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Encarte Ile Omolu Oxum

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Há dívidas que são verdadeiramente impagáveis. A do Brasil com suas raízes africanas é uma delas. Se hoje temos uma das culturas mais dinâmicas e ricas do mundo, se a diversificação é uma das nossas melhores características, convém recordar que somos filhos de muitas mães. A alma brasileira é matriz e reflexo do encontro entre culturas e identidades indígenas, européias e africanas em um primeiro momento, e depois pela chegada de filhos de outras paragens. Do emaranhado de raízes que nos fi-zeram e nos alimentam, a africana é, sem dúvida, uma das mais poderosas e essenciais.

Outra dívida, esta sim pagável, é a que o Brasil tem com sua própria memória. E a melhor forma de pagá-la é através do resgate, da recuperação e da preservação. O projeto Documentos Sonoros é um exemplo disso. Registra gêneros e expressões musicais que cor-rem o risco de ficarem à margem do nosso cotidiano, especificamente as músicas indígenas e as religiosas de origem africana.

Este CD, primeiro de uma série de três, chamada de forma muito apropriada Documentos Sonoros, apresenta cantos sacros dos rituais do candomblé. Tem o mesmo nome, Ilê Omolu Oxum, de um dos mais tradicionais terreiros religiosos do Brasil, em São João de Meriti, no Rio de Janeiro. São cantos ancestrais, marca central de todas as religiões afro-brasileiras. Não há religião afri-cana sem os cantos e o soar dos tambores: canta-se para pedir e para agradecer, para louvar e fortalecer, canta-se para que os deuses e deusas dancem. Canta-se, enfim, para viver, recordar e reverenciar a vida.

Ao apoiar a realização desses Documentos Sonoros, a Pe-trobras rende homenagem às culturas que fizeram de nós o que nós somos. Um povo vivo, dono de uma identidade que, de tão diversificada, fez-se única. Que recupera seu passado para rumar melhor para o futuro.

Diretor do Museu NacionalSérgio Alex Kugland de Azevedo

EditoresEdmundo PereiraGustavo Pacheco

CoordenadoresJoão Pacheco de Oliveira

Antônio Carlos de Souza Lima

Patrocínio:

Realização:

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Participaram das gravações:

Ialorixá:Mãe Meninazinha d’Oxum

Ogãs:Mado, Carlinhos, Jorge, Adauto, Ricardo, Sidinho, Camilo, Wallace, Rodrigo, Douglas e Dado

Equedes:Hilda, Zeneide, Solange e Kátia

Ebômis:Lúcia, Noélia, Nilce, Aurinha, César, Dadá, Beth e Anderson

Pesquisadores: Ricardo Freitas, Edmundo Pereira e Gustavo Pacheco

Produção:Ricardo Freitas, Margarida Menezes, Edmundo Pereira e Gustavo Pacheco

Técnicos de som:L.C. Varella e Toninho (Estúdio Zaga)

Mixagem:L. C. Varella, Edmundo Pereira e Gustavo Pacheco

Masterização:Oswaldo Vidal, Edmundo Pereira e Gustavo Pacheco

Fotografias:Tiago Quiroga e acervo do Memorial Iyá Davina

Projeto gráfico:Caco Chagas

Versão para o inglês:Keith Reid e Gustavo Pacheco

Agradecimentos:Associação Cultural Caburé, Click Cultural, Cristiane Cotrim, João Bina, Maria Helena Lacorte,

Mariza Mendes, Maurício Pacheco, Tom Flynn, todos os membros do Ilê Omolu Oxum e todos os orixás.

Com o presente CD, o LACED/Museu Nacional dá início à Coleção Documentos Sonoros, estabelecendo para isso um trabalho conjunto com o Ilê Omolu Oxum. Mais que colocar uma mercadoria em estan-tes de lojas de música ou de museus, esperamos com ele selar uma nova aliança. Isto é, desejamos cumprir de modo diferente nosso papel como instituição: queremos mostrar que é possível dar novo sentido a um museu nacional, dispositivo de exibição e construção de imagens de “nós mesmos” e de “outros”, por muito tempo comprometido com os ideais de uma nação unitária. Buscamos suplantar o passado, em que se exibia em sua exposição uma “mestiçagem cultural” homoge-neizadora, ocultando formas escondidas de discriminação e racismo. Nossa meta agora é outra: trabalhar para o reconhecimento do caráter pluriétnico da sociedade brasileira, lutar contra as diversas formas de desigualdade que assolam nossa vida, numa aliança em que todas as partes pensem, escolham, trabalhem. Agora é o momento de ressaltar e de vivificar os múltiplos valores e heranças históricas que nos per-mitem seguir como seres sociais mais complexos do que os registros escritos ou visuais conseguem retratar.

Nada melhor para começar do que a música do candomblé de Mãe Meninazinha em São João de Meriti, na Baixada Fluminense. Longe dos livros que celebrizaram a vida “africana” na Bahia, mas perto do coração do “povo de santo”, onde a cada dia se canta com os pés, se dança com a boca e se transmite de geração a geração crenças, modos de ser, conhecimentos, habilidades, sons, paladares, sentimentos. “Patrimônio imaterial” sempre renovável porque é motivo do orgulho de se ser quem se é, parte do prazer e da beleza de se participar de uma festa de orixá, tudo isto contido também na mídia eletrônica, a nos evocar a demasiadamente humana aliança com os deuses.

Antonio Carlos de Souza LimaCoordenador Técnico

LACED/Museu Nacional-UFRJ

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see shakers, bead-netted cabaças called xequerês. The lyrics of candomblé songs derive from Afri-can languages modified from years of oral transmission in Brazil. In the Queto nation, the songs derive mainly from several dialects of the Yoruba language. In public ceremonies, the songs are led by the mãe-de-santo, or someone she designated beforehand. The audience participates by singing, hand-clapping and crying out greetings to the orixás. While some songs don’t call for drumming, especially in the private rituals, some rhythms can be undertaken without singing, as in the last four tracks of this CD. There are over 20 rhythmical patterns in the candomblé repertoire, each one be-aring a distinctive function in the ceremonies, or a relationship with a particular orixá. The rhythms for the orixás sound the personal traits of each deity. Thus, for example, the rhythm performed for Iansã, the goddess of the storms and winds, is a thunder-tumbling rhythm dubbed ilu, someti-mes refered to as quebra-prato or “dish-breaker” (track 50). On the other hand, the seriousness of Omolu, the god of contagious diseases, is reflected in the slower opanijé (track 49). Though some rhythms are played exclusively for a particular orixá, such as Xangô’s alujá (track 51), other rhythms can be played to honor or summon other gods and goddesses. Thus, the ijexá, traditional rhythm for Oxum (tracks 23 to 25), can also be played for Exu, Ogum, Logunedé, and Oxalá.

HOW THIS CD WAS MADE - Any candomblé recording, as good as it may be, is only a pale reflection of the actual beauty encountered in everyday candomblé music. Trying to seize this beauty is a difficult task demanding the right decisions. Which songs to record, where to place the microphones, how to equalize the recordings were but a few of the questions. It is important to highlight that the production of this CD was based on dialogue, partnership, and respect for the cultural dynamics of the terreiro. All decisions were taken jointly during several lengthy meetings accompanied by plenty of savory food, as is usual in candomblé.

The first decision was to record in the terreiro with a portable studio. For acoustic reasons, the recordings were not made in the barracão, the place where the public ceremonies take place, but in an alley within the terreiro’s premises. Mãe Meninazinha, aided by other members of the terreiro, was in charge of choosing the repertoire to be recorded. Two recording sessions took place on 3/10/2001 and 1/31/2004. All recorded material was listened to, analysed, and criticized by the members of the Ilê. Further recordings to double the chorus and correct minor flaws took place in a studio on 2/29/2004. Finally, the photographs and graphic design were submitted to Mãe Meninazinha’s approval. The CD cover was chosen so as to represent the symbols of the patron orixás of Ilê Omolu Oxum: Oxum’s holy bead necklace, and Omolu’s preferred food, popcorn.

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joining a large community of people of African descent from Bahia who helped to forge Rio’s modern urban culture, including samba. Yá Davina soon joined the terreiro of the renowned pai-de-santo João Alabá in the neighborhood of Gamboa, one of the first terreiros in Rio. After Alabá’s death, in 1924, its followers moved to Bento Ribeiro and afterwards to Mesquita, in the Baixada Fluminense, where they founded in 1932 the Casa Grande or Axé de Mesquita. Tia Pequena was the ialorixá and Yá Davina was the iaquequerê. After Tia Pequena’s death in 1950, Yá Davina became the ialorixá until her death in 1964. Born on August 18th, 1937, Mãe Meni-nazinha d’Oxum was destined to inherit the Axé de Mesquita, and she founded her own terreiro in 1968 in the neighborhood of Marambaia, Nova Iguaçu. In 1973, Ilê Omolu Oxum moved to its present location in the São Matheus district, in the city of São João de Meriti.

CANDOMBLÉ MUSIC - Like all religions deriving from Africa, candomblé is deeply im-pregnated with music. All relations with the orixás and all ceremonies, whether private or public, are conducted by an immense repertoire of songs, often accompanied by drums. For each and every ritual act, there is an appropriate group of songs to be performed. There are songs for the laying of offerings, for initiation rituals, for the dances of the orixás, for thanksgiving, and for many other occasions. This rich repertoire, from which this CD is but a small sample, represents one of the most important musical heritages of Brazilian culture.

A candomblé orchestra is composed of three drums of similar shape, yet varying in size and tuning. These drums, or atabaques, go by the names of rum, rumpi, and lê. Covered with animal skins at one end, they can be played with hands, or with wooden sticks called aguidavis. Whilst rhythms from the Congo and Angola nations are played with the hands, those of the Jeje-Nagô nations are performed with aguidavis. Except for tracks 23 to 25, ritual chants worshiping the goddess Oxum, all tracks on this album are played with aguidavis. The tall and thunderous rum is the lead soloist, performing rhythmic variations over the steady rhythm kept by the other two drums. These variations guide the steps and gestures of the orixás when they dance, and therefore only the most experienced drummers are able to play the rum. Due to its importance in the religious cult, the drums are considered sacred and pass through a series of rituals before being used. Before public ceremonies, the atabaques are dressed with pieces of cloth called ojás and receive offerings just like the orixás themselves.

Besides the drums, the candomblé orchestra includes a single bell called gã or agogô and made up of one or two high-pitched cylinders. The bell keeps a repetitive pattern which functions as a rhythmic reference for all people singing and playing. In some terreiros it is also common to

A escravidão no Brasil perdurou por mais de três séculos. Junto com a mão-de-obra escrava, para cá seguiram, provenien-tes da África, visões de mundo, costumes e tradições. A partir do início do século XIX, tais tradições, sobretudo crenças e formas re-ligiosas, passaram a ser perpetuadas num único e mesmo espaço físico denominado terreiro (ou roça, casa-de-santo, ilê, abaçá, axé ou egbé). Surgiam, assim, as religiões de origem africana no Brasil ou as religiões dos orixás no Brasil, dentre elas o candomblé.

Religião centrada na tradição oral, sua liturgia baseia-se na transmissão dos mitos expressos nas danças, cânticos e rituais, que perpetuam experiências históricas, religiosas e sociais na consciên-cia e na memória coletiva dos descendentes de africanos no Brasil e, hoje, de todos os brasileiros e estrangeiros de diversas origens que participam das religiões afro-brasileiras.

De modo geral, três são os sistemas rituais nas religiões de origem africana no Brasil. O primeiro, de origem nagô, diz respeito aos povos que têm o iorubá como língua comum e que formam o que se designa yorubaland – correspondendo, hoje, ao sul do Benin e ao sudoeste da Nigéria (antigos reinos de Oyó, Ijexá, Ijebu, Ketu e Egbá). O segundo, de origem jeje, nasce dos povos ewe ou fon, provenientes da região do antigo Daomé (atuais Repúblicas do Togo e Benin). Distingue-se do primeiro por não cultuar divindades encontradas naquela região, dentre as quais alguns dos mais populares orixás cultuados no Brasil, como Xangô, Oxum e Iemanjá. Foi a fusão desses dois sistemas – fon e iorubá – que resultou no modelo de culto jeje-nagô, que é o mais conhecido sistema de práticas e tradições religiosas de origem

O CANDOMBLÉ

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africana no Brasil. Há ainda um terceiro sistema, cuja origem remonta aos povos de língua banta (sobretudo quimbundo e quicongo) pro-venientes do sudoeste do continente africano, e que resultou nos can-domblés angola e congo. Cada um dos subgrupos desses três sistemas apresenta características próprias e é chamado de nação: nação queto, nação jeje, nação angola... O Ilê Omolu Oxum, cujo repertório musical está parcialmente registrado neste CD, é um terreiro de candomblé de nação queto, e por este motivo as informações contidas neste encarte referem-se primordialmente a essa nação.

Cultuadas por todo o território nacional, as religiões de origem africana no Brasil recebem diversas designações: tambor de mina (Ma-

(Pernambuco), batuque (Rio Grande do Sul) e candom- (Bahia, Rio de Janeiro e resto do país.) Deve-se, ainda, considerar

toda a sorte de religiões afro-derivadas (em que elementos dos três sistemas de religiosidade africana no Brasil podem estar presentes) praticadas por esse Brasil afora e, por isso, também denominadas afro-brasileiras – umbanda, jurema, candomblé de caboclo, pajelan-

etc. Todas essas tradições religiosas têm em comum o fato de cultuarem ancestrais divinizados, intermediários entre homens e forças naturais, conhecidos como orixás, inquices, vo-

, encantados etc., cuja presença se manifesta através do transe de possessão.

Contudo, o candomblé não pode ser reduzido única e exclusivamente ao espaço religioso afro-brasileiro. Serviu, tam-bém, como reorganizador da vida social, determinante para a formação da identidade dos descendentes de africanos no Brasil e, de forma mais geral, da própria identidade nacional brasileira. Além de constituir-se como base para a formação de redes de solidariedade e auxílio mútuo, o candomblé também forneceu à população afro-brasileira um vasto patrimônio sociocultural. Esse patrimônio foi fundamen-

referem-se primordialmente a essa nação.Cultuadas por todo o território nacional, as religiões de origem

africana no Brasil recebem diversas designações: ranhão), xangô (Pernambuco), blé (Bahia, Rio de Janeiro e resto do país.) Deve-se, ainda, considerar toda a sorte de religiões afro-derivadas (em que elementos dos três sistemas de religiosidade africana no Brasil podem estar presentes) praticadas por esse Brasil afora e, por isso, também denominadas afro-brasileiras – ça, catimbó etc. Todas essas tradições religiosas têm em comum o fato de cultuarem ancestrais divinizados, intermediários entre homens e forças naturais, conhecidos como duns, santos, do transe de possessão.

Contudo, o candomblé não pode ser reduzido única e exclusivamente ao espaço religioso afro-brasileiro. Serviu, tam-bém, como reorganizador da vida social, determinante para a formação da identidade dos descendentes de africanos no Brasil e, de forma mais geral, da própria identidade nacional brasileira. Além de constituir-se como base para a formação de redes de solidariedade e auxílio mútuo, o candomblé

Xaxará, lança de mão de Omolu, pertencente ao Omolu de Iyá Davina (acervo do Memorial Iyá Davina, 1910).

be found: umbanda, jurema, candomblé de caboclo, pajelança, catimbó etc. All of these religious traditions have in common the worshiping of deifi ed ancestors, a cross-between humans and personifi cations of nature’s elements called orixás, inquices, voduns, santos, encantados etc. The latter manifest their presence by possessing their initiates in a trance, riding them as horses.

Candomblé cannot be reduced exclusively to its religious function. It has also served in reorganizing social life, playing a crucial role in forming the awareness and identity of descen-dants of Africans, and more widely in forming the Brazilian identity itself. The terreiros were fun-damental in organizing networks of solidarity and spreading collective consciousness, giving a sense of belonging, and instilling family and social values. The terreiros are organized according to rigid hierarchical systems, at the head of which we fi nd the babalorixá or pai-de-santo (“father of saint”, high-priest), or the ialorixá or mãe-de-santo (“mother-of-saint”, high-priestess). Iaquequerê or mãe-pequena (“small mother”) or babaquequerê or pai-pequeno (“small father”) is the second most important position in the hierarchy. The ogãs are the men responsible for taking care of the terreiro, sacrifi cing animals, and playing the drums during the cerimonies. The equedes are the women who take care of the orixás, helping them during the ceremonies. The adoxus are the ones who enter into trance and are possessed by the orixás. They are called yaôs when they have not yet fulfi lled their ritual obligations after a seven-year period, and ebômis when they have. There are also several positions of trust determined by the divinities themselves, sometimes through oracles such as the jogo de búzios (a sort of divination with the use of small shells).

This religious system helped to organize the social life of the descendants of Africans through the passing on of African customs and the invention of new ones in contact with Bra-zilian society. Oral transmission has been the fundamental means for the development and expansion of candomblé since the 19th century. Since the dawn of the 20th century, however, this tradition has also been affected by a large range of books, movies, and records focused on candomblé. Gradually from a non-written tradition it is evolving into a written, technological, and even cybernetic tradition. The CD Ilê Omolu Oxum: chants and rhythms for the orixás fi ts in a stream of productions that have tried to capture the beauty of this cultural heritage through the means available by modern technologies.

Ilê Omolu Oxum was founded by Mãe Meninazinha d’Oxum, who was initiated into can-domblé in 1960 by her grandmother Iyá Davina d’Omolu, at the Casa Grande de Mesquita, in Rio de Janeiro. Yá Davina had been initiated in Bahia in 1910 by Procópio d’Ogum, one of the most important pai-de-santos at that time. In the 1920s, Yá Davina came to live in Rio de Janeiro,

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ILÊ OMOLU OXUM: CHANTS AND RHYTHMS FOR THE ORIXÁS

For over three centuries, the slave trade which prospered between Africa and the Ameri-cas, deporting millions of men and women from their homeland, supplied Brazil with not only a labor force which was to build the country, but also with new visions of the world, traditional customs, and arts which have forged a unique cultural heritage. Candomblé is one of these legacies, a lively religion to be found throughout Brazil. Deeply rooted in African religions, the rise of candomblé dates back from the 19th century, when its practices came to take place in a single physical space called terreiro, roça, casa-de-santo, ilê, abaçá, axé or egbé. Candomblé is a religion based on oral tradition. Its liturgy is passed on from one generation to the next through the myths reproduced in dance, songs and rituals. Candomblé has had a key role in perpetu-ating historical, religious, and social experiences in the consciousness and collective memory of descendants of Africans in Brazil, and of those who take part in the Afro-Brazilian religions. Today, Candomblé is practiced by Brazilians and foreigners alike, regardless of social class or ethnic background. Roughly speaking, there are three main groups of religious practices called “candomblé” in Brazil today. The fi rst group is the Nagô, originated from people who shared Yoruba as a common language. These people came from the ancient empires of Oyo, Ijesa, Ejigbo, Ketu, and Egba, corresponding to modern day Benin and South-East Nigeria. The second group is the Jeje, brought by people of Ewe or Fon descent, who inhabited the Dahomey empi-re, corresponding to today’s Benin and Togo. The fusion between these two groups resulted in the Jeje-Nagô cult system, which is the most infl uential system of religious practices of African origin in Brazil. The third group was born from people who inhabited the southeast of Africa, corresponding to today’s Angola and Congo. These people spoke several languages of the Bantu group, especially Kimbundo and Kicongo. Each of these three groups presents its own distinctive characteristics and several ramifi cations, each one of which is called a nação, or nation: nação queto, nação jeje, nação angola... Ilê Omolu Oxum, whose musical repertoire is partially recorded in this CD, is a terreiro which belongs to the Queto nation. For this reason, the information on these notes applies mainly to this nation.

Religions of African origin are found all over Brazil with distinctive regional traits and denominations: tambor de mina in Maranhão, xangô in Pernambuco, batuque in Rio Grande do Sul, candomblé in Bahia, in Rio de Janeiro, and in the rest of the country. It should also be men-tioned the several Brazilian religions in which elements of the three groups mentioned above can

tal para a formação de uma consciência coletiva, baseada numa herança ancestral (transnacional e trans-histórica), que proporcionou a perma-nência no Brasil moderno de uma religião estritamente hierarquizada e complexamente ritualizada. Para isso, os terreiros reelaboraram a noção de família e o sentimento de pertença comunitária ou social, dando mãe (de santo), irmãos (de santo), casa (de santo) e família (de santo) aos que não tinham nada disso.

Os terreiros foram erguidos sob um rígido sistema hierárquico, que, de forma geral, assim descrito: ialorixá, babalorixá, mãe ou pai-de-santo é a mulher ou o homem responsável pela liderança espiritual e pela administração de um terreiro. Iaquequerê, babaquequerê, mãe ou a pessoa imediatamente responsável pelo terreiro após a mãe ou pai-de-santo. Ogãs são os homens responsáveis pela manutenção do terreiro, pelo toque de atabaques e pelo sacrifício de animais. Equedes são as mulheres responsáveis pelo zelo com as divinda-des e as auxiliam nas danças, nas vestimentas etc. Adoxus são os “cavalos” das divindades, os que entram em transe e são possuídos pelos orixás. Nesse grupo, duas são as divisões: iaôs são os que não completa-ram suas obrigações rituais (após sete anos de iniciação) e ebômis os que já as completaram. Há ainda cargos de confi ança, determinados pelas divindades, no mais das vezes, através da consulta ao oráculo – o jogo de búzios: iabassê, a mulher responsável pela cozinha das divindades; babalossaim, o homem responsável pela colheita das folhas e ervas e pelos rituais em que plantas são necessárias; ialaxé, mulher responsável pela limpeza e pela oferta de comidas às divindade.

Toda essa hierarquia foi elaborada e preservada através da ritua-lística religiosa, que contribuiu para organizar a vida social dos descen-

tal para a formação de uma consciência coletiva, baseada numa herança ancestral (transnacional

Os terreiros foram erguidos sob um rígido sistema hierárquico, que, de forma geral, assim pode ser

é a mulher ou o homem responsável pela liderança espiritual e pela administração

ou pai-pequeno é a pessoa imediatamente responsável pelo terreiro após a mãe ou

são os homens responsáveis pela manutenção do terreiro, pelo toque de atabaques e pelo sacrifício de animais.

são as mulheres responsáveis pelo zelo com as divinda-

Abebé, espelho ou leque de Oxum, pertencente ao Oxum de Tia Esmeralda (acervo do Memorial Iyá Davina, 1937).

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dentes de africanos no Brasil, através das recordações, ou mesmo da invenção, de práticas oriundas das terras africanas em contato com a realidade brasileira – graças à transmissão oral que se deu ao longo do tempo entre as gerações. Assim, mesmo que a história afro-brasileira não tenha podido ser minuciosa-mente concretizada através de uma história textual, documental ou mesmo material, pode ser, entretanto, elaborada por meio da oralidade – elemento primordial para a realização do saber afro-brasileiro, que se baseia numa me-mória não-escrita, não-documental e, por isso, simbólica ou conceitual, que encontrará no corpo e na narrativa mítica seus instrumentos mais valiosos.

Se a tradição oral foi, de fato, o instrumento para a formação e perpe-tuação desse sistema durante o século XIX, a partir do início do século XX essa tradição sofrerá o impacto dos muitos livros, filmes e discos publicados sobre o candomblé e seu complexo sistema ritual. Dessa forma, a religião atextual, centrada na oralidade, vai, aos poucos, transformando-se numa religião tex-tual, tecnologizada e, por fim, digital(izada) ou hipertextual(izada).

O CD Ilê Omolu Oxum: cantigas e toques para os orixás encaixa-se no rol das produções que tentam, através das possibilidades que as tecnologias de comuni-cação podem oferecer, resguardar o acervo patrimonial do rico e complexo sis-tema cultural e religioso afro-brasileiro, através da gravação dos cânticos rituais cantados, recantados e decantados há séculos por esse Brasil afora.

O Ilê Omolu Oxum foi fundado em 1968 por Mãe Meninazinha d’Oxum, iniciada em 1960 por sua avó carnal Iyá Davina d’Omolu, na Casa-Grande de Mesquita, no Rio de Janeiro. Iyá Davina, por sua vez, foi iniciada por Procópio d’Ogum, na Bahia de 1910. Foi a última mãe-de-santo da Casa-Grande de Mesquita, terreiro que dava continuidade ao terreiro do re-nomado pai-de-santo João Alabá, situado na Gamboa, Rio de Janeiro – o que comprova os vínculos criados entre lideranças religiosas das mais diversas regiões do país. A importância do Ilê Omolu Oxum para o universo religioso afro-brasileiro deve-se, dessa forma, a sua genealogia, que aqui será co-mentada a partir da história de vida de Iyá Davina e das muitas articulações criadas entre o povo-de-santo daqui e dacolá.

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A primeira decisão foi a de que as gravações seriam realizadas no próprio Ilê, para onde foi levado um pequeno estúdio móvel. Por razões de acústica, optou-se por não gravar no barracão, local onde acontecem os toques. Coube a Mãe Meninazinha, com sugestões de outros membros do terreiro, a escolha do repertório a ser gravado. Duas sessões de gravação foram realizadas, em 10/03/2001 e 31/01/2004, no local conhecido no terreiro como Alameda Tia Fióti. Todo o material registrado nas sessões foi ouvido, analisado e criticado pelos membros do Ilê. A partir destas audições, definiu-se o repertório final que constaria no CD e novas gravações a serem feitas para dobrar os coros das cantigas e corrigir pequenas imperfeições rítmicas e meló-dicas. As gravações finais aconteceram em 29/02/2004, desta vez não mais no terreiro, mas em um estúdio, com um grupo menor de pes-soas. Na fase de mixagem, procurou-se clareza e equilíbrio na relação entre as vozes (solista e coro) e destas com os tambores, preservando, contudo, o impacto sonoro dos atabaques. Finalmente, as fotografias e o projeto gráfico também passaram pelas mãos de Mãe Meninazi-nha. A capa foi escolhida de forma a representar, por meio de objetos, os dois orixás patronos da casa: o fio de contas de Oxum e a pipoca que serve de alimento a Omolu.

Tomadas todas estas escolhas em seus processos de decisão, de-vemos enfatizar, portanto, que este CD não deve ser entendido apenas como um documento etnográfico, mas também como um registro de como uma determinada comunidade-terreiro quer se ver representa-da, ou melhor, de como quer ser ouvida. Cabe-nos, por fim, agradecer a Mãe Meninazinha e a todos os membros do Ilê Omolu Oxum pela realização deste trabalho, encerrando como deve ser:

Adupé! Edmundo PereiraGustavo Pacheco

LACED/Museu Nacional-UFRJ

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Procópio Xavier de Souza, Procópio d’Ogum ou Ogum Jobi, foi iniciado por Iyá Marcolina da Cidade de Palha. Há poucas informações sobre ela. Sabe-se que era de nação queto e da mesma geração de Iyá Pulchéria do Gantois.

O terreiro de Procópio, situado no Baixão (antigo Ma-tatu Grande), em Salvador da Bahia, era muito conhecido pelo grande número de iniciadas e pela renomada feijoada anual oferecida ao orixá Ogum – patrono do terreiro –, que ficou mais conhecida como “feijão do Procópio”. Sobre a feijoada, conta-se a seguinte história: “Um dia Procópio estava comendo em sua casa. Chegou um filho-de-santo, com quem ele tinha brigado. Então, Procópio o manda em-bora com outra briga. Com isso, comete um grande pecado do candomblé: negar comida a um filho-de-santo. O santo pegou Procópio e falou que ele estava multado. Na semana seguinte, ele deveria fazer no terreiro uma feijoada à base de toucinho, convidando todo o mundo”. Colocava-se uma esteira no chão para comer e as filhas-de-santo assim que comiam caíam no santo (entravam em transe).

Outro fator fundamental para o seu reconhecimento foi o fato de ter participado da legitimação do candomblé, durante o Estado Novo, período marcado pela perseguição às religiões afro-brasileiras e aos seus terreiros e sacerdo-tes. O Ilê Ogunjá foi nesse período invadido pelo famoso delegado de polícia Pedrito Gordo e Procópio foi preso. Até hoje se comenta das marcas nas costas que teria por conta dessa prisão. Tal acontecimento, que ficaria conheci-

PROCÓPIO D’OGUM E O ILÊ OGUNJÁCOMO FOI FEITO ESTE CD

Qualquer disco de candomblé, por melhor que seja, está destinado a ser apenas um pálido reflexo da exuberância e beleza de uma noite de festa no terreiro. Tentar captar em disco a complexidade e riqueza musical do candomblé é uma ta-refa difícil em que várias escolhas têm que ser feitas. De fato, toda reprodução fonográfica de um evento musical envolve escolhas: que repertório gravar, como colocar os microfones, como equalizar as gravações... No caso do registro do repertório sacro de um terreiro de candomblé, estas escolhas podem ainda nos colocar questões éticas e políticas diante do preconceito e ignorância com que muitas vezes as religiões de origem africana são re-cebidas. Nesse sentido, vale destacar que todo o processo de gravação e edição do CD que ora apresentamos foi fruto do diálogo, da parceria e do respeito à dinâmica cultural do terreiro, todas as decisões sendo to-madas conjuntamente ao longo de diversos encontros acompanhados por comida farta e saborosa, como é tradição no candomblé.

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Além dos tambores, a orquestra do candomblé conta também com um sino de ferro de som estridente, tocado com uma haste de ferro ou de madeira. Este sino é chamado de gã quando possui uma só campânula e de agogô quando possui duas, e executa um padrão rítmico repetitivo que serve de referência para todos que estão tocando e cantando. Em alguns terreiros, também são usadas cabaças envoltas por uma rede de contas, chamadas xequerês.

As letras das cantigas têm por base idiomas africanos (no caso do can-domblé queto, especialmente dialetos do iorubá) modificados pela transmis-são oral ao longo de seus muitos anos de vida no Brasil. Nas cerimônias pú-blicas (ou toques), as cantigas são em geral puxadas pela mãe-de-santo ou por pessoa por ela designada, e respondidas por todos os presentes, que também participam batendo palmas e exclamando saudações aos orixás. Nem todas as cantigas são acompanhadas por tambores, especialmente as usadas em rituais internos, fechados ao público. Por outro lado, há alguns toques que podem ser executados sem canto, como as quatro últimas faixas deste disco.

As cantigas são acompanhadas por mais de vinte toques diferentes, cada um associado a uma determinada etapa da cerimônia ou a um determinado orixá, refletindo musicalmente as características atribuídas a cada divindade. Assim, por exemplo, Iansã, deusa dos ventos e tempestades, tem como ritmo característico o vigoroso ilu, também chamado de “quebra-pratos” (faixa 50), enquanto que a seriedade e a introspecção de Omolu, deus das doenças con-tagiosas, se refletem no ritmo mais lento do opanijé (faixa 49). Embora alguns toques sejam privativos de determinados orixás, como o alujá de Xangô (faixa 51), outros ritmos, ainda que associados a um orixá específico, podem ser tocados também para outras divindades, como o ijexá, ritmo característico de Oxum (faixas 23 a 25), mas encontrado também em cantigas para outros orixás, como Exu, Ogum, Logunedé e Oxalá. Alguns ritmos podem ser associa-dos a momentos determinados dos rituais, como o toque avamunha (também conhecido como avaninha, ramunha e outros nomes), que pode ser executado na entrada e saída dos orixás do barracão (faixa 48).

do como “caso Pedrito”, registrou o nome de Procópio na história popular baiana e conferiu-lhe citações em obras de ficção, trabalhos científicos e mídia impressa. Um samba-de-roda, de domínio popular, ilustra bem essa fama: “Procópio tava na sala / Esperando santo chegar / Quando chegou seu Pedrito / Procópio passa pra cá / Gali-nha tem força n’asa / O galo no esporão / Procópio no candomblé / Pedrito no facão”. O “caso Pedrito”, assim como a fama alcan-çada pela feijoada anual oferecida a Ogum, que se tornaria uma tradição nos terreiros brasileiros, fizeram do Ilê Ogunjá uma re-ferência nacional na história das religiões afro-brasileiras.

Profundo conhecedor de ervas, Pro-cópio possuía uma quitanda (herbário) no Gravatá, perto de sua residência. Mantinha profunda relação com o terreiro do Alaketu, tendo auxiliado Dona Dionísia (mãe-de-san-to àquela época) na feitura de dezenas de barcos (grupos de pessoas iniciadas juntas), entre estes o barco da atual ialorixá do Axé, Olga Francisca Régis (Olga do Alaketu) e de Tia Delinha d’Ogum, do qual foi pai-peque-no. Faleceu em 1958, com idade ignorada.

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Iyá Davina, Davina Maria Pereira, nasceu no ano de 1880, na cidade de Salvador, Bahia. No dia 24 de julho de 1910, foi iniciada por Procópio d’Ogum, no Ilê Ogunjá. Fi-lha de Omolu e Oxalá, tomou, na década de 1920, o navio “Comandante Capela”, para, juntamente com seu marido, Theóphilo Marcelino Pereira, ogã do mesmo Ilê Ogunjá, chegar à cidade do Rio de Janeiro. Possuiu no bairro da Saúde sua primeira residência, conhecida como “Consulado Baiano” por abrigar inúmeros conterrâneos de mudança para o Rio. Manuel Rodrigues Pontes, Tio Pedro, Zazá e Iri-néia (fi lhas-de-santo do Ilê Ogunjá) foram alguns dos muitos baianos abrigados por Iyá Davina. Já nessa época, existia na cidade famoso terreiro de candomblé, situado na Rua Barão de São Félix, na Gamboa, dirigido pelo renomado pai-de-santo João Alabá. A este, Iyá Davina se juntou. Alguns his-toriadores afi rmam que tal terreiro havia sido fundado com a ajuda de Rodolfo Martins de Andrade, mais conhecido como Bamboxê Obitikô. João Alabá cultuava grande ami-zade com sacerdotes baianos, entre estes Joaquim Vieira da Silva, o Tio Joaquim. Por Alabá, foram iniciados membros da família de Tia Carmen do Xibuca e de Tia Ciata, duas das mais importantes matriarcas baianas daquela época. Após o falecimento de João Alabá, em 1924, Vicente Bankolê e sua esposa Tia Pequena herdaram os assentamentos de seu orixá – Omolu – e deslocaram o terreiro da Gamboa para Bento Ribeiro. Por lá, o terreiro permaneceu até 1932,

IYÁ DAVINA E A CASA-GRANDE DE MESQUITA

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O candomblé, como todas as religiões de origem africana, é marcado profundamente pela presença da música. Todas as relações com os orixás e todas as cerimônias, públicas ou privadas, são me-diadas e conduzidas por um imenso repertório de cantigas e rezas, acompanhadas ou não por tambores. Para cada atividade existe um conjunto de cantigas específicas. Canta-se para preparar as oferendas, canta-se nos rituais de iniciação, canta-se para fazer as divindades dançarem nos dias de festa, canta-se para abrir os caminhos e para agradecer por dádivas recebidas... Este repertório, do qual este CD é apenas uma pequena amostra, representa um dos mais importantes patrimônios musicais da cultura brasileira.

A orquestra do candomblé é composta por três tambores de for-mato semelhante, porém de tamanho e afinação diferentes: rum, rumpi e lê. Esses tambores (ou atabaques) são cobertos com pele de animais em uma das extremidades e podem ser tocados com as mãos, no caso dos candomblés congo e angola, ou com varetas de madeira chamadas aguidavis, no caso dos candomblés jeje-nagô (todas as faixas deste CD são tocadas com aguidavis, à exceção das cantigas para Oxum – faixas 23 a 25). O rum, maior e mais grave dos três tambores, é o solista, fazendo variações e floreios sobre o ritmo constante sustentado pelos outros dois tambores. Essas variações orientam a dança dos orixás, pon-tuando seus passos e gestos, e por este motivo tocar o rum é tarefa de grande responsabilidade, reservada aos ogãs mais experientes. Devido a sua importância no culto religioso, os atabaques são considerados sagrados e passam por uma série de rituais e preparos antes de serem usados. Nos dias de festa, são “vestidos” com faixas de pano chamadas ojás e recebem oferendas como as próprias divindades.

A MÚSICA DO CANDOMBLÉ

quando se transferiram para Mesqui-ta, na Baixada Fluminense, criando, assim, a Sociedade Beneficente da Santa Cruz de Nosso Senhor do Bon-fim, mais conhecida como Casa-Gran-de de Mesquita, que foi a primeira comunidade-terreiro de candomblé a estabelecer-se na Baixada. Uma outra tia, Bibiana, tornou-se braço direito de Tia Pequena e Vicente Bankolê.

Iyá Davina, ainda à época da Saúde, já nutria profunda amizade com o Axé de João Alabá, auxilian-do-o com os afazeres daquela comunidade. Participou eficaz-mente da mudança do terreiro para Bento Ribeiro, tornando-se iaquequerê da casa durante o período em que Tia Pequena foi a ialorixá. Por conta de sua disposição para dar hospedagem aos conterrâneos baianos, desenvolveu profunda amizade com baba-lorixás e ialorixás dos mais variados axés, que no Rio de Janeiro se radicaram. Participou da fundação de inúmeros terreiros na cidade, como o Bate-Folha de João Lessengue, o Axé Opô Afonjá de Mãe Agripina, o Terreiro de São Gerônimo e Santa Bárbara de Mãe Senhorazinha e o terreiro de Djalma de Lalu. Também possuiu inúmeros filhos-pequenos em outros terreiros dos quais sempre foi assídua freqüentadora, como as casas de Seu Tata Fomotinho e de Seu Ciriaco. Fundou ainda o terreiro de Seu

Mãe Meninazinha e ebômi Nilza d’Oxossi (Marambaia, RJ)

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Ninô d’Ogum, o Ilê Nidê. Esses fatos ilustram bem os vínculos criados entre migrantes baianos e cariocas, determinantes para a preservação, manutenção e criação de novas e velhas tradições culturais. O fato de ter sido iniciada num tradicional terreiro baiano e ter se tornado a última dirigente de tradicional terreiro carioca fez de Iyá Davina um símbolo dos vínculos criados entre sacerdotes baianos e cariocas – processo decisivo na criação de uma cultura urbana carioca, tendo como exemplo de suas muitas manifestações, o samba.

Em 1950, após o falecimento de Tia Pequena, Iyá Davina tornou-se a última ialorixá da Casa-Grande de Mesquita, o que pôs fi m às inúmeras viagens que fazia a Salvador. Faleceu, no Rio de Janeiro, em 1964.

Joselita, Lourdes d’Iansã e Meninazinha ao redor de Iyá Davina (Casa-Grande de Mesquita, RJ, 1962)

Oxum nos engajamos nessa história tomados por muitas motivações. Entre elas, pelo fato de termos entendido, no Ilê, o modo pelo qual as culturas se inter-relacionam e transformam realidades infl exíveis em processos sincréticos e, por isso, fl exíveis e criativos. E aqui não falamos somente dos eventos rituais mágico-religiosos, mas sobretudo dos rituais cotidianos, dos estilos de vida, das formas de sobrevivência faladas acima. Foi isso, sem dúvida, o que possibilitou e permitiu a concretização do candomblé no Brasil, que mais que uma forma religiosa é uma forma de viver, olhar, perceber e entender o mundo.

Acreditamos que preservando a história das religiões afro-brasileiras e de sua gente, estaremos contribuindo para a formação de uma sociedade melhor relacionada, que poderá elaborar soluções para obten-ção de bem-estar mesmo nas situações menos nobres da vida. Uma vez escrevi: agradeço a Olorum a experiência nos caminhos mais obscuros e misteriosos das coisas da terra e do espaço, nesse laboratório que é o terreiro. Casa sem dono, casa dos orixás, nossa casa. Agora, reescrevo aqui. Agradeço a Omolu, a Oxum e a todos os orixás a permissão para que fôssemos iniciados nas coisas dos deuses e dos homens, nas coisas da terra e do espaço, e pudéssemos, com isso, compreender as horas em que se transformam as Marias e Joãos em Davinas, Meninazi-nhas, Procópios, Alabás, Mados, Enedinas...

Ricardo Oliveira de FreitasCoordenador do Memorial Iyá Davina

Ogã do Ilê Omolu Oxum

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O Rio de Janeiro foi e continua sendo um importante pólo de tradição e propagação das religiões afro-brasileiras. Contudo, quase nada foi escrito sobre a presença de terreiros de candomblé na cidade antes da década de 1970. A trajetória de Iyá Davina, migrante baiana no princípio do século, permite-nos traçar um levantamento histórico da importância dos intercâmbios, das articulações e das redes de solidariedade para a preservação das religiões afro-brasileiras por esse Brasil afora. Foi o que nos motivou a criar, em 1997, o Memorial Iyá Davina.

Instalado no espaço físico do Ilê Omolu Oxum, o Memorial Iyá Davina constitui-se num núcleo de pesquisa e documentação aberto à visitação pública, que abriga

acervo (fotografi as, desenhos, documentos, objetos etc.) referente à religião dos orixás e à formação das primeiras comunidades-terreiro de candomblé no Rio de Janeiro. O Memorial Iyá Davina serve como instrumento de acesso à informação de interessados tanto da comunidade do entorno como de pesquisadores, que vêm ao longo dos anos procurando o Ilê Omolu Oxum para obtenção de dados sobre religiões, cultura e sociedade afro-brasileiras. É o primeiro centro de preservação de história material e memória no distrito de São Matheus, São João de Meriti, município fl uminense que concentra o maior contingente percentual da população afro-descendente no Estado do Rio de Janeiro.

A idéia da construção desse Memorial surgiu de Mãe Meninazinha, que há muito tempo pretendia torná-la realidade. Eu, equede Margarida Menezes e a comunidade do Ilê Omolu

O MEMORIAL IYÁ DAVINA MÃE MENINAZINHA E OILÊ OMOLU OXUM

Maria do Nascimento, Meninazinha d’Oxum, herda os assentamentos do Omolu de sua avó, Iyá Davina, e funda, em 06 de julho de 1968, a Sociedade Civil e Religiosa Ilê Omolu Oxum, situada, num primeiro momen-to, na Marambaia, distrito de Tinguá, Nova Iguaçu, com a ajuda de Tia Dêja (irmã), Tia Dininha (irmã), Tia Angélica de Xangô (irmã-de-santo), Tia Mocinha (tia-de-santo), Tia San-ta d’Oxalá (Djanira Jumbeba, irmã-de-santo), Roque Cupertino de Lima (Ogã Doum), Darci Neves de Mendonça (Ogã Tiquinho, suspenso no terreiro de João Alabá e primeiro ogã con-fi rmado na Casa-Grande de Mesquita), Walde-mar do Nascimento (Seu Mado, ogã e irmão) e Tio Nozinho (ogã e irmão). Lá, o terreiro permaneceu até 1973, quando, com a ajuda de Tia Bené d’Iansã (uma das fundadoras do Grêmio Recreativo Escola de Samba Acadêmi-cos do Salgueiro e segunda porta-bandeira a desfi lar pelo G.R.E.S. Império Serrano) o terreiro foi transferido, defi nitivamente, para a rua General Olympio da Fonseca, nº 380, no bairro de São Matheus, em São João de Meriti, no Estado do Rio de Janeiro.

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Mãe Meninazinha d’Oxum foi iniciada em 1960, na Casa-Grande de Mesquita, por Iyá Davina. Por Tia Pequena foram iniciados cinco dos quatorze filhos e alguns netos car-nais de Iyá Davina, entre estes: Nair d’Oxaguiã (filha e primeira equede do Axé de Mesquita), Tia Neném de Xangô (filha), Waldemiro e Oswaldo (filhos e ogãs), Mãe Dêja (neta), Mãe Dininha (neta) e Tio Nozinho (neto e ogã de seu orixá). Mariazinha de Nanã, filha de Iyá Davina e mãe carnal de Mãe Meninazinha, fora ini-ciada no Ilê Ogunjá. Mariazinha de Nanã teve quinze filhos. Apenas seis viveram e foram, todos, iniciados na mesma Casa-Grande. Quando engra-vidou de Mãe Meninazinha, o Omo-lu de Iyá Davina disse que naquela barriga havia uma menina, filha de Oxum, que seria a herdeira do Axé. Em 18 de agosto de 1937, nascia Meninazinha d’Oxum. Duas de suas irmãs biológicas foram fundamental-mente importantes no processo de sucessão. A primeira, Waldemira do Nascimento, Mãe Dininha d’Oxossi, foi confirmada equede em 1950, na mesma Casa-Grande de Mesquita. Era equede do Omolu de Iyá Davi-

na. Mãe Dininha teve duas filhas, que hoje têm papéis importantes no egbé: Mãe Nilce d’Iansã e equede Neide d’Oxaguiã. Iyá Davina havia se mudado para a Rua Dias Raposo, em Ramos. Lá, Mãe Dininha, diretora da ala feminina do afoxé Filhos de Gandhi, fundou em 1963 o primeiro bloco afro feminino carioca, a Sociedade Afro Omo Xapanã. Outra irmã, Djanira do Nascimento, Mãe Dêja, foi, até o seu falecimento, em 1988, a iaquequerê do Ilê Omolu Oxum. Mãe Dêja fora iniciada por Tia Pequena para Iansã, em 1951, na Casa-Grande de Mesquita. Mãe Dêja teve cinco filhos, que hoje ocupam papéis importantes no terreiro: Mãe Lúcia d’Omolu, equede Hilda, equede Zeneide, equede Solange e ogã Carlinhos. Equede Solange casou-se com ogã Jorge, filho de Mãe Noélia d’Iansã (iniciada no mesmo barco de Mãe Lúcia d’Omolu), por sua vez, filha carnal de Mãe Angelina d’Ogum, iniciada por Ban-danguame, no Terreiro do Bate-Folha, em Salvador – o que, mais uma vez, comprova os vínculos criados entre o povo-de-santo no Brasil. Waldemar do Nascimento, Pai Mado d’Omolu, é outro ir-mão de Mãe Meninazinha com importante papel no terreiro. Sua esposa, Mãe Lourdes, já falecida, foi a primeira equede confirma-da no Ilê Omolu Oxum. Sua irmã carnal, Tia Fioti de Omolu, foi a primeira filha-de-santo iniciada no Ilê. Seu Mado é hoje um dos ogãs mais antigos da casa, junto com Pai Wilton (marido de Mãe Nilce d’Iansã) e Pai Carlinhos (filho carnal de Mãe Dêja).

Zeneide, Nilce, Sandra, Lindomar, Hilda e Diacuy. Afoxé Omo Xapanã (Ramos, RJ, 1963).

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