comum, isso geralmente tem um impacto econômico,

fazendo cair o preço do bem. É precisamente essa desvalorização que dever ser objeto de

indenização.

Além disso, o condômino também terá direito a ser indenizado pelas benfeitorias que

realizou na parte comum de uso exclusivo retomada. A solução em cada hipótese deve ser

dada pela natureza da posse exercida pelo condômino, analisada sob o aspecto subjetivo.

Assim, se a posse do condômino for de boa-fé, aplicar-se-á o disposto no art. 1.219 do

Código Civil, cabendo, em primeiro lugar, direito à indenização pelas benfeitorias necessárias

e úteis que realizou no local que usava com exclusividade. Em relação a elas, o condômino

terá ainda direito de retenção, o que significa que o condomínio só adquirirá a posse efetiva da

área depois de pagar o valor correspondente à indenização pelas benfeitorias.

Nos termos dos parágrafos do artigo 97 do Código Civil, benfeitorias necessárias são

aquelas que têm por fim conservar a parte comum, ou evitar que ela se deteriore; são

classificadas como úteis as benfeitorias que aumentam ou facilitam o uso da parte comum; e

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voluptuárias são aquelas de mero deleite ou recreio, que não aumentam o uso habitual do

bem, ainda que o tornem mais agradável ou sejam de elevado valor.173

Em relação às benfeitorias voluptuárias, o condômino possuidor de boa-fé não tem o

direito de ser indenizado, porém, tem o chamado jus tollendi, consubstanciado no direito de

poder levantá-las, se for possível fazê-lo sem detrimento da parte comum, e desde que o

condomínio não queira pagar por essas benfeitorias.

Quando o assunto é a indenização pelas benfeitorias realizadas, é bastante possível,

em tese, que a posse do condômino se inicie de forma legítima – sendo ela, portanto, justa –, e

que ele venha a ser, posteriormente, considerado um possuidor de má-fé. Para isso, basta que

ele tenha feito as obras após a decisão da assembléia geral que deliberou pela retomada

daquela parte comum. Se essa situação se configurar, e o juiz entender que a retomada é

cabível, então esse condômino somente terá direito a ser indenizado pelas benfeitorias

necessárias, e mesmo assim não terá, quanto a elas, direito de retenção.

Para o encerramento do capítulo, resta apenas saber as conseqüências da concessão do

uso privativo de determinada parte comum ao condômino, e sobre isso poucas linhas bastam.

Nessa hipótese, incide o que estatui o artigo 1.340 do Código Civil: as despesas relativas a

partes comuns de uso exclusivo de um condômino, ou de alguns deles, incumbem a quem

delas se serve.

Com isso, caberá ao condômino não apenas zelar pela conservação específica dessa

área, como também arcar com as despesas que forem diretamente provenientes dela. Se a

privatização dessa área, e a sua adequação ao uso específico do condomínio, importou na

realização de alguma obra, o condômino interessado deve arcar sozinho com ela.

173 Como já visto no item 3.1, a classificação das benfeitorias pode variar conforme o tempo, o lugar e a destinação.

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CAPÍTULO 4: VAGAS DE GARAGEM

A vaga de garagem, ou área de estacionamento, é uma fonte permanente de conflitos

entre os condôminos, e um campo fértil para a ocorrência do abuso do direito. O presente

trabalho, neste ponto, procurará mostrar que a função social da propriedade condominial e o

exercício abusivo do direito são ligados entre si pelo princípio constitucional da isonomia,

previsto no art. 3º, I, da Constituição Federal. Em outras palavras, o uso, a fruição e a

disposição das vagas de garagem, para serem exercidos de acordo com a sua função social,

isto é, sem abuso, devem observar, em cada caso, a isonomia entre os condôminos.

Antes, porém, de se adentrar na análise propriamente dita das situações abusivas que a

envolvem, é necessário discorrer brevemente sobre as diversas naturezas jurídicas que a vaga

de garagem pode assumir no condomínio edilício, e também sobre o tratamento que o

legislador deu à possibilidade de venda e locação.

4.1. As diferentes naturezas jurídicas

A vaga de garagem pode assumir, dependendo do condomínio onde ela for criada,

distintas naturezas jurídicas, que implicam regras específicas quanto à sua propriedade, e

quanto ao uso, fruição e venda.

Já vimos anteriormente que no condomínio edilício, existem partes comuns (cuja

propriedade pertence a todos os condôminos) e partes privativas (pertencentes apenas a um

condômino). As partes comuns, embora pertencentes a todos, podem ser de uso comum ou de

apenas um ou de alguns condôminos, e nesse caso será tida como parte comum de uso

exclusivo. As partes privativas, também designadas por partes de propriedade exclusiva,

necessariamente possuem uma fração ideal, e se subdividem em partes autônomas – quando

possuem matrícula registral individual, sendo chamadas de unidades autônomas, ou unidades

imobiliárias – e partes acessórias, quando, apesar de possuírem fração ideal, estarão sempre

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ligadas a uma unidade autônoma, sujeitando-se aos mesmos ônus reais a que essa unidade se

sujeitar, em decorrência do princípio da gravitação. São exemplos de partes privativas:

apartamento, sala, loja, vaga de garagem, terraço.

Ressalte-se que um terraço pode possuir qualquer uma dessas classificações,

dependendo: (i) se ele possui fração ideal e matrícula individual, caso em que será uma

unidade autônoma; (ii) se, não possuindo matrícula própria, mas tão-somente fração ideal,

será uma parte de propriedade exclusiva acessória; (iii) se não possuir fração ideal, mas só

puder ser utilizado por um ou por alguns condôminos, será classificado como parte comum –

ou de propriedade comum – de uso exclusivo; (iv) finalmente, se o seu uso for

indiscriminado, então será tido como parte comum de uso comum.

O mesmo ocorre com as vagas de garagem, que podem figurar em quatro categorias, a

saber:

a) parte comum de uso comum

Nesse caso, embora exista uma garagem no prédio, não há qualquer menção ao

número de vagas a que cada unidade tem direito, nem na convenção, nem na certidão do

registro de imóveis. Desta forma, se são doze vagas e doze apartamentos, cada condômino

terá direito a estacionar um veículo, mas não porque tem direito de uso exclusivo de uma

parte comum, e sim porque todos os condôminos têm a faculdade de usar igualmente as partes

comuns do edifício.

Por outro lado, se no condomínio houver vinte apartamentos e somente dez locais de

estacionamento, as vagas serão distribuídas, a cada dia, por ordem de chegada na garagem. É

vivamente aconselhável que os condôminos se reúnam para, em assembléia, estabelecerem

um rodízio, de forma a reduzir as possibilidades de conflito.

b) parte comum de uso exclusivo

Essa categoria se faz presente quando, em se tratando de estacionamento, um ou

alguns condôminos têm mais direitos do que os demais, ou quando, mesmo com direitos

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idênticos, há uma repartição dessa área comum.

No exemplo antes relatado (um prédio com vinte apartamentos e dez vagas de

garagem), apenas dez condôminos poderiam estacionar os seus veículos, ou, até mesmo, seria

possível que o ato constitutivo previsse que cinco condôminos teriam direito, cada um, a duas

vagas na garagem, enquanto os dez proprietários restantes não teriam direito ao

parqueamento. Ou ainda, em um edifício com vinte apartamentos e trinta vagas, alguns

condôminos teriam direito a duas ou três vagas, e outros condôminos poderiam estacionar

apenas um veículo.

Mesmo nos casos em que o número de vagas for igual ao número de apartamentos –

ou número múltiplo –, e cada condômino puder guardar a mesma quantidade de carros, a vaga

será considerada como sendo parte comum de uso exclusivo se as vagas forem demarcadas.

Quase sempre esse tipo de privilégio vem acompanhado da expressão “direito a uma

vaga na garagem”, escrita desta forma ou com redação semelhante, ou ainda com diverso

número de vagas. Essa menção ao direito exclusivo pode constar tanto da matrícula do

imóvel, no registro de imóveis - figura abaixo -, quanto da convenção de condomínio, ou até

mesmo de uma ata assemblear.

Quando existem as chamadas “vagas presas”, isto é, aquelas que necessitam de

manobrista, as incorporadoras, com o objetivo de prevenir ações judiciais com causa de pedir

na omissão do dever de informar, geralmente fazem constar essa restrição do próprio

memorial de incorporação, que por sua vez carreia para a matrícula o gravame:

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Outra questão digna de nota: nem sempre essa menção ao direito à vaga significa que

o condômino tem o uso exclusivo dessa parte comum. Existem edifícios em que todos os

apartamentos têm esse “direito ao uso de uma vaga” em suas matrículas, porém, o prédio não

comporta tantos automóveis quantos são os apartamentos. Nesse caso, se todos têm o uso

exclusivo, isso significa, na verdade, que a vaga é parte comum de uso comum, prevalecendo,

quanto a ela, o que foi anteriormente dito no item “a”.

c) parte privativa acessória à unidade

Sempre que a vaga possuir uma fração ideal, mas fizer parte da matrícula de uma

unidade imobiliária, estando a ela vinculada, será considerada como sendo uma parte

exclusiva acessória, como demonstra o exemplo abaixo, em que a matrícula refere-se ao

apartamento – e sua respectiva fração de 0,08164, e a vaga de garagem, também parte

exclusiva, porém acessória, que possui uma fração ideal de 0,001216:

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d) parte privativa principal

A vaga de garagem, como parte privativa principal, é uma verdadeira unidade

autônoma, possuindo matrícula registral própria, e não estando vinculada a nenhuma outra

unidade imobiliária. Isso pode ocorrer em prédios residenciais ou comerciais, e

obrigatoriamente ocorre em edifícios-garagem.

Nesses casos, a vaga de garagem tem o tratamento de um imóvel considerado em si

mesmo, e não como parte acessória. Tanto que, por exemplo, instituído um usufruto sobre o

apartamento, esse direito real não se estende à vaga, se não houver previsão específica.174

Nesse sentido, não pode a assembléia, em hipótese alguma, retirar esse direito do

condômino, pois isso equivaleria a uma expropriação. O seguinte acórdão do Superior

Tribunal de Justiça exemplifica bem o que dizemos:

174 Assim decidiu o Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Recurso Especial 39.676/SP, em que foi relator o Ministro Claudio Santos – 3ª. Turma, julgado em 28.11.1994: “Civil. Vaga em garagem de edifício. Usufruto instituído sobre a Unidade residencial. Extensão. Quando a vaga de garagem for atribuída fração ideal de terreno, considerar-se-á unidade autônoma não vinculada a unidade Habitacional, não havendo como se falar em extensão do usufruto Instituído sobre o apartamento, eis que inexiste relação de acessoriedade entre as unidades. Necessário se faz disposição Expressa do nú-proprietário e inscrição do usufruto sobre a vaga. Recurso conhecido e provido”. Eis um trecho do voto: “Na hipótese em apreço, verifico que à vaga foi atribuída fração ideal do terreno, consoante se observa de documento acostado às fls. 21/22, escritura de venda e compra de box de garagem, descrito como ‘uma unidade autônoma designada como box de garagem número doze (12), localizado no subsolo do edifício (...), contendo a área de 35,0555m² e a fração ideal de (...) 0,710366% no terreno e coisas comuns do condomínio’. Outrossim, a aquisição da aludida vaga de garagem foi objeto de matrícula própria realizada no 14º Cartório de Registro de Imóveis da Capital do Estado de São Paulo, conforme atesta o doc. de fls. 23. Destarte, não há dúvida que a vaga de garagem disputada pelos litigantes não se vincula à unidade habitacional sobre a qual foi instituído o usufruto, não se constituindo, portanto, como acessória do apartamento”.

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CIVIL E PROCESSUAL. (...). DECISÃO ASSEMBLEAR DE CONDOMÍNIO QUE DELIBERA, PELOS VOTOS PRESENTES, EXTINGUIR OITO VAGAS DE GARAGEM DE PROPRIEDADE DO BANCO CONDÔMINO. MATRÍCULAS PRÓPRIAS. IMPOSSIBILIDADE. ANULAÇÃO DA ASSEMBLÉIA. EFEITOS. RETORNO AO STATUS QUO ANTE. (...) II. É vedado à assembléia de condomínio extinguir vagas de garagem que dispõem de matrícula própria e pertencem a um dos condôminos, ausente à reunião, sob alegação de que a quantidade total não é comportada no espaço físico disponível. III. Anulada a assembléia no que tange à extinção das vagas, compete o restabelecimento da situação anterior por inteiro. IV. Recurso especial conhecido em parte e provido.175

4.2. Alienação e aluguel

O legislador condominial sempre foi bastante comedido no tratamento da vaga de

garagem.

Os parágrafos do artigo 2º da Lei nº 4.591/64, incluídos pela Lei nº 4.864/65, e

parcialmente em vigor,176 limitam-se a estatuir que: (i) que o direito à guarda de veículos deve

ser tratado como objeto de propriedade exclusiva, admitidas restrições no memorial de

175 REsp 400767/SP, Rel. Ministro Aldir Passarinho Junior, Quarta Turma, julgado em 24.04.2007, DJ 28.05.2007 p. 343. O Ministro Relator, adotando os fundamentos da sentença de primeiro grau, ressaltou que “a decisão da assembléia realizada em 17.05.86, atingiu e feriu direito de propriedade da autora ao alijá-la da posse dos boxes de garagens com a numeração superior a 60 inclusive. Sem o consentimento expresso de todos os prejudicados não era possível a decisão, ainda que tomada pela unanimidade dos presentes à assembléia. Nenhum dispositivo da convenção permitia a deliberação que implicasse na supressão do direito de propriedade. É curial. A conclusão, portanto, é que sem o consentimento expresso de cada condômino prejudicado, demonstra-se nula e sem efeito, a deliberação que alija o proprietário da posse sobre a unidade condominial” 176 Desde que o atual Código Civil entrou em vigor, surgiu uma controvérsia que consiste em saber se os artigos 1º a 27 da Lei 4.591/64, que regulam o condomínio edilício, teriam sido revogados pelos artigos 1.331 a 1.358 da Lei 10.406/02. A Lei de Introdução ao Código Civil (Decreto-lei 4.657/42), em seu art. 2º, §1º, estipula que a nova lei revoga a anterior “quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior”. Como o Código aprovado silenciou a respeito, a discussão girou em torno da regulação integral (ou ausência dela) em se tratando de condomínio edilício. Pedro Elias Avvad defende a ocorrência da revogação tácita, “porquanto o Código Civil passou a regular inteiramente a matéria, pouco importando a existência de omissões no que tange a determinadas situações específicas”. Ob. cit., p. 31. Entretanto, não foi exatamente isso que se passou. O fato de a lei nova dedicar um capítulo “inteiro” a regular a mesma matéria de que trata a lei anterior, não significa que o assunto foi regulado por inteiro. A comparação entre uma lei e outra deve se dar artigo por artigo, parágrafo por parágrafo. O “regular inteiramente” não admite lacunas, nem regulação parcial, embora ampla. Mais do que isso: na interpretação do Decreto-lei 4.657/42, o termo “lei” não pode ser entendido no sentido apenas genérico; deve se considerar cada um dos seus artigos de forma individual. Embora isso não tenha impacto relevante no desenvolvimento ou conclusão deste trabalho, a presente dissertação, para fugir a contradições, parte dessa premissa, qual seja, a de que alguns dos artigos 1º a 27 permanecem em vigor, no todo ou parcialmente.

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incorporação, na convenção e nas atas de assembléia;177 (ii) que o direito à vaga pode ser

alienado a outro condômino, mas não a pessoas estranhas ao condomínio;178 (iii) nos

edifícios-garagem as vagas devem, obrigatoriamente, possuir fração ideal.179

O atual Código Civil, por sua vez, dispõe ser permitido ao condômino “alienar parte

acessória de sua unidade imobiliária a outro condômino, só podendo fazê-lo a terceiro se

essa faculdade constar do ato constitutivo do condomínio, e se a ela não se opuser a

respectiva assembléia geral” (art. 1339, parágrafo segundo), e que, na hipótese de resolver o

condômino alugar uma vaga, “preferir-se-á, em condições iguais, qualquer dos condôminos a

estranhos, e, entre todos, os possuidores” (art. 1.338).

A análise desses dispositivos demonstra que: (i) se a vaga de garagem for uma parte

comum de uso comum, o condômino não pode aliená-la (vender, doar, permutar) ou alugá-la

de forma alguma; (ii) se, por outro lado, a vaga for uma parte privativa principal, ou seja, uma

unidade autônoma propriamente dita, então a alienação e a locação são livres. O tratamento é

o mesmo dado ao apartamento ou a uma loja, por exemplo. Esses são dois extremos: no

primeiro, tudo é proibido, e no segundo, o direito de propriedade é amplo, observados, é claro,

os limites externos e internos a esse direito real.

Se a vaga de garagem for uma parte comum de uso exclusivo, ou então for uma parte

privativa acessória (lembre-se, com fração ideal, mas sem matrícula própria), o condômino

pode aliená-la ou alugá-la, mas de forma restrita. Nesses casos, o condômino poderá transferi-

la180 a outro condômino, mas só poderá fazê-lo a terceiro se essa faculdade constar do ato que

instituiu o condomínio ou da convenção de condomínio, e se a ela não se opuser a assembléia

geral, quando instada a se manifestar a respeito.

177 Art. 2º. (...) § 1º O direito à guarda de veículos nas garagens ou locais a isso destinados nas edificações ou conjuntos de edificações será tratado como objeto de propriedade exclusiva, com ressalva das restrições que ao mesmo sejam impostas por instrumentos contratuais adequados, e será vinculada à unidade habitacional a que corresponder, no caso de não lhe ser atribuída fração ideal específica de terreno. 178 Art. 2º (...). § 2º O direito de que trata o § 1º deste artigo poderá ser transferido a outro condômino, independentemente da alienação da unidade a que corresponder, vedada sua transferência a pessoas estranhas ao condomínio. 179 Art. 2º (...). § 3º Nos edifícios-garagem, às vagas serão atribuídas frações ideais de terreno específicas. 180 Leia-se: ceder os direitos sobre ela, a título oneroso ou gratuito, na hipótese de ser a vaga uma parte comum de uso exclusivo, ou vender, se ela possuir fração ideal.

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Quanto ao aluguel, a lei instituiu um direito de preferência seqüencial. Quando a vaga

for alugada, têm preferência, em primeiro lugar, os condôminos residentes; logo em seguida,

vêm as pessoas que, embora não sendo proprietárias, residem no prédio; em terceiro lugar

estão os condôminos não residentes.181 Se nenhuma dessas pessoas quiser exercer o seu

direito de preferência, somente nessa hipótese é que a locação pode ser feita a pessoa estranha

ao condomínio. Insista-se: isso apenas nos casos em que a vaga possuir a natureza de parte

privativa acessória, ou parte comum de uso exclusivo.

Finalmente, muito embora o Código Civil tenha permitido a locação ao estranho,

desde que observado o direito de preferência de que antes se falou, o Conselho da Justiça

Federal, na Primeira Jornada de Direito Civil, realizado em setembro de 2002, aprovou, em

análise do art. 1.338, o Enunciado 91, segundo o qual “a convenção de condomínio ou a

assembléia geral podem vedar a locação de área de garagem ou abrigo para veículos a

estranhos ao condomínio”. E de fato, a tendência é que esse entendimento prevaleça na

jurisprudência, como dá conta o seguinte acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de

Janeiro:

CONDOMÍNIO DE EDIFÍCIOS. DIREITO DE PROPRIEDADE. VAGA NA GARAGEM. LOCAÇÃO A NÃO MORADORES. VEDAÇÃO CONSTANTE DO REGULAMENTO INTERNO DO CONDOMÍNIO. POSSIBILIDADE. Versa a controvérsia sobre o direito do autor de alugar uma vaga de garagem no Condomínio-réu de sua propriedade à pessoa não moradora no prédio. O direito de propriedade assegura que o seu titular disponha da coisa livremente, fruindo-a a seu bel-prazer ou alienando quando lhe aprouver, no entanto, sofre restrições advindas do interesse coletivo. No caso, o Regulamento Interno do Condomínio veda a proibida de sua locação ou cessão, ainda que a título gratuito a pessoas não moradoras no Edifício. O Código Civil, no artigo 1338, não derrogou as convenções condominiais, nem os regulamentos internos das edificações, apenas, estabeleceu o direito de preferência em favor dos condôminos, em caso de locação de vaga de garagem. Sentença que julga improcedente o pedido, que se mantém. Recurso desprovido.182

181 O legislador, aparentemente, fez apenas a distinção entre condôminos e possuidores, mas geralmente o proprietário também reside no imóvel, o que o torna, além de condômino, possuidor. Não se nega aqui que a posse, em algumas situações, especialmente de cunho existencial, possa inclusive prevalecer sobre a propriedade, em decorrência de sua relevante função social. Porém, se o condômino for também o possuidor, não há nada que justifique a priorização de que tem apenas a posse sobre quem, além da posse, tem também a propriedade. 182 TJRJ. 2ª. Câmara Cível. Apelação Cível 2007.001.00796. Rel. Des. Elisabete Filizzola. Julgado em 13/06/2007. Acórdão Unânime.

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Feitas estas considerações, passa-se a analisar o abuso do direito em relação às vagas

de garagem.

5.3. Situações abusivas

Como se viu, os locais para estacionamento, dentro do condomínio edilício, podem

assumir diversas formas jurídicas, desde uma verdadeira unidade autônoma, em que a vaga é

tratada com um verdadeiro imóvel considerado em si mesmo, até o ponto em que é tida como

uma parte comum de uso comum, de uso indiscriminado de quaisquer dos condôminos.

Há muito se encontra ultrapassada a concepção liberal oitocentista da propriedade

como direito intocável; vivemos numa época em que o formalismo estrutural dos institutos

jurídicos está dando passagem à sua funcionalização. Isto já foi visto no capítulo 1, e não será

aqui repetido; basta dizer que, mesmo em se tratando de uma unidade autônoma, o direito do

condômino pode, indubitavelmente, sofrer restrições.

Carlos Maximiliano, discorrendo sobre as restrições às quais os condôminos se

sujeitam, afirmou que todos os condôminos têm direitos iguais, mas sofrem as seguintes

limitações: “a) cada um deve respeitar a destinação do conjunto; b) o direito dos outros não

pode ser entravado pelo uso que do seu próprio faça algum dos co-participantes do sistema;

c) não se sacrificam à utilidade de um só os interesses coletivos da comunidade.”183

Caio Mario, a seu turno, leciona que as restrições impostas aos co-proprietários se

justificam em prol da harmonia da coletividade, da coisa comum e do comportamento

respeitoso dos interesses alheios.184

183 MAXIMILIANO, Carlos. Condomínio. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1956, p. ___. O autor prossegue afirmando que “o dono do apartamento, ou andar, frui as prerrogativas e está sujeito aos deveres de um proprietário de imóvel qualquer; porém, as restrições conseqüentes da vizinhança avultam no caso em apreço, porque os diferentes domínios particulares se justapõem, tanto no sentido horizontal como no vertical de modo tão estreito que os direitos se interpenetram e, no tocante às partes essenciais, se fundem.”. Ob. cit., p. __. 184 PEREIRA, Caio Mario da Silva. Condomínio e incorporações, 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. __. Confira-se: “o fato de coexistirem unidos a propriedade exclusiva e o condomínio, não sugere a abolição, senão o esforço, das imposições, das limitações, das restrições que, em benefício da harmonia do grupo, em benefício da coisa comum e em benefício do comportamento respeitoso dos interesses alheios, se estatuem.”

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Para João Batista Lopes, o equilíbrio da coletividade é igualmente relevante, e as

restrições de uso e obrigações perante a comunidade a que pertença o proprietário são

necessárias para se tornar possível o exercício dos direitos dos demais condôminos. Em sua

visão, não haveria propriamente restrições de uso, e sim uma regulamentação do exercício do

uso da propriedade, um direito de natureza complexa.185

Wilson Batalha, por sua vez, mostra que o condomínio é uma relação de igualdades

que se limitam reciprocamente, sendo perfeitamente possível a coexistência de direitos iguais

sobre a mesma coisa. A restrição sofrida por cada comunheiro não faz desaparecer o conceito

de propriedade, sendo certo que o domínio pode se comprimir ou se limitar sem, no entanto,

desaparecer.186

Todavia, quanto mais privativa e autônoma for a coisa, menor poderá ser a restrição.

Por outro lado, mesmo que a vaga seja uma parte comum de uso comum, a restrição não há de

ser absoluta: não se perca de vista que, em sendo comum, a vaga é também do condômino.

Esse escalonamento, válido não apenas para as vagas de garagem, mas para todos os demais

bens condominiais, pode ser – e efetivamente é – relevante para se identificar os limites

possíveis dos gravames impostos à co-propriedade; dito de outro modo, para se verificar até

onde vai o direito, e onde, mesmo nos limites do direito, começa o abuso.

Nesse ponto, torna-se necessário investigar até onde vai a autonomia privada no

universo condominial, e quais são os critérios de legitimidade das obrigações, restrições e

direitos criados no bojo dessa coletividade.187

185 LOPES, João Batista. Ob. cit., p. ___: “o proprietário de um apartamento é titular de um direito de natureza complexa, por isso que exerce seu direito de co-proprietário sobre as partes comuns e seu domínio sobre as partes exclusivas, sujeito a restrições de uso e obrigações perante a comunidade a que pertence. Tais restrições e obrigações se impõem para tornar possível o exercício do direito pelos demais condôminos, assegurando-se perfeito equilíbrio na vida condominial. Em verdade, não há propriamente restrições ao direito de propriedade – o titular continua a exercer os poderes inerentes a esse complexo jurídico, mas, uma regulamentação do exercício do uso da propriedade”. 186 Vejam-se as palavras do autor: “o condomínio é, na frase expressiva de Sciarloja, uma relação de igualdades que se limitam reciprocamente, uma relação de equilíbrio, que torna possível a coexistência de direitos iguais sobre a mesma coisa na medida em que o exigem as mesmas faculdades atribuídas aos demais. E Oliveiro Bosisio adverte que ‘o direito de propriedade não se divide nem por quotas ideais nem por quotas reais e que, quando se fala em quotas no condomínio, se faz referência à proporção segundo a qual os direitos dos condôminos reciprocamente se limitam’. (...) A compressão do direito de cada condômino, em virtude dos direitos dos demais condôminos, não faz desaparecer o conceito de propriedade. A elasticidade do domínio permite que este se comprima e se limite, sem desaparecer”. BATALHA. Wilson de Souza Campos. Loteamentos e condomínios: sistema jurídico da propriedade fracionada. São Paulo: Max Limonard, 1953, p. 22. 187 Como afirma Marco Aurelio S. Viana, comentando o revogado parágrafo primeiro do artigo 2º da Lei de Condomínios e Incorporações, “em verdade o §1º do art. 2º da Lei n. 4.591/64 admite que o direito de guarda

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Se o direito à guarda do automóvel não for privilégio exclusivo de nenhum deles, e se

não houver vagas suficientes para todos os veículos, nos parece evidente, como já ressaltado,

a necessidade de se estabelecer um rodízio entre os condôminos. Todavia, a autonomia da

assembléia geral na escolha do critério para esse revezamento não é ilimitada.

O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro julgou um litígio no qual o condômino atacava

não apenas o rodízio implementado pelo condomínio, mas também a preferência concedida

aos condôminos residentes, em detrimento dos não-residentes. A decisão foi no sentido de

privilegiar a autonomia privada dos comunheiros, e o disposto na Convenção:

Ação ordinária. Condomínio. Vagas de garagem de uso comum. Propriedade das vagas não titulada por qualquer dos condôminos. Uso disciplinado pela Convenção que as reserva aos condôminos-residentes que comprovem a propriedade dos respectivos veículos, submetendo-as, ademais, a rodízio semestral, por sorteio. Autores-proprietários com moradia no exterior. Sentença de improcedência. As disposições condominiais, que representam a vontade majoritária dos co-proprietários não se revestem, no particular, de qualquer ilegalidade, nem cerceiam o direito de propriedade dos autores que, embora virtualmente se estenda à fração ideal do espaço destinado às vagas de garagem, não lhes confere o uso incondicionado das mesmas, comum a todos os demais proprietários. O critério de residência no prédio é razoável e o rodízio, a seu turno, atende à proporcionalidade que deve orientá-lo. Recurso não provido.188

O acórdão, corretamente, explicitou que a razoabilidade do critério de residência, e a

proporcionalidade do rodízio, foram aspectos relevantes para o julgamento da causa em favor

do condomínio. Em outras palavras, a autonomia privada, embora exista, deve ser exercida

dentro de certos limites.

O limite dessa autonomia privada, que a funcionaliza, é o princípio da dignidade da

pessoa humana, através dos seus quatro substratos, que são também princípios: liberdade,

igualdade, integridade psicofísica e solidariedade. As cláusulas da convenção e as decisões da

assembléia geral, no tocante à regulamentação das vagas de garagem,189 não podem

sofra restrições impostas por instrumentos contratuais adequados. Assim, em princípio, a comunidade dos comunheiros está legitimada a deliberar sobre a utilização da garagem. O que se precisa saber é o limite dessa atuação”. Vagas de garagem na propriedade horizontal. Rio de Janeiro: Saraiva, 1981. 188 TJRJ. 2ª. Câmara Cível. Apelação Cível 2006.001.56069. Rel. Des. Mauricio Caldas Lopes. Julgado em 08/11/2006. Acórdão Unânime. 189 E também em relação às demais matérias condominiais.

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representar uma discriminação de um ou de alguns condôminos, em benefícios de outros.

Todos devem ser tratados com igualdade, considerando-se as circunstâncias de cada caso.

O acórdão que se acaba de citar não feriu o princípio da igualdade entre os

condôminos, pois: (i) a distribuição das vagas apenas entre os residentes190, em prejuízo dos

não-residentes, fez uma ponderação correta, eis que, na escassez de vagas, é razoável destiná-

las a quem diariamente mais precisa delas, do que fazê-lo em relação a quem só

eventualmente as utilizaria; e (ii) todos os condôminos residentes estavam submetidos ao

rodízio, não havendo, assim, discriminação de qualquer um deles.

Tratar isonomicamente os condôminos também implica em atribuir privilégios a quem

porventura precisar deles, como é a hipótese dos deficientes físicos: se, no caso concreto, ficar

demonstrado que esse condômino teria a sua locomoção inviabilizada, ou seriamente

prejudicada, em razão do rodízio, não há razão para submetê-lo a esse revezamento. O

princípio da dignidade da pessoa humana, ao mesmo tempo em que tutela a integridade

psicofísica desse condômino com necessidades especiais, impõe aos demais, através da

solidariedade social, o comprometimento com a situação dessa pessoa.

190 Obviamente, se um condômino não-residente aluga o seu apartamento, o inquilino equiparar-se-á aos condôminos residentes.

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CAPÍTULO 5: O ABUSO DO DIREITO E O CONDÔMINO ANTI-SOCIAL

Uma das novidades do Código Civil é a previsão expressa de aplicação de multa ao

condômino anti-social.

O parágrafo único do art. 1.337, ao fazer uso expresso do termo, estabelece que o

“condômino ou possuidor que, por seu reiterado comportamento anti-social, gerar

incompatibilidade de convivência com os demais condôminos ou possuidores, poderá ser

constrangido a pagar multa correspondente ao décuplo do valor atribuído à contribuição

para as despesas condominiais, até ulterior deliberação da assembléia”.

Mas, da leitura do citado dispositivo legal, uma série de indagações salta ao ar. Note-

se que a lei determinou a aplicação de multa ao condômino anti-social, sem, no entanto,

definir o condômino anti-social. Quem, então, poderá ser considerado como tal? Com base em

que critérios os demais condôminos poderão taxar um morador de anti-social, aplicando-lhe,

em conseqüência, a multa prevista na lei?

Além desses questionamentos, cabe indagar o que o legislador quis significar com

“reiteração” e “incompatibilidade de convivência”. Quais são os requisitos para a validade da

multa? E finalmente: seria possível expulsar o condômino anti-social?

Não há dúvidas de que se faz necessário estabelecer, para as situações acima

identificadas, critérios seguros, em sintonia com os valores vigentes no ordenamento jurídico,

de forma a se identificar e controlar ilegalidades e abusos.191

191 Vilson Rodrigues Alves (Ob. cit., p. 342-343), a nosso ver com razão, defende que o uso nocivo da propriedade não se equivale ao abuso do direito, ou pelo menos, esse instituto não é necessário para sancionar o mau uso da propriedade, pelo menos aqueles previstos no art. 1.336, IV, do Código Civil, pois para eles já existe dispositivo específico. O objetivo deste capítulo não é mostrar que o mau uso da propriedade condominial configura abuso do direito, e sim investigar se os demais consortes podem agir com abuso na hora de caracterizar quem é o condômino anti-social, e no momento de puni-lo.

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5.1. O conceito de condômino anti-social

O Código Civil de 2002 não definiu a figura do condômino anti-social, podendo-se,

então, afirmar se tratar de um conceito jurídico indeterminado.

Abra-se aqui um parêntese para ressaltar que o conceito jurídico indeterminado é

instituto diverso da cláusula geral. Para Karl Engisch, a diferença entre eles é apenas de grau,

não de natureza, ressaltando o jurista que o verdadeiro significado da cláusula geral reside no

domínio da técnica legislativa, e graças à sua generalidade semântica é possível “sujeitar um

mais vasto grupo de situações, de modo ilacunar e com possibilidade de ajustamento, a uma

conseqüência jurídica”.192

Judith Martins-Costa, a seu turno, estabelece uma distinção entre os conceitos

jurídicos indeterminados e as cláusulas gerais. O primeiro grupo teria o seu significado

depurado pelas regras de experiência (art. 335, CPC); já o segundo grupo teria conteúdo

axiológico, isto é, o seu significado seria preenchido com os valores do ordenamento. Em

relação a esse segundo conjunto é que se tornaria mais difícil de traçar uma distinção em

relação às cláusulas gerais.193

Porém, ainda assim, a diferença entre os dois institutos soa bastante clara sob o ângulo

da aplicação do direito, eis que, ao contrário da cláusula geral, o conceito jurídico

indeterminado, mesmo que tenha conteúdo axiológico, integra sempre a descrição do fato.

Nas palavras de José Carlos Barbosa Moreira, “uma vez estabelecida, in concreto, a

coincidência ou não-coincidência entre o acontecimento real e o modelo normativo, a

solução estará, por assim dizer, predeterminada”.194

Não há, aqui, segundo Martins-Costa, criação do direito, mas apenas interpretação;195

sendo que, em relação à cláusula geral, o juiz, em atividade verdadeiramente criativa, deverá

determinar quais os efeitos incidentes ao caso concreto, ou, se estes já estiverem indicados,

192 ENGISCH, Karl. Ob. cit., p. 233. 193 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 325. 194 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Regras de experiência e conceitos jurídicos indeterminados. In: Estudos em homenagem ao Professor Orlando Gomes, São Paulo: Forense, 1979, p. 605. 195 Ob. cit., p. 326.

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qual a graduação que lhes será conferida, diante das possíveis soluções existentes no

sistema.196

Claus-Wilhelm Canaris, ao falar da mobilidade do sistema, cita as cláusulas gerais

como exemplo, dizendo que elas carecem de preenchimento valorativo.197 É justamente por

isso que Gustavo Tepedino ressalta que as cláusulas gerais trazidas pelo atual Código Civil

revelam um avanço em técnica legislativa, mas, por si só, não significam uma transformação

qualitativa do ordenamento.198 Para que essa transformação ocorra, é necessário um ponto de

referência valorativo – a Constituição – e as cláusulas gerais devem ser lidas e aplicadas não

como meras estruturas formais, neutras e a-históricas, mas de forma que exprimam a tábua de

valores eleita pelo constituinte.

Dito isto, podemos afirmar que a expressão “condômino anti-social” encerra

verdadeiro conceito jurídico indeterminado, e não uma cláusula geral, o que não afasta,

todavia, o preenchimento axiológico do seu significado, como se verá mais à frente.

Como conceito jurídico indeterminado, o significado de comportamento anti-social

deve ser buscado, em primeiro lugar, no próprio dispositivo legal que regula a matéria, qual

seja, o art. 1337 do Código Civil. Mas, isso não é o bastante: necessário se faz interpretar esse

dispositivo sistematicamente, pois, a nosso sentir, o legislador quis estabelecer uma seqüência

de penalidades ao condômino infrator, conforme a gravidade da sua conduta.

Desde já é possível afirmar que se enquadrará na noção de condômino anti-social toda

pessoa que, de maneira reiterada, descumprir os seus deveres perante o condomínio.

Esses deveres, além de outros que a convenção de condomínio arrolar, estão previstos

no art. 1.336 do Código Civil, que assim dispõe:

Art. 1.336. São deveres do condômino: I - contribuir para as despesas do condomínio na proporção das suas frações ideais, salvo disposição em contrário na convenção; II - não realizar obras que comprometam a segurança da edificação;

196 Ob. cit., p. 327. 197 Ob. cit., p. 142. 198 TEPEDINO, Gustavo. Crise de fontes normativas e técnica legislativa na parte geral do Código Civil de 2002. In: A parte geral do novo Código Civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. ___.

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III - não alterar a forma e a cor da fachada, das partes e esquadrias externas; IV - dar às suas partes a mesma destinação que tem a edificação, e não as utilizar de maneira prejudicial ao sossego, salubridade e segurança dos possuidores, ou aos bons costumes.

Destaque-se, conforme explicaremos mais à frente, que o dever previsto no inciso I,

qual seja, de pagar as cotas condominiais, não pode ser utilizado como motivo legítimo para

considerar anti-social o condômino.

Para o escopo deste trabalho, e sem pretender retirar a importância dos deveres

previstos nos incisos II e III do artigo ora comentado, nossa atenção, por ora, recairá sobre o

uso nocivo da propriedade, previsto no inciso IV.

Assim como ocorre com o termo “condômino anti-social”, saúde, segurança, sossego e

bons costumes são todos, em maior ou menor medida, conceitos jurídicos indeterminados,199

cujos significados devem ser averiguados no caso concreto, mesmo nas hipóteses em que a

convenção tenta conceituá-los previamente.

Exemplificativamente, são situações em que o condômino ou possuidor coloca em

risco a saúde dos demais moradores: (i) criação de animais doentes ou que sejam vetores de

doenças, ou que não sejam tratados em condições mínimas de higiene; (ii) manipulação de

agentes químicos ou biológicos considerados perigosos; (iii) existência de doença contagiosa,

sem que o condômino portador tome as medidas necessárias para tratar a doença ou ao menos

evitar o seu alastramento; (iv) colocação de lixo nas partes comuns sem observação das regras

de higiene; e (v) ausência de manutenção da sua unidade, provocando infiltrações em outros

apartamentos ou nas partes comuns, gerando umidade e criando um ambiente propício à

proliferação de fungos.

Em relação à segurança, as situações mais comuns de violação podem assim ser

arroladas: (i) deixar portas e portões abertos, facilitando o ingresso de estranhos; (ii) circular

com animais ferozes nas partes comuns, sem a devida proteção e os mínimos cuidados; (iii)

promover grande circulação de pessoas no imóvel, especialmente quando se utiliza o imóvel

residencial para atividades profissionais e em locação para temporada; (iv) dirigir nas ruas

199 Na lição de Karl Engisch, “Os conceitos absolutamente determinados são muito raros no Direito. Devemos considerar como tais os conceitos numéricos 50 km, prazo de 24 horas, 100 marcos. Os conceitos jurídicos são predominantemente indeterminados, pelo menos em parte”. Op. cit, p. 120.

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internas ou na garagem em alta velocidade; (v) deixar de fazer a manutenção da rede elétrica,

aumentando o risco de incêndio; (vi) realizar obras que comprometam a segurança da

edificação; e (vii) trabalhar com materiais explosivos.

O sossego dos moradores geralmente é perturbado por (i) festas que se prolongam

madrugada adentro, com níveis ensurdecedores de música e de gritaria; (ii) animais

barulhentos; (iii) guitarras e instrumentos de percussão que são tocados a qualquer hora do dia

ou da noite, não havendo preparação acústica no apartamento; (iv) discussões e brigas

familiares.

Por fim, os bons costumes trazem a noção de moralidade, daquilo que seja moralmente

aceito dentro de determinada sociedade ou grupo social. Nesse sentido, são circunstâncias que

normalmente atentam contra os bons costumes dentro da comunidade condominial: (i) a

exploração de bordéis ou a locação da unidade para temporada de turismo sexual; (ii) a prática

de relações sexuais excessivamente ruidosas ou nas partes comuns; (iii) o tráfico ou o

consumo de substâncias entorpecentes, especialmente nas partes de propriedade comum.

Todas essas situações são meramente exemplificativas. Um critério da maior

relevância para se aferir a existência e a gravidade da violação está no parágrafo único do art.

1.277 do Código Civil, que regula as relações de vizinhança, e segundo o qual, na averiguação

do uso anormal da propriedade, devem ser levados em conta “a natureza da utilização, a

localização do prédio, atendidas as normas que distribuem as edificações em zonas, e os

limites ordinários de tolerância dos moradores da vizinhança”.

Esse critério, originalmente proposto por San Tiago Dantas,200 é muito útil para

200 DANTAS, San Tiago. O conflito de vizinhança e sua composição. 2. ed.. Rio de Janeiro: Forense, 1972. A teoria, exposta na tese de cátedra apresentada em 1939 na Faculdade Nacional de Direito, é uma evolução em relação às teorias de Ihering e de Bonfante, e tem por base dois princípios basilares: O primeiro, da coexistência dos direitos, tem como foco a relação privada entre os vizinhos. O segundo princípio é o da supremacia do interesse público, que se dirige à vizinhança industrial. Nas palavras do autor: “Resumindo, temos que através do art. 554 pode o juiz compor de três modos o conflito de vizinhança: 1º - verificando que os incômodos são normais, e que não o seria privar o interferente da livre prática dos atos reclamados, o juiz mandará tolerar os incômodos, atuando o direito de vizinhança gratuitamente concedido a todos os proprietários, de terem suas imissões toleradas pelos proprietários dos prédios vizinhos; 2º - verificando-se, porém, que os incômodos são excessivos por ser anormal o uso da propriedade que lhes dá origem, o juiz indagará se a supremacia do interesse público legitima este uso excepcional; se legitima, e se a ofensa à saúde, segurança ou sossego não é de molde a inutilizar o imóvel prejudicado, o juiz manterá os incômodos inevitáveis, e pela expropriação que assim inflige ao proprietário incomodado, ordenará que se lhe faça cabal indenização (direito oneroso de

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identificar o uso anormal da propriedade, pois essa noção de uso nocivo pode variar, e

efetivamente varia muito. Assim, quem mora de frente para a Avenida Nossa Senhora de

Copacabana, no Rio de Janeiro, está sujeito a um nível de barulho infinitamente superior, se

comparado com o morador de um prédio no Alto da Boa Vista, pois embora ambos morem na

mesma cidade, as características das edificações, em se tratando de decibéis, são bastante

diversas: por isso mesmo, é bem maior o nível de tolerância ao barulho que se exige do

morador de Copacabana.

Logo, o condômino ou possuidor que, reiteradamente, prejudicar (ou, em alguns casos,

apenas ameaçar) o sossego, a saúde ou a segurança, ou atentar contra os bons costumes dos

demais moradores, poderá ser considerado anti-social. Obviamente que a reiteração não

precisa dizer respeito a uma mesma conduta – atrapalhar, por exemplo, o sono dos demais

comunheiros. A repetição que leva à anti-sociabilidade poderá ser representada por atos

diversos, uns se relacionando à violação ou ameaça da segurança da coletividade, outros

ferindo os bons costumes, e assim por diante.

Além desses quatro tipos de violação, a convenção de condomínio ou a assembléia

geral, dentro dos limites referidos no segundo capítulo desta monografia, poderá estipular

outras tantas hipóteses, que não se encaixem no conceito de segurança, sossego, saúde ou

bons costumes. Uma delas, aliás, já está prevista, como visto acima, no art. 1336, III, que

dispõe ser vedado ao condômino alterar a forma e a cor da fachada, das partes e esquadrias

externas. Se assim o fizer, de forma reiterada, ou conjugando essa infração com outras, o

morador poderá ser considerado anti-social.

Mas antes de avançarmos, uma indagação: poderia o condômino que reiteradamente

deixa de pagar as suas cotas condominiais, ser taxado de anti-social?

Em favor de tal posição, poder-se-ia argumentar que o condomínio não é uma

sociedade com fins lucrativos, e que por isso a inadimplência prejudica sobremaneira a

continuidade dos serviços, punindo os demais moradores que pagam suas cotas em dia, por

obrigá-los a pagar um valor extra para suprir o déficit deixado pelo faltoso. Além disso, se

pagar em dia as cotas condominiais é a principal obrigação do condômino (nesse sentido,

vizinhança); 3º - se, porém, o interesse público não legitima o uso excepcional, é de “mau uso” que se trata, e o juiz mandará cessar”. Ob. cit., p. 329.

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veja-se o art. 1.336, I, do CC), nada mais natural do que considerar anti-social aquele que não

cumpre com dever tão relevante.

Também seria razoável dizer que há situações afrontosas, nas quais o condômino

deixa de pagar o condomínio não por estar em dificuldades financeiras, mas por algum tipo de

rixa com o síndico ou grupo de condôminos, ou para fazer disso um instrumento de pressão

ou escárnio. Com mais razão ainda, por isso, a aplicação da multa.

Um terceiro argumento em favor da imposição ao condômino anti-social da multa

prevista no caput do art. 1.337 do Código Civil é sistemático: o art. 1.336, parágrafo segundo,

expressamente excluiu a inadimplência (art. 1.336, I) das hipóteses ali previstas, arrolando

como requisito para aprovação da multa pela assembléia apenas o descumprimento dos

deveres previstos nos incisos II a IV do artigo em comento. O mesmo não se passou com o

art. 1.337, caput, que invocou genericamente o descumprimento reiterado dos deveres perante

o condomínio; com isso, a conclusão não poderia ser outra senão a de que a reiterada

inadimplência dá azo à cobrança da multa ora discutida.

Todavia, essa posição, como já adiantado, não parece ser a mais adequada.

Para rechaçar a cobrança da multa estipulada no art. 1.337, caput, em face do

condômino inadimplente, é tentador o argumento do bis in idem: o legislador já previu uma

penalidade para o atraso no pagamento das cotas condominiais, qual seja, a multa moratória

de 2% (art. 1.336, parágrafo primeiro). Se os atrasos são reiterados, para cada mês em aberto

haverá uma multa moratória correspondente. Desta forma, aplicar uma segunda penalidade

para o mesmo fato implicaria num verdadeiro bis in idem.

Entretanto, não é essa a razão pela qual é abusiva a aplicação da multa, eis que esse

argumento é duplamente falso; a uma porque a multa de até cinco cotas condominiais tem

como fundamento um conjunto de descumprimentos dos deveres condominiais, os quais,

como já dito, até podem ter a mesma origem (falta de pagamento), mas também podem

possuir origens diferentes: a reiteração pode ser representada pela inadimplência em

determinado período, juntamente com a violação ao sossego e à segurança dos demais

moradores; e a duas porque esse raciocínio simplesmente inviabilizaria a aplicação da multa

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fixada no art. 1.337, caput: assim como a inadimplência (art. 1.336, I) já possui previsão

específica de multa (os 2% estipulados no parágrafo primeiro do mesmo artigo), às demais

infrações constantes dos incisos II a IV do art. 1.336 também já corresponde uma penalidade,

que é justamente aquela do parágrafo segundo do mesmo artigo.

Para ilustrar o que dizemos: imagine-se que um condômino alterou a cor da fachada

do prédio (art. 1.336, III), e por tal infração foi multado em duas cotas condominiais, com

fundamento no art. 1.336, parágrafo segundo. Esse mesmo morador, um mês depois, alterou

as esquadrias externas (art. 1.336, III), tendo sido novamente multado em uma cota

condominial. Passados alguns dias, o condômino realizou uma obra que comprometeu a

segurança da edificação (art. 1.336, II), recebendo nova multa. Finalmente, promoveu o

condômino uma festa que prejudicou o sossego dos demais moradores (art. 1.336, IV), de

modo que o síndico, com base na convenção, que previa todas essas infrações, aplicou-lhe

uma quarta multa, agora no valor de três cotas condominiais. Em tese, esse conjunto de atos

configurou uma reiteração do descumprimento dos deveres condominiais, o que motivou os

demais condôminos a se reunirem em assembléia para deliberarem a aplicação de nova multa,

desta vez com fundamento no caput do art. 1.337.

Esse exemplo parece deixar evidente a diferença entre o que seria aplicar duas multas

para um mesmo ato (nesse caso, sim, um bis in idem) e o que verdadeiramente ocorre, que é a

aplicação da multa para um conjunto de infrações, que não se confunde com as penalidades

isoladas que já haviam sido impingidas ao morador. Entender o contrário, insista-se, tornaria

impossível a aplicação tanto da multa prevista no caput do art. 1.337 (até cinco cotas), quanto

da multa prevista no parágrafo único do mesmo dispositivo legal (até dez cotas).

As verdadeiras razões que nos levam a considerar abusiva a sujeição do condômino

inadimplente à multa prevista no art. 1.337, caput, são outras.

Em primeiro lugar, ao definir no art. 1.337 que pessoas podem ser multadas pela

assembléia geral, o legislador também fez expressa referência ao possuidor, e não apenas ao

condômino. Mas, sabendo-se que apenas o condômino tem a obrigação de pagar as cotas

condominiais, não sendo tal dever exigível do possuidor, defender a aplicação da multa ao

condômino inadimplente importaria em fazer uma distinção que não foi feita pelo legislador.

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Significaria dizer que as duas multas estipuladas no caput e no parágrafo único do art. 1.337,

quando a infração reiterada incluir a inadimplência, somente podem ser aplicadas ao

condômino e não ao possuidor. No entanto, nada indica que essa seja a intenção da lei.

Além desse argumento, há outro, de ordem metodológica, mais importante para negar

a aplicação da multa ao condômino inadimplente. Como já foi deixado claro ao longo deste

trabalho, o ordenamento jurídico brasileiro, desde 1988, quando foi promulgada a atual

Constituição Federal, elevou a pessoa humana ao seu vértice axiológico, tornando obrigatória

a releitura de todo o sistema e dos elementos nele contidos sob um enfoque mais humanista e

menos patrimonialista.

Partindo-se da premissa de que os direitos fundamentais incidem diretamente nas

relações entre particulares201, não é razoável, nem está em consonância com os valores

constitucionais, uma decisão assemblear que pune com até cinco cotas condominiais quem já

não tinha condições de pagar apenas uma. Tal decisão, tomada com abuso do direito, vai

servir apenas para agravar o imbróglio financeiro daquele condômino, sem com isto resolver

o problema do condomínio.

201 SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2004, p. 221. Nesse sentido, ver acórdão proferido pelo STF, no Recurso Extraordinário 201.819, Rel. para acórdão Mim. Gilmar Mendes, julgado em 11.10.05, onde se entendeu, no caso, ocorrer “hipótese de aplicação direta dos direitos fundamentais às relações privadas”. Vale a pena também ler o parecer de Alexandre de Freitas Câmara, onde o mesmo sustenta a aplicabilidade do princípio da democracia à assembléia geral de uma associação civil. CAMARA, Alexandre Freitas. As associações civis e o princípio democrático: legitimidade constitucional do voto secreto em assembléia. Revista Trimestral de Direito Civil, n. 22, pp. 227-237, abr/jun 2005. Na lição de Maria Celina Bodin de Moraes: “A rigor, portanto, o esforço hermenêutico do jurista moderno volta-se para a aplicação direta e efetiva dos valores e princípios da Constituição, não apenas na relação Estado-indivíduo, mas também na relação interindividual, situada no âmbito dos modelos próprios do direito privado. (...). Assim, o Direito Civil deve se moldar aos enunciados constitucionais, que não mais admitem a proteção da propriedade e da empresa como bens em si, mas somente enquanto destinados a efetivar valores existenciais, realizadores da justiça social. (...) Assim é que qualquer norma ou cláusula negocial, por mais insignificante que pareça, deve se coadunar e exprimir a normativa constitucional. Sob essa ótica, as normas de Direito Civil necessitam ser interpretadas como reflexo das normas constitucionais. A regulamentação da atividade privada deve ser, em todos os seus momentos, expressão da indubitável opção constitucional de privilegiar a dignidade da pessoa humana.”. BODIN DE MORAES, Maria Celina. A caminho..., ob. cit., p. 12, Nesse mesmo sentido, apenas com a ressalva de que o autor se filia à corrente da eficácia apenas indireta dos direitos fundamentais nas relações privadas, v. LARENZ, Karl. Ob. cit., p. 479. Dentre tantos outros, cite-se também o escólio de Gustavo Tepedino: “Há que se ler atentamente o Código de 2002 sob a luz da CF, para se atribuir não só às cláusulas gerais, mas a todo o corpo codificado, um significado coerente com a tábua de valores do ordenamento, de forma a viabilizar a transformação da realidade a partir das relações jurídicas privadas, segundo os ditames da solidariedade e justiça social”. TEPEDINO, Gustavo José Mendes. Crise de fontes ..., p. XXVI.

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Se é certo que em casos isolados a inadimplência não se motiva na dificuldade

financeira, não é menos verdade que o condomínio já dispõe da ação de cobrança, que é um

instrumento jurídico adequado para obrigar o condômino a cumprir tal dever.

E não apenas o condômino inadimplente está fora do conceito de anti-social. A

incidência dos direitos fundamentais nas relações condominiais, embora seja útil para

solucionar diversas questões, não pode servir de supedâneo para se incluir no conceito de

condômino anti-social a pessoa que não se socializa dentro do condomínio, ou que trata os

vizinhos de forma diferente.

Como ressalta Daniel Sarmento,

temos, como seres humanos, o direito inalienável de agir com base em nossos sentimentos pessoais, preferências subjetivas de foro íntimo, até caprichos, e esta faculdade as autoridades públicas, num Estado de Direito, não podem possuir.202

Finalmente, ao lado da discussão acerca da conceituação do instituto, é importante

ressaltar que a doutrina, referida no próximo item, ao discorrer sobre o condômino anti-social,

cita unicamente o parágrafo único do art. 1.337, como se esse fosse o único dispositivo legal a

tratar do assunto. A razão para essa abordagem parece óbvia: apenas o parágrafo único utiliza

a expressão comportamento anti-social.

Entretanto, a hipótese prevista no parágrafo único do art. 1.337, em nossa opinião,

nada mais é do que um agravamento da situação identificada no caput do mesmo artigo. Essa

é apenas uma diferença quantitativa, e não qualitativa. O caput do artigo de lei em questão, ao

dispor sobre o descumprimento dos deveres condominiais, na verdade já considera o

comunheiro ou possuidor que assim age como sendo anti-social, sujeitando-o à multa de até

cinco cotas condominiais. Entretanto, se o comportamento anti-social persistir a tal ponto de

202 Ob. cit., p. 222. Na mesma página, o autor prossegue: “como vimos, o reconhecimento da vinculação direta dos particulares aos direitos fundamentais não significa que tais direitos possam ser aplicados nas relações privadas da mesma forma que vigoram nas relações entre cidadãos e Estado. O fato de que os particulares são também titulares de direitos fundamentais impõe uma serie de adaptações e especificidades na incidência dos direitos humanos no campo privado. Por exemplo, não é razoável exigir, com base na isonomia, que um indivíduo trate de forma igual todos os seus vizinhos, pois ele tem o direito de gostar mais de alguns do que de outros, de convidar alguns para a sua casa e outros não, e seria totalitária a ordem jurídica que pretendesse imiscuir-se nesta questão.”

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gerar uma “incompatibilidade de convivência” com os demais moradores, então nova multa

poderá ser aplicada, desta vez de até o décuplo do valor previsto para a cota de condomínio.

Até agora, procuramos delinear o conceito de condômino anti-social, e em linhas

gerais, pode-se concluir que: (i) a noção está estritamente ligada ao uso nocivo (ou anormal)

da propriedade condominial, assim considerado como a infração aos deveres previstos nos

incisos II a IV do art. 1.336 do Código Civil; (ii) a convenção de condomínio tem certa

liberdade para prever outras hipóteses de uso nocivo da propriedade, desde que respeite os

direitos fundamentais dos condôminos e possuidores; (iii) a melhor interpretação do art. 1.337

é aquela no sentido de vedar a aplicação das duas multas previstas no caput e no parágrafo

único ao condômino que deixa de pagar as suas cotas condominiais; (iv) a noção de

condômino ou possuidor anti-social não está apenas no parágrafo único do art. 1.337, estando

também, embora implicitamente, no caput do mesmo artigo.

Estabelecidos, então, os parâmetros para se identificar quem é o condômino ou

possuidor anti-social, o próximo passo é fixar os critérios para a aplicação da multa.

5.2. Critérios para a aplicação da multa

Agora cumpre examinar os requisitos legais para a imposição da multa de até dez

cotas condominiais prevista no parágrafo único do art. 1.337 do Código Civil, que tem a

seguinte redação:

Art. 1337 - O condômino, ou possuidor, que não cumpre reiteradamente com os seus deveres perante o condomínio poderá, por deliberação de três quartos dos condôminos restantes, ser constrangido a pagar multa correspondente até ao quíntuplo do valor atribuído à contribuição para as despesas condominiais, conforme a gravidade das faltas e a reiteração, independente das perdas e danos.

Parágrafo único. O condômino ou possuidor que, por seu reiterado comportamento anti-social, gerar incompatibilidade de convivência com os demais condôminos ou possuidores, poderá ser constrangido a pagar multa correspondente ao décuplo do valor atribuído à contribuição para as despesas condominiais, até ulterior deliberação da assembléia.

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Uma análise sistemática do Código Civil permite chegar à conclusão de que o

legislador previu três tipos de penalidade ao condômino ou possuidor nocivo.203 E a sua

análise conjunta é fundamental para determinar corretamente os critérios para a imposição da

multa prevista no parágrafo único do art. 1.337. Senão vejamos.

O parágrafo segundo do art. 1.336, trouxe a multa a ser aplicada no caso de

descumprimento dos deveres previstos nos incisos II a IV do citado dispositivo. Em outras

palavras, essa multa pode ser imposta ao condômino: (i) que realizar obras que comprometam

a segurança da edificação – art. 1.336, II; (ii) que alterar a forma e a cor da fachada, das partes

e esquadrias externas – art. 1.336, III; (iii) que der às suas partes destinação diversa da que

tem a edificação, ou utilizá-la de maneira prejudicial ao sossego, salubridade ou segurança

dos possuidores, ou aos bons costumes – art. 1.336, IV. Assim, por expressa disposição legal,

a multa, prevista no art. 1.336, parágrafo segundo, não pode ser cobrada do condômino

inadimplente, referido no inciso I do referido dispositivo.

Essa multa, como definido no parágrafo segundo do mencionado artigo, pode ser

fixada em até 5 (cinco) cotas condominiais e, caso haja previsão na convenção, o próprio

síndico pode aplicá-la, sem a necessidade de uma decisão da assembléia geral. No caso de

omissão da convenção quanto à incidência da multa, esta dependerá da aprovação de 2/3 (dois

terços) dos condôminos restantes.

Já o caput do art. 1.337 do Código Civil prevê a aplicação de multa de até 5 (cinco)

cotas condominiais ao condômino ou possuidor que reiteradamente descumpre os seus

deveres. Essa penalidade requer o voto de 3/4 (três quartos) dos condôminos restantes, mesmo

que já venha prevista na convenção de condomínio.

Vê-se, portanto, nas citadas regras legais, uma escala bem definida: a “primeira

multa”, prevista no parágrafo segundo do art. 1.336, de até 5 cotas condominiais, pode ser

aplicada diretamente pelo síndico, desde que prevista na convenção, mas, no caso de omissão

convencional, depende da aprovação de 2/3 dos comunheiros restantes; e a “segunda multa”,

203 A multa moratória, de 2% (dois por cento), prevista no art. 1.336, §1º, do Código Civil, não é objeto de estudo deste trabalho, pois sua natureza (moratória) é distinta das demais multas.

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disposta no caput do art. 1.337, que pode alcançar valor igual ao da primeira (5 cotas), requer

um quorum mais elevado, o de 3/4 dos demais condôminos.

Não obstante o valor previsto para a “segunda multa” (art. 1.377, caput) seja igual ao

da “primeira” (art. 1.336, parágrafo segundo), aquela ainda apresenta um requisito específico,

qual seja, a reiteração da conduta pelo condômino. Não basta, portanto, uma única violação

para que a multa seja aplicada. É necessário que haja uma seqüência delas. Nesse sentido, o

caput do art. 1337 é claro ao dizer que será constrangido ao pagamento da multa o condômino

ou possuidor que não cumpre reiteradamente com seus deveres.

Visto, então, que existe na legislação uma escala, uma gradação das faltas e das

respectivas multas que podem ser aplicadas ao condômino, passa-se a examinar o parágrafo

único do art. 1337 que dispõe sobre a multa imposta ao condômino anti-social.

Uma interpretação sistemática dos dispositivos legais em tela revela que a conduta

descrita no parágrafo único do art. 1337 é, como diriam os franceses, le grand finale, o último

estágio de descumprimento que se poderia cogitar.

Enquanto (i) o art. 1336, no seu parágrafo segundo, já prevê a incidência da multa,

ressaltando que caso ela não esteja disciplinada na convenção, deverá ser aplicada por dois

terços dos condôminos; (ii) o caput do art. 1337 contempla situação mais grave, na qual a

conduta contrária às normas condominiais já é reiterada, sendo necessária, em qualquer

hipótese, a aprovação de três quartos dos condôminos para a aplicação da multa de até cinco

cotas; o parágrafo único do art. 1337 prevê situação ainda mais grave: a do condômino que

gerou incompatibilidade de convivência com os demais, e que pode ser constrangido a pagar

dez cotas condominiais, ou seja, o dobro da multa fixada no caput.

Constatada, então, essa gradação legal, necessário enfrentar dois questionamentos

relevantes. São eles: quem seria competente para a aplicação da multa, o síndico ou a

assembléia geral? No caso de ser a assembléia geral a única competente, qual seria o quorum

exigido para a aprovação da matéria?

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Sobre a competência para a imposição da penalidade, Marco Aurélio S. Viana a atribui

ao síndico, por ser ele o responsável pela administração do condomínio. No exercício de sua

função, cabe ao síndico estabelecer a multa e aplicá-la ao infrator. A exigência de aprovação

da multa pela assembléia geral está presente, tão somente, nas hipóteses do caput e do

parágrafo único do art. 1337 do Código Civil de 2002.204

Hamilton Quirino Câmara também entende que o síndico possui esse poder, bastando

que a multa esteja prevista na convenção de condomínio. Caso não haja previsão, caberá à

assembléia, pelo voto de três quartos dos condôminos restantes, excluído o condômino anti-

social, deliberar sobre o assunto.205

A Sexta Câmara Civil do Tribunal de Alçada do Estado de Minas Gerais adotou

posição semelhante àquela defendida por Marco Aurélio S. Viana, isto é, admitiu validade e

eficácia à multa imposta pelo síndico até “ulterior decisão da assembléia”, mas ressaltando

que isso somente ocorre em casos excepcionais, quando a aplicação imediata da pena for uma

premente necessidade:

Muito embora a leitura do dispositivo possa indicar a possibilidade de aplicação sumária da multa em questão sem a necessidade de deliberação da Assembléia Geral, tal se justificaria apenas em casos urgentes, em que a aplicação da pena se impõe de imediato. Casos como o dos autos, em que a conduta anti-social repetiu-se de 02/11/02 a 29/01/03, conforme documentos de f. 25-33, devem, a meu ver, ser levados ao conhecimento e submetidos à deliberação da assembléia antes da aplicação da penalidade em questão. Nesse sentido é o escólio de José Costa Loures e Taís Maria Loures Dolabela Guimarães: "Na exasperação, de que cuida o parágrafo único, a Assembléia Geral funciona como instância derradeira" (Novo Código Civil Comentado, 2 ed., Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 577). (...) Não pode ser tida por legítima, destarte, a aplicação da multa de forma sumária pelo síndico, sem que seja garantido o direito de defesa do condômino e sem a ulterior deliberação da assembléia sobre o seu cabimento, nenhum reparo merecendo, destarte, a sentença que assim concluiu.206

204 VIANA, Marco Aurélio S. Comentários ao Novo Código Civil: dos direitos reais, v. XVI, Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 462. 205 CÂMARA, Hamilton Quirino. Condomínio edilício: manual prático com perguntas e respostas. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006, p. 123. 206 TAMG, 6ª. Câmara Civil. Apelação Cível 449.657-5, rel. Des. Elias Camilo. Julgado em 03/03/2005. DJ 18/03/2005. Acórdão Unânime.

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Contudo, e como adiante demonstraremos, as duas multas constantes do art. 1.337 do

Código Civil dependem, sempre, da aprovação de três quartos dos condôminos restantes.

Quando o legislador quis abrir espaço para a autonomia privada, assim o fez expressamente.

Nesse ponto, é oportuno frisar que no caso de conflito entre a lei e a convenção de

condomínio, aquela prevalece. A convenção, embora seja inegavelmente um instrumento da

maior importância para regular a vida condominial, somente poderá atuar quando a lei se

omitir sobre a matéria, quando transferir à convenção expressamente a tarefa de regular

determinado assunto, ou ainda quando permitir que a convenção estabeleça em sentido

contrário. A guisa de exemplo de lacuna legal, podemos citar a forma de convocação da

assembléia geral – prazo mínimo e meios de comunicação.

Quanto à remissão, são exemplos do espaço que a lei confere à convenção de

condomínio: (i) o art. 1.331, parágrafo quinto, segundo o qual o “terraço de cobertura é parte

comum, salvo disposição contrária da escritura de constituição do condomínio”; (ii) o art.

1.336, inciso I: “são deveres do condômino: I - contribuir para as despesas do condomínio na

proporção das suas frações ideais, salvo disposição em contrário na convenção” ; (iii) o

parágrafo segundo do mesmo art. 1.336: “o condômino, que não cumprir qualquer dos

deveres estabelecidos nos incisos II a IV, pagará a multa prevista no ato constitutivo ou na

convenção (...); não havendo disposição expressa, caberá à assembléia geral, por dois terços

no mínimo dos condôminos restantes, deliberar sobre a cobrança da multa”; (iv) o art. 1.352,

parágrafo único: “os votos serão proporcionais às frações ideais no solo e nas outras partes

comuns pertencentes a cada condômino, salvo disposição diversa da convenção de

constituição do condomínio”; (v) o art. 22, parágrafo terceiro, da Lei 4.591/64 (Lei de

Condomínio e Incorporações): “a Convenção poderá estipular que dos atos do síndico caiba

recurso para a assembléia, convocada pelo interessado”; e (vi) o parágrafo quinto do mesmo

artigo: “o síndico poderá ser destituído, pela forma e sob as condições previstas na

Convenção, ou, no silêncio desta pelo voto de dois têrços dos condôminos, presentes, em

assembléia-geral especialmente convocada”.

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Esse não foi, entretanto, o caso do art. 1.337, que, além de citar expressamente a

decisão assemblear, não permite que a convenção estabeleça o contrário, nem adota a redação

do art. 1.336, parágrafo segundo, onde está dito que a assembléia somente precisa deliberar

em “não havendo disposição expressa” do estatuto condominial.

Nem mesmo em caso de urgência, como aludido no acórdão antes citado, seria

possível, a nosso ver, afastar a necessidade de deliberação assemblear, até porque o

condomínio dispõe de instrumento mais eficaz do que a multa para fazer cessar as infrações,

que é a ação cominatória, com pedido de antecipação de tutela. O argumento da aplicação de

multa em caráter de urgência, até ulterior deliberação assemblear, também não nos convence

porque se o condômino não pagar voluntariamente a multa imposta pelo síndico – e seria uma

surpresa se assim o fizesse – o condomínio não teria outra saída senão se aventurar numa ação

de conhecimento para tentar cobrar, sem o apoio de uma decisão assemblear, a multa fixada

pelo síndico.

A Décima Sexta Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro

julgou exatamente nesse sentido, ao analisar caso no qual a convenção de condomínio

permitia ao síndico aplicar a multa diretamente, sem decisão da assembléia de condôminos:

Apelação. Condomínio edilício. Multa. Conduta anti-social. Embora a Convenção e o Regulamento Interno do Condomínio prevejam como atribuição do Síndico a imposição de multa pelas infrações perpetradas pelos moradores do edifício, em detrimento das normas regulamentares, independente de manifestação assemblear, com a regulação da matéria pelo novo Código Civil este, por se tratar de norma de ordem pública, possui aplicação imediata a partir de sua entrada em vigor, considerando a natureza estatutária da convenção condominial, aplicando-se, portanto, o artigo 1.337 do novo diploma que exige, para a imposição de multa, a deliberação de três quartos dos condôminos restantes. Conhecimento e desprovimento da apelação.207

A Sétima Câmara Cível proferiu acórdão na mesma direção:

Condomínio. Infração ao regimento interno. A imposição de multa ao condômino, após a vigência do Código Civil/2002, exige deliberação de 3/4 (três quartos) dos condôminos, cujo valor corresponderá até ao quíntuplo daquele atribuído à contribuição para as despesas condominiais. Art. 1337. Revogado o art. 21 da lei 4.591/64, que autorizava o síndico expedir a multa.

207 TJRJ. 16ª Câmara Cível. Apelação Cível 2006.001.08922, Rel. Des. Mario Robert Mannheimer. Julgado em 23/01/2007. Acórdão Unânime.

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Cumpre aos condomínios edilícios adaptarem as respectivas convenções às novas disposições do código civil/2002.208

Em prol da eficácia imediata da multa aplicada pelo síndico “até ulterior deliberação

da assembléia”, poder-se-ia argumentar que a redação original do parágrafo único do art.

1.337 do Código Civil, quando ainda estava em tramitação no Congresso Nacional, estipulava

que o condômino anti-social poderia “... ser constrangido a pagar multa correspondente ao

décuplo das suas contribuições, a qual vigorará até ulterior deliberação da assembléia.”209

(grifamos)

Entretanto, essa interpretação leva à conclusão precisamente oposta, porque mostra

que o legislador deu-se conta da inutilidade e inconveniência de atribuir eficácia provisória a

uma penalidade que sequer tem validade ainda, eis que ainda não aprovada por três quartos

dos condôminos restantes.

Mas se o síndico não pode punir o condômino com as multas do art. 1.337 do Código

Civil até que a assembléia geral analise a situação, qual o sentido, então, da expressão

empregada pelo legislador “até ulterior deliberação da assembléia”? No capítulo seguinte,

responderemos a essa questão, demonstrando que a melhor interpretação desse trecho leva a

concluir pela possibilidade da assembléia tomar, dentro de certos limites, as medidas

necessárias com vistas à cessação do mau uso da propriedade.

Mas antes de encerrarmos o presente capítulo, resta analisar o quorum necessário para

a aprovação da multa de dez cotas condominiais. Isso porque, embora o caput do art. 1.337

tenha feito expressa referência a três quartos dos condôminos restantes, o mesmo não ocorreu

no parágrafo único, que silenciou a respeito.

208 TJRJ. 7ª Câmara Cível. Apelação Cível 2005.001.51265, Rel. Des. Carlos Lavigne de Lemos. Julgado em 21/03/2006. Acórdão Unânime. 209 A redação original do parágrafo único do art. 1.337 do Código Civil assim dispunha: “O condômino, ou possuidor, que por causa do seu reiterado comportamento anti-social, tornar absolutamente insuportável a moradia dos demais possuidores, ou a convivência com eles, poderá, de igual modo, ser constrangido a pagar multa correspondente ao décuplo das suas contribuições, a qual vigorará até ulterior deliberação da assembléia”. O relator parcial do projeto do Código Civil responsável por essa parte opinou pela rejeição da emenda, que afinal foi aprovada e se transformou em lei, sob o argumento de que “é desaconselhável a indefinição quanto à duração da multa, atendendo-se ainda à impossibilidade de convocação de assembléia geral extraordinária pelo condômino individualmente considerado, e à impossibilidade de participação, nela, do possuidor não-condômino”. MALUF, Carlos Alberto Dabus. Novo Código Civil Comentado. Coord.: Ricardo Fiuza. São Paulo: Saraiva, 2002.

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A Décima Quarta Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro,

através do acórdão relatado pelo Desembargador Ferdinaldo Nascimento, fez uma

interpretação literal do artigo em discussão, embora tenha invocado os “princípios norteadores

do Código Civil”, e desta forma considerou que a aprovação da multa depende apenas de

quorum simples (maioria dos condôminos presentes em assembléia):

De fato, o parágrafo único do art. 1.337 do CC/02 não faz menção ao quorum de 3/4 a que se refere o caput do dispositivo. O apelante sustenta que, embora o parágrafo único não tenha previsto o quorum de 3/4 do caput, ele deveria ser observado para fins de aplicação da multa por reiterado comportamento anti-social. Assim como decidido pela i. magistrada do juízo a quo, entendo que a não exigência de quorum qualificado para a aplicação da multa prevista no parágrafo único do art. 1.337 é a posição que melhor se ajusta aos princípios norteadores do Código Civil de 2002. O dispositivo cuida da situação excepcional do comportamento anti-social reiterado que, como tal, reclama providências em caráter de urgência. Está-se diante de uma circunstância que é expressão do uso anormal da propriedade, que frustra as expectativas impostas pelos direitos de vizinhança. A imposição de multa sem quorum qualificado, “até ulterior decisão da assembléia”, como de só estabelece o dispositivo, é plenamente cabível, mormente no caso dos autos, no qual ficou demonstrada a aplicação da penalidade pela maioria dos votos em assembléia.210

Contudo, várias são as razões que levam a concluir pela necessidade de aprovação da

multa por pelo menos 3/4 dos condôminos restantes.

A primeira delas é que a multa de dez cotas condominiais, como visto, é o estágio

final, a mais grave das três penalidades que se pode aplicar ao condômino ou possuidor. Se a

multa do art. 1.336, parágrafo segundo (até cinco cotas) exige quorum de 2/3 dos condôminos

restantes (podendo ser aplicada pelo síndico, se houver previsão na convenção) e se a multa

do caput do art. 1.337 (também de no máximo cinco cotas) exige quorum de 3/4 dos demais

condôminos, não faria nenhum sentido adotar, na hipótese do parágrafo único do art. 1.337

um quorum menor se este dispositivo trata de situação ainda mais grave, havendo

incompatibilidade de convivência.

Se se admitir a desnecessidade do citado quorum, a multa de até dez cotas poderia ser

aprovada pelo voto da maioria simples dos presentes em assembléia, já que, sempre que a lei

210 TJRJ. 14ª Câmara Cível. Apelação Cível 2006.001.50445, Rel. Des. Ferdinaldo Nascimento. Julgado em 20/12/2006. Acórdão Unânime.

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não estabelece quorum especial e a convenção também não estipula quorum mais elevado, a

deliberação pode ser aprovada pelo quorum simples. Diante desse quadro, não nos parece

razoável permitir a aprovação de multa tão grave por quorum tão reduzido.

Também já ressaltamos que ambas as multas do art. 1.337 referem-se ao condômino

anti-social, embora apenas o parágrafo único utilize tal expressão. As duas penalidades são

aplicáveis ao condômino ou possuidor que reiteradamente descumpre os seus deveres perante

o condomínio, com a diferença que a multa equivalente ao décuplo da cota condominial é

aplicada quando a conduta reiterada é grave a ponto de gerar “incompatibilidade de

convivência” com os demais moradores. Se, então, a regulação é a mesma, os dispositivos não

podem ser interpretados isoladamente, como fez a decisão cujo trecho foi acima transcrito.

No que tange à contagem dos votos, esta não oferece qualquer dificuldade para o

intérprete,211 prevalecendo a regra prevista no parágrafo único do art. 1.352, isto é, os votos

devem ser contabilizados segundo a fração ideal de cada unidade imobiliária, salvo se a

convenção estipular outro critério (um voto por unidade, diferentes votos por unidade, dentre

outros).

Ainda sobre a contagem de votos, o legislador fez referência a “condôminos

restantes”. Isso não significa, entretanto, que o condômino multado não possa votar. O que

determinou a lei foi a exclusão do voto do condômino do universo de votos existentes no

condomínio. Assim, por exemplo, se um condomínio possuir 50 apartamentos, serão

necessários 3/4 de 49 votos, ou seja, 37 votos (aproximação de 36,75).

Por outro lado, o mesmo não ocorrerá se o multado for um possuidor. Nessa hipótese,

o universo de “condôminos restantes” será representado por 100% (cem por cento) dos

comunheiros, incluindo o dono da unidade imobiliária que está sendo utilizada pelo

possuidor.

Finalmente, a pessoa a quem se pretende aplicar a multa deve ser especialmente

convocada para a assembléia (não basta o edital de convocação), sendo alertada que na

211 A verdadeira dificuldade é enfrentada pelos demais condôminos para se alcançar quorum tão elevado, pois o nível de comparecimento às assembléias raramente é algo notável, e isso torna a aprovação da multa em grandes condomínios, de mais de 200 unidades, uma tarefa virtualmente impossível.

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reunião os condôminos poderão deliberar pela aplicação da penalidade. E na própria

assembléia, o condômino ou possuidor deve ter a oportunidade de apresentar a sua defesa.

Esse é o sentido do Enunciado nº 92 da 1ª Jornada de Direito Civil, realizada pelo Centro de

Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal: “as sanções do art. 1.337 do novo Código

Civil não podem ser aplicadas sem que se garanta direito de defesa ao condômino nocivo”.

Marco Aurélio Bezerra de Melo, citando o referido enunciado, e exaltando o direito de

defesa de quem esteja na iminência de ser punido, chega a sugerir dois requisitos adicionais

para a aplicação da multa, quais sejam, a previsão na convenção de condomínio de um

procedimento específico para esse fim, e a tipificação das condutas passíveis de gerar a

punição.212

O argumento é respeitável, mas entendemos ser desnecessária a previsão convencional

de um procedimento, bastando que o assunto conste da ordem do dia da assembléia, e que o

condômino ou possuidor a ser eventualmente multado seja convocado, e na reunião se

defender adequadamente. No tocante à previsão exaustiva, seria impossível prever todas as

hipóteses de uso nocivo da propriedade, o que poderia criar situações de impunidade,

contrariando os objetivos da lei.

Obviamente que se o próprio condômino ou possuidor se recusar a discutir o assunto,

não poderá depois alegar que não teve oportunidade de defesa. O Tribunal de Justiça do

Estado do Rio Grande do Sul julgou precisamente esse tipo de alegação. O trecho abaixo

citado integra o acórdão da Décima Sétima Câmara Cível, relatado pelo Desembargador Alzir

Felippe Schmitz:

O apelante reclama da falta de contraditório quando da imposição da pena, porém reconhece ter sido notificado da decisão do conselho consultivo que, em razão das infrações cometidas pelos moradores, deliberou sobre a multa, além de ser incontroversa a ciência de Tânia acerca das penas impostas. O que fica claro é que a moradora não levou a sério as providências do condomínio.

212 Leia-se: “repugna ao bom senso que qualquer sanção seja aplicada a alguém sem que seja oportunizado o direito de defesa. (...) O simples fato de a penalidade não ser aplicada pelo síndico, não nos parece ser o bastante para a efetividade da indigitada garantia constitucional. Desse modo, se o condomínio edilício quiser optar pela possibilidade de aplicação da sanção ao condômino nocivo, terá que constar na Convenção de Condomínio um procedimento para a aplicação da multa e, aconselha-se, um rol de ilícitos passíveis de tão severa sanção (...).”. MELO, Marco Aurélio Bezerra de. Novo código civil anotado, v. V. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 183.

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A questão, como bem revela o depoimento pessoal de Tânia, não foi esclarecida ou contraditada porque ela negou-se a discutir o assunto. Assim, se faltou o contraditório é porque não há entre os condôminos a intenção do diálogo. A animosidade não permitiu que o consenso fosse alcançado. Mas o contraditório foi propiciado aos interessados. Se houve prejuízo à defesa dos condôminos multados ela se deve exclusivamente à inércia deles, devendo eles arcar com os ônus de seu comportamento.213

Do até aqui exposto, é possível concluir que: (i) o legislador previu três distintas

multas aplicáveis ao condômino ou possuidor que promove o uso anormal das partes

privativas ou comuns do condomínio; (ii) existe uma gradação entre tais multas, conforme a

gravidade da situação; (iii) ambas as multas do art. 1.337 referem-se ao condômino ou

possuidor anti-social, com a única diferença que a multa do parágrafo único, mais elevada,

possui um requisito adicional, que é a “incompatibilidade de convivência com os demais

condôminos”; (iv) ao contrário do que ocorre com a multa prevista no art. 1.336, parágrafo

segundo, o síndico, ainda que haja permissão da convenção de condomínio, não pode aplicar

as multas previstas no art. 1.337 pois nesse caso a lei não utilizou, como fez em diversos

artigos, a expressão “salvo disposição diversa na convenção”, nem previu a deliberação

assemblear em “não havendo disposição expressa” da convenção; (v) o quorum para a

aprovação de tais multas é de 3/4 dos condôminos restantes, cujos votos são contados pela

fração ideal, salvo se a convenção estipular critério diferente; e (vi) existe um requisito

adicional, não previsto expressamente em lei, mas decorrente da interpretação constitucional

da legislação, de conferir ao condômino multado oportunidade prévia de defesa.

Conseqüentemente, a multa aplicada fora desses parâmetros será abusiva, e, portanto, passível

de anulação.

Mas ainda é preciso responder a uma última indagação: é possível expulsar o

condômino anti-social?

213 TJRS. 17ª Câmara Cível. Apelação Cível 70011885472/2005, Rel. Des. Alzir Felippe Schmitz. Julgado em 09/03/2006. Acórdão Unânime.

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5.3. Possibilidade de exclusão do condômino anti-social

O art. 1.337, parágrafo único do Código Civil, como já explicitado, diz que “o

condômino ou possuidor que, por seu reiterado comportamento anti-social, gerar

incompatibilidade de convivência com os demais condôminos ou possuidores, poderá ser

constrangido a pagar multa correspondente ao décuplo do valor atribuído à contribuição

para as despesas condominiais, até ulterior deliberação da assembléia.”

A leitura do citado artigo revela, então, que o Código Civil se omitiu quanto à

possibilidade de exclusão do condômino anti-social, penalidade essa que é prevista em alguns

países, como Alemanha, Espanha, Uruguai e México. Na Espanha, por exemplo, a lei prevê

duas formas de punição: a venda forçada do imóvel ou, ainda, a privação de seu uso. A

legislação mexicana, representada pelo Decreto 232 de 14/01/1966 (Ley Sobre El Regimen de

Propiedad y Condominio de los Edificios Divididos en Pisos, Departamentos, Viviendas o

Locales), por sua vez, assim dispõe:

Art. 44. El propietario que reiteradamente no cumpla sus obligaciones podrá ser condenado a vender sus derechos en pública subasta. Para el ejercicio de esta acción por el administrador, deberá proceder la resolución de las tres cuartas partes de los propietarios restantes.

Na Argentina, a Ley de Propiedad Horizontal 13.512/48, embora não tenha previsto a

perda da propriedade, foi mais longe do que o Código Civil brasileiro:

Art. 15. En caso de violación por parte de cualquiera de los propietarios u ocupantes, de las normas del art. 6, el representante o los propietarios afectados formularán la denuncia correspondiente y acreditada en juicio sumarisimo la transgresión, se impondrá al culpable pena de arresto hasta 20 dias o multa en beneficio del fisco, de doscientos a cinco mil pesos. El juez adoptará además las disposiciones necesarias para que cese la infracción, pudiendo ordenar el allanamiento del domicilio o el uso de la fuerza pública si fuera menester. Sin perjuicio de lo dispuesto precedentemente, si el infractor fuese un ocupante no propietario, podrá ser desalojado en caso de reincidência. La acción respectiva podrá ser ejercida por el representante de los propietarios o por el propio afectado.

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A omissão na legislação pátria é bastante criticada na doutrina, como se vê no

comentário de Marco Aurélio S. Viana, que não admite que a assembléia delibere qualquer

outra sanção ao morador anti-social que não seja a multa de até dez cotas condominiais:

(...) O que pode deliberar a assembléia geral? Obviamente ela pode, pelo quorum previsto no art. 1.352, reduzir o valor da multa, ou simplesmente perdoar o faltoso. Não está legalmente em condições de impor valor superior ao teto legal, porque lhe falta autorização legal para tanto. A pretensão punitiva assegurada à assembléia geral esgota-se nos limites previstos em lei, especificados pelo estatuto condominial, ou pelo regimento dele. A nosso ver, falece pretensão punitiva à assembléia geral, porque a imposição de multa é matéria de direito estrito, o que reclama prévia previsão legal a respeito, ou na convenção de condomínio, ou no regimento interno. (...) Segundo essa linha de raciocínio, a assembléia geral, convocada para esse fim, com inclusão da matéria na ordem do dia, pode reduzir a multa, ou mantê-la, mas não aumentá-la. Não poderá impor qualquer outra sanção, a menos que previsto na convenção de condomínio ou no regimento interno. Efetivamente, a convenção de condomínio pode prever as sanções a que estão sujeitos os condôminos ou possuidores. Nesses limites se esgota a sua atuação. Pensamos que a solução legal não satisfaz, porque a multa pode não representar expressão bastante para inibir a ação do condômino ou possuidor nas condições indicadas. O melhor seria ter previsto a possibilidade de ser ele compelido a deixar a unidade autônoma, após decisão judicial.214

O entendimento do citado jurista encontra algum respaldo na jurisprudência. O

Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, embora antes da entrada em vigor do atual

Código Civil, decidiu que não é lícito à assembléia impor ao condômino outra sanção além da

multa pecuniária. No acórdão ficou dito que “não há previsão de despejo compulsório do

condômino que apresente comportamento incompatível, o que mais confirma a absoluta

impossibilidade jurídica do pedido formulado”.215

214 O texto é o seguinte: “O suplício imposto aos moradores pelo mau uso, sobretudo quando convivem com vizinhos nocivos, escandalosos, imorais, barulhentos, desrespeitosos e loucos, vai continuar, se esse mau vizinho for rico. Em todos os países que cultivam o respeito ao ser humano, sobrepujando-o ao da santíssima propriedade, o morador de conduta nociva é desalojado, seja ele proprietário ou não. O projeto foi sensível ao problema, mas adotou solução elitista: o condômino, ou possuidor, que, por causa do seu reiterado comportamento anti-social, tornar insuportável a moradia dos demais possuidores ou a convivência com eles poderá ser constrangido a pagar multa correspondente ao décuplo de suas contribuições. Então, aquela ‘insuportável convivência’, ditada pelo reiterado comportamento anti-social, passará a ser suportável, com o pagamento do décuplo das contribuições condominiais. Assim, a suportabilidade ou insuportabilidade será uma questão de preço. A multa tornará suportável o que era insuportável”. VIANA, Marco Aurélio S. Comentários..., ob. cit., p. 463. 215 TJSP. 2ª. Câmara de Direito Privado. Apelação Cível 112.574-4/5. Rel. Des. J. Roberto Bedran. Julgado em 09/05/2000. Acórdão unânime. In: LOPES, João Batista. Ob. cit., p. 137.

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Antonio Ruggiero formula crítica semelhante, e vai mais longe, chegando a afirmar

que a suportabilidade ou não de determinado condômino ou possuidor pelos demais será

apenas uma questão de preço. A convivência com o morador escandaloso, imoral, barulhento,

desrespeitoso, até então intolerável, passará a ser suportável com o pagamento da multa,

correspondente a dez vezes o valor da contribuição condominial.216

João Nascimento Franco também lamenta a ausência de previsão expressa do Código

Civil com relação à possibilidade de exclusão do condômino ou possuidor anti-social,

ressaltando que essa hipótese é prevista nas legislações modernas, nas quais o comportamento

anti-social grave de um condômino enseja a sua expulsão, e não apenas a aplicação de

multa.217

Por um lado, a exclusão do condômino anti-social, com a venda de sua unidade

autônoma, de fato requer uma previsão legal específica, o que não ocorreu. Diante da ausência

de disposição expressa - como há, aliás, na legislação societária, para o sócio minoritário da

sociedade limitada (art. 1.085 do Código Civil) ou para o sócio da sociedade simples (art.

1.030 do mesmo diploma legal) -, e considerando especialmente o princípio do numerus

clausus, adotado pelo ordenamento jurídico brasileiro, no que se refere aos direitos reais,

configura-se abusiva a imposição de tal medida, pois os modos de perda da propriedade

devem vir expressamente previstos em lei, como ocorre, por exemplo, no art. 1.275 do Código

Civil e no art. 243, parágrafo único da Constituição Federal de 1988 (confisco).

Mas, de outro lado, impedir que a assembléia adote qualquer outra medida que não

seja a imposição de multa de até dez cotas condominiais equivaleria a sujeitar os demais

condôminos ao suplício, pois em muitas situações a aplicação da multa, mesmo quando

alcançado o dificílimo quorum legal, não surte qualquer efeito sobre o condômino ou

possuidor nocivo.

216 RUGGIERO, Antonio Biasi. Questões imobiliárias. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 90. 217 Nas suas palavras: “O comportamento anti-social grave é punido nas legislações modernas não com multa, mas com a exclusão do infrator, como se exclui de uma sociedade um sócio incompatível com os demais. Há mais de 20 anos sugeri esta medida e tive a adesão dos juristas João Batista Lopes (Condomínio, 7ª edição, página 148) e Maria Regina Pagetti Moran (Exclusão do condômino nocivo, página 377), ambos recomendando que a lei futura regulasse a matéria”. FRANCO, J. Nascimento. Possibilidade de exclusão do condômino anti-social. Artigo publicado no Jornal Tribuna do Direito. Fevereiro/2003. Caderno Especial – Novo Código Civil, p. 9.

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A solução que se afigura mais legítima é interpretar a parte final do art. 1.337,

parágrafo único (“até ulterior decisão da assembléia”) em sintonia com o art. 1.277, que

estatui que o proprietário ou o possuidor de um prédio tem o direito de fazer cessar as

interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde dos que o habitam, provocadas

pela utilização de propriedade vizinha.

Essa interpretação sistemática permite concluir que o legislador autorizou a

assembléia a impor ao condômino ou possuidor anti-social as medidas necessárias para cessar

o mau uso das partes comuns ou privativas, ainda que isso implique na restrição ao uso e/ou

ao gozo das partes comuns ou privativas.

Gustavo Tepedino, em análise do art. 1.337 do Código Civil, defende que a assembléia

geral, desde que conceda o direito à ampla defesa, pode restringir o uso de determinadas

partes comuns pelo condômino anti-social, e o uso do próprio imóvel, sempre que a aplicação

da multa não for suficiente para solucionar o problema, e melhorar a conduta do

condômino.218

Marco Aurélio Bezerra de Melo, sublinhando a omissão legal, entende da mesma

forma. Mencionando que a propriedade deve cumprir a sua função social, ele afirma que a

simples aplicação da multa não freará o condômino abastado, que não se importará em pagar

a multa, e continuar a praticar os atos reprovados pela comunidade, e que faltou coragem ao

legislador do atual Código para seguir a solução adotada por outros países, e explicitar a

possibilidade de interdição do uso do imóvel condominial.219

218 O autor assim coloca a questão: “Na hipótese de o condômino não melhorar a sua conduta, insensível às punições pecuniárias, o Código não prevê uma solução definitiva, sendo certo que, em alguns casos, a pena pecuniária, só por si, não se mostra suficiente a solucionar o problema. Assim ocorrendo, afirma-se que nada mais se poderá fazer, alegando-se, dentre outras razões, que a exclusão do condômino anti-social violaria o direito de propriedade. Entretanto, o interesse coletivo deve prevalecer sobre o individual, e a função social da propriedade autoriza a restrição, imposta pela Assembléia, nestes casos, à utilização pelo condômino anti-social de certas áreas do condomínio ou até mesmo a proibição de seu ingresso no imóvel. Ter-se-ia, neste caso, uma situação peculiar em que o proprietário, embora titular do domínio, estaria privado do direito de freqüentar o seu imóvel, em razão de sua conduta reprovada pelos demais condôminos. Tal medida extrema só será legítima se respeitar o amplo direito de defesa e o devido processo legal, sendo aplicação última de um sistema progressivo de sanções por parte do condomínio, justificável como meio de preservar o convívio social entre os demais co-proprietários”. TEPEDINO, Gustavo. Os direitos reais... Ob. cit., p. 168. 219 Confira-se: “O Código Civil não teve a coragem encontrada em legislações alienígenas de prever para a hipótese do parágrafo único a interdição temporária do uso da unidade imobiliária ou a simples privação da utilização do imóvel em função do comportamento anti-social que torne insuportável a convivência com os outros condôminos. Imagine-se uma situação em que o condômino abastado prefira pagar as multas arbitradas nos moldes previstos no artigo anotado e continuar realizando as suas festas madrugada adentro, praticando comércio que acarrete em um alto consumo de água e mantendo os seus animais ferozes no interior do imóvel,

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De fato, admitir que a multa é a única possibilidade de repressão ao condômino ou

possuidor anti-social, implicaria em uma inversão de valores. Significaria dizer que ele, desde

que pague as multas que lhe forem sendo impingidas, tem sinal verde para se comportar como

bem entender.220

Para Américo Isidoro Angélico, pode o juiz, diante da prova inequívoca e desde que

convencido da verossimilhança dos fatos, decidir pela exclusão do condômino anti-social,

retirando deste o direito de conviver naquele condomínio. Mas, o bem continuará em seu

patrimônio, podendo o proprietário locá-lo, emprestá-lo ou vendê-lo a terceiros.221

Sílvio Venosa também se mostra partidário da possibilidade de interdição da unidade

do condômino anti-social, inobstante a omissão legal. Leiam-se as razões de seu

posicionamento:

Verifica-se, portanto, que as multas podem atingir valores elevados. Contudo, haverá situações que nem mesmo essa imposição será suficiente

entre outras práticas ainda mais condenáveis. O legislador talvez tenha imaginado que a inovação no sentido propugnado malferiria a garantia constitucional ao direito de propriedade (art. 5º., XXII, da CRFB). Entretanto, (...) o direito de propriedade deve cumprir a função social (art. 5º., XXIII, da CRFB) e não pode revestir-se de abuso de direito de propriedade (art. 1.228, §2º.), sob pena de configuração de ato ilícito (art. 188, I, a contrario senso). Registre-se que o próprio art. 1.288, §4º., do Código Civil, prevê a possibilidade de privação de um bem para o caso lá previsto, sem importar em perda do direito de propriedade. (...) Desta forma, entendemos que a assembléia, com o quorum especial, previsto no caput (três quartos), poderá deliberar a interdição temporária do uso da unidade habitacional ou até mesmo a privação da coisa por parte do condômino ou do possuidor. Forçoso reconhecer que seria melhor a previsão expressa, até mesmo porque a norma é restritiva de direitos. Contudo, nos parece a proposta sugerida, diante de impasses insolúveis e esgotadas todas as alternativas, é a única forma apta a solucionar a questão”. Ob. cit., pp. 182-183. O mesmo autor chegou a propor o seguinte enunciado, não aprovado, na III Jornada de Direito Civil: “Ao condômino anti-social a que se refere o art. 1.337, parágrafo único, do Código Civil, pode ser aplicada a pena, observado o devido processo legal, de interdição judicial temporária ou definitiva da unidade autônoma, se assim for decidido em assembléia ulterior àquela que aplicou a sanção pecuniária de pagamento do décuplo da cota condominial”. AGUIAR Jr., Ruy Rosado (org.). Jornada de Direito Civil. Brasília:CJF, 2005, p. 333-334. 220 Sobre o poder de escolha do caminho ilícito, Karl Engisch assim escreveu: “Ouçamos o grande jusfilósofo italiano DEL VECCHIO falar – com intuito de repúdio, claro – daqueles que declaram que qualquer pessoa pode praticar um crime, desde que esteja pronta a sofrer a respectiva pena. O Direito tem um caráter ao mesmo tempo hipotético e categórico. Quanto à sua substância, a regra jurídica é um imperativo categórico. Ela exige incondicionalmente. Seria lastimável pensar que a regra nos atribui a escolha entre matar ou não matar, entre a prisão e a liberdade, que nos é lícito cometer tranquilamente um homicídio, desde que estejamos prontos a passar a vida na prisão. (...) O Direito moderno proíbe o homicídio com tanta firmeza como a Lei mosaica. De igual modo, constitui um imperativo categórico que o transgressor seja punido. KANT viu isso muito bem. É também um preceito categórico o que ordena o cumprimento das obrigações assumidas através de declarações de vontade. Todavia, o certo é que depende de nós o querermos ou não vincular-nos. Está nas nossas mãos o poder de utilizar as regras e os preceitos jurídicos como meio para a modelação planeada das nossas vidas”. Ob. cit., p. 52-53. 221 ANGELICO, Américo Isidoro. Exclusão do condômino por reiterado comportamento anti-social à luz do Novo Código Civil. Boletim de Direito Imobiliário, n. 24, pp. 3-4, out/2003, p. 3.

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para extirpar o problema da vida condominial. Note que essas punições podem atingir não apenas o condômino, em sentido estrito, como qualquer possuidor da unidade, não importando a que título seja essa posse ou mera detenção. Nota-se que o legislador do novo código chegou muito próximo, mas não ousou admitir expressamente a possibilidade de que o condômino ou assemelhado seja impedido definitivamente ou por certo prazo de utilizar a sua unidade. Não temos dúvida, porém, tendo em vista o sentido social do direito de propriedade que ora se decanta na legislação, que essa solução pode e deve ser tomada pela assembléia geral em casos extremos. É de se perguntar se deve o condomínio suportar em suas dependências a presença de um baderneiro contumaz ou de um traficante de drogas. É evidente que a futura jurisprudência deve atentar para essas circunstâncias. Esse é apenas um dos aspectos, dentre tantas questões que afloram quotidianamente no direito condominial.222

João Nascimento Franco, na vigência da Lei 4.591/64, já havia manifestado sua

opinião favorável à exclusão do condômino nocivo, ou pelo menos à interdição do uso,

ressaltando que os abusos têm de ser punidos, pois não é justo que os demais moradores sejam

forçados a suportar a presença do condômino, cujo comportamento seja incompatível com os

bons costumes e com a moralidade. Para o autor, inclusive, não será inconstitucional lei que

venha a prever, mais do que a interdição, a possibilidade de alienação forçada da unidade

imobiliária, pois o direito de propriedade, embora seja constitucionalmente garantido, deve

ser exercido de forma a não prejudicar o bem-estar social.223

Melhim Namen Chalhub aduziu que existem situações em que a discussão ultrapassa

os limites do direito de vizinhança e da disciplina do condomínio edilício, recaindo no campo

do direito penal. Nessa hipótese, haveria o interesse da sociedade, e não somente do

condomínio, de excluir a pessoa do convívio social, até porque, argumenta o autor, “se a

sanção se limitar, em tais casos, à exclusão, o condômino excluído passará a fazer uso nocivo

de outro apartamento, em outro condomínio, e lá poderá adotar igual comportamento anti-

social”.224

222 VENOSA, Silvio Artigo publicado no Valor Econômico de 19/02/2002, p. E2 223 Assim se expressa o autor: “o preceito constitucional que assegura o direito de propriedade não conflitará com a lei ordinária que prescrever a interdição temporária do uso, ou a alienação compulsória do apartamento cujo titular cause intranqüilidade à vida condominial. Isso porque aquele direito tem de ser exercido visando ao bem-estar social, nunca para prejudicá-lo na sua realização prática.” FRANCO, J. Nascimento. Condomínio...Ob. cit., p. 185. 224 CHALHUB, Melhim Namem. Condomínio em edificações. Penalidades previstas no Código Civil de 2002. Questionamento sobre a possibilidade de exclusão de condômino anti-social. Palestra proferida no Seminário “Questões imobiliárias e o novo código civil”, promovido pelo CEDES – Centro de Estudos e Debates do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, realizado nos dias 23 a 26 de outubro de 2003, em Teresópolis, RJ. 2003. 13 p. Mimeografado, p. 9.

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Como se vê, a assembléia geral, embora esteja impedida de decretar ou mesmo

requerer em juízo a perda da propriedade do condômino anti-social, pode esse órgão

deliberativo, sem com isso ficar caracterizado o abuso do direito, adotar outras medidas

menos drásticas ao condômino ou possuidor, tais como a interdição da unidade, ou a

paralisação de determinada atividade.225 Mas a medida deve ser tomada apenas se outra

menos grave não existir, e se sua adoção for estritamente necessária, devendo guardar estreita

proporcionalidade com a gravidade da conduta, numa justa medida entre a garantia do direito

do condômino e os interesses dos condôminos restantes.

Nesse sentido, Vilson Rodrigues Alves, citando Cesare Baldi, cita o exemplo de uma

padaria, cuja emissão de fumaça produz efeitos nocivos aos moradores do edifício onde ela

situa. O fechamento do estabelecimento só se justificará se não existir outra solução passível

de eliminar o problema, tal como a instalação de uma chaminé.226

Melhim Namen Chalhub indaga, no caso de o condomínio pretender afastar o

locatário, se o condômino-locador deveria participar do procedimento de punição do

inquilino, ou pelo menos ser avisado da situação, para, querendo, intervir e, se achar

conveniente, tentar evitar a aplicação da sanção, que lhe traria reflexos patrimoniais,

consistentes na cessação do recebimento dos aluguéis até encontrar um novo inquilino.227 No

nosso entendimento, a resposta há de ser negativa. A sanção poderá ser aplicada ao locatário

ainda que o locador não tenha sido chamado para intervir, já que a escolha do locatário foi

feita exclusivamente pelo condômino-locador, que assumiu os riscos decorrentes dessa

escolha.

Aliás, o locador naturalmente tomará conhecimento da possibilidade de punição, eis

que todos os condôminos precisam ser convocados para qualquer assembléia, e a aplicação da

225 Naturalmente, em caso de resistência do condômino, o condomínio precisará ingressar em juízo para implementar a medida, vedada a auto-tutela. 226 Leia-se o trecho, no qual o autor ainda traz um segundo exemplo, de um campo de futebol: “Se do uso da propriedade, consistente na exploração das atividades de uma padaria, irradiam-se efeitos nocivos aos vizinhos do prédio (...), lesados em seu sossego pela fumaça dela proveniente, a composição do conflito não se dará com o fechamento do estabelecimento se, erguidas chaminés a tal altura, possível, a fumaça não mais prejudicar a vizinhança. Da mesma forma, não se interditará o campo de futebol vizinho se o uso nocivo da propriedade alegado – os jogadores satisfazem suas necessidades fisiológicas no imóvel vizinho, lesado ainda pelas bolas de futebol para ali lançadas – pode ser afastado, e.g., com a construção de sanitários e levantamento de tela em altura suficiente a evitar a ultrapassagem das bolas”. ALVES, Vilson Rodrigues. Uso nocivo da propriedade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992, p. 619. 227 Ob. cit., p. 10.

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multa deve constar da ordem do dia. Além disso, na qualidade de assistente, poderá o

condômino intervir no processo que visar à exclusão do inquilino.

Embora não tenha se referido ao condômino anti-social, há um precedente no Tribunal

de Justiça do Rio de Janeiro em um caso que poderia ser perfeitamente caracterizado como

conduta anti-social, eis que a hipótese é de uso nocivo da propriedade. A Terceira Câmara

Cível considerou legítima a deliberação assemblear que vedou a locação para temporada de

uma unidade autônoma:

Constitucional. Civil. Condomínio. Deliberação proibindo locação de unidade por temporada a turista estrangeiro. Matéria não constante da ordem do dia. Quorum. Nulidade. Lucros cessantes. O direito de propriedade não é absoluto. Tratando-se de condomínio edilício, há regra específica vedando a utilização das unidades de maneira prejudicial ao sossego, à segurança e aos bons costumes (art. 1.336 do CC). Locação a turista estrangeiro, por poucos dias, que utiliza o imóvel principalmente para orgias, levando seus parceiros, a qualquer hora do dia ou da noite, para as unidades, não só prejudica a segurança do prédio, como o sossego e os bons costumes. Logo, não viola direito de propriedade e não pode ser considerada xenófoba nem malfere qualquer regra constitucional deliberação condominial que proíbe essa modalidade de locação a turistas estrangeiros, porque não ofende qualquer direito deles de natureza personalíssima. A garantia de igualdade consagrada no art. 5. da CF é entre brasileiros e estrangeiros residentes no Brasil, igualdade que não se estende ao estrangeiro não-residente, embora não se possa admitir tratamento abusivo a turista que entra regularmente no país, em relação aos demais direitos previstos no art. 5. da CF. Nulidade da deliberação, contudo, por vício insanável de forma de convocação e por inobservância do quorum especial imposto pela Convenção e pela Lei. Lucros cessantes. Inexistência de prova de sua ocorrência. Recursos desprovidos.228

Pode-se, assim, concluir, que a única exclusão possível deve ser entendida no sentido

de desapossamento, o qual, por sua vez, somente ocorrerá caso fique cabalmente demonstrado

que inexistem outras medidas menos drásticas, capazes de fazer cessar o mau uso da parte

comum do prédio ou da parte privativa.

228 TJRJ, 13a. Câmara Cível. Apelação Cível 2005.001.15583. Rel. Des. Nametala Jorge. Julgado em 15/10/2005. Acórdão Unânime.

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CONCLUSÃO

Ao longo deste trabalho, mergulhamos no universo condominial, analisando situações

reais e imaginárias, à procura do abuso do direito, e não foi difícil encontrá-lo. Mas isso não

bastava; a busca seria em vão se não fôssemos capazes de estabelecer parâmetros objetivos

para a identificação do abuso em cada caso.

Com esse objetivo, primeiro lançamos um olhar sobre a relação jurídica real, para

concluir que ela não se estabelece entre sujeito e coisa, nem entre sujeitos, mas sim entre

situações subjetivas, patrimoniais e existenciais, ainda que essas situações pertençam a uma

mesma pessoa. Tanto a coisa (objeto) como o sujeito (titular) são elementos externos à relação

jurídica real. Os interesses exprimidos pelas situações subjetivas em jogo, enfim, devem ser

analisados conforme os valores constitucionais vigentes no ordenamento, para decidir qual

deles (ou mesmo se ambos ou nenhum), e em que medida, devem ser tutelados.

Como conseqüência da transformação axiológica por que passou e continua a passar o

ordenamento brasileiro, especialmente a partir do advento da atual Constituição Federal, a

clássica distinção entre direitos reais e direitos obrigacionais entrou em xeque. O princípio do

numerus clausus não significa um engessamento completo dos direitos reais pela atuação do

legislador. Existe um campo fértil para o exercício da autonomia privada no campo das

relações jurídicas reais, o que inclui o condomínio edilício, que deve, todavia, ter a sua

legitimidade permanentemente averiguada, com base nos valores constitucionais,

especialmente através do princípio da função social da propriedade.229

Isso se aplica à regulação do condômino anti-social pela convenção de condomínio e

pelas decisões da assembléia geral de condôminos, que devem respeitar tais limites no

momento de estabelecer os padrões de conduta e as penalidades dentro de determinada

comunidade condominial.

229 Como destaca André Gondinho, “considerando-se o tipo real um tipo aberto, passível de modelação pela autonomia da vontade, a função social da propriedade deverá ser respeitada quando da atuação da vontade privada”. Ob. cit., p. 139.

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Vimos que o instituto do abuso do direito pode ser facilmente aplicado na seara

condominial, e, mais do que isso, que a sua caracterização, em se tratando de condomínio

edilício, não apenas pode, como deve ser feita a partir da função social da propriedade, que

constitui um limite interno, e não externo, à propriedade horizontal. Se e enquanto cumprir a

sua função social é que a propriedade do condômino – ou o seu uso exclusivo – será

tutelada.230

Os temas eram inúmeros, e para evitar um desvio de rota, elegemos quatro assuntos

que consideramos mais profícuos: o critério de rateio de despesas, as vagas de garagem, as

partes comuns de uso exclusivo, e o condômino anti-social.

Em relação à divisão das despesas condominiais, verificamos que o condômino – ou

conjunto de consortes – detentor de mais de 2/3 das frações ideais, embora tenha o direito de

eleger o critério a ser adotado, estará exercendo esse direito com abuso se utilizá-lo para gerar

o seu próprio enriquecimento sem causa. Esse será um evidente desvio da função social da

propriedade; o ordenamento jurídico, ao atribuir esse poder ao condômino, certamente não o

fez com a finalidade de permitir o seu enriquecimento sem causa, em detrimento dos demais

condôminos. O mesmo se diga do co-proprietário que, com o mesmo objetivo abusivo, votar

contra a alteração do rateio.

No tocante às partes comuns de uso exclusivo, é preciso abandonar o esquema

maniqueísta hoje vigente, de exigir a unanimidade de votos para a concessão e para a

retomada das partes comuns. Inobstante o consentimento de todos os condôminos seja a regra,

ela comporta muitas exceções. E invocar a falta de unanimidade para negar a concessão ou a

retomada nesses casos será um exercício abusivo do direito, embora não se negue eventual

direito à indenização do condômino que perdeu o uso exclusivo – seja a indenização das

benfeitorias que realizou, seja pela desvalorização que o imóvel poderá sofrer.

230 Conforme destaca Vladimir Mucury Cardoso: “Enfim, numa visão civil-constitucional, os valores que inspiram o ordenamento jurídico, e cuja violação no exercício de um direito caracteriza o abuso, devem ser buscados na tábua axiológica insculpida na Constituição, logo, no ápice do ordenamento jurídico. Nessa perspectiva, destaca-se a necessidade de respeito aos interesses existenciais que se encontrem em jogo numa determinada situação jurídica, na qual se insira o direito que se pretende exercer. A inobservância desses interesses, no exercício do direito, ocasiona o desmerecimento de tutela do ato, que se tornará ilegítimo por configurar abuso do direito”. CARDOSO, Vladimir Mucury. O abuso do direito na perspectiva civil-constitucional. In: Princípios do direito civil contemporâneo. Coord: BODIN DE MORAES, Maria Celina. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 89.

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Para se saber quando o condomínio poderá exigir a devolução da parte comum cujo

uso exclusivo fora um dia outorgado a um ou a alguns dos co-proprietários, propõe-se o

critério da utilidade, que possui duas vertentes: a patrimonial e a existencial. Pela utilidade

patrimonial, que considera a utilidade da parte de uso exclusivo em relação à unidade

autônoma do condômino, e em relação às partes comuns do condomínio, quanto maior for a

disparidade entre a necessidade do local para o condomínio, e a voluptuariedade da área para

o consorte, maior a probabilidade de que, no caso concreto, a retomada possa ser exigida.

O critério da utilidade existencial, a seu turno, considera a essencialidade daquela

parte comum em relação à pessoa do condômino – ou possuidor – que a utiliza com

exclusividade, e considerando-se também as pessoas dos demais co-proprietários. Para quem

aquela área é ou será mais essencial, e para quem será apenas útil ou supérflua? Em outras

palavras, que destinação – presente de quem usa ou futura de quem pretende usar – estará

mais em consonância com a função social da propriedade, e os valores constitucionais que ela

deve, inafastavelmente, representar?

A propriedade sob o prisma constitucional, funcionalizada,231 deve atender ao critério

da utilidade patrimonial, e principalmente ao da utilidade existencial, pois, como diz Gustavo

Tepedino,

pode-se aceitar como verdadeira, também no ordenamento jurídico brasileiro, a conclusão de ‘que é constitucionalmente ilegítimo não apenas o estatuto proprietário que concede ao titular poderes supérfluos ou contraproducentes em face do interesse (constitucionalmente) perseguido, como também o estatuto que deixa de conceder ao proprietário os poderes necessários para a persecução do mesmo interesse.232

Esses dois critérios devem ser aplicados simultaneamente, e sempre haverá

prevalência, caso eles levem a soluções diferentes, do critério da utilidade existencial, pois é

ele que privilegia a situação extrapatrimonial, a pessoa, que hoje ocupa o vértice do

ordenamento jurídico.

231 Pietro Perlingieri anota que, sendo o aspecto funcional marcante na propriedade, a relação entre o proprietário e terceiros não é de subordinação, e sim de cooperação, e por isso que o sistema “às vezes dá prevalência ao interesse do proprietário, outras vezes àqueles de outros sujeitos”. Perfis..., Ob. cit., p. 222. 232 Contornos... Ob. cit., p. 328.

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Quando o assunto é vaga de garagem, as restrições que a coletividade pode impor ao

uso, à fruição e à disposição delas, variam sensivelmente conforme a sua natureza jurídica

seja de parte comum de uso comum, parte comum de uso exclusivo, parte privativa acessória,

ou unidade imobiliária. Aqui, mais uma vez, é necessário se orientar pelo princípio da função

social da propriedade, que, nessa matéria, impõe a isonomia como regra no uso das vagas,

especialmente quando um rodízio se faz necessário. E tratar isonomicamente os co-

proprietários importa, por exemplo, em conceder prioridade de localização a quem

comprovadamente necessitar de uma vaga específica, como o idoso ou o deficiente físico.

Finalmente, o condômino anti-social, que é um conceito jurídico indeterminado, cujo

conteúdo deve ser axiologicamente preenchido. Enquadrar-se-á na noção de anti-social todo

condômino ou possuidor que reiteradamente descumprir os seus deveres perante o

condomínio. Tais deveres, além de outros que a convenção ou a assembléia geral, dentro dos

limites antes referidos, resolverem estipular, são aqueles previstos nos incisos II a IV do art.

1.336, ou seja: (i) não realizar obras que comprometam a segurança da edificação; (ii) não

alterar a cor e a forma da fachada, das partes e esquadrias externas; e (iii) dar às suas partes a

mesma destinação que tem a edificação, e não as utilizar de maneira prejudicial ao sossego,

salubridade e segurança dos possuidores, ou aos bons costumes. Para se aferir a existência e a

gravidade de tais violações, o intérprete deve se valer do princípio da função social da propriedade, e

também do critério previsto no art. 1.277 do Código Civil, que manda levar em conta a natureza da

utilização, a localização do prédio, atendidas as normas que distribuem as edificações em

zonas, e os limites ordinários de tolerância dos moradores da vizinhança.

O descumprimento do dever de pagar as cotas condominiais (art. 1.336, I) não pode

servir de motivo para considerar alguém como condômino anti-social. Em primeiro lugar

porque o art. 1.337 refere-se também ao possuidor, pessoa que não tem a obrigação de

contribuir no rateio das despesas de condomínio. A duas porque a inadimplência quase

sempre decorre da dificuldade financeira pela qual o comunheiro está passando; aplicar-lhe

uma penalidade pecuniária apenas agravaria a situação do condômino, e não resolveria o

problema do condomínio. Finalmente, tal postura não parece atender ao princípio da função

social da propriedade e da solidariedade. Em outras palavras, essa multa, aplicada ao

condômino inadimplente, será, em regra, abusiva.

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Diversamente do que comumente se alega, a noção de condômino anti-social não está

prevista apenas no parágrafo único do art. 1.337, mas também no caput do referido artigo. O

reiterado descumprimento dos deveres condominiais, observadas as exceções antes colocadas,

é o quanto basta para considerar-se um condômino ou possuidor como sendo anti-social. A

única diferença entre as duas situações é que a hipótese do parágrafo único prevê uma anti-

sociabilidade mais grave, suficiente para gerar incompatibilidade de convivência com os

demais moradores, e por isso sujeitando o infrator a uma penalidade duas vezes mais alta.

Essa multa, de até o décuplo do valor previsto para as contribuições condominiais, é a última,

e mais grave, de uma série de três penalidades pecuniárias aplicáveis para fazer cessar o uso

nocivo da propriedade.

A expressão “até ulterior decisão da assembléia”, em que pesem os entendimentos em

sentido contrário, não autoriza o síndico a aplicar a multa de até cotas condominiais ao

infrator. Somente a multa prevista no parágrafo segundo do art. 1.336 (violação simples dos

deveres condominiais) pode ser aplicada diretamente pelo administrador, e isso se houver

previsão na convenção de condomínio. Caso contrário, até mesmo essa multa dependerá de

deliberação assemblear, com o voto de 2/3 dos condôminos restantes.

Portanto, em qualquer caso, a aplicação das multas previstas no art. 1.337 sempre

dependerá de aprovação da assembléia geral, devendo a votação alcançar a aquiescência de

pelo menos três quartos dos condôminos restantes. Nem mesmo se a convenção de

condomínio previr a imposição da multa diretamente pelo síndico será possível dispensar a

decisão assemblear. A convenção, como reflexo da autonomia privada dos condôminos,

somente terá legitimidade para atuar quando a lei se omitir sobre a matéria, quando transferir

à convenção expressamente a tarefa de regular determinado assunto, ou ainda quando permitir

que a convenção estabeleça em sentido contrário.

Há um requisito adicional, que a lei não previu expressamente em lei, mas que

decorrente da aplicação direta dos direitos fundamentais às relações privadas. Trata-se da

necessidade de conferir ao condômino multado oportunidade prévia de defesa, sob pena de ser

abusiva a sanção eventualmente imposta.

Ao contrário de algumas legislações estrangeiras, o Código Civil não estipulou a

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possibilidade de alienação forçada da unidade imobiliária pertencente ao condômino anti-

social. Mas, se por um lado, a exclusão do condômino anti-social, com a perda da

propriedade, de fato requer uma previsão legal específica – o que não ocorreu –, por outro,

isto não significa que a assembléia esteja de mãos atadas.

A solução que nos parece mais adequada é interpretar a expressão “até ulterior decisão

da assembléia”, contida na parte final do parágrafo único art. 1.337, em conjunto com o art.

1.277, que estatui que o proprietário ou o possuidor de um prédio tem o direito de fazer cessar

as interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde dos que o habitam, provocadas

pela utilização de propriedade vizinha. Isso leva à conclusão que a lei autorizou a assembléia

a impor ao condômino ou possuidor anti-social as medidas necessárias para cessar o mau uso

das partes comuns ou privativas, ainda que isso implique na restrição ao uso e/ou ao gozo das

partes comuns ou privativas.

Entretanto, uma medida tão drástica, para não configurar abuso do direito, deve ser

tomada apenas se outra menos grave for impossível de ser aplicada, ou evidentemente não se

prestar à solução do caso; sua adoção deve ser estritamente necessária, devendo ser

proporcional à gravidade da conduta, numa justa medida entre a garantia do direito do

infrator, seja ele condômino ou possuidor, e os interesses dos demais moradores.

Enfim, as situações abusivas em que os condôminos e possuidores se envolvem, ou

provocam, podem afivelar uma quantidade de máscaras que varia numa escala rumo ao

infinito, muito além da criatividade do intérprete; contudo, a função social da propriedade

mostra-se um critério objetivo, racionalmente comprovável, apto a identificar e controlar tais

situações.

A propriedade condominial, funcionalizada, deve, então, servir como instrumento de

tutela e promoção da dignidade da pessoa humana, valor máximo do ordenamento,233 que

através dos seus quatro substratos – igualdade, liberdade, integridade psicofísica e

solidariedade – convoca todos à construção de um condomínio constitucionalizado, onde a

pessoa seja o ponto de referência objetivo. Nas palavras de Maria Celina Bodin de Moraes, a

233 “A pessoa, e não o patrimônio, é o centro do sistema jurídico, de modo que se possibilite a mais ampla tutela da pessoa, em uma perspectiva solidarista que se afasta do individualismo que condena o homem à abstração”. FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 42

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solidariedade social, na atual ordem constitucional, como princípio geral do ordenamento

jurídico, dotado de força normativa capaz de tutelar o respeito devido a cada um, não pode

mais ser entendida como resultante de ações eventuais, éticas ou caridosas.234 Conforme

indaga a autora:

Como seria possível obrigar alguém a ser solidário? Não seria o mesmo que querer exigir o sentimento de fraternidade entre as pessoas? A dificuldade está unicamente em se continuar atribuindo à solidariedade um caráter essencialmente beneficente. Não se quer exigir que alguém sinta algo de bom pelo outro; apenas que se comporte como se assim fosse.235

A Constituição, quando estabelece como um dos objetivos fundamentais da República

a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, não está, como diz Daniel Sarmento,236

apenas ditando uma diretriz política sem nenhuma eficácia normativa; muito pelo contrário,

ela expressa um princípio que, não obstante a sua abertura, é dotado de eficácia imediata entre

os particulares, e que atua como um potente farol de interpretação, capaz de preencher

axiologicamente o conteúdo da propriedade condominial, funcionalizando-a e revelando o

abuso do direito, sempre que ele ocorrer.

O condomínio edilício não deve ser o palco da concorrência entre indivíduos isolados,

perseguindo projetos pessoais antagônicos, mas sim um espaço onde o individualismo ceda

lugar ao diálogo e à cooperação, entre condôminos e possuidores livres e iguais. Esse instituto

tão relevante, que integra o cotidiano de uma considerável parcela da população urbana, não

pode ficar imune aos novos paradigmas do Direito Civil, e precisa ser relido à luz dos atuais

valores, pavimentando-se a estrada para a concretização do projeto constitucional. As bases

estão construídas. Agora temos que seguir em frente.

234 Danos à Pessoa Humana..., ob. cit., p. 115-116. 235 Danos à Pessoa Humana..., ob. cit., p. 115. 236 Ob. cit., p. 338.

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