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92 I éPOCA I 4 de agosto de 2014 cidade americana de Detroit recebeu, no fim de junho, uma conferência apropriada para a vocação viril da cidade, con- siderada por décadas o centro da in- dústria automobilística mundial. Um grupo de 200 pessoas, em sua maio- ria homens, reuniu-se na periferia, num centro para veteranos de guerra, com o objetivo de discutir as amea- ças enfrentadas por eles na sociedade moderna. Na pauta da Primeira Con- ferência Internacional sobre as Ques- tões dos Homens não estavam temas como crises econômicas ou violên- cia nas ruas, assuntos que costumam preocupar adultos em idade produtiva. O debate era de outro gênero: como as conquistas femininas das últimas décadas tornaram o mundo um lugar mais hostil para os homens – e o que eles podem fazer para se proteger do crescente poder feminino. “Temos o direito de não sofrer vio- lência doméstica nem de ser acusados injustamente de violentar mulheres”, diz o americano Dean Esmay, um dos responsáveis por A Voice for Men (Uma Voz para os Homens, em português), organização que planejou o evento. Por mais que as estatísticas desmintam, esses homens sentem que vivem num mundo dominado por mulheres. A A convenção, marcada para acon- tecer num grande hotel no centro de Detroit, foi transferida para a periferia depois que a organização, conhecida pela sigla AVfM, afirmou ter sofrido ameaças de atentados de grupos fe- ministas. Mesmo sem exibir provas, a AVfM conseguiu arrecadar pela in- ternet, em 24 horas, US$ 25 mil para reforçar a segurança do evento. A eficá- cia da mobilização virtual é um indício da popularização desse tipo de grupo, mesmo no Brasil.“Temos crescido num ritmo rápido”, diz o paulistano Aldir Gracindo, de 42 anos, editor da página brasileira da AVfM. Não é difícil encontrar outros núcleos parecidos no país. Eles não têm a organização formal da AVfM e limitam-se a grupos de discussão na internet, em que os usuários resistem em revelar a identidade. Numa busca rápida pelo Facebook, é possível en- contrar pelo menos dez páginas brasi- leiras dedicadas ao que é chamado de masculinismo: a defesa dos interesses dos homens num mundo que, segundo eles, favorece crescentemente as mu- lheres. Esses grupos de debate contam com cerca de 80 mil participantes. Fora do Facebook, o Fórum do Búfalo tem 1.000 integrantes. Os participantes desses grupos querem ser chamados de defensores dos direitos dos homens. Os estudio- sos das ciências sociais consideram “masculinistas” um termo mais ade- quado. A palavra marca a oposição às feministas, mulheres que lutam desde o começo do século passado pela am- pliação dos direitos femininos. “Esses homens acham que precisam proteger seus privilégios porque as mulheres, finalmente,conquistaram a igualdade”, diz a socióloga americana Lisa Wade, especialista em questões de gênero. “Elas têm um nível igual ou maior de educação formal e ocupam os mesmos cargos que eles nas empresas. Eles que- rem impedir esse progresso.” Entre as bandeiras masculinistas há causas que contam com a simpatia das feministas, como o aumento da licença-paternidade ou o fim da cul- tura que atribui à mãe a tutela dos s DEBATES E PROVOCAçõES Um movimento internacional promete lutar pelos direitos dos homens contra a opressão do feminismo Em defesa do macho oprimido Felipe Germano e Júlia Korte O MASCULINISMO TEM 80 MIL SIMPATIZANTES EM COMUNIDADES VIRTUAIS BRASILEIRAS Montagem sobre foto Thinkstock

Em defesa do macho oprimido

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Matéria publicada na revista Época sobre o Masculinismo, movimento que afirma defender os "diretos dos homens", enquanto se envolve em denúncias de misoginia e crimes de ódio.

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cidade americana de Detroitrecebeu, no fim de junho,uma conferência apropriada

para a vocação viril da cidade, con-siderada por décadas o centro da in-dústria automobilística mundial. Umgrupo de 200 pessoas, em sua maio-ria homens, reuniu-se na periferia,num centro para veteranos de guerra,com o objetivo de discutir as amea-ças enfrentadas por eles na sociedademoderna. Na pauta da Primeira Con-ferência Internacional sobre as Ques-tões dos Homens não estavam temascomo crises econômicas ou violên-cia nas ruas, assuntos que costumampreocupar adultos em idade produtiva.O debate era de outro gênero: comoas conquistas femininas das últimasdécadas tornaram o mundo um lugarmais hostil para os homens – e o queeles podem fazer para se proteger docrescente poder feminino.

“Temos o direito de não sofrer vio-lência doméstica nem de ser acusadosinjustamente de violentar mulheres”,diz o americano Dean Esmay, um dosresponsáveis por A Voice for Men (UmaVoz para os Homens, em português),organização que planejou o evento.Por mais que as estatísticas desmintam,esses homens sentem que vivem nummundo dominado por mulheres.

a A convenção, marcada para acon-tecer num grande hotel no centro deDetroit, foi transferida para a periferiadepois que a organização, conhecidapela sigla AVfM, afirmou ter sofridoameaças de atentados de grupos fe-ministas. Mesmo sem exibir provas,a AVfM conseguiu arrecadar pela in-ternet, em 24 horas, US$ 25 mil parareforçar a segurança do evento. A eficá-cia da mobilização virtual é um indícioda popularização desse tipo de grupo,mesmo no Brasil.“Temos crescido numritmo rápido”, diz o paulistano AldirGracindo, de 42 anos, editor da páginabrasileira da AVfM.

Não é difícil encontrar outrosnúcleos parecidos no país. Eles nãotêm a organização formal da AVfM elimitam-se a grupos de discussão nainternet, em que os usuários resistemem revelar a identidade. Numa busca

rápida pelo Facebook, é possível en-contrar pelo menos dez páginas brasi-leiras dedicadas ao que é chamado demasculinismo: a defesa dos interessesdos homens num mundo que, segundoeles, favorece crescentemente as mu-lheres. Esses grupos de debate contamcom cerca de 80 mil participantes. Forado Facebook, o Fórum do Búfalo tem1.000 integrantes.

Os participantes desses gruposquerem ser chamados de defensoresdos direitos dos homens. Os estudio-sos das ciências sociais consideram“masculinistas” um termo mais ade-quado. A palavra marca a oposição àsfeministas, mulheres que lutam desdeo começo do século passado pela am-pliação dos direitos femininos. “Esseshomens acham que precisam protegerseus privilégios porque as mulheres,finalmente, conquistaram a igualdade”,diz a socióloga americana Lisa Wade,especialista em questões de gênero.“Elas têm um nível igual ou maior deeducação formal e ocupam os mesmoscargos que eles nas empresas. Eles que-rem impedir esse progresso.”

Entre as bandeiras masculinistashá causas que contam com a simpatiadas feministas, como o aumento dalicença-paternidade ou o fim da cul-tura que atribui à mãe a tutela dos s

debates e provocações

Um movimento internacional prometelutar pelos direitos dos homens contraa opressão do feminismo

Em defesa domacho oprimido

Felipe Germano e Júlia Korte

O mascUlinismOtem 80 milsimpatizantesem cOmUnidadesvirtUaisbrasileiras

Montagem sobre foto Thinkstock

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contra a maréversão alterada decartaz da segunda

Guerra mundial. nooriginal, uma mulher

faz alusão à força dostrabalhadores num

período em que elasentraram no mercado

de trabalho. agora,são os homens que

querem mostrar poder

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filhos após o divórcio. A gênese domovimento masculinista, em mea-dos da década de 1970, explica partedos ideais em comum. “No princípio,grupos de homens se reuniram paraajudar as mulheres na luta contra osexismo e a desigualdade entre os gê-neros”, afirma o sociólogo canadenseFrancis Dupuis-Déri, responsável pelapesquisa de antifeminismo da Univer-sidade de Quebec, no Canadá. Com otempo, eles começaram a discutir maissobre os problemas dos homens quedas mulheres, e houve uma divisão.Alguns continuaram a lutar contra acultura patriarcal, outros passaram adefender os direitos dos homossexuais,e um terceiro grupo se convenceu deque a fonte dos problemas eram, naverdade, as conquistas das mulheres.“Eles passaram de aliados a opositoresdas feministas”, diz Dupuis-Déri.

Uma das causas mais caras aos mas-culinistas é garantir que os homenssejam tratados “com justiça” nos casosde violência sexual. Eles alegam que, naprática, os homens são consideradosautomaticamente culpados, sem usu-fruir o benefício da dúvida. Talvez sejaassim na Suécia ou nos Estados Unidos.No Brasil, muitos estupradores esca-pam impunes.

Tanto aqui como lá, masculinistasgostam de dizer que certas mulheres“merecem ser estupradas” pela formacomo se vestem. Ou afirmam que elas“exageram” sobre ter sofrido violên-cia, com o objetivo de prejudicar oshomens. O objetivo geral dessas afir-mações é transferir a responsabilidadeda violência para as mulheres. Umacampanha promovida por um gru-po masculinista no Canadá trazia osseguintes dizeres: “Só porque você searrependeu de seu caso de uma noite,não significa que não tenha sido con-sensual”. O americano Paul Elam, cria-dor da AVfM, fez a seguinte declaração:“Eu deveria ser chamado para julgarum caso de estupro. Comprometo--me publicamente a votar que o réué inocente, mesmo que as evidênciasapontem que ele seja culpado”. Em2011, Elam criou o Register-her, umaespécie de lista negra virtual de mulhe-res que, segundo ele, “ferem os direitosdos homens”. A lista continha fotos,

nome completo e até endereço, acom-panhados de legendas como “falsa acu-sadora (de estupro)”. O site permaneceno ar, agora com informações sobrequatro feministas que se opõem aosmasculinistas.

Ao fazer esse tipo de incitação,muitos masculinistas transitamnuma linha tênue entre a legalidadee a ilegalidade. No Brasil, qualquermensagem ofensiva, se dirigida espe-cificamente ao perfil ou identidadede alguém, pode ser denunciada à Jus-tiça. Quando as ofensas ou ameaçassão dirigidas a grupos, como as mu-lheres, a condenação depende de cadajuiz. “Muitos pensam que o direito àliberdade de expressão permite quese fale ou escreva qualquer coisa”, diz aadvogada Isabela Guimarães, sócia doescritório Patricia Peck Pinheiro Advoga-dos.“Não é assim. O direito das outraspessoas precisa ser respeitado.”

Existe entre as feministas o temorde que a disseminação do preconceito,promovida por simpatizantes do mo-vimento masculinista, passe da esferavirtual para a vida real e se transformenum número ainda maior de casos deviolência contra a mulher. No Brasil,o governo estima que 2 mil mulheressejam mortas todos os anos por par-ceiros ou ex-parceiros. As feministastemem que o discurso agressivo dosmasculinistas possa influenciar pes-soas mentalmente instáveis e acabarem tragédia. É o que parece ter acon-tecido no caso do americano ElliotRodger, de 22 anos. Em maio passa-do, ele matou duas universitárias equatro rapazes na Califórnia. O teordo vídeo que gravou antes do crimeecoa a conversa de fóruns masculinis-tas. Rodger disse que foi forçado “aenfrentar uma existência de solidão,rejeição e desejos negados”, porqueas meninas não se sentiram atraí-das por ele. Por isso, afirmou, mata-ria “cada vagabunda loira mimada”.Disse e fez. “Na prática, os masculi-nistas não lutam pelos direitos doshomens. O discurso deles é de ódioàs mulheres”, afirma a feminista LolaAronovich, professora da Universi-dade Federal do Ceará. Nem todos osmasculinistas cabem nessa definição.Que alguns caibam, é um problema. u

O dicionáriodo preconceitoalgumas das expressõescunhadas ou popularizadaspor grupos masculinistas

Confradescomo os membrosde grupos chamamuns aos outros.O termo é usadooriginalmenteem organizaçõesreligiosas

Matrixnuma referênciaao filme de1999, a matrixé a sociedadeque privilegia asmulheres, sem queos homens notem

M$olapelido de mãessolteiras. O cifrãoinsinua que asmulheres queremsó tirar dinheirodos homenspela pensão

alfaOs masculinistasdizem que ohomem alfa é oobjeto do desejodas mulheres porser rico e poderoso

Manginavem da junçãoman (homem) evagina. descreveos homens quedefendem ofeminismo ouidolatram a mulher

feMinazia aglutinaçãode feminismo enazismo sugereque o movimentodas mulheresseja uma doutrinatotalitária

debates e provocações

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