Ensaio Semiotico Sobre a Vergonha

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    ELIZABETH HARKOT-DE-LA-TAILLE

    ENSAIO SEMIÓTICO SOBRE AVERGONHA

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    APRESENTAÇÃO

    COMPRAS

    HUMANITAS LIVRARIA – FFLCH/USPRua do Lago, 717 – Cid. Universitária05508-900 – São Paulo-SP – BrasilTel.: 818-4589e-mail: [email protected]://www.fflch.usp.brSERVIÇO DE DIVULGAÇÃO E INFORMAÇÃOTelefax: 818-4612 – e-mail: [email protected]

    Endereço para correspondência

    FFLCH Humanitas Publicações – FFLCH/USP – outubro/1999

    PUBLICAÇÕESFFLCH/USP

    UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

    Reitor: Prof. Dr. Jacques MarcovitchVice-Reitor: Prof. Dr. Adolpho José Melfi

    FACULDADE DE FILOSOFIA,LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

    Diretor: Prof. Dr. Francis Henrik AubertVice-Diretor: Prof. Dr. Renato da Silva Queiroz

    CONSELHO EDITORIAL DA HUMANITAS

    Presidente: Prof. Dr. Milton Meira do Nascimento (Filosofia)Membros: Prof a. Dra. Lourdes Sola (Ciências Sociais)

    Prof. Dr. Carlos Alberto Ribeiro de Moura (Filosofia)

    Prof a

    . Dra

    Sueli Angelo Furlan (Geografia)Prof. Dr. Elias Thomé Saliba (História)Prof a. Dra. Beth Brait (Letras)

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    ELIZABETH HARKOT-DE-LA-TAILLE

    ELIZABETH HARKOT-DE-LA-TAILLE

    ENSAIO SEMIÓTICO SOBRE AVERGONHA

    PUBLICAÇÕESFFLCH/USP

    1999

    UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO • FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

    ISBN 85-86087-70-X

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    APRESENTAÇÃOCopyright 1999 da Humanitas Publicações/FFLCH/USP

    É proibida a reprodução parcial ou integral,sem autorização prévia dos detentores do copyright 

    Serviço de Biblioteca e Documentação da FFLCH/USPFicha catalográfica: Márcia Elisa Garcia de Grandi CRB 3608

    HUMANITAS PUBLICAÇÕES FFLCH/USPe-mail: [email protected]

    tel.: 818-4593

     Editor responsável

    Prof. Dr. Milton Meira do Nascimento

    Coordenação editorial e capaMª Helena G. Rodrigues

     DiagramaçãoMarcos Eriverton Vieira

     Revisãoautora

    Esta publicação foi paga, parcialmente, com verba daCAPES (PROAP)

    H245 Harkot-de-La-Taille, ElizabethEnsaio semiótico sobre a vergonha / Elizabeth Harkot-de-

    La-Taille.- São Paulo : Humanitas/FFLCH/USP, 1999.222 p.

    Originalmente apresentada como tese (Doutorado) –Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/USP.

    ISBN 85-86087-70-X

    1. Semiótica 2. Semântica 3. Sintaxe 4. Discurso 5.Paixão I. Título

      CDD 410.1

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     para Zilda Maria Zapparoli

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    ELIZABETH HARKOT-DE-LA-TAILLE

    SUMÁRIO

    INTRODUÇÃO .............................................................................. 17

    Capítulo 1 – A configuração da vergonha ...................................... 251 Considerações iniciais ............................................................. 252 Configuração: inferioridade e exposição ................................. 27

    2.1 O sentimento de inferioridade ................................................. 31 Rebaixamento .........................................................................33 Humilhação ............................................................................ 35 Desonra .................................................................................. 39 Indignidade ............................................................................. 42 A configuração genérica ..........................................................44

    2.2 O sentimento de exposição ..................................................... 44Visibilidade ............................................................................. 50Vulnerabilidade .......................................................................52O papel do “outro” ..................................................................54

    2.3 A co-incidência das configurações genéricas:

    a vergonha é uma ressonância ................................................ 57

    Capítulo 2 – A construção sintáxica da vergonha ........................... 611 As condições de base ............................................................. 612 A vergonha retrospectiva ........................................................ 653 A vergonha prospectiva .......................................................... 713.1 O envergonhado-inseguro ...................................................... 753.2 O envergonhado tímido ..........................................................773.3 As condutas defensivas com vistas à liquidação da falta .......... 80

    O pudor .................................................................................. 81O brio ..................................................................................... 85

     A estrela cadente: a honra ....................................................... 88

    Capítulo 3 – O problema da superação da vergonha ..................... 971 A vergonha assumida ............................................................. 981.1 Esquecimento ou negação ...................................................... 981.2 Humor .................................................................................... 991.3 Confissão .............................................................................. 1002 A vergonha não-assumida .................................................... 102

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    APRESENTAÇÃO

    2.1 Tristeza e raiva ...................................................................... 103 Relação com a vergonha ....................................................... 103Condutas femininas e masculinas .......................................... 105

     Personagens femininas e masculinas ..................................... 1082.2 Da tristeza à depressão, da raiva à fúria:

    duas palavras sobre a intensidade passional ......................... 1282.3 Consciência e superação....................................................... 1292.4 Desintegração do self ............................................................ 131

    Capítulo 4 – A complexa intersubjetividade da vergonha ............. 1331 Evidência .............................................................................. 1362 Condição .............................................................................. 1373 Impotência............................................................................ 1404 Fracasso................................................................................1445 Falta moral............................................................................ 1486 Contágio ............................................................................... 156

    Capítulo 5 – A vergonha sub judice .............................................. 1611 Primeiro tema: o Bem ou o Mal? .......................................... 1642 Segundo tema: a circulação da vergonha –

    o papel do domínio público .................................................. 1683 Terceiro tema: a circulação da vergonha – o contágio ........... 171

    Capítulo 6 – A vergonha nos textos: dois exemplos ...................... 1751 La Chute .............................................................................. 1781.1 O simulacro existencial de partida ......................................... 1821.2 O evento disfórico................................................................. 1851.3 O riso....................................................................................1872 Os Desastres de Sofia............................................................ 1962.1 O simulacro existencial de partida ......................................... 1962.2 O evento inicialmente eufórico que

    se revelará disfórico .............................................................. 1982.3 O elogio e o sorriso ............................................................... 199

    Conclusão .................................................................................... 207

    Bibliografia................................................................................... 198

    SUMÁRIO

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    APRESENTAÇÃO

    Este texto propõe um estudo da vergonha, sob a perspecti- va da semiótica das paixões, área da semiótica discursiva. Resul-

    ta de trabalho acadêmico, na forma inicial de Tese de Doutora-mento 1, defendida junto ao Departamento de Lingüística da Fa-

    culdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, em março de1996, sob a orientação da Professora Doutora Zilda M. Zapparoli,a quem dedico este livro. O texto atual apresenta pequenas mo-dificações em relação à sua versão inicial.

     A vergonha é aqui analisada a partir de textos escritos, prin-cipalmente literários. Inicia-se com o tratamento técnico da ques-tão, tendo nos capítulos um e, principalmente, dois, os trechosmais densos, do ponto de vista teórico, para, a partir do capítulotrês, abordar questões de várias ordens suscitadas pelo tema ver-gonha, dentre as quais figuram exemplos da antropologia, da

    psicologia e, principalmente, da literatura.Organizado em seis capítulos, o estudo começa abordandoas configurações passionais que concorrem para a instauraçãoda vergonha, as do sentimento de inferioridade e de exposição ediscute o sujeito envergonhado, um sujeito sincrético e conflitante,desempenhando diferentes papéis, sempre, porém, pressupondoum “outro” legítimo, real ou virtual, passível de julgá-lo. O segun-do capítulo desenvolve a sintaxe da vergonha e aponta para duasformas de realização de sua configuração: uma das formas é ten-

     sa, típica da vergonha retrospectiva e, outra, intensa, característi-

    ca da vergonha prospectiva. Ainda neste capítulo são estudadasas articulações tensivas e modalizações, no processo de instaura-ção da vergonha, e as seqüências à história modal do sujeito pre-

     visíveis pela sintaxe, desde a do envergonhado-inseguro e do tí-mido, até à dos os parassinônimos pudor, brio e honra, compre-

    1 Este trabalho teve o apoio das agências financeiras CNPq e CAPES.

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    APRESENTAÇÃO

    endidos como novos agenciamentos em torno da liquidação dafalta fiduciária.

    O terceiro capítulo discute seqüências à história modal nãoclaramente previsíveis, mas compreensíveis, dentro do quadroda sintaxe da vergonha: sua superação pelo humor, esquecimen-to ou confissão e seu “desvio”, isto é, sua vivência, de um modoindireto, como raiva ou tristeza. Trechos de textos literários são

     visitados a fim de verificar a opção predominantemente femininaou masculina pela tristeza ou raiva, como formas de desvio da

     vergonha. O capítulo seguinte discute os vários papéis desempe-nhados pelo sujeito envergonhado: o de vítima, ou de ofensor,ou de sujeito identificado com uma vítima ou com um ofensor,como numa forma de contágio. A relação da vergonha com oBem ou o Mal e sua circulação, via publicidade e via contágio,são o tema do capítulo cinco, que versa sobre os juízos moraisincidentes sobre o sentimento, a partir de colocações de moralis-tas, filósofos e escritores.

    O sexto e último capítulo analisa, do ponto de história modale passional de seus personagens principais, dois textos em tornoda temática da vergonha:  La Chute, de Albert Camus, e Os

     Desastres de Sofia, de Clarice Lispector.Desse modo, fecha-se o corpus de análise da paixão vergo-

    nha. Compreender o que significa esta paixão, para os indivídu-os de um dado grupo social, exige um estudo plural, multifaceta-do, que leve em conta articulações em torno do tema em diversasáreas do conhecimento humano. É com esta premissa em menteque optamos pela diversidade de fontes e posições a respeito do

    tema, evitando, assim, o estabelecimento de um corpus homoge-neizante, com tendência a uma simplificação das questões discu-tidas. O estudo de um tema complexo e de indiscutível valor hu-mano, dentro das Ciências Humanas, não poderia apresentarapenas um tipo de fonte de inspiração e argumentos.

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    Finalmente, este texto não propõe uma revisão teórica dasemiótica das paixões; é dirigido a interessados em compreendermelhor o que é a vergonha, segundo o homem ou a mulher quea vive, quais suas causas e implicações, qual o papel social de umsentimento que acompanha o ser humano desde a mais tenraidade, já no início do desenvolvimento de sua capacidade comu-nicativa, e ao longo de toda sua vida. E que pode ser leve, como

    o desconforto de se saber corar, ou violento e avassalador, levan-do, em casos extremos, à morte, alheia ou própria.

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    PREFÁCIO

     A partir dos anos 80, os estudos semióticos tomaram umadireção que parecia não ser a sua, há até bem pouco tempo, qualseja a da abordagem das paixões. O risco do “psicologismo”, dese retomarem estudos de caracteres e de temperamentos, afastou

    sempre a lingüística e a semiótica desse ângulo da análise dodiscurso. Só o amadurecimento e a segurança alcançados no exa-me da sintaxe narrativa e principalmente os avanços no estudoda modalização discursiva permitiram que a semiótica envere-dasse pelos meandros das paixões, sem medo de perder um es-paço duramente alcançado ou de voltar caminho.

     A semiótica das paixões desenvolveu-se em dois momen-tos: no primeiro, as paixões foram entendidas como efeitos desentido de qualificações modais do sujeito, produzidos no discur-so; no segundo, acrescentou-se aos estudos dos dispositos modaisda narrativa, o exame da sensibilização passional do discurso, ouseja, o das “precondições” da significação e de sua convocaçãono discurso em que se constituem os sentidos estéticos e passio-nais.

    Os estudos semióticos das paixões tiveram várias decor-rências e produziram resultados diversos na teoria semiótica e naanálise dos discursos: foram descritas paixões lexicalizadas ou de“papel”; iniciou-se o exame dos “estados de alma”, reafirmou-se, do ponto de vista teórico, a vinculação dos efeitos passionaiscom a organização narrativa e com seus dispositivos modais, e,principalmente, reviu-se a construção teórica do percurso gerativo

    da significação, com o exame das precondições. A teoria semióti-ca assumiu, uma vez mais, seu caráter de projeto coletivo emdesenvolvimento, de projeto de construção teórica que se refazcontinuamente. A confiança desconfiada que nos ensinou Greimasse mostra uma vez mais necessária.

    É nesse quadro teórico, nesse momento das investigaçõessemióticas e nesse campo de efervescência das certezas incertas

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    APRESENTAÇÃO

    que se coloca o livro de Elizabeth Harkot-de-La-Taille. Seu ensaiosemiótico sobre a vergonha analisa, na perspectiva mencionada,a paixão da vergonha a partir de textos principalmente literáriose, em especial,  La Chute, de Albert Camus e Os desastres deSofia, de Clarice Lispector.

    O trabalho de Elizabeth Harkot-de-La-Taille cumpre os pa-péis diversos que assumem os estudos do texto e do discurso em

    geral. Em primeiro lugar, contribui para o desenvolvimento teóri-co e metodológico da disciplina, ao examinar as configuraçõespassionais que concorrem para a instauração da vergonha, aoapontar dois tipos de vergonha, a retrospectiva ou intensa e aprospectiva ou tensa, ao indicar os demais estados patêmicosdecorrentes da paixão da vergonha, tais como a liquidação, asuperação e o desvio da falta de confiança, ao tratar dos papéisde vítima e de ofensor vividos pelo sujeito envergonhado, aomostrar a complexidade e as muitas facetas da configuração pas-sional da vergonha. Em segundo, realiza uma das funções “so-ciais” dos estudos do texto e do discurso, a de examinar os textos

    da cultura e contribuir assim para que se conheça melhor, pormeio da linguagem, a sociedade, ao analisar os livros de Camuse Lispector, as especificidades da vergonha na literatura, os juízosmorais que incidem sobre tal paixão, a partir principalmente, deestudos de moralistas, de filósofos e de literatos, e os conteúdosda vergonha, que variam com a época e a cultura. Finalmente, oensaio sobre a vergonha propicia um saber sobre a linguagem eprincipalmente sobre o homem, por via do exame de seus discur-sos: analisam-se as relações intersubjetivas, os “estados de alma”,os laços de interação, os jogos de imagem do homem em socie-

    dade. Ensaio semiótico sobre a vergonha é um desses livros bemacabados e que fascinam o leitor pelo tema escolhido – a vergo-nha é uma das paixões que regulamentam as relações miúdasentre sujeitos e as relações sociais e que nos levam a estabelecer

    PREFÁCIO

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    pontos de contato com a sociologia, a psicologia, a filosofia, asemiótica das culturas, entre outros –, pelos objetos de análiseselecionados – Camus e Lispector –, pelo estilo agradável e fluen-te, pelo uso adequado e competente da teoria, pela atualidade enovidade do debate teórico no campo da semiótica das paixões,pela atração quase estética de uma proposta teórica e de umaanálise bem articuladas.

     Diana Luz Pessoa de BarrosUniversidade de São Paulo

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    INTRODUÇÃO

    “J’ai honte, donc j’existe.” JANKÉLÉVITCH (1986: 456)

    “O rubor é a mais especial e a mais humana de todas asexpressões”, inicia DARWIN (1981/1864: 332) o 13o capítulo de

     A Expressão das emoções nos homens e nos animais. Certosmacacos ficam vermelhos de raiva, mas nenhum animal é capazde corar como o homem, exclusivamente por impressionabilidadede seu espírito.

    O rubor é expressão da vergonha, sentimento profundoque inclui ainda outras manifestações psicossomáticas: “todas asvezes que se produz um rubor intenso, manifesta-se ao mesmotempo uma perturbação, às vezes muito grande, das idéias. Este

     fenômeno é freqüentemente acompanhado de falta de destrezanos movimentos, e às vezes de contrações involuntárias em algunsmúsculos.” (idem: 372). Não adianta tentar controlá-lo: quantomais atenção se presta a si mesmo, mais fortemente a pessoa sedispõe ao rubor.

     Afeto, emoção, sentimento, ou paixão, a vergonha opera atransformação do homem natural em cultural, está no cruzamen-to central das coordenadas que definem o humano. A propósito,é também de Darwin a observação de que bebês e idiotas não

    coram: “Parece que as faculdades intelectuais das crianças pe-quenas não estão ainda suficientemente desenvolvidas para lhes permitir corar. Daí vem também que os idiotas coram raramen-te...” (idem: ibidem). A vergonha exige, portanto, alguém comconsciência de si.

    Não é apenas da capacidade intelectual que depende essapaixão para eclodir. Ela é fortemente baseada na opinião de

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    INTRODUÇÃO

    outrem. Na vergonha, o homem desloca sua atenção de si mesmopara o outro e para como o outro o vê; desloca sua atenção desua imagem no espelho para a sociedade e seu papel nela. Aopinião do outro pode ser manifesta, suspeita, ou suposta, massempre temida. Pode nem mesmo chegar a opinião e sersimplesmente um olhar direto sobre o sujeito, ou sobre suas roupas,ou sobre seus sapatos... Em suma, alguém totalmente isolado

    dificilmente coraria: é preciso alguém mais, ou melhor, é precisoa consciência de que alguém mais o olha e o julga – ou que pode vir a fazê-lo –, e de que seu juízo é digno de consideração, para

    haver vergonha. A vergonha faz viver uma dicotomia interior, leva a pensar o

    estatuto do outro e pode despertar questões filosóficas: “La honteest la première phobie de la mauvaise conscience qui s’apperçoit elle-même comme objet et qui sait pourtant que cet objet est encore

     soi-même comme sujet...” (JANKÉLÉVITCH, 1986: 449-450). Elase instaura num sujeito cindido, desdobrado e debruçado sobre simesmo. Objeto do pensamento alheio, objeto do próprio

    pensamento, objeto... Sujeito que percebe estar  sujeito e não ser sujeito, percebe ocupar uma posição: de sujeito, quando pensa,quando olha; de objeto, quando é pensado, quando é olhado.

     A vergonha “acontece” junto com uma debreagem actan-cial, mais especificamente, uma debreagem cognitiva. Ela permi-te “instaurar uma distância entre a posição cognitiva do enunciador e as que pertencem quer aos actantes da narração, quer aos donarrador” (GREIMAS; COURTÈS, 1979: 97). SARTRE (1943:336) define a vergonha como “le sentiment originel d’avoir monêtre dehors, engagé dans un autre être et comme tel sans défense

    aucune (...), sentiment (...) d’être un  objet, c’est-à-dire de mereconnaître dans cet état dégradé, dépendant et figé que je suis pour autrui.” Reconhecer-se fora de si mesmo, ser objeto paraoutrem... pode ser compreendido como o estado de um sujeitodebreado:

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    “Os sujeitos debreados e instalados no discurso são posições vaziasque só recebem suas determinações (ou seus investimentos* semân-ticos) após o fazer, seja do próprio sujeito da enunciação (pela predi-cação*), seja do sujeito delegado inscrito no discurso: esses sujeitossão, portanto, tratados como objetos à espera de suas determina-ções, que podem ser tanto positivas quanto negativas (se definidoscomo desprovidos de atributos enunciados)” (GREIMAS; COURTÈS,1979: 313, grifo nosso).

    O sujeito envergonhado é esquizotímico: parte embreado,parte debreado: reconhece-se fora de si mesmo, sem defesa, “nu”,à espera das determinações que lhe serão atribuídas.

    Para situar o estudo que segue, quatro questões se colocam.Em primeiro lugar, a perspectiva teórica adotada. Em segundo,como, em linhas gerais, a vergonha é compreendida. Em terceiro,a opção de sobre que corpus trabalhar; e, finalmente, em quarto,a organização dos capítulos.

    Como alguns conceitos acima permitem entrever, a pers-pectiva teórica empregada é a da semiótica discursiva – greima-

     siana –, mais especificamente seu desenvolvimento em torno doestudo das paixões. A motivação da escolha é de fácil compreen-são: dentro das várias linhas teóricas que se dedicam à análise dodiscurso, a semiótica greimasiana representa o arcabouço teóricoformalizado mais completo e refinado para o estudo de transfor-mações do “estado da alma” de sujeitos “de papel”; nossa opçãopelo corpus recaindo principalmente sobre textos literários, seuaparelho metodológico de análise permite-nos estudar a configu-ração passional da vergonha sob vários ângulos: as configura-ções que, combinando-se, criam o efeito de sentido de vergonha;

    a variação tensiva ao longo da instauração da vergonha e suasseqüências; o engendramento ou não de programas de liquida-ção de falta; e a moralização incidente sobre a vergonha.

     A vergonha é compreendida, neste estudo, como resultantede um fazer do sujeito envergonhado relativo à projeção de uma

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    INTRODUÇÃO

    imagem de si. É abordada do ponto de vista do sujeito patêmico,de seu simulacro interno: como se configura e o que significa esse

     jogo de imagens para o sujeito.Em linhas muito gerais, eis as premissas para o modelo

    proposto para a vergonha: o sujeito tem um simulacro existenci-al, isto é, faz projeções de si num imaginário de confiança e rela-xamento; dentro de seu simulacro existencial, ele constrói para si

    uma imagem que considera representá-lo, uma imagem com aqual se identifica e se confunde. Desliza, portanto, do  parecer para o  ser , imagem e sujeito constituindo um mesmo e único

     valor. Ter uma imagem de si não significa ter um modelo fixo aimitar, como o “bom aluno”, ou o “bom escoteiro” – excepcional-mente, pode assim acontecer –, mas um conjunto de projeçõesdo sujeito negociadas em função de sua interação com seu mi-crouniverso socioletal, num constante reformular de seu simula-cro existencial (alteram-se as coordenadas do sujeito, seu simula-cro existencial será reformulado para ajustar-se à nova realidade1 ).

    De posse de uma imagem de si, uma circunstância inespe-

    rada, caracterizada como um evento disfórico, vem arrancar osujeito de seu estado de confiança relaxada: percebe que o modocomo se vê (a imagem que acreditava representá-lo, ou o valorque a ela atribuía) mostra-se em desajuste com o modo como se

     vê visto (sua imagem para os outros, seu papel desempenhado).Como imagem e sujeito se confundem, o sujeito reconhece nãoser o que pensava ser e teme o juízo dos outros, uma vez que sua

    1 Uma grande empresa de televisão parece contratar serviço de apoio psicológico paraos novos integrantes de seu quadro de atores; muitos belos rostos, modelos de origem,teriam dificuldade em lidar com a súbita fama: entre vários problemas, parece que

    tenderiam a ter uma imagem de si em desajuste com o modo como a empresa os vê,passando a fazer exigências de estrela – horários de gravação, papéis a desempenhar,tratamento a receber, cachê, etc. É um exemplo claro do processo de reformulaçãode simulacro existencial: a antiga imagem de si (anterior ao sucesso) não maissatisfazendo, os sujeitos passam por um período de “negociação simbólica”, em buscade uma representação de si satisfatória e aceitável a ponto de permanecerem, aomenos por um tempo não muito curto, em relaxamento.

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    nova e indesejada representação é a imagem que os outros têmou podem vir a ter de si. Está formada a base para a vergonha.

    Tomar a vergonha a partir desse jogo de projeções de ima-gens traz a nítida vantagem de pensar suas muitas organizaçõessob um denominador comum. Une, enquanto projeções de ima-gens, o envergonhado por ser vítima, ofensor, equivocado, calu-niado, pobre, feio, mulher, ou criminoso, para citar alguns.

    No tangente à seleção do corpus, duas justificativas seimpõem: por que principalmente literário e por que destaque a La Chute, de Camus, e a Os Desastres de Sofia, de Lispector.

     A escolha da literatura como corpus principal deveu-se àsua característica de simulacro do real. O tema vergonha apresentauma dificuldade incontornável à pesquisa: vergonha é coisa deque não se fala. Ou então estamos em contextos de psicoterapiaou psicanálise, ou em circunstâncias tão repletas de especificidadesque acabam por não ser representativas: acabaríamos por estudara vergonha dos sujeitos X, Y e Z , e não a vergonha como umestereótipo passional. Há ainda uma outra possibilidade: pode-se entrar em contextos em que parece inexistir vergonha comoconfiguração passional – são contextos de nível sociocultural alto,em que os sujeitos têm maior controle sobre a linguagem e sobrea expressão das próprias paixões. Neste último microuniverso,representado, por exemplo, por artigos de jornais e revistas, apalavra vergonha aparece quase unicamente como um veredito– É uma vergonha! É vergonhoso! É ultrajante! –, como se aossujeitos com a palavra fosse reservado o juízo e àqueles de quemfalam, a condenação. Nunca – ou quase nunca – paixão, masafirmação de si e negação do outro.

     A literatura, como simulacro do real, apresenta-nos os “es-queletos no armário” que o dia-a-dia tão bem esconde. Emborao faça de forma velada, oferece ao analista do discurso uma ja-nela – aberta e discreta – para a vida além da própria. Ao invésde escutar atrás das portas, espiar por buracos de fechadura, gram-

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    INTRODUÇÃO

    pear telefones, ou contratar investigadores particulares para bis-bilhotar a vida alheia, a fim de buscar um melhor entendimentoda vergonha, tomam-se e se estudam alguns bons livros. Temosaí, é claro, o estudo da vergonha nos textos, em textos que simu-lam o real, mas não a vergonha das pessoas de carne e osso dacidade tal no ano ene.

     A opção por La Chute eOs Desastres de Sofia é decorrente

    de pesquisa bibliográfica literária. Tema oculto, não são muitosos textos sobre a paixão vergonha. Há, por outro lado, na litera-tura, muitas cenas de vergonha e não hesitamos em delas lançarmão, quando necessário. A vergonha, entretanto, não é paixãoque se manifesta clara ou longamente nos textos. Coerentementecom o real, a literatura também escamoteia as vergonhas daspersonagens, apresenta histórias paralelas, toma desvios, fala decoisas motivadas por algo secreto que, descobre-se, é alguma

     vergonha sofrida. A vergonha precisa ser reconstruída a partirdos textos. La Chute eOs Desastres de Sofia são dois textos intei-ros sobre a problemática da vergonha, por ângulos radicalmente

    diferentes: o primeiro desenvolve o projeto de um universo sem valores; o segundo reflete os efeitos passionais de descobertas

    cognitivas. Por isso foram escolhidos.Finalmente, um breve apanhado dos capítulos que seguem

    permitirá uma visão de conjunto deste estudo.O texto está organizado em seis capítulos. O primeiro abor-

    da as configurações passionais que concorrem para a instaura-ção da vergonha; o segundo desenvolve as articulações tensivase as modalizações ao longo do processo de instauração da vergo-nha e os caminhos posteriores a ela, previsíveis na sua sintaxe. O

    terceiro, também sobre as possíveis decorrências da vergonha,discorre sobre caminhos não previsíveis em sua sintaxe, mas re-petidamente identificados; investiga também como a literatura osretrata. O quarto capítulo trata das múltiplas organizações actan-ciais e actoriais identificadas numa situação de vergonha instau-

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    rada. O quinto, último capítulo teórico, versa sobre os juízos mo-rais incidentes sobre a vergonha, a partir de colocações, princi-palmente, de moralistas, filósofos e escritores. O sexto e últimocapítulo é de cunho prático e procura realizar três tarefas: efetuara análise de La Chute eOs Desastres de Sofia, do ponto de vistada história modal e passional de suas personagens, sujeitospatêmicos da vergonha; verificar o alcance do modelo proposto,quando contraposto a textos em que o efeito de sentido “vergo-nha” é identificado como predominante; e revisitar o modelo da

     vergonha levando em conta os aportes que os textos analisadospodem oferecer.

    Dito isso, o texto que segue acusará algumas ambições,dentre as quais destacamos a proposta de um modelo competen-te da vergonha. Tal modelo, entretanto, não deve – e nem quer –ser lido como completo, acabado, com ares de fim da história da

     vergonha.Para finalizar, apenas uma ressalva sobre o que não vai ser

    encontrado adiante: o debate vergonha/culpa, ou suas inúmeras

    ramificações. Isto por uma tomada de posição que a semióticanos permite: debruçar-se sobre a vergonha significa debruçar-sesobre modalizações do  ser , sobre transformações do estado desujeitos, estereotipadas, identificadas como paixão. Na vergonha,é o sujeito, seu ser , através da imagem que projeta de si, que estásob mira. A culpa diz respeito à sanção que o sujeito se aplica, ofoco reside nela, na sanção, não no ser  e nas suas transformaçõesde estado. A culpa não caracteriza uma paixão. A vergonha, sim.Uma paixão essencialmente humana, unicamente humana, radi-calmente humana.

    “Man is a beast when shame stands off from him.”SWINBURNE, Phoedra: Hippolytus 2

    2 Citação extraída de The Home Book of Quotations, Stevenson, 10 ed., 1967, publicadopor Dodd, Mead & Company, N.Y.

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    A CONFIGURAÇÃO DA VERGONHA

    1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

     A motivação de um estudo dedicado à vergonha tem ori-gem em seu caráter complexo: trata-se de uma paixão intersubje-tiva, originada no cruzamento de outras configurações, em que oDestinatário assume a perspectiva de um Destinador julgador,exercendo um fazer cognitivo reflexivo que gera uma sanção ne-gativa. É um sujeito desdobrado em dois simulacros existenciaisconflitantes: num, ele tem, ou pensa ter uma certa competênciamodal positiva, pensa ser  – ou melhor, projetar-se – de um deter-minado modo; noutro, ele vê que não possui tal competência,que não é como pensava ser. Tudo isso acrescido do olhar real ou

     virtual de um espectador legitimado pelo sujeito, supostamenteem conjunção com o sistema de valores do Destinador julgador.Em suma, por um lado, um mesmo ator sincretiza os actantesDestinatário e Destinador julgador; por outro, o actante Destina-dor julgador é “encarnado” por mais alguém: um espectador le-gítimo, real ou virtual.

    Neste estudo sobre a vergonha, interessam-nos, particular-mente, sua “história modal”, assim como o simulacro “ad usuminternum du sujet qui cherche à s’y reconnaître” (GREIMAS, 1983:218). O sujeito envergonhado, desse ponto de vista, é alguémdividido internamente e sob o juízo alheio: por um lado, ele cons-

    trói uma imagem virtual de si; por outro lado, ele é obrigado areconhecer-se como não dotado da competência necessária paragozar de tal imagem; além disso, ele elege o olhar do outro comolegítimo, para julgar, negativamente, a imagem de si que conse-gue projetar.

     Além de sua complexa organização actancial e actorial, oitem lexical vergonha recobre dois sentimentos aparentemente

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    A CONFIGURAÇÃO DA VERGONHA

    distintos e diferentes entre si: suas entradas em Aurélio e em Le Robert  apresentam como sinônimos numa primeira definição,desonra e, mais adiante, honra.

    Partindo das definições dos dicionários acima, podemos che-gar a duas macrodefinições: em primeiro lugar, “desonra humi-lhante, opróbrio, ignomínia, degradação; sentimento penoso dedesonra, humilhação ou rebaixamento diante de outrem; sentimento

     penoso de inferioridade, de indignidade diante de sua própria cons-ciência, ou rebaixamento na opinião dos outros”; em segundo lu-gar, “sentimento de insegurança provocado pelo medo do ridículo,

     por escrúpulos; timidez, acanhamento; pudor, brio, honra.”Ora, que palavra é essa que recobre o não e o sim, a au-

    sência e a presença, o temível e o desejável? A vergonha de terfeito algo condenável será a mesma vergonha de falar de ques-tões de foro íntimo? Sobre que variáveis incide a crise passionalque caracteriza o sujeito envergonhado?

    O percurso passional da vergonha tem a característica deser orientado pela perspectiva do sujeito patêmico 1 : a vergonhapode ser vivida de duas formas diferentes, dependendo de o acon-tecimento que a traz à tona ser-lhe anterior ou posterior. Um dostipos de vergonha, isto é, o sentimento penoso de desonra, deinferioridade diante de outrem ou da própria consciência, decor-re de um feito ou acontecido, é uma vergonha posterior a umacontecimento. Esta vergonha é vivida como uma profunda tris-teza, por vezes até como um desespero, acompanhada de umdesejo de desaparecer.

    Contudo, se a vergonha é anterior ao acontecimento, istoé, se ela determina uma conduta, o sujeito a vive como um receio

    1 Pode-se traçar um paralelo entre as duas formas de vergonha e as duas formas deciúme apontadas por Greimas e Fontanille (1991: p. 189-190): o ciúme prospectivo,de quem teme a perda da exclusividade sobre o objeto-valor – vê rivais potenciais esuspeita poder ser traído – e o ciúme retrospectivo, de quem tem consciência de nãopossuir tal exclusividade – sabe da conjunção de outrem com seu objeto-valor.

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    e uma angústia, como uma disposição de espírito: receio de ex-por-se, de ser objeto do juízo de outrem e, portanto, vulnerável,“sem qualquer defesa”, segundo a expressão utilizada por SARTRE(1943: 336), e angústia – parente próxima do medo, um medosem objeto – por conta da possibilidade de uma tal circunstância.

    Essas “duas vergonhas” são, no entanto, uma só. Possu-em, em sua base, uma mesma configuração, camuflada por uma

     variação de perspectiva:

    “...ce n’est là qu’une variation de perspective, sur l’axe de l’antérioritéet de la postériorité, qui présuppose un dispositif actantiel unique et qui relève de la mise en discours; d’un côté, elle focalise les effetsd’une syntaxe (...); de l’autre, elle présuppose la constance d’uneconfiguration.” (GREIMAS e FONTANILLE, 1991: 190).

    Embora a observação acima tenha sido tecida a propósitodo ciúme, ela pode perfeitamente ser estendida à vergonha.

     A análise lexical que segue tem o objetivo de apontar as

    constantes na configuração, nas duas definições, e balizar a refle-xão. A partir das definições de vergonha de Aurélio e Le Robert ,discutiremos realizações da configuração em textos literários. Abor-daremos, também, o pensamento de filósofos, moralistas e cien-tistas.

    2 CONFIGURAÇÃO: INFERIORIDADE E EXPOSIÇÃO

    Partindo das definições acima, podemos apreender que a

     vergonha se estabelece no encontro de duas outras configura-ções passionais: a da inferioridade, que traduz a relação do sujei-to com a imagem que se acreditava capaz de projetar e a daexposição (o sentimento de estar exposto), que diz respeito à re-lação sujeito/universo socioletal.

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    O sentimento de inferioridade já é, por si só, complexo eengloba as etapas de um programa narrativo: trata-se do produtode um fazer cognitivo, na forma de uma operação de compara-ção, que pressupõe um apego ao objeto (imagem) com que osujeito se percebe não-conjunto. Esta comparação é exercida porS1 entre a imagem que acreditava ser capaz de projetar, a ima-gem virtual, e a imagem de fato projetada, sancionada negativa-

    mente. Tudo isso culminando na patemização do sujeito. Afinal,a constatação da inferioridade de fato não implica necessaria-mente o sentimento de inferioridade, estado patêmico segundo oqual o sujeito se vê com menor valor do que acredita(va) mere-cer.

    Esse jogo de imagens, virtual e projetada, que pode levar àinstauração do sentimento de inferioridade, acusa, na verdade,reformulações de simulacros que os sujeitos da comunicação di-rigem uns aos outros. A primeira, a imagem virtual, resulta dosimulacro existencial inicial do sujeito, isto é, das projeções reali-zadas pelo sujeito a respeito de si mesmo, num imaginário de

    confiança e relaxamento. Em alguns casos específicos, pode tra-tar-se de uma imagem estática, como a do “bom escoteiro”, maso que parece ser mais comum é um processo dinâmico de refor-mulação de imagens desejáveis, a partir da interação do sujeitocom seu universo socioletal. Ao resultado desse processo dare-mos o nome de “boa imagem”, a partir da expressão empregadapor GREIMAS (1983: 213-224) em “Le défi”. Salvo em casosexcepcionais, a “boa imagem” a que freqüentemente nos referi-remos não significará, portanto, um modelo retirado de algumreceituário de boas maneiras, patriotismo, religião ou etc., mas o

    conjunto de projeções de si que o sujeito faz, quando confiante erelaxado. A segunda, a imagem projetada, também resulta deprojeções do sujeito a respeito de si mesmo, na interação comseu microuniverso, mas, desta vez, num imaginário não mais derelaxamento e confiança, mas de intensão e suspensão da con-

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    fiança, ou de tensão e negação da confiança. Se o sentimento deinferioridade se instaura, trata-se, necessariamente, de uma ima-gem contraditória com a primeira.

    Em se tratando de uma teoria de bases fenomenológicas, asemiótica vê a imagem projetada como a projeção do ser . O olharalheio, portanto, tem somente o  parecer  como base para fazerinferências sobre o ser  do sujeito e, conseqüentemente, exercer

    seu juízo. A relação ser-parecer, em torno da imagem do sujeito,adquire, desse modo, importância capital. O sentimento de infe-rioridade causado pela falta da “boa imagem” (e projeção deoutra, em que a competência modal valorizada positivamente nãoexiste) fica a léguas de ser um sentimento superficial. Para o su-

     jeito envergonhado, seu valor pessoal, antes relacionado com suaimagem virtual, e sua imagem projetada confundem-se. Com adesintegração de sua imagem virtual, o sujeito vive uma crisefiduciária que pode ter como conseqüência o desmoronamentode todo um universo de crenças pessoais: ele é, na esfera pública,o que sua imagem projetada o faz parecer. O universo simbólicoem que S1 se reconhece enquanto sujeito pode ruir.

     Além disso, o sujeito envergonhado sanciona ele próprionegativamente sua imagem projetada, caracterizando uma situa-ção de esquizotimia 2: embora sendo determinada imagem, para

     julgá-la negativamente, adere a um quadro axiológico que a con-dena. Isto lhe dá uma nova existência semiótica, em conjunçãocom os valores representados pelo “olhar alheio” que S1 compar-tilha. Deve, nesse quadro axiológico, exercer um fazer reflexivo. Éum sujeito dividido e oscilando entre dois simulacros.

    2 Curiosa situação: o sujeito está em conjunção com determinados valores, a partir dosquais julga a si mesmo negativamente, por não estar em conjunção com os mesmos

     valores: quem (verdadeiramente) se censura por não ser honesto deve, necessaria-mente, sê-lo, para vir a se censurar. Como canta G. BRASSENS em Ceux qui ne

     pensent pas comme nous: “Entre nous soit dit, bonnes gens,/Pour reconnaître/ quel´on n´est pas intelligent,/ Il faudrait l´être.”.

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    A CONFIGURAÇÃO DA VERGONHA

    O encontro dos sentimentos de inferioridade e de exposiçãoprovoca vergonha. Esta, por sua vez, produz efeitos somáticos, comoo rubor, que a torna visível. A impossibilidade de esconder o senti-mento pode gerar mais vergonha – a vergonha de ter vergonha.Instaura-se, assim, uma espiral em que o sujeito patêmico pode sertragado, até que a situação se torne insuportável, levando-o a agira fim de romper o ciclo, ou até que se abstraia do olhar alheio.

    Um incremento no sentimento de inferioridade leva S1 atemer e, provavelmente, evitar a exposição; um aumento de ex-posição, isto é, um maior número de espectadores, ou especta-dores com “mais direito” ao juízo, causa um sentimento de infe-rioridade mais contundente, ou um novo sentimento de inferiori-dade: o da impossibilidade de – ou incompetência para – defen-der-se do olhar alheio.

    Umas poucas palavras sobre o espectador, esse “olhar a-lheio”: em primeiro lugar, ele não é meramente um observadorexterno que olha o sujeito patêmico e reconhece nele o estereóti-po da vergonha. O espectador é parte integrante da configura-

    ção: sem o sentimento de estar exposto, seja esta uma exposiçãoreal ou virtual a outras pessoas, ou interiorizada, como exposiçãoà própria consciência, não há instauração da vergonha. Em se-gundo lugar, o espectador tem de ter legitimidade enquanto juiz.

     A vergonha somente se instaura se o sujeito com sentimento deinferioridade crer que tanto ele como seu(s) espectador(es) com-partilham o mesmo sistema de valores e se atribuir a seu(s)espectador(es) o direito de julgá-lo. Decorre disso que expor aprópria inferioridade é mais ou menos vergonhoso, dependendodo outro que a vê e a julga.

    BOURDIEU (1968: 208) ilustra bem essa idéia ao citar oque se diz em Cabília sobre alguma condenação por tribunal:“No se trata de deshonor ni de vergüenza – se dice –: es la ley

     francesa”. E, em nota de rodapé, acrescenta “Me han contadoque un hombre de Cabilia, de vuelta de la cárcel, no salió de su

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    casa hasta que volvió a crescerle el bigote. Lo único que podíadeshonrarle era la falta de bigote.” Em outras palavras, ter sidocondenado, pela lei francesa, não é vergonhoso, mas ser visto empúblico ( seu público, não o público da prisão, ou dos tribunais)sem bigode o é.

    Parece-nos lícito pensar que este homem de Cabília, quan-do na prisão, de bigode raspado, provavelmente sentiu-se infe-

    riorizado, mas não envergonhado ou desonrado perante os ou-tros presos – também de bigode raspado! – ou as autoridadesfrancesas. No entanto, talvez sentisse vergonha ao simplesmente

     pensar  que seus parentes e amigos poderiam vê-lo assim e, de volta à casa, situação mais próxima da concretização da exposi-

    ção de sua “insuficiência” aos seus, portanto, potencialmentedesonrosa, vê-se obrigado a fugir do olhar alheio até a recupera-ção do símbolo momentaneamente perdido.

    Logo, é bom ressaltar, alguém somente se sente exposto, seconsiderar seu espectador legítimo. O sentimento de exposição,portanto, pressupõe, por parte do sujeito, o reconhecimento da

    instância que o olha e o julga como legítima. Essa instância so-mente terá legitimidade, se, no simulacro interno do sujeito, esti-

     ver em sincretismo com o Destinador julgador responsável pelasanção negativa de sua imagem projetada.

    2.1 O SENTIMENTO DE INFERIORIDADE

     Inferioridade é definida por Aurélio como“qualidade, con-dição ou posição de inferior”. E inferior  é“que está abaixo de

    outro(s) em qualidade, condição, importância, mérito, valor”. Nodicionário brasileiro, diferentemente dos dicionários franceses, nãohá  sentimento de inferioridade. A tradução do francês, porém,como “sentimento de uma fraqueza, real ou falsa”, é bastantesatisfatória. Esse sentimento resulta de uma operação de compa-

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    ração entre competências modais e/ou entre imagens pessoais,orientada de maneira decrescente. Pressupõe um querer , um de-sejo de conjunção com o objeto-valor “boa imagem”. Pressupõetambém, subjacente a esse querer, um dever , pivô da instauraçãode uma imagem virtual como “boa imagem”, componente “so-cializante” da mesma. O sujeito deve estar em conjunção comdeterminados valores, para ser reconhecido como dotado de “boa

    imagem”, e o quer . A “boa imagem” não depende necessariamente de os va-lores nela inscritos estarem de acordo com o total do sistema de

     valores do universo socioletal do sujeito. Freqüentemente o queestá em cena é um conjunto de valores supostos de um Destina-dor de um microuniverso socioletal do qual o sujeito faz parte.Há, no mínimo, tantas “boas imagens” quantos microuniversossocioletais. Para o integrante de uma torcida organizada de umdeterminado time de futebol, a “boa imagem” pode ser a do tor-cedor apaixonado; para o de outra torcida, pode ser a do provo-cador de adversários; para o praticante de uma religião, será a do

    homem e da mulher castos; para o de outra, a da pessoa pia.Freqüentemente um mesmo sujeito tem “boas imagens” diferen-tes, segundo o grupo em que se encontra. Por exemplo, o pai defamília paulistano pode agir de acordo com a imagem do paibom e justo, respeitador, amoroso, etc., quando em família; ao sairno trânsito de São Paulo, facilmente abandonará a “boa imagem”anterior em proveito da imagem de “esperto”, daquele que nãoperde as oportunidades: atravessa o farol vermelho, ultrapassa peladireita, não dá passagem a outros, fecha cruzamentos, etc. Nessescasos, serão diferentes, e por vezes até opostos e contraditórios,

    os motivos possíveis de perda ou ausência da “boa imagem” econseqüente instauração do sentimento de inferioridade. A “boa imagem” pressupõe, como vimos acima, um dever 

    e um querer , é uma imagem virtual, decorrente de uma mani-pulação. Toda manipulação ocorre no quadro de um simulacro

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    em que S1 tem a base simbólica para o reconhecimento de sienquanto sujeito. Tomando o sentimento de inferioridade da pers-pectiva daquele que o sente, o sujeito, em seu simulacro interno,

     vê-se como alguém dotado de um dever  e umquerer  realizar a“boa imagem”, mas, ao mesmo tempo, sem competência paratanto: ele se reconhece como dotado de um não-poder-fazer  (rea-lizar a “boa imagem”), ao menos no momento em questão. Oreconhecimento de sua incompetência abala, de modo mais oumenos profundo, o reconhecimento de si mesmo enquanto sujei-to, este intimamente ligado à imagem virtual, à “boa imagem”.Reconhecer sua falta produz uma crise fiduciária e pode implicardesde resignação do sujeito até, em situações limites, sua auto-destruição (ver humilhação, adiante, neste capítulo).

    É assim com o vestibulando que, mesmo após um ano deárduos estudos, não consegue entrar na faculdade desejada; oucom o homem/a mulher que se mira nas fotografias de top modelse, em seguida, olha-se no espelho, frente à realidade sem reto-ques ou truques de iluminação; ou com o esportista diante de

    uma derrota, etc. A inferioridade como sentimento é uma configuração pas-

    sional resultante de um fazer cognitivo: a comparação entre a“boa imagem” e a imagem projetada, com ênfase na falta daprimeira. Terá um alcance variável, dependendo do apego e dograu de identificação do sujeito com sua “boa imagem”. É tam-bém a configuração mais genérica, como nos mostram, a seguir,o exame dos parassinônimos de vergonha: rebaixamento, humi-lhação, desonra e indignidade.

    R EBAIXAMENTO 

     Rebaixamento é“diminuição ou perda de valor, preço, al-tura” (Aurélio). Caracteriza um tipo de inferioridade provocada,

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    necessariamente resultante da atuação de um sujeito do fazer.Em primeiro plano, coloca-se a relação polêmica S1,O/S2, emque S1 se transforma em um objeto do fazer de S2 e com issoperde a “boa imagem” que possuía. S2 faz com que S1 surjacomo não-conjunto com seu O v “boa imagem”. Não há, no en-tanto, despossessão, pois S2 não entra em conjunção com a “boaimagem” de S1. Se S1 e S2 pretendem, por exemplo, a chefia de

    um grupo, o rebaixamento não se dá pela vitória de S2, mas nacaracterização de S1, por S2, como não apto a disputá-la.Não se trata, diretamente, da disputa por um O v, mas de

    uma comparação de competências modais, com um duplo obje-tivo: de um lado, o objetivo imediato, a inferiorização de S1, atra-

     vés da aniquilação de sua “boa imagem”; de outro, como decor-rência, o provável estabelecimento da superioridade de S2. Háduas formas de tornar-se superior: superam-se as próprias defici-ências, ou se subjuga o outro. No rebaixamento impera a segun-da forma: S2 tenta promover-se através da fraqueza alheia, S1 éa parte subjugada, tornada meio para um fim de S2.

    Estamos, porém, mudando de perspectiva e fazendo infe-rências que apontam para além do programa de rebaixamento.

     Atendo-nos a ele, a perspectiva a ser adotada é de S1, para quemo rebaixamento é uma inferiorização provocada, é um programade destruição de valor, do objeto-valor “boa imagem”. S2 ga-nhará ou não com isso dependendo das contingências presentesna narrativa.

    Um tipo particular de rebaixamento é o rebaixamento desi. Rebaixar-se é “cometer atos indignos, aviltar-se, humilhar-se”( Aurélio). É igualmente um programa de destruição do objeto-

     valor “boa imagem”. Sendo uma ação reflexiva, a perspectivaadotada parece ser a da inferiorização, a da perda da “boa ima-gem”, tudo se passando como se o sujeito operador do rebaixa-mento se fundisse no papel do rebaixado e restasse apenas osegundo, aquele destituído da “boa imagem”.

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    Essa primeira leitura do rebaixamento de si revela-se insa-tisfatória, senão ingênua. Excetuando-se os casos em que o sujei-to não tem escolha – pensamos aqui nos rituais de iniciação, comoalguns trotes em calouros de faculdades ou instituições militares –,se é verdade que o sujeito que se rebaixa abdica de uma imagemde si pela qual tem apreço, é também verdade que ele o faz, muitas

     vezes, de próprio grado, com um objetivo em mente.

    Quando Jacques BREL canta “Laisse-moi devenir l’ombrede ton chien, l’ombre de ta main”, a voz implora a proposta: quese vá o homem, mas que fique a sombra... O homem cede seulugar, lugar esse que não reconhece não mais existir, à sombra; asombra pode insinuar-se e preencher o espaço do nada, do va-zio. Se é melhor ser homem que sombra, é também melhor sersombra que nada, aponta o raciocínio. É justamente aí, na recusade ser nada, que reside o rebaixamento de si.

    O rebaixamento próprio pode até mesmo servir como estraté-gia de autovalorização, o que fica evidente, por exemplo, naautocrítica: o sujeito promove um jogo interessante, o de valorizar

    “aquele que fala” através da desvalorização “daquele de quem fala”.Uma leitura crítica da confissão (cap. 3) aponta na mesma direção.

     Abordando o rebaixamento de si sob esse olhar, como estra-tégia de autovalorização, não somente se muda a perspectiva como,e principalmente, ingressamos no âmbito dos programas de liqui-dação de falta, tema desenvolvido nos capítulos 2 e 3; atendo-nosao rebaixamento como programa de destruição de objeto-valor,permanecemos na “família” da inferioridade e damos continuida-de a seu exame, discutindo, a seguir, a humilhação.

    H UMILHAÇÃO 

     A humilhação é mais um tipo, ainda mais específico e ca-bal, de inferiorização. É definida como “rebaixamento moral”,

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    A CONFIGURAÇÃO DA VERGONHA

    por Aurélio, e “action d’abaisser, action d’humilier” por Le Robert  Historique.  Humilier , originário do latim eclesiástico, significa“rendre humble” e evolui, no contexto profano, a partir do séculoXII, para “abaisser (quelqu’un) d’une manière avilissante ou ou-trageante” e, mais recentemente,“couvrir de honte, de confusion”.

     A humilhação está, desde tempos remotos, intimamente relacio-nada ao respeito, compreendido como submissão a uma autori-dade; dentro de zonas de limites variáveis, é freqüentemente aceitacomo “recurso pedagógico”. Abundam exemplos de pais quehumilham os filhos, para “educá-los”. Também, infelizmente, nãofaltam autoridades e estabelecimentos públicos que a promovemou a toleram, sob o mesmo argumento “pedagógico”. Foi o caso,noticiado pela Folha de São Paulo de 15/02/95, de uma mãe –em seguida condenada por maus tratos – que fez seu filho de 11anos sair nu às ruas de Viena, Áustria, a uma temperatura de0oC, como punição por ter chegado atrasado; ou, noticiado namesma data, da mulher que obrigou o filho de 10 anos a desfilarpela cidade de Ribeirão Pires carregando um cartaz com a inscri-

    ção “ladrão”, por suspeitar que tivesse roubado; foi também ocaso, em maio de 1990, que culminou no suicídio de um aluno,de o Colégio Militar do Rio de Janeiro divulgar, por alto-falante,no momento em que a mãe do menino estava presente, que elehavia sido flagrado “colando” numa prova 3 . É o caso de inumerá-

     veis histórias de dominação de um por abuso de poder de outro.

    3 Este triste episódio remete-nos ao texto de J. Fontanille intitulado Le désespoir . Emlinhas gerais, o autor sustenta que o desespero é uma revolta contra o Destinador,com manutenção do sistema de valores representado pelo mesmo. Esta posiçãoencontra confirmação na carta-testamento, publicada na Folha de São Paulo de 18/05/90, que o menino deixou para a mãe: “Eu estou indo embora porque cometi um

    erro, fui punido, mas não aguentei a maior punição que foi a de nem ao menospoder olhar nos seus olhos e me desculpar daquilo que na verdade nem cheguei afazer”; adiante, conclui a mesma com a frase “Obrigado pela vida que você meproporcionou até hoje”. Que erro foi esse, se não conseguiu se desculpar pelo “quenem chegou a fazer”? Que sentido tem um agradecimento pela vida com que decidiraacabar, senão a revolta contra pais, professores, colégio, com manutenção do sistemade valores?

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     As matizes que a humilhação adquire em contextos diver-sos são objeto de reflexão de GREIMAS e FONTANILLE (1991:96-99) no subcapítulo L’univers passionnel sociolectal. Apresen-tam-na no contexto de ensino, como verdadeira estratégia peda-gógica: definem-na como “une manipulation pathémique qui viseà installer chez l’enseigné un certain segment modal stéréotypéoù la conscience (savoir) de l’incompétence doit amener à uneacceptation (vouloir) des apprentissages proposées: le “savoir-ne-pas-être” se transforme en ne-pas-vouloir-ne-pas-être.”

    Citando um exemplo de manipulação que os próprios au-tores consideram pouco reconhecível enquanto humilhação, asaber, o discurso de Freud em Introdução à Psicanálise – confe-rência em que o cientista repetidamente explora a consciênciados alunos sobre a própria incompetência como necessária à acei-tação ou compreensão daquilo que ele, Freud, tem a dizer –, Grei-mas e Fontanille afirmam, a respeito do dispositivo modal postoem prática, que “il suffit qu’aux marges de ce micro-univers so-ciolectal des chevauchements se produisent avec d’autres discours

     sociaux, culturels ou idéologiques, ou avec des univers individu-els non intégrés, pour que l’effet de sens “humiliation” réappa-raisse...” (p. 97)

    Em outros contextos, o dispositivo modal acima mostra que ahumilhação é mais do que um programa de destruição da “boaimagem”, mais do que um simples rebaixamento (por mais doloro-so que este possa ser para o sujeito). O que ela tem de mais especí-fico e profundo é sua característica de rebaixamento moral e, comotal, rebaixamento do quadro axiológico em que S1 se reconheceenquanto sujeito. Ela é uma forma de ação particularmente violenta,

    por não se limitar a destruir um objeto-valor, mas por visar àdeslegitimação de grande parte, senão da totalidade, do universosimbólico subjacente a esse objeto-valor para o sujeito.

    Por isso, S2 não se limita a fazer S1 reconhecer sua incom-petência; através de uma manipulação patêmica, S2 age sobre a

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     volição de S1: leva-o a transformar o saber-não-ser  emnão-que-rer-não-ser .

    O humilhado não pode não aceitar  (que é da ordem doquerer , como ressaltam Greimas e Fontanille, no mesmo capítu-lo) o que é imposto pelo sujeito que humilha, pela consciência desua incompetência para reagir, ou para restabelecer o que, a seusolhos, caracteriza-se como justiça.

    Também diferentemente do rebaixamento, em que S1 émeio para S2 elevar-se, na humilhação “bem-sucedida”, S2 pro-move a aceitação, por S1, de sua legitimidade enquanto opres-sor. S1 endossa, na forma de não-querer-não-ser , o quadroaxiológico imposto por S2. Trata-se de um programa de substi-tuição de quadro axiológico, portanto, de troca de Destinador econseqüente deslegitimação do simulacro existencial de S1 paraS1. A destruição do objeto-valor “boa imagem” – o programa derebaixamento – comparece como programa de uso para esse fimmaior. S2 apresenta-se como porta-voz de um Destinador a queS1 não-pode-não se submeter.

    S2, o sujeito que exerce a humilhação, almeja não apenassua supremacia, mas estabelecer sua identificação com um qua-dro axiológico, estabelecer-se como “representante legítimo doDestinador”. Ele busca o poder total, “de fato e de direito”, atra-

     vés da aceitação, da parte do humilhado, do quadro axiológicoimposto.

     Ao sujeito humilhado resta o silêncio. Muitas vezes, fica,nos lábios, a pergunta: Por que uma vítima de violência moralpode preferir o silêncio à busca do restabelecimento da justiça? Aresposta parece estar no dispositivo modal posto em prática na

    humilhação: S1 passa a ser dotado de um não-querer-não-ser,passa a aceitar  o que lhe é imposto por S2. Fragilizado no maisprofundo de seu universo simbólico, S1 opera o transbordamen-to, para além da situação, do quadro axiológico em que se dá ahumilhação. Tudo se passa como se todos os outros sujeitos com-

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    partilhassem – ou pudessem vir a compartilhar – esse quadroaxiológico. Para buscar o restabelecimento da justiça, deve voltara crer que esse quadro axiológico não é compartilhado por todose libertar-se do mesmo, ao mesmo tempo em que lhe é forçosoadmitir que o aceitou e que, até um certo ponto, dividiu com seuopressor a responsabilidade sobre sua humilhação4 : “il y a unedimension morale dans le fait de subir une humiliation”(HABERMAS, 1986: 66).

    D ESONRA

     Desonra é definida por Aurélio como“falta de honra”, “per-da de honra”. Mais freqüentemente empregada como um prejuí-

     zo (falta dobem “honra5 ”), a desonra é relacionada à má fama,ao sentimento causado pela opinião negativa que os outros têmsobre o sujeito, opinião essa oriunda de sua imagem projetada,seja essa projeção resultante de sua ação, ou de ação de outrem,à sua revelia, como, por exemplo, na difamação.

    Voltando os olhos ao passado, não tão remoto – o da honracavalheiresca –, ou dirigindo o olhar a outras culturas, como a ja-ponesa, o estado de alma do sujeito desonrado é tão profunda-mente abalado que só pode ser reparado pela morte do ofensor,ou de si próprio. A desonra, vivida de maneira extrema, está algodémodée hoje em dia, na sociedade ocidental, a julgar pela pe-quena repercussão de atos finais – suicídios, assassinatos – por elamotivados. No outro extremo da escala de intensidade do senti-

    4 A humilhação enquanto estratégia é um tipo de manipulação; convém lembrar que“o bom funcionamento da manipulação pressupõe uma certa cumplicidade entremanipulador e manipulado” (Greimas, 1976b: 219, apud Barros, 1985: 60).

    5 A honra, por sua complexidade e abrangência, merece ser desenvolvidaseparadamente. Para evitar repetição, limitamo-nos ao essencial no tratamento dadesonra e indicamos que o sentimento de honra é abordado no capítulo 2.

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    mento, encontra-se o investimento afetivo mais freqüente, hoje emdia: o sujeito desonrado é pouco mais que um sujeito “maculado”,a desonra é, no máximo, uma levioris notae macula 6 (mácula depouca importância), que se acaba resolvendo com o pagamentode uma indenização, se não com o simples esquecimento.

    Porém, mesmo se os conteúdos mudaram ao longo do tem-po – difícil alguém se sentir desonrado, a ponto de procurar vin-

    gança, ou o suicídio, por falhar numa tarefa, ou faltar com a pa-lavra – e se a palavra quase caiu em desuso, a desonra, vividacomo paixão, está muito presente em nossa sociedade: não rarossão os exemplos de brigas em nome da bandeira de um time defutebol, de agressões, ou até assassinatos, como revide a uma“fechada” no trânsito, de tentativas de assalto resultando em morte,porque o agressor não se sentiu “respeitado” pela vítima, etc.

     A desonra instaura-se a partir de uma sanção cognitivanegativa exercida por um microuniverso do qual o sujeito faz parte.Resultante da crença (da parte do grupo) da não realização deuma imagem valorizada e exigida, o sentimento de desonra não

    pressupõe que o sujeito compartilhe a sanção cognitiva, mas ofaz temer a sanção pragmática, que pode ser sua exclusão dogrupo, se não agir pronta e publicamente para revertê-la: contra,por exemplo, uma calúnia, “le seul moyen de défense, c’est uneréfutation accompagnée de la publicité nécéssaire pour démasquer le calomniateur” (SCHOPENHAUER, 1989/19437 : 50). E, se nosparece exagerada a reação antigamente exigida de um homem –“si celui-ci n’efface pas bien vite l’insulte avec du sang, elle passera,

     provisoirement, pour un jugement objectivement vrai et fondé”(idem: 57) –, é apenas na exigência da reparação pelo sangue,

    6 Emprestamos, aqui, a expressão empregada por Schopenhauer sobre a perda dahonra sexual, em Aphorismes sur la sagesse dans la vie, publicação de 1989, dataoriginal 1943, página 54) .

    7 A notação de duas datas significa: em primeiro lugar, a da edição consultada; emsegundo, a da primeira publicação. Infelizmente nem sempre será possível colocar areferência com essa precisão, por dificuldade em localizar a data de primeira publicação.

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    actante Destinador (manipulador e julgador) é ou coletivo, ourepresentativo da coletividade; já o actante Destinatário “deson-rado” pode ser individual ou coletivo.

    I NDIGNIDADE 

    Trata-se de um parassinônimo já tenuemente ligado à ver-gonha, de definição insatisfatória ( Aurélio) – “falta de dignidade”– e sinônimo de baixeza, vileza, humilhação, rebaixamento. Em

     Le Robert Historique, surge como relativo a indigne: “qui ne mérite pas”, “qu’on ne mérite pas”, “qui ne convient pas”. Definida ne-gativamente, “indignidade” está, em francês, basicamente ligadaà falta de merecimento.

    Enquanto configuração passional 9 , difere da desonra, emprimeiro lugar, na perspectiva da aplicação da sanção: na deson-ra, a sanção cognitiva é aplicada por um grupo, um microuniver-so, e gera uma sanção pragmática temida pelo sujeito; na indigni-dade, o sujeito exerce uma auto-sanção negativa e propõe à ou-tra parte uma sanção pragmática ou sua validação – “Senhor,não sou digno de que entreis em minha morada, mas dizei uma

     palavra e serei salvo” – diz o católico na missa.Se a configuração da desonra é instaurada de “fora para

    dentro”, do grupo para o sujeito, a partir da imagem projetada, aconfiguração da indignidade segue o caminho contrário e temdecorrências diversas.

    O sentimento de indignidade não depende da fama, boaou ruim, do sujeito e nem precisa resultar de sua imagem efeti-

     vamente projetada ao grupo. Ele nasce de projeções que o sujei-to faz de si, num imaginário de desconfiança em que se supõe

    9 Excluímos, portanto, ocorrências do tipo: Isto é uma indignidade, significando isto éultrajante.

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    dotado de uma “má índole”; num imaginário em que crê na não-realização de alguma imagem valorizada e exigida por um micro-universo fortemente moralizado. Por isso se instaura com freqüên-cia no contexto, por exemplo, religioso. E por isso é compatívelcom a honra: confessar-se indigno, com sinceridade, pode até serindicativo de honradez.

    Tampouco a indignidade prevê um programa de liquida-

    ção de falta: se o sujeito desonrado está desonrado enquantonão agir para recuperar sua imagem, o sujeito indigno é indigno,até que ele mesmo creia que não mais o é – o que pode nuncaacontecer, por mais próximo que viva de sua imagem valorizada,acima de tudo porque sentir-se indigno parece ser necessário, aomenos no contexto da religião católica, para ser  digno. Em outraspalavras, maior sentimento de indignidade corresponde à maiorprova de dignidade, é sinal de que a exigência moral do sujeitoem relação a si próprio é alta.

    Finalmente, se, por um lado, é um sentimento que poucodepende do juízo alheio, ou seja, se o sujeito assume a perspecti-

     va do Destinador julgador na sanção cognitiva, por outro lado,no tangente à sanção pragmática, exige que esta seja aplicada –ou, pelo menos, validada – por representantes de seu microuni-

     verso de origem. A liquidação da falta gerada pelo estado passio-nal de indignidade, quando ocorre, deve ser conspícua. Tudo sepassa como se, por um esforço colossal de expiação de suas ca-racterísticas consideradas baixas, o sujeito deva dar mostras depureza moral e deixar-se convencer pelos outros – através da va-lidação da sanção – do sucesso de sua empreitada.

    Desonra e indignidade, duas configurações que encontram

    suas condições de instauração em dois conceitos de sujeito. Aprimeira diz respeito ao homem público e pede entrega incon-dicional de si ao juízo alheio; a segunda trata do homem intros-pecto, submisso a um sistema de valores, atento a suas falhas eem busca de uma auto-imagem perfeita.

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    A CONFIGURAÇÃO  GENÉRICA

    O rebaixamento e a humilhação dizem respeito à destrui-ção do objeto-valor “boa imagem”; a desonra trata de sua retira-da; a indignidade tem relação com sua busca. Todas são configu-rações passionais relativas à falta de um objeto-valor, objeto esseque tem, para o sujeito, valor de representação de si próprio, isto

    é, confunde-se com seu valor enquanto sujeito. Há, no entanto, várias outras situações de instauração de vergonha, sempre combase na falta desse objeto-valor, não identificáveis com as quatroconfigurações acima, por exemplo: vergonha de ser feio, de falarem público, ou até de ser elogiado.

     A configuração da inferioridade subsume as de rebaixa-mento, humilhação, desonra e indignidade, ao contemplar tantoa perda da “boa imagem” – decorrente da ação reflexiva ou deoutrem – quanto sua ausência – perceptível num estado do sujei-to. Desse modo, a opção pela configuração genérica, na base da

     vergonha, recai sobre o sentimento de inferioridade: contempla

    tanto estados realizados quanto virtuais, tanto provocados quan-to não provocados por outrem e trata da falta – ausência ou per-da – do objeto-valor “boa imagem” e suas repercussões no simu-lacro existencial do sujeito.

    2.2 O SENTIMENTO DE EXPOSIÇÃO

     A língua inglesa distingue o ato de expor (exposition) doestado de estar exposto (exposure), ambos “exposição” em por-

    tuguês. Empregamos o termo na sua segunda acepção, o estadode estar  exposto, e chamamos “sentimento de exposição” o sen-tir-se exposto.

    Intimamente relacionado com o verbo “ver”, o sentimen-to de exposição não é, no entanto, exclusivo da “relação escópi-

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    ca”10 estabelecida entre dois actantes, embora encontre nela seumeio mais poderoso e freqüente de instauração. Há situações,independentes do olhar, em que outros sentidos, o olfato e a au-dição, comparecem como decisivos na “fragilização” do sujeito.Süskind fornece-nos um belo exemplo em Le Parfum:

    “...Cet enfant sans odeur passsait impudemment en revue ses odeurs

    à lui, Terrier, c’était bien cela! Il le flairait des pieds à la tête! Et Terrier tout d’un coup se trouva puant, puant la sueur et le vinaigre, lachoucroute et les vêtements sales. Il eût le sentiment d’être laid, livréaux regards de quelqu’un qui le fixait sans riens livrer de soi-même.Cette exploration olfactive paraissait même traverser sa peau et le

     pénétrer en soi-même.” (SÜSKIND, 1986: 26)

    Terrier, padre responsável pela criação do bebê Jean-Bap-tiste Grenouille, sente-se exposto pela exploração olfativa de queé vítima. As situações de exposição não são, porém, necessaria-mente “negativas”, de odores desagradáveis ou de sons cons-

    trangedores. Basta pensar na pessoa que reage com desconfortoà exclamação “Uhm, que perfume gostoso!”, ou ao comentário“Você tem voz de travesseiro”.

    Contudo, mesmo sem a exclusividade da relação escópica,o dispositivo da exposição, naquilo que tem de mais genérico,pode ser explicitado a partir da relação implicada pelo verbo“ver”:

    “comme toute structure de communication, celle que désigne le verbevoir implique la présence d’au moins deux protagonistes unis par lerapport de présupposition réciproque – l’un qui voit, l’autre qui est 

    vu – et entre lesquels circule l’objet même de communication, en

    10 Expressão empregada por Eric Landowshi, em “Jeux Ophiques”. In: La SociétéRéfléchie. Paris: Seuil, 1989, texto no qual se encontram as fontes de grande parte denossas colocações a respeito da exposição.

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    l’ocurrence l’image que l’un des sujets offre de soi-même à celui qui se trouve en position de la recevoir.” (LANDOWSKI, 1989: 118).

     A mesma relação, até um certo ponto, estabelece-se entrequem ouve e quem é ouvido, entre quem “cheira” e quem “écheirado”, e o mesmo objeto “imagem” circula entre os sujeitos.Uma vez que a relação básica é a mesma e que o objeto circulantenão se modifica, falaremos em “ver”, “mostrar”, “olhar” comorepresentantes da mediação dos sentidos no sentimento de expo-sição. Além da economia que a escolha nos proporciona, ela dáconta de situações mais complexas que a audição e o olfato per-mitem. Por exemplo: alguém pode ser visto espiando pelo buracode uma fechadura, ou escutando atrás das portas.

    Do que dissemos até agora, alguém poderia, com justiça,levantar a pergunta: Basta um sujeito ver  e outro ser visto, paraque o segundo se sinta exposto?

     A resposta é claramente não. A questão é muito mais com-plexa do que pode parecer inicialmente.

     Antes de mais nada, não é o simples fato de ser visto quefaz alguém se sentir exposto, mas o ser visto por alguém legítimo,como parte de uma relação polêmica. LANDOWSKI (1989: 131)ilustra bem esta questão – as relações polêmicas em torno do ver – ao superpor dois quadrados semióticos confrontando as posi-ções modais de dois sujeitos:

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    “ Diagramme VI  (contradictions)

    S1: vouloir être vu exhibi- voyeurisme S1: vouloir ne pas(9) S2: vouloir ne pas tionnisme de S2 être vu (11)

    voir  de S1 S2: vouloir voir 

    S1: ne pas vouloir  S1: ne pas vouloir ne pas être vu répugnance flagrance être vu

    (12) S2: ne pas vouloir  de S2 de S1 S2: ne pas vouloir  (10)

    voir ne pas voir  

     Diagramme VII  (contrariétés)

    S1: vouloir être vu effron- indis- S1: vouloir ne pas(13) S2: ne pas vouloir  terie crétion être vu (15)

    voir  de S1 de S2 S2: ne pas vouloir ne pas voir 

    S1: ne pas vouloir  S1: ne pas vouloir ne pas être vu pruderie timidité être vu

    (16) S2: vouloir ne pas de S2 de S1 S2: vouloir voir  (14)”

    voir (LANDOWSKI, 1989: 131)

     As situações de sentimento de exposição de S1 são aque-las à direita dos diagramas, situações que o autor caracteriza como“atteinte à la vie privé” e“viol de l’intimité”. Essas situações que,do ponto de vista de S1, poderiam ser lexicalizadas – ainda se-gundo o autor – como “pudor” e “modéstia” são comparadas,quando em relação polêmica, a um “roubo da vida privada” (p.131).

    Enquanto a posição modal de S1 é dada por querer-não-

     ser-visto ounão-querer-ser-visto, a posição de S2 já admite vari-ações. O fato é que S1 se acredita visto por S2; se S2 é ou nãodotado de um querer , dever , ou poder  é assunto que reservamospara adiante. Por enquanto, isso não importa, quando pensamosno sentimento de exposição. Nosso foco, aqui, é o sujeito expos-

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    to, e esse é claramente, e predominantemente, modalizado peloquerer :

    “GARCIN, la repoussant (Estelle) Laisse-moi. Elle est entre nous. Je ne peut pas t’aimer quand elle mevoit.” (SARTRE, 1947: 92).

     Alguém poderia levantar a seguinte objeção: todos sabe-mos que ver algo que não se deseja, ou não se tenciona ver podeser tão embaraçoso para o sujeito que vê quanto para o sujeito

     visto. Ambos podem sentir-se expostos, cada um ocupando umadas posições (sujeito/objeto) pressupostas pelo verbo ver .

    Ocorre que as duas posições acima não são estanques. Seriaingênuo pensar que quem vê só vê  sem ser visto e vice-versa.Ora, acrescentaríamos, quem vê pode ser visto vendo e quem é

     visto pode ver que está sendo visto; instaura-se, assim, um segun-do nível da relação escópica (que pode dar espaço a um terceiro,e assim por diante): “On n’a donc plus affaire à des structures de

    confrontations modales simples, avec une seule modalisationactancielle pour chacun des acteurs en présence, mais à un typede configurations où les rôles s’entrecroisent et où les motivations

     se superposent comme en un jeu de miroirs” (LANDOWSKI, 1989:134). Tal “jogo de espelhos” dá margem a situações inusitadas,que podem modificar até mesmo a relação de força entre os su-

     jeitos.Tendo em mente as questões levantadas, passemos à con-

    figuração do sentimento de exposição no simulacro interno dosujeito exposto.

    Em primeiro lugar, existem dois actantes: o sujeito exposto,S1, e seu espectador, S2. Tanto S1 quanto S2 podem ser actantesindividuais ou coletivos. Se S1 é coletivo, ele é um amálgama efunciona como uma unidade – isto, é claro, até o ponto em queum actante coletivo pode ser patemizado. S2, o espectador, além

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    de poder ser individual ou coletivo, recobre um amplo espectrode possibilidades que influem no grau de patemização de S1.

    Na forma básica da relação escópica, S1 deixa-se apreen-der, através de sua imagem projetada, por S2. No caso particulardo sentimento de exposição, isto se dá contra a vontade do pri-meiro. S1 reconhece-se na posição de actante-objeto e, como tal,submete-se a S2 – seus pensamentos, seus juízos –; daí o descon-

    forto característico da exposição.

    “GARCIN  Il ne fera donc jamais nuit?

     INES

     Jamais.

    GARCIN Tu me verras toujours?

     INES

    Toujours.

    Garcin abandonne Estelle et fait quelque pas dans la pièce. Il s’approche

    du bronze.

     Le bronze... (Il le caresse.) Eh bien, voici le moment. Le bronze est là, je le contemple et je comprends que je suis en enfer. Je vous dit que tout était prévu. Ils avaient prévu que je me tiendrais devant cette cheminée, pressant ma main sur ce bronze, avec tous ces regards

     sur moi . Tous ces regards qui me mangent. .. (Il se retournebrusquement.) Ha! vous n’êtes que deux? Je vous croyais plusnombreuses. (Il rit.) Alors, c’est ça, l’enfer. Je n’aurais jamais cru...Vous vous rappelez: le soufre, le bûcher, le gril... Ah! quelle plaisanterie.

     Pas besoin de gril: l’enfer, c’est les Autres.” (SARTRE, 1947: 92)

    Na célebre frase de Sartre, a confirmação do poder do olharalheio. Mas quem é esse Outro, com letra maiúscula, que consti-tui até mesmo o inferno?

    Não temos a competência necessária para entrar em ques-tões de ordem filosófica sobre o estatuto do outro (ou Outro). Há

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    inúmeros ensaios, dentro e fora da corrente existencialista, que odiscutem e que deixamos ao leitor interessado na questão. Nossofoco, aqui – é preciso não perdê-lo de vista –, é a configuração daexposição no simulacro interno do sujeito exposto. A exposiçãopressupõe um outro, que não é qualquer um, como espectador.E é sobre esse outro – que escrevemos em minúscula – que nosdeteremos um pouco.

    Por opção de clareza, examinemos, em primeiro lugar, doiscorrelatos da exposição, a visibilidade e a vulnerabilidade.

    V ISIBILIDADE 

    “What is this? Anyone puts eyes on her or tells her two words and she goes red, red like a chilli! I swear. What normal child goes sobeetroot hot ...” (RUSHDIE, 1983: 121)

     A característica mais marcante da personagem de Shame,

    Sufyia Zinobia, é uma anormalidade: sua incapacidade de nãocorar. Basta ser percebida por alguém e o sangue lhe sobe às faces.

    Nem é necessário comentar que o homem (ou a mulher)não cora diante de qualquer um, que não basta perceber-se visto,mesmo contra seu desejo, para que a consciência (jamais diría-mos sentimento) de sua visibilidade o conduza ao que chama-mos vergonha, salvo, talvez, em casos ou circunstâncias muitoespeciais.

     A visibilidade é uma relação que se estabelece entre doisactantes, exclusivamente em torno do verbo ver , que pode gerar

    desde prazer, passando pela indiferença, até um grande mal-es-tar. Narciso é o exemplo mais completo do prazer na visibilidadeda própria imagem; menos famoso, talvez o narrador de Memó-rias do Subterrâneo (DOSTOIÉVSKI: 1963/1864) possa ocupara posição oposta, a do sujeito com náusea de si próprio.

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    ELIZABETH HARKOT-DE-LA-TAILLE

    Nas relações polêmicas, em torno do ver, descritas porLandowski e citadas acima, a lexicalização proposta é decorrenteda modalização de ambos os sujeitos – S1 e S2, o que é visto e oque vê – pelo querer . Propomos um pequeno exercício: imagine-mos que S1 “esvazie” o sujeito que o vê de seu querer ; mais:torne-o “insípido, inodoro, incolor”, destituindo-o de toda moda-lização. O que resta? Um sujeito sem valor modal, a rigor, cessade ser sujeito. E se S1 assim o considera, assim ele será – um não-sujeito – em seu simulacro interno. Desse modo, S1 pode ser vis-to, independentemente de seu desejo de sê-lo, por uma “instân-cia” que em nada o afeta; tudo se passa como se ele fora captadopelo olhar de um gato, um cão, em suma, de “alguém” sem pro-

     jeto, nem intenção, que não tem importância, que, no limite, nãotem valor.

    É claro que uma experiência de visibilidade desse tipo nãoproduzirá nem mal-estar, nem bem-estar, mas indiferença. Pare-ce-nos, portanto, que a consciência da própria visibilidade é neu-tra, que a modalização (do ponto de vista de S1) dos sujeitos

    envolvidos na relação é condição para a relação dar origem a uma patemização, prazerosa ou desagradável, daquele que é visto.

    Nem sempre é fácil, pois, suportar um olhar humano comose nada fosse. A passagem da visibilidade para a vulnerabilidadeé bem representada por DOSTOIÉVSKI (1963/1861) através dafigura do velho no início de Humilhados e Ofendidos:

    “...Disse que o velho, ainda mal se sentava na sua cadeira, imediata-mente fixava o olhar num ponto e não voltava a pousá-lo em ne-nhum outro durante tôda a noite. Uma vez por outra me ocorreuque fôsse o branco daquele olhar que se fixava algures, embasbaca-

    do e teimoso e, quando isso acontecia, dava-me pressa em mudar de lugar. Daquela vez a vítima do velho era um alemão pequenino,rechonchudo e extraordinàriamente afetado...” (p. 24)

    E Schultz, o “alemão pequenino”, ao perceber-se olhado:

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    A CONFIGURAÇÃO DA VERGONHA

    “...irritou-se e julgou do seu dever sair em defesa de sua honra (...),arrebatado por um sentimento de dignidade pessoal, todo vermelhodo efeito do ponche e da indignação, pousou por sua vez os olhinhosinjetados de sangue no velho maçador. Dir-se-ia que ambos, o ale-mão e seu adversário, se esforçavam por se dominarem com o po-der magnético dos olhares e que esperavam, a ver qual dos dois serendia primeiro, baixando a vista.” (p. 25)

    O alemão de Dostoiévski não conhecia o velho, nem “obranco daquele olhar” e não suportou ser por ele encarado. Quan-do falamos em visibilidade, focalizamos a junção, não os sujeitos.

     A consciência de ser visível, ou melhor, a consciência da própriaperceptibilidade (DE LA TAILLE: 1993, 1995) é necessária, masinsuficiente, para participar na instauração da vergonha. A per-sonagem acima atribuiu ao velho uma intenção, interpretou seuolhar como “ofensivo”; considerou-o, assim, um espectador comlegitimidade para observá-lo e exacerbando seu poder. A moda-lização de S2 suposta por S1 é necessária para atribuir legitimi-

    dade ao espectador.Vejamos, agora, o outro correlato da exposição: a vulnera-bilidade.

    V ULNERABILIDADE 

    Relativo a vulnerável (latim vulnerabilis, de vulnus, -eris), éo “lado fraco de um assunto ou de