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Exatos cinquenta anos atrás, o Brasil mergulhou em uma ditadura que iria perdurar por mais de duas décadas. É chegado o momento de fazer um balanço histórico do regime militar. Marcos Napolitano, conhecido historiador da USP, discute neste livro sólido e bem escrito as principais questões desses “anos de chumbo”. A ditadura durou muito graças ao apoio da sociedade civil, anestesiada pelo “milagre” econômico? Foi Geisel, com a ajuda de Golbery, o pai da abertura, ou foi a sociedade quem derrubou os militares do poder? Como era o dia a dia das pessoas durante o regime militar? Como a cultura aflorou naquele momento? O que aconteceu com a oposição e como ela se reergueu? Qual a reação da sociedade (e do governo) à tortura e ao “desaparecimento” de presos políticos? Obra de historiador, livro obrigatório para quem quer compreender o Brasil, uma síntese brilhante.

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Apresentação

No inaldemarçode1964,civisemilitaresseuniramparaderrubaropresidenteJoãoGoulart,dandoumgolpedeEstadotramadodentroeforadopaís.Naverdade,estaaliançagolpistavinhademuitoantes,sendoumadas responsáveis pela crise política que culminou no suicídio de GetúlioVargasem1954.

Nopoderdesde1961, Jango enfrentou crises políticas a partir de suaconturbadaposse,eprometiareformassociais,econômicasepolíticasquedeveriamtornaroBrasilumpaísmenosdesigualemaisdemocrático.Masa direita não via a coisa desta maneira. Jango era visto como amigo doscomunistas, incompetente em questões administrativas, irresponsávelcomohomempolíticoque incrementava a subversão, en im,umpopulistaqueprometiamais doquepoderia dar às classespopulares.A esquerda,queatéesperavaogolpecontraasreformas,nãoconseguiusearticularereagir,experimentandoumadesuasmaioresderrotaspolíticasnahistóriadoBrasil.

A subida dos militares ao poder mudaria para sempre a históriabrasileira, além de ter fornecido um novo modelo de golpe e de regimepolíticoparaváriospaíses latino-americanos.Ocaminhodamodernização,doravante,nãopassariamaispelasreformassociaisparadistribuirrendaou pela ampliação da democracia participativa e eleitoral, mas por“segurançaedesenvolvimento” a todo custo.Vinte anosdepois, em1985,

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osmilitaressaíramdopoder,deformanegociada,mas,dequalquermodo,enfrentandoumagrandeoposiçãoemváriossetoressociais,incluindo-seaíossegmentosliberaisquesaudaramogolpede1964.

Entreumaeoutradata,1964e1985,oBrasilpassouporumturbilhãode acontecimentos que, em grande parte, nos de inem até hoje e aindaprovocammuito debate. A economia cresceu, alçando o país ao oitavo PIBmundial. Mas, igualmente, cresceram a desigualdade e a violência social,alimentadasemboapartepelaviolênciadoEstado.Avidaculturalpassouporumprocessodemercantilização,oquenãoimpediuo lorescimentodeuma rica cultura de esquerda, crítica ao regime. Os movimentos sociais,vigiados e reprimidos conforme a lógica da “segurança nacional”, nãodesapareceram. Muito pelo contrário, tornaram-se mais diversos ecomplexos, expressão de uma sociedade que não icou completamentepassivadiantedoautoritarismo.

Protagonistasdemuitasorigenspolíticas,estudiososdeinumerasáreasacadêmicas, artistas e intelectuais de diversos campos de atuação,refletiramsobreosacontecimentosemcursoeajudaramaconstruirvisõescríticassobreváriostemascorrelatosàhistóriadoregimemilitar:ogolpe,aagitaçãocultural,aspasseatasestudantisde1968,omilagreeconômico,a guerrilha de esquerda, a repressão e a tortura, a abertura política.Quando o regime acabou, havia já uma memória construída por estesprotagonistaseanalistas.Hoje,passadoscinquentaanosdogolpede1964e quase trinta anos do im da ditadura, muitas dessas perspectivas sãorevisitadaspelahistoriogra iaepelaprópriamemóriasocial.Asperguntasque circulam há algum tempo, tanto na imprensa quanto no meioacadêmico, sintetizam este debate: Jango foi o responsável pela crise de1964?Ogolpefoipuramentemilitaroucivil-militar?Aditaduraparavalersó começou com o AI-5, em 1968? A esquerda armada foi a principalresponsávelpeloacirramentodaviolênciadeEstado?Asarteseacultura

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de esquerda estavam inseridas na indústria cultural ou foram merasconcessões episódicasporpartedesta?A sociedade, predominantemente,resistiu ou apoiou a ditadura? A abertura do regime foi um movimentoconsciente dos militares, que preparavam a sua saída do poder semhesitações?

Estelivrotentaresponderaessaseoutrasquestões,caminhandoentreos complexos caminhos e ramais que ligam história – fundamentada emdocumentos dos arquivos – e memória – baseada na experiência dosprotagonistas. Obviamente, uma e outra se comunicam. Os própriosdocumentos são ixaçõesda experiência, da visãodemundodaspessoas,movimentos e instituições que os produziram. A própria memória éatravessada por experiências coletivas e pela consagração de algunsdocumentos em detrimento de outros. O historiador que enfrenta a“história recente”, sobretudo, não pode desconsiderar essas questões.Nocaso do autor desta obra, história e memória se conectam na mesmapessoa, posto que eu viviminha infância e boa parte da juventude sob oregimemilitar.Aqui, o exercíciododistanciamentodehistoriadornegociacom a memória, sempre subjetiva, de quem viveu parte dos eventosnarradosemumaparteformativadasuavida.

Ao longo do livro, o leitor poderá percorrer a extensa trajetória doregime, em uma narrativa que tentou, aomáximo, privilegiar os eventos,processos e personagens, evitando digressões teóricas e historiográ icasque interessammaisaoshistoriadoresdeo ícioequeacabaramrestritasàsnotas colocadasao inaldestaspáginas.Éum livroqueencaraadi íciltarefa de escrever para estudantes e pesquisadores de história, semmenosprezar os eventuais interesses do leitor não acadêmico emapreenderopassadoapartirdasclássicasperguntas:quem,quando,comoe onde. Nesta narrativa, digamos assim, voltada para o “factual”,entretanto,tentomeposicionaremrelaçãoaosprincipaistemasdodebate

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atual,defendendopontosdevistabaseadosnapesquisadocumental enareleituracríticadahistoriografiaconsolidadasobreogolpeeoregime.

Defendoainterpretaçãodequeem1964houveumgolpedeEstado,equeeste foi resultadodeumaampla coalizãocivil-militar, conservadoraeantirreformista,cujasorigensestãomuitoalémdasreaçõesaoseventuaiserroseacertosdeJango.Ogolpefoioresultadodeumaprofundadivisãonasociedadebrasileira,marcadapeloembatedeprojetosdistintosdepaís,os quais faziam leituras diferenciadas do que deveria ser o processo demodernização e de reformas sociais. O quadro geral da Guerra Fria,obviamente,deusentidoe incrementouoscon litos internosdasociedadebrasileira, alimentando velhas posições conservadoras com novasbandeirasdoanticomunismo.Desde1947,boapartedaselitesmilitaresecivis no Brasil estava alinhada ao mundo “cristão e Ocidental” lideradopelos Estados Unidos contra a suposta “expansão soviética”. A partir daRevolução Cubana, em 1959, a América Latina era um dos territóriosprivilegiadosdaGuerraFria.Estepensamento, alinhadoà “contenção”docomunismo,foifundamentalparadelinearaslinhasgeraisdaDoutrinadeSegurançaNacional(DSN),propagadapelaEscolaSuperiordeGuerra.ADSNsurgiu no segundo pós-guerra, sintetizada pelo Conselho de SegurançaNacionaldosEstadosUnidos,etemsuasorigensnaDoutrinadeContençãodo Comunismo internacional, também conhecida como Doutrina Truman(em alusão ao presidente dosEUA Harry Truman, que a formulou em1947). Nesta perspectiva, os exércitos nacionais dos paísessubdesenvolvidos alinhados ao bloco capitalista liderado pelosEUAdeveriam,primordialmente, cuidardadefesa internacontraa “subversãocomunistain iltrada”.Afronteiraaserdefendidapassariaaserideológica(e não mais geográ ica) e o inimigo seria, primordialmente, um “inimigointerno”, que poderia ser qualquer cidadão simpatizante ou militante docomunismo.AEscolaSuperiordeGuerra,criadanoBrasilem1949,foiumdosfocosdedisseminaçãoeaperfeiçoamentodessadoutrina,quetambém

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eraensinadaemescolasdeformaçãodequadrosmilitaresnos EUA,comooNationalWarCollege.Comoseucorolário, surgiuoutradoutrinanosanos1950, elaborada por militares franceses que enfrentaram as guerrilhasnacionalistas locais na Indochina e na Argélia: a Doutrina deContrainsurgência. Nela, dizia-se que o inimigo guerrilheiro deveria sercombatido por métodos policiais (que incluíam interrogatórios à base detorturas),alémdosprincípiosmilitarestradicionais,eporvigilânciaecercoestratégicodassuasbasessociaisegeográficas.

Nestavisãodemundomarcadapeloanticomunismovisceral,qualquerprojeto político que mobilizasse as massas trabalhadoras, ainda que apartir de reivindicações justas, poderia ser uma porta de entrada para a“subversão” comunista. Ao mesmo tempo, a Doutrina de SegurançaNacional deu novoélan ao velho conservadorismo local, permitindo ejusti icando, em nome daDSN, a manutenção de velhos privilégioseconômicos e hierarquias sociais. Mirando os comunistas, os golpistas de1964 varreram o reformismo da agenda política brasileira. A coalizãoantirreformista saiu vencedora, enquanto a coalizão reformista deesquerda foi derrotada. Entretanto, não endosso a visãodequeo regimepolítico subsequente tenha sido uma “ditadura civil-militar” ainda quetenha tidoentreos seus sóciosebene iciáriosamplos setores sociaisquevinham de fora da caserna, pois os militares sempre se mantiveram nocentrodecisóriodopoder.

Proponho um novo olhar para compreender a cultura e as artes deesquerda, partes estruturais e estruturantes da moderna indústriaculturalbrasileira,semqueissosigni iquemeracooptaçãooucinismoporparte dos artistas engajados. Questiono as interpretações sobre osacontecimentos que levaram ao acirramento do autoritarismo e darepressão, do mesmo modo que sua desmontagem como epicentro doregimeeprodutodeumconfrontodicotômicoentremilitares“moderados”

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e a “linha-dura”. Questiono a história e, principalmente, a memóriaestabelecidasobrea“abertura”,demonstrandoqueestanãofoiinequívocae linear, e esteve sujeita às pressões da sociedade, sobretudo dosmovimentos sociais que repolitizaram as ruas, forçando os limites iniciaisdatransiçãoconduzidapeloalto.

Por im,procuroanalisaroperíodosempartirdeumavilanizaçãofácildos atores políticos, sem julgá-los demaneira simplista conformeminhassimpatias ideológicas,apesardeelasobviamenteapareceremao longodotexto. Neste livro, em nenhum momento o regime militar é visto comoisoladodasociedadebrasileira,mantendo-senopoderapenaspelaforçaepela coerção. Trata-se de um regime complexo, muitas vezesaparentementecontraditórioemsuaspolíticas,quemobilizouvários tiposegrausdetutelaautoritáriasobreocorpopolíticoesocial,articulandoumgrande aparato legal-burocrático para institucionalizar-se, aliado àviolênciapolicial-militarmaisdireta.

En im, esta narrativa não pretende ser neutra, mas objetiva odistanciamento,que,ameuver,éaobrigaçãodohistoriadordeo ício.Estanão é uma tarefa simples, aindamais porque ao olhar criticamente para1964 e seus desdobramentos, o historiador precisa se equilibrar entre ahistória e a memória. Ou, em muitos momentos, tombar sobre uma dasduas.

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UtopiaeagoniadogovernoJango

Emmeados dos anos 1970, o jornalista Flávio Tavares reencontrou oenvelhecido e solitário ex-presidente João Goulart. Em um dos encontrosentre os dois exilados, fez questão de dizer o quanto seu governo foi“dinâmico”, um marco na história do Brasil e nas lutas pelademocratização, pela cultura e pela justiça social. Pouco convencido,Goulart devolveu o elogio com uma pergunta: “Tu achas, mesmo, que o

meugovernofoiisso?”.1

Em certa medida, variações dessa pergunta são feitas até hoje pelos

historiadores.2 O governo Jango teve, efetivamente, algum diferencialpolítico e ideológicomarcantepara ahistóriadoBrasil? Se teve, qual seugrau e importância? Houve, em algum momento do seu governo, a realpossibilidade de mudar a face de um país politicamente excludente esocialmente desigual? Ou, pelo contrário, seu governo não passou de umjogodecenanoqualademagogiaeoproselitismodasesquerdasapenasalimentaramovelhoelitismoautoritáriodasdireitas?

Obviamente, as perguntas feitas à história não devem se resumir àlógicabináriado“istoouaquilo”.Nahistória,nãohápretooubranco,masincontáveismatizesdecinza.Entretanto,ogovernoJangoeogolpemilitarqueselousuasorteimpedemqueestesmeios-tons iquemmuitovisíveis.Aprópria confusão entrememória e história quemarca o olhar da opiniãopública e mesmo dos historiadores sobre aquele momento histórico

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favorece os contrastes. É preciso dizer que uma parte da esquerda, detradição nacionalista, tentou salvar o seu legado. Sobretudo entre o inaldosanos1970ecomeçodosanos1980,houveumarecuperaçãopositivada memória de Jango. Naquele momento de crise do regime militar,quando toda a sociedade civil parecia ser oposicionista e democrática,livros e documentários destacaram a justeza do projeto reformista deJangoedenunciaramagrande conspiratanacionaleinternacionalcontrao

seu governo.3 Esboçou-se o per il de um estadista ousado, vitimado peloconservadorismo das elites, pela ganância do imperialismo e peloautoritarismo dos militares. No entanto, mesmo naquele contexto dedesintegração do regime militar, uma grande parte da esquerda,intelectual e militante, não endossava o projeto reformista de Jango,preferindocriticar,demaneiramaisoumenosacurada,amarcapopulistaedemagógicadasuapersonalidadeedoseugoverno,apontandooslimites

históricosdaqueleprojeto.4Paraestacorrenteda“novaesquerda”do inaldos anos 1970, que se reuniria sob a guarda do Partido dosTrabalhadores,namelhordashipóteses, Jangoeseugovernoeramvistoscomoummomentode ilusãohistórica, naqual as esquerdas acreditaramque tinhampoder su iciente paramudar a face do país, tornando-omaisjustoedemocrático,semconstruirbasessociaisefetivasparaesteousadoobjetivo.

Em sua monumental biogra ia de João Goulart, o historiador JorgeFerreira fez uma interessante síntese das críticas negativas ao seubiografado,diga-se,abordadodemaneirasériaeprofundaemseulivro.Ascríticas mais sutis e elegantes falam de um “latifundiário com saudável

preocupaçãosocial”5oudeumilustre“desconhecidodagrandemassados

trabalhadores”, prestigiado apenas por pelegos. 6 Outras críticas pegammaispesado.ElioGasparidestacaa“biogra iaraquítica”deJango,quefezdele “um dos mais despreparados e primitivos governantes da história

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nacional.Seusprazeresestavamnatramapolíticaeempernas,decavalos

oudecoristas”.7

Neste jogo de opiniões, o saldo parece ser negativo para o presidentedeposto, até porque no próprio campo da esquerda, como vimos, após ogolpe militar, nunca houve um consenso mínimo sobre as qualidades doseu governo, sedimentando-se a ideia de uma grande ilusão reformista,alimentada por imposturas políticas diversas. Se seguirmos esta tradiçãode análise, a amarga pergunta do ex-presidente ao jornalista que oelogiara parece ter uma única resposta possível: apesar das boasintenções, o governo Jango, efetivamente, não teve importância; serviuapenas para a direita autoritária justi icar seu golpismo e reiterar anecessidadedocontrolesocialdostrabalhadores.Sejaporque,dopontodevistaestrutural, omodelodito “populista”depolíticaestivesse condenadopelanecessidadedeavançodo capitalismopredatóriodasperiferias, sejaporque o próprio projeto reformista carecia de consistência ideológica epolítica.

Marco Antonio Villa é taxativo sobre Jango e seu governo: “Naimpossibilidade deun gran inale, acabou encenando uma ópera bufa,deixandoparatrásumpaísdividido,edestruindovinteanosdeconquista

no campo da democracia”. 8 Assim, sem o inal trágico e grandioso dosegundogovernoVargas,seupadrinhopolítico,Jangosaiudahistória(eda

memória) “pela fronteira com o Uruguai”. 9 Mesmo análises maiscircunstanciadas propostas pelo campo da ciência política de vervehistoriográficaconfirmamestafaltadeconsistênciapolíticaque,aofimeaocabo,parecemtersidomaisdeterminantesparaaquedadeJangodoquea conspiração e a truculência das direitas. Desde a teoria da “paralisiadecisória”, fruto de coalizões partidárias frágeis e propensas a crisespolíticas fatais, até a teoria da “radicalizaçãodos atores” nodebate sobreas reformas, alimentada pela inapetência do presidente Jango e do seu

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governocomoumtodo,osveredictosdoscientistaspolíticosdesviamofocode luz do golpe em si, iluminando as inconsistências políticas anteriores

queoalimentaram.10Emsuma,o“estadodaarte”destadiscussãopareceapontarparaa(ir)responsabilidadedasesquerdasnacrisequeculminouno golpe das direitas. Nesta perspectiva, se houve alguma importânciahistórica no governo Jango ancorada em um projeto minimamentecoerente e consistente, ela se diluiu na fragilidade política dagovernabilidade,palavrasemprecaraàciênciapolítica.

Obviamente, as esquerdas – nacionalistas, reformistas, revolucionárias–nãoforammerasvítimasdahistóriaedainsidiosaconspiraçãomilitarecivil antirreformista. Entretanto, o grande risco da diluição dasresponsabilidadesdiantedeumfatograveparaademocracia–umgolpedeEstadocontraumgovernoeleito–échegarmosàconclusãodeque,aonãosabergovernar,oreformismojanguistapreparouseuprópriofuneral.Mas será que o caminho da crise política ao golpe de Estado foi umaestradareta,semdesvios?

Parapensar a crisepolíticaque se acirrouduranteo governo Jango eculminou em um golpe de Estado de profundo impacto na históriabrasileira e latino-americana, não basta apontar as falhas do governodeposto, a começar pela eventual impostura do presidente da República,de muitos vícios privados e poucas virtudes públicas, como quer umdeterminado per il biográ ico que lhe impuseram. Como nem sempre asvirtudes privadas se transformam em virtudes públicas, os defeitosprivadostambémsãolimitadosparaexplicaraaçãopolítica,mesmoaquelaque se dáno âmbito dadecisão individual. Por outro lado, as explicaçõesimpessoais, estruturais e que apontam as forças invisíveis do processohistórico também são insu icientes para compreender os eventos e suasconexõespresentesepassadas.Paraolhareanalisarumperíodotãoricoda história brasileira, também não basta demonizar a esquerda ou a

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direita,aindaqueohistoriadortomepartidoentreasduasalternativas.

Voltando à pergunta – “qual a importância do governo João Goulartpara a história doBrasil?” –,melhor seria tentar respondê-la a partir dafamosa frasedeDarcyRibeiro, ao dizer que Jango caiu “nãopor defeitosdo governo que exercia, mas, ao contrário, em razão das qualidades

dele”.11 Este ponto de partida não signi ica, necessariamente, resgatarJango e seu governo do fundo das trevas históricas, absolvendo-os notribunal do tempo.O historiador não é bombeiro nem juiz.Não resgata enão condena. Tenta compreender, criticar, apontar contradições,estabelecer conexões plausíveis a partir de uma argumentação baseadaem indícios deixados pelas fontes. Nessa linha de análise, para situar ogoverno Jango e o golpe que o derrubou, seria importante re letir sobrefatoresconjunturaisehistóricos,noeixodeumtempohistóricoestendidopara além dos trinta meses do seu governo. Ao que parece, a virtudeprincipal do governo Jango, ao menos se quisermos manter umaperspectiva progressista, foi revisar a agenda da política brasileira nadireção de uma democratização da cidadania e da propriedade.Reiteramos, tratava-semais de umaagenda doque, propriamente, deumprojeto político de inclusão social, nacionalismo econômico edemocratização política. Entretanto, em um ambiente políticoprofundamente conservador e excludente,marcado pela tradição liberal-oligárquica e pelo autoritarismo pragmático, ambos elitistas e avessos àparticipaçãodasmassasnapolítica, estamudançadeagenda serviuparafazer convergir contra o governo Jango tanto o golpismo histórico, quevinhadocomeçodosanos1950,alimentadopelomedodocomunismonosmarcos da Guerra Fria, como o eventual, engrossado no calor da crisepolítica conjuntural do seu governo. No momento em que as esquerdasameaçaramtransformarsuaagendareformistaemumprojetopolíticodegoverno, o que aconteceu a partir do inal de 1963, as direitas agiram.Oambiente político e o tipo de questões que estava em jogo – voto do

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analfabeto, reforma agrária, nacionalismo econômico, legalização doPartido Comunista Brasileiro – não permitiam grandes conchavos àbrasileira para superar a crise.Não porque os atores radicalizaram suasposições,masporsereminconciliáveisosvaloreseplanosestratégicosqueinformavamasagendaspolíticas,àesquerdaeàdireita.

O que se seguiu ao golpe civil-militar das direitas contra a agendareformista foi a a irmação de outro modelo político e ideológico desociedade e de Estado, esboçado bem antes do golpe: a modernizaçãosocioeconômicadopaíseaconstruçãonolongoprazodeumademocracia

plebiscitária, tutelada pelosmilitares, em nome do “partido da ordem”. 12

Diga-se, para muitos golpistas civis de primeira hora, bastava retirar opresidente do poder e “sanear” os quadros políticos e partidários, paravoltar à “normalidade institucional”, conforme a perspectiva liberal-oligárquica, ou seja: democracia para poucos, liberdade dentro da lei,hierarquias sociais estáveis. O problema é que os militares que sea irmaram no poder não con iavam nos políticos, mesmo à direita, pararealizar tal tarefa histórica. Por isso, já nos primeiros anos do regime, ailusãodo“golpecirúrgico”sedissipou.Osmilitarestinhamvindoparaficar,eissofoiumdosmotivosdofimdaamplacoalizãogolpistade1964.

Ainterrupçãoviolentadeumdebatepolíticoemcursoedeumaagendareformista, ao seu modo, democratizante, não deve estimular um meroexercício dehistória contrafactual do tipo “o que teria sido” se Jangonãotivesse caído, se o golpe fosse derrotado. O que está em jogo é acompreensãodanaturezamesmadaaçãopolíticanahistória,paraalémdoPalácio e do Parlamento. Ao historiador, a derrota de um projeto políticopodeserreveladoradassuasfragilidades,mastambémdassuasvirtudes.Agrandezadaquelemomentohistórico,situadoentre inaisdosanos1950e meados dos anos 1960, se traduz como um ponto de tensão, ummomentodeacúmulotaldeenergiasquedestruiutudooqueveioantese

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crioutudooqueveiodepois.Pontonodaldotempo,ogovernoJangoaindateráquesermuitoestudado,paraalémdasreflexõesqueseseguirão.

A importância histórica do governo Jango não pode ser resumida àesferadapolíticastrictosensu.Avidaculturalbrasileiratambémseagitouem meio à agenda reformista sugerida pelo presidente, adensando umasériede iniciativasculturais,artísticase intelectuaisquevinhamdosanos1950eapontavamparaanecessidadedereinventaropaís,construí-losobosignodonacionalismo inspiradonaculturapopularedomodernismo,aumsótempo.OgovernoJangoaglutinouumanovaagendaculturalparaoBrasil,eo imdoseugovernotambémfoio imdestaelite intelectualqueapostou no reformismo e na revolução. Ou melhor, no reformismo comocaminho para uma revolução, uma terceira via que nunca chegou a serclaramentemapeadaentreasocial-democraciaeocomunismodetradiçãosoviética.

Nãoporacaso,ofurorpunitivodosgolpistasvitoriosossevoltou,emumprimeiromomento,contradoisgrupossociais:aselitespolíticas(incluindo-senelaos intelectuais identi icadoscomoprojetoreformista)easclassestrabalhadorasorganizadas.Paraasprimeiras,ogovernomilitarinventouoAto Institucional.Paraas segundas jáhaviaaCLT, aConsolidaçãodasLeisdeTrabalho,de1943,que tanto temumviésprotecionistaquanto tutelarsobre a classe operária. Para as lideranças camponesas dos rincões doBrasil, havia a tradicional pistolagem, despreocupada com leis e outrasmediaçõestrabalhistas,aserviçodosfazendeiros.

O impacto intelectual e cultural destadébâcle ainda é objeto dediscussãoeanálise.Ahistoriogra iabrasileiradedicoumaisestudosàvidaculturalpós-1964,aprendendoaveroartistaeo intelectualqueatuaramna primeira metade dos anos 1960 como um ser iludido, adepto de umnacionalismo vago e refém de um populismo tão demagógico quantomisti icador,comoa irmouacríticaposteriorda“novaesquerda”dosanos

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1980.Osprojetospolíticoseculturaisderrotadossempreperdemsuacor,comouma fotogra ia velha emelancólica de um futuro pretérito que nãoaconteceu. Mas quando olhamos para aquele período, sem utilizar dagrandevantagemdoshistoriadoresemrelaçãoaosprotagonistas,ouseja,o fatode jásabermosoqueocorreudepois,a fotogra iadopassadopodeserrestaurada.

O tema das reformas de base deu novo alento ao projeto modernobrasileiro.Desdeosanos1920,umanovaeliteculturalseformouemtornode dois objetivos: inventar um idioma cultural comum para uma naçãocindida por graves fossos socioeconômicos e, assim, modernizar o Brasilsem perda de suas identidades culturais. Com base na busca de umaessênciadanação-povobrasileiraedeumaestéticamodernista,inventou-seumanova “brasilidade”, incorporadapeladireitaepelaesquerda.Peladireita, pela mão do primeiro governo Vargas, sobretudo no período doEstado Novo e sua política cultural, este projeto se transformou em umdiscurso o icial e autoritário. Mas a esquerda, a começar pela esquerdacomunista,nãonegouonacionalpopulareomodernocomocaminhospara

umaculturacríticaerevolucionária.13

O nacional-popular era central na agenda estética e ideológica daesquerdadesdeosanos1950,aindapredominandocertadescon iançaemrelação às estéticas oriundas da vanguardas modernas. No começo dosanos 1960, tanto a Bossa Nova politizada, feita por artistas como CarlosLyra, Sérgio Ricardo ou Nara Leão, quanto o Cinema Novo de GlauberRocha,NelsonPereiradosSantoseRuyGuerrapromoveramoreencontroentreengajamento,pesquisaestética,culturapopularenacionalismo.Esteprojetonãoestariaisentodecontradiçõeseimpasses.Entreeles,odenãoestabelecer uma efetiva comunicação com as classes populares, quepareciamsermais fontede inspiraçãodoqueefetivopúblico consumidordasobras.

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Oanode1962,particularmente,foiricoparaavidaculturalbrasileira,comacon irmaçãodaBossaNovacomomodelodanossamodernacançãoengajada,eaformalizaçãodoCinemaNovocomogrupoecomaformaçãodoCentroPopulardeCultura(CPC)daUniãoNacionaldosEstudantes(UNE).NoNordeste, oMovimentodeCulturaPopulardoRecife eraomodelodeaçãoculturaldaselitesreformistas juntoàsclassespopulares, inspirando,

sobretudo, os jovens de outras regiões na sua “ida do povo”. 14 Ascampanhas de alfabetização de adultos calcadas nométodo Paulo Freire,que propunha uma alfabetização conscientizada, e não meramentetecnicista, mobilizavam vários setores da esquerda, desde 1961, com acriação do Movimento de Educação de Base que tinha apoio da IgrejaCatólica. Todos esses movimentos são tributários do clima de utopia edebate propiciado pela agenda reformista do governo Jango não comomeros re lexos da política na cultura, mas como tentativa de traduçãoestética e cultural das equações políticas. Mesmo o grupo mais afeito àpesquisa formal na tradição estrita das vanguardas históricas – porexemplo, o grupo ligado à Poesia Concreta –, experimentou naquele anosua“viradaparticipante”.

O projeto político-cultural do Centro Popular de Cultura da UniãoNacional dos Estudantes, tal como foi apresentado no Manifesto daentidade, foiherdeiroda formapelaqualoproblemadoespaçopolíticoesocial do “nacional-popular” foi lido pelo Partido Comunista. “Nacional-popular” era a expressão que designava, ao mesmo tempo, uma culturapolítica e uma política cultural das esquerdas, cujo sentido poderia sertraduzidonabuscadaexpressãodaculturanacional,quenãodeveriaserconfundidanemcomoregional folclorizado(querepresentavaumaparteda nação) nem com os padrões universais da cultura humanista(vivenciadapelaburguesiailustrada,porexemplo).

O texto-base do Manifesto doCPC, redigido pelo economista Carlos

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EstevamMartinseapresentadoemoutubrode1962,delineavaocaminhopara o jovem artista engajado poder “optar por ser povo”, mesmo tendo

nascido no seio das famílias mais abastadas.15 Aliando sua formação etalento com os estilos e conteúdos da cultura popular, o artista engajadopoderia ajudar a construir a autêntica cultura nacional, cuja tarefaprincipaleraestimularaconscientizaçãoemproldaemancipaçãodanaçãodiante dos seus usurpadores (nacionais e estrangeiros). Além disso, oManifesto tentava disciplinar a criação engajada dos jovens artistas,apontandopreceitosestéticoseposturasideológicas.Comotarefasbásicas,àmedidaqueogoverno JoãoGoulartassumiaasReformasdeBasecomosua principal bandeira, oCPC se dispunha a desenvolver a consciênciapopular,basedalibertaçãonacional.Masantesdeatingiropovo,oartistadeveriaseconverteraosnovosvaloreseprocedimento,nemqueparaissosacrificasseoseudeleiteestéticoeasuavontadedeexpressãopessoal.

Naverdade,asenhaparaumanovaarteengajadajátinhasidolançada

pelo Teatro de Arena, em 1959, com a peça Eles Não Usam Black-Tie .16

Grandesucessodepúblicoedecrítica,apeçaencenavaodramadeumafamília operária em meio a uma greve, fazendo com que o público seidenti icassecomospersonagens,oquenãoerapoucacoisaparaumpaísde tradição elitista e estamental. Utilizando-se da emoção, o objetivo eradesentorpeceraconsciênciacríticadoespectador,comoescreveuojovemautor Gianfrancesco Guarnieri na tese apresentada ao seminário dedramaturgia,umpoucoantesdaestreiadapeça.

Outra iniciativa cultural do CPC foi a série de cadernos poéticoschamadosViolãodeRua, nos quais eram reproduzidospoemas engajadose, às vezes, didáticos, tentando ensinar o povo a fazer “política” edesenvolverumaconsciêncianacionallibertadora.

OCPCaindaproduziuum ilmechamadoCincoVezesFavela,querevelou

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jovensdiretores,comoJoaquimPedrodeAndrade,LeonHirszmaneCacáDiegues. Na verdade, esse ilme era a junção de cinco curtas-metragensque apresentavam o tema da favela sob diversas perspectivas. Dois dosilmesquemaischamaramaatençãoforamCourodeGato (JoaquimPedrodeAndrade)ePedreiradeSãoDiogo (LeonHirszman).Noprimeiro,váriosgarotossaempelasruasdoRiodeJaneiroetentamconseguiralgunsgatospara vendê-los na favela. Na época de Carnaval, o couro dos gatos erabastante valorizado, pois era a matéria-prima dos instrumentos depercussão. Ao inal da história, um dos meninos se afeiçoa ao bichano,entrandoemcon litocomasuanecessidadedesobrevivência.Masesta,aofinal,seimpõe,paraazardogato.

Para os jovens intelectuais do movimento estudantil que tentavamincorporar aBossaNova comoumabase legítimadamúsica engajada, asposições veiculadas pelo Manifesto do Centro Popular de Cultura da UNE,elaborado por volta de 1962, deixavam os jovensmúsicos numa posiçãodelicada. Ao contrário do que a irmara Carlos Lyra, numa das reuniõesinaugurais doCPC, assumindo-se como “burguês”, dada sua origem eformaçãocultural,oManifesto insistiaque“serpovo”eraumaquestãodeopção, obrigatória ao artista comprometido com a libertação nacional.Abandonaro “seumundo”eraoprimeirodeverdoartista “burguês”quequisesseseengajar.Muitosdestescriadoresserecusaramaexercerestetipo de populismo cultural. Podemos perceber esta tensão no episódioenvolvendo o compositor Carlos Lyra. Segundo seu depoimento, a ideiainicialdoprimeironúcleodofuturo CPC,reunidoem1961, foiacriaçãodeum “Centro de Cultura Popular”, o que foi vetado por Carlos Lyra. Ainversão da sigla não foi mero capricho do compositor, conforme suaspróprias palavras: “Eu, Carlos Lyra, sou de classemédia e não pretendofazerartedopovo,pretendofazeraquiloqueeufaço[...]façoBossaNova,faço teatro [...] a minha música, por mais que eu pretenda que ela seja

politizada,nuncaseráumamúsicadopovo”.17

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Assim,ocaminhooposto foiesboçadopormúsicosquebuscavamumaBossa Nova nacionalista ou uma canção engajada, no sentido amplo dapalavra. Carlos Lyra, Sérgio Ricardo, Nelson Lins e Barros, Vinícius deMoraes e outros a irmavam a música popular como meio paraproblematizar a consciência dos brasileiros sobre sua própria nação e“elevar” o nível musical popular. Na perspectiva deles, a ideologianacionalista era um projeto de um setor da elite que, a médio prazo,poderiabene iciarasociedadecomoumtodo,ea“subidaaomorro”visavamuito mais ampliar as possibilidades de expressão e comunicação damúsica popular renovada do que imitar a música das classes populares.Essaperspectivafoideterminanteaté1964,quandoaconjunturamudouelevou alguns artistas de esquerda a se aproximar das matrizes maispopulares da cultura brasileira (como as praticadas nas comunidades do“morro”edo“sertão”),àguisadereaçãoideológicaaofracassoda“frenteúnica”,idealizadapeloPCB.

Enquantonamúsicapopulardiscutia-se apossibilidadedeumaBossaNova mais engajada e nacionalista, a música erudita retomava oexperimentalismo de vanguarda como procedimento básico, buscandonovas combinações harmônicas, timbrísticas e novos efeitos sonoros. OsurgimentodogrupoMúsicaNova,porvoltade1961,traduziaessabuscanuma reação ao nacionalismo de esquerda. Apesar disso, alguns nomesligadosaomovimentoerammilitantesesimpatizantesdoPCB,comoRogérioDuprat (militante até 1965), Gilberto Mendes (militante até 1958 esimpatizante após esta data) e Willy Corrêa de Oliveira. Eles tentavamdesenvolver uma leitura diferente do que signi icava “nacionalismo” namúsica, articulando-o com a pesquisa formal mais destacada. Nacontundentede iniçãodeRogérioDuprat,onacionalismodeveriaservistoem

função do con lito fundamental entre o país e o imperialismo [o que] determina umaretroaçãopragmática(lutaanticolonialista)enoplanoideológicoumabuscadea irmação

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de nossa cultura, que nada tem a ver com o folclorismo, os ingênuos regionalismos e ostrôpegosbalbuciostrogloditasdaarte“nacionalista”.18

OManifestodoGrupo,de1963, apontavaparaos seguintesprincípiosde criação musical: 1) desenvolvimento interno da linguagem musical,retomando as experiências musicais contemporâneas (século XX); 2)vinculação da música aos meios da comunicação de massa; 3)compreensão damúsica como fenômeno humano global; 4) refutação dopersonalismo romântico e do “folclorismo populista”; 5) necessidade derede inir a educação musical, baseando-se na interação com outraslinguagens e na pesquisa livre; 6) conceber a música como atividadeinterdisciplinar (devendo se articular à poesia, à arquitetura, às artesplásticasetc.).

No cinema, o espírito da vanguarda também deu o tom, só que numadireção diferente, mais voltada para a busca da fotogenia popular e daequação ílmica dos grandes impasses da revolução brasileira: quem é opovo? Como retratar seu sofrimento sem cair no melodrama? Como seconstroemasestruturasdedominação?Espéciedecinemadahora limitede uma revolução sonhada, o primeiro Cinema Novo mergulhou noNordeste, geogra ia mítica da brasilidade e da revolução. Se a cançãoengajadadaeraJangoconciliouomaterialmusicalpopulareasestruturasmodernasda canção legadaspelaBossaNova,oCinemaNovoagenciouomodernopararedimensionaropopular,apartirdeumcinemaautoral.Emambos, o despojamento dava o tom. Na canção assumiu-se a sínteseso isticada. No cinema, a precariedade expressiva. Em ambos, o culto aonovo.

Arigor,omovimentodoCinemaNovocomeçouporvoltade1960,comos primeiros ilmes de Glauber Rocha, Ruy Guerra e outros jovenscineastasengajadosedurouaté1967.Inspiradosnoneorrealismoitalianoenanouvellevaguefrancesa,quedefendiaumcinemadeautor,despojado,

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fora dos grandes estúdios e com imagens e personagens mais naturaispossíveis, o movimento rapidamente ganhou fama internacional. Os“veteranos” Nelson Pereira dos Santos e Roberto Santos logo foramincorporados ao movimento, ao mesmo tempo que novos nomes iamsurgindo:ArnaldoJabor,CacáDiegues,LeonHirszman,entreoutros.

Entre 1960 e 1964, grandes ilmes foram realizados em nome domovimento:Barravento (GlauberRocha,1960), acercadospescadoresdoNordeste;Vidas Secas (Nelson Pereira dos Santos, 1963), que retrata odramadosretirantes,baseadonolivrodeGracilianoRamos; OsFuzis (RuyGuerra,1964),arespeitodeumgrupodesoldadosquedeveprotegerumarmazémameaçadopor lageladosdasecanordestina;eofamosoDeuseoDiabonaTerradoSol(GlauberRocha,1964),parábolasobreoprocessodeconscientização de um camponês que passa pelo messianismo, pelocangaço e termina sozinho, desamparadomas livre, correndo emdireçãoao seu destino. Como se pode ver pelos temas, o Nordeste, ao lado dasfavelas cariocas, era o tema preferido desse tipo de cinema, o que nemsempre agradava o público de classe média, acostumado ao glamourhollywoodiano.Mas a intenção era precisamente chocar não só o públicomédiobrasileiro,mastambémavisãodosestrangeirossobreonossopaís.

Oprincípionorteadordomovimentoeraa “estéticada fome”, títulodeum famoso manifesto escrito por Glauber Rocha, em 1965. O manifesto,diagnosticando a situação do cinema brasileiro e latino-americano, diz:“Nemolatinocomunicasuaverdadeiramisériaaohomemcivilizado,nemohomem civilizado compreende verdadeiramente a miséria do latino [Porisso somos] contra os exotismos formais que vulgarizam os problemassociais”. Na sequência, Glauber defendia a ideia de que a “fome” era onervodasociedadesubdesenvolvida,denunciandoumtipodecinemaqueoraescondia,oraestilizavaamisériaeafome.Paraele,sóoCinemaNovosoube captar essa “fome”, na forma de imagens sujas, agressivas, toscas,

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cheiasdeviolênciasimbólica: “Oque fezoCinemaNovoum fenômenodeimportância internacional foi justamente o seu alto nível de compromissocom a verdade; foi seu próprio miserabilismo, que, antes escrito pelaliteraturade1930eagorafotografadopelocinemade1960”.Maisadianteomanifestodizquea“fome”,aosetransformaremproblemapolítico,negatantoavisãodoestrangeiro,queavêcomo“surrealismotropical”,quantoa visão do brasileiro, que a entende como uma “vergonha nacional”. Asolução estética e política se encontrava, num trecho bem ao estilo do

terceiro-mundismodosanos1960:19 “Amaisnobremanifestaçãoculturalda fome é a violência [...] o Cinema Novo, no campo internacional, nadapediu, impôs-se pela violência de suas imagens [...] pois através daviolênciaocolonizadorpodecompreender,pelohorror,a forçadaculturaqueeleexplora”.

Curiosamente,omaiortriunfodocinemabrasileironãoeraaceitocomopartedoconjuntodeobrasdoCinemaNovoesua“EstéticadaFome”,pelosprincipais diretores do movimento. Alguns anos antes,O Pagador dePromessas, ilmedeAnselmoDuarte,ganharaoprêmiomáximodoFestivalde Cannes de 1962. A comovente história de Zé do Burro, homem quequeria entrar com uma cruz na igreja, para pagar uma promessa emgratidão ao salvamento do seu animal de estimação e trabalho, mas queforabarradonaportapelopadre,quenãoadmitiaaquela“blasfêmia”,nãopodeserenquadradanosprincípiosda“violênciasimbólica”.Maispróximode uma estética neorrealista e dentro dos padrões clássicos de narrativacinematográ ica linear, O Pagador de Promessas não buscava o “choque”,mas fazia com que o público, independentemente da classe social ou daformação cultural, sofresse junto com aquele homem simples, cuja únicadesgraça foi querer agradecer aDeus por ter salvado seu jumento, peçafundamentalnoseutrabalhodiáriodecamponês.

“Choque”ou “identi icação”,CoriscoouZédoBurro, Deus e oDiabona

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TerradoSol ouOPagador de Promessas. Este era o dilema que o cinemabrasileiro enfrentava e quepode ser considerado a síntese dos impassesquemarcavam a arte engajada brasileira, na busca de caminhos para secomunicar com as classes populares e educar as elites para um novotempodemudançasquepareciapromissor.

Depoisdogolpe,astênuesligaçõesentreamilitânciaartístico-culturaleas classes populares foram cortadas. Também não tardaria para que asperseguições começassem a chegar às universidades, a começar pelaUniversidade de Brasília, projeto-piloto de um novo tipo de ensinouniversitárionopaís.

Paraavaliara importânciaeo infortúniohistóricosdogovernoJangoeseueventuallegado,nãosepodeperderdevistaestasquestõespolíticaseculturais amplas, para além das indecisões, isiologismos e negociatas dapequena política e das idiossincrasias de uma liderança frágil em ummomento histórico crucial. Seu governo foi o auge de uma primaverademocrática brasileira, que nunca chegou ao verão, mas que marcou achamada“Repúblicade46”.

Aliás, só podemos falar em “primavera democrática” a partir dosegundo governo Vargas, assim mesmo com muitas aspas. Boa parte dapopulação estava alijada do voto, a cidadania era, mais do que hoje,privilégio de classe, e a organização dos trabalhadores ainda era muitocontrolada. Nada que se compare ao clima repressivo do governo dogeneralEuricoGasparDutra,oprimeiroapósoEstadoNovo,marcadopelo

anticomunismoferrenhoepelaintervençãonasorganizaçõessindicais.20

Ainda sob o segundo governo Vargas, eleito democraticamente e alvo

constantedaoposiçãogolpistaudenista,21JoãoGoulartmodi icouomodelodeatuaçãodoEstadoperanteossindicatos,tentandoconstruirumespaçoefetivo de mediação de con litos entre o trabalho e o capital a partir do

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Ministério.Nomeadocomoministrodepoisdesedestacarnaestruturaçãodo Partido Trabalhista Brasileiro ( PTB), do qual eramembro do DiretórioNacionaldesdemaiode1952,Goulartfezcomqueaexigênciade“atestadoideológico” para ser dirigente sindical caísse em desuso. Mediante estedocumento, o sindicalista passava por um crivo, atestando que não era

comunistanemsubversivo.22OsrepresentantesdossindicatospassaramateracessoaossalõesdoMinistérioparadiscutirproblemasefetivos,enãoapenasparaaplaudiroministrodeplantão.Alémdisso,Jangoprometiaumaumento substantivo no salário mínimo, em um momento de amplasmobilizações operárias, como a famosa “Greve dos 300mil” em1953. AsmudançasqueelepatrocinounospoucomaisdeseismesesdeMinistérioforamsu icientesparagarantir-lhelugardehonranagaleriadosinimigosdadireita.SóperdiaparaopróprioVargaseparaoscomunistas.Naóticaconservadora, o “populismo irresponsável” do primeiro preparava ocaminho para os segundos. Além disso, eram acusados de preparar uma“República sindicalista” semelhante ao peronismo argentino, prometendobenesses que exigiriam mudanças nas estruturas econômicas e de

poder.23

Pressionado pelos setores militares, que lançaram o “Memorial dosCoronéis”, com 82 signatários, Vargas demitiu o jovem ministro emfevereiro de 1954. Conforme o manifesto, a política salarial de aumentoparaosoperáriossedescolavade talmaneiradasbasesderemuneraçãodosmilitares, sobretudodos soldados e das baixas patentes, que poderiagerarumclimadeinsatisfaçãonosquartéis.Mas,naverdade,osmilitaresestavampreocupadoscomareaproximaçãodogetulismocomossindicatosoperários, que poderia criar as bases de uma “República sindicalista”,depoisdeumcomeçodegovernomaismoderado.Osmilitares,ecoandoafala da oposição conservadora, consideravam “uma aberrante subversãode todos os valores pro issionais” um trabalhador ganhar um saláriomínimoque, caso fosseaumentadoem100%,seaproximariadosoldode

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umo icialgraduado,di icultando“qualquerpossibilidadederecrutamento,paraoExército,deseusquadros inferiores”,eenfraquecendo,portabela,a única instituição que poderia defender o país da ameaça comunista.Assim, sob uma linguagem corporativa e de defesa dos interessespro issionais das Forças Armadas, insinuava-se o profundoconservadorismo dos setores civis e militares que viam na política demassasenaretóricanacionalistadeVargasumagrandeameaçaaosseusinteresses privados e à sua concepção de ordem pública, como se o

presidente preparasse um novo golpe de 1937, só que à esquerda. 24 Opronunciamento dos coronéis de 1954 era o prenúncio dos generaisgolpistasde1964.

Mesmo defenestrado do governo Vargas, Goulart não deixou de ser opreferidodovelhochefe.Aprovadissoéorecebimento,emmãos,deum

dos originais da famosa “Carta-Testamento”, 25 na ocasião do suicídio dopresidente que abalou oBrasil em agosto de 1954.Desse legado, nasceuum novo projeto para o país, algo próximo de um trabalhismo social-democrata de corte nacionalista, calcado em uma pauta genérica, mas

ainda assim inovadora:26 defesa dos interesses da economia nacional;melhoria da condição de vida material dos trabalhadores via aumentossalariais e legislação protecionista; reforma agrária, reconhecimento dodireito à cidadania dos trabalhadores e de sua legitimidade como atoressociais e políticos. O crescimento da presença do PTB na Câmara dosDeputados (ver grá ico a seguir) não pode ser dissociado desta pautapolítico-ideológica que,manipulações, isiologismos e demagogias à parte,sintetizavaosprincipaisdesa iosparaaconstruçãodeumapaísmaisjustoe livre. Apesar de todas as restrições ao voto das classes populares, acomeçar pela proibição do voto do analfabeto em um país que grassava40% de analfabetismo, a participação operária nas eleições já havia sidosu icientepara surpreenderobrigadeiroEduardoGomes ( UDN), no pleitopresidencial de 1945, o udenista havia desprezado o “voto dos

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marmiteiros”, como foram apelidados pejorativamente os operários, e aascendência deVargas sobre estes.O fato é que a história da “Repúblicade 1946”, seu início, trajetória e desfecho, não pode ser separada destagrandenovidadehistóricanocontextobrasileiro:ovotooperáriocapazdedecidir eleições. Este novo ator parece nunca ter sido completamenteassimilado pelos setores conservadores,mesmo os que apregoavam suasvirtudes liberais,masnãodispensavamumgolpedeEstadopara corrigirosrumosdapolítica.

ComposiçãopartidáriadaCâmaradosDeputados(1946-1964)

Fonte: Rodrigo Motta,Introdução à história dos partidos políticosbrasileiros,BeloHorizonte,EditoraUFMG,1999,pp.103-105.

O outro grande partido nascido sob a in luência do “getulismo”, oPartido Social Democrático (PSD), também assumiu-se como iador daprecária ordem da República nascida em 1946. Ainda sob o impacto damortedeVargas,OsvaldoAranhaeTancredoNevesesboçarama famosa

“dobradinha” PTB-PSD, em nome da estabilidade política da República.27

Este pacto elegeria Juscelino Kubitschek em outubro de 1955, mas nãolivrariaopaísdaameaçadegolpesecontragolpes,tendocomoexemploaconturbadapossedonovopresidente,emjaneirode1956.Opacto PSD-PTBdurou até meados de 1964, dando sinais de esgotamento desde o anoanterior. Quando ele se rompeu, o io tênue que segurava a democraciapolítica brasileira exercitada na República de 46 também se partiu. A

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esquerdização doPTB e a radicalização da direita civil e militar nãopermitiammaisaexistênciadeumpartidofundamentalmenteconciliador,ainda que iador de uma ordem conservadora compequenas concessõesaoreformismo.

Antes disso, houve um susto para esta bem-sucedida dobradinhapartidáriaeeletinhaumnomeesobrenome:JânioQuadros.

Entre 1947 e 1960, Jânio saiu da suplência de vereador da cidade deSão Paulo para a Presidência da República, passando pela prefeitura(1953 a 1955) e pelo governo do Estado (1955-1959). Nestas disputaseleitorais enfrentou grandes máquinas partidárias, candidatando-se porpartidos pequenos, como o Partido Democrata Cristão (PDC) e o PartidoTrabalhista Nacional (PTN), menor ainda que o primeiro. Nos cargos queocupou criou um estilo próprio de gestão, baseado no discursomoralizador, em ações personalistas e em seu carisma um tanto peculiarquemisturava algo de gênio atormentado com o ar de professor severo.Também é inegável que, sobretudo na prefeitura de São Paulo, soube seaproximardomovimentopopularesindical.AUniãoDemocráticaNacional(UDN), que carecia de carisma e de votos su icientes para derrotar ogetulismoeseusherdeiros,viuemJânioonomeperfeitopararealizar talfaçanha. Nesta campanha eleitoral atípica, outra aberração, para ospadrões atuais: como a legislação permitia a eleição separada dopresidente e do vice-presidente, des igurando as chapas eleitorais,fechadas, algumas lideranças populares e sindicais lançaram os “ComitêsJan-Jan”. Ou seja, defendiam o voto em Jânio e Jango, ao mesmo tempo,

mesmoestesfazendopartedechapasecoligaçõesopostas.28Ambos,Jânioe Jango, não rechaçaram o voto combinado. Mas o sucesso eleitoral dachapaJan-Janfoiaportadeentradaparaacrisepolíticaqueseseguiriaàrenúncia.Logo,osdoisromperam,atépelapolíticadeperseguiçãodeJâniocontra os “corruptos”, entre os quais ele situava JK e Jango. Além disso,

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Jânio calculava que com um vice odiado pela direita civil e militar teriamais margem de manobra para fortalecer seu poder pessoal. A inal, osconservadorestemeriamumatoderenúnciaeaconsequentepossedoseuvice.

Aexuberantefasedecrescimentodaera JKmostravaoseuladoB,coma in lação, a corrupçãoe adívida externadandoo tomdodebatepolíticodo inal dos anos 1950, acabando por abrir espaço na agenda para suacrítica. Jânio,emmeioaestedebate,galvanizouossentimentoseosvotosquesinalizavamquealgonão iabemnos “anosdourados”dademocraciabrasileira. Contra a in lação, prometia sanear as inanças públicas econgelar salários. Contra a corrupção, prometia tomar o controle damáquina governamental com medidas moralizadoras e inquéritospunitivos. Contra a dependência externa, materializada na questão dadívida, prometia assumir uma nova política externa chamada

“independente”.29Entrementes,proibiuasbrigasdegalo,ousodobiquíninosconcursosdemisseseolança-perfumenoCarnaval.

Jânio acreditou que seu carisma e seus 6 milhões de votos seriamsu icientes para impor as medidas que, na sua concepção, seriamfundamentais para governar o país sem a burocracia e sem o aval doCongresso. Entretanto, viu-se cada vez mais pressionado pelas forçaspolíticas, mesmo pelaUDN, que o havia apoiado. Sua política externacausavaconstrangimentos,paranãodizerumafrancaoposiçãodossetoresconservadores da imprensa, da Igreja Católica e das Forças Armadas,marcadospeloanticomunismovisceralefanático.Apolêmicacondecoraçãode Ernesto Che Guevara, em 19 de agosto de 1961, com a Grã Cruz daOrdemNacionaldoCruzeirodoSulfoiacerejinhadoboloatiradonacaradosmaisreacionários.Mesmoqueessacondecoraçãofosseoresultadodaliberação,porpartedolíderdaRevoluçãoCubana,desacerdotescatólicoscondenadosaofuzilamentoemCuba,amedalhacausougrandemal-estare

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confusão,consolidandoa imagemdeumpolíticocontraditório,oportunistae ideologicamente ambíguo. AUDN rompeu com Jânio e seuprincipal alto-falante,CarlosLacerda,vociferoucontra Jânioem24deagostoemcadeianacional, acusando-o de preparar um golpe de Estado. Provavelmente, oproblemacentralparaLacerdanãoeraogolpeemsi,masumgolpesemaUDN,lideradoporumcondecoradordecomunistas.

No dia seguinte, Dia do Soldado, depois de sete meses de governo,tentouumlanceousadoparasairdoseuisolamentopolítico:renunciou.Háconsensoentrehistoriadoreseanalistaspolíticosemclassi icararenúnciadeJâniocomoumatentativade“autogolpe”.Seucálculopolíticoseapoiavaem algumas evidências: o povo que o elegera de maneira retumbante oaclamaria nas ruas para que voltasse à Presidência; o vice-presidenteeleito, JoãoGoulart,seriavetadopelosmilitares.Oprimeirocálculonãosecon irmou.Osegundo,pelocontrário,secon irmou.Masodesfechonãofoifavorável ao presidente autodemissionário. Ainda assim, entre 25 deagostoe7desetembrode1961,oBrasil foigovernado,de fato,porumajuntamilitar formadapelosministrosde Jânio:OdilioDenys,SilvioHeckeGrumMoss. Apoiados pelos setoresmais reacionários da UDN, izeram detudoparaimpedirapossedovice-presidente.

Parasuasorteeazar,nodiadarenúnciadeJânioQuadros,JoãoGoulartestavaemmissãodiplomática-comercialnaChinacomunista.Sorte,poisseestivesse no Brasil teria sido preso pela junta militar. Azar, pois, para aopiniãopúblicaconservadora,avisitaaoscomunistasconsolidavaapechade subversivo e ilo-comunista pela qual a direita rotulava o vice-presidente. Na verdade, Jango estava voltando da China, encontrava-semaisprecisamenteemCingapuraquandorecebeuanotícia.Jánodia28deagosto, emParis, comnotíciasmais consistentesdoBrasil, resolveuvoltarparaopaíspelocaminhomaislongo.DeParisfoiparaNovaYork,Panamá,Lima, Buenos Aires eMontevidéu. Chegou em Porto Alegre no dia 1º de

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setembro.

Nesse ínterim,enquanto Jangovoavapeloplanetaparadar tempoaospolíticoseliderançasquetentavamsolucionaracrisepolítica,oBrasilviviaumdosmomentosmaisintensosdesuahistória.Assistia-seadoistiposdemobilização: amilitar e a política. Ainda no dia 25, Leonel Brizola, jovemgovernador do Rio Grande do Sul e correligionário de Jango no PTB,a irmava sua disposição para a resistência, entrincheirando-se no PalácioPiratini. Na noite do dia 25, omarechal nacionalista e legalista HenriqueTeixeiraLottlançavaummanifestoànaçãoeexpunhaadivisãodasForçasArmadas.Ele jáhaviagarantidoapossede JK comseus tanquesnas ruasdo Rio de Janeiro e estava disposto a fazer o mesmo por Goulart,conclamando as “forças vivas do país” a defenderem a Constituição. Atocontínuo,LottfoipresoporordensdoMinistrodaGuerra,OdilioDenys.Nodia27,Brizolaconseguiuseapoderardas instalaçõesdaRádioGuaíbadePortoAlegre,queseriaabaseparaacampanharadiofônicaemdefesadaConstituiçãoedaposse,conhecidacomoRededaLegalidade.Cercade150emissoras passaram a retransmitir, em ondas curtas, os discursos emdefesa da democracia, rompendo a censura e o Estado de Sítio informalimposto pela junta militar. A população gaúcha se mobilizou em armaspara defender o governo, com o apoio do III Exército depois de uma

hesitação inicial do seu comandante, generalMachado Lopes.30 Até o dia31deagosto,pelomenos,apossibilidadedeumaguerracivilerareal,commovimentaçõesdetropaentreSãoPauloeRioGrandedoSuleordensdebombardeio do Palácio Piratini, que, como se sabe, não foram cumpridasgraças, em parte, à sabotagem dos sargentos iéis à Constituição e às

ordensdeBrizola.31EmGoiás,ogovernadorMauroBorgestambémaderiuàresistênciaconclamadapeloseucolegagaúcho.

Masasociedadecivil tambémsemobilizouporoutrosmeios.Mesmoaimprensa quenão tinhanenhuma simpatia porGoulart, comexceçãodos

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jornaisOGloboeTribunadaImprensa(depropriedadedeCarlosLacerda),

foi a favor de sua posse negociada.32 A Ordem dos Advogados do Brasil(OAB),aConferênciaNacionaldosBisposdoBrasil(CNBB)eaUNEtambémseposicionaram pela defesa da legalidade. Os sindicatos também semobilizaram,realizandomanifestaçõesegrevesemtodooBrasil.

Os parlamentares também não icaram parados. Mobilizaram-se paraencontrar uma fórmula de superação da crise dentro da velha tradiçãobrasileiradaconciliaçãoedaacomodaçãodeinteresses,comoisolamentopolítico dos radicais. Exatamente o que não aconteceria dois anos emeiodepois,quandoqualqueratitudedeconciliaçãoseriaimpossível.Em29deagosto, oCongressoNacional rechaçouopedidode impedimentodo vice-presidentepor 299 votos contra 14. Esta decisão, aliada à pressão civil emilitar contra a junta golpista, acabou por esvaziar o veto à posse deGoulart. Na madrugada do dia 1º de setembro, o Congresso aprovou oregimeparlamentaristapor233votos contra55.Aindaque contrariados,osministrosdajuntamilitaracataramadecisão.Naverdade,antesdeiraplenário, a “solução parlamentarista” tinha sido articulada por AfonsoArinos e Tancredo Neves, com aval das lideranças militares Cordeiro deFariaseErnestoGeisel,ambosligadosaogovernoJânioQuadros.

Masaesquerdapetebistatambém icoucontrariada,acomeçarpelaalabrizolista. A aceitação de Goulart da emenda parlamentarista lhe valeuuma fria recepção em Porto Alegre, frustrando a expectativa por umachegada triunfal, aindamaisporque elenão sedispôs adiscursarpara amassa reunidaem frenteaoPalácio.Ovice-presidente se fechouemumaespéciedesilêncioobsequioso,emnomedapaci icaçãonacional.Acrisede1961 deixou clara as personalidades políticas opostas de Brizola e deJango, o que, em grande medida, seria fatal para o projeto trabalhista eparaadefesae icazdoregimedemocráticode1946.Mesmoabatido,JoãoGoularttomavaposseemBrasíliaemumadatasimbólica:7desetembro.

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João Goulart foi empossado por um golpe de Estado civil, para evitaroutro, militar. Podem-se celebrar as virtudes conciliadoras do arranjopolíticoque instituiuoparlamentarismoemsetembrode1961,depoisdaconfusão causada pela renúncia de Jânio Quadros. O fato de não teracontecidoumaguerracivildeproporçõesconsideráveisnãodeixadeserum mérito da engenharia política brasileira. Mas não se pode negar ocaráter golpista do parlamentarismo, apelidado de “golpe branco” pelossetores mais à esquerda. Ainda mais porque, desviando-se do próprioprincípioparlamentar,ochefedeEstadonãopodiadissolveroCongressoeconvocar novas eleições. Ou seja, o importante era tirar os poderes deGoulart e não criar um sistema político robusto e administrativamenteeficaz.

Durante todo o ano de 1962, superada a crise do veto à sua posse, oconjunto das forças políticas, da esquerda à direita, trataria de sabotar onovo sistema de governo, a começar pelo próprio presidente. Soluçãomeramente ocasional, o parlamentarismo não convencia ninguém da suapossibilidadedesucesso.Asprincipaisliderançaspolíticascivisemilitaresnão apostavam no sistema. Os governadores de estados também não. Osgrandes partidosUDN ePSD, já no começo de 1962, retiravam apoio ao

sistema.33 Tampouco o parlamentarismo acalmava os espíritos golpistas.Osgeneraisgolpistasdajunta,mesmodesprestigiadospelaopiniãopública

eforadogoverno,continuaramtramandoparadeporopresidente.34

QuandoJoãoGoulartreiterouseuprojetodas“reformasdebase”nodia1ºdemaiode1962,oparlamentarismoclaramentefoicolocadoemxeque.EmdiscursoparaosoperáriosdaUsinadeVoltaRedonda, almamater do

projetoindustrializanteenacionalistabrasileiro,Goulartlançouadúvida:35

Nocalordacrise,oCongressoagiucomaprestezaqueomomentoreclamavaecriouumnovosistemadegoverno,quetemcontribuído,pelodescortinopolíticodopresidentedo Conselho de Ministros, Dr. Tancredo Neves, e dos ministros que o integram parapropiciar melhor entendimento e mais estreitas relações entre as diversas correntes

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políticas comre lexospositivosnodesarmamento geral dos espíritos.Agora, é chegadoomomento de perguntar-se ao povo brasileiro, às classes médias e populares, aostrabalhadores em geral, especialmente aos que vivem no campo, se estão tambémdesfrutando damesma tranquilidade e segurança. Aminha impressão sincera é de quenão[...]

Além de sugerir que o parlamentarismo não era a solução para osproblemas do país, Goulart encampava a demanda por uma AssembleiaNacional Constituinte, a ser eleita em outubro daquele ano, visando àreforma constitucional e à desobstrução para as “reformas de base”nomeadasnodiscurso:reformaagrária,bancária,eleitoral,tributária,semfalar na regulamentação da remessa de lucros das multinacionais parasuasmatrizes.

O primeiro Ministério do governo, sob o lema da “unidade nacional”,tendo Tancredo Neves como primeiro ministro, propôs uma agendareformista, “gradual e moderada”, sem apontar para compromissos e

prazosdelimitados.36

Em relação à reforma agrária, por exemplo, o primeiro governoparlamentar propunha uma “política iscal punitiva para terrasimprodutivas”.Maso ICongressoNacionaldeLavradoreseTrabalhadoresdo Campo, reunido em Belo Horizonte, em novembro de 1961, queria

mais.37 Mesmo prestigiado pela presença um tanto constrangida doprimeiroministroTancredoNeves,asessãodeencerramentodoencontroaprovou uma “Declaração” bastante ousada. Nesta, o movimentodenunciava o gradualismo e as medidas paliativas, exigindo a radicaltransformação da estrutura agrária a partir da desapropriação dolatifúndio improdutivo, da implantação do imposto progressivo, dadistribuição gratuita de terras devolutas, legalização da situação deposseiros e elaboração de uma política agrícola de estímulo à pequenapropriedade e legislação social para o trabalhador rural. No discurso deencerramento do líder das Ligas Camponesas, deputado Francisco Julião

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(PSB), surgiaa famosapalavradeordemque seriautilizadapelasdireitascomoexemploderadicalizaçãogolpistadasesquerdas:“Areformaagráriaseráfeitanaleiounamarra,comfloresoucomsangue”.

Desprestigiado pelo presidente, pelas principais lideranças políticas eaproveitandoanecessidadedesairdogovernoparaconcorreràseleiçõesmarcadas para outubro, o gabinete Tancredo renunciou em julho de

1962.38Osdoisoutrosgabinetesqueseseguiram,che iadosporFranciscodePaulaBrochadodaRochaeporHermesdeLima,prepararamoretornodo presidencialismo. A nomeação de Brochado da Rocha se deu comoalternativa aos nomes mais cotados, San Tiago Dantas (PTB) e Auro deMouraAndrade (PSD), já que estes foram vetados à direita e à esquerda,respectivamente. Para vetar a indicação do conservador Auro de MouraAndrade, foide lagradaumagrevegeral, embriãodoComandoGeraldosTrabalhadores,o CGT.NaBaixadaFluminense,agrevegeraldegenerouno“Motim da Fome”, marcado pelos saques ao comércio, com saldo de 11mortosecentenasdeferidos.

Nosegundosemestrede1962,abatalhapeloBrasilemmeioàGuerraFriaseacirrou.Asesquerdasrea irmaramseuprojetopolíticoapartirdotema das reformas, que para alguns era o começo da “RevoluçãoBrasileira”.Asdireitas,aindaassustadascomofracassodogolpecontraaposse de Jango, procuravam novas táticas e novos sócios para suaconspiração. As eleições para os governos estaduais e para o legislativodaquele ano serviriam de laboratório para novos ataques ao presidentereformista. Mas o crescimento do PTB acabou por demonstrar que nasurnas, apesar de todos os recursos gastos e até do apoio daCIA aoscandidatosconservadores,ostrabalhistasereformistasaindaeramfortes.

Com a boa atuação nas eleições legislativas e o presidencialismoamplamentevitoriosonoplebiscitoantecipadopara6de janeirode1963,iniciou-se uma nova etapa do governo Jango. A sensação de vitória das

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esquerdas (trabalhista, socialista e comunista), que nunca aceitaram oparlamentarismo, era patente. Com os poderes presidenciais de volta, ocaminhoparaasreformas icavamais livre,poisna leituradasesquerdasovotocontraoparlamentarismoerasinônimodeapoioàsreformas.

Com a volta do presidencialismo, crescia a pressão da esquerda nãoparlamentar,organizadanaFrentedeMobilizaçãoPopular,pelaaprovaçãodasreformasdebase,acomeçarporumareformaagráriaefetiva,sempreproteladapeloCongresso.AFrentedeMobilizaçãoPopular ( FMP), lançadapor Brizola no começo de 1963, estava mais voltada para a pressãopopular sobre o Congresso, algo que para a tradição conservadorabrasileirasoacomoumarevoluçãosangrentaemcurso.Delafaziamparteo Comando Geral dos Trabalhadores ( CGT), a Ação Popular (gruporevolucionáriodeorigemcatólica),oPartidoOperárioRevolucionário(POR-T,trotskista),setoresdasLigasCamponesas,aesquerdadoPCB, integrantesdoPSB,gruposdesargentosemarinheiros.AFMPacusavaogovernoJangode“conciliatório”aotentarrealizarreformasdentrodoCongressoNacional

dominadopelosconservadoresecadavezmaishostilaoreformismo.39

AtesedoCongresso“reacionário”,baluartedoantirreformismo,surgiuneste contexto. Diga-se, a nobre casa vestiu bem a carapuça. A FMP,liderada pelos brizolistas, tornou-se o principal foco do reformismo dito“radical”, tornando-seumgrupodepressãosobreoParlamentoesobreo

própriopresidentedaRepública.40

As relações entre Jango e seu cunhado Brizola eram tensas. Ora seualiado à esquerda, iador de sua posse em 1961, ora rompido com opresidente, Brizola era, ao lado de Francisco Julião, líder das LigasCamponesas, a liderança mais à esquerda naquele contexto. Mais aindaque o Partido Comunista Brasileiro (PCB), que no início dos anos 1960estava mais afeito ao gradualismo reformista do que ao voluntarismo

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revolucionário.41

Entre os três grandes núcleos da esquerda, brizolistas, comunistas e“ligueiros”,esteseramosúnicosqueapostavamefetivamentenaguerrilha,

buscandoapoiocubanoparatal.42

OPCdoBtambémnãoadescartava,masnaquelemomentoaindaeraumpartidoemestruturação,frutodeumrachacomoPCBem1962.

Ao longo de 1963, o governo Jango travou duas batalhas decisivas nocampoinstitucional.Uma,nofrontparlamentar,pelaaprovaçãodareformaagrária, pilotodas reformasmais amplasqueviriamna sequência.Outra,nofronteconômico,tentandocontrolarain laçãoeretomarocrescimento.Ambasforamperdidas.

Este fracasso seria resultado da incompetência do Poder Executivo,particularmente do presidente, na negociação com o Congresso e com osgrupos sociais organizados? Radicalização dos atores, sobretudo os deesquerda, que não aceitavam nem a reforma agrária possível nem os

sacrifíciosdoPlanoTrienal?43

O Plano Trienal, elaborado pelo brilhante economista Celso Furtado,forapensadoemdoistempos:oprimeirotemposeriadedicadoaocontroleda in lação e retomada do controle das inanças públicas. Neste ponto, oplano era ortodoxo e seguia a receita clássica do Fundo MonetárioInternacional (FMI), ainda que seu principal elaborador fosse iliado aokeynesianismodesenvolvimentista–restriçãosalarial,restriçãoaocréditoecortededespesasdogoverno.Passadoesteprimeiromomentodeajusteestrutural,oPlanoTrienalpreviaaretomadadodesenvolvimento,apartirdas reformas estruturais: administrativa, iscal, bancária e agrária. Seessas reformas se realizassem, seus idealizadores esperavam quatroresultados básicos: o governo gastaria menos (e melhor), os impostos

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seriam integrados e progressivos, as condições de crédito seriamreorganizadas e a agricultura, mais produtiva. Aliás, este ponto erafundamentalparacombatera in lação,vistoqueumadassuascausaseraa pressão sobre os custos de reprodução do trabalhador, sobretudoalimentaçãoemoradia.

Ofatoéqueopactosocialnecessárioparafazeroplanodeslancharnãofuncionou. Muitos sindicatos, a começar peloCGT, foram contra o planodesde o início. As principais confederações sindicais, ConfederaçãoNacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Crédito (Contec),ConfederaçãoNacionaldosTrabalhadoresIndustriais( CNTI),ConfederaçãoNacional dos Trabalhadores do TransportesMarítimos, Fluviais e Aéreos(CNTTMFA), que reuniam respectivamente os bancários, os operários e ostrabalhadores do setor de transporte, base de sustentação do presidenteJango,tambémseposicionaramcontraocortedesaláriosemumcontextoin lacionário. Juntas, aglutinavam cerca de 70% dos sindicatos. Entre oempresariado,asassociaçõeseconfederaçõescomerciaisnãoaceitaramocontroledepreços,denunciandoa“ofensivasocializante”doEstadosobreo livremercado.O empresariado industrial, que inicialmente fora a favordoplano,retirouseuapoioporvoltadeabrilde1963.Emmaio,oprópriogoverno cedeu às pressões: liberou o crédito e aumentou os salários dosfuncionáriospúblicos. Era o imdoPlanoTrienal. A economia estava semcontrole, fazendo convergir o pior dos cenários econômicos: recessão einflaçãoexponencial.

Entre março e outubro de 1963, travou-se outra grande batalhainstitucional do governo Jango: a lutapela reformaagrária “na lei”, e não“namarra”.Entreareformaagráriapossívelnanegociaçãoinstitucionalea desejadapelosmovimentos sociais (oumesmopelo governo), havia umabismo. Formalmente, ao menos até o começo de 1963, nenhuma forçapolítica era contra a reformaagrária, pois o latifúndio eraomonstroque

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todos os deputados denunciavam (mas alguns criavam no quintal). AreformaagráriaqueseriaaceitapeloCongresso,naprática, favoreceriaaespeculação.Osdoispontosdo impassedeixavamclaro isto: amaioriadoCongressonãoaceitavaopagamentoemtítulosdadívida,porissodefendiaferozmente o artigo 141º da Constituição de 1946, que exigia pagamentoem dinheiro pelas terras desapropriadas. Entre os que aceitavam apropostadaPresidência, comocertasalasdo PSD, o impasseeraem tornodo percentual de reajuste para os títulos que pagariam asdesapropriações. OPTBdefendiao limitede10%paraosreajusteseo PSDachava pouco. Para complicar a negociação no Congresso, a ConvençãoNacional daUDN, em abril de 1963, vetou qualquer tipo de “reformaagrária” viamudança constitucional, lançandoapalavradeordemparaofuturogolpedeEstado:“aConstituiçãoéintocável”.

Oliveira Brito, doPSD, lançou um novo projeto de reforma agrária,propondo correção entre 30% e 50% dos títulos da dívida utilizados nacompra de terras pelo governo, além de diminuição do percentual deaproveitamento da terra para ins de desapropriação, permitindo aindaque o proprietário icasse com metade da área desapropriada. Mas, emagosto, a Convenção Nacional doPSD minou a proposta do seu própriodeputado.Emoutubro,umúltimoprojetodereformaagrária,destavezdoPTB,foirejeitadopelaCâmara.

Obviamente, a crise militar e política que tomou conta do país entresetembro e outubro de 1963 não favorecia qualquer negociação maistranquiladentrodoParlamento.ArecusadoSTFemdarposseaosmilitaresque se elegeram como deputados e vereadores em 1962 provocou umarebelião de sargentos e cabos (sobretudodaMarinha e da ForçaAérea),que tomaram conta das ruas e de prédios públicos de Brasília. Osrebelados foram presos, mas a atitude sóbria do presidente diante dainsubordinaçãodasForçasArmadasalimentouaindamaisadescon iança

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dasdireitasdequeJangoe,sobretudo,LeonelBrizolaalimentavamoplanode um golpe de Estado apoiados nos setores subalternos das ForçasArmadas. Em outubro, uma entrevista de Carlos Lacerda a um jornalnorte-americano (Los Angeles Times) acusava Jango de ser um caudilhogolpista, cujo governo estava in iltrado por “comunistas”, e que estavaprestes a ser deposto por um golpemilitar. Além disso, Lacerda sugeriaque osEUA interviessem na política brasileira, para preservar a“democracia”nocontinente.

Vários setores do governo, sobretudo osministrosmilitares, reagiramimediatamente à divulgação da entrevista pedindo a prisão de Lacerda,medidaquepassavapeladecretaçãodoEstadodeSítio.Opresidente,umtantohesitante,enviouumprojetoparaoCongresso,solicitandoamedidaemergencial.Masconseguiusercriticadoportodosossetores,dadireitaàesquerda. As posições de direita do governo viam no Estado de Sítio o“autogolpe” janguista emmarcha, semelhante ao golpe de 1937, lideradoporGetúlioVargas,queimplantouoEstadoNovo.Aesquerda,sobretudooPCBeossindicatosoperários,reagiuàpropostadeEstadodeSítio,temendoqueogovernoquisesseselivrardaincômodaaliançacomossetoresmaisradicais da esquerda. Isolado, Jango retirou do Congresso a mensagempresidencial que pedia a decretação do Estado de Sítio. Paramuitos, seugoverno começou a naufragar a partir desta crise. Por outro lado, asposições à esquerda e à direita icavammais delineadas, exigindo que opresidente, acostumado a acordos e acomodações políticas, tomasseposição.

A imagem conservadora do Congresso Nacional foi cristalizada pelasesquerdas, fazendo crescer a proposta de uma Assembleia NacionalConstituinte.Essaeraasenhadoimpassepolíticoqueseestabeleceu.Diga-se, a maioria do Congresso, daUDN a amplos setores doPSD, fez de tudopara con irmar a pecha de ser um baluarte do antirreformismo, fazendo

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ouvidosmoucosàpressãopopular,vistacomogolpismoeportadeentrada

parauma“Repúblicasindicalista”.44

Opresidente Jango,aoperdersuasbatalhas institucionais,passouaseaproximar taticamente da pressão popular, como tentativa de acumularmoeda de troca para futuras negociações como Poder Legislativo.Mas ocurso dos acontecimentos não permitia mais tal manobra. Aliás, ela atéacelerou o curso dos acontecimentos. Ou seja, amarcha para o golpe deEstado.

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Ocarnavaldasdireitas:ogolpecivil-

militar

Quando se fala em golpe militar, a imagem da rebelião dos quartéistendea se imporna imaginaçãodo leitor:movimentaçãode tropas, cercodasededopoderconstitucional,pronunciamentosraivososdasliderançasmilitarescarrancudas,deposiçãoforçadadopresidenteeleito,coerçãodasforçascivisqueresistemaosgolpistas.Obviamente,nossogolpetevetudoissoemaisumpouco.Maséeste“pouco”amaisquefaztodaadiferença,transformando o golpe de 1964 em uma complexa trama de engenhariapolítica.

A partir de outubro de 1963, a crise política engrossou a conspiraçãoque jávinhade longadataeesta,porsuavez, transformouessacriseemimpasse institucional. Do impasse à rebelião militar foi um passo. Mas olevante dos quartéis ainda não era, propriamente, o golpe de Estado.Quando muito foi sua senha. Fato esquecido pela memória histórica, ogolpe foi muito mais do que uma mera rebelião militar. Envolveu umconjunto heterogêneo de novos e velhos conspiradores contra Jango econtraotrabalhismo:civisemilitares,liberaiseautoritários,empresáriosepolíticos, classe média e burguesia. Todos unidos pelo anticomunismo, adoençainfantildoantirreformismodosconservadores.

As derrotas nas batalhas parlamentares de 1963 pelas reformas

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pactuadasnoCongressoepelaretomadadasrédeasdaeconomianacionalparecemterdeixadoogovernoJangoumtantodesnorteado.Pressionadoàesquerda e à direita, o presidente viu suas margens de manobradiminuírem. Em setembro, antes mesmo de o último projeto de reformaagrária serderrotadonoCongresso, começava a crisepolítico-militarque

desgastariaogovernoeopróprioregimeaolongodosmesesseguintes.45

O mês iniciou quente, com uma greve generalizada em Santos,coordenada peloCGT, em solidariedade à greve de enfermeiras efuncionários de hospitais. Tudo começou quando a polícia paulista, sobcomandodoconspiradorAdhemardeBarros,realizoucentenasdeprisõesem uma reunião sindical. Como reação, o CGT ameaçou com uma grevegeral. No dia 5 de setembro, o ministro da Guerra, Jair Dantas Ribeiro,pressionado pelo comando do II Exército (general Peri Bevilacqua),ordenouaintervençãonacidadeparaconterosgrevistas,sobosaplausosda imprensaconservadora, fazendo-osrecuar.NoDiadaPátria, Jango fezumdiscursoconciliatórioelogiandoaparticipaçãodasclassespopularesna

política,massemaludiraoCGT.46

No episódio da greve de Santos icava claro, para quem quisesse ver,que o Exército, como instituição, até apoiaria uma reforma pelo alto,masnãotolerariaaaçãodaclasseoperária.Sobretudosecoordenadaporumaorganização sindical sob in luência comunista. Neste ponto, coincidiamgeneraisreformistas,comoJairDantasouAmauryKruel,aliadosdeJango,egenerais conspiradores, comoOdilioDenysouCasteloBranco.Portanto,nãodeveriacausarsurpresaofatodeKrueleDantas,nahorafatalde31

demarçode1964,condicionaremseuapoioaGoulartàextinçãodoCGT.47

QuandoacrisesindicaldeSantosestavasendosuperada,veioadecisãod oSTF considerando inelegíveis os sargentos eleitos a vários cargoslegislativosnoanoanterior,reiterandoaproibiçãoconstitucionalparaque

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osgraduadosepraçasocupassemcargoseletivos.Adecisão foioestopimdeumarevoltanossetoressubalternosdasForçasArmadas.Nodia12desetembro de 1963, os sargentos rebelados tomaram de assalto a BaseAérea, o Grupamento de Fuzileiros Navais, o Ministério da Marinha, oServiçodeRadiofoniadoDepartamentoFederaldeSegurançaPúblicaeaCentral Telefônica. Além disso, obstruíram as principais estradas quelevavam a Brasília e o aeroporto civil. Chegaram a invadir o CongressoNacional e tomaram oSTF, prendendo o ministro Vitor Nunes Leal.Instaurou-se o “Comando Revolucionário de Brasília”, que pretendiasublevarossargentosecabosdetodoopaís.Nofinaldatardedodia12desetembro, como reforço das tropas legalistas, omovimento foi derrotadocom um saldo de 536 presos e doismortos. O conjunto das esquerdas –PCB, Liga,FMP, CGT, UNE, FPN, entre outras organizações –, mesmosurpreendido pela sublevação, apoiou os revoltosos e pediu anistia aospresos. Goulart, que estava fora de Brasília, chegou à capital à noite,procuroutranquilizaropaís,dizendoqueogovernoiriamanteraordeme

preservarasinstituições.48Mesmoassim,apesardafalainstitucionalistaemoderada do presidente, o episódio pode ser visto como um ponto dein lexão na formação da grande coalizão antigovernista, adensando aconspiraçãoquedesembocarianogolpecivil-militar.

O Jornal do Brasil deu a senha para a formação de um bloco daimprensa contra o governo. Aliás, salvo um ou outro jornal, a imprensaapoiaraasuaposseecolocara-seemumaespéciede standbyparaavaliar

atéondeiriaoreformismodeJango.49Nasuaediçãode13desetembrode1963,oentãoinfluenteJornaldoBrasilpublicouumeditorialcujotítuloera“Basta”, anunciando a palavra de ordem que seria a senha para aderrubadadeJangoalgunsmesesdepois:

Antes que cheguemos à Revolução, digamos umBASTA! Digamos enquanto existemorganizadas, coesas e disciplinadas Forças Armadas brasileiras e democráticas, parasustentarpelapresençadesuasarmasopróprioBASTA!Chegouomomento–eagoramais

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doqueantescoma revoltadossargentos... –depôr termonoseiodoprópriogovernoàexistência de duas políticas: uma legal, sem e iciência e resultado administrativodemocrático, e outra ilegal, visivelmente subversiva, montada nesse apêndice ilegal dogoverno, chamado Comando Geral dos Trabalhadores –CGT [...]. Registramos o óbito dafalsa política de conciliação de classes por sortilégios e bruxarias do presidente daRepública [...] a paciência nacional tem limites. Ela saberá preservar sempre, nosmomentos oportunos e pelos meios constitucionais a Ordem. A bandeira da legalidadehoje,seconfundecomabandeiradaOrdem.Comnenhumaoutra, iqueissobemclaro.Osque estão se solidarizando hoje com os sublevados em Brasília estão do outro lado dabarricada.50

Os grandes jornais, até então divididos em relação à igura dopresidente João Goulart, começaram a se articular na chamada “Rede daDemocracia”, nome pomposo para a articulação golpista que tinha na

imprensa mais do que um mero porta-voz.51 Com efeito, os jornaispassaram a ser peças-chave na conspiração a partir do inal de 1963.Tradicionalmente ligada à linha liberal-conservadora, a grande imprensabrasileiraconsolidoualeituradequeopaíscaminhavaparaocomunismoe a subversão começava no coração do poder, ou seja, a própriaPresidência da República. A luta pelas “reformas”, na visão da imprensaliberal a inada com o discurso anticomunista da Guerra Fria, tinha setornadoadesculpaparasubverteraordemsocial,ameaçarapropriedadeeaeconomiademercado.Nessaperspectiva,opresidenteJangoerarefémdos movimentos sociais radicais liderados pelo seu cunhado, LeonelBrizola, ou pior, era manipulado pelo Partido Comunista Brasileiro. Aprópria fragilidade de sua liderança, conforme esta visão, seria umaameaçaàestabilidadepolíticaesocial.Oúnicojornalquecontinuava ielaotrabalhismoeaoreformismoeraoÚltimaHora.

A imprensa preparou o clima para que os golpistas de todos os tipos,tamanhosematizessesentissemmaisamparadospelaopiniãopúblicaou,aomenos,pela“opiniãopublicada”.ComoemoutrasépocasdahistóriadoBrasil, a opinião publicada não era necessariamente a opinião públicamajoritária.Osdadosdo Ibopemostramque,àsvésperasdeserdeposto,emmarço de 1964, João Goulart tinha boa aprovação na opinião pública

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dasgrandescidadesbrasileiras,com45%de“ótimo”e“bom”naavaliaçãodegoverno,e49%dasintençõesdevotopara1965.Apenaspara16%dosentrevistados o governo era “ruim ou péssimo”, e 59% eram a favor das

reformasanunciadasnoComíciode13demarço.52

Portanto, Jango ainda era um candidato forte se houvesse reeleição.Aliás,aimprensapassouaalardearapossibilidadedeumautogolpe,comofeitoporGetúlioem1937.Sóque,aocontráriodoprotofascismodoEstadoNovo, Goulart estaria preparando um golpe de matiz revolucionário eesquerdista,viabilizandosuareeleição.Aradicalizaçãodoseudiscursoeaaproximação com as esquerdas, consolidada no inal de 1963, seriam aprovadesteplano.

Obviamente,odiscursoantirreformistanaimprensaencontravaecoemmuitossegmentosdasociedadebrasileira,aindaqueestesnãofossemtãomajoritários quanto se alardeava. Os grandes empresários associados aocapital multinacional já não acreditavammais na capacidade do governoemretomarocrescimentoemum“ambienteseguro”paraosnegócios.Osexecutivos a serviço do capital estrangeiro viam o fantasma daregulamentação da remessa de lucros cada vez maior. Na verdade, a leitinha sido aprovada pelo Congresso em 1962,mas ainda não sancionadapelopresidente,quenãoqueriaumcon litocomosEstadosUnidoslogonocomeçodemandato.Pela lei,asempresasestrangeiraspoderiamremeteraoexterioraté10%docapitalregistrado.Acriseeconômicaeapressãodaesquerda nacionalista, em meados de 1963, o obrigavam a uma

definição.53

A classe média, ainda tributária do elitismo dos pro issionais liberaisque serviam às velhas oligarquias, acrescida de um novo grupo depro issionais assalariados ligados ao grande capital multinacional, se viuacossadapelacriseeconômica,tornandoseueternopesadelododescenso

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social, a “proletarização”, uma realidade plausível no curto prazo. Aindamaisemumcontextoemqueosproletáriosecamponesesseorganizavamemmovimentosque,no fundo,buscavammelhores condiçõesdevida.Nalógica particular da classe média brasileira, a ascensão dos “de baixo” ésemprevistacomoameaçaaosqueestãonosandaresdecimadoedi íciosocial. Como os que estão na cobertura têm mais recursos para seproteger, quemestámaispertodabasedapirâmide social se sentemaisameaçado. Não por acaso, o fantasma do comunismo encontroumais econesses segmentos médios. As classes médias bombardeadas pelosdiscursos anticomunistas da imprensa e de várias entidades civis ereligiosas reacionárias acreditaram piamente que Moscou tramava paraconquistar o Brasil, ameaçando a civilização cristã, as hierarquias“naturais”dasociedadeealiberdadeindividual.

Paraaselitescivisemilitaresqueelaboravamodiscursoparaaclassemédiareproduzir,oBrasil tinhaumdestinohistórico,eraumaespéciedeúltimo “baluarte doOcidente”, comoqueria o general Golbery do Couto e

Silva,54 seja lá o que isso signi icasse realmente. O reformismo dos“demagogos”, como eramnomeados trabalhistas e socialistas, era a portadeentradaparaototalitarismocomunista,cabendoaoEstadodefenderosvalores “cristãos e ocidentais”. É claro, tambémdar uma ajudinha para ocapitalmultinacional,elomaterialdoBrasilcomo“Ocidente”.

Organizaçõescomoo InstitutodePesquisaeEstudosSociais (Ipes)eoInstituto Brasileiro de AçãoDemocrática (Ibad) davam o tom das críticasaogoverno,produzindomateriaisdepropagandanegativaearticulandoosvários setores da sociedade que eram contra o trabalhismo evisceralmente anticomunistas. O Ipes foi fundado no início de 1962 pelogeneral Golbery do Couto e Silva, um dos coronéis do “Memorial”antijanguista de 1954, e concentrou-se, inicialmente, em produzir umdiscurso antigovernamental e antirreformista com a intenção de formar

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umanovaelitepolíticaideologicamenteorientadaparaumamodernizaçãoconservadora do capitalismo brasileiro. Também foi importante naarticulaçãoentresetorescivisemilitares,sobretudoquandoacrisepolíticasetornouaguda,apartirdo inalde1963.OIbad,fundadoantesdoiníciodo governo Goulart, mas igualmente orientado pelo anticomunismo eantirreformismo, foi particularmente atuante na campanha eleitoral de1962, quando os conservadores jogaram todas as suas ichas emdeter oavanço da esquerda pela via eleitoral. Como o resultado não lhes foifavorável, dadoo crescimentodo PTB, o Ibadreforçouooutro ladodasuaestratégia antigovernista: o golpismo. Ambas as organizações eramfinanciadaspelaCIAeforamfundamentaisparaarticularosdiversosatores

dogolpe:55grandesempresários, representantesdocapitalmultinacional,

setores da classe média, sindicalistas anticomunistas56 e liderançasmilitares conservadoras. Esta articulação ensejou a construção de umdiscurso antigovernista coeso, ainda que ideologicamente difuso e plural,apontando o reformismo de esquerda como a antessala do comunismo,sempre insidioso e esperando para se instalar no coração do Estado. Acorrupção – quase sempre atribuída ao “populismo de esquerda” –, aincompetência administrativa e a fraquezapessoalda liderançade Jango,refém dos “radicais”, completavam o quadro discursivo que procuravadesquali icar e desestabilizar o governo. Perante ao “caos”, a saída erareforçaroPartidodaOrdem,reunindoconservadoresdediversosmatizeseliberaisassustadoscomoambientepolíticopolarizado.

O discurso antigovernista e antirreformista conservador disseminadosistematicamentepelaimprensaapartirdo inalde1963,épicoejactante,serviuparaencobrirvelhosinteressesdesempre,sobretudodosgrandesproprietários de terra que se sentiam ameaçados pelos projetos dereforma agrária, ou pelos interesses multinacionais os quais se sentiamameaçados pelo nacionalismo econômico das esquerdas trabalhistas ecomunistas.Noentanto,elesnãocresceramnovazio.Aliás,suaforçacomo

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elementodepropagandaqueseencaminhavanadireçãodeumgolpeerajustamente sua ancoragem em uma realidade social e econômica crítica,cujas perspectivas não eram nada animadoras e careciam, efetivamente,deumadireçãopolíticamaisclaraporpartedosreformistas.Ofatoéque,por vários motivos que incluem o bloqueio sistemático das iniciativaspresidenciais por parte do Congresso, os mecanismos da políticatradicional brasileira – a negociação pelo alto – pareciam não maisfuncionarparagerenciaracrise.

No inal de 1963, o “Partido da Ordem” preparava-se para tomar ocoração do Estado, embora o roteiro deste drama ainda estivesse emconstrução.Os conservadores legalistas cada vezmenos acreditavamque

seriapossívelisolar,politicamente,opresidentedasforçasdeesquerda. 57

A direita conspirativa de sempre, isolada em 1961, passou a ganharinfluênciaeterreno,disseminandoatesedo“golpepreventivo”.

Para justi icarumpossívelgolpedadireita,cadavezmaisdisseminou-se a ideia de um golpe da esquerda em gestação. E esse golpe tinha umalvo: silenciar o Congresso Nacional e impor as reformas por decretopresidencial, oupior,pelaviadeumanovaConstituinteque reformariaaCarta de 1946. A bem da verdade, parte das esquerdas, sobretudo osbrizolistas e ligueiros, apostavam em ambas as soluções; portanto, odiscurso da direita não era desprovido de bases verossímeis, emboraGoulartnunca tenhapretendido tomara iniciativadeumgolpedeEstado

paraimporasreformaspordecreto. 58Masaartimanhadadireitafoiadeconstruiraequivalênciaentreaagendareformistaquepediamais justiçasocialemaisdemocracia,emboranãosoubessedireitocomoefetivá-las,eumgolpecontraaliberdadeeaprópriademocracia.Estaassertivalevavaa uma conclusão lógica: o eventual golpe da direita, na verdade, seriameramentereativo,portanto, legítimadefesadademocraciaedosvalores“ocidentaisecristãos”contraos“radicais”daesquerda.

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Aimprensaelaborouodiscursoeapalavradeordem.Asorganizaçõesgolpistas, comoo Ipes, preparavamoprojetopolíticopara salvar a pátriaem perigo, mas no xadrez da política ainda faltavam muitas peças emovimentos para o xeque-mate. No começo de 1964, seriam feitas asjogadasdecisivas.

Isolado,masaindadispondodepopularidade,opresidenteJoãoGoulartencaminhava-se para a política das ruas, dos comícios, das assembleiaspopulares. Isso parecia comprovar a tese do autogolpe em gestação.Masnãopodemosdesprezarumaoutra interpretaçãopossíveldestearriscadomovimento: para um presidente sem trunfos para negociar com umCongresso arisco às reformas que exigissem reforma da Constituição de1946 (mesmo as mais moderadas), perdendo apoio entre as elitesempresariais e bombardeado pela imprensa, as ruas pareciam ser umsoprodevida.Aproximar-sedapolíticadas ruassigni icavaaproximar-sedosmovimentoseorganizaçõesdeesquerda.

A esquerdabrasileira, à época, apesarde compartilhar algunsvaloresbásicos, dividia-se entre o reformismo e a revolução. Os reformistas, porsuavez,dividiam-seemdiversascorrentese interpretavamoreformismode maneira diferenciada. Para a Frente de Mobilização Popular, asreformas consolidariam a democracia social e o nacionalismo econômico.ParaoPartidoComunistaBrasileiro,queapartirde1958aderiraàpolíticade alianças em nome da “revolução brasileira nacionalista, democrática,

antifeudal e anti-imperialista”, 59 as reformas eram uma etapa daconstrução do socialismo. Mas na política real daquele contexto, oPCBpoderia ser classi icado como moderado, mais próximo das posições deGoulart,doqueaFMP,quedefendiaadissoluçãodoCongressoNacionaleaconvocaçãodeumaAssembleiaConstituinteeleitapelovotopopular,parareformar a constituição e viabilizar as reformas de base. Isso não querdizer que muitas organizações inspiradas peloPCB não estivessem

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presentes naFMP, como o Comando Geral dos Trabalhadores, o Pacto de

Unidade e Ação.60 Além delas, aUNE, várias confederações sindicais,

setores das Ligas Camponesas,61 organizações de subo iciais, soldados emarinheirosparticipavamdaFrente,quetambémcontavacomaesquerdados partidos legais, como oPTB e oPSB. Mesmo não participandoo icialmente daFMP, oPCB partilhavadas críticas que ela fazia ao governoJango,tidocomoexcessivamenteconciliadorcomossetoresconservadores,eaoCongresso,consideradoumempecilhoàsreformasdebase.Ofracassodas negociações parlamentares para a implementação da moderadareformaagráriapropostapelo governo ao longode1963 reforçou a tesedeuma“reformaviaPoderExecutivo”.

Até1964,asForçasArmadasestavamdivididas.Oso iciaisgolpistasde1961 cometeram o erro de apostar em um golpe sem construir umahegemoniamais sólida juntoàaltao icialidade.Estaeramajoritariamenteconservadora, mas a descon iança em relação aos reformistas radicais,bemcomoaculturaanticomunistadamaioriadoso iciais,nãosigni icava,necessariamente,adesãoautomáticaaumgolpedeEstadoquederrubasseo presidente João Goulart. Além disso, havia um pequeno número degeneraisqueeramideologicamenteligadosaonacionalismodeesquerda,oque lhes aproximava do trabalhismo. E, por im, havia alguns poucoso iciaiscomunistasqueocupavampostospolíticosdecomandonogovernoGoulart.Poroutrolado,entresargentos,cabosesoldadosdaMarinhaedoExército, cresciam as organizações de base e a mobilização em prol dasreformas de base. Nestes segmentos, o nacionalismo revolucionário

brizolistaeraaprincipalinfluência.62

Se não tinham o controle das Forças Armadas, os reformistasapostavam no seu legalismo e no “dispositivo militar” do governo. Aexpressãosintetizavaacrençaque,emcasodegolpedossetoresdadireitaciviledeumarebeliãomilitar localizada,asForçasArmadasseguiriamas

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ordens do seu comandante em chefe, o presidente, e dos ministrosmilitaresaele subordinadose identi icados como legalistase reformistas.Mas a tese do “dispositivo militar” não contava com a capacidade dearticulaçãodosgolpistaseofatordeuniãodao icialidadecontraaquebradahierarquiaeainsubordinação,representadaspelacrescentepolitizaçãodossubo iciais,cabosesargentos.Ao imeaocabo,comoveremosadiante,aculturamilitarfaloumaisaltodoqueadivisãoideológicadao icialidade.Em março de 1964, os poucos legalistas não conseguiram deter a ondagolpistaalimentadapelomedodaanomianosquartéis.

Alémdisso,o“dispositivomilitar”nãofoibemconstruídopelogoverno.Muitos comandantes simpáticos à esquerda e ao nacionalismo reformistanão tinham liderançade tropaefetiva,poisocupavamcargosdenaturezamaispolíticaousimbólica.IssoéfrequentementeexplicadopeloserrosnapolíticadepromoçõesealocaçõesdecomandosporpartedeJoãoGoulart.Por exemplo, nos idos de março, o chefe do estado-maior do Exército,generalCasteloBranco,conspiravaabertamentecontraoseucomandanteemchefe.

Ahistoriogra iatema irmado,comcertarazão,queosreformistaseasesquerdas em geral não foram meras vítimas da história e de golpistas

maquiavélicos.63 Estes se alimentaram dos erros e indecisões daqueles.Mas os erros políticos e o discurso radical das esquerdas, muitas vezessem base social real para realizar-se, não devem encobrir um fatoessencial: o golpe de Estado foi um projeto de tomada do poder –complexo,erráticoemultifacetado,éverdade,masaindaassimumprojeto.Nos primeiros meses de 1964, o ato inal começou a se desenhar paraambasaspartes.Reformistaseantirreformistasforamàluta.Abatalhadapolíticasaíadasinstituiçõestradicionaisedospequenoscírculosdopoderpara ocupar as ruas.À esquerda e à direita. A primeira,mais experientenestetipodebatalha,parecialevaramelhor.Masasegundanãoficariaem

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casa,comomeraexpectadora.Aspalavrasdeordemjáestavamdadas.

No começo de 1964, a política rompeu com os limites institucionais,sempre muito restritivos na tradição brasileira, e foi para as ruas. Àpolitizaçãodasruas,somou-seaaçãodegruposdepressão(empresárioselideranças de diversos tipos) e demovimentos sociais e a politização dosquartéis–dassalasdecomandoàscasernas.

Aopçãodopresidenteemseaproximardosmovimentos sociais edasorganizaçõesmais radicais da esquerda foi vista com grande entusiasmopelo campo reformista. Para estas, o presidente havia se decidido,inalmente, a sero líderda revoluçãobrasileira, o executordas reformasde base, “na lei ou na marra”, abandonando a política conciliatória.Entretanto, os documentos apontam para outro caminho. Jango emnenhum momento assumiu o rompimento com as instituições ou com oprincípio de negociação, mesmo com o Congresso Nacional em pé de

guerra contra a Presidência da República. 64 Desde dezembro de 1963,temendo um golpe do Executivo no recesso parlamentar, Auro deMouraAndrade,presidentedoCongresso,decretouqueacasaestavaem“vigíliacívica”.

Ocomeçodoanoparlamentar,emmarço, seriadecisivo.Daliatémaio,todas as correntes acreditavam que as cartadas inais do jogo políticoseriamlançadas.Ouogovernosefortaleceriacomoapoiodosmovimentossociais e da esquerda extraparlamentar, ou os conservadores deteriameste processo, pela via institucional ou golpista. Jango, em manobraarriscada,queriautilizarapolíticadasruasparaabrircaminhosàpolítica

institucional.65Mas não necessariamente aderia à tese do fechamento doCongressoedaconvocaçãodaAssembleiaConstituinte,defendidapelaFMPou pela implantação das reformas por decreto, via Poder Executivo, tesedefendida peloPCB. Jango parecia não querer queimar as pontes com os

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setores conservadoresmoderados.Na verdade, estes é que as destruíam

paulatinamente, encaminhando-se nitidamente para a solução golpista.66

Elapassavapordoiscaminhospossíveis:forçaropresidenteJoãoGoulartarompercomaesquerda, icandorefémdoconservadorismo,ouderrubá-loporumatodeforçaapoiadopelasForçasArmadas.Estecaminhoeramaisarriscado,masnãoestavadescartado.

Abatalhadasruasfoiseacirrandoetevedoiseventosparadigmáticos.A esquerda apostou todas as suas ichas emuma campanhade comícios,quejávinhamacontecendodesde1963,masqueagoraganhavaapoiodamáquinagovernamental.Omomento inaugural seriao comíciodaCentraldoBrasil,marcadoparaodia13demarço.EledeveriaseromodeloparavárioscomíciosreformistasportodooBrasil,culminandoemumagrandemanifestação no Primeiro de Maio. Para a direita golpista, eram ossintomas do golpe da esquerda em marcha. Os pan letos convocatóriosenfatizavam a necessidade de garantir as reformas de base, sobretudo areforma agrária, e defender as liberdades democráticas, adotando uma

estratégiadeocuparasruas.67

A Frente deMobilização Popular, liderada por Leonel Brizola, que aolongode1963pressionouopresidenteparaqueeleabandonasseo “tomconciliatório” da sua política, aderiu ao Comício, o que foi visto como umsintomadede initivaguinadaàesquerdadogoverno Jango. Sob climadepressão e boicote do governador da Guanabara, Carlos Lacerda, quetentou esvaziar o comício decretando feriado na Guanabara e retirandoônibusdasruas,maisde200milpessoassereuniramentreaestaçãodetremeoQGdoExércitoapartirdastrêshorasdatarde,paraouvirváriosdiscursosegritarpalavrasdeordempelasreformas.Nadamenosque15líderes discursaram antes de João Goulart, incluindo Miguel Arraes eLeonelBrizola,esteomaisaplaudidopelamassa.Nocomeçodanoite,umJoãoGoulartentreexcitadoetensosubiuaopalanque,ladeadopelajovem

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ebelaprimeira-dama,MariaTherezaGoulart.Porumahoraopresidenteatacou os falsos democratas “antipovo”, o uso da religião cristã pelaindústriadoanticomunismo,defendeuos interessesnacionaiseprometeuencaminharasreformas.ConclamouoCongressoNacionalaouviroclamordas ruas pelas reformas e pela revisão da Constituição que impediamudançaspolíticaseinstitucionais,comoaampliaçãododireitodevotoeareforma agrária. Afastou qualquer possibilidade de “virada de jogo” porparte do governo, como um golpe de Estado, ao mesmo tempo queconclamouasmassasparadefenderoseugovernoeoprojetoreformista,prevendo uma “luta que tanto maior será contra nós quanto mais perto

estivermosdocumprimentodenossodever”.68

Para provar que suas promessas não eram apenas palavras depalanque, utilizou suas prerrogativas constitucionais para assinar váriosdecretos, encampando re inarias particulares, congelando preços dealuguéis e desapropriando terras ociosas às margens das rodoviasfederais para ins de reforma agrária. Dois dias depois do comício, ogoverno Jango enviou uma longa mensagem ao Congresso Nacional, queiniciavaseuano legislativo,noqualmaisumavezexpunhaanecessidadede reformas estruturais, revisão constitucional e apelava para anecessidadedeoCongressoincorporarestasdemandas,negociandocomogoverno.Mas, àquela altura, qualquer negociação seria impossível, pois ocentro liberal conciliador seaproximavacadavezmaisdadireitagolpistadesempre.OPSD, ieldabalançanojogoparlamentar,virtualmenterompiacomogoverno,preocupadocomsuasbaseseleitoraisconservadoras.

A direita tampouco icaria em casa, amedrontada. Era precisoresponder à mobilização reformista com uma mobilização de rua maiorainda, que izesse com que donas de casa, empresários, liderançasconservadoras civis e religiosas, jovens da burguesia e da pequenaburguesia saíssem às ruas para protestar contra o governo. Para tal, foi

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escolhido o palco e a data. São Paulo, 19 de março. Dia de São José,padroeirodafamília.Osantooperáriofoimobilizado,simbolicamente,paratrairacausadostrabalhadoresemarcarodiadosreacionáriosemfesta.

As ruas do centro de São Paulo icaram tomadas por uma grandemultidão, calculada em 500 mil pessoas, que empunhava cartazesanticomunistas e contra o governo e sua agenda reformista. Patroas decabelo com laquê e empregadas domésticas não muito confortáveisestavamladoalado,contraofantasmadocomunismo.Religiosas,políticos,lideranças de classe também estavam presentes à passeata. Organizadapela União Cívica Feminina, uma das tantas entidades femininasconservadoras e anticomunistas que existiam no Brasil da época e quepassaram a ser ativistas exaltadas contra a esquerda, a marcha teve o

apoiodemaisde100entidadescivis.69

AcidadedeSãoPaulo,apesardeserocentroda indústriaeabrigaramaior classe operária no Brasil, mostrava sua cara conservadora eoligárquica, cujomaior símbolo era a aritmética ideológica que se lia emum dos cartazes da marcha: 32 + 32 = 64. Em nome de um civismoconservador e de um catolicismo retrógrado, a marcha mirava ocomunismo,masqueriaacertaroreformismo.Enissofoibem-sucedida.

Animados com a presença damassa contra o governo Goulart e seusaliados, os golpistas se assanharam. Não eramais preciso sussurrar nospalácios,poisagoraasruastambémgritavamcontraasreformas.Portanto,a ação contra o governo estaria legitimada, nos mesmos termos daesquerdaque searvoravaem falaremnomedo “povo”,materializadonapraça pública.Nodia seguinte àmarcha, umanota reservada do generalCasteloBrancodeixavaclarooultimatoaogovernoeasenhaparaogolpe,

emboraseuautoraindahesitasseemassumi-lodemaneiraproativa:70

São evidentes duas ameaças: o advento de uma Constituinte como caminho para a

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consecução das reformas de base e o desencadeamento em maior escala de agitaçõesgeneralizadas do ilegal poder doCGT. [...] A ambicionada Constituinte é um objetivorevolucionáriopelaviolênciacomofechamentodoatualCongressoeainstituiçãodeumaditadura.[...]Éprecisoaíperseverar,sempre“dentrodoslimitesdalei”.Estarprontoparaa defesa da legalidade, a saber, pelo funcionamento integral dos três poderesconstitucionaisepelaaplicaçãodasleis,inclusiveasqueasseguramoprocessoeleitoral,econtraacalamidadepúblicaaserpromovidapeloCGTecontraodesvirtuamentodopapelhistóricodasForçasArmadas.

O“ilegalpoder”doCGTea“ambicionada”Constituinteerampassosparauma ditadura “síndico-comunista” ou para um autogolpe de Goulart. Aexperiência do Estado Novo, em 1937, era a chave para compreender1964,naestranha lógicadosconspiradores. Jáos liberaisqueaderiamaogolpismo tinham como referência outra data, 1945, quando o ExércitoderrubouGetúlioeconvocoueleições.

O andar de baixo dos quartéis também se animou, só que em outradireção.Soldadosemarinheirostransformaramosdias inaisdemarçoemum prelúdio revolucionário, apavorando de vez os membros do altoescalão, ainda indecisos se deveriam derrubar Goulart. No prédio doSindicatodosMetalúrgicosdoRiodeJaneiro,cercade2milmarinheirosserebelarampelas“reformasdebase”,pormelhorescondiçõesdetrabalhoepela reforma do draconiano código disciplinar da Marinha. Foi exibido OEncouraçadoPotemkin , oqueanimouaindamaisamarujada.A realidadeimitavao ilme.OsFuzileirosNavaisqueforamencarregadosdereprimiromovimento aderiram à causa, com apoio do seu comandante CandidoAragão,eapopulaçãocivilforneceualimentosaosmarinheiros.Jangoteveuma atitude ambígua em relação aos amotinados. Proibiu a invasão doprédio, o que causou a renúncia doMinistro daMarinha, SilvaMota. Emseguida, após um acordo, ordenou a prisão dos amotinados, enquantopreparava sua anistia, realizada em ato contínuo. É consenso nahistoriogra ia que o episódio convenceu os últimos o iciais hesitantes dasForças Armadas que o próprio governo patrocinava a sublevação dosquartéis e a quebra da hierarquia militar. Os legalistas mais convictos

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ficaramisolados.

Nodia30demarço,apresençadopresidenteGoulartemumareuniãodesargentosesubo iciaisdaPolíciaMilitarnoAutomóvelClubedoBrasil,que também reivindicavam direitos como quaisquer trabalhadores, foivistacomooultraje inalaoprincípiodecomandohierárquico.Odiscursodopresidente,naverdade, foi conciliador,apelandoparaosentimentodeordem e os princípios cristãos dos subalternos na defesa das reformas ena luta por direitos dentro da ordem institucional. Até aí, nada de tãorevolucionário. Mas o problema era a presença do presidente em simesma, falando diretamente com os subalternos, passando por cima detodaacadeiadecomando.

Oambientepolítico internosedeterioraradevez, contandoagoracomumelementonovo:arebeliãomilitarpróecontraasreformaseogoverno.Paralelamente, as forças da geopolítica internacional também fechavamocercocontraogovernobrasileiro.

OroteirodaconspiraçãointernacontraogovernoGoulartéclaroebemdelineado,comtodososatoresdesempenhandoseupapel.MasqualseriaopapelefetivodosEstadosUnidosemtodoestedramahistórico?A inaldecontas,ogolpede1964foitramadoemWashingtonouapenascontoucomoapoioestadunidense,sendo,basicamente,madeinBrazil?

Desde1959,osnorte-americanosestavamdeolhonoprocessopolíticoe social brasileiro, assustados com as Ligas Camponesas. O Nordestebrasileiro era visto comoanova SierraMaestra, focodemisériasque, no

imagináriodasesquerdasedasdireitas,alimentavamaRevolução.71

Uma reportagem um tanto alarmista noNew York Times , em 31 de

outubro de 1960, acendeu o sinal amarelo para Washington. 72Areportagem falava em uma nova “situação revolucionária” na América

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Latina, alimentada pela miséria: no Nordeste brasileiro. Sob aadministraçãoKennedy,a“AliançaparaoProgresso”,programadestinadoa ajudar os governos latino-americanos e evitar que o comunismo seaproveitassedosubdesenvolvimentodocontinente,seconcentrounaquelaregião.Entre1961e1964,umamédiaanualde5a7milnorte-americanosentre voluntários bem-intencionados dos Corpos da Paz e mal-

intencionadosespiõesdaCIAvieramparaoBrasil.73

O ano de 1962 parece ser o marco zero das efetivas preocupaçõesnorte-americanascomocomunismonoBrasil.Nesseano,agrandeestrelado anticomunismo católico chegou ao Brasil, com pompa e circunstância.Sob o lema “A família que reza unida permanece unida”, o padre PatrickPeyton veio ensinar como a família brasileira deveria esconjurar odemônio de Moscou apenas com o rosário nas mãos. Foi bem recebidopelasautoridades,tevefacilidadesdetransportepeloterritóriobrasileiroereuniumultidões.Atécnicadorosáriocontraocomunismofoiincorporadapelasclassesmédiasemterrastropicais.

Oclimaentreogovernonorte-americanoeogovernoJangoazedouemmeados de 1962. Mas antes mesmo da eleição e posse de Jango, osEUAentraramemcon litocomLeonelBrizola.QuandoesteeragovernadordoRS, expropriou a Bond and Share, companhia de energia ilial da Amforp(American&ForeignPower),porBrizolaem1959,por1cruzeiro,depoisdaconcessãovencidaesemacordopararenovação.Depoisfoiavezda ITT(InternationalTelephoneandTelegraph),quetevea ilialestadualgaúchapressionadapelogovernodoestadoa investirmaisnaampliaçãodarede

telefônica.74

DuranteomandatodeGoulart,emumatentativadeacalmarapressãodo governo estadunidense, o Governo Federal realizou empréstimos ajurosbaixos,viaBancodoBrasil,paraasduasempresasnorte-americanas,

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comoformadecompensarasperdas.Mas,dadaarepercussãodoacordoentreosbrizolistas,Jangosuspendeuoacordo.

OutrapreocupaçãodeWashingtoneraasupostain luênciado PCBedaesquerdaemgeralnogovernobrasileiro,expressada,segundoos EUA,pelaposição brasileira em relação à crise dos mísseis em Cuba. A relativaindependência da política externa brasileira desa iava a tese doalinhamento automático com os “interesses ocidentais” no combate aocomunismo internacional. Assim, além de defender a autonomia de CubanaconferênciadePuntadelEstede1962,oBrasil foicontraainvasãodailhanocontextodacrisedosmísseis,emoutubro,emboratenhaapoiadoobloqueio naval à ilha governada por Fidel Castro. Mas isso não foisu iciente para agradar o governo Kennedy, cuja diplomacia chegou a

culparoBrasilpelofracassodapolíticadeforçacontraCuba.75

Apartirde1963,ogovernonorte-americanopreferiaconversaredardinheiro diretamente aos governadores de oposição, Carlos Lacerda (daGuanabara)eAdhemardeBarros(SP),adarapoioaoGovernoFederal.

As evidências indicamque até o inal de1963Washington trabalhavasistematicamente contra o presidente Jango, mas não tinha se decididopelo apoio incondicional a um golpe de Estado protagonizadoostensivamentepelosmilitares.ComoassassinatodeKennedy,em1964,oquadro seria outro, seja pela radicalização do quadro político brasileiro,sejapeloestilomaisdiretoedurodeLyndonJohnson.Ofatoéqueomapado caminho anti-Goulart estava traçado, indo de ações mais sutis eencobertas para ajudar os opositores ao presidente brasileiro, noCongresso,namídiaenasentidadescivis,aoapoiopolíticoaumgolpedeEstado,puroesimples.Talvezoestilode Johnsonfossemaisdiretoesemhesitações,mas,mesmoassim,osEUAqueriamumgolpedeEstadocomum

“ardelegalidade”,naspalavrasdosecretáriodeEstadoDeanRusk.76

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OsfalcõesdaCIAedoPentágono,dispostosaacabarcomqualquertomde vermelho na política internacional, passaram a agir de maneira maisdireta,apoiadospelaEmbaixadanorte-americananoBrasil.

O esforçodo embaixadorLincolnGordoneramapearquemeraquemnabarafundade conspiradoresdeplantãoquebuscavamseuapoio, e osnorte-americanos puderam traçar um quadro mais claro dosacontecimentos e de quemdeveriam apoiar. O problema para os EUA nãoera falta de conspiradores, mas seu excesso. Era preciso separaraventureiros, oportunistas e hesitantes das lideranças mais con iáveis eefetivas.

FoinestecontextoqueaatuaçãodocoronelVernonWalters juntoaosseus amigos dos tempos da Força Expedicionária Brasileira foifundamental, aproximando-se do general Humberto de Alencar CasteloBranco. A chegada do coronel VernonWalters alçou as relações entre oDepartamento de Estado, a Embaixada norte-americana e osconspiradoresbrasileirosaumnovopatamardearticulação.OembaixadorLincoln Gordon deixou bem clara a missão de Walters: “não quero ser

surpreendido”.77

Em 1964, Washington não apenas acompanhava as conspirações eapoiava os conspiradores, mas passou a ser um ator decisivo nosacontecimentos. Os informes da Embaixada dosEUA durante a crise darevoltadosmarinheirosedocerco inalaGoulartdeixavamWashingtonapardosacontecimentos,aomesmotempoemquetraçavamumroteirodeação. O embaixador Lincoln Gordon produzia uma interpretação dosacontecimentosquetinhamumsentidomuitoclaro:Goulartpreparavaumgolpe, na forma do fechamento do Congresso, apoiado pelas esquerdas.Sendouma liderança inapetente,Goulart logopoderia ser suplantadoporforças políticas mais agressivas, como os brizolistas ou os comunistas.Reconhecendo a complexidade da situação, osEUA deveriam criticar

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publicamenteogovernobrasileiro,aomesmotempoquedeveriamapoiar,secretamente, na forma de “ações de cobertura”, envio de armas e apoiologístico, a “resistência democrática”, ou seja, os golpistas. Entre aslideranças democratas, sugeria-se o nome do general Castelo Branco

“altamentecompetente,discretoehonesto”.78

O embaixador informava que não poderia ser descartada umaintervenção direta dosEUA, “emum segundomomento”, caso a situação oexigisse, para não correr o risco de o Brasil vir a ser “a China dos anos1960”.

Oplanoestavatraçadoeogrupoconspiradoraserapoiado,de inido.Aaçãoseriabrasileira;oapoiologísticoediplomático icariaacargodos EUA.Organizou-sea “OperaçãoBrotherSam”, compostadeuma forçanavaldecaráter logístico e de apoiomilitar tático, para evitar a caracterização de

umaintervençãodireta.79

No roteiro do embaixador Gordon, a ação contra Goulart deveria serreativaaofechamentodoCongresso,aumagrevegeral,àintervençãonosestadosgovernadospelaoposição.NaprevisãodaEmbaixada,essaaçãodeGoulartnãotardariaenãopoderiapegar“osdemocratas”desprevenidos.

Como em um ilme de Hollywood, o inal foi feliz (para osconspiradores).Osbadguyscomunistasesimpatizantesforamdepostos.Osmocinhosdemocratasestavamnopoder.Omelhor: semos EUA teremqueaparecer diretamente como agente da conspiração. A grande batalha doOcidente foi ganha pelo lado do bem. O Brasil, nas palavras de LincolnGordon, foi o “país que salvou a si mesmo”, livrando os EUA de umaimprevisível intervenção mais direta. De quebra, salvou os interessesestadunidenseseageopolíticadesenhadaparaasAméricas.Portudoisso,onovogovernobrasileirofoiprontamentereconhecidoporWashington.

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Mas nem sempre a história pode ser planejada, nem pelos melhoresmanagers, tampouco ser tão previsível como um roteiro barato deHollywood. O golpe planejado contra Goulart quase teve outro desfecho,poisaúnicacoisanãoponderadapeloembaixadorepelogovernodosEUAfoiahistóricadesorganizaçãobrasileira,atuanteaténasconspiraçõesmaissecretas.OgrupodeconspiradoresquemenosentusiasmavaWashington,reunido em torno do governador Magalhães Pinto, resolveu começar arebeliãomilitarequasepôstudoaperder,poisnãocombinoucomogrupoapoiado pelosEUA.A sortedosgolpistas équeooutro lado foi aindamaisdesarticuladoedesorganizado.

AansiedadeemderrubaropresidentedaRepúblicaera tamanhaquenãopôdesercontidapelosconspiradoresmaisafoitos.Em31demarço,osacontecimentos se precipitaram pela mão do general Olimpio Mourão,quando a Esquadra Norte-Americana da “Operação Brother Sam” aindaestava apertando os parafusos, lubri icando as armas e abastecendo osnavios.

Ao ouvir o discurso de Jango no Automóvel Clube, o general tomou a

decisão.80

Colocousuafardadecombateeorganizousuacolunaderecrutassemexperiência que deveria sair das Minas Gerais, naquela mesmamadrugada, para salvar o Brasil do comunismo e da subversão. Fatoconsumado, o governador-banqueiroMagalhães Pinto acabou dando avalpara a ação, com planos de declararMinas um estado beligerante. Velharaposadapolítica,MagalhãesPintosabiaqueaaçãodeOlimpioMourão,dopontodevistaestritamentemilitar, seriaum fracasso,mascriavaum fatopolítico importante que poderia ser capitalizado pelo líder civil que elesupunhaser.

Oqueimpressiona,mesmoaoshistoriadores,écomoumaaçãogolpista

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efetiva, que se anunciava havia, pelos menos, dois anos, conseguiusurpreender a todos. A ação do tresloucado general Mourão criou umagrandeconfusãoentreconspiradoresegovernistas.

A reaçãodeCasteloBranco,àquelaalturagrande líderda facçãomaisorganizada dos conspiradores, sob o beneplácito dos EUA, foi sintomática:“isso é uma precipitação, vocês estão sendo precipitados, vão estragar

tudo”.81 Costa e Silva, quenão faziapartedogrupo castelista, tambémseassanhou e tentou tomar a iniciativa, criando o Comando Supremo daRevolução,maispomposononomedoqueefetivonasações.

Carlos Lacerda, que também se supunha ser o grande líder civil daconspiração, liberousuapolíciaeseuscorreligionáriosparamilitaresparaaterrorizaraesquerdanaGuanabara.

Os governistas e as esquerdas comoum todo também foram tragadospe lolooping da história. Como havia muito se perguntara Lenin, asesquerdas brasileiras também se perguntavam “o que fazer?”. Mas, aocontrário do líder soviético, não tinham tantas certezas. Bombardear osrecrutas e prender o general Mourão? Prender Lacerda? Substituir oministrodoExército?Armarcamponeseseoperários, soba liderançadoscomunistas?Convocarumagrevegeral?Muitas reaçõesà rebeliãomilitarforam analisadas pelo governo no fatídico 31 de março, algumas foramesboçadas,masnenhumaseconcretizou.

OpresidenteJangotambémdeveterseperguntado“oquefazer”.Paraumhomemdoseuper il,açõesradicaisnãoestavamnoprograma,apesardosseusdiscursosnospalanquesdesdeocomíciodaCentral. Jangosabiaque qualquer decisão de conter o golpe pela força poderia iniciar umaguerra civil sobre a qual teria muito pouco controle. Ao longo de 31 demarço,suasaçõesselimitaramaoqueelemaissabiafazer:conversarparachegar a uma solução negociada. Mas seus interlocutores possíveis

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estavamcadavezmaisescassos.

Na noite de 31 de março, o presidente Jango perdeu um aliadoimportante, o general Amaury Kruel. Com ele, o Exército estavapraticamenteperdido, restando apenas o comandodo III Exército sediadonoRioGrandedoSul.Krueldeixouclaroparaopresidente:eleapoiariaogovernoseJangoafastassedeleos“comunistas”,oqueequivaliaareprimirosmovimentossociaiseseafastardossindicatos,sobretudooCGT.Suicídiopolíticopuro,oqual,obviamente,elenãopoderiaaceitar.

Nodia1ºdeabril, a rebeliãomilitar seampliou, enquantoaesquerdaesperava uma ordem para reagir, que nunca viria. No dia anterior, SanTiago Dantas, bem informado nas questões diplomáticas, avisou opresidente que os norte-americanos estavam prontos para reconhecer o

“governo provisório” e intervir militarmente em favor dos golpistas.82 Apartir desse momento, Jango começou a voar pelos céus do Brasilbuscandoumportoseguroparatentararticularumasaídapolítica.ChegouaoRioGrandedoSul,bastiãodaresistênciacivilde1961.

Nesse ínterim, a rebeliãomilitar foi se adensando até se transformaremgolpedeEstado.Eogolpeveionãodostanquesesoldadosrebelados,mas da instituição que deveria preservar a legalidade institucional. Nanoite de 2 de abril, em franco desrespeito à Constituição que a irmavamdefender, as forças conservadoras do Congresso Nacional declararam a“vacância”dapresidênciadaRepública,semdiscussãonoplenário.Comopresidenteaindaemterritórionacional.

Seopaísnãotinhamaisumpresidente,ocaminhodosgolpistasestavaaberto não só pela força das armas, mas pelas artimanhas da própriapolíticainstitucional.RanieriMazzili,presidentedaCâmaradosDeputados,tomou posse, mas àquela altura dos acontecimentos estava claro que setratavadeummandatodecurtíssimaduração,tuteladopelosmilitares.

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Enquantoisso,apopulaçãodoRiodeJaneirotransformavaasuaversãoda “Marcha com Deus” na Marcha da Vitória. O comunismo havia sidoderrotadoeasubversão,controlada.Milharesdepessoas,sobumachuvadepapelpicado,ocuparamaZonaSul,paracomemoraro imdogovernoGoulart, que, na verdade, era o im do próprio regime constitucional quepensavam defender. Também no dia 2 de abril, de inida a situação dopresidente que rumava para o exílio, começaram as articulaçõespalacianas para construir e legitimar – ao menos do ponto de vista dosconservadores – o novo governo. Aomesmo tempo, o Comando SupremodaRevoluçãotentavasea irmarcomoefetivopoder.Masdasarticulaçõespalacianascomospartidospolíticosqueapoiaram,aindaqueveladamente,o golpe de Estado surgiu o nome de Castelo Branco para ser o novopresidente do Brasil. Cumpria legalizar, mais do que legitimar, o seumandatoparaqueogolpedeEstadoganhassehonrasdesalvaçãonacionale respeito às instituições.Assim, em11deabril, oCongressoNacionaldoBrasil, expurgado de 40 parlamentares cassados, elegeu o líder daconspiração que derrubou umpresidente eleito pelo voto popular direto.CasteloBranco foieleito com361votosa favore72abstenções.Entreosvotos a favor, o de Juscelino Kubitschek, que seria cassado três meses

depoisdogolpe.83 O in luenteJKmanteve-sehesitante até as vésperasdogolpe,masacaboucedendoaosargumentoseàpressãodosconspiradoresemnomeda“conciliaçãonacional”.

As primeiras cassações84 indicavam o foco a ser “saneado” – aslideranças civis e militares alinhadas com as reformas e com o governodeposto–eapontaramparaumsigni icadohistóricoclarodogolpismode1964. Destruir uma parcela da elite que aderiu ao reformismo,desarticularasforçasdeesquerdaereprimirosmovimentossociais.

Em um ambiente de polarização ideológica radicalizada e de disputapor a irmação de projetos autoexcludentes para a sociedade e para a

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nação, a política de negociação é virtualmente impossível. No começo de1964, dois projetos históricos se digladiaram e exigiram oreposicionamento claro dos atores políticos e sociais. Os analistas quedefendem uma visão meramente institucionalista de política tendem adesconsiderar este princípio. Obviamente, é desejável que as instituiçõespossam se modi icar, absorver os con litos e neutralizar as posiçõesantagônicasnadireçãodoaprimoramentodademocraciaedasliberdadespúblicas.Mas isso não signi ica uma regra de ouro da análise política aolongo da história. Nem sempre a política é uma equação perfeita, cujoresultadoéoempateentreosatores.Nãosedeveapenasresponsabilizaros “radicais”,àesquerdaeàdireita,pela impossibilidadedenegociaçãoeconciliação.O fatoéque,emcertosmomentos,asconvicções ideológicaseos projetos de sociedade são inconciliáveis. Em 1964, o Brasil enfrentoueste dilema. Frequentemente, se diz que o governo Jango foi inapto paralidarcomoscon litosequeosradicaisdeesquerdaprepararamocenário

parao golpe.85Mesmo que haja certa dose de verdade nisso, o golpe foimuitomaisdoquemeroprodutodeumaconjunturadecrisepolítica.

O golpismo de direita, liberal ou autoritária, nunca aceitou o votopopular, o nacionalismo econômico, a agenda distributivista, a presençados movimentos sociais de trabalhadores. A tudo isso, chamava depopulismo e subversão. En im, o golpismo da direita nunca aceitou apresençadasmassassejacomoeleitorasoucomoativistasdemovimentossociais, na Quarta República brasileira, a “República de 46”. O golpe de1964nãofoiapenascontraumgoverno,masfoicontraumregime,contrauma elite em formação, contra um projeto de sociedade, ainda que estefosse politicamente vago. Muitos que defenderam a queda de Goularttalveznãotivessemaplenaconsciênciadessesigni icadohistórico.Masemrelação ao núcleo que comandou o golpe, nas Forças Armadas, na EscolaSuperiordeGuerraenoIpes,jánãopodemosdizeromesmo.Haviaalgumtempo,onovopaísestavaesboçadoporeles.Oquenãoquerdizerqueo

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quadrofinaltenhaseguidocompletamenteasdiretrizesdoesboço.

Aoqueparece, todos,conspiradoresegovernistas,acreditaramquesetratava de mais uma intervenção militar à brasileira: cirúrgica, de curtaduração, que logo devolveria o poder aos civis, em um ambiente político“saneado”,comoasdireitasgostavamdedizer.Em1945,tinhasidoassim.Em 1954, em certa maneira, também. Em ambos, a queda de Vargas,provocadapelacombinaçãodecrisepolíticapromovidaporgolpistas,nãotinhaabertoocaminhoparaumaditaduramilitardedireita.

Em1964, os sinais eramoutros.O governoCasteloBranco, aomesmotempoqueprometiaummandato-tampão,nuncaescondeu seusobjetivosestratégicos–umapolíticavoltadaparaaacumulaçãodocapitalqueexigia

ações autocráticas de longo prazo.86 Isso se chocava com as expectativasdeboapartedosgolpistasdacoalizaçãode1964,osquaisesperavamuma“intervençãosaneadora”comavoltadaseleiçõesacurtoprazo.Atentativade conciliar esta dupla expectativa marcou boa parte dos golpistas, quetalvez até acreditassem na pantomima democrática que “elegeu” CasteloBranco. Mas o que se viu foi o abandono paulatino das ilusões“moderadoras”queestavamnoespíritodogolpecivilmilitar,nadireçãodeuma ditadura. O golpe civil-militar rapidamente se transformaria em umregimemilitar. O carnaval da direita civil logo teria a sua quarta-feira decinzas.

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Omitoda“ditabranda”

Em 2009, aFolha de S.Paulo referiu-se aos quatro primeiros anos doregime militar como uma “ditabranda”, ou seja, uma ditadura não muito

convicta da suadureza.87 A opinião desse grande jornal paulistano, ciosoda sua memória de resistência ao regime militar, provocou extremapolêmicasobreanaturezadoregimeautoritário instauradopelogolpede1964.

A inal, é possível caracterizar o regime militar antes do AI-5 e damontagem do terror de Estado como uma ditadura? Há certa tendência,sobretudo da memória liberal do regime, defendida por parte da

historiogra ia, em a irmar que não.88 No máximo, uma ditadura“envergonhada”, exercida a contragosto por um presidente-general que,

segundo seus biógrafos,89 queria apenas “sanear” o ambiente políticobrasileiro e entregar o poder a um civil, eleito o quanto antes. Osdefensoresdessa tesea irmamquenosprimeirosquatroanosdo regimeaindaexistiaorecursoaohabeascorpus,mobilizadopeladefesademuitospresos durante o golpe, bem como certa liberdade de imprensa, deexpressão e de manifestação. Um dos exemplos de paradoxo do regimemilitarpré-AI-5éofatodequeasartesdeesquerdaexperimentaramseuauge justamente entre 1964 e 1968. Nessa linha de raciocínio, o regimefechou-seporquesucumbiuàspressõesda“extrema-direita”(linhadura)militareà conjunturapolíticamarcadapeloquestionamentocrescentedo

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governomilitar,mesmoentreseusaliadosdeprimeirahora.

Entrarnestedebatepodenosconduziraváriasarmadilhasdahistóriae, sobretudo, da memória. É inegável que a fase pré-AI-5 ainda não eramarcadapelacensurapréviarigorosaepelo terrordeEstadosistemáticocontra opositores, armados ou não. Mas isso signi ica diminuir o caráterautoritáriodoregimede1964?Pararesolverestaequaçãosemrecairnamemória construída tanto pelos liberais civis quanto pelos generaisalinhados ao chamado “castelismo”, que gostam de a irmar o caráterreativoebrandodoregimeentre1964e1968,éprecisore letirsobreosobjetivos fundamentais do golpe de Estado e do regime que se seguiuimediatamenteaele.

O autoritarismo implantado em 1964, apoiado pela coalização civil-militar que reunia liberais e autoritários, tinha dois objetivos políticosbásicos.

O primeiro objetivo era destruir uma elite política e intelectualreformista cada vez mais encastelada no Estado. As cassações e osinquéritospolicial-militares(IPM)foramosinstrumentosutilizadosparatalim. Um rápido exame nas listas de cassados demonstra o alvo doautoritarismo institucional do regime: lideranças políticas, liderançassindicaiseliderançasmilitares(daaltaedabaixapatente)comprometidascomoreformismotrabalhista.Entreosintelectuais,osideólogosequadrostécnicos do regime deposto foram cassados, enquanto os artistas eescritores de esquerda foram preservados em um primeiro momento,embora constantemente achacados pelo furor investigativo dos IPM,

comandadosporcoronéisdalinhadura.90

O segundo objetivo, não menos importante, era cortar os eventuaislaços organizativos entre essa elite policial intelectual e os movimentossociais de base popular, como o movimento operário e camponês. Aliás,

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para eles, não foi preciso esperar o AI-5 para desencadear uma forterepressãopolicialepolítica.Paraosoperáriosjáhaviaa CLT,talvezaúnicaherançapolíticadetradiçãogetulistaquenãofoiquestionadapelosnovosdonos do poder. A partir dela, diretorias eleitas eram destituídas esindicatoserampostossobintervençãofederaldoMinistériodoTrabalho.Paraoscamponeses,haviaaviolênciaprivadadoscoronéisdosrincõesdoBrasil, apoiados pelos seus jagunços particulares e pelas polícias

estaduais.91

O regime evitavadesencadear uma repressão generalizada, à basedeviolência policial direta e paralegal, como aquela exigida pela extrema-

direita militar, 92 sobretudo contra artistas, intelectuais e jornalistas. Osideólogosedignatáriosmaisconsequentesdogovernomilitarsabiamquenão seria possível governar um país complexo e multifacetado sem seapoiar em um sistema político com amplo respaldo civil, e com algumaaceitaçãonasociedade,principalmentejuntoàclassemédiaquetinhasidoa massa de manobra que legitimara o golpe “em nome da democracia”.Mas tambémnãopodiapermitir dissensos e críticasdiretas à “Revoluçãode 64”, sob pena de perder o apoio dos quartéis. Até que uma novaameaça pudesse servir de justi icativa ao endurecimento da repressão, ogovernomilitartinhaqueequilibrarofrágilconsensogolpistaeaunidademilitar, além de acalmar os cidadãos que não aderiram ao golpe,permitindo-lhescertaliberdadedeexpressão.Ofatoéqueestapolíticadeequilíbrio, mantida nos primeiros anos do regime, não ameaçava osobjetivos fundamentais da revolução: acabar com a elite reformista deesquerdaecentro-esquerda,dissolverosmovimentossociaisorganizadose reorganizar a política de Estado na direção de uma nova etapa deacumulaçãodecapital.

A relativa liberdade de expressão que existiu entre 1964 e 1968

explica-semenos pelo caráter “envergonhado” da ditadura 93 emais pela

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basesocialdogolpedeEstadoepelanaturezadopróprioregimeporeleimplantado. Tendo forte apoio nas classes médias e produto de umaconspiração que envolveu setores liberais (ancorados na imprensa e nospartidosconservadores),osquatroprimeirosanosdosmilitaresnopoderforammarcados pela combinação de repressão seletiva e construção deuma ordem institucional autoritária e centralista. Em outras palavras, aordem autoritária dos primeiros anos do regimemilitar brasileiro estavamais interessada na blindagem do Estado diante das pressões dasociedade civil e na despolitização dos setores populares (operários ecamponeses)doqueemimpedircompletamenteamanifestaçãodaopiniãopública ou silenciar asmanifestações culturais da esquerda. Obviamente,nãofaltarammomentosdecon litoentreoregimeeossetoresdeoposiçãoantes do AI-5, que muitas vezes redundaram em prisões, inquéritospolicial-militareseatoscensóriosaobrasartísticas.Masnadapróximodaviolência sistemática e do fechamento da esfera pública que ocorreria apartirdaediçãodoAI-5,emdezembrode1968, inaugurandoos“anosdechumbo” que duraram, na melhor das hipóteses, até o começo de 1976.Neste período, a tortura, os desaparecimentos de presos políticos, acensuraprévia e o cerceamentododebate político-cultural atingiram seupontomáximonosvinteanosquedurouaditadurabrasileira.

Líder da principal corrente da conspiração, sobretudo pelas suasconexõescomomundocivil,pelabiogra iarespeitávelcomomilitarepelasrelações com a diplomacia norte-americana, o general Castelo Brancopassou à história como uma espécie de ditador bem-intencionado.Construiu-se a imagem de um homem que acreditava nos objetivossaneadores e no caráter temporário da intervençãomilitar de 1964,masquesucumbiuàlinhadura,acomeçarpelaimposiçãodeumsucessoàsuarevelia, o marechal Costa e Silva. Este, apoiado justamente na extrema-direitamilitar,a“linhadura”,tinhaconseguidoemergircomograndelíder

militarnascrisesde1965e1966queagitaramosquartéis.94

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Algunsdadossobreos85nomestitularesdosministériosdurantetodoo regime militar revelam características interessantes: 23 eramprofessores universitários, com atuação nas universidades católicas e naUniversidadedeSãoPaulo,principalmente.Direito,Engenharia,MedicinaeEconomia foramasáreasde formaçãoquemais forneceramquadros(30,26,7e6,respectivamente).Outrodadoquemostracertaregularidadenaescolha do primeiro escalão: 17 militares ou ex-militares ocuparamministériosdeper ilcivil;entreosquadrosquetinhamoutiveramalgumapassagem pelo setor privado, 8 vinham do setor inanceiro, 7 do setorautomotivo, 5 da construção civil e 4 do setor de saúde. Entre os quetiverampassagempelapolíticapartidáriapré-golpe, 10nomesvieramdoUDN,9doPSDe3doPDC.Acomposiçãodonovogoverno,portanto,revelavaasforçasdacoalizãogolpistaejásinalizavaatendênciadosministériosdoregime militar como um todo: a combinação de tecnocratas para gerir aeconomia, militares nas áreas estratégicas (transportes, energia ecomunicação) e magistrados para os ministérios “ideológicos” (justiça eeducação).

Embora tenha passado à história como o maior representante da“ditabranda”, o governo Castelo Branco foi o verdadeiro construtorinstitucional do regime autoritário. Nele foram editados 4 AtosInstitucionais, a Lei de Imprensa e a nova Constituição, que selava oprincípio de segurança nacional e que, doravante, deveria nortear a vidabrasileira.AComissãoGeralde Inquéritoesteveatuante, tocandomaisdesetecentosIPMs que alimentavam mais o furor persecutório da direitamilitar do que propriamente produziam resultados efetivos. Na dinâmicadas sanções legais aos adversários do regime com base nos Atos

Institucionais,95 o governo Castelo Branco se destaca: dos 5.517 punidosporestetipodeatodoregime,65%(ou3.644)oforamduranteogoverno

Castelo.96Alémdecivis,osmilitaresafinadoscomogovernodepostoforamparticularmente punidos durante o governo Castelo, concentrando cerca

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de90%das1.230sançõesfeitasamilitaresaolongodoregime.

Na política externa, o governo Castelo Branco foi omais alinhado aosinteressesnorte-americanosdurantetodooregimemilitarnãoapenasemretribuiçãoaoapoiodadopeloTioSamnogolpeepelaapostanaliderançacastelista, mas também como consequência natural da visão geopolíticaque alimentava os golpistas militares e civis. Não faltavam liderançasmilitares com retórica nacionalista, ainda que ninguém fosse louco pararomper com os Estados Unidos, sobretudo naquele contexto de GuerraFria. Mas o governo Castelo estava muito distante de um nacionalismoeconômicoouideológico,aindaquemeramenteretórico.Suapolíticaeradealinhamento automático, pois a recuperação do capitalismo brasileiro, navisãodos tecnocratasdaeconomia,passavapelodinheiroepeloapoiodeWashington. Roberto Campos e Otavio Bulhões, velhos paladinos doliberalismoeconômicoedaaberturasemfreiosdaeconomiabrasileiraao“capital internacional”, eram a cara da política externa e econômica dogoverno. Além disso, sinalizando uma guinada na política externaindependenteesboçadaduranteosúltimosgovernoscivisantesdogolpe,oBrasil aderiu à política dobig stick ao apoiar, enviando mais de milsoldados,aoperaçãoamericanaemSãoDomingosparaintervirnaguerraentre conservadores e reformistas naquele país, ajudando a implantaruma ditadura pró-Estados Unidos. O regime sinalizava que, doravante, oBrasilseriaumdosbaluartesdacontrarrevoluçãoemterrasamericanas.

Ocasamentodogovernonorte-americanocomoregimemilitardurariaatémeados da década de 1970,mas já estava em crise desde o inal da

década anterior.97 Se ambos os países eram sócios no combate aocomunismoemterrasamericanas,como icariaclaronasimplantaçõesdasditaduras do Cone Sul nos anos 1970, certo nacionalismo econômico queimpedia a completa abertura de mercado e a sedução dos militares

brasileirospelaaquisiçãodearmasnucleareserampontosdetensão. 98As

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críticas às violações dos direitos humanos, incorporadas pela agenda doDepartamento de Estado a partir de 1976 sob o governo Jimmy Carter,foram o auge da instabilidade nas relações entre os dois países.Paradoxalmente, os banqueiros e empresários norte-americanos, apesardapolíticaprotecionistaemalgunssetores,nãoestavamdescontentescomoregime.OBrasildosmilitareslhesdavamuitolucro.

Napolítica interna, o governoCastelo foimarcadopordois camposdeação: a ação para reorientar a economia brasileira e a institucionalizaçãodo regime autoritário. Havia consenso entre as lideranças militares devisão estratégica e seus tecnocratas de plantão que era urgente umamodernização do Estado e da economia, em moldes capitalistas, visandofacilitar a vida dos investidores e grandes corporações nacionais emultinacionais. O problema era como fazer isso sem resolver entravesestruturaisemexercominteressesarcaizantes,acomeçarpelaquestãodaterra.Osprincipaisideólogosegestoresdoregime,comoGolberydoCoutoe Silva e Roberto Campos, acreditavamque amodernização da economiapor si faria com que estas estruturas arcaicas se adaptassem, sem anecessidade de uma ação radical do governo federal. Caberia a esteorganizarumanovalegislaçãoeumnovoaparatoburocráticoparageriraeconomia e fazê-la crescer. Paralelamente a isso, a política econômica dogoverno Castelo Branco tinha que controlar a in lação e recuperar acapacidade de investimento da União. Para tal, aplicou-se uma fórmularecessiva:controlarosgastospúblicoseossalários.Ogovernoreorganizouo sistema iscal, procurando disciplinar a complexa malha de interesseslocaiseregionaisquesempretinhamimpedidoaintegraçãodosimpostos.

Paraatuarnonívelmacroeconômico,foilançadooPaeg(PlanodeAçãoEconômica do Governo), ainda em 1964. O que não foi conseguido pelanegociaçãoduranteogovernoJangofoi impostopelonovoregime,semasperspectivas distributivistas futuras. O bolo da economia cresceria, mas

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não seria dividido, agravando o fosso entre ricos e pobres, apesar docrescimentodaclassemédia.

Uma nova política de reajustes salariais foi imposta, baseada em umcomplicado cálculo que mesclava a média da in lação passada e aexpectativa de in lação futura. O resultado, obviamente, era semprenegativo aos trabalhadores, mas, com a repressão e com seus sindicatosamordaçados pelaCLT, pouco podiam fazer para mudar o quadro. Alémdisso,como imdaestabilidadenoempregoeacriaçãodoFGTS,omercadode trabalho se tornava mais lexível, permitindo às empresas demitiremseusfuncionáriosacustobaixo,emcasodequedanoslucrosourecessão.Comessasmedidas,ogovernopreparavaumanovafasedeexploraçãodotrabalho, sinalizando aos empresários nacionais e estrangeiros que as“pressõesdistributivistas”que tinhammarcadoa “Repúblicade46”eramcoisadopassado.

Umgrandeproblemaparaamodernizaçãodaeconomiabrasileiraeraaestruturaagrária,arcaica,especulativaeconcentradanasmãosdepoucos.A terra, entendidacomo fontede renda imobiliáriaou status político localpelas oligarquias que tinham saudado o golpe, era um entrave aodesenvolvimento capitalista. Mas como no Brasil “reforma agrária” erauma palavra maldita e vista como a antessala do comunismo, o novogoverno tinha que resolver “tecnicamente” esta questão, sem ferir asensibilidade do grupo mais reacionário que apoiara o levante contraGoulart. Todos sabiam que o problema agrário era urgente, mesmopolíticos conservadores de visãomais estratégica. Independentemente dequalquer compaixão pela miséria histórica do camponês brasileiro,resolver o problema do latifúndio improdutivo era fundamental paraproduzirmaisalimentos,gerenciaroritmodoêxodoruraleinseriraterrano sistema capitalistamoderno. Sabia-se que um dosmotivos da in laçãobrasileira, após os anos 1940, era a crônica falta de alimentos para uma

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populaçãourbana crescente. Acostumados àmonocultura exportadora, jáemcrise,os latifundiáriosrecusavamqualquer formadedivisãoda terra,mesmoasmaismoderadas.Nomáximo, aceitavamvender suas terras aogoverno, para ins de assentamento, em um negócio que soava lucrativo,compreçosinfladosepagocomdinheirovivo.

Paratentarinseriraterranoprojetogeraldemodernizaçãocapitalista,ogovernoCastelopropôsopolêmico“EstatutodaTerra”no inalde1964,baseado em três eixos: imposto progressivo (conforme o tamanho dapropriedade), desapropriação com indenização e ocupação de terrasociosas. Os setores conservadores reagiram capitaneados pela UDN, porentidades ruralistas e pela imprensa mais ligada aos setores agrários

tradicionaiscomoojornalOEstadodeSãoPaulo,99pois,afinaldecontas,nasuavisão,os interessesagrárioseram“imexíveis”,mesmoque fossem,aoim e ao cabo, para desenvolver o capitalismo. Ao inal, mesmodescaracterizadoemrelaçãoaotextooriginalepoucoaplicado,naprática,o “Estatuto” era um sintoma de que os autoritários reformadores docapitalismo tinham lá suas diferenças com as oligarquias liberais eagraristas.

Nos anos 1970, a própria dinâmica econômica inseriu o latifúndio nosistema capitalista, sem reforma agrária e sem traumas para os grandesproprietários.Paraosmédiosepequenosproprietários,osistemanãoeratão benevolente, sempre dependendode preçosmínimos garantidos pelogoverno e de empréstimos bancários. Para os trabalhadores do campo, amecanização(emgrandepartedeterminadapelaentradamassivadasoja)e a perspectiva de emprego nas indústrias e serviços da cidade izeramcom que milhões de pessoas deixassem o campo e fossem viver nasmetrópoles, onde mesmo morando em favelas tinham algum acesso aserviçoebensque lheseramvedadosnocampo.Outraopção,estimuladapela ditadura para atenuar as tensões e demandas no campo, era

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estimularamigraçãopararegiõesdefronteiraagrícola,comoaAmazônia,ondeobraçohumano,ochamado“capital-trabalho”,derrubavaasárvorese preparava o caminho para a “integração” e o “progresso”. Quando elevinha, com mineradoras e pecuaristas, quase sempre os primeirosmigrantes eram expulsos da terra, tragados pelo sistema de grilagem. Amodernização capitalista no Brasil, ao invés de acabar com os velhosproblemassociaisnocampo,acabouporagravá-los.

No campo jurídico e institucional, o presidente Castelo Brancoestruturou o novo regime de caráter autoritário, independentemente dassuas intenções “democratizantes”. Com a economia em crise, parte daclasse média logo se desiludiu com o novo governo. Acuado pela classemédia e suas lideranças políticas, muitas delas formadas por políticosconservadoresqueoapoiaramnaocasiãodogolpe(comoCarlosLacerda),o governo Castelo sabia que sua sustentação estava nos quartéis e narápidainstitucionalizaçãodoregime.Issodeveriaimpediraemergênciadeliderançasmilitarespersonalistasecarismáticas,oquenãoeracompatívelcoma imagem“modernizante”e “tecnocrata”donovogruponopoder.Osdissensos nos quartéis se avolumavam à medida que a “RevoluçãoRedentora” dos males da política brasileira não se a irmava com todaclareza e dureza necessárias. Uma parte dos quartéis exigia um regimepunitivoereformador,semmaioressutilezasinstitucionaisejurídicas.Poroutrolado,umapequenapartedasliderançasmilitaresgolpistaspassavama criticar o continuísmo do governo, como foi o caso do rebelado deprimeira hora, general Olimpio Mourão Filho. Mas elas não importavamtanto quanto a direita militar “revolucionária”, que se dividia entre asliderançasdeCarlosLacerda,apartirde1965rompidocomogoverno,eCosta e Silva, que reforçava sua liderança para se viabilizar como opróximopresidentedaRepública.

Ainda assim, Castelo Branco não podia simplesmente descartar os

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resquíciosdeumsistemapolíticoquelhehaviasustentadoparachegaraopoder semparecer umditador aventureiro. Esta política de equilíbrio foiicando cada vez mais insustentável em 1966, com o crescimento dasoposições, liberais e de esquerda, na sociedade civil e com a crise nosquartéispressionandoogoverno.

A política voltada para a acumulação do capital e para a reformaconservadoradoEstado,blindando-ocontraas“pressõesdistributivistas”,exigiaumaditaduradelongoprazo,quesechocavacomasexpectativasdeboa parte dos golpistas da coalizão de 1964, os quais esperavam uma“intervenção saneadora” com a rápida volta das eleições. A tentativa deconciliar esta dinâmicamarcou o governo Castelo.Mas o que se viu foi oabandonopaulatinodasilusões“moderadoras”queestavamnoespíritodo

golpecivilmilitar,nadireçãodaditadurapropriamentemilitar.100

OprimeiroAtoInstitucionalnãotinhanúmero,pois,seacreditava,seriaoúnico.Masaconjunturade1965apresentavaumacrescenteinsatisfaçãodentrodosquartéis comoo tomconsideradomoderadodogoverno, e,nasociedade, comadissoluçãoda coalizaçãoanti-Goulart, decepcionada comosrumosdoregime.Emoutubro,comoreaçãoaosresultadoseleitoraisnaGuanabara e em Minas Gerais, que apontavam outros rumos para apolíticanacional,ogovernopromulgouoAtoInstitucionalnº2.

OAI-2podeservistocomoapassagemdogovernoqueseconsideravatransitórioparaumregimeautoritáriomaisestruturado.Emgrandeparte,representa o imda lua demel entre osmilitares no poder e os políticosconservadoresqueapoiaramogolpe,masqueriammanterseusinteressespartidários e eleitorais intactos, como Carlos Lacerda e Adhemar deBarros.Basicamente,reforçavaospoderesdopresidentedaRepública,emmatériasconstitucionais, legislativas,orçamentárias.Oatoaindareforçavaa abrangência e a competência da Justiça Militar na punição dos crimesconsiderados lesivos à segurança nacional. O presidente da República

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ainda poderia decretar Estado de Sítio por 180 dias, fechar o CongressoNacional,asAssembleiasLegislativaseasCâmarasdeVereadores,intervirem estados, cassar deputados e suspender os direitos dos cidadãos pordez anos. Na prática, tratava-se de uma reforma constitucional impostapeloExecutivofederal.Seogolpefoiobatismodefogodaditadura,oAI-2éasuacertidãodenascimentodefinitiva.

OAI-3,emfevereirode1966,completaaobra:estabelecem-seeleiçõesindiretas para governadores e nomeação para prefeitos das capitais. Emmarço surgiram a Arena (Aliança Renovadora Nacional) e o MDB(Movimento Democrático Brasileiro), os partidos de situação e oposição(consentida).

Por que uma ditadura precisava de “Atos Institucionais” elaborados apartirdeumjuridiquêscheiodecaminhostortuososeintençõeslegalistas?Seria mera “fachada jurídica” do exercício ilegítimo e violento do poder,comoseconvencionoudizer?QualafunçãodosAtosInstitucionais?

OprincipalobjetivodosAtos erao reforço legaldoPoderExecutivo, eparticularmente da Presidência da República, dentro do sistema político.Mas por que o presidente simplesmente não assumia um poder de fato,amparado pelas Forças Armadas? Em primeiro lugar, este tipo de opçãopoderia jogar as várias lideranças militares umas contra as outras, compapel decisivo para aqueles comandantes que possuíam acesso direto àtropa. Além disso, os Atos serviriam para consolidar um processo de“normatização autoritária” que ainda permitia alguma previsibilidade noexercício de um poder fundamentalmente autocrático. Além disso,garantiam alguma rotina nas decisões autocráticas e davam amparojurídico na tutela do sistema político e da sociedade civil, elementosfundamentais no verdadeiro culto àmagistratura ancorada em leis comoelemento de estabilização da política de Estado no Brasil, tradição que

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vinhadoImpério.

Os Atos eram fundamentais para a a irmação do caráter tutelar doEstado, estruturado a partir de um regime autoritário que não queriapersonalizar o exercício do poder político, sob o risco de perder o seucaráter propriamente militar. Para que o Exército pudesse exercerdiretamente omando político emanter alguma unidade, fundamental noprocessoque seacreditavaemcurso, erapreciso rotinizara autocracia edespersonalizar o poder. A autoridade do presidente, igura fundamentalneste projeto, deveria emanar da sua condição hierárquica dentro dasForças Armadas (mais particularmente do Exército) e de uma normainstitucional que sustentasse a tutela sobre o sistema partidárioinstitucionaleocorpopolíticonacionalcomoumtodo.

Ao todo, entre 1964 e 1977, foram 17 atos principais e 104 atoscomplementares. Ao lado dos famosos “decretos secretos”, constituem atessitura principal do emaranhado de leis que marcaram a consolidaçãodosprincípiosautoritáriosdosistemajurídico-políticonavidabrasileira.

Nocomeçode1967,colecionandoquatroAtosInstitucionais,ogovernoCastelo Branco dá novos passos para a institucionalização do regime. Foicriado o Conselho de Segurança Nacional, amparado por nova Lei deSegurança Nacional que substitui a Lei de 1953, tornando virtualmentetodoocidadãoumvigilanteeumsuspeito,aomesmotempo,dadaagamade possíveis crimes políticos. Em janeiro, o governo impôs uma novaConstituição, sancionada pelo Congresso às pressas, a qual de ine oformato das eleições, que passam a ser indiretas, e faculta ao própriopresidente da República a possibilidade de propor emendasconstitucionais.ArevogaçãodaCartade1946,emnomedaqualforadadoogolpedeEstado, explicitouas intençõesestratégicasdogovernoCasteloBranco para além de qualquer mandato-tampão até uma nova eleição,comoqueriamalgunsgolpistas.Emfevereiro,aLeide Imprensacompleta

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aobra jurídicaautoritáriadoprimeiropresidente-general,que,apesardepassar à história como um presidente “liberal”, foi o quemais cassou osdireitos políticos e os mandatos parlamentares, além de estruturar asbases jurídicas do regime autoritário com vistas a uma ação política

institucionaledelongoprazo.101

O governo Castelo testemunhou, paulatinamente, o im da coalizãogolpistatriunfanteem1964.Àmedidaqueessacoalizãoseesgarçavaeosmovimentos de contestação aumentavam, o governo aprofundava suasestruturas autoritárias, dando ossatura ao novo regime. E a cada novamedida institucional autoritária a coalizão se esgarçavamais. Este círculode ferro marcou o regime entre 1964 e 1968, quando as ilusões foramde initivamente dissipadas com o AI-5. Entretanto, mesmo antes de aditadura se tornar “escancarada”, o governo Castelo Branco (e o regimeque se construía com ele e por ele) não poderia ser caracterizado comopropriamente “liberal”, como sugere certa memória do período. Asdenúncias de torturas em instalações militares pipocavam. O governoreprimiaaoposiçãonoatacado, atravésdos IPMpresididospeloscoronéislinhas-duras, e pontualmente, cassando mandatos, mas evitando prisõesemmassa.

Ao mesmo tempo, preservava algumas liberdades jurídicas e civis,sobretudo no plano da expressão e da opinião, evitando uma completaruptura com os valores liberais que tinham sido fundamentais parajusti icarelegitimarogolpedeEstado.Mesmoestasliberdadeseramcadavez mais questionadas pela direita militar, cuja visão de ditadura eramenossofisticadaeinstitucional,preferindoarepressãopuraesimples.

Os liberais, emseusdiversosmatizes–depragmáticos adoutrinários,de isiológicosaoligarcas,decentroededireita–,articularameapoiaram

o golpe, salvo honrosas exceções.102 A grande imprensa, os grandes

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empresários e suas associações, ospolíticosudenistas, velhos inimigosdotrabalhismoedogetulismo,pro issionaisliberais,forampeçasimportantesnaconspiraçãocontraGoulart.Naeuforiadavitória,atéasraposasdo PSDesqueceramsuadobradinhahistóricacomo PTBeabriramcaminhoparaogolpe, e, pior, para a legitimação do regime, elegendo seu primeiropresidentenoCongresso.

OAto Institucionalde9deabrilde1964 foioprimeirosinaldealertaque aquele golpe não era igual aos outros. Não por acaso, logo após aedição do Ato, um dos jornaismais raivosos na oposição liberal contra ogoverno Goulart, o jornalCorreio daManhã (CM), romperia com o regime

que tinha ajudado a criar.103 Logo em 1964, oCMabriu espaço para aoposição ao governo e ao regime, a começar pelas famosas crônicas de

CarlosHeitorCony104 que causaram furorna sociedadee indignaçãonosquartéis.Parao jornal,nadahaviamudadoemrelaçãoaosprincípiosquenorteavam a crítica a Goulart. Acreditando-se como porta-voz dademocracia, oCM reclamava da ditadura de 1964, mas não tinhaconseguido assimilar a radicalização da democracia de 1946. Nestesentido, as oscilações do jornal são a melhor expressão da decepção deumapartedosliberaiscomonovoregime.

A cassação de Juscelino Kubitschek – que durante a rebelião militaricaraneutro,masquecomosfatosconsumadosajudoua“eleger”Castelono Congresso – chocou ainda mais aqueles que esperavam umaintervençãoindolorcontraradicaisecontracomunistas.Aomesmotempo,expressaacapacidadedepolíticosconservadoresemmobilizararaivadascasernascontraqualquertraçolongínquode“getulismo”,comoeraocasodo simpático e moderado ex-presidente bossa-nova. É sabido que CarlosLacerda,queaindatinhaamplain luêncianadireitamilitarsediadanoRiode Janeiro,manipularanosbastidorespara tirar seuprincipal adversárioem uma futura eleição para presidente,marcada para ocorrer em 1965.

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Quando esse ano chegou, foi a vez de Lacerda se afastar de initivamentedogovernoedoregimemilitar,tornando-seonovocampeãodaresistênciademocráticaaofundar,em1966,aFrenteAmplajuntocomJK.

Aseleiçõesde1965foramumclarosinaldequeacoalizãogolpistanãomais se sustentava. O sistema político e partidário, acuado, conseguiu serearticulardentrodaspossibilidadeselançarcandidaturasindependentes.A eleição dos governadores da Guanabara (Negrão de Lima) e deMinasGerais (Israel Pinheiro), ligados a JK, causaram comoção nos quartéis. Aspressões da direitamilitar pelo expurgo radical dos políticos “populistas”não se contentavam com a erradicação da ala esquerda. Políticosmoderadoseconservadorestambémeramalvosdesuspeitadosmilitares,cujo autoritarismo messiânico e patriótico se combinava com a visãomoralistadequeoscivisnogovernoeramvisceralmentecorruptos.Nesteprocesso de corrosão do sistema político construído em 1946, mesmo olacerdismoperdiaespaçonao icialidade.Oproblemaparaadireitamilitareram os partidos. Todos os partidos. Formados na tradição positivista, oregimeidealparaumaboapartedosmilitareseraaditadurarepublicana,emqueosmais capazesdeveriam tutelara sociedadeearbitrar con litosde classe de maneira técnica. Dentro de uma visão de sociedade quedeveria ser harmonizada a fórceps, qualquer questionamento ou con litoera visto como uma ameaça externa à coesão social, e não como dadonatural da vida política e elemento inerente à estrutura social. Odesdobramento quase necessário para a realização deste projeto era arepressão,cujograudeviolênciaearbitrariedadevariavaconformeotipodeoponenteedascircunstâncias.ADoutrinadeSegurançaNacional(DSN)

seadequoucomoumaluvaaestatradiçãomilitar.105

Entretanto, boa parte da classe média conservadora que tinhaaplaudido a quedadeGoulart começou a questionar o governoCastelo e,porconsequência,opróprioregime.Apartirde1966,soboefeitodoAI-2

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queassumiaocaráterautoritárioeditatorialdoregime,váriossegmentosampliaram o coro da oposição. O Congresso, um dos focos do golpismocontra Goulart, resolveu voltar a iscalizar o governo, instalando váriasComissões Parlamentares de Inquérito, como a da desnacionalização das

terrasdaAmazôniaedoacordoentreaTime-LifeeaRedeGlobo.106Otomde“defesadanação”aumentavaaindamaisaimagemdogovernoCastelocomolesa-pátriaaosealinharaosnorte-americanos.

À direita, Adhemar de Barros e Carlos Lacerda rompiamde initivamente com o governo. Lacerda, em 1968, diria o seguinte: “eutinha o dever de mobilizar o povo para corrigir esse erro do qual [...]

participei”.107 Em São Paulo houve até um arremedo de rebeliãoademarista, que não deu em nada, mas selou o destino do polêmico

governador,queacaboucassado.108CarlosLacerda,símbolocivildogolpe,teve uma sobrevidamaior. Em 1966, vendo fechadas as portas para suaeleiçãoacurtoprazo,lançouaFrenteAmpla.LacerdaestabeleceucontatoscomJK,cassadoemjunhode1964eexiladoemLisboa,ecomJoãoGoulart,exilado emMontevidéu. Este, de início, não se empolgou com a aliança edemorouatémeadosde1967paraaderiraogrupo.

A Frente foi lançada em outubro de 1966, quando o governo Casteloderrapavanaretomadadocrescimentoepareciacurvadoaumainvisívelmas sempre citada “linha dura” com a “eleição”, ou seja, a homologaçãopelo Congresso de Artur da Costa e Silva como próximo presidente daRepública. Além disso, o governo Castelo acirrou a crise com o PoderLegislativo ao cassar, no dia 13, mais seis deputados oposicionistas. OCongressoreagiu,a irmandoqueadecisãosobreascassaçõesdeveriaserfeitaemplenário,mediantevotosecreto.Nodia21,emmeioàcriseentreos dois poderes, o governo mandou fechar o Congresso, que assimpermaneceupor32dias, comcenasdeocupaçãomilitardaCasa.Comosseis cassados, o regime computou 67 cassações de parlamentares desde

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suaimplantação.

O longo Manifesto da Frente Ampla fazia uma bela ginástica retóricapara explicar como Carlos Lacerda e Juscelino (com vistas também aJango), antesmortais inimigos, eramaliados contra o regime. Conformeodocumento, os três estavam juntos em nome de uma luta maior queameaçavaopaís,aditadura,chamadaassimmesmocomtodasasletras.OManifesto era uma dura crítica à ditadura e à defesa do processodemocrático interrompido em 1964. Criticava duramente a políticarecessiva de Castelo e apelava aos trabalhadores, estudantes, mulheres,empresários, delineando um campo demobilização quemais tarde seriachamado “sociedade civil”, termo que ainda não aparece no documento.Apelava até aos sentimentos patrióticos dos militares, que segundo odocumento estavam sendo traídos pelo caráter antinacional eantidemocrático do regime. Apesar das críticas, o tom era de apelo aodiálogo,naesperançadeumasaídanegociadaparaoimpasseeisolamentopolíticonoqualoregimepareciamergulhar.

Nocampodaesquerda,oPCBapostavaemumafrentedeoposiçãojuntocom liberais, inclusive os arrependidos por apoiar o golpe. O partido,desarvoradodesdeosacontecimentosdeabrilde1964, conseguiureunirseu Comitê Central somente emmaio de 1965. Como resultado lançou aResolução deMaio, assumindo o icialmente os termos da resistência civil(ou seja, não armada) ao regime. O documento caracterizava a ditaduracomo “reacionária e entreguista”, a serviço dos Estados Unidos, quetentavadisfarçarseucaráteratravésdeumapantomima“reformista”,masqueentravaemchoquecomosprópriosinteressesdocapitalismonacionalbrasileiro.Assim,destinadaaofracassopelassuasprópriascontradiçõeseincongruências com a marcha da história, os comunistas a irmavam queeraprecisoseuniratodasasforçasantiditatoriaispara“isolarederrotar”oregime. Issodeveriaser feitoapartirdeuma frentequedefendesseas

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“liberdades democráticas” e fosse ativa inclusive nas limitadas eleiçõespermitidaspeloregime.Portanto,aagendasocialistaaindanãoestavaempauta, muito menos qualquer radicalização de palavras de ordem quelevassem ao isolamento do partido. Tudo mais era “aventureirismo e

pressapequeno-burguesa”fantasiadaderevolução. 109Orecadoeraclaropara os que já apontavam o caminho da luta armada, e icaria maisexplícitoaindanosdocumentospartidáriosde1967,quandosecondenava

aaçãovoluntaristadegrupos“audaciosos”efoquistas.110

Leonel Brizola, o ousado líder da resistência de 1961, era de longe oexiladomais temido do regime. Dotado de carisma e ousadia, poderia setransformar em um líder das vozes que exigiam uma luta mais radicalcontra os militares no poder. Em 1965, Brizola era el hombre para oscubanos,depoisqueestessedecepcionaramcomFrancisco Juliãoeainda

não tinham descoberto Marighella.111 Cuba, naquele momento afastadadas diretrizes de Moscou de quem se reaproximaria nos anos 1970,apostavanaexportaçãodarevoluçãosocialistaparaaAméricaLatina,atécomo forma de desviar a atenção do seu grande inimigo do norte paraoutras plagas. Pressionado pelo governo brasileiro, o Uruguai con inouBrizolaemumbalneário,ondeseriavigiadopelapolíciaaté1971.

Os brizolistas foram os primeiros a se lançar na luta armada,organizando o Movimento Nacional Revolucionário (MNR), compostobasicamente por militares expurgados após o golpe. Depois de umatentativa de invasão do Rio Grande do Sul, comandada pelo coronelJefferson Cardim, com resultados trágicos, o focomudou para a Serra doCaparaó.Masessa tentativadesierramaestra àbrasileira teveresultadosigualmente pí ios, e só serviria para aquecer a máquina repressiva.Dissolvido em 1967, oMNR forneceria muitos dos seus quadros para aVanguardaPopularRevolucionária(VPR).

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Emmarçode1967,arevistaFatoseFotos , cabotinamente,estampouamanchete:“CostaeSilva,apossedaesperança”.Outrosjornaissaudaramamudança no comando da “revolução”, apesar de Costa e Silva ter,

notoriamente,apoionos“duros”dosquartéis.112Noseudiscursodeposseprometia preparar o caminho para uma “democracia autenticamentenossa”.

Hoje, tendo em vista que já sabemos comoo governo de Costa e Silvaacabou, soa estranho a aposta no marechal com cara simpática que irialiberalizar o regime. Mas, ainda como candidato, ao sinalizar commudanças na política econômica e diálogo com a sociedade, Costa e Silvaencheu a alma dos mais crédulos e até provocou algum espasmo de

otimismonosmaiscéticos.113

Na economia, efetivamente, a ação do governo foi rápida e dinâmica,apontandoparaumaperspectivadecrescimentoacurtoprazo,masaindade resultado incerto. O ministro Del im Netto abaixou as taxas de juros,que inibiam a in lação e o consumo, e o ministro do Trabalho, JarbasPassarinho,prometeureveradurapolíticasalarialdogovernoCastelo.Napolítica externa, Magalhães Pinto, banqueiro e conspirador de primeirahora contra Goulart, retomava certo nacionalismo, afastando-se doalinhamentoautomáticocomWashington.Ochancelertocouaténumpontosensível para Washington, não fechando as portas ao domínio datecnologianuclear,paraapazouparaa guerra, oque culminariananãorati icação do Tratado deNão Proliferação de ArmasNucleares de 1968.Estas mudanças políticas tinham um objetivo claro: valorizar onacionalismo, permitir certa dose de crítica, retomar o crescimentoeconômico, ganhando novamente o coração da classe média perdida nogovernoCastelo.

Nocampopolítico,CostaeSilvaenfrentavaaoposiçãodoCongresso, já

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ressabiado como fechamentodosmilitares no círculo depoder e comascassações na Casa. Nos meios militares, os castelistas, ressentidos com aformapelaqualCostaeSilvaseimpôsaopresidenteealijadosdogoverno,pagavamparaveroqueaconteceriacoma“Revolução”.Haviaaindaumaoposição civilmais preocupantepara o regimeque crescia a olhos vistos,reunindogrupossociaiscadavezmaiscombativoseampliandoseuraiodeaçãoparaaclassemédia,compartedos intelectuais,partedocleroedosestudantescombativosecadavezmaisradicalizados.

Asmascaras liberalizantes do novo governomilitar começaram a cair,umaauma.

Em julho de 1967, a face dura do governo se mostrou na prisão-desterro do jornalista Helio Fernandes, que havia adquirido o jornalTribunadaImprensadeLacerda,porcontadeumartigonoqualsereferiaaCasteloBranco,falecidoemumacidentedeavião,comoum“homemfrio,impiedosoevingativo”.Ojornalistacombativo,candidatocassadoem1966,redatordoManifestodaFrenteAmpla, tido comoo responsávelpeloquehá de contundente neste documento, já havia comemorado o im dogovernoCasteloemoutroartigopolêmico.Semmaioressutilezasjurídicas,onovoministroda Justiça,Gamae Silva, evocouospoderesdoAI-2paraprendê-lo e desterrá-lo, mesmo que houvesse uma Constituição que,teoricamente,tinhatornadootalAtoumaletramorta.

Era um sintoma que o espírito de 1968, o ano que não terminaria, játinhacomeçadoem1967.

ComapossedeCostaeSilvaeahesitaçãodeGoulart,aFrenteAmplaicou emstand by. Apesar desta moratória de ações no começo do novogoverno, para avaliar a efetiva disposição ao diálogo, a FrenteAmpla erauma sombra ameaçadora comperspectivas de crescimento, sobretudo seJoãoGoulartaderisseefetivamenteaela.

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No inalde1967,comashostilidadescadavezmaioresentreLacerdaeogoverno,culminandocomaproibiçãodovelhodemolidordepresidentesem aparecer naTV, a Frente lançou-se em uma campanha pública decomícios que coincidiu com a radicalização do movimento estudantil. Aameaçadeencontrodasduasfrentesdeprotesto,apolítico-parlamentarea massiva, era tudo que o governo não desejava, pois a Frente, que atéentão não empolgara as massas, poderia se cacifar como uma realalternativapolíticaaoregime.Nodia5deabrilde1968,quandoaquestãoestudantil saiu do controle e ganhou as ruas, o governo proibiu asatividadesdaFrenteAmpla.Otomliberal-democráticodassuascríticas,abemdaverdade,jánãoseduziaasmassasradicalizadas.

O movimento estudantil voltou às ruas e, apesar do radicalismo quealimentava os lideres, conseguiu galvanizar as atenções, e até algumas

simpatias,daimprensaliberal,aomenosatémeadosdoanode1968.114Alutaestudantilpoderiaservirdetropaavançadaparaumanegociaçãocomo regime, visando à liberalização. Em boa parte, e bem ao seu modo, osestudantesexpressavamasinsatisfaçõesdaclassemédia.

Desde 1966, os estudantes realizavam protestos públicos contra oregime,protagonizandochoquescomapolíciaedefendendoo“votonulo”.Omovimentoestudantilaindadispunhadecertamargemdeaçãopolítica,sobretudodentrodasuniversidades,tomandoparasiatarefadecriticaroregime e de ser a vanguarda da luta por mudanças sociais. O governomilitar, por sua vez, entre1964 e 1968, combinoumedidasde repressãoàs organizações estudantis com medidas de reforma nas estruturasadministrativa, pro issional e curricular das universidades, visandoadequá-las às demandas por desenvolvimento econômico, despolitizar as

atividades acadêmicas e desafogar a pressão por mais vagas.115 Para ogoverno, conforme o Relatório Meira Matos, o movimento estudantilbrasileiro era um foco de agitação revolucionária alimentado pela

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estrutura considerada arcaica do ensino superior. Assim, o Relatóriopropunha medidas para reformar a administração e a estrutura das

universidadesbrasileiras.116

Em março de 1968, o movimento estudantil brasileiro saiu às ruas,antes mesmo que o famoso “maio parisiense” explodisse e ganhasse asmanchetes dos jornais. A morte do estudante Edson Luis, baleado pelapolícia durante uma manifestação no Rio de Janeiro, inaugurou atemporadadepasseataseconflitoscomapolícianaex-capitalfederal.

Amortedo jovemestudante foi o estopimque fez explodir as tensõescom os estudantes, mobilizados contra o regime havia dois anos, assimcomocomoveuboapartedaclassemédia.AhistóriadomeninoqueveiodoPará para estudar no Rio de Janeiro mexeu até com empedernidosconservadores e anticomunistas. Mais de 60 mil pessoas foram ao seuenterro e amissa de sétimo dia se transformou em uma batalha campalentre estudantes e tropa de choque da PM carioca. Os con litos nãopararam por aí, ganhando nova força a partir de junho, no embalo dasrevoltasestudantisparisienses.

No dia 21 de junho, que passou à história como a “Sexta-FeiraSangrenta”,populareseestudantesenfrentaramapolíciaeosagentesdoDops, com saldo de 4mortos e 23 baleados, alémde dezenas de feridos.Foi o ápice da semana trágica, pois dois dias antes, na quarta-feira, osconfrontos de rua haviam sido violentos, com a tentativa dos estudantesemocuparoprédiodoMinistériodaEducação,acirrando-seaindamaisnaquinta-feira,comaocupaçãodaUFRJ,naPraiaVermelha,eainterrupçãodareuniãodoConselhoUniversitário.Apolícia interveioemuitosestudantesforam presos no Estádio do Botafogo, e mesmo dominados foramsubmetidos a violências e humilhações. Em todos os protestos, policiaisarmados até combaionetas enfrentavama fúria popular e estudantil, emverdadeirasbatalhascampais.

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Oápicedamobilização foiaPasseatadosCemMil,nodia26de junho,queconseguiugrandeadesãodasociedade,deartistaseintelectuais.Umasemana depois, em 4 de julho, aconteceu a última grande passeataestudantil, sem que se registrassem maiores incidentes com a polícia.Apesar de o Rio de Janeiro concentrar as grandes manifestaçõesestudantis em 1968, em várias cidades brasileiras onde haviauniversidades os estudantes conseguiram realizar grandes protestospúblicoscomalgumapoiodeoutrossetoresdasociedade.

Em julho as passeatas foram expressamente proibidas pelo GovernoFederal. O aumento da repressão, cujo exemplo maior foi a violentaocupaçãomilitar da Universidade de Brasília no inal de agosto, fez comqueosestudantesseconcentraramnareorganizaçãodassuasentidades,acomeçar pela União Nacional dos Estudantes. Algumas correntes deesquerda passaram a defender a luta armada, o que também ajudou arefluirosesforçosparagrandesmanifestaçõesderua.

Durante os protestos, a partir de questões estudantis especí icas, omovimento conseguiu disseminar palavras de ordem contra o regime,articulandoaluta“reivindicatória”àluta“política”,conformeosjargõesdaépoca. Mas isso não signi icou a convergência de posições. O movimentoestudantil era formado por diversas correntes ideológicas, nas quais sesobressaiam a Ação Popular (AP, esquerda católica), o Partido ComunistadoBrasil(PCdoB,maoista)eoPartidoComunistaBrasileiro.Este foiomaisimpactado pelas dissidências pós-1964, dando origem às dissidênciasestudantisqueseencaminharamà lutaarmada,comoaAçãoLibertadoraNacional, in luenciadas sobretudopeloguevarismoepela teoriado “foco”revolucionário.Nosmeiosestudantis,ograndedebateeracomoenfrentaraditadura e qual o caráter dasmanifestações demassa.As posições iamdoreforçoà lutamassivaecivilistacontraoregimeàorganizaçãoda luta

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armada,daqualoprotestopúblicodeveriasersubsidiário.Oembateentreas várias opções políticas marcou oXXX Congresso daUNE, realizadoclandestinamente em um sítio de Ibiúna (SP), em outubro de 1968, queterminou com a prisão de 920 pessoas, incluindo dirigentes estudantiscomoLuisTravassoseJoséDirceu.VladimirPalmeira, líderdaspasseatasdoprimeirosemestre,jáestavapresodesdeagosto.

SãoPaulotambémteriaseudiadecão.AbatalhadaruaMariaAntonia,em outubro de 1968, entre estudantes de direita do Mackenzie e deesquerda da Faculdade de Filoso ia da USP, impressionou ainda mais asvozes liberaisque,de initivamente, consagrama teseda “militarizaçãodo

movimento estudantil”.117 Estudantes do Mackenzie ligados ao ComandodeCaçaaosComunistas(CCC),tendoapoiodaGuardaCivil,enfrentaramosestudantes esquerdistas da Faculdade de Filoso ia, culminando naocupaçãopolicialenadestruiçãodoprédiodestadaUSP.

Estesepisódiosderam forçaàs liderançasestudantisquedefendiama

lutaarmada,118postoqueaorganizaçãopolíticademassaeaaçãopública

d aUNE (ainda que não legal) tornavam-se inviáveis,119 acuadas pelarepressãopolicialeparamilitar.Paraalgumascorrentesestudantis,aúnicaopção que restava era ir às armas contra osmilitares no poder.Não poracaso,osestudantesforneceriamaprincipalbasedanascenteguerrilhade

esquerda.120 Havia chegado a hora da grande batalha armada contra oregime,estopimdarevoluçãobrasileira.

Coma radicalização das posições, amaior parte da imprensa, por suavez,passouavernoradicalismodaesquerdaestudantilameracontrafacedoradicalismodaextrema-direita,chegandoemalgunscasosajusti icaro

endurecimento do governo.121 Nascia, entre nós, uma versão da “teoriados dois demônios” que, na ótica liberal, levaria a sociedade à violênciadesenfreada.

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O ano de 1968 no Brasil já foi chamado “o ano que não acabou”,expressão que traduz a sensação de interrupção de uma experiênciahistórica plena de promessas libertárias e que se encerrou, literalmente,por decreto, com a edição do famigerado Ato Institucional nº 5, emdezembro daquele ano. Na memória histórica brasileira, ele ocupa umlugarparadoxal:porumlado, foio tempodasgrandesutopias libertárias,assimcomooutros“68”pelomundoafora;poroutro,tempoderepressão,início dos “anos de chumbo” com a transformação do Estado autoritário,impostopelogolpemilitarde1964,numviolentoEstadopolicial.Masatéoinal de 1968, as contestações políticas e culturais forammanejadas compuniçõeseperseguiçõespontuaiseseletivas,poisoprojetoestratégicodoregime militar brasileiro era conservar a classe média como sócia (ebene iciáriamenor)damodernizaçãocapitalistabrasileira,atéporqueeraeste grupo social que fornecia os quadros técnicos e superiores

fundamentais para este processo.122 Entretanto, em 1968, tanto para os

setores ditos “liberais” quanto para os setores da “linha dura”, 123 osacontecimentospolíticose culturais representavamumagrandenovidadepolítica: a possibilidade da convergência entre ações da crescenteguerrilha de esquerda com os movimentos de massa e a contestaçãocultural.

A guerrilha teve sua estreia em março, quando a Ação LibertadoraNacional, liderada pelo dissidente doPCB CarlosMarighella, reivindicou oatentadoàbombanoConsuladodosEUAemSãoPaulo, tornandopúblicaa

existênciadeumprojetodelutaarmadaparaderrubaroregime.124

O episódio mais preocupante ainda para o governo, e para osempresários, foiavoltadomovimentooperáriocomoatorsocialepolítico.Mesmo duramente reprimido e controlado desde omomento do golpe, omovimento operário conseguiu se rearticular. Com as velhas liderançascomunistas e trabalhistas mais moderadas e presas a um modelo de

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reformismo afastadas ou desprestigiadas, emergiu uma nova liderança

operária, mais jovem e radicalizada.125 Em abril, 15 mil metalúrgicosizeramgrevepormelhores saláriosemContagem.Asperdasde25%dosaláriomínimo,comseu inevitável impactosocial,começamasersentidaspelostrabalhadores.Emjulho,seismetalúrgicasdeOsascorealizaramumagreve radicalizada, com a ocupação da fábrica Cobrasma. O sindicatosofreuintervençãoeoExércitoentrouemcenaparadesocuparafábrica.

O pior dos cenários para o governo parecia estar armado: aradicalização estudantil e operária, alimentada pelo oposicionismocrescente da classe média e pela pregação esquerdista de artistas eintelectuais.Só faltavamospolíticosdaoposiçãoentrarememcena,oquenãotardariaaacontecer.

Em setembro, odeputadoMárcioMoreiraAlves chamouoExércitode

“valhacouto de torturadores”. 126 Marcito, como era chamado, estavaindignadocomasviolênciascometidasdurantea invasãodaUnB,e falavacom propriedade, pois tinha acompanhado a questão das torturas noNordeste e a atitude complacente daMissão Geisel (1964), episódio que

rendeuumdosprimeiroslivrossobreotemanoBrasil.127

O Exército se declarou ofendido, e o governo pediu que o deputadofosse licenciado para ser processado. A Câmara dos Deputados negou alicençadodeputado,por216votos contra141.AtépartedaArenavotoucontraogoverno,sinalizandoaperdadecontroledo“sistemapolítico”.Atéa votação, os debates na Casa foram intensos, e o discurso do deputado

MárioCovasentrouparaahistóriadaoratóriaparlamentar:128

Como acreditar que as ForçasArmadas brasileiras que foramdefender emnomedopovo brasileiro, em solo estrangeiro, a liberdade e a democracia no mundo, colocassemcomoimperativodesuasobrevivênciaosacri íciodaliberdadeedademocracianoBrasil?[...]Creionapalavraaindaquandovirilouinjusta,porqueacreditonaforçadasideiasenodiálogoqueéseulivreembate.Creionoregimedemocrático,quenãoseconfundecomaanarquia, mas que em instante algum possa rotular ou mascarar a tirania. Creio no

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Parlamento, ainda que com suas demasias e fraquezas, que só desaparecerão se osustentarmoslivre,soberanoeindependente.

E, invocando a Deusa da Justiça, Covas inalizou seu discurso: “Nãopermitais que um delito impossível possa transformar-se no funeral daDemocracia, no aniquilamento de um poder e no cântico lúgubre dasliberdadesperdidas”.

Derrotado no Congresso que se supunha dócil, pressionado nosquartéis e criticado pelas oposições nas ruas, o governo resolveu agir,convocando o Conselho de Segurança Nacional. A reunião foi chamadapeloscronistascomo“AMissaNegra”,poisdelaresultariaaediçãodoAI-

5.129 Os conselheiros desconsideraram a proposta de Pedro Aleixo, dedecretação do Estado de Sítio dentro do modelo constitucional. Ao inal,ouviu-se o “cântico lúgubre das liberdades perdidas”, na voz “grave epausada” do ministro da Justiça Gama e Silva, que na noite de 13 dedezembrode1968anunciou,emcadeiaderádioeTV,oAtoInstitucionalnº5. Através desse instrumento, estima-se que cerca de 500 cidadãos(sobretudoprofessores, jornalistasediplomatas) tenhamperdidodireitospolíticos, 5 juízes de instâncias superiores, 95 deputados e 4 senadores,seus mandatos. Se os efeitos diretos foram impactantes sobre o sistemapolítico,osefeitosindiretosseriambemmaioressobretodootecidosocial.

OgovernodeCostaeSilva,queseiniciaraem1967sobapromessade

liberalizaçãopolíticaedecolocar imaochamado“terrorismocultural”, 130

mudava de rumo e reiterava a sombria promessa já contida no AtoInstitucionalnº2,de1965:“NãosedissequeaRevoluçãofoi,masqueé,econtinuará”. A virada do regime militar no inal de 1968 na direção darepressãosistemáticaepolicialescaéexplicadamenospelapressão strictosensuda linhaduraemaispela leituraconvergentequeosváriosgrupos

militares izeram da “crise política” de 1968. 131 Em outras palavras, aocontráriodoquepregaumacertamemória(militarecivil)sobreaépoca,o

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AI-5foimaisprodutodauniãodoquedadesuniãomilitar.132

O AI-5 marcou também uma ruptura com a dinâmica de mobilizaçãopopularqueocupavaasruasdeformacrescentedesde1966,capitaneada

pelo movimento estudantil.133 Mais do que isso, teve um efeito desuspensão do tempo histórico, como uma espécie de apocalipse político-culturalqueatingiriaemcheioasclassesmédias,relativamentepoupadasda repressão que se abatera no país com o golpe de 1964. A partir deentão, estudantes, artistas e intelectuais que ainda ocupavamuma esferapública para protestar contra o regime passariam a conhecer aperseguição, antes reservada aos líderes populares, sindicais e quadrospolíticos da esquerda. O im de um mundo e o começo de outro, numprocesso histórico de alguns meses que pareciam concentrar todas asutopiaseosdilemasdoséculoXX.OBrasilnãosairiaincólumedestaroda-vivadahistória.

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Noentantoéprecisocantar:acultura

entre1964e1968

Nasegundametadedosanos1960,MillôrFernandescunhouumafraseque expressa a estranha situação da cultura e das artes no Brasil entre1964 e 1968: “Se continuarem permitindo peças comoLiberdade,Liberdade,vamosacabarcaindoemumademocracia”.Oartistasereferiaàpeça teatral de sua autoria, junto com Flávio Rangel, grande sucesso de1965, que era uma grande colagem de falas sobre a democracia e aliberdade, dos gregos antigos aos contemporâneos. Nada mais oportunopara o contexto em que o Brasil vivia, de inido pelo mesmoMillôr como“borocoxô”.Abizarraexpressãopoderiasertraduzidacomoumestadodeespírito entre o desiludido e o melancólico. A inal, vivia-se uma ditadurasu icientementeforteparareprimirosmovimentossociaisepolíticos,mastaticamentemoderadaparapermitirqueaesquerdaderrotadanapolíticaparecesse triunfar na cultura. Esse triunfo alimentou o mito da“ditabranda”, criando um jogo de sombras do passado que até hoje nosilude.

A paradoxal situação da cultura de oposição no Brasil nos quatroprimeiros anos do regime, inicialmente vista como sinal de uma ditadura“branda”,quenãoseassumiacomotal,deveseravaliadaemtermosmaisamplos. Seja como espaço de rearticulação de forças sociais “críticas” e

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rea irmação de valores da “resistência democrática” (ponto de vista daoposição) ou como parte da “guerra psicológica da subversão” a sercombatida(pontodevistadoregime).Ofatoéquea“questãocultural”foio calcanhar de Aquiles da ditadura, expressão das suas grandescontradições e impasses, mesmo que ela não tenha se limitado a umapolíticaculturalmeramenterepressiva.

Instauradaparadefender efetivamenteo capitalismoe, supostamente,a democracia liberal, a ditadura não podia se afastar das classesmédias,sua principal base social. A cultura e a liberdade de expressão eram ospontos mais sensíveis para amplos setores dessa classe, da qualprovinhamosartistasequadros intelectuaismais reconhecidosdaépoca.Não por acaso, o Ato Institucional e a perseguição a intelectuais foiprontamentecriticada,mesmoporvozes liberaisquenãotinhamsimpatia

pelogovernodepostoem1964.134Poroutrolado,acensuraearepressãonessa área di icultariam a manutenção da pantomima democrática quehavia legitimado o golpe e a ampla coalização anti-Goulart. Além disso, oregime militar não dispunha de intelectuais humanistas a inados com avida cultural mais dinâmica do momento, protagonizada, sobretudo, porjovens universitários e por intelectuais comunistas e liberais-radicais. Selhe sobravam tecnocratasbrilhantesemagistrados respeitados, faltavam-lhe ideólogos humanistas. Estes eram vetustos nomes mais próximos do

nacionalismoestado-novistaedo folclorismodosanos1950135 do quedavigorosa cultura de esquerda, nacionalista e reformista, inspirados noextinto Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb), a “fábrica de

ideologias” do nacionalismo econômico e cultural até 1964.136 E, porúltimo,masnãomenos importante, amodernização capitalista estimuladapelos militares tinha na indústria da cultura um dos seus setores maisdinâmicos.Omercadoera,paradoxalmente, estimuladoporobras criadasporartistasdeoposiçãoedeesquerda,consumidasavidamentepelaclassemédiaescolarizada.Mesmosendoumaparcelaminoritáriadapopulação,a

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classemédiamovimentavaomercadode culturana segundametadedosanos 1960. O crescimento dos mercados televisual e fonográ ico era oprincipal eixo dessa modernização e, não por acaso, neles triunfaramartistas notoriamente de esquerda, como os dramaturgos comunistas daRede Globo e os compositores ligados à canção engajada aclamados dos

festivaisdacanção.137

A partir deste conjunto de impasses e contradições, podemos esboçarum quadro geral de como o regime militar se relacionou com a vidaculturalbrasileiraentreosanos1960epartedosanos1980.Estarelaçãosedeudeformadiretaeindireta.Direta,poisoregimedesenvolveuváriaspolíticas culturais ao longo de sua vigência. Indireta, pois a cultura sebene iciou também das políticas gerais de desenvolvimento dascomunicações e do estímulo ao mercado de bens simbólicos, visando à“integração nacional”. Para osmilitares, a cultura era subsidiária de umapolítica de integração do território brasileiro, reforçando circuitossimbólicos de pertencimento e culto aos valores nacionais, ou melhor,

nacionalistas.138 Nesse projeto, cabiam até alguns tipos de nacionalismocrítico, como o da esquerda comunista, desde que esvaziado da luta declasses. Ao mesmo tempo que convergiam no quesito nacionalismo, adireita militar e a esquerda comunista tinham uma descon iança mútua,pois a primeira entendia a cultura de esquerda como parte da “guerrapsicológica”da“subversão”.

Quanto às formas diretas de ação cultural, o regime combinou umapolítica cultural repressiva e, sobretudo nos anos 1970, uma políticacultural proativa. O tripé repressivo do regime era formado pelacombinação de produção de informações, vigilância-repressão policial acargo das Delegacias de Ordem Política e Social (Dops), das inteligênciasmilitaresedosistemaCodi/DOI (CentrodeOperaçõesdeDefesa Interna–DestacamentodeOperaçõese Informações)ecensura,acargodaDivisão

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e Serviços de Censura às Diversões Públicas doDepartamento de PolíciaFederal(DPF/DCDP)edoGabinetedoMinistérioda Justiça,especi icamenteno caso do controle da imprensa. As três pontas atuaram sobre a áreacultural, produzindo suspeitas e impondo silêncio sobre certos temas eabordagens. Houve, ao menos, três momentos repressivos sobre a áreacultural.

Oprimeiromomentorepressivoocorreuentre1964e1968.Oobjetivoprincipaleradissolverasconexõesentrea“culturadeesquerda”easclassespopulares, estratégia manifestada no fechamento doCPC e do Iseb e dosmovimentos de alfabetização de base. O controle e a perseguição àatividade intelectual escrita (imprensa) era feita, principalmente, via IPM(Inquéritos Policiais-Militares) e processos judiciais, implantando ochamado “terror cultural”, que transformava todosos intelectuais críticosem potenciais subversivos “inimigos da pátria”. Ainda que os resultadospráticos dos IPM tenhamsidopí ios, em termosdepunições efetivas, paradesgosto da “linha dura”, causaram bastante insegurança entreintelectuaisdeváriosmatizes,alimentandoaimagemdoregimecomouma“ditadura obscurantista e anticultural”. Esta perspectiva, alimentou aaliançadeváriossetores intelectuais– liberais, socialistasecomunistas–,reforçandoumaculturadeoposição.Nesteprimeiromomento,aáreamaisvisadapelacensuraeraoteatro,menospeloseualcancesocialemaispela

suacapacidadedemobilizaçãodossetoresintelectuaisdeoposição.139

O segundo momento repressivo vai de 1969 a 1978, e tinha comoobjetivo centralreprimir o movimento da cultura como mobilizadora doradicalismo da classe média (principalmente dos estudantes). Nessa fase oregime se armou com novas leis, como a nova Lei de Censura, emnovembro de 1968, que sistematizava a censura sobre obras teatrais ecinematográ icas e criava o Conselho Superior de Censura, implantadoefetivamente somente em 1979. O Decreto-Lei nº 1.077, de janeiro de

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1970, instaurou a censura prévia sobre materiais impressos. A PolíciaFederal,apartirde1972,sereorganizouparaaplicaracensuracommaise iciência, comacriaçãodaDivisãodeCensuradeDiversõesPúblicaseaampliaçãodo seu corpode censores. Para controlar a imprensa, havia os“bilhetinhos”quesaíamdoServiçodeInformaçãoaoGabinetedoMinistroda Justiça (Sigab/MJ, criado em 1971) e a autocensura nas redações de

periódicos da grande imprensa.140 Este segundo momento repressivoconviveucomoaugedapolíticaculturalproativa,expressadapelaPolíticaNacional de Cultura, ambicioso plano que combinava mecenato o icial enormatização do campo cultural e suas instituições públicas, lançado em1975 peloMEC, dentro da estratégia da institucionalização do regime,

conhecidagenericamentecomo“abertura”.141

O terceiro momento repressivo, de 1979 a 1985, teve como objetivocentralcontrolar o processo de desagregação da ordem política e moralvigentes, estabelecendo limites de conteúdo e linguagem . A ênfase do

controle censório recaiu “na moral e nos bons costumes”. 142 Estavaprevista também a implementação do Conselho Superior de Censura,espéciedeinstânciarevisoradacensuracomrepresentantesdasociedadecivil, visando dar uma roupagem “legítima” e “intelectualizada” para umaatividade muito malvista pelas parcelas escolarizadas da sociedade. Noentanto, em linha gerais, o controle policial sobre a oposição cultural aoregimearrefeceu.

Nosquatroprimeirosanosdoregimemilitar,aricavidaculturalquesea irmouao longodogoverno Jango, estimuladapelodebate em tornodasreformas de base, foi preservada. A cultura crítica e de esquerda eratolerada pelo governo militar à medida que o artista engajado icassedentro do circulo de giz do mercado e dos circuitos culturais da classemédia.Issofoipossívelatéfinsde1968.

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Se o artista e o intelectual de esquerda tinham certa liberdade comoindivíduos, suas organizações estavam proscritas. Os três núcleosprincipais da cultura de esquerda pré-golpe foram colocados na

ilegalidade,atocontínuoà tomadadepoder:oCPC daUNE,143oMovimentodeCulturaPopulardeRecifeeoIseb.Semaredeformalpropiciadapelassuas organizações, os artistas e produtores culturais de esquerda foramisolados dos contatos com as classes populares. Assim, a essência doprojeto esboçado desde 1961 – o encontro do artista engajado com asmassas trabalhadoras– foidestruído.Entretanto,oabrigoqueomercadodeu à cultura e às artes de esquerda garantiu-lhe uma improvávelsobrevida até inais dos anos 1970, ao menos, com um pico de atuação

entre1964 e 1968.144 Nesses quatro anos iniciais, a “ loração tardia” daculturasemeadadesde inaisdosanos1950fezcrescerumarosadopovo,jovem e rebelde. Mas em 1968, quando a rebeldia cultural tangenciounovamente a luta política demassas, nova poda foi feita, estabelecendo acensuraeocontrolemaisintensodomeiocultural,artísticoeintelectual.

Mas não nos iludamos com a suposta liberdade de expressão daditadura em sua fase “branda”. As intervenções no meio cultural, queincluíam as universidades e omeio artístico, foram inúmeras. Só na criseda Universidade de Brasília em outubro de 1964, 15 professores foramdemitidose211pediramdemissãoemsolidariedade.

Inicialmente, o regime reprimiumenos os artistas, como indivíduos, emaisasinstituiçõeseosmovimentosculturais.Alémdisso,dentrodalógica“saneadora”doEstado,demitiuquadrosdefuncionáriospúblicosligadosàárea cultural que fossem identi icados com o governo deposto ou com oPartido Comunista Brasileiro. A fúria inquisitorial dos IPM recaiu sobre oIseb,omovimentoestudantil,oCentroPopulardeCulturada UNE,oMCPdoRecife, a “imprensa comunista”, a História nova de Nelson Werneck

Sodré.145 As devassas e demissões recaíram também sobre a Rádio

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Nacional, o Movimento de Alfabetização, os projetos de universidadesalternativas, como a UnB. Era preciso dissolver os elos institucionais eorganizativos dos intelectuais e artistas da esquerda, estabelecendotambém um regime de “liberdade vigiada” sobre os indivíduos destecampo. Este recurso era fundamental para dissolver os frágeis, porémameaçadores, circuitos e alianças que ligavam intelectuais e artistas deesquerdaaosmovimentossociaisepopulares.Estes, sim, foramobjetodedurarepressão.

Em suma, o golpe militar de 1964 e a inquisição que se seguiu noimediato pós-golpe deveriam não apenas reprimir amassa,mas destruiruma certa elite, menos pela eliminação ísica dos seus membros e maispelamorte civil, pela dissolução de suas redes formais e pelo isolamentopolítico.Os intelectuaiseartistas, comoquadrosrebeldesdaclassemédialetrada,deveriamserreconduzidosàsuavocação:ajudarnamodernizaçãoeconômicadematiz conservadorprometidapelanovaordempolítica.Porisso, talvez intuitivamente, talvez propositalmente, os militares não sepreocuparamtantoquandoosartistasdeesquerdaforamparaomercado

(editorial, fonográ ico,televisual).Conformeahistoriogra ia 146 já apontou,esta“idaaopúblico”(consumidordecultura)erapreferívelà“idaaopovo”(oscircuitosculturaisligadosaomovimentossociais,instituiçõesepartidosdeesquerda).Asensaçãodeuma“hegemoniacultural”daesquerdaentre1964 e 1968 era plausível, pois, junto aos circuitosmassivos emercantisda cultura, os artistasdeesquerdapassarama ser altamentevalorizadoscomercialmente e legitimados socialmente, o que não é pouco. O “circuito

fechadodecomunicação”147entreintelectuaiseartistasdeclassemédiaesuaprópriaclassenãoparecia,aomenosaté1967,umagrandeameaçaao

regime,emboracausasseconstrangimentosetranstornos.148

Separaaesquerdaderrotadaem1964estavitórianoplanodaculturapodetersidoumavitóriadePirro,postoqueahegemoniaculturalnãofoi

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su iciente para derrubar a ditadura e impor um regime democráticoprogressista, para certos setores liberais ela foi decisiva. Aqui reside opontocentralaserelucidadosobreopapeldaculturanosprimeirosanosdoregime.

Aconstruçãodeumcampoartístico-culturaldeoposiçãocoincidiucomo afastamento entre lideranças de matiz liberal (inclusive liberal-conservadora) e o regime militar, iniciada já nos primeiros dias após ogolpe.Nãodevemosmenosprezaraexpectativademuitosliberaisdequeogolpe “apenas” destituísse o governo Jango, tirasse de circulação algunsministroselogodevolvesseopoderàelitecivil.A inal,tinhasidoassimem1945, 1954 e 1961 (à direita) e, por que não, em 1955 (à esquerda, nanovembrada do Marechal Lott). Mas o golpe de 1964 não era feito damesma matéria, e logo o anunciado “governo-tampão” de dois anos seestenderia.OAI-2acaboudeumavezcomestasilusões.

As críticas liberais ao regime acabarampor criar umponto de tensãocujoepicentroeraafaltadeliberdadedecriaçãoeexpressão.Esteembateserá adensado de maneira contundente pela esquerda comunista-pecebista,sobretudo,iniciandoumlongoprocessodelutasculturaiscontraoregime.Aperseguiçãoaintelectuaiseartistaseoobscurantismotacanhoda extrema-direita foram sintetizados na expressão “terrorismo cultural”cunhada por um liberal (ex-autoritário, mas, naquele contexto,progressista),AlceudeAmorosoLima,eimortalizadosnoclássico Febeapá,

o Festival de Besteira que Assola o País , de Stanislaw Ponte Preta.149 Asfamosas crônicas de Carlos Heitor Cony, antijanguista convicto antes dogolpe,publicadasem1964,tambémrespiramoardoliberalismo,emborasoltemumbafoderadicalismo.

Os comunistas doPCB, emnomeda aliança dos “setores democráticos”contra a ditadura, estratégia reiterada em maio de 1965 pelo ComitêCentral, logo endossaram a denúncia do “terrorismo cultural” e

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propugnaram que era chegada a “hora dos intelectuais” progressistas

(leia-se, liberais, socialistas e comunistas) na luta contra o regime. 150

Firmava-se assim, no campo da cultura, uma aliança entre setores daesquerda(pecebista)edoliberalismonabuscadeumafrentedeoposiçãoaoregime.Eraprecisoampliaralianças,ocupartodososespaçospossíveisde expressão (isso incluía o mercado e os meios de comunicaçãodominados por empresários liberais), denunciar a ditadura através doengajamento intelectual e artístico. Destituídos do coração do Estado eprivados das suas organizações,mas ainda não completamente inseridosno mercado (ou, melhor dizendo, na “indústria cultural”), os artistas eintelectuais progressistas e de esquerda foram os protagonistas de umbreveefulgurante“espaçopúblico”.

No período anterior ao golpe militar, a cultura de esquerda eradominadapela“grandefamíliacomunista”,orbitandoemtornodoPartidoComunistaBrasileiro.Desdemeadosdadécadade1950, o PCB construíraumapolíticadealiançasdeclasse,deviésnacionalistaedemocrático,queseria mantida, em linhas gerais, mesmo depois do golpe. A expressãocultural dessa política foi a valorização do nacional-popular, do frentismoculturaledavalorizaçãodeumaartequecombinasseasexpressõeslocaise folclóricas com estéticas cosmopolitas, numa espécie de homologia daaliançade classesqueuniriao campesinato,ooperariado, a classemédiaprogressistaeaburguesianacional.Paraoscomunistasesimpatizantes,acultura deveria ser um idioma universal que fosse o farol da consciêncianacionalnamarchadahistória.Ogolpeabalouestahegemonia,masnãoosu iciente para retirar-lhe de cena. Ao contrário, a primeira resposta“cultural” ao golpe veio justamente dessa corrente: o showOpinião, emdezembrode1964,reiteravaosvaloresnacionalistaseaaliançadeclassescomo estratégia para questionar o regime, colocando no palco um cantororiundo do Nordeste camponês (João do Vale), um sambista dos morros(ZéKeti)eumajovemcantoradeclassemédia(NaraLeão).Osurgimento

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daMPB (MúsicaPopularBrasileira),porvoltade1965,queocupava lugardestacado nomercado fonográ ico em ascensão, é outra expressão destaestética perseguida pela cultura nacional-popular de esquerda. Mas aa irmaçãoda“correntedahegemonia”apósogolpe,como icouconhecidaa linha cultural defendida pelos comunistas, passou a ser cada vez maisquestionada,inaugurandoumperíododelutasculturaisinternasaocampodecontestaçãoaoregime,que,muitasvezes,tendemasediluirnoconceito

generalizadode“resistênciacultural”.151

Entre 1964 e 1968, o frentismo cultural foi a senha da luta contra aditadura,queemmeadosde1968seriaabaladapelaemergênciada lutaarmada,cujatáticaseafastavatanto(eprincipalmente)daoposiçãoliberalquantodastáticaspecebistas(hegemônicasnocampoartístico-cultural)de

combateaoregime.152

Nomomentoemqueessaculturaengajadadeesquerdaencontrouumcampominadopelapropostade luta armada, que seduzia a classemédiaestudantil, sintomaticamente, aditaduradeixoudeser “branda”, recaindoduramente sobre a mesma classe média que ela prometia proteger eincrementar.Naleituradosmilitares,alivreexpansãodaartedeesquerdanaquele contexto incentivaria a passagem da “guerra psicológica” para a“guerra revolucionária”, limite da tolerância conforme os manuais daDoutrina de Segurança Nacional. Não por acaso, vieram o AI-5 e o novociclorepressivobaseadonacensura,narepressãoenavigilância.

A hegemonia cultural de esquerda não cessou, mas foi capitalizadapaulatinamente pelos liberais, dentro da lógica aliancista que voltou a seafirmarapósaderrotadalutaarmada(porvoltade1973-1974).Serviudelibelo na luta pelo “estado de direito” e de fonte de lucro para osempresários. Serviu de álibi para desculpar sua cumplicidade com oliberticídiode1964,eclipsadopelode1968,maisexplícitoevirulento.

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Se é plausível a irmar que não houve no Brasil, ao longo de todo oregime, uma arte ou uma cultura efetivamente revolucionária, uma “artedebarricadas”que fosseexortativaàação,nãosepodemenosprezarseupapel histórico, seja na educação sentimental de certa geração militantepelademocracia,sejana fetichizaçãodaresistênciacomoatosimbólicodeconsciência, como catarse diante do “circulo do medo” imposto peloautoritarismo.Longedeseremmerosre lexospálidosouinstrumentosdapolíticadeoposição,aculturaeasartesdaresistência foramsintomadosseusdilemas.Etalvezasobrasdaresistênciasubsistamcomoexperiênciaestética porque justamente elas nunca foram instrumentais ouespeculares.

O ano de 1968 foi marcado pela retomada e radicalização dasvanguardas, em vários campos: cinema, artes plásticas emúsica popular,principalmente. A novidade de 1968 é que o princípio maior dasvanguardas artísticas – a quebra da linguagem formais e a aproximaçãoentre“arte”e“vida”–dialogoucomaculturademassa.Masnãopodemosachar que 1968, especi icamente, foi o começodesse processo, pois ele éanterior. O ano foi a síntese radical de várias experiências estéticas epolíticas em curso desde o começo da década de 1960. Dito de maneiramais grosseira, poderíamos dizer que 1968 aproximou a so isticação davanguarda da cultura de massas. A Tropicália foi a síntese destemovimento.

Em1968,oartistaplásticoHélioOiticicapreviaumanovafaseparaartebrasileira:

Aartejánãoémaisinstrumentodedomíniointelectual,jánãopoderámaisserusadacomo algo supremo, inatingível, prazer do burguês tomador de whisky e do intelectualespeculativo.Sórestarádaartepassadaoquepuderserapreendidocomoemoçãodireta,o que conseguir mover o indivíduo do seu condicionamento opressivo, dando-lhe umanovadimensãoqueencontreumarespostanoseucomportamento.153

Este trecho ajuda a compreender o efeito do choque buscado pela

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Tropicália(ouTropicalismo),agrandesensaçãoculturalde1968.

A Tropicália, mesmo que não seja vista como um movimento uno ecoeso,tinhaalgumascaracterísticascomuns.Emprimeirolugar,acríticaàcrençanoprogressohistóricoredentor,valorcompartilhadopeladireitaepela esquerda. Ao invés disso, os ilmes, as canções e as peças de teatrotropicalistas expressavam o choque paralisante entre o arcaico e omoderno,comocaracterísticacentralda“farsahistórica”queeraoBrasil,desvelada pelo golpe militar ao destruir todas as ilusões políticasanteriores. Outro elemento era a retomada dos procedimentos dasvanguarda modernas, revisando o diálogo da cultura brasileira com omundoOcidental, ao incorporar a culturapop. Alémdisso, o Tropicalismose inscreve numa vertente especí ica da tradição modernista brasileiraque começa com a antropofagia oswaldiana, e passa pelo Concretismo,apontandoparaumatradiçãoculturalqueeradiferentedaarteengajadadaesquerdacomunista.Estaremetiaaumoutroramodomodernismo,decorte mais nacionalista, ligado a Mário de Andrade, a Villa-Lobos e àliteraturarealistadosanos1930.

Além disso, a Tropicália foi o ponto culminante de uma série decontradições e impasses políticos e culturais que atravessaram os anos1960 e se agravaram após o golpe militar de 1964. As questõesclassicamente colocadas pela arte engajada, e que recebiam respostaspositivas nos debates da esquerda mais ortodoxa, adquiriam uma novaperspectiva sob o Tropicalismo: Qual a função social da arte num paíssubdesenvolvido?Comoconciliar formae conteúdonaobrapoliticamentecomprometida? Como a cultura engajada deve ocupar a mídia? Qual oestatuto sociológico e cultural que deve de inir o “povo”, interlocutoridealizado do artista e do intelectual de esquerda? Quais os limites entre“povo”comocategoriapolíticae“público”comocategoriamercadológica?

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O termo “Tropicália”,doqualderivouonomedomovimento, remeteaumaobradoartistaplásticoHélioOiticica,queade iniucomouma“obra-ambiência”,montada numa exposição noMuseu de ArteModerna no Riode Janeiro em meados de 1967 e que pouco tempo depois inspiraria acomposiçãohomônimadeCaetanoVeloso.Valeapenaalongacitação:

Tropicália é um tipo de labirinto fechado, sem caminhos alternativos para a saída.Quandovocêentranelenãohá teto, nos espaçosqueo espectador circulahá elementostáteis.Namedidaemquevocêvaiavançando,ossonsquevocêouvevindosdefora(vozese todos tiposdesom)serevelamcomotendosuaorigemnumreceptorde televisãoqueestácolocadoaliperto.Éextraordinário[sic]apercepçãodas imagensquese tem[...]Eucriei um tipo de cena tropical, com plantas, areias, cascalhos. O problema da imagem écolocado aqui objetivamente – mas desde que é um problema universal, eu tambémpropusesteproblemanumcontextoqueé tipicamentenacional, tropical ebrasileiro.Euquisacentuaranovalinguagemcomelementosbrasileiros,numatentativaextremamenteambiciosa em criar uma linguagem que poderia ser nossa, característica nossa, na qualpoderíamosnoscolocarcontraumaimagéticainternacional.154

Em insde1967asimagensdapoesiadeCaetanoVelosorecuperamoespírito da obra-ambiência de Oiticica, elaborando uma espécie de“inventário”dasimagensde“brasilidade”,vigentesatéentão:

O monumento não tem porta / a entrada é uma rua antiga estreita e torta / e nojoelhoumacriançasorridente, feiaemorta/estendeamão[...]nopátio internoháumapiscina/comáguaazuldeamaralina/coqueiro,brisaefalanordestinaefaróis[...]emiteacordesdissonantes/peloscincomilalto-falantes/senhorasesenhores,elepõeosolhosgrandes sobremim [...] /Omonumentoébemmoderno/nãodissenadadomodelodomeuterno/quetudomaisváproinferno,meubem.

Enquanto Oiticica esboça um roteiro para a sua obra-ambiência,Caetano transforma esse roteiro no conjunto de imagens querepresentavam o Brasil como nação, como se este fosse um imenso“monumento”, fantasmagórico e fragmentado, emqueo “espectador” temdiante de si um des ile das “relíquias” nacionais, arcaicas emodernas aomesmo tempo. Não por acaso, a canção de Caetano começava citando acartadePeroVazdeCaminha,emtomdeblague,tendoaofundoosomdeuma lorestatropicaledepercussão indígena.Aocontráriodaspropostasda esquerda nacionalista, que atuava no sentido da superação histórica

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dosnossos“malesdeorigem”(subdesenvolvimento,conservadorismoetc.)e dos elementos arcaicos da nação (como o subdesenvolvimentosocioeconômico), o Tropicalismo nascia expondo e assumindo esseselementos,essas“relíquias”.Essanovaposturadosartistasporumladoseafastava da crença da superação histórica dos nossos arcaísmos (não sóestéticos, mas sobretudo socioeconômicos), base da cultura de esquerda.Provocavam estranheza no ouvinte/espectador, ao brincar com todas aspropostaspara redimir oBrasil e colocá-lona rotadodesenvolvimento edamodernidade. O Brasil era visto como um alegre absurdo, sem saída,condenado a repetir os seus erros e males de origem. Por outro, aojustapor elementos diversos e fragmentados da cultura brasileira(nacionais e estrangeiros, modernos e arcaicos, eruditos e populares), oTropicalismo retomava o princípio da “antropofagia” de Oswald deAndrade,criadano inaldosanos1920comoformadesintetizarecriarapartirdestescontrastes.Oartista,nesteprincípio,seriaumantropófagoe,ao “deglutir” elementos estéticos, a princípio diferentes entre si,aumentariasuaforçacriativa.

As raízes do movimento tropicalista foram lançadas em 1967, noFestival de MPB daTV Record de São Paulo, quando Caetano Veloso eGilberto Gil defenderam, respectivamente, as cançõesAlegria, Alegria eDomingonoParque. Essasmúsicas traziamelementospoéticos emusicaisquesediferenciavamdatradiçãorecenteda MPB engajada.Alegria,Alegriafalava da vida de um jovem urbano e descompromissado, numprocedimentodecolagempop.Emborapudesseseenquadrarnumgêneromusical tradicionaldoBrasil (“marcha”),oarranjo rompia coma tradiçãotimbrística das canções de festival, pois era totalmente eletri icado(guitarra,teclados,baixoebateria).EmDomingonoParque,GilbertoGilfoiacompanhadopelohoje lendárioconjuntoderockbrasileiroOsMutantes.Além da letra, que mergulhava no cotidiano autofágico e alienado dasclasses populares, sem o tom épico das canções de esquerda, o arranjo

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feitoporRogérioDuprat,maestroligadoàvanguardaerudita,apresentavaum novo conceito: ao invés de “acompanhar” a voz, as passagensorquestrais “comentavam” as imagens poéticas, como se fosse uma trilhasonoradecinema.

Estes procedimentos poéticos, musicais e performáticos, foramradicalizados ao longo do ano de 1968, quando os tropicalistas, járeconhecidos como um grupo especí ico dentro das lutas culturaisbrasileiras, ocuparam os circuitos culturais e a mídia de formaavassaladora.MasoTropicalismonãodeveservistocomoummovimentocoeso, no qual todos os artistas identi icados como “tropicalistas”partilharamdosmesmosvaloresestéticosepolíticos.Seacríticaàsilusõese projetos de uma cultura engajada, nacionalista, ligada à “esquerdaortodoxa”, como passou a ser visto o PCB, era o ponto em comum entreCaetano,ZéCelso,HélioOiticicaeGlauberRocha,muitosoutroselementosos separavam. O que se conhece atualmente por Tropicalismo oculta, naverdade, um conjunto de opções estéticas e ideológicas bastanteheterogêneo.

O Tropicalismo entrou de initivamente no debate político-cultural nocomeço de 1968, a partir de um “manifesto” despretensioso de NelsonMota no jornalÚltima Hora do Rio de Janeiro, intitulado “Cruzadatropicalista”. O movimento tropicalista, intimamente ligado à ondacontracultural que tomou conta do Ocidente nos anos 1960, dialogavatambém com questões especí icas da cultura de esquerda brasileira eatingiudiversasáreasartísticas,podendoserconsideradoumasíntesedoradicalismo cultural que tomou conta da sociedade brasileira, sobretudosuajuventude.

Outro campo importante do Tropicalismo foi o teatro, a partir dotrabalho do Grupo O icina, dirigido por José Celso Martinez Correa. Emduasmontagens–OReidaVela,de1967(escritapelomodernistaOswald

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de Andrade em 1933) eRoda Viva (de Chico Buarque de Hollanda), de1968 –, o grupo abalou as bases estéticas e políticas do teatro brasileiro,fosse o teatro tradicional ou o engajado. Na primeira, O Rei da Vela, aburguesiabrasileiraeseusvalorespseudomodernoseramalvodeparódiae deboche. Na segunda,Roda Viva, o O icina encenava de maneiraanárquica e igualmente paródica a trajetória de um cantor popular, BenSilver,embuscadosucessoeguiadopela“roda-viva”daindústriacultural,transitandopor todososmovimentosdamoda (JovemGuarda, cançãodeprotesto). Na cena inal, numa referência às “bacantes”, o ídolo eraliteralmentedevoradopelasfãs(naverdade,asatrizesdespedaçavamumígado de boi, arremessando seus pedaços ainda sanguinolentos para aplateia).

Apartirdemarçode1968odebateemtornodomovimento, jácomonomede“Tropicalismo”,ganhouaspáginasdamídiacultural.OmotivofoiexatamenteapeçaRodaViva.

Amontagem do GrupoO icina, a partir do texto de Chico Buarque deHollanda,ao incorporaraagressão,o“maugosto”,a linguagem“alienada”dos meios de comunicação de massa, buscando um efeito paródico,consagravaa ideiadeummovimentodevanguardadessacralizadoraquecriticavaosvalorespolíticosecomportamentaisdaclassemédiabrasileira,àesquerdaeàdireita.À“frenteúnicasexual”,propostano2ºatode OReida Vela, paródica e carnavalizante,Roda Viva fazia somar o elemento daagressão, estética e comportamental, como procedimento básico davanguarda.

O recado do Grupo O icina era claro, em sintonia com as vanguardasmais radicais do momento: a plateia, obviamente formada pela classemédia e pela “burguesia”, deveria ser alvo de agressão e não deconscientização política ou catarse emocional. Esse era o caminho para ochoquedeconsciênciaeocomeçodeumacríticaradicalàsociedadeeseus

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valores. José Celso e os signatários do programa-manifesto do O icinadenunciam a sociedade brasileira como teatralizada e a história comofarsa, acusando o pensamento da elite intelectual burguesa de “[...]Misti icar um mundo onde a história não passa do prolongamento da

históriadasgrandespotências.”155

O grande acontecimento musical do Tropicalismo, sem dúvida, foi olançamento do disco-manifesto dos tropicalistas, intituladoTropicália, ouPanis et Circensis. Nele, o grupo conseguiu uma fusão perfeita entre atradição da música brasileira e a vanguarda (pop-rock e erudita),problematizando e parodiando todas as correntes ideológicas, culturais eestéticas, aomesmo tempo.As colagensmusicais epoéticas apresentadasnas canções que compunham olong-play realizavam duas operações aomesmo tempo: por um lado, abriam a culturamusical brasileira para umdiálogomais direto com amúsica internacional e as vanguardaspop; poroutro, realizavam uma leitura desconstrutiva e crítica daquilo que sechamava “cultura brasileira”, fazendo implodir símbolos, valores e íconesculturaiseartísticos.

Nocinema,emborasejacomumaparecercomoreferênciainauguraldomovimentotropicalistaofilmeTerraemTransedeGlauberRocha,éo ilmeO Bandido da Luz Vermelha, de Rogério Sganzerla, que melhor traduz a

crítica domovimento ao contexto brasileiro daquelemomento.156 O ilmede Glauber também propunha uma desconstrução radical dos sonhos eutopiasdaculturabrasileiramoderna,àesquerdaeàdireita,medianteouso de imagens alegóricas e narrativa fragmentada, procedimentos quepodemseraproximadosaoTropicalismoequetiveramgrandeimpactoemCaetanoVeloso.Entretanto,asquestõesdefundono ilmedeGlaubernãooaproximamdaradicalidadedacríticaculturaltropicalista.Glauberaindaobjetivava ampliar o projeto da esquerda, sem as ilusões políticas doperíodo pré-golpe, tais como a aliança com o populismo e a crença na

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burguesia politicamente progressista, inalizando o ilme com uma claraalegoria da luta armada. Já Sganzerla, emO Bandido da Luz Vermelha,encenavaumafarsaalegóricasobreamodernizaçãoindustrialdoTerceiroMundo.Ao inspirar-sena vidade um ladrãoque aterrorizou a cidadedeSão Paulo nos anos 1960, o ilme, na verdade, é uma alegoria corrosivasobre as contradições da modernização urbana e industrial brasileira e

terceiro-mundista como um todo.157 Nele, as classes populares perdemqualquer heroísmo épico-revolucionário, tal como eram vistas pelaesquerda, sendo encenadas sob a ótica da alienação, cafajestice egrosseria.Obandidopopsubstituíaointelectual,ooperárioouocamponêsrevolucionários,eseuúnicoobjetivoera“sedarbemnavida”,espoliando,material e culturalmente, a burguesia e a classe média. O apocalipseurbano encenado na Boca do Lixo paulistana substituía a utopiarevolucionária.

NoFestival daTV Record de 1968, a palavra “Tropicalismo” já serviacomo um rótulo, possuindo sua “torcida”. Ficava clara uma tentativa daindústria cultural em transformar as experiências poético-musicais do“grupobaiano”emuma fórmulareconhecível,no limitede tornar-semaisqueumestilo,umgênerodemercado.NovácuodaspolêmicasabertasporCaetano eGil surgiamduas novas estrelas; TomZé (ganhador doFestivaldaTVRecordde1968)eGalCosta.

Apesar do grande impacto na mídia e nas artes, o Tropicalismo tevemuitos críticos, inclusive entre os jovens artistas e intelectuais ligados àesquerdanacionalista.SidneyMiller(compositor),AugustoBoal(diretordeteatro), Francisco de Assis (crítico musical), Roberto Schwarz (críticoliterário), entre outros, izeram importantes análises críticas sobre omovimento, hoje quase esquecidas. Sidney Miller, em vários artigos,denunciou o caráter “comercial” do “som universal”, buscado pelomovimento, tentandomostrarque issonãopassavadeumaestratégiada

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indústria fonográ ica em internacionalizar o gosto com base nos grandesmercados (EUA, Inglaterra). Augusto Boal, na forma de um manifestoescrito, dizia que o Tropicalismo apenas divertia a burguesia ao invés dechocá-la,perdendo-senoindividualismoenodebochevazio.Schwarz,numtexto da época, fazia uma análise bastante aprofundada do teatrotropicalistadeZéCelso,dizendoqueaquelaestéticadaagressividadeedodeboche traduzia muito mais a agonia política e existencial da pequena-burguesia que se achava de esquerda,mas no fundo era individualista eegoísta.

Os desdobramentos do tropicalismo se encaminharam para doiscaminhoshistóricosquesetangenciavam:aradicalizaçãodasexperiênciascomportamentais e estéticas da vanguarda, como atestam as montagensteatraisposterioresa1969doGrupoO icinaeosartistasplásticosligados

à arte conceitual;158 a expansão da contracultura e seus valores básicos(liberaçãosexual,experiênciacomdrogas,buscadaliberdadeindividualede novas formas de vida comunitária), que acabaram por ganhar espaço

namídiaenaimprensa,sobretudoachamada“imprensaalternativa”.159

A crítica aos valores estéticos e ideológicos da esquerda nacionalistanão icaramrestritosaomovimentotropicalista.Em1968,setoresdomeioartístico e intelectual da esquerda estudantil resolveram acirrar a críticaaospressupostosculturaisepolíticosdo PCB,queeracontraalutaarmadadefendida pelos seus dissidentes. O principal ponto criticado era o efeitodas“artes”ditasdeesquerda,acusadasde,nofundo,apenasmisti icaremaesperapelarevolução,transformandosuasobrasnoelogiodoimobilismopolítico. O “dia que virá”, símbolo da libertação dos oprimidos, conformeexpressãodeWalniceGalvãoem famosoartigopublicadoem1968,eraaimagemmaiscultuadapelacançãodeprotestobrasileira.Elaapontavaumparadoxo: “enquanto o dia não vinha restava cantar para esperar o diachegar”. Terminava reclamando para a MPB um tipo de canção similar à

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Marselhesa,quefosseumhinoàação,enãoumelogioàvagaesperança.

Essetipodecríticaculturalpodeservistocomoumexemplododebatepolíticointernoqueseacirravanoseiodaesquerdabrasileira.Apartirdoracha doPCB, em 1967, crescia a opção de vários grupos saídos do“Partidão” (Ação LibertadoraNacional, Partido Comunista Revolucionário,Movimento Revolucionário 8 de Outubro, entre outros) pela luta armadacontraoregimemilitar.Somadosaosgruposdeesquerdaque jáexistiam(como oPCdoB, criadoem1962eque jápreparava a famosaguerrilhadoAraguaia), esses grupos iriam protagonizar os dramáticos episódios da“guerrilha”, que serviu de pretexto para o fechamento político do regimemilitar,apartirdedezembrode1968,comoAtoInstitucionalnº5.

Um pouco antes do AI-5, em outubro de 1968, o cantor e compositorGeraldo Vandré, como se fosse uma resposta às críticas à canção deprotesto “tradicional”, cantavaumaoutrapalavradeordem: “vem, vamosembora/queesperarnãoé saber /quemsabe faz ahora /nãoesperaacontecer”. A músicaCaminhando seria a grande sensação do até entãosonolentoFestivalInternacionaldaCanção (FIC),organizadopelaSecretariade Turismo da Guanabara (atual Rio de Janeiro) e pela Rede Globo deTelevisão. Acabou classi icada em 2º lugar, até por pressão dosmilitaresquenãoadmitiamsuavitória,perdendopara Sabiá,deTomJobimeChicoBuarque. De qualquer forma, a canção acabou sendo consagrada pelopúblico, sobretudopelosestudantes,protagonistasdasgrandespasseatascontraoregimemilitar.

É bom lembrar que, no mesmo festival, Caetano Veloso proferiu seufamoso discurso-happening, durante a exibição da músicaÉ ProibidoProibir. Ao ser ruidosamente vaiado pelos jovens universitários deesquerda, que o acusavam dehippie alienado, no Teatro da PUC-SP (olendárioTuca),Caetanoexplodiu:

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Maséissoqueéajuventudequequertomaropoder[...].Sãoamesmajuventudequevãosempre,sempre,mataramanhãovelhoteinimigoquemorreuontem!Vocêsnãoestãoentendendo nada, nada, nada, absolutamente nada! [...] Mas que juventude é essa [...]Vocês são iguais sabeaquem?Àquelesque foramao RodaViva eespancaramosatores!Vocês não diferem em nada deles [alusão à agressão sofrida pelo O icina, por parte daextrema-direita][...]sevocêsforemempolíticacomosãoemestética,estamosfritos.160

Algo muito próximo do sentido de outra frase famosa dos muros deParis – “Corra, camarada, o velho mundo quer te pegar!”. Mas os“camaradas”daquelaplateiaestavammaispreocupadoscomalutapolíticastricto sensu contra o regime, e não com críticas culturais ecomportamentaismaisamplas.

A plateia, de costas viradas para o palco, continuava a vaiar. OsMutantes,decostasviradasparaaplateia,continuavamatocar.ECaetanocontinuava a discursar e a cantar: “vem,medê umbeijo,meu amor / osautomóveisardememchamas/derrubarasprateleiras/asestantes/asvidraças / louças / livros, sim / eu digo não / eu digo é proibido proibir[...]”. De initivamente, não era este tipo de revolução que a juventudeengajada queria. Longe das “barricadas do desejo” parisienses, osestudantes brasileiros de esquerda estavam mais interessados emderrubaraditaduradoqueas“prateleirasdasaladejantar”.

Na inalíssima doFIC, comoMaracanãzinho lotado com30milpessoasque cantaramCaminhando em coro, umamultidão continuou cantando amúsicaenquantoiaemboraparacasa.Talveznuncamaistenhahavido,nasociedadebrasileira, uma síntesemais acabada entre arte, vida e políticacomonaquelemomento.Antesdeser“re lexo”,aculturaeraumaespéciede cimento que reforçava identidades e valores político-sociais queinformavamaquelageração.

Ironicamente,apósoAI-5,asduasvertentesda“revolução”brasileira,acomportamental e a estritamente política, foram alvos da repressão:CaetanoeGil icariampresospor trêsmeses,partindoemseguidaparao

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exílio, e Geraldo Vandré fugiria do Brasil, inaugurando um périplo porvários países, enquanto sua mais famosa canção icaria proibida pelacensuraaté1979.

Oanode1968pareceapontarparaum limiteda “boaconsciência”doartista de esquerda, que pretendia ocupar setores do mercado sem sertragado pela sua lógica, operando numa esfera pública que ainda gozavade certo grau de autonomia. Num certo sentido, a Tropicália foi omovimento que problematizou esta “boa consciência” da esquerda eradicalizouare lexãoeaautocrítica intelectual.Em1968,ocírculodegizdoartistadeesquerdaameaçavaromper-seàmedidaqueaguerrilha,umnovo projeto de contestação política ao regime, se a irmava e encontravanacontestaçãoculturalsuacontrafacesimbólica.Issonãosigni icaa irmarqueaculturadecontestaçãoaoregimefosse,comoumtodo,adeptadalutaarmada.Aocontrário,aculturaengajadaviveudilemase impasses,muitosemelhantes àqueles vividos no mundo da política. Havia uma clivagementre a arte engajada ligada à corrente da hegemonia (comunista),portanto distante de uma arte de barricadas e de combate armado àditadura, e a tentativa de construção de uma arte diretamente ligada àsdissidênciasquepatrocinavamalutaarmada.Nessesentido,astrajetóriasde Geraldo Vandré, na música, de Carlos Zílio, nas artes plásticas, e dopróprioGlauberRocha,no cinema, sãoaltamenteexemplares.Entretanto,para os militares, menos sutis nas suas análises, todas estas correntesfaziamparteda “guerrapsicológicadasubversão”,primeiropassoparaaluta armada, como diziam os manuais da Escola Superior de Guerra. Astensõesediferençasentreosmovimentosqueeramheterogêneosemsi,enemsemprefalavamamesmalínguaestética,ideológica,nãodiminuíamasensação de que a segurança nacional estava ameaçada por fortespressões.

No dia 23 de dezembro de 1968, Caetano Veloso realizou uma

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performancequepodeserconsideradaaimagemdeumaépoca.NaúltimaapariçãonoseuprogramadeTV,DivinoseMaravilhosos,cantouBoasFestas,deAssisValente,comumrevólverengatilhado,apontadoparasuaprópriacabeça.Masaquelaagressividadesimbólicacontraos“valoresburgueses”,síntesedeum tempode radicalismo, eraumabrincadeiradeadolescenteperto da violência real do Estado que recairia sobre a sociedade, eprincipalmente contra os opositores. Dez dias antes, na noite de 13 dedezembrode1968,ogovernoanunciara,emcadeiaderádioeTV,oAI-5.

OAtoinaugurouumanovaépoca,napolíticaenacultura,demarcandoum corte abrupto no grande baile revolucionário da cultura brasileira,entãoemplenoauge.Porisso,1968foibatizadode“oanoquenãoacabou”

pelo jornalista Zuenir Ventura. 161 A ditadura deixou de ser “branda”,recaindo duramente sobre a parcela mais crítica da classe que elaprometia proteger e incrementar – a classemédia –, sal da terra para adireitade1964.

Entretanto,apesardastentativasdaalamaisradicaldoregimemilitar,aculturadeoposiçãonãodeixoudepulsarnemparoudecriticaroregime.Entre 1969 e 1970, com a guerrilha de esquerda ainda na ofensiva,ecoavam, como avisos do apocalipse, as palavras que abriam o ilmeOBandido da Luz Vermelha: “o Terceiro Mundo vai explodir, e quem tiversapatonãovaisobrar”.

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“Omartelodematarmoscas”:osanosde

chumbo

Afastado provisoriamente da Presidência em agosto de 1969 ede initivamente em setembro, o general Costa e Silva foi substituído por

umajuntamilitar,162queimpediuapossedePedroAleixo,vice-presidente.Apesar do AI-5, a máquina repressiva do governo ainda estava seazeitando, mas o sequestro do embaixador norte-americano forneceu adesculpaparaaliberaçãodarepressãoforadequalquer“sutilezajurídica”oumesmohumanitária.Começavamos“anosdechumbo”.

As responsabilidades de Costa e Silva e seu grupo no mergulhode initivo do país no porão da história são motivo de debate. Algunsdefendem que o presidente, já debilitado, efetuou uma tentativa de“abertura”quenaverdadetratava-sedeconstitucionalizaranovasituaçãojurídico-política, chegando a solicitar um projeto de emenda a Carlos

MedeirosdaSilva,MiguelRealeeTemistoclesCavalcanti.163 Nenhum dostrês juristas pode ser considerado propriamente um paladino dademocracia. Mas a hipótese não é implausível. Na estranha ótica dosmilitaresedamagistraturaconservadora,aconstitucionalizaçãodasleisdeexceção e do autoritarismo signi icavam “normalidade democrática”.Segundo a crônica, Costa e Silva nãoqueria passar à história como “mais

umgeneralsul-americanoquegolpeouasinstituições”.164

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Enquanto governavam o país a seis mãos, os militares buscavam aescolha de umgeneral com trânsito e liderança sobre todas as correntesmilitares, que se dividiam entre castelistas, nacionalistas e palacianos daentouragedeCostaeSilva.Oequilíbrio internodascorrenteseaunidadedas Forças Armadas eram fundamentais para combater a guerrilha e aoposição como um todo, trazendo o sistema político, a começar peloCongresso,paraatuteladaPresidência.

Emtomdepiada,podemosdizerqueaúnicaeleiçãodiretadoregime,restrita a generais, foi aqueescolheuogeneralEmílioGarrastazuMédici

paraserpresidentedoBrasil,em1969.165Depoisdacrisepolíticacausadapelo derrame de Costa e Silva e seu consequente afastamento daPresidência,aformaçãodeumajuntamilitarparacomandaroregimesoba égide do AI-5 não conseguiu acalmar os diversos gruposmilitares quedivergiam em relação à política econômica ou à forma de conduzir arepressãoà guerrilha.Esta,por suavez,parecia triunfante, realizandoas“expropriações” a bancos e ações ainda mais espetaculares, como osequestrodoembaixadorestadunidenseemsetembroouorouboaocofredeAdhemardeBarros, em julho.OnomedeMarighella crescia namídiacomo símbolo do guerrilheiro, temido e admirado a um só tempo. Urgia,portanto,resolveracrise,eaeleiçãodeMédicifoiseuprimeiropasso.Suaposseocorreuemoutubrode1969, juntocomareaberturadoCongressoNacional, fechadodesdedezembrode1968.Naquelemomento,esboçava-seagestaçãodeumacorrenteideológicaqueseduziaajovemo icialidade,tendo como porta-voz o general Albuquerque Lima, candidato àPresidênciadaRepública, cujaspropostasqueriamredirecionaro regimeimplantadoem1964paraumnacionalismoautoritárioreformista,calcadonareformaagrária,nacentralizaçãodopoderenocombateàsoligarquias.O governo Médici, em parte, captou este clima de “Brasil grande” quetomava conta dos quartéis em medida su iciente para acalmar as bases

militares,semradicalizarasaçõescontraasvelhasestruturas.166

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Os militares até mantiveram o ritual vazio de um sistema políticodes igurado, reabrindo o Congresso em outubro de 1969, depois de 312dias, para con irmar o novo presidente-general escolhido. O Congresso,aindaperplexocomomonstroqueajudaraa criarem1964, con irmouaescolhamilitar,com293votose79abstenções.

Em seu discurso de posse, no dia 30 de outubro, o general Médici,homem de expressão cândida e simpática, surpreendeu até seus colegasde farda: “Homem da lei, sinto que a plenitude do regime democrático éuma aspiração nacional [...] creio necessário consolidar e digni icar osistemarepresentativobaseadonapluralidadedospartidosenagarantia

aosdireitosfundamentaisdohomem”.167

Se, para os contemporâneos, à direita e à esquerda essas palavraspareceramirreais,paraospósterosmaisbeminformadossoamcomopuroparadoxo, ainda que eventualmente sinceras enquanto intenção. A partirde 1969, a repressão feroz do Estado contra a guerrilha de esquerdarepresentavatudo,menosocaminhoparaaplenitudedademocraciaedosdireitosdohomem.

O discurso foi reprovado pelas principais lideranças militares, quesentiamquea“tempestade”daguerrilhaestavaapenascomeçandoeviamnelaumaameaçaà“revoluçãode1964”.Portanto,nãoeraahoradefalaremdemocracia.

Os fatos falam por si. A censura prévia, com o Decreto nº 1.077,produziria situações até bizarras, como a proibição de publicar adeclaraçãodeFilintoMüllerdequenoBrasil“nãohácensura”,emagosto

de 1972.168 Em novembro de 1971, o governo passou a sistematizar aedição de Decretos Secretos. Além do aparato normativo, a máquina darepressão se azeitava. Conforme a declaração do general Fiuza de

Castro:169 “Certavez,eudisseaumentrevistadorque,quandodecidimos

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colocar o Exército na luta contra a subversão – que praticamente foiestudantileintelectual[...]–,foiamesmacoisaquematarumamoscacomummartelo-pilão”.

Seráque amosca era tãopequena assim?Aindaque fosse,mesmoasmoscas,aindaquepequenas,costumamincomodaroambiente.AguerrilhanoBrasilnasceudos impassesedissensoscausadospelogolpemilitarnocampodaesquerda.Nãoqueestaopçãoestivessecompletamenteforadasestratégiasdealgunsgruposantesmesmodogolpe,masefetivamentenãoconstituía uma opção política imediata ou consistente, capaz dearregimentarquadrosexpressivoseseduziragrandepartedosmilitantes.Ofatoéqueafrustraçãocomoprocessodelutapelasreformas,arapidezdaquedadogovernoconstitucional eeleitoeaperdadeperspectivasdeação política de massas junto às classes populares mergulharam asesquerdas em um grande debate. Acostumadas às leituras triunfalistas ejactantesdoprocessohistórico,emsuacrençaabsolutanainexorabilidadeda revolução, as esquerdas logo passaram à autocrítica e ao debatesectário. Se o processo histórico não falhava, então quem falhara? Quemhavia conduzido à derrota de 1964? Quais foram as táticas e estratégiasequivocadasquenãosouberamseprepararpararesistiraogolpe?

Neste debate, dois grandes culpados foram logo encontrados: opresidenteGoulart,hesitante,conciliadorefrágilemsualiderançapolítica.E o Partido Comunista Brasileiro, até então a maior e mais tradicionalorganizaçãodeesquerdaquehaviaapostadoemumarevoluçãopací icaedemocrática, diluindo o pretenso vigor da ação dasmassas e da própriamilitância.Nacríticaqueseseguiu,otrabalhismomoderadoeopecebismoreformistaperderamoespaçoquetinhamcomoaglutinadoresdoprocessopolítico. Se moderação, reformismo e paci ismo não tinham conseguidoacalmar os reacionários, então a esquerda tomou o caminho lógico. Ir àguerra,na formadocombatearmadoao regime.Opróprio PCB icoumais

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de um ano até conseguir elaborar um documento mais amplo sobre aderrota, e nele reiterou a opção pela luta pací ica contra o regime,

acirrandoaindamaisascisõesinternas.170

Uma parte da esquerda que aderiu à luta armada foi inspirada pelaepopeia da Revolução Cubana, sistematizada pelos teóricos do foquismo.EstateoriatinhaconvencidopartedosmilitantesqueumnúcleopequenoeabnegadodeguerrilheirosconseguiriaderrotarumexércitobemarmadoeconquistaropoderdeEstado.Iniciadaaluta,asmassasviriamcorrendoapoiararevolução,poisaopressãodoseucotidianoera insuportável.Eraassimque sepensava.AmortedeCheGuevaranaBolívianão tinha sidolida como expressão do limite desta estratégia, mas como exemplo deheroísmo que inspiraria os mil Vietnãs sonhados para acabar com oimperialismo e com o capitalismo. O dever do revolucionário era fazer arevolução,diziaCarlosMarighella,umadasprimeirasdissidênciasdo PCBaseanimaremcomestatáticadeluta.

Asdissidênciascomunistasnãoforamasprimeirasatentarcombateroregimemilitarpelasarmas.Emjulhode1966,umabombafoicolocadanoaeroporto de Guararapes, em Recife, visando atingir o então candidato àPresidência,MarechalCostaeSilva.Abombamatouduaspessoase feriumaisdedez,masnãoatingiuoalvo.AautoriaqueàépocafoiatribuídaaoPCBR foi apontada como sendo obra da Ação Popular, convertida à luta

armadaem1965.171

Foram os militares nacionalistas, expulsos pelo expurgo pós-golpe,ainda galvanizados pela liderança de Leonel Brizola, que esboçaram asprimeiras reações armadas. Constituíam o “Movimento NacionalRevolucionário”, cuja liderança política era Leonel Brizola. Fiéis aoimaginário e às táticas da Revolução Cubana, foram em busca da suasierra:oPicodeCaparaó,nafronteiradeMinasGeraisedoEspíritoSanto.

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Entre março e abril de 1967, a guerrilha termina sem dar um tiro, comseusoitomembrospresosporumapatrulhapolicialmineira.

Mas este não seria o im do envolvimento dos militares nacionalistascassados, expulsos do Exército, com a guerrilha. Ainda em 1967,formariam um dos grupos mais atuantes na guerrilha de esquerda, aVanguardaPopularRevolucionária(VPR). Jásoba inspiraçãodomarxismodosquadros egressosdeoutraorganização, aPolíticaOperária (Polop), onovogrupotransbordavaoslimitesdonacionalismoeseriaumadosmaisativosnalutacontraoregime.Emjaneirode1969,aVPRganhariaseumaisnotóriomilitante,ocapitãoCarlosLamarca.VeteranodemissõesdepazdaONU, militar pro issional e experiente, Lamarca desertou do Quartel deQuitaúna, levando uma Kombi com 63 fuzis automáticos. Alguns mesesdepois, aVPR, unida a um pequeno grupo mineiro, o Comando deLibertação Nacional (Colina), formaria a Vanguarda ArmadaRevolucionária–Palmares(VAR-Palmares).

A linhagemVPR-VAR tornou-se conhecida por três eventos de granderepercussão e ousadia. O atentado ao QG doII Exército em São Paulo emjunhode1968;oroubodocofredeAdhemardeBarros,ex-governadordeSãoPaulo,emjulhode1969;ealendáriafugadeumacolunaguerrilheiracomandadaporCarlosLamarca,rompendoumgrandecercodasforçasdesegurançanoValedoRibeira,entreabrilemaiode1970.

Mas ao menos dois destes eventos geraram efeitos colaterais queserviramàpropagandacontraaguerrilha:amortedorecrutaMarioKozelFilho,mortoporumcaminhão-bombaenquantofaziaaguarda,assimcomoaexecuçãoacoronhadasdojovemtenenteda PMpaulistaAlbertoMendesJunior, prisioneiro da coluna de Lamarca em fuga nas matas do Vale doRibeira.ComamortedeMárioKozel,aditaduratinhaoseujovemsoldado-mártirparaexibiràsociedade.

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Em julho de 1967, surgiria a outra grande organização guerrilheira,muito maior que a pequena mosca do general Fiuza de Castro: a AçãoLibertadora Nacional, fruto de uma traumática dissidência no interior doPCB,queculminounasaídadeliderançashistóricascomoCarlosMarighellae Joaquim Câmara Ferreira. O primeiro, por volta de 1967, tornou-se agrande aposta dos cubanos, em busca de um ponto de apoio para asguerrilhascontinentaisnaAméricaLatina.Marighella,inclusive,participouda conferência da Olas (Organização Latino-Americana de Solidariedade)em Havana, uma espécie de nova internacional dos movimentosrevolucionáriosdeesquerdadoTerceiroMundoquetentavamescapardarealpolitikmoderadadein luênciasoviética.Afastadosdesdeodesfechodacrisedosmísseisde1962,quandoFidelsesentiuummerojogueteparaasduassuperpotências,HavanasósereconciliariacomMoscounoiníciodosanos 1970, abandonando o afã internacionalista de apoio às guerrilhas.Naquele momento, para a esquerda revolucionária mundial, Marighella

“eraocara”.172

No inal de 1967, ainda sem despertar suspeitas, aALN realizou aprimeira ação armada, umassalto aumcarropagador emSãoPaulo. Emmarçode1968,aorganizaçãolançouumabombacontraaEmbaixadadosEUA.

Atémeadosde1969,nacontabilidadeda lutaarmadaconstavammaisde2milhõesdecruzeirosnovos“expropriados”debancosecercadevinteatentados à bomba contra quartéis, organizações de direita e jornaisconservadores.Apesardecertainsegurança–incorporadaprincipalmentepelasclassesmédias–queeracapitalizadapeloregimecomorazãoparaofechamentopolítico,aguerrilhapoucosigni icavaemtermosdeataqueao“coração do Estado” ou como abalo para o ambiente de crescimentoeconômico.

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As ações guerrilheiras, até meados de 1969, visavam dois objetivos:arrecadar dinheiro para montar suas redes de infraestrutura e custeio(aluguel de imóveis, manutenção dos militantes, edição de jornaisclandestinos)efazerpropagandaparaasmassas.Oprojetoestratégicodequasetodososgruposerapassarparaafasede“guerrilharural”,estasimconsiderada o momento decisivo na luta contra o regime. A partir desetembrode1969,orepertóriodeaçõesguerrilheirascresceu,iniciandoatemporada de sequestro de diplomatas para serem trocados porcompanheiros presos. E o primeiro diplomata sequestrado não eraqualquerum,masninguémmenosdoqueoembaixadorestadunidensenoBrasil,CharlesElbrick,trocadopor15prisioneirospolíticos.

A ousadia desta ação, apesar do seu desfecho triunfal, acirrou adisposição de combate das forças de segurança, que passaram a searticular demaneiramais organizada.Doismeses depois do sequestro, arepressão teve uma grande vitória, com a morte de Marighella. CarlosLamarcamorreriaquasedoisanosdepois,em1971,no interiordaBahia,cercadoeisolado.Assim,osdoisprincipaismitosdaguerrilhadeesquerdaforammortosnoespaçodedoisanos.

Era o sinal da verdadeira operação de extermínio de guerrilheiros,entremeada com ações reativas e desgastantes, como o sequestro de

diplomatas,visandoàsuatrocaporprisioneiros.173 AALNperdeuquadrospolíticos emilitares importantes entre 1969 e 1970: além deMarighella,VirgílioGomesdaSilva,quehaviaparticipadodosequestrodoembaixadordosEstadosUnidos,eEduardoLeite(conhecidocomoBacuri),importantesmembros do grupo de ação, foram presos e mortos na prisão. Virgílio éconsideradooprimeirodesaparecidodoregimemilitar.

Enquanto aALN e aVPR (que se transformaria emVAR-Palmares)patrocinavamaçõesespetaculares,o PCdoBseorganizavadiscretamentena

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regiãodoAraguaia,desde1967.Oobjetivoeraplantarumasólidabasedeguerrilha rural em uma região marcada pela miséria e pelo con lito deterras, visando à “guerra popular prolongada”. O modelo, desta vez, nãoera cubano,mas chinês. Depois de alguns anos, o núcleo guerrilheiro foidescoberto,obrigandoosmilitantesaentrarememescaramuçascontraasforçasdesegurançaapartirdeabrilde1972.Asprimeirasvitóriassobreas colunas do Exército compostas por recrutas, logo retirados da região,animaram a guerrilha. O triunfo parecia possível, apesar do númeroreduzido de guerrilheiros (pouco mais de sessenta). Mas o recuo doExército era apenas tático. Os militares voltaram à região, com quadrosmais pro issionais e especializados, e conseguiram cercar e sufocar aguerrilha,queterminoucompraticamentetodososseusmembrosmortose desaparecidos. Em outubro de 1973, as colunas guerrilheiras do PCdoBestavamdestruídas,mas o Exército ainda faria operações de rescaldo na

regiãoatéocomeçode1974.174

Asdezenasdeorganizaçõesdeesquerdaqueadotaramaguerrilhaseviamcomovanguardasdisciplinadaseorganizadas,comestruturainternavoltadaparaavidaclandestina.Naculturapolíticadomarxismo-leninismoa boa organização, a disciplina e a boa teoria revolucionária eramcondições para a vitória, para a tomada do Estado e a mudança dasociedade.Aosolhosdapequenapolíticaatual,marcadapelaausênciadeutopias e pelo pragmatismo, soa estranha a obsessão dos grupos emmergulharemlongos,enemsempreacurados,debatesteóricos,enquantopolítica e militarmente perdiam espaço para o regime. O caráter darevolução,asformasdelutaeotipodeorganizaçãomaisadequadaàlutacontra o regime eram os tópicos que dividiam os revolucionários. Arevolução era nacionalista, democrática ou socialista? A luta armadadeveriaconduziro“trabalhodemassas”ouotrabalhodemassasdeveriater prioridade sobre a ação armada da vanguarda? A luta deveria serunicamente no campo ou mesclar ações urbanas e guerrilha rural? As

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organizaçõesdeveriamseorganizarna formadepartidos centralizadose

verticalizados ou deveriam ser lexíveis e provisórias?175 Essas eram asquestõesquemarcavamosdebates.

Soa mais estranho ainda a tendência à fragmentação, ao sectarismo,velhapragadaesquerda,quandooinimigoestavacadavezmaiscompacto,abrindo mão de suas diferenças internas, para combater a ameaçarevolucionária. Mas a própria primazia da teoria sobre a capacidade dearticulaçãopolíticapragmáticaconduziaaosectarismo.Comoacúmulodasderrotas, a busca dos erros também era outra porta para a dissidênciainterna das organizações. Salvo algumas ações em consórcio e brevestentativas de alianças organizacionais, os grupos permaneceramindependentes. A fragmentação ajudou a repressão, mas é di ícil cobrarqueoquadrofossediferente.

Quando examinamos a lista demortos e desaparecidos pela ditadura,notamos um dado inovador na história brasileira. Via de regra, asrepressões a revoltas armadasnoBrasil eram ferozes comos de baixo emoderadas com os de cima. A prisão e o exílio eram reservados àslideranças rebeldes vindas da elite ou das classes médias superiores. Arepressão aos grupos de oposição entre 1969 e 1974 não poupouninguém. Um dado indicativo da composição social da guerrilha e darepressão é a formação escolar. Dos 17.420 processados pela justiça

militarquecompõemabasedoarquivodoProjeto“BrasilNuncaMais”, 176

58% tinham formação superior, completa ou incompleta, e 16% tinhamensino secundário. No geral, calcula-se que metade dos presos eprocessadoseraformadaporestudantesuniversitários.Amaiorpartedosmembrosdeorganizaçõesarmadastinhaaté35anos(82%daALN,94%daAçãoPopular(AP),93%daColina,96%doMovimentoRevolucionário8deoutubro (MR8), 86% doPCBR, 86% daVAR), com predominância da faixa

queiaaté25anos.177

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A derrota da luta armada teve efeitos de longa duração na sociedadebrasileira. Sobre a juventude de esquerda, mesmo aquela que não eraadeptadalutaarmada,gerouumtraumacoletivo.Amortesobtortura,emcondições humanas torpes, substituiu o ideal do sacri ício domilitante, amorteheroicanabarricadaemcombatefoisubstituídapelamortepatéticanoporãodatortura.Construiuumcírculodomedocujamáximadiziaquefazerpolíticaoulutarcontraas injustiçassociaiserasinônimodeprisãoetortura.

Omartelodepilãoderepressãonãomatouapenasmoscas,mastudooque ousasse voar. O regime militar montou uma grande máquinarepressivaquerecaiusobreasociedade,baseadaemumtripé:vigilância–censura – repressão. No inal dos anos 1960, este tripé se integrou demaneira mais e icaz, ancorado em uma ampla legislação repressiva queincluía a Lei de Segurança Nacional, as leis de censura, os AtosInstitucionaiseComplementares,aprópriaConstituiçãode1967.Nãofoioregimede1964que inventouessetripérepressivo,emparteherdadodopassado, mas sem dúvida deu-lhe nova estrutura, novas agências efunções.

Abase teóricaque instruía amontagemdestamáquina erao conceitodeguerra internaouguerra revolucionária, aprendidodos franceses. Elapressupunha a utilização coordenada de todos os recursos – militares,políticos e de informação – no combate a um inimigo invisível, oculto – o“subversivo” –, entre a população como se fosse um cidadão comum. Poressalógica,todoseramsuspeitosatéqueseprovasseocontrário.Asforçasmilitares tinham que abandonar os conceitos tradicionais de guerras,baseadosemmobilizaçãoemovimentaçãodegrandesrecursoshumanosemateriaisnadefesaouinvasãodeumterritórioinimigo,paradesenvolverumaaçãotipicamentepolicial,complementadacomoperaçõesdeguerrilhacontrainsurgente. Tratava-se, nas palavras de um general, de uma luta

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abstratacontraum inimigo invisível.178O inimigoera invisível,masa lutanãofoitãoabstratacomoqueriamosmanuais.

Várias agências operativas realizavam as ações do tripé repressivo etrocavam informações entre si, embora quase nunca sua ação fossecoordenadaapartirdeumaestruturaburocráticacomumeintegrada.Emprincípio,estacaracterísticapodeparecerdisfuncionalenquantomáquinarepressiva, e talvez até fosse. Mas, ao mesmo tempo, evitava que aslideranças políticas do regime, com visão mais estratégica e ampla,icassem refém de um superpoder repressivo, com status políticoprivilegiado no sistema. Mesmo sem chegar a tal grau de importânciaburocrática,a“comunidadedeinformações”eraativaein luente.Criou-sea imagem de uma certa autonomia nas ações do sistema repressivo, quetornariaopaláciorefémdoporão.

O regime militar também não inventou a censura, mas ampliou-a. Alegislação básica da censura era a Lei nº 20.493, de 1946, herdada doregimeanterior,complementadapelaLeinº5.526,de1968,epeloDecretonº 1.077, de 1970. Com essas reformas, o regime politizou aindamais acensura,mesmomantendoodiscursoclássicodevigilânciadamoraledosbons costumes. Além disso, realizou um trabalho de centralizaçãoburocrática,queculminaem1972,comacriaçãodaDivisãodeCensuradoDepartamento de Polícia Federal. Apesar de todas essas reformas, aprática da censura tinha muito de ação arbitrária, desigual conforme aáreadeexpressão,epoucosistematizada.

Apreocupaçãoemquali icarocensor,umtécnicopolicial limitadoqueseviacomointelectualvigilante,tornou-seaindamaisobsessivaporpartedo governo, quando descobriu-se que Antonio Romero Lago, o todo-poderoso chefe do Serviço de Censura que velava pela ordem e peloscostumes, era Hermenildo Ramirez de Godoy. Para complicar, além defalsi icar o currículo, ele era um falsário e assassino, fugitivo da justiça

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haviamaisdevinteanos,poismandaramatardoishomensnoRioGrandedoSul.Astrapalhadasdacensuraincluíamaproibiçãodolivro Ocubismo,supostamenteumapropagandadeCuba,aomesmotempoque liberavaamúsicaApesar de Você de Chico Buarque, à primeira vista uma inocentecançãocontraumanamoradamegera.Acensuraeraumadaspartesmaisnotórias doFebeapá:OFestival deBesteira queAssola oPaís , a crítica bemhumorada escrita por Stanislaw Ponte Preta que sintetizava o clima deignorânciaeobscurantismoquepareciatomarcontadasautoridades.

Mas, para além deste caráter cômico e farsesco, a censura foi e icazcomopartedotripérepressivo,limitandooalcancedacriaçãoartísticaeacirculação de opinião e de informações de interesse geral. Em grandeparte, a censura complementava o trabalho dos setores de informação e

repressão, in luenciada pela comunidade de informações.179 A censuradurante o regime militar tinha ummodus operandi plenamentereconhecível.Agiamuitoàvontadenaproibiçãodeprogramasde TV ederádio. Era essa sua função mais antiga e plenamente estabelecida pelalegislaçãoanteriorao regime.Outra funçãoantigaerao controle censóriode textos e montagens teatrais, mas esta icou um tanto completa após1964,considerando-seaimportânciaeoreconhecimentointelectualqueoteatro ganhou como espaço da resistência e da a irmação de umaliberdade pública. A censura ao cinema icou mais complexa ainda, pelomesmomotivo,acrescidodofatoqueocinemabrasileiroeraumaindústriafrágil eumcampodeexpressão commuito reconhecimentonoexterioràépoca. Ou seja, qualquer erro de medida ou trapalhada em relação aocinema e ao teatro poderia repercutir negativamente nos estratos maisaltos da sociedade e desgastar ainda mais um governo cada vez maispressionado. Esse foi o quadro até 1968. Depois, sob o AI-5 e ainstitucionalização da censura prévia, essas sutilezas políticas icaram emsegundo plano. Mas a luta por “quali icar” a censura e dar-lheuniformidade e alguma previsibilidade continuou. Até porque, sabiam os

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militares,acensuraeraumfatorcomplicadorparaaindústriadaculturaedadiversão,quemovimentavamuitodinheiroeerapartedamodernização

industrial sonhada pelo regime.180 Ironicamente, a censura musicaltornou-semaisvorazdepoisde1979,quandoserespiravamosventosda

aberturapolítica.181

Maisdelicadaaindaeraacensuraàimprensa.Nãofaltarammomentosde censura prévia rígida sobre órgãos da grande imprensa, como a querecaiusobreoinsuspeitojornalOEstadodeS.Paulo(1972-1975)ousobrea revistaVeja (1974-1976).Mas a preferência do governo era a censuraindireta, “sugestiva”, ou, melhor ainda, a autocensura dos órgãos de

imprensa.182 A di iculdade em normatizar e assumir a censura prévia àgrande imprensa comercial, sócia da conspiração que derrubara Goulartem1964,sedeviaàautoimagemdoregimequeseviacomoaantítesedogetulismo,queduranteoEstadoNovoabusaradocontroledos jornais.Osmilitares,sobretudodelinhagemcastelista, icavamincomodadoscomestetipodecensura,osquaispreferiamprocessaratéjornalistas,masevitaracensura, sistematicamente, aos jornais. Na lógica do regime, a grandeimprensa deveria ser uma interlocutora con iável do governo, elo com a“opiniãopública”.Oslivroserevistassofreramcensurapréviaentre1970

e1979,comefetividadevariada.183Emrelaçãoaoslivros,acensuranuncaconseguiusere icaz,comoatestaapublicaçãodeobrasaltamentecríticasao regimebemantesda fasede abrandamentoda censurapolítica, comoZero (Ignácio de Loyola Brandão, 1970),Bar Don Juan (Antonio Callado,1970),Festa (Ivan Ângelo, 1976) eEm câmara lenta (Renato Tapajós,1977).

Via de regra, o próprio gabinete doMinistro da Justiça cuidava deste“diálogo” com os grandes jornais. Já para a imprensa alternativa deesquerda, não havia maiores preocupações com vetos totais, parciais oumesmoaprisãodejornalistas.

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Alémdacensura,avigilânciaeraumaspectoestratégicoparaoregime.Sua função central era produzir informações sobre pessoas, movimentossociais, instituiçõesegrupospolíticos legaisou ilegais, evitandosurpresaspara o governo. Informações que poderiam, no futuro, produzir aculpabilidadedosvigiados.OeixodosistemadeinformaçõeseraoServiçoNacionalde Informações, criadoem junhode1964.OSNI tinhaum“únicocliente”, conforme palavras do general Fiuza de Castro, o presidente daRepública. O Serviço tinha rami icações na máquina burocrática: asDivisões de Segurança e Informação (DSI) e também a Assessoria deSegurança e Informação (ASI), instalada em cada órgão importante daadministraçãopública.Eraumaestrutura informativa,masnãooperativa,nosentidodecombaterdiretamenteasubversão.

Os ministérios militares tinham seu próprio sistema de informaçõescomposto pelos diversos serviços de inteligência das três forças e pelas“segundas seções” dos diversos comandos e armas. Os serviços deinteligênciamilitar, aocontráriodoscivis, eram informativoseoperativos,bemcomoasdelegaciaseosdepartamentosdapolíticaestaduais,osDops.

Amatrizdavigilânciaeramos “informes”quecompreendiamtodasasinformaçõesrecebidasdeagenteseinformantesadhoc,cujoteornãotinha

sido processado nem con irmado pelos serviços de inteligência.184 Eleseramclassi icadosconformeograudeplausibilidade:deAatéF(relativosà qualidade das fontes), de 1 até 6 (relativos à plausibilidade e àveracidade da informação). A1 era a classi icação dos informes maisidôneos,combinando-seatéF6, reservadosparaaquelesvindosde fontesmenos idôneas e com pouca chance de serem verdadeiros. Os analistasrepassavam os informes aos chefes, com indicação de operações de

verificaçãoourepressão.185

A preocupação do sistema de informação era vigiar funcionários

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públicoscivis,movimentaçõesdasliderançaspolíticas,atividadeslegaisouclandestinasdosmovimentos sociais, trajetórias intelectuaiseartísticas.OSNI dava aval para nomeações nos altos escalões do governo,acompanhando casosde corrupção envolvendo civis.Na lógica do regimemilitar, o governo precisava saber desses casos antes da imprensa, atéparamelhorabafá-los,sefosseocaso.

Arepressão,entendidacomoconjuntodeoperaçõesdecombatediretoàs ações civis e armadas da oposição ao regime, completava o tripérepressivo.Atéo inaldosanos1960,aspolíciasestaduais,osDops,eramasresponsáveispelasoperaçõespoliciaisderepressãopolítica.Nãohavia,portanto, um sistema nacional, militarizado e integrado de repressãopolicial.Ocrescimentodaguerrilha,em1968,gerououtraestruturaparaeste ladodo tripé,consagrandoasiglamaisaterrorizantedoperíodo: DOI-Codi(DestacamentosdeOperaçõeseInformações-CentrodeOperaçõesdeDefesa Interna). Antes do surgimento do sistemaDOI-Codi, cada forçamilitar tinha seu serviço de informação e combate à guerrilha, sobresponsabilidadedorespectivoministromilitar.

O Cenimar (Centro de Informações da Marinha) era o mais antigo,criado em 1955, e e icaz na caça a opositores. O Cisa (Centro deInformações e Segurança da Aeronáutica) foi criado em 1968, com outronome. OCIE (CentrodeInformaçõesdoExército),criadoem1967, tornou-se um dosmais importantes e letais serviços de segurança do regime. Asuperposiçãodeagênciasecomandosnocombateàguerrilha,aausênciade uma Polícia Federal estruturada nacionalmente e o limite dos Dopsestaduaistornaramocombateàsguerrilhasnosprimeirosanosdoregimeuma atividade um tanto quanto errática, com vários procedimentos emetodologias diferentes, sem uma efetiva troca de informações quepermitisseumaaçãodeâmbitonacional integrada. Issocomeçouamudarem julho de 1969, com a criação da Oban, a Operação Bandeirante,

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prenúnciodametodologiarepressivadosDOI-Codi.

Osnovos“bandeirantes”,tambémagindoemSãoPaulo,regiãonaqualaguerrilha de esquerda era particularmente ativa, já não caçavam índios.Suas vítimas eram os chamados “subversivos”, conceito amplo queenglobava tantoos combatentesda luta armada, a rededeapoiodiretoeindireto às organizações clandestinas, bem como qualquer militante departidos de esquerda ou movimentos sociais, inclusive aqueles que nãotinham aderido à luta armada. O foco da repressão, entre 1969 e 1973eram os guerrilheiros e suas organizações. A Oban tinha uma estruturalexível, composta por ummix de militares, policiais civis e policiaismilitares, cuja vantagem era ter ampla liberdade de ação, para além das“sutilezas jurídicas” ou de constrangimentos burocráticos. Mas tinha adesvantagemdenãopodercontarcomverbaspúblicasparaseusgastoseadicionais por insalubridade. Mas isso podia ser contornado pela“caixinha” quemuitos empresários, ciosos do seu dever cívico e de suaspropriedades, como o executivo do grupo Ultra Henning Boilesen,organizaramparacombaterocomunismo.OdinheiroprivadoalimentouaOban,dando-lhemaisliberdadedeação.

A inexperiência dos militares na atividade propriamente policial fezcom que logo se destacasse um delegado da Polícia Civil de São Paulo,SergioParanhosFleury.OmodelodaObaneraoesquadrãodamortequeatuavana cidadedesdeo início dos anos1960, achacando e extorquindocriminosos comuns. O método: tortura e execuções extrajudiciais comrequintes de crueldade. Fleury, policial experiente de São Paulo, daria afórmula.

Entretanto,aOban,emquepesesuae icáciacomprovadanadizimaçãodeguerrilheiros,nãoagradavaacúpulamilitar,ciosadosseuscomandosedahierarquia.Autilizaçãodepoliciaissabidamenteassassinosecorruptosnocombateàguerrilhapoderiaterumpreçonofuturo.Eraprecisotrazer

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paraoâmbitomilitaroesforçopolicialdecombateàguerrilhaerepressãopolítica em geral. Para isso, em 1970, foi criado o sistema DOI-Codi.Inspiradonomodelo lexíveldaOban,anovasigladarepressãoestavasobcontrole direto dos comandos de cada Exército ou região militar. Denaturezamilitar, podia se intercomunicar com os serviços de inteligênciadecadaforça,quecontinuavamexistenteseatuantes.

Diza crônicaqueoCenimarnãogostouda criaçãodeumanova sigla,passando a municiar o delegado Fleury, que também continuou muitoatuante,diretamentecominformaçõesparacapturasdeopositores.Fleuryganhou todos os pontos com os mandatários do regime ao emboscar ematar,comsuaequipe,CarlosMarighella,emnovembrode1969.

Conforme as palavras do general FiuzadeCastro, criador do CIE, oDOIera o braço armadodoCodi.Os Codi estavam “subordinados ao chefe doestado-maior do escalão correspondente” e visavam articular todos osquadroseagênciasencarregadosdarepressãoemumadeterminadaárea.OsDOIeramdestacamentosdecombate,capturaeinterrogatóriomilitar.

A repressão à base de tortura superou qualquer limite jurídico ouhumanitário, ferindomesmoaéticamilitar,quepregao tratamentodignodos prisioneiros. Para driblar o precário controle dos comandantes oumesmoagirsemprestarcontas,aindaqueformalmente,aosistemao icialderepressão,muitasequipesdetorturatinhamcentrosclandestinos.

Se, num primeiromomento, o regime fazia prisioneiros entre aquelesenvolvidosna lutaarmadaou forjava incidentese fugaspara justi icarasmortes sob tortura, a partir de 1971, incrementou-se outra solução: odesaparecimento. Para o sistema repressivo, essa solução tinha avantagem de desobrigar o governo e as autoridades como um todo dequalquer informação o icial sobre o militante desaparecido. O icialmente,nem preso nem morto. Logo, o sistema repressivo, parte estrutural do

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regime, elaborou uma so isticada técnica de desaparecimento, cujoprimeiro momento era o desaparecimento ísico do corpo, seja porincineração,esquartejamento,sepultamentocomoanônimooucomnomestrocados. Mas, para além desta atrocidade, organizava-se um aparato decontrainformação para despistar familiares, alimentando-os com pistasfalsasefazendo-osperder-senoslabirintosburocráticosdosistema.

Comosenãobastasseoaparatoilegalesemiclandestinoderepressão,oregime instaurounovas leis, através sobretudodosAtos Institucionais 13(Banimento)e14 (PenadeMorte).EstesAtos,maisdoqueoAI-5, foramrespostas diretas à guerrilha, em reação ao sequestro do embaixadoramericano.AEmendaConstitucionalnº1,em1969,incorporouoprincípiode defesa do Estado com base na Doutrina de Segurança Nacional. AreformulaçãodaLeideSegurançaNacionalemsetembrode1969tipi icounovos crimes e criou penas mais duras. Em 1970 havia cerca de 500presospolíticos,56%estudantes.

Paralelamente a esta institucionalização da repressão policial comoprincípio de Estado, o sistema operativo de repressão tornava-se maisautônomo, realizando prisões e mortes clandestinas. O fato de ter maisautonomia não signi icava propriamente um descontrole do sistemarepressivo. Em nenhum momento do regime a repressão estevecompletamente sem controle da cúpula militar. O sistema DOI-Codi, emgrande parte, permitiu esse controle militar e burocrático da repressão.Mas semdúvida, para um regimeque nunca abriumãode controlar suatransição ao governo civil, era preciso retomar as rédeas de um sistemaqueestavanolimitedaautonomia.

Em 1972, o governo teve que enfrentar a “crise dos desaparecidos”,quando o desaparecimento de militantes passou a ser amplamentedivulgadonoexteriorepassouamobilizardemaneiramaissistemáticaasfamíliasenvolvidas.Comaesquerdaarmadadesarticulada,acomunidade

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de segurança logo buscaria outros inimigos. Iniciava-se, assim, a ofensivacontra oPCB, preparada em junho de 1974 e aprofundada a partir dejaneiro 1975, quando o Partidão foi considerado o “culpado” pelasurpreendente derrota eleitoral do partido do governo nas eleiçõeslegislativasdenovembro.Masostemposeramoutros,earepressãoàbasede tortura teria um custo maior. Antes disso, a morte de AlexandreVanucchi Leme, estudante daUSP, e a reaçãodomovimentoestudantil, dasociedade civil e da Igreja Católicamostravamque a tampadapanela depressãoestavasendoforçada.

Emdeterminadomomento do ilmeBatalhadeArgel (Gillo Pontecorvo,1965), clássico do cinema político de esquerda, o coronel francêsencarregado de combater os nacionalistas argelinos que queriam suaindependência é questionado em uma entrevista coletiva sobre o uso detorturas, inadmissíveis para um país que se considerava berço dacivilização europeia. O coronel responde aos jornalistas: “Se todos aquiquerem que a Argélia continue francesa, aceitem as consequênciasmorais”.

Esta respostanos faz pensar sobre o usoda tortura emoperações decontrainsurgência, aliás sistematizada exatamente pelos militaresfranceses que combateram, sem sucesso, diga-se, a guerrilha argelina. Éfácil explicar a tortura pelo descontrole do aparato policial-militar darepressãooupelaautonomiadoporãoemregimesautoritários.Costuma-seexplicara torturaatépeloempregode indivíduossádicosepsicopatasnarepressão,quecometeriamexcessos,sobretudonoscasosmaisatrozesde violência.Mas nenhuma destas explicações dá conta do fato de que atorturaéumsistema.Comosistema,nãoéo torturadorque faza tortura,mas exatamente o contrário. Sem o sistema de tortura, organizado,burocratizadoeabrigadonoaparelhocivilemilitardoEstado,oindivíduotorturador é apenas um sádico errante à procura de vítimas. Dentro do

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sistema,eleéumfuncionáriopúblicopadrão.Obviamente,atorturanunca

foi assumida pelo alto escalão186 militar que comandava o regime comoumapolíticadeEstado.

Aqui não se trata apenasde umpartipris ideológico. Qualquer Estadoquandoatacadopelainsurgênciatendeareagir,inclusiveaplicandomeiosmilitares. Tampouco trata-se de confundir a tortura com “excessos deenergia” policial, como gostam de dizer as autoridades, ou mesmo commatança de combatentes em situação de con lito. Portanto, nem os

argumentosda“guerrasuja”,emsimuitofrágeis,justificamatortura.187

A tortura é um sistema, integrado ao sistema geral de repressãomontadopeloregimemilitarbrasileiro,quecombinousuasfacetasilegaiselegais. Os procedimentos da repressão brasileira se pautavam pelacombinação de repressão militar (interrogatórios à base de tortura ouexecuçõesdentroda lógicade “não fazerprisioneiros”) e rituais jurídicos

paraimputarculpa,dentrodosmarcosdaLeideSegurançaNacional.188

Quando ummilitante “caía”, preso em operações policiais, ele não eracolocado imediatamente sob tutela da autoridade judicial. Via de regra,estas operações eram insidiosas, emboscadas que pareciam maissequestros à luz do dia. Não havia mandado de busca ou de prisão.Tratava-se de uma operação militar travestida de operação policial.Normalmente,aequipequecapturavaomilitantenãoeraamesmaqueointerrogava. Tratava-se de equipes diferentes, porém coordenadas. Oschefesdosinterrogadoreseramoficiaissuperiores(majores,porexemplo),enquantooschefesdoscaptorespoderiamserumcapitãoouumtenente.

Osinterrogatórioserammonitoradosegravados.189

As regras de exceção do regime permitiam a prisão temporária portrintadias, sendoquepordezdias opreso icava incomunicável.Mas, na

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prática, a repressão tinha grande autonomia e liberdade de ação. Eranesse período que o sistemaDOI-Codi atuava na forma de interrogatóriosparaextrairinformação.Haviaatéumasenhaparaqueagentesin iltrados

nãofossemtorturadosporengano.190

Se sobrevivesse, o preso era entregue à autoridade policial paraaberturadeinquérito,aoqueseseguiaaaberturadeprocessopelajustiçamilitar,postoqueoscrimesdesubversãoestavamsobsuaalçada,enãodajustiçacivil.

Masnemsempreesteritual secumpria.Houve,emalgummomento,ain lexão na direção do extermínio e desaparecimento, que na práticaimplica maior autonomia das equipes de captura e interrogatório, oumesmo a mescla entre as duas. Em que momento isso teria acontecido?Seriaumachancela,oumesmoumaordemsuperior,vindadoscomandose

da cúpula política do regime?191 Seria a tentativa de maior controleburocráticodarepressãoporpartedocomando,comosealegaserocasodoI Exército sobo comandodeSylvioFrota, queensejaramaindamais amontagem de um matadouro clandestino de opositores, como a Casa da

Morte em Petrópolis?192 Seria uma contraestratégia para desestimular osequestro de diplomatas libertados em troca de prisioneiros ou a ida deex-presospolíticosparaoexterior,ondefaziamverdadeirosestragosparaaimagemdogovernobrasileiro?Seriaaautonomiadoporão?

Comoatéagoramuitopoucosesabesobreofuncionamentoeacadeiaefetivadecomandodestesistemarepressivocujoepicentroeraatorturae

odesaparecimento,nãopodemosiralémdasperguntas.193

Os saudosos do regime militar gostam de dizer que a repressão no

Brasil foi branda e restrita, perto de outros regimes similares. 194 Emoutras palavras, matou e prendeu pouco, o que para alguns nostálgicos

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pode ser até motivo de arrependimento. Mas além de o argumentoquantitativonãodiminuiro caráterdaviolência edas tragédiashumanasproduzidas sobo signoda tortura, o fato équeomartelodepilão estavaativo e poderia ter feito quantas vítimas fossem necessárias. Os homensestavam bem-dispostos para continuar seu trabalho, como atesta a ondarepressiva pós-guerrilha. Mas o sistema foi enquadrado politicamente,quando foi preciso, sem obviamente nenhum tipo de punição aos

“excessos”.Nomáximo,trocacompulsóriadecomandosmilitares.195

A cúpula mais consequente do regime militar sabia que este sistemaerainsustentávelalongoprazo.Qualquerregime,mesmoautoritário,parater e icácia política não poderia se ancorar em um sistema meramentepolicial. A doutrina não expressa de um “autoritarismo institucional” queparece ter vigorado durante o regime militar brasileiro pressupunha atutela do sistema político e da sociedade civil por meios institucionais,utilizando a repressão política diretamente feita pelos serviços desegurança de maneira seletiva, combinando legislação autoritária erepressão policial “clássica” no controle de distúrbios sociais. A opçãopolicialemmoldessemiclandestinoseilegaisatingiuseuápicenocombateà guerrilha, mas começou a ser desmontado a partir de 1976, pois seucusto político era grande para o projeto de “normalização política” einstitucionalizaçãodo“modelopolítico”.

Autilizaçãodequadrospoliciaiscivis,acomeçarpelodelegadoFleury,envolvidocomoesquadrãodamortenamiradajustiçapaulistadaépoca,eraoutroproblema.Oregimeatépoderiaprotegê-loporumtempo,comodemonstra a alteração do Código de Processo Penal para impedir suaprisãoemnovembrode1973.Maseleeraumquadrovulnerável,atépeloseuenvolvimentocomoesquadrãodamorte.

Mesmo os grupos civis liberais que aplaudiam a dureza em relação àluta armada não podiam mais fazer vistas grossas ao funcionamento do

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martelodepilãodarepressão.Que,aliás,poderiaatingirqualquercidadão.Poderíamos dizer, tal como o coronel francês do ilme, “[...] é precisoaceitarasconsequênciasmorais”.

Ao im e ao cabo, ica uma pergunta: para que se torturava? 196 Aresposta,àprimeiravista,pareceóbviaepragmática:porqueéamaneiramaisrápidaeeficazparaextrairinformaçõesdoinimigoevenceraguerra.Outros sugerem que o inimigo, no caso a guerrilha, era invisível e sópoderia ser desarticulado com procedimentos de investigação policial, oquenoBrasileemboapartedomundosabemosoquesigni ica.Paraalémdessas respostas dadas pelos que torturaram ou pelos que os apoiaram,podemospensaremoutraspossibilidades.

A tortura não é apenas uma técnica de extrair informações, mastambém uma forma de destruir a subjetividade do inimigo, reduzir suamoral,humilhá-lo.Nocasodoguerrilheirodeesquerda,amoralera tudo.Combatia-se por uma crença ideológica, combatia-se por um ideal desociedade. Quando uma pessoa se torna um guerrilheiro, não há nemvitórianemcompensaçõesmateriaisnocurtoemédioprazo.Elarompeoslaços familiares em nome da luta, rompe com as possibilidades de umtrabalho e de um futuro confortável, ainda mais quando se é estudantevindo de uma elite. A prisão, o exílio, a derrota pontual não eramsu icientes para abalar a moral, quando muito para provocar umaautocrítica e mudança de estratégia de luta. A morte heroica era umaperspectivaquenãoassustavaa lordajuventudequefoiàluta.Atorturainvadeesta subjetividade tãoplenadecertezasede superioridademoralparainstaurarador ísicaextremae,apartirdela,adesagregaçãomental,o colapso do sujeito, o trauma do indizível. É claro, muitos militantespassaram pela tortura e, em princípio, não submergiram como sujeitosnem como militantes. Isso aponta para uma certa ine icácia da tortura.Expliquemosmelhor.

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Historicamente falando, a tortura em si nunca ganhou guerras ouderrotouguerrilhas.Osexércitos invasorestorturarammuitonaArgéliaeno Vietnã, e perderam a guerra. A polícia cubana de Fulgencio Batistatorturou muito, e o ditador foi derrubado. Os exércitos colonialistastorturaramosnacionalistasinsurgentesnaÁsiaenaÁfrica,esuascolôniasse tornaram independentes. O nazismo torturou os resistentes e foiderrotado em todas as frentes de ocupação. No caso das ditaduras sul-americanas,o relativo triunfodos regimesmilitares talvezsedevamaisàsuarededeapoiocivildoqueaorecursodatorturaparacalaraoposiçãopací icaouarmada.NoChile,atorturanãoimpediuosurgimentodeaçõesarmadasduranteaditaduranemarearticulaçãodoprotestodemassa.AArgentina é um caso um pouco diferente, pois a prática de tortura foicombinada com uma política de extermínio em massa dos quadros deesquerda,sobosolhosdeumapartedasociedadecúmplice.NoBrasil,nãofoi a tortura que derrotou a guerrilha, mas sua reduzida base social,limitada aos quadros intelectualizados e radicalizados da juventude declasse média, com algumas adesões de camponeses e operários. Fossemestesaefetivabasesocialdaguerrilha,talvezatorturaapenasalimentasseumaespiraldeviolênciaevingançassemfim.

Entretanto, havia um ponto em que a tortura se mostrou e icaz. Aconstrução do “círculo domedo”, que tende a estancar novas adesões, àbasede entusiasmo, à causa revolucionária.Ao longodos anos1970, istoparece ter acontecido com parcelas importantes da juventude e dasociedade brasileira como um todo. O recado dos torturadores era paraquem estava no campo de in luência ou sentia alguma simpatia pelaguerrilha. Seu destino será o mesmo: prisão, tortura, morte edesaparecimento.Este fator, combinadoaomomento emque a juventudeuniversitária tinhaumaamplagamadeoportunidadespro issionais,podeter desestimulado adesões massivas à oposição. Entretanto, mesmo esseargumento é duvidoso, pois o movimento estudantil foi um dos atores

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políticosdaoposiçãomaisativos,mesmoduranteosanosdechumbo.

A invençãodo “desaparecidopolítico”alimentavaaindamaiso traumacoletivo criado pela tortura. Sem corpo, não há superação do luto e dotrauma, familiar ou social. Sem sepultura, o ciclo da memória ica

incompleto.197 A eterna ausência-presença do desaparecido foi uma dasinvençõesmaisperversasdosistemaderepressão,mas,aomesmotempo,politizou as famílias que lutam por informação sobre seus parentes. Oargumentoda“guerrasuja”parajusti icarodesaparecimentoforçadonãosatisfaz, pois, mesmo ao im das guerras, os prisioneiros e os quetombaramsãodevolvidosàssuasfamílias.

Nos últimos anos, como parte do revisionismo geral sobre o período,tem surgido a tese de que a violência ilegal do regime e do sistema detorturaeraacontrafacedaviolênciaguerrilheira.Éanossaversãolocalda“teoria dos dois demônios”, que explica a violência política como umaespiral na qual os dois lados se equivalem nas suas opções ilegítimas deação,constrangendoasociedade“inocente”portodososladosideológicos.Dematrizliberal-conservadora,essateoriapodeatéacertaraoexigirumare lexão sobre o lugar da violência na política, mas erra ao permitir ajusti icativa do terror de Estado como política de contenção da oposição,armada ou desarmada. No limite, é semelhante ao argumento de que atorturaéummalmenordiantedomalmaior,arevoluçãosocialista,como

gostadebrandiraextrema-direitacivilemilitar. 198Oargumentosebaseianonúmerodeagentesecivismortosduranteoperaçõesdaguerrilha,que

eracrescenteatéaadoçãodosnovosmétodosderepressão.199

OmecanismodeviolênciapolíticacriadopeloEstadonãoacabariacoma derrota da guerrilha. Se, com aabertura, a política deixou de ser umcrimepunívelcomamorte(quandomuito,comaprisão),amilitarizaçãodapolícia e da segurança pública teria graves consequências para a

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sociedadecomoumtodo.

Atéhoje,muitosanalistasdefendema tesedequearepressãopolíticaatingiuapenasalgunsextratosintelectualizadosdaclassemédia,simpáticaàs ideias de esquerda ou envolvidas com a luta armada. A diminutaparticipaçãooperárianaguerrilhaseriaaprovadequeasociedadefaltouao encontro convocado pelas esquerda para fazer derrubar o regime e

fazer a revolução.200 Ou seja, em termos quantitativos, a repressão teriasidoinsigni icante,inclusivesecomparadaaregimessimilaresdaAméricadoSul,compoucoimpactonamemóriasocial.

Masoaparatorepressivovaimuitoalémdosnúmerosoudosestreitoscírculosengajados.Seaviolênciapolicial,queincluíaatortura,informouosmétodos de combate do regime, a militarização da segurança públicasocializou a lógica e a estrutura da repressão política para todo o tecidosocial. A tradicional violência policial utilizada como forma de controlesocialdosmaispobresfoipotencializada.

O ciclo de repressão política nos anos 1960 ensejou um movimentocircular já percebido por especialistas que solidi icou a tradição de

violênciapolicialpré-golpeàsnovaspráticasrepressivaspós-AI-5. 201Paracombater a guerrilha e suas organizações invisíveis e clandestinas, osistema repressivo incorporou métodos policiais, dentro das teorias da

guerrarevolucionária.202Enão forammétodoscivilizadosde investigaçãosherlockiana. Os quadros recrutados, a começar pelo delegado Fleury,izeram escola nos esquadrões da morte, bandos tão imorais e violentosque a própria cúpula do regime permitiu que a justiça os combatesse,apesar de umaparte da sociedade considerá-los justiceiros. O esquadrãodamorte,entretanto,estavamaispreocupadoemvingarpoliciaismortosevender proteção a bandidos que pudessem pagar, sem falar naparticipação nos lucros do trá ico de drogas. Apesar dessa evidência, a

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extrema-direita soube capitalizar a ação dos esquadrões da morte parajusti icarosseusvalores.Eraoprimeirocapítulodabem-sucedidalutadaextrema-direitacontraosdireitoshumanosnoBrasil,antesmesmodeessaexpressãosedisseminar.

Além disso, ocorreu outro processo paralelo: a militarização dasegurançapública,organizadaparaocombateàguerrilha.Asubordinaçãodas polícias militares estaduais ao comando do Exército, sob a tutela daInspetoria Geral das Polícias Militares, faz parte deste processo. Adicotomia entre a Polícia Civil, que até 1964 era a coordenadora dopoliciamento urbano, e a recém-criada Polícia Militar, aumentaria adisfuncionalidade da segurança pública. Em um momento de amplocrescimento dasmetrópoles, com grandemigração interna e constituiçãode núcleos de povoamento informais, sem estrutura ou equipamentospúblicos,avelhaestruturadesegurançapúblicaserevelavacadavezmaisine icazparacoibiraviolênciaentreoscidadãos,sobretudoentreosmaispobres.Emoutraspalavras,mergulhadaemváriasatribuiçõesqueiamdainvestigação de homicídios ao controle da vadiagem, a polícia pouco

comparecianasperiferias.203 O quadromudaria nos anos 1970. A partirde meados da década, já com o criminoso comum, ativo ou potencial,transformado em novo inimigo das forças de segurança, a lógica dopatrulhamento militar entrará no cotidiano das periferias na forma de

expedições preventivas ou punitivas.204 Esse método de policiamento,combinado à disseminação da violência entre vizinhos, aumento daspráticas criminais (roubo, trá ico)eausênciade justiça institucional comoforma de mediação dos con litos, será o coquetel que fará explodir ocírculoviciosodaviolência.

Na prática, a repressão às guerrilhas de esquerda criou uma novaculturapolicial,baseadanaautonomiaenaimpunidadedosagentesdiantede lagrantes violações das leis, como o extermínio. A tortura já era uma

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prática policial antiga, mas foi aperfeiçoada no contexto da repressãopolítica.Nema Justiça, por displicência ou lentidão, nem a sociedade, por

impotência ou conivência, controlaram o monstro em sua infância. 205 Aisso, somou-se o preconceito social e racial explícito ou latente, quetoleravaviolêncianocontrolesocialdospobresemarginais.

O desmantelamento do núcleo inicial do esquadrão damorte paulista,no começo dos anos 1970, não signi icou o im da prática de homicídiocomocontrolesocialdocrimepotencialoucomovingançapolicialdireta.Atecnologiajáhaviasedisseminado,potencializadaagorapelalógicamilitardecombateaocrimepersonificadanasPMesuastropasdeelite:obandidoé inimigo,atuaemumterritórioquedeveser identi icado,ocupado táticaouestrategicamente,parapermitirocercoeoaniquilamentodoindivíduocriminoso ou de potenciais criminosos identi icados como “suspeitos”. Asimulação de “tiroteios seguidos de morte”, amplamente utilizada comojusti icativa para o extermínio de guerrilheiros, seria utilizadano caso do

crimecomum.206Oqueseriaumrecursoextremoepontualdecombateaocrimesetornouaregra.

Em um contexto em que não havia direitos civis e no qual a explosãodemográ icadascidadescriavastos“territórios”deatuaçãodocrime,essapolíticaétrágica.Alémdenãoresolveroproblemadacriminalidade,como

os números de décadas o provam,207 a “moral do extermínio” tende nolongoprazoadesgastar a imagemdapolícia, quedeixade ser temidaourespeitada, para ser odiada pelas suas vítimas potenciais, ou seja, aspopulações pobres e periféricas. Com a renovada capacidade dearmamento e organização do crime, em parte aprendida no contato commilitantes das organizações armadas nas prisões, o confronto semmediações entre policiais e bandidos se transformou na “guerraparticular”cujoápicefoioconfrontoentrea PMeaorganizaçãocriminosaPrimeiroComandodaCapital(PCC)em2006,queparalisouamaiorcidade

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do país. Omomento seminal dessas práticas se localiza entre o inal dosanos 1960 emeados dos anos 1970, não por acaso. Foi alimentado pelasensação de onipotência e autonomia do agente policial, apoiado nodiscurso das autoridades que disseminou a ideia de que “bandido bomé

bandido morto”.208 A população, tomada pelo sentimento de medo erevoltadiantedaviolência real ou simbólicados criminosos eda lentidãoda justiçabrasileira, sentia-sevingadaquandoumbandidoeramorto.Devingança emvingança, a segurança pública se deteriorou, inclusive sob aguarda do regime democrático posterior a 1988, ano da “ConstituiçãoCidadã”.

A batalha contra os direitos humanos, encampada por radialistasligados ao mundo policial entre os anos 1970 e 1980, alimentou-se dosvaloresdaextrema-direita,acuadaemtodasasoutrasfrentespolíticas.Aocriticar os direitos, voluntária ou involuntariamente, legitima-se oextermínio dos marginais, desde que pobres. Por desinformação,preconceito ou desespero do cidadão comum, a cultura antidireitoshumanosconseguiuapoioentreas classesmédiasbaixasdasperiferiaseentrepequenoscomerciantes,ossetoresmaisexpostosàsaçõesdocrime.Ogapentreosvaloresdaselites, informadaspelaculturadosdireitos,earealidadedoeleitorpadrão,poucosensívelaestetema,podeestarnaraizda timidez das políticas públicas que tentam construir uma política desegurançaconciliadacomumapolíticadedireitos.

O isolamento da cultura de direitos nos setores de elite e da classemédia de formação superior, ao lado de outros arranjos político-institucionaisquemarcaramatransiçãonegociadacomosmilitares,comoaLeideAnistiade1979,ajudouaconstruirumaculturadeimpunidade.Oresultadoéqueostorturadoreseseussuperioresescaparamdajustiçadetransição, processo fundamental para estabelecer bases vigorosas àsnovas democracias políticas que se seguem ao im dos regimes

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autoritários.209 O trauma e a herança da repressão, portanto, ainda querestritoquantitativamente,foimaisamploedeterminantedoquesepensaparaahistóriarecentedoBrasil.

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Nuncafomostãofelizes:omilagre

econômicoeseuslimites

“Nunca fomos tão felizes”, exclamava o slogan o icial difundido pelaTVnos anos 1970, em pleno “milagre econômico”, que pode ter uma leituraambígua. Como exclamação, traduz uma sensação de felicidade coletivainédita.Poroutrolado,seditaemtomirônico,colocaemdúvidaoprópriosentidopropagandísticodafrase.Aambiguidadetraduzinvoluntariamenteas contradições da economia brasileira, esfera em que o regime bradouseusmaioresfeitos.

Apesardodesenvolvimentoinegáveledaexpansãocapitalista,amaiorparte da sociedade brasileira não pôde desfrutar os resultadosmateriaisdeste processo de maneira sustentável e equânime. O fato é que aeconomia ainda é um tema sobre o qual tanto os defensores quanto oscríticosdo regimegostamdemedir seus argumentos. Paraosnostálgicosdaditadura,ograndeserviçodosmilitaresaoBrasilfoiodesenvolvimentoeconômico. Era comum ouvir discursos laudatórios das autoridades,dizendoqueem1964oBrasiltinhao64ºPIBmundial,eemmenosdedezanosjáeraadécimaeconomiadoplaneta.Oscríticosdeprimeirahorada

política econômica do regime210 denunciavam que este saltoimpressionante, na verdade, tinha sido feito à custa de arrocho salarial,reforço dos laços de dependência estrutural do capital internacional e

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brutalconcentraçãoderenda,atéparaospadrõescapitalistas.Oproblemaéquenosdezanosqueseseguiramao imdoregimemilitarosgovernoscivisnãoapenasnão reverteramestequadro comoaprofundaramo caoseconômico, gerando uma sensação de nostalgia do “milagre econômico”que até hoje é um argumento utilizado para defender as realizações daditadura.

Há um consenso neste debate. O regime militar foi um momento dea irmação do grande capital no Brasil, incrementando um processoestrutural desencadeado antes do golpe, mediante políticas econômicasespecí icas e facilitadas pela ausência de democracia, o que dava umagrandeautonomiaburocráticaparaostecnocratasqueocupavamopoder.Mesmonão sendomuito rigorosodividir ahistóriaeconômicadeumpaíspelamesmaperiodizaçãodoseuregimepolítico,éinegávelqueaspolíticaseconômicas do regime impactaram a economia e, por derivação, asociedadebrasileiraparaobemeparaomal.

Quandovistasemumaperspectivahistóricamais longa,as realizaçõeseconômicas do regime, em parte, se diluem. Entre 1948 e 1963, o

crescimentomédiodoPIBfoide6,3%.Entre1964e1985,foide6,7%.211Aexuberância de crescimento do “milagre” dos governos Costa e Silva eMédici (1968-1973) e do crescimento induzido pela política do governoGeisel(1974-1979)foi,emgrandeparte,anuladapelapolíticarecessivadoprimeiro governo militar e pela profunda crise econômica pós-1980.Portanto, no jogo dos índices de crescimento entre a democracia e aditadura,quasedáempate.

Mas entre a democracia de 1946 e a ditadura de 1964 há tambémmuitasconexõesnoplanoeconômico.Osgovernosmilitaressópermitiramqueomodelodedesenvolvimento implantadoaindanogoverno Juscelino

Kubitschek, em 1956, com seu famoso Plano de Metas,212 luísse sem

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maiores constrangimentos institucionais ou questionamentos dos grupossociais pouco bene iciados. Em ambos os momentos históricos, antes edepois de 1964, o principal bene iciário do desenvolvimento foi o grandecapital nacional e, sobretudo, internacional. A diferença é que a políticaeconômicaimplementadaapósogolpeveioprovarqueentreosdoisramosdo grande capital havia mais complementaridades do que con litos, aocontráriodoqueaesquerdanacionalistapensava.

Juscelino Kubitschek, apesar de ser um liberal-democrata, driblavahabilmente a lentidão das discussões políticas do Congresso Nacional,gerindo seu plano desenvolvimentista através dos grupos executivosmovidos pela lógica da tecnocracia de resultados. Esses grupos eramconselhosquereuniamgoverno,técnicoseempresáriosnaimplementaçãodemedidas técnicas e políticas de estímulo à industrialização. Em paísessubdesenvolvidos,quasenuncaotempodapolíticacoincidiacomotempodaeconomia.Aprimeira,aomenosemsuafacetademocrática,sempresaíaperdendo. Os imperativos econômicos acabavam fazendo com que as“classes produtoras”, como os empresários gostavam de se chamar,acenassem para soluções golpistas e autoritárias a im de controlar asdemandas distributivas e acelerar o desenvolvimento capitalista. O Brasil

viveuesseprocessoentreosanos1950e1960.213

Nenhum historiador sério, mesmo mais à direita, questiona que odesenvolvimentismo sem democracia imposto pela ditadura militar teveumalto custo social.O saláriomínimo teveumaperda realde25%entre1964e1966e15%entre1967e1973.Amortalidadeinfantilnãocaiunoritmoesperadoparaumapotência econômica emascensão (131/100milem1965,120/100milem1970,e113/100milem1975). Já foiditoquenão se faz omelete sem quebrar os ovos. Neste caso, os ovos eram ostrabalhadoresmaispobresedesquali icadosquegarantiamamãodeobrabarata no campo e na cidade. Entretanto, até o inal dos anos 1970, a

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ampla oferta de emprego e a in lação alta,mas relativamente controlada,

atenuavamosefeitosdaconcentraçãoderenda.214

Se a política econômica do regimemilitar se inscreve no quadro geralda consolidação do capitalismo no Brasil, qual seria sua especi icidade?Quais seriam suas efetivas virtudes e defeitos, posto que o capitalismo,como sabemos, tem seu próprio movimento histórico e estrutural, paraalémdavontadedegovernos,sobretudoperiféricosnosistema?Poroutrolado, se o regime foi tão amigo dos capitalistas brasileiros e estrangeiros,porqueapartirdasegundametadedos1970aspolíticaseconômicasdoregimecomeçaramaserquestionadasporgrandesempresários?

Oregimemilitarbrasileiropassou,aomenos,portrêsfasesdistintasnapolíticaeconômica.Emumprimeiromomento,umapolíticaduradeajusteiscalemonetário,tãoagostodaortodoxialiberal.Menosdinheiro,menoscrédito,controlesalarial,menosgastosemaisimpostos.Tudoisso, junto,etemosapolíticaeconômicadogovernoCasteloBranco(1964-1967).

A este momento recessivo, seguiu-se a exuberância do “milagreeconômico”ou“milagrebrasileiro”,amplamentecapitalizadopelogovernoMédici, dourando os anos de chumbo do regime. Entre 1969 e 1973, oBrasil cresceu auma taxamédiade11%ao ano, chegando a quase14%em 1973. Mas a conjuntura de crise internacional, após o aumento depreçosdopetróleoquaseno inaldesteano, fezogoverno,maisdoqueasociedade,despertardailhadefantasiacapitalistapropiciadapelomilagre.A crise revelava a fragilidade inanceira e a dependência brasileira dosinsumosbásicosdaeconomia,comoopetróleo.

Areversãodeexpectativas,inibindoaondaconsumistadaclassemédiaerestringindoocréditofartoqueseincrementavacomomilagre,veiocomo governo Geisel. Na forma de uma plani icação normativa da economia,reforço das estatais produtivas (ligadas à siderurgia, energia e

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petroquímica) e investimento em bens de capital, a Era Geisel acabou sedesviando de algumas diretrizes domilagre, como o foco na indústria debensdeconsumoduráveis.Naverdade,apolíticaeconômicapropostaporGeisel visava evitar gargalos energéticos e de bens intermediáriosfundamentaisparasemanteraproduçãodebensdeconsumo.Poroutrolado, o governo tentava reforçar o mercado interno, o protecionismosetorial e a autossu iciência energética da economia, à base de amplacaptaçãoderecursosnoexteriorsobaformadeendividamentoestatal.

Abolhadadívidaexternabrasileiraexplodiria como segundochoque

dopetróleoem1979eacrise inanceira internacionalde1982.215Assim,osanosfinaisdoregimeforammarcadospelarecessão,pelodesempregoepela in lação altíssima. Os efeitos destes processos econômicos foramatenuados no plano social por mecanismos como a indexação de preços,gatilhosde reajuste salarial, alta rotatividadenomercado inanceiro (quepermitia aospoupadorese investidores evitaremperdas), que seporumlado evitavam o colapso total da economia e a anomia social que se lheseguiria,poroutroimpediamaefetivasuperaçãodacrise.

À primeira vista, esses quatro momentos econômicos do regime nãotêm nada a ver um com o outro. Parecem expressões de políticaseconômicas errantes e desencontradas, revelando dissensos no campoeconômico entre os própriosmilitares.Mas umexamemais detalhadodoprocesso econômico patrocinado nos vinte anos da ditadura revela asconexõesdosváriosmomentoseconômicosdo regime.Emsuma, todasaspolíticas econômicas do regime convergiram para o reforço dos laços doBrasil com o sistema capitalista mundial, a luta pela industrialização aqualquer preço e o reforço do capitalismo monopolista. Isso não implicaque a eventual conexão orgânica das várias políticas – o liberalismorecessivo de Castelo, a expansão do consumo privado no Milagre, onacionalismo estatizante de Geisel – tenha sido percebida como tal pela

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sociedade civil. Para empresários, consumidores de classe média,trabalhadores em geral, a maior ou menor adesão política ao regimemilitarestevesempreligadaàpercepçãodosefeitosdapolíticaeconômicasobre o cotidiano dos negócios, do consumo e da sobrevivência. Asociedade navegou ao sabor dos ventos econômicos ou se viu refém dodesenvolvimento capitalista que ampliou as estruturas de oportunidadespro issionais para os segmentos de formação superior, concentrados naclassemédia,mesmoparaaquelesquenãosimpatizavamcomoregime.

Nocasodasditaduras,outraquestãopoderiaserpensada.Seráqueascriseseconômicasfazemaflorarcrisesdeconsciência?

Oprimeirogovernomilitar,comandadopelogeneralCasteloBranco,foimarcado por uma política de controle da in lação e reorganizaçãoinstitucional do ambiente macroeconômico no Brasil. A in lação queajudara a derrubar o governo João Goulart foi vencida pelo controlesalarialepela inibiçãodaatividadeeconômicaquese re letiunospreços.Mas aumentou a decepção e a impopularidade do governo junto à classemédia e a frações da burguesia. Para ambos, o golpe de Estado afastarianão apenas o fantasma do comunismo, mas também seria uma porta deacesso imediatoà felicidadeprometidapelocapitalismo.Otempopassava,eogovernoCastelonãorevertiaoquadrorecessivo.Asprioridadeseramestruturais e,para removerosentravesdodesenvolvimento capitalista, oprimeirogovernodoregimemilitarnãopoupoumedidas.Osresponsáveispela política econômica, Mário Henrique Simonsen e Roberto Campos,justi icaram as reformas implementadas no período 1964-1967 que

tinham como objetivo remover cinco “falhas institucionais”:216 a) a icçãodamoeda estável na legislação econômica; b) a desordem tributária; c) apropensãoaodé icitorçamentário;d)as lacunasdosistema inanceiro;e)osfocosdeatritocriadospelalegislaçãotrabalhista.

Nessa linha de ação, o novo governo tomou várias medidas. As

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prioridades eram a renegociação da dívida externa, de US$ 3,8 bilhões,basicamente nasmãos de credores privados, e com vencimentos a curtoprazo. Atendendo aos padrões dos credores, o Brasil conseguiu novosrecursos doFMI no começo de 1965, aliviando a situação das contasexternas.ALeideRemessadeLucrosde1962,umadaspedrasdetoqueda esquerda, foi reformada, tornando-se menos onerosa ao capitalestrangeiro.Anegociaçãodadívida externa comaval dosEstadosUnidosdeu novo fôlego às tomadas de dinheiro estrangeiro. Essas medidastornaram o “ambiente calmo” para os negócios, chanceladas peloliberalismo do ministro Roberto Campos, conhecido pela esquerda comoBob Fields pelas suas relações atávicas com os interesses norte-americanos. A abertura comercial para o exterior só veio incrementaraindamais esta “calmaria”, com váriasmedidas que visavam estimular aexportaçãoviamecanismoderenúnciaeisençãofiscal.Osmecanismosquenormatizavam o crédito direto ao consumidor foram simpli icados e omercadodeaçõesfoiestimulado,comacriaçãodebancosdeinvestimento.Paracontrolara in lação,ataxade jurosfoiaumentadapara36%aoano,diminuindo somente em 1967, e foi criada uma nova moeda, o Cruzeiro

Novo.217

No plano trabalhista, o governo Castelo foi particularmenteintervencionista. Desenvolveu-se uma nova fórmula para reajustessalariais, baseadosna incorporaçãoparcial da in laçãopassada, o quenaprática signi ica um arrocho salarial. Ainda no campo trabalhista, aprevidênciasocial foiuni icada,comosvários institutossetoriaisreunidosnoINPS (InstitutoNacionaldePrevidênciaSocial).UmanovaLeideGreve,promulgada em junho de 1964, reconhecia o direito de greve limitado aquestõessalariais,desdequefosseobjetodevotaçãoemAssembleiaGeralorganizada pelo sindicato o icialmente reconhecido, obedecesse a umcomplicado processo decisório, altamente burocratizado, e esgotasse aspossibilidades de conciliação. Estavam proibidas greves de servidores da

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União, greve por motivos de ordem ideológica e ocupações de locais detrabalhopelosgrevistas.

O Paeg (Plano deAção Econômica doGoverno), lançado em agosto de1964,não tinhapropriamenteumcaráterdeplanejamentoestratégicodaeconomia, mas um conjunto de medidas de intervenção, executadas pordiversosórgãoscolegiadosdogovernonaformadepolíticassetoriais.

Um dos pilares do Paeg era a reestruturação do sistema iscal. Aprimeira medida foi cortar gastos, incluindo no próprio Ato Institucional(posteriormentenaConstituição)artigoqueproibiaoPoderLegislativodeaumentarasdespesasnavotaçãodoorçamentodaUnião.

Aliás, diga-se, não havia propriamente um sistema iscal no Brasil atémeadosdosanos1960.VáriosimpostoscomoIPI,ICMS,IOFeISStiveramseusancestrais na Emenda Constitucional nº 18, de dezembro de 1965. AEmenda foi a base para um verdadeiro e integrado Código TributárioNacional,queatéentãonãoexistia,masdemonstraqueoregimetinhaumbomapetitefiscal,cujostributoscontinuavamaincidirdemaneiradesigualeregressiva.Aliás,duranteademocraciade1946,derrubadapelogolpe,acarga tributáriaoscilavade13%a17%,apresentandoumamédiamenordo que nos tempos da ditadura, embora o sistema fosse caótico, comimpostos pouco funcionais ou que incidiam diretamente sobre asempresas, e não sobre a circulação da riqueza. A carga tributária em

relaçãoaoPIBaumentoupara21%doPIBem1967.218Osimpostosdevidosforamreajustadosconformeoíndicedein laçãopassada,oqueaumentouocaixadogovernoereduziuodéficitfiscalparacercade1%doPIB.

A reforma estrutural do sistema inanceiro também foi uma dasprioridades do Paeg. Sem inanciamento, nenhuma economia cresce,sobretudo economias periféricas do sistema capitalista, sem grandepoupança internaprivada e commuitaspressõesde gastopúblico.Ainda

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em 1964, foi criado o Banco Central, que deveria ser a “autoridademonetária” do Brasil, retirando esta função da Sumoc (Superintendênciade Moeda e Crédito), organizando a política de emissão de moeda e asregras cambiais. Para captar recursos privados para os cofres públicos,criaram-seasORTN(ObrigaçõesReajustáveisdoTesouroNacional).As ORTNforamumrecursoengenhosoeperverso,aomesmotempo,nacaptaçãoderecursospara inanciarodé icitpúblico.Porumlado,evitavamaemissãodemoeda, o que aumentaria a in lação. O governo vendia asORTN, títulosresgatáveis e reajustados conforme a in lação. Por outro, criaram ummecanismodeindexaçãogeraldospreçosdaeconomia,umadasbasesdos

“gatilhos” de reajuste que alimentariam a estag lação219 (in lação alta,constante e de longa duração), e que só seria desmontado com o PlanoReal,em1994.Naquelecontexto,em1964,deramresultado,permitindooinanciamentodemaisde80%dodé icit iscaldaUnião,semnecessidadedefabricarmaisdinheiro.

Pararesolveroproblemacrônicodamoradia,queassombravaaclassemédia, e era particularmente trágico para a classe operária, criou-se oSistema Financeiro da Habitação, integrando o Banco Nacional daHabitação(BNH),aCaixaEconômicaFederalecaixasestaduais.Paragerarrecursos ao sistema habitacional, oFGTS foi criado em 1966, funcionandocomo uma poupança compulsória que incidia sobre o salário dostrabalhadores na ativa. Se, por um lado, onerava a folha de pagamentos,por outro, lexibilizava a relação entre empregadores e empregados,facilitando a demissão em caso de ajustes e sazonalidades da economia,demanda fundamental do patronato. Na ausência de um seguro-desemprego, oFGTS desempenhava um papel parecido, embora omecanismo da “demissão por justa causa” impedisse o acesso dotrabalhadoraosrecursos.

A amplitude e abrangência das reformas econômicas do primeiro

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governomilitarentramemchoquecomseupretensocaráterde“governo-tampão”.ApartirdeleoEstadobrasileiro se reforçava comoumagrandeagência reguladora e normativa das relações socioeconômicas, no planoiscal,monetárioetrabalhista,visandootimizaraexpansãocapitalista.Masestas reformasestruturaispouco impactavamo cotidianodapopulação, anãosernoquetinhamdenegativaserepressivas.

Aconduçãodapolíticaeconômicaéumcampodere lexãoprivilegiadoparapensararelaçãoentremilitaresecivisduranteaditadura,postoquenos últimos anos vem crescendo entre historiadores a tese da “ditadura

civil-militar”.220

Osquadroscivistinhampredominâncianopreenchimentodecargosdeprimeiro escalão na área econômica do governo, nos ministérios, órgãos

colegiados221 e agências executivas.222 Apesar de comandar estataisimportantes oupreencher cargos de comando emmuitos órgãos, o papeldosmilitareseramaisdevetoedeinduçãodasestratégiaspolíticasgerais,incluindoaeconômica,doquedegestãodiretaeintervencionistanaformadeocupaçãodecargosdecomandoecoordenação.

Se tomarmos como sinônimo de “militarização” a presença direta demilitares nos postos burocráticos de alto escalão, à primeira vista pareceque o regime militar foi pouco militarizado no que tange à políticaeconômica, se compararmos com outras áreas do governo. No setor decomunicações, transportes e energia, o grau demilitarização do aparelhode Estado era bem maior. Na área de segurança, era total. Na políticaindustrial ou energética, era decisiva, subordinando-as ao projetoestratégico de “Brasil Grande Potência”, o que sugere que o conceito demilitarizaçãodeEstadonãopode ser tomado em seu aspectomeramenteburocrático e quantitativo. Isso não se contradiz com o reconhecimentoque, ao longo do regime e no interior de um governo especí ico, não

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houvessediversosgrupososquais,emmuitoscasos,entravamemcon litosobreamelhormaneiradeconduziraspolíticasdeEstado.NemmesmooExército,comsuapropaladaunidadeecoesão,comogostavamdedizeroscomandantes,escapavadosconflitospolíticosedisputaspessoaisdepoder.Portanto, militarização não quer dizer nem ocupação total oumajoritáriados postos burocráticos nem ausência de con litos e debates políticos emnomedeumapretensa unidadeda caserna.Militarização, no contexto doregimemilitarbrasileiro,deve ser entendido como tutelamilitar –dentrode alguns princípios de inidos pelaDSN – do sistema político, controlerepressivo do corpo social (em diversos graus e tipos), ocupação doscargos de “poder formal” (a começar pela Presidência da República) ecapacidadedeinduçãoeenquadramentodosmecanismosde“poderreal”,

oqueincluiaburocraciacivildeEstado.223

A ausência de uma ideologia rígida no interior daDSN oudas própriasForças Armadas brasileiras deu ainda mais capacidade ao regime paraincorporarsetorescivis,dialogarcomaselitesempresariaiselidarcomascontradiçõesqueapolíticaensejacotidianamente.

Estearranjodistributivoentrecivisemilitaresnaconduçãodogoverno,com ampla predominância dos civis na burocracia de Estado de altoescalão, não deve ser tomado como prova de um regime civil-militar noqualambosossetores tivessemomesmograude importâncianosistemadecisóriodeEstado.Opoderdevetodosgeneraisquecomandavamopaís,o papel doSNI em avalizar a nomeação de funcionários e assessores deEstadoconformecritériosideológicos,avigilânciamilitarizadaemtodososministérios eo lugar centraldo conceitodedesenvolvimentonaDoutrinade Segurança Nacional são indicadores qualitativos de um regimeefetivamente militar, ainda que organizado em bene ício da plutocraciacivil nacional e multinacional. O papel tutelar da cúpula das ForçasArmadas, a começar pelos presidentes-generais, não deve ser

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subestimado,mesmoquenãoseconfundacomaoperaçãoadministrativarotineiradaspolíticaspúblicasdoregime.

Entretanto,éinegávelque,naáreaeconômica,apresençaburocráticaecorporativa dos civis nos órgãos e cargos de planejamento e decisão émarcante. Entre estes podemos incluir a tecnoburocracia de carreira,intelectuais recrutados no mundo acadêmico para ocupar cargoscomissionados ou de assessoramento ou membros orgânicos do setorempresarialqueocupavamcargosnosdiversosconselhosdeEstado.

O Conselho Monetário Nacional (CMN) era o órgão que, na prática,gerenciava o conjunto das políticas econômicas do governo até 1974,evitando, entretanto, se confundir com uma burocracia plani icadoracentralizada. Com isso, o governo militar, tão duro com os movimentossociais e com o sistema político, não queria ser confundido com umaditadurapravalernoplanoeconômico.A inal,ogolpeforadadoemnomeda“livre-iniciativa”.O CMNeraoespaçodedebates,trocasdeinformações,tomadas de decisão, mesclando gestão política e intermediação de

interesses.224 A partir de seus in luxos, atuavam os ministérios e asagênciasexecutivas,comooBancoCentral,aSuperintendênciaNacionaldeAbastecimento(Sunab),oBancodoBrasil,entreoutros.

Porvoltade1967,oBrasilestaria “preparadoparacrescer”,dopontode vista capitalista, devidamente integrado ao sistema capitalistamundialliberal, que considerava qualquer defesa do mercado interno comoprotecionismo e qualquermedida de nacionalismo econômico, umameradistorção populista (como se nunca tivessem pautado as políticas dospaíses centrais do sistema). Mas o governo Castelo não capitalizou,politicamentefalando,aamplareformaestrutural.Terminouseumandatocomo um presidente que patrocinara o baixo crescimento e não tiveraousadiaparasuperaracrise.

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PercebendoqueapolíticarecessivadogovernoCasteloBrancominavaa relaçãodo regimecomsuasprincipaisbases sociaisdeapoio–a classemédiaeaburguesianacional–,CostaeSilvamudouos rumosdapolíticaeconômica.Paraagradarossetoresnacionalistas,inclusivedoExército,nãoreferendou o acordo com o FMI, o que virtualmente signi icaria manter apolíticarecessivaeortodoxadecontroledain laçãoedascontaspúblicas.Uma das primeiras medidas foi abaixar a taxa de juros para 22%, umaquedarepentinade14pontospercentuais,tornandoocréditomaisbarato.

É certo que parte dos objetivos do Paeg já tinham sido atingidos: ocontrole da in lação, a recuperação iscal e o controle dos aumentossalariais, tidos como principais responsáveis pela in lação. Na lógica doseconomistas ortodoxos que estavam por trás do plano, quanto menosdinheiro no bolso, menos demanda por produtos. Resultado: os preçosindividuais cairiam com o rebaixamento da demanda. Quanto menosemissõesmonetáriasporpartedogoverno,menosdinheiroemcirculaçãona economia. Resultado: a massa monetária reduzida se compatibilizariacomabaixaofertadeprodutosdaaindatímidaindústrianacional.

Emmeados de 1967, reconhecendo que esta política recessiva estavacausandomais problemas que soluções, Costa e Silva nomeou um jovemprofessor de economia da Universidade de São Paulo, Antonio Del imNetto, para ser o principal gestor da economia brasileira. Mesmo nãosendo propriamente um economista keynesiano, Del im era lexível naincorporação da ortodoxia monetarista. Assim, entrou em choque com odiagnóstico e com os remédios propostos pelo Paeg, como a rígida

disciplinafiscal,ocontroledocréditoedaemissãodemoeda.225

Del im, ao contrário dos mais ortodoxos, entendia que a in lação nocontexto da segundametade dos anos 1960 era causadamais pelo custodareproduçãodamãodeobradoquepelaaltademandadeconsumo.Um

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dosprincipaiscomponentesdocustodeprodução,opreçodamãodeobra,(notadamente, os salários dos trabalhadores do setor industrial), estavadepreciadopelorígidocontroledosreajustesquesempreperdiamparaain lação.Aboasafraagrícolade1967,aliadaàvigilânciadogovernojuntoaos preços oligopolistas, materializada na criação do ConselhoInterministerial de Preços (CIP) em 1968, permitiu controlar a in lação.Entretanto, o custo de reprodução de mão de obra ainda era alto, pelabaixaofertadealimentos,serviçosdetransporteemoradia,sobretudo.Eranotória a ine icácia da agricultura brasileira em produzir gêneros deprimeira necessidade para o mercado interno, constituindo-se um dosfatoreshistóricosdapressão in lacionária, particularmente gravepara aspopulações de baixa renda. O lançamento do Programa Estratégico deDesenvolvimento(PED),emmeadosde1968,tentoudarcoerênciadelongoprazoàsnovasposturasnapolíticaeconômica.

Assim, era possível crescer apostando no consumo de bens duráveisdos segmentos mais endinheirados da classe média que perfaziam ummercado de cerca de vinte milhões de pessoas, pouco mais de 20% dapopulação. O Estado, cujo caixa estava reforçado por novos impostos epelos empréstimos internacionais, continuaria investindo em grandesobras, estimulandoomercadoda construção civil, quepassaria a crescercercade15%aoanoaté1973.

A partir de meados de 1968, os efeitos do crescimento econômicocomeçam a aparecer. A forte expansão da moeda e do crédito foi

canalizada para o setor privado.226 O comércio exterior aumentousigni icativamente, com forte crescimento de exportações demanufaturados (39% média anual), compensando o igual aumento dasimportaçõesdepetróleoemáquinas.

Entretanto, a percepção do “milagre”, ou seja, a percepção pelosagentes econômicos e pelo governo de que o crescimento era inexorável,

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autoalimentado e sustentável por longos anos, só ocorreria por volta de1970.Aprovadissoéqueem1969,comoseassustadopelaretomadadaproduçãoedademanda,ogovernopisounofreiodaexpansãododé iciteda moeda, voltando a se concentrar no combate da in lação, como nos

tempos do Paeg.227 Por outro lado, Del im procurou estimular acapacidadedegeraçãoderecursosprópriosnainiciativaprivada,sejapelarenúncia iscal,sejapeloestímuloaomercadodecapitais.Estasduasaçõesreduziriamademandaporcréditobancário(consequentementereduzindoapressãosobreos juros)eporemissãodemoeda, fatoresquepoderiamrealimentar a in lação. Os empresários aplaudiram, mas nem todos nogoverno gostaram. A saída do general Albuquerque Lima do governo,ministrodoInteriorquedefendiaumaeconomiamaisautárquica,estatalenacionalizante, foiamaiorexpressãodestedescontentamentodossetoresnacionalistas.

Mas havia uma diferença entre a ortodoxia econômica radical, quehavia gerenciadooPaeg, e apostura lexíveldeDel imNetto.No casodaprimeira, o controle da in lação é meta estratégica. Para o segundo, eratática. O estratégico era o desenvolvimento contínuo no longo prazo,entendidocomodinamizaçãoda iniciativaprivadaeexpansão industrialàbasedeexpansãodoconsumodebensduráveis.Estaopçãoacabousendoabasematerialdoufanismoque tomaria contadogovernoedepartedasociedade, em1970, e que revelou-se importanteno isolamento social dalutaarmadadeesquerda.

As derrotas impostas às guerrilhas e a retomada de altos índices dedesenvolvimento econômico permitiram ao regime contornar a crisepolítica que ameaçava sair do controle em 1968/1969. A censura, osistema repressivo e a propaganda o icial, é claro, também ajudaram acriar um clima de calmaria e paz social, mais próxima de uma paz decemitério,aomenosnoplanopolítico.

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É inegável que, para a imensamaioria da população pouco envolvidacom a ideologia revolucionária da esquerda e sem uma opinião políticamuitoclaraecoerente,oBrasilviviatemposgloriososnocomeçodosanos1970: pleno emprego, consumo farto com créditos a perder de vista,frenesi na bolsa de valores, tricampeão do mundo de futebol. Grandesobras “faraônicas” eram veiculadas pela mídia e pela propaganda o icialcomo exemplos de que o gigante havia despertado, como a Ponte Rio-Niterói, a Usina de Itaipu e a Rodovia Transamazônica. Para os maispobres, a fartura, ainda que concentrada, fazia sobrar algumasmigalhas.Era amaterialização do projeto Brasil Grande Potência, o auge da utopiaautoritária da ditadura, que não deixou de seduzir grande parte da

populaçãoedamídia.228

Médici manteve um modelo administrativo herdado ainda de Costa eSilva.Nessesdoisgovernosmilitares,houveumaparelhamentodoEstadopara gerir o desenvolvimento, com a criação do Conselho MonetárioNacional presidido por Del im Netto. OCMN, até 1973, foi o “lócus

privilegiadodabarganhaenegociaçãocomdiversasfraçõesdocapital”. 229

Nele,sentavametinhamvozváriosrepresentantesdoempresariado.

Aoutrapontadomodeloadministrativoconsagradonaviradadosanos1960 para os anos 1970, que examinaremos em outro capítulo, era asegurançanacional,queincluíaostemaspolíticos,emgeral.Estecampodapolítica de governo era gerido peloSNI e pelo Conselho de SegurançaNacional(CSN),instituiçõestotalmentemilitarizadas.CabiaàCasaCivilfazeramediaçãoentreasduas instâncias,eentreelaseo “pessoalpolítico”dogoverno(Arenaegovernadores).

O sucesso deste modelo administrativo tinha como base material oimpressionante crescimento econômico obtido entre 1968 e 1973,conhecidocomo“milagrebrasileiro”.Abemdaverdade,essemilagrenão

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era o resultado da ação dos santos de casa. O ambiente internacionalexcepcionalmente favorável no inal dos anos 1960, aliado às políticasinternasrepressivasqueestavammaisparaoinfernodoqueparaocéu,équelhesustentavam.Emrelaçãoaosfatoresexternos,valelembrarqueocapitalismo mundial vivia o auge do seus “Trinta Anos Gloriosos”, comoficouconhecidaaépocaqueseseguiuaofimdaSegundaGuerraMundiale

terminou coma crisedopetróleo em1973.230 Sobrava dinheiro entre osbanqueiros e investidores, dólares a custo baixo, ávidos por investir emmercados seguros. O Brasil precisava de grandes (e caras) obrasestruturais,taiscomohidrelétricas,portoseestradas,paradesafogarseusgargalos produtivos, mas não tinha poupança interna su iciente parainanciá-las.Cabereiterarqueaexpansãoeconômicaapartirde1967 foipreparada pelas medidas impopulares e amargas contidas no Paeg deCastelo Branco, ancoradas em um pensamento econômico ortodoxo eultraliberaldecombateàin lação,controledoreajustesalarialedisciplina

fiscal.231

A ditadura brasileira, ao afastar o fantasma do reformismodistributivista e da revolução socialista, tinha deixado o ambiente denegócios “calmo”, comoosanalistasgostamdedizeratéhoje.OBrasileraum mercado seguro para o capitalismo inanceiro, ainda mais com ain lação sob controle a partir de 1966. Até 1973, a economia brasileiracombinou altíssimas taxas de crescimento com in lação declinante, aindaque os índices desta sofressem certa manipulação, sobretudo após oprimeirochoquedopetróleo.Paradouraraindamaisoparaísoeconômicodesenhadopeladitadura,osaldodabalançadepagamentoerapositivo.Abolsa de valores entrava em frenesi, com seus índices exibidoscontinuamentena televisão todas asmanhãs, entre desenhos animados eprogramasparadonasdecasa.

Del im Netto, mantido como czar da economia à frente do todo-

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poderosoMinistério da Fazenda, sentiu que o momento político permitiamaiorousadianasaçõeseconômicas,rompendocomoespíritocontábil,tãocaroaoseconomistasetecnocratas,maispreocupadosemfecharascontasdogoverno.Paraatingirosníveisdecrescimentoprojetados,cercade9%ao ano, passou a estimular a agricultura e a exportação, aprofundandomedidasjáesboçadasnogovernoCostaeSilva.AsdúvidasesboçadaspeloMinistério do Planejamento, mais ortodoxas e talvez mais consequentes,nãoforamsuficientesparaatrapalharestautopiacomorealismochatodosplanejadoresde longoprazo.Em teoria, odesenvolvimento combinadodaagriculturaedaexportação(demanufaturados,sobretudo)estimulariamomercadointernoeaindústriadebensduráveis(comoeletrodomésticos)ebensintermediários(comoassiderúrgicas),eixodomilagre.

Osíndicesdecrescimentoexplodiramem1970e1971,anoemquefoilançado oI Plano Nacional de Desenvolvimento. Em que pese o nomepomposo,Del imNetto eramais a inado a políticas de estímulo pontual ecombinado, evitando metas preestabelecidas e ações rígidas de longo

prazo.232Mesmoasincertezasdosempresáriosquantoàfaltadematérias-primas, insumos, e o aumento dos custos entre 1972 e 1976 não setraduziramembaixocrescimentoeconômico.Aocontrário.Mas,aomesmotempo, a in lação, problema estrutural na economia brasileira, voltava apressionar a política econômica e causar inquietação no governo. Osoperadorespolíticoseeconômicosdoregimesabiamquein laçãoaltaseriaumcaminhoparaainsatisfaçãopopular,sobretudoemumpaísdegravesdesigualdades, para a perda de apoio na classe média. E se issoacontecesse,oregimecomoumtodoseriaquestionado,nãoapenasesteouaquelegoverno.Nãoporacaso,osíndiceso iciaisdein laçãode1973,ano

dedefiniçãonasucessãopresidencial,forammanipuladosparabaixo.233

Aexpansãodocréditoparaassalariadosmédiospermitiuqueaclassemédia, como um todo, consumisse bens duráveis, pagando a perder de

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vista. O “fusca”, modelo popular da Volkswagen, tornou-se o símbolo daexpansãodoconsumonoBrasil.Mesmoparasetoresdaclassemédiabaixacomposta por pequenos funcionários, comerciários, escriturários, oprimeirofuscaeosonhodacasaprópriapodiamsetornarrealidade,coma expansão dos “conjuntos residenciais” do Banco Nacional da Habitação(BNH)apreçosacessíveispagáveisemprazoslonguíssimos.Eracomum,naprimeira metade dos anos 1970, crianças pequenas ganharem umacadernetadepoupançaemseusaniversários.

Nunca fomos tão felizes! O projeto do Brasil Grande Potência pareciaterumabasematerial inédita.Osucessoeconômicodoregimetambémsetransformava em sucesso político com a derrota da luta armada deesquerda,quenaóticadoregimeeraapenasumadesagradávelserpenteaperturbaraharmoniadoparaísocapitalistafinalmenteatingido.

Noentanto,comofoiditonocomeçodestecapítulo,afraseéambígua.OmilagretinhaumladoB.Osuperávitnabalançadepagamentos,garantidopela farta entrada de dinheiro estrangeiro, na forma de empréstimos einvestimentos diretos, convivia com regulares dé icits comerciais. O saldoemconta-correnteera crescentementede icitário, revelandoa fragilidadeinanceira da economia e sua dependência de dinheiro externo. Asexportações aumentaram, efetivamente, mas estavam concentradas emsetores com baixo valor agregado, ou seja, produzidos por uma cadeiaprodutiva restrita, extensiva e de baixa tecnologia. Os setores maisdinâmicos da indústria, nas mãos das multinacionais, estavam voltadosparaoconsumointerno.

A concentração de renda e o arrocho salarial, parte do processo dedesenvolvimentocapitalistaperiférico,masaprofundadopelaspolíticasdoregime,tambémeramnotórios.Em1970,comparando-seosnúmeroscomdez anos antes, os 5% mais ricos da população aumentaram suaparticipação na renda nacional em 9%, e detinham 36,3% da renda

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nacional. Os 80% mais pobres diminuíram sua participação em 8,7%,

icandocom36,8%darendanacional.234Quandoa in laçãovoltouasubircomforça,apartirde1974e,sobretudo,apartirde1979,osefeitosdessaperda de renda relativa e do arrocho salarial icariam mais patentes,gerando ampla insatisfação nas classes populares que, ao contrário daclassemédia,nãotinhamgordurasparacortar.Eraaprópriasubsistênciaqueseviaameaçada.

Aconcentraçãoderendafoiumaopçãofriaeracionaldosgestoresdomilagre. Em primeiro lugar, estava ligada ao princípio do controle dossalários como principal componente do custo de mão de obra. O saláriomínimo, utilizado como indexador para muitas políticas de remuneração,foi particularmente atingido, como vimos. Por outro lado, os tecnocratassabiam muito bem que a indústria brasileira da era do milagre nãoconseguiria atender a um aumento de demanda, sobretudo de produtosduráveis e moradias. Isso só seria possível mediante uma política deredistribuiçãoderenda,oquegerariaaperdadocontroledospreços.Porim,ogovernoapostavanacapacidadedepoupardossegmentosmaisbemremunerados da classe média, elemento fundamental para superar acrônica falta de poupança interna da economia brasileira, fundamentalpara o desenvolvimento. Em outras palavras, os mais pobres com maisdinheiro gastariam mais e, no limite, se endividariam, pressionando ocréditoeosjuros.

Durante o milagre, e mesmo ao longo dos anos 1970, o mercado daconstruçãoeraestratégicoparaabsorverograndecontingentedemãodeobra desquali icada quemigrava do campo para a cidade. Expulsos pelatradicional miséria social e falta de oportunidades de trabalho no meiorural brasileiro, sobretudo no Nordeste, dominado por latifundiários queentendiam a terra como fonte de renda, prestígio e especulação, oscamponeses chegavamà cidadedispostosa trabalharemqualquer lugar,

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sobascondiçõesmaisinsalubres,recebendobaixossalários.

O primeiro grau de absorção desta mão de obra migrante era aconstrução civil e os serviços domésticos. Alguns dos migrantes maiscapazese comescolaridademínimaconseguiamempregocomooperáriosdesquali icados nas grandes e médias indústrias, onde teriam algumachancede se tornaremoperários especializados.Apesardasdi iculdades,da ausência de direitos sociais e trabalhistas e da superexploração notrabalho, os migrantes experimentavam, eventualmente, uma vagasensaçãodemelhoriadevida.Aomenos,haviaaexpectativadeteracessoa água, comida, saúde e escolas para os ilhos, luxos impossíveis para ocamponês brasileiro dos anos 1970, mesmo com os equipamentos desaúde,educaçãoetransportesemprede icitáriosemrelaçãoàsdemandas

provocadaspeloinchaçourbano.235

Se o regimemilitar não tinha inventado este processo de êxodo rural,desencadeado desde os anos 1950, ele o incrementou sem as devidaspolíticassociaisatenuantes.Masoplenoempregodostemposdomilagreeo controle da in lação, sobretudo nos itens básicos de subsistência,atenuavam os efeitos da superexploração, dos baixos salários e dasdi iculdadesvividaspelomigranteesuafamílianomeiourbano.Empoucotempo a distribuição da população brasileira entre campo e cidade seinverteria,expressandoumdosmaisdramáticosesúbitoscasosdeêxodorural de toda a história. Até hoje, as cidades brasileiras pagam o preçodeste dé icit social, que se traduz na precariedade de moradias para osmaispobres,naviolênciaentrevizinhosdebairrospopulares,naexplosãoda criminalidade, na carênciade equipamentos, transporte e saneamentobásico. A democracia foi incompetente para reverter o quadro social dedesigualdade incrementado pela ditadura, até porque os interesses

econômicosportrásdestacatastrófica“espoliaçãourbana”236poucoforamatingidosnatransiçãoentreambas.

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O próprio presidenteMédici reconhecia, em uma de suas frasesmaisfamosas cunhadas no augedomilagre: “oBrasil vai bem,mas o povo vaimal”.Oincômodocomamisériaurbanaeruralnãoeraapenasretórica.Amiséria e o subdesenvolvimento, nos quadros da Doutrina de SegurançaNacional, eram vistos como problemas sempre aproveitados pelaesquerda, ou pela “subversão”, como queriam os militares, paradesestabilizar a ordem. Além disso, não é exagerado a irmar que osmilitares,peloseuhistóricoeformação,tinhamumarealpreocupaçãocomapobrezadasclassespopulares,elementoquedi icultavaaampliaçãodasbases de recrutamento das três armas, sempre no limite em razão dasdoenças crônicas, da subnutrição e da ignorância incrementadas pelapobreza.Alémdisso,essequadrosocialsere letianaimagemdoBrasilnoexterior, sempre objeto de preocupação por parte das elites militares. Amiséria e a desigualdade foramo tema preferido do nacionalismomilitarreformador que ameaçava crescer no Exército brasileiro novamente,depois do expurgo, à esquerda, feito no pós-golpe. Mas a estreitezaideológica do regime de natureza conservadora, associada às baseseconômicas do crescimento brasileiro e de seus grupos de pressãoprivados, inviabilizaria qualquer ousadia em políticas de distribuição derenda.

Assim,apolíticasocialesboçadapeloregimeeraapenascompensatória,como diziam os especialistas, revelando-se insu iciente para reverter o

quadrodemisériae concentraçãoderenda. 237Mesmoassim, tevealgumimpacto, sobretudo na população rural. Neste setor da sociedade, ogoverno Médici apontou para um plano de previdência, assistência ereforma agrária, com objetivos relativamente tímidos (3 mil famílias emtrêsanos).Emmaiode1971,ogovernolançouoProgramadeAssistênciaao Trabalhador Rural (Prorural), que parecia inalmente construir aprevidência social no campo.Em julhode1971, o governoMédici criouoPrograma de Redistribuição de Terras e de Estímulo à Agroindústria do

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Norte e Nordeste – Proterra. Esses programas propunham adesapropriação de grandes propriedades improdutivas, medianteindenizaçãoparaposteriorvendaapequenosemédiosagricultores,alémde concessão de créditos para aquisição de glebas e ixação de preços

mínimosdeprodutosdeexportação.238

Paraostrabalhadoresurbanos,acriaçãodo PIS-Pasepem1970pareciaumafontededistribuiçãoderendaparaostrabalhadores,masnaverdadeserviumais comopoupança forçadaparaa indústria,poiso recolhimentoera feito seis meses depois da incidência, permitindo a formação de umcapitaldegirosemrecorreraempréstimosbancários.Mastambémserviuparainjetarrecursosparaoconsumodosassalariados.

No campo das políticas habitacionais, em 1973, o governo lançou oPlano Nacional de Habitação Popular (Planhap), destinado a eliminar emdezanosodé icithabitacionalparaasfamíliascomrendaentreumetrêssaláriosmínimos,provendo-seaconstruçãodoequivalenteadoismilhõesdemoradias.Em1974,a faixadeatendimentodoPlanhapseriaampliadapara até cinco salários mínimos. Em decorrência da aplicação do plano,previa-se a criação ou manutenção de duzentos mil novos empregosdiretos e cerca de seiscentos mil empregos indiretos, mas os resultadosobtidosficarammuitoaquémdaprojeçãoinicial.

Naeducação,alémdareformauniversitáriade1968,queefetivamenteimpactouaorganizaçãodasuniversidadesno iníciodadécadade1970,oensinobásico foireformadoem1971, integrandooprimárioeoginásioemudando a grade do ensino médio. Para erradicar o analfabetismo daspopulações adultas, foi criado em 1970 o Movimento Brasileiro deAlfabetização (Mobral), que serviumais comopropagandadogovernodoque como efetiva arma para alfabetizar os adultos, dada a metodologiatecnicistaqueonorteava.

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Nota-se que além da ênfase compensatória, gerenciando pequenastransferênciasderendaeampliandoserviçospúblicosdeassistênciasocialesaúdeparapopulaçõescompletamentedesassistidas,sobretudonomeiorural, as políticas sociais do regime tiveram um caráter normatizador ereguladordoscon litossociais,procurandodarumtomtécnicoeracionalàgestãodosprogramaseagências.MasissonãoimpediuqueacrônicafaltadecapilaridadedoEstadobrasileironoâmbitomunicipaltornassenulososefeitos dos programas, vítimas da má administração e da corrupção. Abusca de expansão dos serviços de educação e saúde, sempre louváveis,não teve a contrapartida su iciente, em termos de investimento e gestão,para evitar a perda de qualidade. Os programas de habitação popularaderiram à lógica do mercado, voltando-se paulatinamente aos extratosdas classesmédias. O arrocho do saláriomínimo comprometeu uma realpolítica de renda previdenciária, su iciente para reverter o quadro deconcentraçãoemiséria.

Mesmo com a momentânea sensação de melhoria de renda e dequalidade de vida, logo os efeitos damigração desenfreada e do inchaçourbano se izeram patentes entre as populações mais pobres. Adesorganização familiar, visto que não havia escolas ou creches públicassu icientes para cuidar dos ilhos dos trabalhadores enquanto elesestavam fora de casa, explodiu, expressando-se na tragédia social dosmenores abandonados que vagavam pelas ruas roubando ou pedindoesmolas.Apercepçãodadesigualdade,menossentidanaprimeirageraçãode migrantes, tornou-se mais dramática para seus ilhos e netos, sendouma das causas ainda pouco estudadas da explosão da criminalidade. Aausência de poder público, a não ser pelo controle social violento daspolícias, transformou os bairros populares em territórios de violênciabanal entre vizinhos, ligados diretamente à disputa por espaço ou porrecursos materiais precários. O velho alcoolismo e as drogas recém-chegadas, como a cocaína, a partir dos anos 1980 completariam este

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quadro.

Mas foi na periferia das grandes cidades brasileiras que também segestaram novas formas de sociabilidade, baseadas na solidariedade e naconstruçãodelaçospolíticosinovadores.Issofezsurgirnovosmovimentossociaisecomunidadesreligiosasquenãofugiamàre lexãoprogressistaeà ação transformadora no mundo, e que izeram germinar uma novaculturadepolíticademocráticanoBrasil.

As fragilidades e dependências externasdomilagrebrasileiro icarampatentesquandoaconteceuacrisedopetróleoemoutubrode1973.Tudocomeçou quando a aliança militar de países árabes, capitaneados peloEgito epela Síria, atacou Israelpara recuperaros territóriosperdidosnaGuerra dos Seis Dias, em 1967. Inicialmente, Israel, pego de surpresaquando comemoravaoDiadoPerdão,um importante feriado judaico, viuosárabesganharemterreno.MasoOcidentenãoesqueceuseu ielaliado.SobaliderançadosEstadosUnidos,váriospaísespassaramaajudarIsraelna formade suprimentosearmas,dandobaseparaumadecisivaebem-sucedidacontraofensivaisraelense.

Osárabesseunirame izeramvalersuamaiorianaOpep,ocartelquecontrolava a produção e o comércio de petróleo nomundo. Perdendo noterrenomilitar,utilizaramdemaneirasábiaasuagrandearmaeconômica.Em alguns dias, o preço do barril de petróleo triplicou, saindo de US$ 4paraUS$12.A economia europeia dependente dopetróleo quase entrouem colapso, ocasionando inclusive sérios racionamentos de energia. Aeconomia americana, mesmo sentindo um pouco menos os efeitos dochoque,tambémrecuou.Aeradooilwayoflifetinhaacabado.

O Brasil, que importavamais de 90% do petróleo consumido no país,principalmatrizenergéticadaeconomiabrasileira, sentiuprofundamenteos efeitos do “choque do petróleo”, que era um componente de preços

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importanteemquasetodososprodutosdomercado.239Oefeitosónãofoimaisdevastadorporqueodinheirodomundo,agoranasmãosdosárabes– os chamados “petrodólares” –, continuava nos bancos ocidentais, osquais,porsuavez,continuavamemprestandoparaoBrasil.

Dessamaneira,foipossívelaorecém-empossadogovernoGeisel lançarumdosmaisousadosplanoseconômicosdoregime.Mesmocomacrisedopetróleo no inal de 1973, e seu impacto na economiamundial, o regimemilitarnãoabriumãodapolíticadesenvolvimentista.Entretanto,ela seriareorientadadopontodevistaeconômicoeadministrativo,materializando-se noII Plano Nacional de Desenvolvimento, concebido para superargargalosnaindústriadebase,nofornecimentodeenergiaedeinsumos.Olançamento do plano coincidiu com o primeiro ano de governo dopresidente Ernesto Geisel, que tomou posse em 1974. O governo nãopoderia abrirmãodo crescimento econômico, posto que ele era umadascondições fundamentais para implementar a política de distensão,

delineadaporvoltade1973.240

Por conta da crise do petróleo do qual a economia brasileira eradependente de importação, a balança comercial brasileira, a partir de1974,apresentouenormesdé icits,ultrapassandoos4bilhõesdedólaresao ano. Por outro lado, os dólares ainda luíam para os países “emdesenvolvimento”,permitindoaogovernobrasileiromanterouaumentaroritmodosempréstimosparafinanciaroIIPlano.

O Plano enfatizaria a indústria de bens de capital e a infraestruturaenergética, tentando, no médio prazo, diminuir a dependência brasileirados insumos importados.Essamudançade focoexigiuodeslocamentodosistema decisório para outros órgãos, mais propriamente burocráticos ecentralistas. Neste contexto, surgiu o Conselho de DesenvolvimentoEconômico(CDE)instituídoem1974,quetambémtransformouoMinistériodo Planejamento e Coordenação Geral (Miniplan) em Secretaria de

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Planejamento da Presidência da República (Seplan). Os dois seriam, apartir de então, órgãos de assessoramento imediato do presidente daRepública. A função essencial doCDE era coordenar os ministérios eauxiliar“opresidentedaRepública,segundoaorientaçãomacroeconômicade inida peloII Plano Nacional de Desenvolvimento”. O Conselho erapresididodiretamenteporGeisel.

O esforço desenvolvimentista do II Plano pode até ser considerado“bem-sucedido”, se descontamos seu custo social. Ao menos até 1976,

quando o ímpeto da política econômica desacelerou.241 A economiacresceu até o inal da década de 1970, mas o foco dos investimento, ain laçãoeoretrocessonoconsumodasclassesmédias izeramcomqueodescontentamento social crescesse. Os assalariados começaram a sentiraindamais os efeitos do arrocho salarial implantado em 1964, agravadopela in lação crescente. Vale lembrar que no inal da década de 1970 ain lação chegou a 94,7% ao ano; em 1980, já era de aproximadamente110%,eem1983alcançouopatamarde200%.

O quadro econômico bem poderia ser ilustrado pela piada que corriadurante os tempos do regime, que invertia o sentido do slogan o icial. Seem 1964 estávamos diante do abismo, no inal do regime tínhamos,realmente,dado“umpassoàfrente”.OsgolpistasseaproveitaramdacriseeconômicaparaderrubarGoulart,masem insdosanos1970oapoioaoregimemilitar perdeu suas bases sociais também por conta da crise. Aoim e ao cabo, parece que James Carville, o estrategista eleitoral de BillClinton, tinha razão quando explicou por que Bill Clinton seria eleito em1992,apesardeGeorgeBush(pai)serconsideradoimbatíveldepoisdeterganhadoaGuerraFriaeaGuerradoGolfo:“Éaeconomia,seuestúpido”.

DadoseconômicosdoBrasil1960-1984

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Fonte:FGV/IBGE.

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“Aprimaveranosdentes”:avidacultural

soboAI-5

No começo dos anos 1970, o campo artístico-cultural protagonizadopelaesquerdaviveuummomentoparadoxal.Porumlado,estavacerceadopelacensurarigorosaàsartes,sofrendocomarepressãodiretaaartistasengajados. Por outro, passava por um momento criativo e prestigiadosocialmente,estimuladopelocrescimentodomercadoepelopapelpolíticoque assumiu como lugar da resistência e da a irmação de valoresantiautoritários. Os meios de comunicação e a indústria da cultura comoum todo conheciam uma época de expansão sem precedentes. Com ocrescimento econômico, osbens culturaispassarama ser consumidos emescala industrial: telenovelas, noticiários, coleções de livros e fascículossobre temas diversos, revistas, sinalizavam para a nova tendência“industrial” e “massiva” do consumo cultural, que se consolidaria nasegunda metade da década de 1970. Pelas bancas de jornais e pelatelevisão, a cultura escrita chegava aos segmentos mais pobres dapopulação (sobretudo operários quali icados, pequenos funcionáriospúblicoseclassemédiabaixa,comoumtodo).Masnemsóde“crítica”viviaa cultura brasileira dos anos 1970. Os novos tempos de repressão ecensura, aliados a uma certa facilidade de produção e consumo,estimularamocrescimentodeummercadoculturalmarcadopeladifusãode produtos de entretenimento, sobretudo na música popular e na

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televisão.

Os artistas mais prestigiados pela crítica e pela classe médiaintelectualizadaestavamnoexílio,forçadoouvoluntário,comoGilbertoGil,CaetanoVeloso,ChicoBuarque,AugustoBoal, JoséCelsoMartinez(depoisde 1973), Geraldo Vandré. A repressão atingira todas as correntesestéticas e ideológicas quehaviam sedigladiadona cena cultural no inaldos anos 1960: tropicalistas da vanguarda, comunistas ligados ao campo

nacional-popular,242 revolucionários ligados à luta armada. A primaveracultural da segunda metade dos anos 1960 parecia subitamenteencerrada, literalmente, por decreto. A canção dos Secos & Molhados,grupo de grande sucesso no início dos anos 1970, poderia resumir oprojeto cultural de oposição nos “anos de chumbo”: “Quem não vacilamesmo derrotado / Quem já perdido nunca desespera / E envolto em

tempestade,decepado/Entreosdentesseguraaprimavera”.243

Segurar a primavera (cultural) nos dentes signi icava manter a vidacultural dentro de sua vocação crítica, partilhar de uma comunidade deleitores, espectadores e ouvintes que se viam como uma reserva deconsciência libertária em tempos sombrios. Essa era a senha para a vidacultural partilhada, sobretudo, pela juventude secundarista ouuniversitária,pelossetoresdaclassemédiaintelectualizadaeativistasdosmovimentossociais.

Enquanto o circuito universitário de cultura garantia aos artistas queicaram no país uma alternativa de trabalho, as “comunidades”contraculturaisprotagonizavamumanovaforma,nãocomercial,deviveracultura,baseadanapráticadoartesanato,nadiluiçãodasfronteirasentrevida e arte e na busca de novos valores morais e de um novocomportamento sexual, com base no chamado “sexo livre”, fora dos

padrões monogâmicos.244 Para este segundo grupo, o uso das drogas,

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sobretudoamaconhaeasdrogasalucinógenascomoo LSD,faziampartedautopia de uma libertação individual e interior, ajudando a “expandir amente”,muitasvezeslevandoosjovensàdependênciae,emalgunscasos,à morte. Para os jovens politicamente engajados, na clandestinidade ounão,oproblemaeraoutro:nãosetratavadebuscaralibertaçãoindividual,masalibertação“coletiva”,aresoluçãodosproblemaspolíticosesociaisdopaís.Expandiramenteera informar-se, intelectualizar-se,encararadurarealidadedopaís.

Paraagrandemaioriadosjovensbrasileirosdeclassemédiaemesmoalguns das classes populares, o início dos anos 1970 representou aaberturadeumgrandemercadodetrabalho,comnovaspossibilidadesdeconsumo (por exemplo, a compra do automóvel, um dos ícones dajuventude“alienada”).Longedealternativasradicaisderecusaaosistema,politizada ou “desbundada”, o jovem brasileiro “médio” queria apenascomprar o seu “Corcel 73” e tentar aproveitar o “milagre”, conforme aironia de Raul Seixas: “Eu devia estar contente porque eu tenho umemprego/Souoditocidadãorespeitado/Ganho4milcruzeirospormês/ Eu devia estar contente porque eu consegui comprar um Corcel 73

[...]”.245

Mesmooscircuitosdeconsumoculturaldemassaforamocupadosporum espírito crítico, ainda que sutil, e convivendo com produtos culturaisdespolitizados. Engana-se quem pensa que os produtos culturaisengajados, criados por artistas de esquerda, estivessem destinados apequenos círculos de consumo artesanal. Uma dasmarcas da década de1970 foioconvíviodeprojetosculturaisvoltadosparagrupossociaisquese consideravam “alternativos”, à margem, com a ocupação crescente dogrande mercado pela arte de esquerda. Em muitos momentos, asfronteirasentreestesdoisprojetos icaramdiluídas.No teatro,namúsicapopularenateledramaturgia,aarteengajadadeesquerdareestruturouo

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própriomercado,entrandonocoraçãodaindústriacultural.Esteprocessonão seria vivido sem dilemas e impasses, mas, sem dúvida, é uma dasmarcasmaissingularesdaresistênciaculturalaoregimemilitar.

Apesar de a repressão atingir a todas as correntes estéticas eideológicas de oposição, sugerindo uma solidariedade em meio aocataclismo,aslutasculturaisdentrodocampodaoposiçãonãocessaram.Oobjetivodetodaselaserachegaràsmassaspopulares.Masaslinguagens,oscaminhoseobjetivosvariavam.

Nocomeçodosanos1970,avertentenacional-popularligadaàtradiçãode engajamento comunista ampliou sua estratégia de ocupação doscircuitosculturais,restritosoumassivos.Osartistaseintelectuaisligadosa

essatradiçãodenunciavamo“vaziocultural”, 246analisandocomoprodutonão apenas da censura e da repressão, mas também pelos desviosestéticos e ideológicos produzidos pelas vanguardas que confundiamchoque de valores com consciência crítica. O alvo das acusações eram ostropicalistas, os grupos de teatro de vanguarda, como o O icina, e osrealizadoresdocinemamarginal.Paraoscomunistasesimpatizantes,nãose tratava de “chocar a burguesia” agredindo seus valores, mas deconquistar seus corações e mentes para uma grande aliança contra oregimemilitar.Aculturaeasartesdeveriamserocimentodessaaliança,enãoumaartilhariacontratudoecontratodos.

Emcontrapartida,avanguardacontracultural, jásemoímpetodo inaldadécadade1960,sobretudonoteatroenamúsicapopular,insistiaqueacríticaaoautoritarismopassavapelacríticaradicalaosvaloresburgueses,comportamentais e políticos a um só tempo. Para os jovens adeptos dacontracultura,osmilitantescomunistaseram“caretas”.Paraoscomunistase simpatizantes doPCB, os artistasde vanguarda eram “desbundados”.Osprimeirosqueriamampliaropúblico.Ossegundos,reinventá-lo.

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O nacional-popular almejava a construção de um novo gosto para asmassas, “consequente e crítico”, a partir de valores preexistentes. Emáreas em que omercado já era forte, como namúsica ou na televisão, a“corrente da hegemonia”, nome dado aos artistas iliados ao nacional-popular de esquerda, impôs uma linguagem padrão para as suas obrasque se confundiam com o gostomédio do público escolarizado. O grandesucesso daMPB no mercado fonográ ico e da teledramaturgia feita porautores comunistas empregados pela Rede Globo são os exemplos maisparadoxais de uma linguagem artística tributária do nacional-populartriunfantenaindústriacultural,aomesmotempoquevigiadapelacensura

estatal.247

Uma boa parte dos dramaturgos ligados ao Partido ComunistaBrasileiro(PCB), comoDiasGomes,OduvaldoViannaFilho ePauloPontes,contribuiu para a revolução das novelas na telinha. Após 1970, estes eoutrosnomesforamcontratadospelaRedeGlobo,comrazoável liberdadede criação, para diversi icar o estilo, a temática, a linguagem dastelenovelas, aprofundando a tendência “realista” e “sociológica” jáanunciada porBeto Rockfeller , em 1968. Estrategicamente, a televisãoreservava um horário mais avançado, às dez horas da noite, para estesprodutos, quando a maioria dos trabalhadores já tinha desligado a TV.Nessafaixadehorário,DiasGomes, iliadoaoPCB,veiculounovelascomoOBem Amado, Bandeira 2 eSaramandaia (esta última muito próxima aochamado “realismo fantástico” da literatura latino-americana). Nãopodemos nos esquecer duas experiências inovadoras na teledramaturgiadosanos1970,levadasaoaremformatodiferentedasnovelasdiárias:osCasosEspeciaiseoseriadosemanalAGrandeFamília(umafamíliadeclassemédia cheia de di iculdades em pleno ufanismo do milagre econômico),escritos e dirigidos pelos grandes dramaturgos também comunistasOduvaldo Vianna Filho e Paulo Pontes. Por outro lado, o sucessoestrondoso deEscrava Isaura , em 1976, consolidou o horário das seis da

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tarde como a faixa das novelas com temas históricos, mais ligadas àtradiçãodofolhetimhistórico,comalgumapitadadecríticasocial.

No inaldosanos1970,sobo impactodosnovosmovimentossociais,oímpeto participativo de artistas e intelectuais de esquerda renovava-se,passando de uma fase de “resistência” para uma fase mais crítica eagressiva, na medida em que as massas voltavam ao primeiro plano davidanacionale, comisso,mudandocompletamenteacorrelaçãode forçasentreasociedadecivil“democrática”eoEstado,dominadoporumregimeautoritário e coercitivo.Coma revogaçãoo icialdoAI-5, em1ºde janeirode 1979, e o consequente im da censura prévia, abriu-se uma nova erapara a cultura brasileira.Músicas, peças de teatro e, sobretudo, livros deficção,reportagemeensaioshistóricospuderamserpublicados.

Nas artes, cujo debate muitas vezes era acompanhado pela imprensamais engajada, o crescimento do interesse pela política gerou um grandedebatepúblicoentreartistasdeváriasáreas,que icouconhecidocomoo

casodas“patrulhasideológicas”.248OtermofoicunhadoporCacáDiegues,ao sentir-se policiado pela crítica cinematográ ica de esquerda, quereclamava um posicionamento político mais de inido nas produções docineasta, acusado de fazer ilmes escapistas (comoXica da Silva, umaleituracarnavalizantedaescravidão,eChuvasdeVerão ,umavisãolíricadavelhicenossubúrbioscariocas).Odebateexplodiuem1978,elogooutrosartistas, como Caetano Veloso e Gilberto Gil, se utilizaram da expressãopara contra-atacar os críticos e o público de esquerda ortodoxa, queexigiam uma arte mais pedagógica, realista, exortativa e comprometidacom a luta contra o regime militar. Esses artistas reconheciam anecessidade de realizar obras críticas, mas, para eles, o principalcompromissodaartedeveria serode representarasdiversas facetasdacondição humana e da sociedade, sem se prender a uma linha político-partidáriaespecífica,consideradamaisjustaecorretadoqueasoutras.

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A música popular brasileira entrava nos anos 1970 com seuscompositoresmaisprestigiadoseemblemáticosforadopaís,resultadodosefeitos do AI-5 no campo artístico. Artistas que, até então, eramverdadeiros ídolos, como Geraldo Vandré, Chico Buarque de HollandaCaetano Veloso, foram duramente perseguidos. Este último, juntamentecomGilbertoGil,chegouaserpreso,assimpermanecendoportrêsmeses.Em julho de 1969, os dois baianos foram “convidados” a deixar o país,exilando-se em Londres durante três anos. Chico Buarque, vivendo umafase de grande popularidade, foi poupado da prisão, mas também foiconvidadoadeixaropaísem1969,indoparaaItália.QuantoaodestinodeVandré, os primeirosboatosdiziamque ele havia sidopreso, torturado esofrera“lavagemcerebral”,passandoafazermúsicasdeapoioàditadura.

Ementrevistanoanode1995opróprioVandrédesmentiuessaversão 249

dizendoque,apartirdadecretaçãodoAI-5,ele icouforagidoeconseguiusair doBrasil, dando início a umverdadeiro périplo por vários países domundo, ixando-seemParisatémeadosdadécadade1970,quandovoltouparaoBrasil.Depoisdeumabrevedetenção,Vandrédeclarou “morto”oseupersonagem,tornando-seapenasumdiscretoadvogado.

Agrande tendênciadomercado, coma crisedos festivaisda cançãoecerceadopelacensura,eraamúsicajovem,opopeorock,quegarantiamumespaçomaiornapreferênciadeumaboaparteda juventude.ApartirdoTropicalismo,diga-se,opopeorockpassarama fazerparte, inclusive,dosváriosidiomasmusicaisquecaracterizavamamúsicabrasileira.AsiglaMPBsetornavaquaseumconceitoestéticoe,sobretudo,político,traduzindouma música engajada, com letra so isticada, de “bom nível” e, depreferência, inspirada nos gêneros mais populares, como o samba,constituindoassimummainstreamqueligavaessesgênerosàBossaNova,

àscançõesdefestivaiseaoTropicalismo.250

O período que vai de 1969 a 1974 não foi dos melhores para aMPB,

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mais em função dos problemas políticos do que por uma crise decriatividade ou de mercado. O cerco da censura e o clima de repressãopolicial di icultavam a criação, a gravação das músicas e a performancepara grandes plateias, sobretudo as plateias estudantis. Ainda assim, umconsiderável circuito de shows em campi universitários levava inúmerosartistasaocontatocomopúblicomaisa icionadodaMPB.Algunsartistasjáeram consagrados, como Elis Regina; outros nem tanto, como Taiguara,Gonzaguinha, Ivan Lins (membros do chamado Movimento ArtísticoUniversitário –mau –, que tentava renovaro timede compositoresdentrodocampodaMPB“sofisticada”).

Masamúsicabrasileiranãoerasóa MPB “universitária”,comosedizia.Para suprir um mercado em crescimento, as gravadoras apostaram namúsica joveminternacional(sobretudoablackmusicamericana,entãoemvoga)enasmúsicascompostaseminglêsporbrasileiros.Outrofenômenode vendas foram as trilhas sonoras de novelas, sobretudo as da RedeGlobo, que inventou até uma gravadora, a Som Livre, para comercializar

este tipodecoletânea.251 Foi tambémaépocadochamado “sambão joia”,feito por nomes comoOsOriginais do Samba, LuizAirão, Benito di Paula,entreoutros,umamúsica consideradapasteurizadae comercial,masquetinhaumagrandeaceitaçãodopúblico,partedagrandefamíliadamúsicadita “cafona”,que,apesardopreconceitodaclassemédia,considerando-a

alienada e de mau gosto, chegou a ser censurada pelo regime.252 Entre1970 e 1974, o território do samba ainda consagraria nomes comoMartinho da Vila, Paulinho da Viola e Clara Nunes (intérprete muitopopularnaépoca).OartistamaispopulardoBrasilera, indubitavelmente,o cantor Roberto Carlos, que entre 1969 e 1972 passava pela sua fase

mais criativa, reforçando seu estilo romântico. 253 Para a opinião públicamais crítica, de esquerda, Roberto Carlos era sinônimo de alienaçãopolítica, contraponto do engajamento musical que dominava aMPB maisvalorizada.

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Com a volta dos ídolos daMPB que estavam no exterior, como ChicoBuarqueem1971eCaetanoVelosoem1972,ocenáriomusicalseanimou.Chico gravou um álbum histórico, considerado um marco de qualidadepoética na canção popular brasileira, chamadoConstrução. Olong playingteve grande aceitaçãodepúblico e crítica e recolocavaChiconoprimeiroplanodamídiaedaculturabrasileiras.Caetano,depoisdelançarobeloemelancólicoLondon, London (cujas canções retratavam, em inglês, seuestado de espírito no exílio londrino), gravouTransa e o álbumexperimentalAraçá Azul, cheios de ruídos, arranjos e entonaçõesinusitadas. Este, aliás, foi o maior encalhe da indústria fonográ icabrasileira. Mas o exílio de Caetano o havia resgatado para a juventudeuniversitária engajada, depois dos embates entre estes e o compositorbaianoaolongode1968.Em1972,osdoisastros,ChicoeCaetano,queatéentão representavam as duas grandes tendências estéticas e políticas daMPB,gravaramumálbumaovivo,numhistóricoshowemSalvador,lançadoe mLP com o títuloChico e Caetano, Juntos e Ao Vivo . O show foi umverdadeiroatoderesistênciacontraaditaduraeasuacensura,sofrendoinúmerassabotagenstécnicas.Esseencontro,altamentesimbólico,dedoisgrandesastrosquedividiamasplateiasdosanos1960foicomplementadoem1974poroutroencontroartístico,entreElisReginaeTom Jobim,quetambémnãoeramlámuitoamigosemmeadosdosanos1960.

Em 1972, explodia outro fenômeno musical, já conhecido comocompositorháalgumtempo:MiltonNascimento(que trouxe juntoconsigotodooClubedaEsquina, um conjuntode compositores, instrumentistas eintérpretes dasMinasGerais, que fundiamgêneros e estilos locais comorock).OálbumClubedaEsquina1,deMiltonNascimentoeLôBorges,erauma verdadeira coleção de clássicos da canção que apresentavam umavisãomais sutil, porémnãomenos crítica, domomento social e político.OTrem Azul, San Vicente,Nada Será como Antes ,Paisagem na Janela, entre

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outras, retratavama busca por liberdade individual e coletiva através deimagens poéticas sutis e músicas so isticadas, fora das fórmulas que seconheciamatéentão.

Agrandenovidademusicalde1973foiarenovaçãodorockbrasileiro,que parecia encontrar um idioma próprio. Neste campo, destacaram-seRaulSeixas,comsuacríticaácidaaomilagreeaosvaloressociais(OurodeTolo,SociedadeAlternativa,MoscanaSopa,MetrôLinha743),eometeóricoconjunto Secos & Molhados, que revelou o cantor Ney Matogrosso,fundindo o melhor da poesia daMPB com a ousadia cênica e o climainstrumentaldorockanglo-americano.RitaLee,ex-Mutantes,iniciavaumatrajetória própria e original, com letras criativas e críticas. Uma dasexperiências mais originais da música jovem brasileira de qualidade, noiníciodos anos1970, foi o conjuntoNovosBaianos, que aomesmo tempoera uma comunidade hippie. Baby Consuelo (vocal), Pepeu Gomes(guitarra),MoraesMoreira (queseguiriaumacarreira solode sucesso)ePaulinhoBocadeCantormesclavamsamba,chorinho,frevoerock,criandoumidiomamusicalpróprioebem-aceitopelopúblicoderockeMPB.

A partir de 1972, a música brasileira parecia retomar certa ofensivacultural e política contra o regime e galvanizar as massas populares emgrandes eventos, através de espetáculos ao vivo. Mas os temposcontinuavamdi íceis para quem se propunha a fazer uma arte que fossealgo mais do que lazer. Além deChico e Caetano, Juntos e Ao Vivo , oimpactantePhono73foiumatentativadagravadoraPhonogram/Philipsderetomar o clima dos festivais, organizando três noites demúsica ao vivo,comtodooseuelencodeestrelasdaMPBedorockbrasileiro.Numdestesshows,ocorreuofamosoepisódiododesligamentodosistemadesom,porordens da censura, quando Chico e Gilberto Gil iriam cantarCálice, umclaro manifesto contra a censura e a repressão. As palavras “cálice” e“cale-se” se fundiam numa alusão direta à censura, e o “vinho tinto de

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sangue”remetiaaosporõesdatortura.Obviamente,acensuranãogostou.

Pai...Afastademimestecálice,paiAfastademimestecálice,paiDevinhotintodesangue...

Em1972, a RedeGlobo resolveu valorizar o seu criticado e esvaziadoFestival Internacional da Canção (FIC). Contratou Solano Ribeiro, produtordosgrandesfestivaisdaRecord,deucertaliberdadeàcomissãodeseleçãodasmúsicasecolocouparapresidirojúriaprestigiada(eoposicionistadoregime)cantoraNaraLeão.Ocenárioparamaisumcon litocomoregimeestavaarmadoeexplodiunomanifestodojúricontraacensura.Alegandoum problema na condução dos trabalhos, mas na verdade pressionadapelogoverno, aRedeGlobodestituiuapresidênciado júri, equandodoisjurados (Roberto Freire e Rogério Duprat) tentaram subir ao palco paraler um manifesto contra a censura foram presos pelo Dops (a políciapolítica do regime) e chegaram a ser agredidos. A vencedora foi FioMaravilha, de JorgeBen(jor), interpretadapela cantoraMariaAlcina, cujaletrafalavadeumídolodofuteboleoritmodançanteempolgavaaplateia,deixando em segundo plano, para o grande o público, os incidentes epressões políticas quemarcaram o último festival da canção da “era dosfestivais”.

Nessa edição doFIC e na outra tentativa da Rede Globo de reeditar ogênero (Festival Abertura, 1974), consolidou-se uma tendência bastantepeculiar daMPB dos anos 1970, a dos chamados “malditos”. Famosos porpraticarem certas ousadias musicais,happenings e declarações nadasimpáticas aogostodopúblico,nomes como JorgeMautner, JardsMacalé,Luiz Melodia, Walter Franco, entre outros, desa iavam as fórmulas domercadofonográ ico,buscandolinguagenseperformancesmaisousadaseprovocativas. O nome “malditos” se consagrou como uma espécie de

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estigmaqueperseguiaessesartistas:eramrespeitadospelacríticaepelosmúsicos, mas não se enquadravam nas leis de mercado das gravadorasnemsesubmetiamàssuasdemandascomerciais,vendendomuitopoucoesendoquaseesquecidospelasemissorasderádiomaispopulares.

Por volta de 1976, aMPB consolidou sua vocação oposicionista deresistência ao regime militar e de eixo do mercado fonográ ico a um sótempo.Alémdisso,seusprincipaiscompositoresforammuitobene iciadospelo abrandamento da censura, podendo compor canções com letrascríticas, que tinham grande aceitação entre os ouvintes. Consolidava-se ofenômeno da “rede de recados”, desempenhado pela canção popular naépoca da ditadura, que fazia circular mensagens de liberdade e justiçasocial, ainda que se utilizando de uma linguagem sutil e simbólica, numa

épocamarcadapelarepressãoepelaviolência.254NãoéexagerodizerqueaMPBfoiumaespéciede“trilhasonora”daabertura,estandonocentrodevárias manifestações e lutas da sociedade civil na segunda metade dos

anos1970.255

AMPBsetransformounocarro-chefedaindústriafonográ icabrasileira,passando a ser consumida por amplos segmentos da classe média echegando, em alguns casos, a ter uma boa penetração nos setorespopulares (sobretudo no inal da década de 1970). Do ponto de vistacomercial,aMPBeraimportanteparaaindústriafonográ icanamedidaemqueseusouvintesmais iéisseconcentravamnasfaixasdeconsumomaisricas e informadas da população. Geralmente, os artistas deMPB tinhammaior liberdade de criação e podiam contar com maiores recursos dasgravadorasparagravarseus LPs,pois,mesmovendendomenosdoqueasditas canções e os gêneros mais “populares”, geravam muito lucro àsgravadoras, uma vez que eramprodutosmais caros e so isticados, sendovendidosaumpreçomaior.Alémdisso,a MPBmovimentavaumimportantemercado de shows ao vivo. O interesse crescente pelos principais

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compositoreseintérpretesdaMPB,quejávinhadosanos1960,garantiaàsrádios uma audiência mais so isticada e com ummaior poder aquisitivo,atraindo, consequentemente, anunciantes mais quali icados. Todos essesfatoresfaziamamáquinacomercialfuncionaremtornodessegênero,paraalémdassuasvirtudespropriamenteestéticasoupolíticas.Podemosdizerque,entre1975e1980,aMPBviveuseuaugedepúblicoecrítica,comumaamplapenetraçãosocialelugardestacadonomercadofonográfico.

OprimeirograndefenômenodepúblicodesseboomdeMúsicaPopularBrasileira foi o showFalso Brilhante, no recém-inaugurado Teatro

Bandeirantes, estrelado pela consagrada Elis Regina. 256 A partir desetembrode1975,aolongode14meses,comumaincrívelmédiade1.500pessoaspornoite,acantoraencantavaaplateiacommúsicasquefundiamo líricoeopolítico,numconjuntoharmônicodemúsica, teatroepoesia.OLP homônimo foi um dos principais marcos de vendagem da carreira deElis, que, ao ladodeChicoBuarquedeHollanda, conseguiuexecutarumadi ícilmissãonaáreadacultura,conciliandoqualidadeepopularidade.Atésua morte precoce, em 1982, Elis seguiu uma trajetória de consagraçãoartística e sucesso popular, cujo auge pode ser considerado a música OBêbadoeaEquilibrista(JoãoBosco/AldirBlanc),consideradoohinodalutapela anistia aos presos e exilados pelo regime, conseguida em 1979. Dopontodevistapessoal,acantorasereconciliavacomopúblicodeesquerdadepois do polêmico episódio de sua participação na convocatória para o

EncontroCívicoNacional,umeventooficialdoregimemilitar,em1972.257

Outronome fundamentalparaaMPB dos anos1970 foiChicoBuarquede Hollanda, a “unanimidade nacional” segundo a crítica. O compositorpassou por uma fase di ícil, entre 1973 e 1975, quando o seu projetoteatralemusicalCalabarfoitotalmenteproibidoeChicotevequeinventarumpseudônimoparaconseguirdriblaracensura,oimpagável“JulinhodaAdelaide” (um ictício “sambista demorro”). Mas, a partir deMeus Caros

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Amigos, lançadono inalde1976,Chicoreencontraosucessopopulareosaplausos da críticamusical. São desse disco algumas canções antológicascomoMeu Caro Amigo , O Que Será, Mulheres de Atenas , verdadeirosdocumentospoético-musicaisparaentenderaquelemomentohistórico.

CaetanoVelosoeGilbertoGillançamdiscosantológicos,comoRefazenda(1975) eRefavela (1976), de Gil, eJoia (1975),Qualquer Coisa (1976),Bicho(1977)eMuito(1978),deCaetano.Esteúltimo,porsinal,umgrandesucessopopular,puxadopelafaixaSampa,cujaletrapropunhaumaleituratotalmente nova da vida urbana e das contradições da modernidadebrasileira.CaetanoeGilconsolidaramsuavocaçãode“ídolos”dajuventudemais intelectualizada e libertária, embora suas declarações políticas ecomportamentais, bem como o visualhippie e andrógino, provocassemalgumdesconfortonajuventudedeesquerda,maisortodoxaemtermosdecomportamento. Por exemplo, amúsicaOdara, doLPBicho, provocou umagrande polêmica entre Caetano e a esquerda nacionalista (mais uma,aliás...), pois a música era um apelo ao prazer e à dança, utilizando-seinclusivedeumabatidadiscotéque(agrandemodapopdaépoca),quandoa esquerda achava que amúsica popular deveria cantar as agruras dostrabalhadoressobatuteladoregimemilitar.

MiltonNascimentomarcouépocacomosLPMinas(1975),Gerais (1976)eClubedaEsquina2(1978).AcomposiçãoOCiodaTerra,feitaemparceriacomChicoBuarque,foiumgrandesucessopopularnasvozesdoQuartetoem Cy e doMPB4, tornou-se um dos hinos da luta pela reforma agrária,falando da vida camponesa e da busca pela dignidade humana de umamaneirasutilepoética.JoãoBoscoeAldirBlanctambémseconsagraramapartirde1975,sendoresponsáveisporverdadeirosclássicosda MPB,comoO Mestre-Sala dos Mares , Kid Cavaquinho , Plataforma eO Bêbado e aEquilibrista. Emsuasmúsicas,BoscoeBlanc falavamdopovobrasileiroeda resistência à ditadura de uma maneira ora bem-humorada ( Siri

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Recheado), ora muito dramática (Tiro de Misericórdia), trabalhando comquestõescotidianas,numaabordagemmuitopróximaàcrônicajornalística.Gonzaguinha e Ivan Lins fechavam o primeiro escalão dos compositoresengajadosconsagradosao longodosanos1970.Aeles juntavam-senovosnomes como Fagner (que explodiu para o sucesso em 1976) e Belchior(autor de dois grandes sucessos na voz de Elis,Velha Roupa Colorida eComoNossosPais).

AMPB, o samba e o rock acabaram formando uma espécie de frenteampla contra a ditadura, cada qual desenvolvendo um tipo de crítica,atitudeecrônicasocialqueforneciamreferênciasdiversasparaaideiaderesistência cultural. AMPB, com suas letras engajadas e elaboradas; osamba,comsuacapacidadedeexpressarumavertentedaculturapopularurbana ameaçada pela modernização conservadora capitalista; e o rock,com seu apelo a novos comportamentos e liberdades para o jovem dasgrandes cidades. Não foi por acaso que ocorreram muitas parcerias, deshowsediscos,entreosartistasdessestrêsgêneros.

Entre1969e1971,ostrêsmaisimportantesgruposteatraisbrasileiros–oArena,oOpiniãoeoO icina–,desarticularam-seou foramextintos.OO icinaencenouaindatrêspeçasimportantes:Galileu (B.Brecht),NaSelvadas Cidades (B. Brecht) eGracias Señor (criação coletiva). Nessas trêsmontagens,evidenciou-seadesagregaçãointernadogrupo:oscon litosdepersonalidade,os con litosdegerações (entreatores “velhos”e “jovens”),as diferentes concepções de função social e estética teatral. Nesta últimamontagem, o O icina absorvia de uma vez por todas a estética dacontracultura, radicalizando as experiências de improvisação cênica etextual, de diluição de fronteiras entre arte e vida e público e obra. Em1973, o último remanescente do O icina original, o diretor José CelsoMartinezCorrêa,saiudoBrasil.

No anticlímax que sofreu a classe teatral a partir do AI-5, depois de

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quatro anos sendo um dos eixos do debate estético e ideológico nasociedadebrasileira,duaspeçasmarcaramépoca: CemitériodeAutomóveis(Fernando Arrabal) eO Balcão (Jean Genet), ambas dirigidas por VictorGarcia e produzidas por Ruth Escobar. Esta se irmava como produtoraindependente e personalidade crítica, desa iando o cerceamento culturalimposto pelo regime militar e pela censura. Além disso, as duas peçasapontavampara uma nova concepção de uso do espaço cênico do teatro.Maispelaconcepçãocênicaepelaatuaçãodosatoresdoquepelotextoemsi, foram uma espécie de manifesto contra a ditadura, estilizando aviolência e a crueldade das instituições o iciais e conservadoras contra oindivíduo (como o Exército, a Igreja, a Justiça) e fazendo o públicoexperimentar, esteticamente, a mesma violência que derrotara asrevoluçõespopulareseodireitodemanifestaracríticasocialepolítica.NocasodeOBalcão,porexemplo,osespectadorestinhamquesemovimentar,para cima e para baixo, dentro de estruturas cilíndricas de metal quelembravamumcárcere.

O teatro, ao seu modo, re letiu também a contracultura no Brasil,manifestação de recusa global ao sistema e à sociedade estabelecida,

característicadageraçãoAI-5.258Aestéticadamarginalidade,aopçãopelatransgressão aos costumes morais e sexuais, a crítica radical àsinstituições,tidascomobasedosistemaautoritário,apareciamemdiversaspeçascontraculturais(GraciasSeñor ,HojeÉDiadeRock,GenteComputadaIgualaVocê).Umaencenaçãoirracionalista,antipedagógica,antiemocional,caracterizava essas peças, além do uso do humor, às vezes debochado egrotesco.

Duasimportantespeçasqueestrearamentre1973e1974procuravamfazerumare lexãosobreopapeldoteatronanovaconjunturarepressivado país, dentro de uma cultura de esquerda mais ortodoxa, sem asousadiasdo “desbunde”da contracultura jovem,perfazendoumaespécie

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decontra-ataquedacorrentedramatúrgicaligadaao PCB:UmGritoParadonoAr (G.Guarnieri)ePanonaBoca(FauziArap)encenavamahistóriadegrupos teatrais em busca de sua identidade e de sua inserção nasociedade,procurandodiagnosticarproblemas,impassesesoluçõesparaavida teatral brasileira, dentro de contradições sociaismais amplas. Aindadentro dessa tendência, Paulo Pontes se irmou como um autor cada vezmais reconhecido (UmEdi ício Chamado200 eGota d’Água , entre outros),assim como Oduvaldo Vianna Filho (Corpo a Corpo , sucesso de 1971, eLongaNoite de Cristal , de 1972).Corpo a corpo era ummonólogo de umpublicitárioque,àbeirada falência,sevêna iminênciadesetransformarem“povo”,caindonahierarquiasocioeconômica.

Orecrudescimentodacensura,entre1973e1975,prejudicoualgumaspeças comamplopotencial de público, comoCalabar, de ChicoBuarque eRuy Guerra, eRasga Coração , de Oduvaldo Vianna Filho. No caso deCalabar, o consagrado compositor Chico Buarque investiumuito dinheirona produção, e a proibição da peça foi um duro golpe inanceiro na suacarreira.Otextopropunhaumarevisãoda iguradeDomingosFernandesCalabar a partir da ótica da sua viúva, Bárbara, colocando uma questãocrucial: o que é ser um traidor da “pátria” (como a história o icialapresentava a igura de Calabar) quando, na verdade, se vive numacolônia,dominadaporumgovernoantipopularerepressivo.Obviamente,ofoco da crítica de Chico e Ruy Guerra era a conjuntura repressiva e“entreguista”(comoeramquali icadosaquelesque“entregavam”opaísàsmultinacionais do capitalismo) emque o Brasil vivia após o golpemilitar.Como resultado dessa ousadia crítica, a peça foi totalmente proibida, omesmo acontecendo com oLP (as letras das faixas e a capa, com o nome“Calabar”pichadonummuro, foramproibidas).Chicoaindaretornariaaoteatroem1975,comGotad’Água,escritacomPauloPontes,umaadaptaçãoda tragédiaMedeia, deEurípedes,parao subúrbio carioca.Comoa críticasocial e política era inserida num contexto de vida privada, a censura

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liberouapeça,queacabousendoumgrandesucessodepúblicoecrítica.

Apartirde1976,soboclimadadistensão,avertentenacional-populardoteatro iniciouumaespéciedereconciliaçãocomopúblico,masporumcaminho diferente.Gota d’Água (que estreou em dezembro de 1975,

direção de Gianni Ratto) e oÚltimo Carro259 (março de 1976, texto edireçãodeJoãodasNeves)foramgrandesfenômenosteatrais,sinalizandoo triunfo da corrente nacional-popular que se propunha a examinar ascondiçõesde vidadopovobrasileiro sob amodernização conservadora apartir de linguagem e encenação realistas.Último Carro era ambientadaemumvagãodetremdesubúrbio,quepareceestaremumaloucacorridasem motorneiro, vários operários e lumpens tentam tomar o controle dasituação. A partir deste mote, surgem individualidades em choque naformaçãodeumacoletividadecapazdecontrolarotremeevitaratragédiaque se anuncia.Gota d’Água também se debruçava sobre os efeitos damodernização, com o canto de sereia da ascensão social impactando arelaçãoamorosade Joanae Jasão, culminadonoassassinatodos ilhosdo

casal pela mãe suicida.260 A ingenuidade da arte nacional-popular deesquerda nos anos 1960, que via o povo como um ente orgânico e semdivisões internas, era substituídaemambasaspeçasporumavisãomaiscrítica,explorandoosentidodramáticoepolíticodasdivisõesinternasdasclassespopularesedosseusimpassesdiantedamodernizaçãocapitalista.

Na segunda metade dos anos 1970, surgiram novos grupos que

marcaram época.261 Os mais importantes foram: Asdrubal Trouxe oTrombone(RJ),Pau-Brasil(embriãodoCentrodePesquisasTeatrais,comoapoiodoSescdeSãoPaulo),Mambembe(SP)eTeatrodoOrnitorrinco( SP).As produções e as trajetórias dos membros desses grupos (autores,diretores e atores) sinalizavam novas tendências na dramaturgiabrasileira: a fusão entre linguagens diversas (mímica, música, circo,dança); a incorporação do deboche, da paródia e do humor corrosivo; a

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renovação dos recursos cênicos; linguagem cênica despojada (poucosobjetos de palco, utilização dos espaços vazios, cenário econômico evalorização dos efeitos de iluminação). Os grupos foram os responsáveispor grandes sucessos de público e crítica no inal da década de 1980:Asdrubal protagonizou o impagávelTrate-meLeão (1978), inaugurandooteatro do “besteirol”, no qual piadas nonsense, situações surrealistas,imitaçãodetipossociaisecríticadecostumesse fundiamnumespetáculoleve e bem-humorado, sem cair na banalidade. O Teatro do Ornitorrincodeslanchouparaosucessopropondooutra leituradodramaturgoalemãoBertoltBrecht(OrnitorrincoCantaBrecht-Weil ,1977,eMahagonny,1982),a partir de uma ótica bem-humorada, enfatizando o clima de cabaré dosespetáculos brechtianos.Pau-Brasil, dirigido por Antunes Filho, marcouépoca no teatro brasileiro com uma leitura carnavalesca e criativa deMacunaíma (1978), a partir da obra de Mário de Andrade. A peçatrabalhavacomumdespojamentoradicaldopalco,dandoespaçoparaumaelaboradatécnicagestualdosatores,articuladosporumtextoprovocativo,ágilebem-humorado.

A “abertura” e o abrandamento da repressão trouxeram de voltadiretores e autores consagrados, exilados ou proibidos pela censura.Voltamaopaísparaagitaraindamaisocenárioteatral:JoséCelsoMartinezCorrêaem1978,criandoseunovogrupoUzyna-Uzona;AugustoBoal,como sucessoMurro em Ponta de Faca (1978), fez um balanço dramático daexperiênciadoexílio.Como imdacensuraprévia,em1979,muitostextosproibidos foramencenados. Entre eles, destacam-se RasgaCoração (sobadireção de José Renato, 1979), de Oduvaldo Vianna Filho, que trata docon lito de gerações entre pai e ilho, ambos militantes de esquerda, eBarrela(1980),dePlínioMarcos,sobreavidanoseiodamarginalidade.

Naáreadocinema,o inaldadécadade1960eaprimeirametadedadécada de 1970 também con iguravam uma crise estética e política.

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Cercadopela indústriacinematográ icanorte-americana(emboranaquelemomento Hollywood também não vivesse seus melhores dias) e pelatendênciamaisintelectualizadadosrealizadoresligadosaoCinemaNovo,ocinema brasileiro dependia cada vez mais do apoio o icial para realizarilmes que fossem além da demanda por lazer, marca principal do gostopopularpelocinema.OCinemaNovotinhaconseguidoumreconhecimentoinédito para o cinema brasileiro, consagrado em festivais considerados“artísticos”, comoosdeVenezaeCannes,mascareciadeumapenetraçãomaiornopúblicomaisamplodeclassemédianoBrasil,emboraagradasseplateiasestudantiseintelectualizadas.

Os impasses em torno da função social e estética do cinema, jáanunciados emTerra em Transe de Glauber Rocha, foram radicalizados

pelo chamado “cinema marginal”,262 cujos marcos foram os ilmesOBandido da LuzVermelha, de Rogério Sganzerla,Matou a Família e Foi aoCinema,deJúlioBressane,eAMargem,deOzualdoCandeias.

Assim comono teatro, o cinema “marginal” pode ser enquadrado comuma variante da contracultura brasileira, propondo a transgressãocomportamentaleadestruiçãodequalquerdiscurso lógicoe linear comoas bases da sua criação. Nesses ilmes, a linguagem do humor e dogrotescoerautilizadacomobasedasalegoriassobreoBrasil,consideradoumpaís absurdo, semperspectivaspolíticas e culturais. Por outro lado, ocinemamarginal tambémradicalizouuma tendênciaque seanunciavanomovimento tropicalista:oestranhamentodiantedaoutrora iguraheroicadopovo.As iguras simbólicasdas classespopulares sãomostradas comogrotescasede“maugosto”,vitimizadaspeladesumanizaçãodasociedadeesugadas pelo sistema. O herói não era mais o operário consciente, ocamponês lutador ou o militante abnegado de classe média, mas o“marginal”, o pária social, o artista maldito, o transgressor de todas asregras.

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Mas as principais iguras do cinema brasileiro tentavam reciclar suascarreiras, diante da nova conjuntura e da derrota iminente da últimatentativa da esquerda em confrontar diretamente o regime (a “lutaarmada”). Glauber Rocha, considerado o maior diretor brasileiro,percorreu vários países a partir do inal dos anos 1960, ixando-se emCuba por alguns anos. Em1969, ganhou o prêmio demelhor direção emCannes comODragãodaMaldadeContraoSantoGuerreiro , retomando atemática deDeus e o Diabo na Terra do Sol (1964) a partir de umanarrativa mais acessível. Depois do agônicoCabezas Cortadas , Glaubermergulha numaprofunda crise criativa.Nelson Pereira dos Santos, outrodiretorconsagrado,conseguiurealizarumdosmaisimportantes ilmesdadécada, chamadoComoEraGostosooMeuFrancês (1971).O ilme éumareleitura da “antropofagia” cultural, tema em voga naquele momento. SeMacunaíma(JoaquimPedrodeAndrade),sucessode1969,eraumaleituratropicalistadoanti-heróideMáriodeAndrade,o ilmedeNelsonPereira,sutilmente, retomaumviés críticoemrelaçãoà tendênciadeaberturadacultura brasileira em relação às in luências externas. Além disso, o ilmecontémumasériedealusõesàsituaçãopolítica,comoacensura,atorturaeaguerrilha.InspiradonasagadeHansStaden,quepassouquaseumanoentre os tupinambás, no séculoXVI, o ilme inverte o destino dopersonagem (neste caso, um “francês”, e não um alemão). Na vida real,Stadenescapoudeserdevoradopelosíndios,enquantono ilme,o“herói”civilizador estrangeiro é comido, mas, antes de morrer, profere umaespéciedemaldiçãocontraos“brasileiros”queodevoraram.Santosaindafaria outros ilmes marcantes nos anos 1970, sobre a cultura afro-brasileira, intituladosO Amuleto de Ogum (1975) eTenda dos Milagres(1978), fundindo omisticismo afro-brasileiro à critica à opressão social epolíticaquesemprecaracterizousuaobra.

O ilme histórico também foi utilizado em chaves diferenciadas,aproveitando-sedaboavontadedo regimecomessegênero, considerado

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“educativo”. Os ilmes Independência ou Morte, de Carlos Coimbra, eOsInconfidentes, de Joaquim Pedro de Andrade, mostravam leiturasdiferentes dos eventos e personagens históricos “o iciais”. Enquanto oprimeiro ilmeassumiaahistóriao icial,narrandoosfatosconsagradosdemaneiralinearesimplista,enfatizandoosamoresdoimperadoretentandoimitar o luxo das produções estrangeiras, Os Incon identes foi realizadodentro de uma concepção “cinema de autor”, de produção barata,despojada e utilizando-se do tema da Incon idência Mineira para, naverdade, discutir a crisena esquerdabrasileira, o lugardo intelectual noprocesso histórico e sua fracassada opção pela luta armada contra o

regime militar. 263 Os revolucionários/incon identes no ilme se perdiamemilusõesdeconquistadopoder,projetosutópicosediscursosvazios,aomesmotempoqueseisolavamdapopulaçãoedostrabalhadores(nocaso,simbolizadospelosescravos).Ocuriosoéqueofilmepraticamentenãotemdiálogos próprios, sendo uma colagem de textos retirados dos Autos daDevassa,doRomanceirodaInconfidência(deCecíliaMeireles)edospoemasdeClaudioManoeldaCosta,TomásAntônioGonzagaeAlvarengaPeixoto.EnquantoIndependênciaouMortetornou-seumgrandesucessodepúblico(motivado, sobretudo, pela presença do casal nº 1 das novelas da época,TarcísioMeiraeGlóriaMeneses),o ilmede JoaquimPedronãoagradavaasplateiasmaisdesatentas,emboranãotenhachegadoaserumfracassodebilheteriacompleto. Independentementedaqualidadedeumououtro,ambos são documentos importantes para se compreender a complexacon iguração cultural do início da década de 1970, oscilando entre oufanismo o icial, partilhado por muitos setores da sociedade, e a críticavelada,exercitadaporpoucosmasinfluentesatoressociais.

Numa outra perspectiva,TodaNudez seráCastigada , deArnaldo Jabor,baseado na peça de Nelson Rodrigues, foi um grande sucesso de 1973,consagrandoojovemdiretorreveladopeloCinemaNovo.Delonge,o ilmefoi a melhor adaptação cinematográ ica das polêmicas peças do

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dramaturgo, que mostra as tensões entre personagens divididos entreuma moral rigorosa e um impulso para a transgressão, gerando culpas,expiações e autopunições. No mesmo ano,São Bernardo, de LeonHirszman, adaptava o livro homônimo de Graciliano Ramos, retomando ainvestigaçãosobreamentalidadeautoritáriadaeliteruralbrasileira,comometáfora dos tempos de repressão, conservadorismo e modernização

excludente.264

Trabalhando com o tema da sexualidade de uma forma maisquestionável, do ponto de vista estético e dramático, surgiu no início dosanos 1970 o gênero cinematográ ico que icou conhecido como“pornochanchada”. Geralmente, eram produçõesmuito baratas, feitas emestúdiosimprovisados,comatoreseatrizesdesconhecidos,amaioriadelessem talento dramático, mas com alguma beleza ísica. As histórias eramvariações dentro do mesmo tema: a traição conjugal, as estratégias deconquista amorosa, as moças do interior que se “perdiam” na cidadegrande, as relações entre patrões e empregadas ou entre chefes esecretárias.Apartirdessesmotes,os ilmesabusavamdascenasdenudez(feminina) e de simulações malfeitas de cenas de sexo.Independentementedasuabaixaqualidade,essegênerofoioresponsávelpor levar aos cinemas milhões de pessoas que nunca viam ilmesbrasileiros,geralmenteoriundasdasclassespopulares.Partedajuventudeciné ilapassouavernapornochanchadaumaestéticaválidaparacriticaro “bom gosto” imposto pela censura do regime e compartilhado até por

setoresdeesquerda,notadamenteacomunista.265

Apartirde1976,ocinemabrasileiroconheceusuamaiorconsagraçãode público, conciliando certo reconhecimento da crítica com um amploreconhecimento popular (inclusive da classe média, que resistia aospadrõesestéticosdonossocinema).Apartirdeentão,ocinemabrasileiro,apoiadopelaEmbra ilme,conseguiuumarazoávelpenetraçãonomercado

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nacional e, até, no internacional. Uma interessante conjugação entre umtipo de cinema “de autor” (linguagem mais pessoal e artesanal) e umcinema mais “industrial” ( ilmes tecnicamente bem-feitos com grandeesquemadeencenação)foiexercitadaemváriasproduções,quepareciamreverteratendênciaà“faltadepúblico”crônicaqueonossocinemasofria.Neste sentido, os ilmes de Cacá Diegues, comoXica da Silva (1976), eBrunoBarreto, diretor deDonaFloreSeusDoisMaridos (1976), foramosprincipais referenciais da época. Este último, aliás, se tornou o ilmebrasileiro mais visto de todos os tempos. Mesclando humor, erotismo eigurinos luxuosos, tornaram-se grandes sucessos de bilheteria até pelofatodesugeriremumaabordagemmais levedahistória,dosproblemasedoscostumesbrasileiros.Nessesentido,sinalizavamoutrocaminhoparaocinema, diferente do Cinema Novo e retomando, num nível de produçãomais so isticada, a tradição do humor e da chanchada carnavalesca dosanos1950.Onaturalismotemperadopelomelodramasocialfoiaprincipallinguagem de crítica social no cinema do inal dos anos 1970. Nessesentido, os ilmes de Hector Babenco, argentino radicado no Brasil, sãoexemplares:Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia (1978) ePixote, a Lei doMais Fraco (1980). Mergulhando na vida de marginais, adultos e mirins,Babencoconstruiuumadenúnciahiper-realistasobreosistemacarcerárioe sobre a lógica de exclusão e violência entre os menores abandonados,produzida pela desigualdade socioeconômica aliada à falta de cidadania.Cacá Diegues realizou, no inal da década,Bye-Bye, Brasil (1979), queprocuravaconciliarcríticasocialepolíticacomumalinguagemmaisleveebem-humorada.O ilme,sucessodepúblicoedecrítica,contavaahistóriadeumacaravanadeartistaspobres,a“CaravanaRolidei”,quepercorriaointerior do Brasil. A partir desse tema, Diegues apresentava um balançocríticodamodernização conservadorabrasileirados anos1970,plenadedisparidades regionais e sociais e dos efeitos da indústria cultural no“Brasilprofundo”.

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Emmeadosdadécadade1970,o regimemilitarpercebeuqueestavaperdendoabatalhadacultura.OsvetustosmembrosdoConselhoFederalde Cultura não tinham omesmo prestígio dos intelectuais conservadores

dos anos 1940 e 1950.266 A censura só era aplaudida por uma pequenaburguesia ignorante e sem capacidade de construir hegemonias e dein luenciar os “formadores de opinião”, ligados aos segmentos maisescolarizados da classe média. Os intelectuais, liberais e de esquerda,cristalizaramaideiadeumregimeanticultural,repressordasliberdadesedacriatividade.

Era preciso construir uma política cultural proativa, que nãonecessariamente signi icava abrirmão dos instrumentos repressivos. Emoutras palavras, o regime militar tentou combinar repressão seletiva,regulamentação da vida cultural e mecenato que não era vedado aosartistas de oposição. Neste processo, valores conservadores, folcloristas,nacionalistas e autoritários se combinavam com defesa do patrimônio,construçãodeummercadodebenssimbólicosevalorizaçãodetemasquetinham muitos pontos em contato com o nacional popular de esquerda.Sem contar com intelectuais orgânicos valorizados pela classe médiaintelectualizada, o regime evitou se pautar por um estrito controle deconteúdonosprodutoseobrasdearte.Estavamaispreocupadocomoquenão deveria ser dito do que com a construção de uma estética e de umtemário o iciais. Lançou um canto de sereias a artistas de oposição,sobretudo no teatro e no cinema, que não icaram indiferentes, mesmosabendo dos riscos políticos de dialogar com um governo que prendia,censurava,torturavaematava.

Em que pese esses esforços para construir uma política culturalpositivaeproativa,oregimemilitarbrasileiropassouparaahistóriacomoum regime que cerceou e controlou a expressão artística e cultural. Seexistiu uma “política cultural” que perpassou os governos militares, ela

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pode ser resumidanumapalavra: censura.Comoos artistas, jornalistas eintelectuais foramos únicos atores sociais quemantiveramalgumespaçodeliberdadedeexpressãoapósogolpe,anovaondaautoritária,pós-AI-5,recaiu com especial vigor sobre eles. Na verdade, no caso particular do

teatro,aatuaçãodoscensoreseraconstantedesde1964.267

A ação da censura e seus efeitos eramdiferenciados conforme a áreadeexpressãoeanaturezadaobracensurada.Entre1969e1979,quandoa censura foi mais rigorosa, o teatro foi uma das áreasmais afetadas, e,como já dissemos, não precisou esperar o AI-5 para sofrer os rigores da

censura.Foramcercade450peças interditadas, totalouparcialmente. 268

Nocinema,foramcercade500 ilmes(muitosestrangeiros). 269Namúsicapopular, alguns compositores foram particularmente perseguidos, comoChico Buarque, Gonzaguinha, Taiguara, entre outros, mas, mesmo com a

“abertura”, a censura de tipo “comportamental” não arrefeceu. 270 Naliteraturapropriamentedita,acensura foimaisatuanteapartirde1975,contradizendo a própria tendência de “abertura” do regime militar. Atéporque o mercado editorial no Brasil conheceu uma grande expansão apartir da segunda metade dos anos 1970. No total, cerca de 200 obras

literáriasforamproibidas.271

Paralelamenteaessesprocedimentosdevigilânciaesilenciamentodasvozes da oposição cultural e política, o regime militar desenvolveu umconjunto de políticas de incentivo à produção cultural, chegando, emalgumas áreas, a apoiar inanceiramente a produção e a distribuição dasobras,comonocasodocinema.Essatendênciaseincrementouapartirdasegundametadedosanos1970,masjáseesboçava,timidamente,no inaldadécadaanterior.Algumasagênciaso iciaissedestacaramnessapolíticadepromoçãoedistribuiçãodacultura.AEmbra ilme,surgidaem1969,eoConcine(ConselhoSuperiordeCinema),em1975.Aprimeira,aprincípio,tinha a função de ajudar na distribuição de ilmes brasileiros e com o

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tempopassouaapoiartambémaprodução.Lembramosqueadistribuiçãodos ilmes (a chegada das cópias nas salas de cinema do Brasil e domundo)eraograndeproblemadocinemabrasileiro,desdeosanos1950.Com o mercado dominado por Hollywood e suas distribuidoras, muitosilmes com um bom potencial de público simplesmente não conseguiamcompetircomocinemanorte-americanoporquesequereramexibidosnamaioriadas salasde cinemaoupromovidosdemaneirae icaz.QuantoaoConcine,suaprincipaltarefaeranormatizare iscalizaromercado,criandoleisdeincentivoeobrigatoriedadedeexibiçãodeumpercentualde ilmesbrasileiros. O mecenato o icial causou muita tensão no meiocinematográ ico,sobretudodepoisdaadesãodogrupooriundodoCinemaNovo à política cultural do regime, informado pela defesa do “cinema

brasileiro”edeumprojetodenação.272

Outra agência o icial que se destacou nos anos 1970 e realizou umimportante trabalho de divulgação cultural foi o SNT (Serviço Nacional deTeatro). Com inúmeras campanhas de popularização (barateamento doingresso) e apoio direto à produção, o SNT, paradoxalmente, contribuiupara divulgar uma das áreas mais perseguidas pela censura. E não sepense que apenas “peças o iciais” eram apoiadas. Muitas peças deconteúdo crítico e atores ligadosàoposição tinhamoapoiodoSNT.O casomais famoso foiPatética, alegoria sobre a morte do jornalista VladimirHerzognasdependênciasdoIIExércitoemSãoPaulo.ApeçafoipremiadapeloSNT, mas a censura vetou a entrega do prêmio e a montagem. Aprópria nomeação de Orlando Miranda, empresário teatral que tinha oapoio de setores da classe artística, para a direção do SNT em 1975representou uma complexa e longa negociação entre pro issionais de

teatroeoGovernoFederal,apartirde1973.273

A princípio, pode parecer estranha e irracional a política cultural doregime militar. Por um lado, censura e perseguição aos artistas e, por

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outro, apoio direto à produção cultural nacional. Nesse sentido, algunspontosdevemseresclarecidos.

Emprimeirolugar,oapoiodiretoàcultura“nacional”cresceuàmedidaquea censura icoumaisbranda (apartirde1975), sugerindo, com isso,umaespéciedecoroláriodapolíticadeabertura“lenta,gradualesegura”dogovernoGeisel (1974-1979). Lembramosque esse governo tinhaumapolíticade“distensão”emrelaçãoaosartistasejornalistas,comoformadediminuiroisolamentojuntoàopiniãopúblicadeclassemédiadasgrandescidadesbrasileiras,leitoradejornaiseconsumidoradeprodutosculturais.Aderrota surpreendentedopartido o icial, aArena (AliançaRenovadoraNacional), nas eleições de 1974 havia deixado o governo perplexo comocomportamentodoeleitoradodasgrandescidades,eaaproximaçãocomaimprensa e os artistas era um canal importante de comunicação entreEstadoesociedade.

Em segundo lugar, devemos ter em mente que alguns governosmilitares, como o do general Geisel, apesar de, em linhas gerais,aprofundar os elos econômicos com o capitalismo internacional,desenvolviamumapolíticanacionalistaemváriossetores.Aculturaeraumdeles,poiseravistapelosmilitarescomoummeiode“integraçãonacional”,independentemente do conteúdo das obras. O fato de uma produçãonacional, na música, no teatro, no cinema, conseguir formar um públicorepresentavaamanutençãodeumespaço importanteperantea “invasãoculturalestrangeira”,sobretudonorte-americana,cujaforçaeconômicaeraavassaladora. Apesar de toda a perseguição, setores da esquerdanacionalista,ligadaaoPCB,vislumbraramelementospositivosnestapolíticaculturalnacionalista.

Em terceiro lugar, havia uma contradição entre os diversos órgãos eagências do governo. Enquanto os órgãos militares e de segurançamantinham uma lógica de controle, repressão e vigilância, muitos órgãos

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da cultura eram dirigidos por pessoas ligadas às artes e ao meiointelectual, sobretudoapós1975, comoRobertoFarias (naEmbra ilme)eOrlandoMiranda(noSNT).EssesnomeseramelosentreoEstadoeaclasseartística,desempenhandoumpapeldemediadoresdastensõesentreumeoutro. Além disso, o mecenato cultural era um importante dispositivo dogovernoparatentar“cooptar”opositoresemantê-lossobcontrole,mesmopermitindocertaliberdadedeexpressãoemsuasobras.

Atentativadedotardemaiororganicidadeapolíticaculturaldoregimemilitar e sistematizar a aproximação com os artistas e intelectuais icouclaranodocumentointitulado“Políticanacionaldecultura”,publicadopeloMinistério da Educação e Cultura (MEC), em 1975, e elaborado sob acoordenaçãodeAfonsoArinosdeMelo Franco, a pedidodoministroNeyBraga.Essedocumentorevelaasváriasfaces,muitasvezesparadoxais,darelaçãodo regimemilitar comacultura.Porum lado,mantémopapeldevigilantedoEstado,quedeveria “zelar”pelo“bomgosto”naprogramaçãodosmeiosdecomunicaçãoenaproduçãoartística,palavrasquefacilmentederivavam para a censura pura e simples. Por outro, enfatizava anecessidade de “proteger a cultura nacional” do “colonialismo”disseminado pela indústria cultural, que ameaçava descaracterizar o“homembrasileiro”.Curiosamente,essamesmaindústriaculturalcresciaapassos largos, favorecida pela política de desenvolvimento econômico epelaexpansãodomercadorealizadapelopróprioregime.

Alémdisso, o tomnacionalista e crítico em relação à culturademassaacaboupor agradar alguns setores da esquerda, que, apesar de inimigosideológicos do regime, aplaudiram a preocupação do governo Geisel emrelação a estes pontos. Sobretudo os artistas que não tinham espaço nomercado acabaram por vislumbrar uma possibilidade de o Estadocontrabalançar a supremacia das empresas privadas nacionais emultinacionaisnaárea cultural.Artistas conhecidospela suaverve crítica

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aopoderchegaramaelogiarogovernomilitar.Oscasosquemaisgerarampolêmica na opinião pública foram as declarações elogiosas a Geisel eGolbery do Couto e Silva (o estrategista da abertura) feitas por GlauberRochaeJardsMacalé.

Ao ladodacriaçãodaFunarte, em1975,uma fundaçãode incentivoàprodução artística e à conservação do patrimônio cultural nacional(folclórico e histórico), a “Política nacional de cultura” foi o grandeacontecimentodapolíticaculturalde1975.Issonãosignificaqueacensuraimplacável, a cargo do Departamento de Polícia Federal (DPF), tivesseacabado.EmboramaisbrandadoquenofinaldogovernoMédici(1972atéoiníciode1974),acensurao icialpréviasefezpresenteaté1979,quandofoipraticamenteextintacomopartedaagendadeaberturadoregimeedetransiçãoparaogovernocivil.

Ummovimento cultural signi icativona culturabrasileira, gestado foradas correntes consagradas nos anos 1960, foi protagonizado peloschamados “independentes” ou “alternativos”. A rigor, o uso da expressão“movimento”eramaisaplicávelemrelaçãoaosmúsicos.Estes,no inaldadécada de 1970, e sobretudo a partir de 1979, conseguiram ocupar amídia e chamar a atenção da crítica musical com sua palavra de ordem“Contra todas as ditaduras: a ditadura política e a ditadura domercado”.Mas,alémdocampomusical,podemoslocalizar,entre1977e1985,oaugedeumasigni icativaculturaindependenteealternativa,quereprocessouolegado da contracultura do inal dos anos 1960 e semanifestava não sónas artes, mas em posturas comportamentais diante da nova conjunturasocial e cultural que o país atravessava, marcada por alguns elementosbásicos: o clima de abertura política, a presença avassaladora de umaindústria cultural cada vez mais so isticada e as novas perspectivaslibertárias e antiautoritárias abertas pelo Partido dos Trabalhadores,partidodeesquerdafundadoem1980,comgrandepoderdeatraçãojunto

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àjuventudeuniversitária.

Omeio socialuniversitárioeraabaseda culturaalternativae sofrera,nos anos1970, uma grande expansão, incluindo cada vezmais jovensdaclasse média baixa, bastante in luenciados pela indústria cultural. Essanova juventude universitária era marcada por um conjunto de atitudesambíguas e até contraditórias: recusa e, ao mesmo tempo, aceitação dosprodutose linguagensdaculturademassa;umaatitudepolíticaoscilandoentre a vontade de participar e discutir os temas nacionais e certodescompromisso em nome da liberdade comportamental e existencial; ocultoàindividualidadeeasrelaçõesprivadaseafetivasemdetrimentodasimposiçõescoletivistas(queatéentãomarcavamaculturadeesquerda);orecursoaohumoreaodebochecomoformasdecríticasocial;aperdadereferenciais de mudança revolucionária da realidade social em nome deuma “revolução individual”, que muitas vezes caía num vago“autoconhecimento” psicologizante ou num esoterismo místico. Outramarca dessa geração era a busca por novos espaços e formas departicipação política, como os movimentos de minoria, o movimentoecológicoeosmovimentosculturais.

Omovimentoindependenteealternativotinhainúmerasfacetas,eéatéarriscado propor uma interpretação histórica muito panorâmica. Mas,efetivamente, parece ter ocorrido uma convergência de característicasculturais e comportamentais quemarcou uma geração de jovens do inaldosanos1970e iníciodosanos1980,quehavia crescidosobaditadura,sob o AI-5, e, mesmo possuindo o natural desejo de participação (atéporque a ditadura ainda era uma realidade contundente), viam seuscaminhoscerceadose limitados,sejapor fatorespolíticos,sejapor fatoreseconômicos.OmovimentofoiparticularmenteforteemSãoPaulo,ondeatéum bairro inteiro se notabilizou como o centro geográ ico da vida“independente e alternativa”, a Vila Madalena. Ao lado do tradicional

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bairro do Bixiga, eram os centros da boêmia alternativa. A “Vila”concentravaapopulaçãoestudantildeSãoPaulo,dadaasuaproximidadecom a Cidade Universitária e por causa dos seus (outrora) aluguéisbaratos. Bares, escolas, livrarias, repúblicas estudantis e de artistasdividiamespaçocomfamíliasdeclassemédiaevelhosmoradorescriandoumapaisagemurbanaacolhedorae aconchegante,numaépocaemqueacidade passava por mudanças profundas, com bairros inteiros sendodestruídos pela especulação imobiliária. Em outras capitais, como Rio deJaneiro, Belo Horizonte e Curitiba, os movimentos de música, teatro epoesia “alternativos” também tinham um espaço signi icativo da vidaculturaleurbana.

Culturalmente falando, os “independentes” seguiam a tradição dos“malditos” e do “desbunde”, marcas da cultura jovem underground doinício dos anos 1970. A abertura para o humor, as ousadias formais erecusa dos grandes esquemas de produção e distribuição do produtocultural foram incorporadas como heranças do início da década. Namúsica, por exemplo, os cantores e instrumentistas optavam por gravardiscos à própria custa em pequenos estúdios e distribuí-los em lojaspequenasoude“portaemporta”.Napoesia,essaatitudededespojamentoe recusa viu-se traduzida pela “geração mimeógrafo”, que, sem dinheiropara imprimir seus livros em grá icas industriais, utilizava-se dessaengenhoca barata e caseira para rodar seus romances e poemas edistribuí-los pela cidade. Grupos de teatro amador ocupavam os espaçosdoscampi universitários, dos teatros decadentes dos centros urbanos ourealizavamhappenings em bares e nas ruas. Em todas as áreas, algumascaracterísticas eram comuns: a busca da linguagem despojada eespontânea;arecusaaoesquemacomercialdegravadoraseeditoras;umapostura política; o recurso ao deboche e à linguagem do kitsch (“maugosto”); a tentativa de romper as fronteiras entre estilo de vida,autoconhecimentoeexperiênciaestética.

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Napoesia,nomescomoPauloLeminskieAliceRuiz(PR),Cacaso,Chacale Ana Cristina César (RJ), entre outros, encarnaram o “jovem poeta dosanos1970”.Comumaproduçãojádestacadadesdeoiníciodadécada,sobainspiraçãodeTorquatoNeto(companheirodostropicalistasem1968)edeWallySalomão(MeSeguraqueEuVouDarUmTroço ,1972),a “poesiajovem”ganhouamídiaeasruasnasegundametadedadécada.Ossinais

de vitalidade e presença da poesia jovem brasileira 274 eram muitos:dezenasderevistasliteráriasartesanaisempraticamentetodososestadosbrasileiros, pequenas editoras caseiras, feiras poéticas e outros eventos,gruposespecializadosemhappeningedeclamação(comooNuvemCigana,no Rio de Janeiro, e o Poetasia, em São Paulo). No início dos anos 1980,essa febre de poesia e literatura jovem e alternativa chegou às grandeseditoras.EmSãoPaulo,aBrasiliensesaiuna frente,organizandocoleçõesdepoesiaeprosa(CantadasLiterárias)etraduzindoclássicosdaliteraturajovem,comoosbeatniksnorte-americanosdosanos1950e1960.

Na música, a febre “independente” e “alternativa” foi maior ainda.Desde as polêmicas participações do músico Arrigo Barnabé e a bandaSabor de Veneno noFestival Universitário daTV Cultura (1978) e noFestival de MPB daTV Tupi de São Paulo (1979), a música independenteganha destaque na mídia. Propondo uma linguagem poética e musicalanticonvencional emesclandomúsica eruditadevanguarda, rockeMPB, anova música (também conhecida como “vanguarda paulista”) pareciaretomar as experiências mais radicais do Tropicalismo que a MPB maisaceita nomercado tinha deixado de lado. Arrigo era o mais destacado ecultuado artista do movimento, compondo e interpretando peçasindividuais e “óperas” pops (como o antológico long playClara Crocodilo ),sem tema melódico reconhecível (consideradas pela crítica beirando oatonalismo,semeixoharmônicocentral), trabalhadasapartirdearranjosousadoseinovadores,comletrasinspiradasemhistóriasemquadrinhoseprogramas de rádio.Numaoutra perspectiva, esteticamente tão inovador

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quanto Arrigo Barnabé, desenvolvendo uma proposta de fusão entrepalavra falada e melodia, o Grupo Rumo (Luis Tatit, Ná Ozetti e HélioZiskind) também marcou época, realizando um dos trabalhos maisoriginais daMPB, embora tenha permanecido pouco conhecido do grandepúblico. Vindos de Mato Grosso, Tetê (Espíndola) e o Lírio Selvagem eAlmirSatertraziamacontribuiçãodamúsicapantaneiraparaocenáriodavanguarda paulista. Na virada da década, Itamar Assumpção, autor deletras criativas, colocadas em músicas que fundiam o samba, o pop e oreggae,seguiriaumacarreirabastanteaclamadapelacríticamusical.

NoRio de Janeiro, amúsica independente aglutinou grupos emúsicosindividuais importantes. O pioneiro foi Antonio Adolfo, que produziu oprimeiroLP “independente” da história, propriamente chamadoFeito emCasa (1977); Luli e Lucina, dupla de cantoras, compositoras einstrumentistas; os grupos Antena Coletiva e A Barca do Sol, querevelaramostalentosdacantoraOlíviaByngtonedovioloncelistaJacquesMorelembaum,eogrupodemaiorsucessodomovimentoindependente,oBoca Livre (Zé Renato, Cláudio Nucci, Maurício Maestro, David Tygel),formadoem1978equeexplodiuem1980comumLPquevendeumaisde80mil cópias (feitonotávelparaumálbumquenão teveo apoiodeumagrandegravadoraedistribuídode“portaemporta”).

Masamúsica“independente”nãofoiprivilégiodeRiodeJaneiroeSão

Paulo.275 Nomes importantes surgiram em Minas Gerais (com destaquepara a cantora Titane, de Belo Horizonte, e artistas ligados ao vigorosomovimento cultural doVale do Jequitinhonha), noCeará (MarluiMirandatornou-se referência na coleta e gravação de cantos indígenas), na Bahia(ondeamúsicadecarnavalsempreteveumvigorpróprioeindependente,antes de ser “descoberta” pelo Brasil), entre outros estados. EmPernambuco e na Paraíba, o Movimento Armorial, criado em 1970 porArianoSuassuna,atravessavaadécadamesclandoofolcloremusicalcoma

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música erudita, somando-se a inúmeras iniciativas culturais locais (noteatro, na poesia, no artesanato e na música popular, sobretudo) quemarcavamavidadaquelesdoisestadosdesdeoiníciodadécadade1960.

Aprimaveraculturalbrasileiranãosucumbiuaostempos invernaisdoAI-5. Involuntariamente, a censura, a repressão e o controle social epolítico acabaram por dar uma importância renovada à vida cultural,espaço no qual a expressão crítica, mesmo que alegórica ou metafórica,ainda era possível. Convivendo com o mercado, à sombra dele oucompletamente inserida nas grandes estruturas de produção, a culturabrasileira de viés crítico e esquerdista foi uma espécie de “educaçãosentimental” dos jovens, sobretudo na direção de valores democráticos elibertários. Se não fez a revolução nem derrubou a ditadura com a forçadascanções, ilmesepeças, alimentouapequenautopiademocráticaqueganhariaasruasedariaotomdaslutascivisapartirdemeadosdosanos1970.

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Letrasemrebeldia:intelectuais,

jornalistaseescritoresdeoposição

A partir de 1964, omundo intelectual brasileiro tornou-se um espaçodeoposiçãoàditadura,oramaisradical,oramaismoderada.Criou-seumarelação quase automática entre ser intelectual socialmente reconhecidocomotaleserdeoposição.Talvezpossamosquestioná-laapartirdeumaanálise ampla e rigorosa dos fatos, posto que haviamuitos intelectuais aserviçodaditadura,sejanacondiçãodeburocratasdosetorcultural,sejana condição de tecnocratas da área de planejamento e economia, por

exemplo.276

É inegável, entretanto, que boa parte dos intelectuais brasileiros foicrítica àditadura, frequentemente se apoiandoemvalores e tradiçõesdeesquerda. Ser “intelectual de esquerda” de inia a essência do ethosoposicionista ao regime militar e, em que pese essa aparentehomogeneidade ideológica do mundo intelectual, nele se ocultava umaamplagamadeideias,correnteseposiçõespolíticas.

O intelectualdequetratamosnestecapítulopodeserde inidoapartirdo manejo pro issional da palavra e do pensamento, um elo comumpresenteemváriosramosdeatividadepro issional,queincluíaapesquisaacadêmica, a docência no ensino superior, os estudantes universitários, ojornalismo pro issional, militante ou partidário, a escrita literária

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pro issional. Cada campo de atividade experimentou convergências eparticularidadesnaconstruçãodesta identidade intelectualquemarcouocampooposicionistaaoregime,equesempreseconstituiuemumdesa iopara que os generais no poder pudessem consolidar sua legitimaçãosimbólicaepolíticaperanteasociedadecomoumtodo.

Osartí icesmilitaresecivisdogolpemilitarde1964esperavamcontarcom boa parte das elites intelectuais na tarefa de conter as “massasignaras”eas “lideranças irresponsáveis”queagitavamoambiente.Antesmesmodofatídico31demarço,muitosjornalistas,professoreseescritoresaderiram à conspiração anti-Goulart. Mas amesma imprensa liberal queapoiouo golpe algunsdias depois já dava espaço às críticas direcionadasaosnovosdonosdopoder, sobretudoporqueperceberama imposiçãodeumprojetopolíticoque iaalémdamera intervençãocirúrgicaparadeporGoulart e afastar os esquerdistas do coração do Estado. As perseguiçõesefetuadas no “mundodas ideias” acendeu o alerta de várias consciênciasliberais sobre o caráter do novo regime. Nesse contexto, por exemplo,surgiu a noção de “terrorismo cultural”, que seria importante paralegitimaraoposiçãointelectualnoimediatopós-golpe.

Foi um católico liberal, Alceu Amoroso Lima, indignado com asperseguiçõesnomeiouniversitárioecomoasdemissõesdeCelsoFurtado,AnisioTeixeirae JosuédeCastrodosseuspostospúblicos,quem forjouasenha inicial para a resistência intelectual ao regime, ao cunhar aexpressão “terrorismo cultural”. Lima, no começo dos anos 1960, já nãoera mais o intelectual católico, erudito e reacionário dos anos 1920 queassinava sob o pernóstico nome de “Tristão de Athayde”. Convertido aoliberalismo, produziu re lexões bastante lúcidas sobre o processo de

radicalização política em curso nos anos 1960.277 Ao disseminar aexpressão “terrorismo cultural”, Alceu Amoroso Lima captou umsentimentocoletivodeimportantessetoresdaclassemédia,sintetizandoa

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denúncia dos abusos e arbitrariedades do novo regime sob uma

perspectiva insuspeita, pois seu anticomunismo era notório.278 Em tomtipicamente liberal e afeito à tradição da cordialidade, Alceu apontava

que:279

O terrorismo tambéméantibrasileiroepor issomesmoa formaquevemassumindoentre nós ainda assume os aspectos mais suaves e indiretos, como, por exemplo, oterrorismo cultural, a guerra às ideias [...]. Agora, quando pretendemos ter feito umarevolução“democrática”,começamlogocomosprocessosmaisantidemocráticos,decassarmandatos e suprimir direitos políticos, demitir professores e juízes, prender estudantes,jornalistas e intelectuais emgeral, segundo a tática primária de todas as revoluçõesquejulgam domar pela força o poder das convicções e a marcha das ideias. Os nossosjornalistas, professores, estudantes, sacerdotes, intelectuais, ilósofos, ainda presos entrenós, estão sendo vítimas deste terrorismo cultural, tanto mais abominável quanto maisdisfarçado.Etãoprofundamenteantibrasileiro!

Paraele,aperseguiçãoàquelesquetinhamideiascontráriasaoregimefazia com que atores sociais que deveriam ajudar a construir anacionalidade sob nova direção – estudantes, jornalistas, ilósofos,sacerdotes – dela se afastassem. Perseguições feitas por um governopresidido pelo general Humberto de Alencar Castelo Branco que,justamente, orgulhava-se de ser um “intelectual” fardado, amigo deescritores, cuja imagem pública tentava a irmar como um “liberal” dacaserna.

Outroescritor,maisàesquerdaeheterodoxoemsuas iliaçõespolíticas,queproduziuumcorpoimportantedecríticasiniciaisaoregimefoiCarlosHeitor Cony. A balbúrdia festiva dos quartéis e o aplauso geral da classemédiaaosmilitaresaindaestavamvigorososquandooescritor lançouumconjuntodecrônicas,posteriormentepublicadasemlivro,queseconstituiu

emgrandesucessoeditorial.280

AscrônicasdeConyforampublicadasentreabriledezembrode1964no jornal cariocaCorreiodaManhã , servindonãoapenaspara ixaro seuautor nos anais da história da resistência ao regime como também paraconsolidara imagemdeumjornalismocrítico, liberale independente,que

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acabouporseconsagrarposteriormentenamemóriasocial,emquepeseoapoio geral da imprensa ao golpe. Lembremos que o mesmo Correio daManhã havia veiculado dois editoriais violentíssimos contra o agonizantegovernoJoãoGoulart,osfamosos“Basta!”e“Fora!”,escritospelaequipedeeditoresdaqual faziaparteomesmoCarlosHeitorCony, e que serviramdesenhaelegitimaçãoparaolevantemilitar.

Cony não escondia sua antipatia política pelo governo deposto.281

Aliado a este fato, sua independência partidária e seu individualismocrítico,exercitadoscomumacorajosavirulência,ajudaramadisseminarelegitimar as duras críticas que fazia ao novo regime. Em uma de suasprimeirascrônicas,dizia: “Nãopedirei licençanapraçapúblicaouna ruada Relação [sede da polícia política no Rio de Janeiro] para pensar. Nemmuito menos me orientarei pelos pronunciamentos dos líderes civis ou

incivis do movimento vitorioso”.282 Na mesma crônica lança um apelo:“Apelo aosmeus colegas de pro issão, os que escrevem, os que exercematividadeintelectual,osqueensinameosqueaprendem.Nãoéhorapara

omedo,marquemoscadaqualnossaposição”.283

Imagens semelhantes se sucederiam em suas crônicas, que semprefaziamapelosà liberdadedepensamentoeopinião,bemcomoexortavamos intelectuais como os personagens principais da resistência. Após apromulgaçãodoAtoInstitucional,em9deabrilde1964,Conydenunciavaque o regime preparava outro “ato punitivo dos delitos de opinião”,reiterandoopapeldosintelectuais:“Éatravésdapalavra,epronunciando-a clara e corajosamente, sem medo, que podemos unir contra todos osanimaisqueparasobreviveremexalammaucheiro,mudamdefeitioecor,

usamchifresepatas”.284

Em maio de 1964, Cony escreveu em uma de suas crônicas maisfamosas:“Acreditoqueéchegadaahoradosintelectuaistomaremposição

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em face do regime opressor que se instalou no país”. Rea irmando osintelectuaiscomo“consciênciadasociedade”,Conyescreveu:“Sediantedecrimes contra a pessoa humana e a cultura, os intelectuais nãomoveremumdedo,estarãoabdicandodesuaresponsabilidade”.Namesmalinhadecrítica de Alceu Amoroso Lima, mas com mais pimenta nas palavras,denunciava a perseguição a sacerdotes, professores, estudantes,jornalistas, artistas, economistas, e rea irmava: “No campo estritamente

cultural,implantou-seoTerror”.285

TantoAlceuAmorosoLima,comseuliberalismobaseadonumaéticaderesponsabilidades, quanto Carlos Heitor Cony, em seu existencialismoindividualista e libertário, lançaram bases simbólicas importantes queperdurariam na memória da resistência cultural contra o regime: a) aditadura era contra a cultura; b) a ditadura era ilegítima, sobretudoporque tentava proibir os atos de pensamento; c) a ditadura perseguiaquem deveria ajudar a reconstruir o Brasil, ou seja, os “intelectuais”, até

entãosóciosdoEstadonosprojetospolíticosnacionais;286d)aditadura,aoimplantar o “terror cultural”, erodia sua base de sustentação na classemédiaque,grossomodo,haviaprestigiadoogolpe.

A imagem do “terror cultural” como elemento de rearticulação daoposição ganhou força e foi reiterada no manifesto de 14 de março de1965, publicado noCorreio da Manhã , veiculado como uma verdadeiraplataformadaoposiçãoqueserearticulava,tendocomoeixoaquestãodas

“liberdadesdemocráticas”, 287oquenãodeixadesersurpreendenteparaum dos jornais mais combativos a favor do golpe dado havia um ano. Odocumentoaindaseposicionavacontraarestriçãodosdireitosindividuais;contra a delação, violência e tortura; contra o obscurantismo e o “terrorcultural”; pelas garantias irrestritas ao direito de opinião, associação,reuniãoepropaganda;pelalibertaçãodospresospolíticos;pelasuspensãoda intervenção em sindicatos e diretórios estudantis; e pelo respeito à

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liberdadedecátedraeautonomiauniversitária.

Omanifesto era apoiado por 107 assinaturas de intelectuais oriundosde diversas correntes ideológicas, reunindo liberais comoAlceuAmorosoLima, Barbosa Lima Sobrinho, Otto Maria Carpeaux, Hermano Alves;trotskistascomoPauloFranciseMárioPedrosa; trabalhistasdeesquerdacomo Antonio Callado e Flávio Tavares; comunistas como Dias Gomes,JoaquimPedrodeAndrade,NelsonPereiradosSantos,OscarNiemeyereSergio Cabral. O leque diverso de apoiadores é prova da capacidadeaglutinadora da resistência cultural, argamassa que uma aliança políticaestritatemsempremaisdificuldadeemlograr.

Outro texto importante que sintetizou o clima de perseguição aomeiocultural nos primeiros tempos do regime foi o artigo de Márcio MoreiraAlves, que logodepois seria eleito deputado federal e icaria notabilizadoem1968 comopivôda crisepolíticaque culminarianoAI-5.O artigo eraintitulado “Delito de opinião” e foi publicado noCorreiodaManhã , em 24de junho de 1964. Ele começa fazendo referência ao apelo do generalGolberydoCoutoe Silva, ideólogodo regimemilitar, quea irmaraque “arevoluçãonãopodesealienardaintelligentzia”.Alvesprossegue:

E os demais revolucionários pensantes, civis e militares, indagam com ingênuaperplexidade, a razão da generalizada condenação que sofrem. A resposta é simples:continua a imperar o terror ideológico em todas as universidades do país [...] ninguémsofre de bom grado a prepotência policialesca. Enquanto houver penas para delito deopinião,osquetêmopiniãonãopodemapoiarogoverno.

A defesa da “liberdade de opinião” e a denúncia do “terror cultural”tinham a vantagem de operarem num território até então consideradocomo convergente – a “cultura” –, visto como um valor em si e comoinstrumento da grandeza nacional. Também tinham a vantagem decontornar a delicada questão da defesa do governo deposto, tema quecertamente dividiria a oposição ao regime que se forjava, contornandotambémaexortaçãoaosmovimentoseorganizaçõesdetrabalhadores,que

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certamente não contaria com a anuência dos liberais, tradicionalmenteantipopulares e marcados pelos valores oligárquicos. Assim, percebidacomo legítima e comoespaçode convergência dediferentes atores, ao seencaminharempara o campoda oposição ao regimemilitar, a resistênciacultural seria incorporada e reverberada por outros grupos ideológicos,sobretudo pelos comunistas, em sua busca da “unidade das oposiçõesdemocráticas”. A cultura parecia o terreno inequívoco para a irmar talestratégiadeunidade.

Em maio de 1965, Nelson Werneck Sodré, historiador e militar

identi icadocomoPCB,publicouumlongoartigo288noprimeironúmeroda

Revista Civilização Brasileira 289 listando as violências contra a cultura,desde o golpemilitar. Não por acaso, o artigo intitulava-se “O terrorismocultural”, demonstrando como a expressão se plasmara como eixo daresistência, fazendo convergir liberais e comunistas. Nesse texto, Sodrérea irma os personagens da resistência cultural, apelando para a lutacontra o regime como uma defesa dos princípios gerais da liberdade depensamentoque ia alémdequalquer simpatiapeloprojeto reformistaoupelocomunismoemsimesmo.Ajudandoaapararasdiferençasideológicasdebase,adefesadaculturacomocampoprivilegiadodeaçãopoderiasera trilha para a unidade das oposições e para a reconquista dos liberaisdesgarrados da via democrática, uma vez que foram seduzidos peloautoritarismo de crise que os levou a apoiar o liberticídio de março de1964. Afasta-se, sutilmente, das posições defendidas por liberais, comoLima e Cony, ao redimensionar o papel dos intelectuais, menos comoexpressões de valores individuais e mais como canais da expressão dasideiasesentimentosdifusosdacoletividade:

Paraosquepretendiamacabarcomaagitação,asoluçãopareciaclara:amordaçarosagitadores. Essa foi a crença ingênua que, fundada no medo, moveu os atentadoscometidoscontraaculturaemnossopaís,desdeosidosdeabrilde1964.Comoaagitaçãocontinuou,muitosdossimplistasaestaaltura, terãoveri icadoqueaagitaçãonãoderivade atos de vontade, mas da própria realidade: os intelectuais não a gerem, apenas a

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refletem.290

Emquepeseassuasdiferençasemrelaçãoaosliberais,Sodréreiteravao personagem central da resistência naquele momento: os intelectuais.Escrevia ele: “A verdade, felizmente, é que os intelectuais portaram-semuito bem: os que tinham uma coluna tomaram posição contra osatentadosà cultura;amaioria,porém,não tinhaondeescrever, amaioriaestavaforagida,presa,exilada”.Valorizandoopapeldacultura,emtermosgenéricos, fazendo-a ponto de convergência das várias oposições aoregime, conclui: “O que existe, hoje, neste país, é um imenso, gigantesco,

ignominiosoIPMcontraacultura”.291

Justamenteemmaiode1965,oPCBdeSodréseposicionouo icialmentesobre o novo contexto político. Através da “Resolução deMaio”, de iniu ocaráter da ditadura (antinacional, antidemocrática, entreguista,reacionária) e denunciou que sua política econômica, subordinadacompletamente ao imperialismo norte-americano, era lesiva à “burguesianacional”. Portanto, o PCB reiterava sua política frentista lançadao icialmente em 1958, adaptada aos novos tempos autoritários. Assim,enfatizava a necessidade de “isolar” a ditadura, agregando as “forçasantiditatoriais” que deveriam ser pautadas pela “unidade de ação”. AResoluçãode1965incorporavaa imagemconsagradapelotextodeAlceuAmorosoLima,enfatizandoaculturacomoumdoscamposdecombatedaoposição:“Os intelectuaissearregimentamcontraoterrorculturaleparaexigir a restauração das liberdades democráticas e a retomada do

desenvolvimentoeconômicodopaís”.292

A aproximação com os intelectuais era fundamental para legitimar alutaamplapelasliberdadesdemocráticas,eixoprivilegiadodeaçãocontraaditadura.Odocumentoéexplícitonestesentido:“Aformaçãodestaamplafrentederesistência,oposiçãoecombateàditaduraserápossívelatravés

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da lutapelas liberdadesdemocráticas [...] inseparávelde todasasdemais

reivindicações,constituiporissomesmoamaisamplaemobilizadora”.293

O “Manifesto dos 1.500 intelectuais e artistas pela liberdade” (CorreiodaManhã,30demaiode1965)foiumdosdocumentosmaiscontundentesdesseprimeiro frentismo intelectualdeoposiçãoe a irmavaavocaçãodaresistência dos artistas e intelectuais, em discurso endereçado aopresidentedaRepública:

Sr. Presidente: os intelectuais e artistas brasileiros temem pelo destino da arte e dacultura em nossa pátria, neste instante ameaçada no que tem de fundamental: aliberdade. Estamos conscientes do papel que nos cabe na sociedade brasileira e daresponsabilidadeque temosnarepresentaçãodossentimentosmaisautênticosdonossopovo.Comodesempenharestepapeleexercerestaresponsabilidade,sedireitoàopiniãoeàdivergênciademocráticapassamaserencaradoscomodelito,eacriaçãoartísticacomoameaçaaoregime?

A linguagem nacionalista e o papel do intelectual como arauto dasociedade dão a tônica do documento, revelando a permanência daautoimagem do intelectual artí ice da nação, mesmo que as condiçõespolíticasfossemdiferentesapós1964.

Oprotestona frentedoHotelGlórianoRiodeJaneiro(9denovembrode 1965) tornou-se um dos atos civis da resistência intelectual mais

notórios daqueles primeiros tempos do regime.294 Alguns intelectuais eestudantes protestavam contra a reunião da Organização dos EstadosAmericanos(OEA) sediadanaquelehotel, vista comobraçode intervençãodosEstadosUnidosnaAméricaLatina.Perspectiva,aliás,comprovadapelaintervençãomilitarnaRepúblicaDominicanaparacombateromovimentopopular de apoio ao presidente reformista Juan Bosch, eleito em 1963 ederrubado nomesmo ano por um golpemilitar. A intervenção compostapor 1.100 militares brasileiros (ao lado dos 21 milmariners norte-americanos)foicomandadaporumgeneralbrasileiro(HugoAlvim),sendodevidamentesancionadapelaOEA.

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O ato de protesto culminou na prisão de oito intelectuais por umasemana, que icaram conhecidos como “Os oito do Glória”, tornando-sesímbolos do ativismo intelectual contra o regime. As faixas por elescarregadas, “Abaixo a ditadura” e “Viva a liberdade” tornaram-seemblemáticas da voz geral da resistência. Vestidos a caráter, de terno egravata,comme il faut para um intelectual da época, foram todos presosapóscertaperplexidadedasautoridadesquenãosabiammuitocomoagircontra aquele estranho grupo de senhores engravatados. Eram eles:Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade, Mário Carneiro (fotógrafocinematográ ico), o embaixador Jaime Azevedo Rodrigues (afastado doItamaratyporsuassimpatiasaCuba),odiretor teatralFlavioRangeleosjornalistasCarlosHeitorCony,AntonioCalladoeMárcioMoreiraAlves.

Em princípio, o ato em si foi um fracasso. Conforme Antonio Calladodeclarou,posteriormente:“Euestavapensandoquefossemaparecerpelosmenosunscem[intelectuaiseartistas].Apareceramoito.Tinhaumpouco

mais,quedesapareceramantesdeagenteserpreso”. 295Detodaforma,oque tinha tudo para ser um ato brancaleônico de protesto ganhourepercussãona imprensaeacabouporaliviararepressãoqueossetoresmaisdurosdoregimequeriamaplicaraospresos.Emcertosentido, icavaprovadaacapacidadedaresistênciaculturalempotencializaraocupaçãodo espaço público, nesse casomaterializado pela ocupação da rua, aindaqueporumpequenomaseloquentegrupodepessoas.

Esse aspecto não passou despercebido para os militares. Numa clarasugestão para apertar o cerco aos intelectuais, percebendo que o espaçoda cultura e das artes se articulava contra o regime, o texto do IPM 709,conhecidocomo“IPMdoPCB”,afirmava:

Ain iltraçãocomunistanomeiointelectualéextremamentevariada,emseusagentesesuas formas. Existe um certo número de elementos que pertencem aos quadrospartidários [...]. Há também numerosos escritores, artistas, jornalistas, professores quetrabalhamemproveitodoPartido semexerceremumamilitânciaostensiva [...]. Isso lhes

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dágrandeindependênciae lexibilidadedeaçãopermitindo-lhesatuaremváriasfrentes,legaisesemilegaissemseexporemàssançõesjudiciais,nemàdisciplinapartidária.296

Conclui, em tom sutilmente lamentoso: “De ummodo geral, a maioriadestaspessoasescapouàssançõesdaRevoluçãode31demarço”.

Em outras palavras, o “terrorismo cultural”, sob o ponto de vista doregime, nem mesmo havia começado, apesar da gritaria geral. Mas queninguém duvidasse: para a repressão, a “hora dos intelectuais” (e dosartistas)nãotardariaachegar.

O Ato Institucional nº 5, promulgado em 1968, foi considerado um“golpe dentro do golpe”, fazendo com que a repressão se tornasse maisdiretaeampla.Seaperseguiçãoaomeiointelectualnãoeranovidade,elaconheceria uma nova escala e novos meios de ação repressiva, como acensuraeavigilânciapolicialconstante.Aondadepuniçõesimpostaspeloregime em 1969, por exemplo, teve como foco o mundo acadêmico,concentrandoamaiorpartedos180professores cassadosoupunidosdealguma formapelo regime.Paraos intelectuaisque se envolveramcomaluta armada e com as organizações clandestinas de esquerda, a prisão,tortura e mesmo a morte passaram a fazer parte da experiência sob o

autoritarismo.297 O exílio também foi marcante para muitas trajetórias

intelectuais,tantonociclopunitivode1964quantonode1969-1970.298

OAI-5,oacirramentodacensuraeonovociclodepuniçõesadocentesem universidades públicas reforçaram a sensação de fechamento de umespaço público e de um tipo de ação intelectual que era relativamentevigoroso desde o golpe de 1964. Até 1968, intelectuais engajados deformaçãohumanistagenérica,ligadosaomundodacrítica,dasartesedasletras, eram os protagonistas principais da resistência cultural,materializada em um sem-número de artigos, manifestos políticos eculturaisquetinhamaimprensacomoprincipalveículo.Apartirde1969,

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entrou em cena o intelectual acadêmico e pro issional, ligadoorganicamenteaomundodasuniversidades,espaçosqueaindapossuíamalgumamargem de ação para o intelectual de oposição, ainda que sob omanto,nemsempreacessívelaograndepúblico,dosartigosacadêmicos.

Consideradofundamentalnoprojetode“desenvolvimentonacional”dosmilitares, o ensino de graduação e de pós-graduação foi incrementadocomonuncaapartirdo inaldosanos1960.Agraduaçãodeveriagerarosquadros de gerenciamento técnico e burocrático, tanto no setor públicoquanto no privado, fundamentais para a nova etapa de desenvolvimentocapitalista que se desenhava. Em 1980, eram cerca de 8,2 milhões detrabalhadores nessa grande área, quase 20% da populaçãoeconomicamente ativa. Em 1960, 18.852 pessoas concluíram o cursosuperior, número que passou para 64.049 (1970) e 227.997 (1980). Após-graduação também foi incrementada. Em 1969, havia 93 cursos demestrado e 32 de doutorado no Brasil, passando a 717 e 257,

respectivamente, dez anos depois.299 Os números são claros: o regimemilitar expandiu o ensino superior (sobretudo de caráter público), naexpectativadegeraçãodequadrossuperioresedepesquisaassociadaaodesenvolvimentonacional.Aofazê-lo,porém,incrementouasbasessociaisdo meio intelectual que, em linhas gerais, alimentava uma identidadeoposicionistaedeesquerda.

Já foiditoqueo “estado-maior”deste “partido intelectual”deoposiçãoeramos intelectuais,docentesepesquisadoresdemaiorprestígiosociale

institucional, enquanto os estudantes eram sua “guarda avançada”. 300 Oestímuloàpro issionalizaçãodasatividadesintelectuais,sejanoâmbitodasuniversidades, seja na indústria da cultura (mídia, editoras, publicidade,entreoutrosramos),criouumasituaçãoparadoxal,poisessenúcleosocialda oposição ao regime estava organicamente ligado ao processo de

modernização imposto pelos militares.301 Não é possível compreender a

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resistência cultural e artística no Brasil da ditadura sem levar em contaestedado.Issonãoimpediuqueasvozesdosintelectuaisfossemvigorosascríticasdaditadura.Oqueseviunosanos1970équeodebateintelectualextrapolou o meio acadêmico e interveio na agenda política e ideológica,lançandonovasbasesparapensaroprocessopolítico, social e econômicodoBrasil. Partindode agendas de pesquisa calcadas emdebates teóricosso isticados e inacessíveis ao público leigo, novas palavras de ordem ounovasestratégiasdeaçãoecríticaganhavamodebatepúblico.Dentrodocampo intelectual, uma viragem tornou-se cada vez mais clara. Ointelectualengajado,generalista,formadonaórbitadaIgrejaCatólicaoudoPartidoComunista,atuandona imprensadiáriaouassociadoàburocraciafederal da cultura, estava sendo paulatinamente superado por um novotipo de intelectual, especialista e pro issionalizado. Outra diferença dosanos1970équeotipodeintelectualqueseconsideravasóciodoEstadoeintérprete da nação para superar o atraso e o subdesenvolvimento, talcomo se a irmara, por exemplo, nos marcos do Instituto Superior de

Estudos Brasileiros (Iseb),302 dava espaço ao intelectual crítico, sempredescon iado do Estado, das instituições e valores dominantes e da“burguesia”,queseviamaiscomoporta-vozda“sociedadecivil”.

OCentroBrasileirodeAnáliseePlanejamento(Cebrap)foia facemaisvisível desta nova postura crítica do intelectual. Criado em1969, tendo àfrenteFernandoHenriqueCardosoeJoséArthurGianotti,oCebrapreuniuemsiaculturadapesquisaedorigorteóricoexercitadosnaFaculdadede

Filoso ia,LetraseCiênciasHumanasdaUniversidadedeSãoPaulo,303comavantagemdenão terque se submeter às restriçõesdeumaburocraciaacadêmicaempartea inadacomoregime.Nosprimeirosanos,odinheiroparasustentaraempreitadaveiodaFundaçãoFord,comsedenosEstadosUnidos, o que os mais radicais consideravam “dinheiro sujo” doimperialismo.AconsolidaçãodareputaçãoacadêmicadoCentropermitiuadiversificaçãodofinanciamento.

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AagendapropostapeloCebrapdesviou-sedaherançanacionalistadoIseb e do Partido Comunista, calcada na visão do Brasil como uma naçãoalienada de simesma, na estagnação econômica causada pela ditadura enadefesadaaliançasdeclassevoltadasemnomedosinteressesnacionaisdesenvolvimentistas.ApartirdoCebrap,oBrasilpassoua servistocomoresultado de um “desenvolvimento econômico” periférico e dependentedaseconomiascentraisdocapitalismo,masnãomenosvigoroso.Nocampopolítico,oCentrodedicou-seàcompreendercriticamenteoautoritarismoeasinstituiçõesdoEstadobrasileiro,problematizandoatesedefendidapeloPCBdequeoregimemilitareraumtipodefascismoàbrasileira.

Não foiapenasoCebrapquegalvanizouaação intelectualdeoposiçãonos anos 1970. Várias universidades também se tornaram espaços dere lexão crítica e pesquisa acadêmica, destacando-se em pontosespecí icos.Comoexemplo,podemoscitaracríticaàspolíticaseconômicasdo regime que tinham como epicentros o Instituto de Economia daUnicampe aPUCdoRiodeJaneiro;abuscadeumpensamentoacadêmicoorganicamenteligadoaosnovosmovimentossociaisqueemergiam,comoaPUCdeSãoPauloeoCedec(CentrodeEstudosdeCulturaContemporânea,fundado em 1976, a partir de pesquisadores saídos do Cebrap, comoFranciscoWeffort).OInstitutoUniversitáriodePesquisasdoRiodeJaneiro(IUPERJ), criado em 1969 na Universidade Candido Mendes, tornou-sereferência na área de Sociologia e Ciência Política. Também no Rio deJaneiro,oGrupoCasaGrande,animadopor intelectuais ligadosaoPartidoComunista Brasileiro, renovavam o frentismo cultural de coloraçãonacional-popularque tinhaoRiode Janeiro, tradicionalmente, seugrande

centro difusor. 304 Entre 1974 e 1979, é perceptível a aproximação detodos esses núcleos de pensamento e crítica intelectual, esboçando umagrande frente de oposição que não sobreviveria ao novo quadro políticopós-anistia e pós-reforma partidária. A volta dos exilados, as leiturasdiferenciadas sobre o papel dos movimentos sociais no processo de

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transição, a fragmentação de propostas partidárias à esquerda, foramfatais para o “partido intelectual”, que teve como sua última grandetentativadeaçãocomumacandidaturadeFernandoHenriqueCardosoaoSenado,em1978.

A literatura era, historicamente, a área de atuação do intelectualengajado por excelência, que se utilizava de várias formas de escrita(ensaio, crônica, contos, romance) para transmitir ideias e intervir nodebate sobre a sociedade e as liberdades públicas. Não foi diferente noBrasildoregimemilitar,apesardeoutrasáreasartísticas,comooteatro,ocinemaeamúsicapopular,teremmaiordestaquejuntoaograndepúblico.Naverdade,umdosapelosdessasartesditas“deespetáculo”équeelassetornarammaisliterárias, incorporandodemaneiracriativaemsuasobrasmaissofisticadasatradiçãodaliteraturacultadaprosaedapoesia.

O romance pós-golpe expressou a crise e o dilema dos intelectuaisdentrodo contextoautoritário.Nesse sentido,destacam-sedois romancescanônicos:Pessach: a travessia (Carlos Heitor Cony, 1966) eQuarup(AntonioCallado,1967).Emambos,o intelectual é forçadoadespir-sedesuasroupagenssociaiseaderiràlutaefetivacontraoregime.

O romancePessach: a travessia transformaria em matéria iccional oexercício de liberdade crítica das crônicas, temperado pelo clima deradicalizaçãodalutacontraoregimequejáseanunciava,comochamado

às armas feito inicialmente pelos brizolistas.305 No livro, um intelectualexistencialistaelibertário,inicialmentecríticodalutaarmada,acabaporseengajarnaguerrilhacomoumatode liberdadedepensamento,portanto,mantendo sua condição de intelectual e livre pensador. Depois de váriosepisódios quase rocambolescos, nos quais se destaca uma improvávelhabilidadedopersonagem-intelectualnastáticasdelutaarmada,semfalarna sua coragem diante do perigo, o intelectual se mantém íntegro,realizandosuapassagem,escolhendoseudestinoporopçãoecoerênciade

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ideias.Ouseja,mantendosuaindependênciaintelectual.

Paulo Francis, então um intelectual de esquerda, escreveu sobre o

romance:306

Conyestabeleceaabsoluta incompatibilidadedo intelectualcomas linhasmestrasdasociedadebrasileira[...]o“herói”secontemplaevêopróximocomprecisãoelucidez,masnãopassadisto [...].Dianteda solução revolucionáriaque lheépropostapordois tiposaquemdesprezapessoalmente,oprotagonistamanifestaumtomcético,fundadonãosóemrazões de temperamento como na descrença da viabilidade dos esquemas em ação daesquerdalocal.

Transmutando os impasses do personagem iccional para a condiçãohistórica efetiva dos intelectuais brasileiros, ao se referir ao autor Cony,

Francisarremata:307

Seu individualismo continua intransigente, mas ele incorporou à personalidade umsensoimpessoaldealternativa,ondeforçascoletivaspodema irmar-se[...]os intelectuaissãoumaespéciedesismógrafosocial[...]empaísessubdesenvolvidosondeamaioriaviveemcondiçõesadequadasàEradaPedraLascada,elessãomuitasvezesforçadosadeixarseusgabineteseagircomovanguardanahumanizaçãodosoprimidos.

Nada mais distante, portanto, enquanto paradigma de intelectualengajado, do outro romance de sucesso da época –Quarup, de AntonioCallado –, no qual o intelectual, representado pelo personagem do padreNando,se“deseduca”nocontatocomasclassespopulares,despojando-sedassutilezasecontorcionismosdopensamentoespeculativoparaaderiràlutaarmada,guiadopeloheróicamponês.MesmoFerreiraGullar,ligadoaoPCB e, portanto, pouco simpático a esta opção política, reconhece que a

dimensãopolíticadolivrovaialémdaquestãoestritadalutaarmada:308

Pode-se discutir se o único caminho de reintegração do intelectual brasileiro é oseguido inalmente pelo padre Nando e mesmo se a melhor maneira de lutar contra aopressão é essa a qual ele adere. Mas este é o aspecto episódico da questão: ofundamentaléaa irmaçãoimplícitanoromance,dequeéprecisodeseducar-se,livrar-sedasconcepçõesidealistasalheiasàrealidadenacional,parapoderencontrar-se[...]dentrodomundoqueoromancede inearealidadepessoaldeságuanocoletivo.Nãosetratadeapagar-senamassa,masentenderqueo seudestinoestá ligadoa ela, de encontrarum“centro”.

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Ao de inir a trajetória do padre Nando, Gullar de ine o ideal deresistência intelectual dos comunistas, desviando a exortação política daluta armada que eventualmente poderia sobressair da leitura de

Quarup.309

Sintomaticamente,os inaisdosromancessãobemdistintos.Enquantoopersonagemintelectual-guerrilheirodeConyfazatravessiaparaointeriorde simesmo, reiterando sua luta comoopção individualista e libertária, opersonagemcentraldeCalladosegueparaointeriordoBrasil,guiadoporum camponês, dissolvendo sua individualidade na terra e no povo peloqual lutaria,menos comoopção emais comoo resultadodeumprocessode transformações coletivas na qual ele se dilui como indivíduoautocentrado. Em ambos os romances, entretanto, residia a falha trágicaque deveria ser redimida: a impossibilidade de permanecer na “torre demar im”, equidistante das lutas políticas terrenas, lugar do intelectualtradicional.AvirtudedoromanceQuarup, edosensocríticoque lhedavasuporte, não eranarrar a luta armadae a irmaro intelectual comoheróidaresistência(comoemPessach),masexaminaroprocessodeadequaçãoda consciência do intelectual revolucionário aos novos tempos. Nesseprocesso re lexivo, a própria igura do intelectual perdia sentido, pois sóvaliasediluídanalutamaiorquesetravava,paraalémdaobradearte:aguerrilha.

A própria sobrevivência das atividades de espírito impunha aresistência,que,maisdoquepolítica,eravividacomoumaa irmaçãoética.Entretanto, como apontam as resenhas, as duas saídas para a ação nãoresolvem os dilemas da intelectualidade confundida com a consciênciacríticadanaçãosoboautoritarismo.Aocontrário,aopçãodalutaarmadaexplicitaosdissensosedilemasinternosaestegruposocial.

A autoimagem do intelectual como reserva ética, política e moral da

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nação, já abalada emPessach eQuarup, seráduramentequestionadapelapróprialiteraturaaolongodosanos1970,ajudandoaredimensionaroseupapelnocampoda“resistênciacultural”.Osfatoresparaessamudançadecon iguração e posicionamento foramvários: as demandasdomercado, acríticadacontracultura jovemaosexcessosde intelectualismo,acrisedasesquerdas derrotadas na luta armada, o mecenato o icial, as novasestruturasde oportunidadepro issional nasuniversidades e na indústriada cultura. Esses fatores, ao que parecem, tiveram um efeitoparticularmenteintensonaliteratura,umaartequesemprefoivistacomoa expressãomais so isticada do intelectual ao exigirmaestria no domíniodalínguavernáculaedaescrita.

A crise do romance, portando certa fragmentação da linguagemreferenciada na realidade e do luxo narrativo que lhe é própria, é aexpressão da crise do intelectual como “homem de letras” que conseguepensaromundocomoseestivesseforadele.Issosepercebenosromancesde Antonio Callado dos anos 1970 –Bar Don Juan (1970) eRe lexos doBaile (1977) – ou na tentativa de um romance “realista-contracultural”,como se poderia notar emZero, deLoyolaBrandão (lançadoem1974naItália, em 1975 no Brasil, mas proibido no ano seguinte até 1979). Asgrandesrespostasliteráriasdosanos1970àditaduramilitarnocampodaicção retomaram a narrativa realista,mas evitando uma visão oniscientedo narrador tradicional, trabalhando-a como se fosse um documentáriocinematográ ico,cujasexpressõesmaisnotóriasecontundentesforam Em

Câmara Lenta (de Renato Tapajós) eA Festa (de Ivan Angelo).310 Emambos, o tema da derrota, trabalhado pelo viés domartírio e solidão doguerrilheiro-herói (Em Câmara Lenta ) ou da impotência e covardia dasociedade como um todo diante do autoritarismo (A Festa), apresenta-secomorupturacoma“boaconsciêncialiterária”dointelectualqueestevenabasedagênesedoconceitoderesistênciacultural.Nesseslivros,nãorestanemao intelectual “despir-se”ou“reinventar-se”ese tornarguerrilheiro.

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A violência absoluta e a mediocridade dos algozes são impositivas edeterminantesdanovarealidadesocial.

Obviamente, a literatura do período vai além destes temas,constituindo-se igualmente em re lexão sobre a violência das relações

sociaisepolíticaspotencializadaspelaexperiênciaautoritária.311Énítidaain luência de outras linguagens, vindas do jornalismo, publicidade, docinema,nos livros.Oconto,apoesia,o livro-reportagem,aautobiogra ia,anovela,seriamosprincipaisformatosliteráriosdosanos1970natentativa

demanterapalavraliteráriacomolugarderesistênciacultural, 312emquepese o lançamento de romances em seu formato mais clássico, comoIncidenteemAntares(ÉricoVeríssimo,1971).

Em 1975, houve umboom literário no Brasil, apontando novastendências do mercado editorial, como o “romance-reportagem”(AguinaldoSilva,JoséLouzeiro),apublicaçãodebest-sellersestrangeirosedelivrosdememórias,sobretudoapós1979,quandoosexiladoscomeçamavoltareanarrarsuasaventurasedesventurasna lutacontrao regimemilitar e no exílio. Os livrosOQue é Isso, Companheiro? eOs Carbonários ,escritos pelos ex-guerrilheiros Fernando Gabeira e Alfredo Sirkis,respectivamente, inscrevem-senessa tendênciaesão importantesmarcosna própria reconstrução damemória sobre a experiência da guerrilha eseulugarnahistóriadoBrasil.

Portanto,a literaturaduranteoregimemilitarpropiciouumagamade

“consciências literárias”313 sobre a experiência histórica não porqueimitou a realidadenos livros,masporque, emmuitos casos, só a re lexãopropiciadapela icção,pelaimaginaçãooupelamemóriapoderiadarcontadecompreenderumarealidadepolítica,culturalesocialtãomultifacetadaecomplexa.

A imprensa liberal que em 1964 apoiara o golpe militar em bloco

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também se bene iciou do ativismo intelectual, dando voz tanto aos

manifestos quanto ao debate cultural que envolvia o meio.314 Nessesentido,marcando o espaço público ao lado das revistas intelectuais queabundaramnoperíododosanos1960e1970,aimprensaconseguiadiluirparte de suas responsabilidades diretas no golpe, passando a seautorrepresentarcomoumdoslugaresprivilegiadosdaresistênciae,como

tal,vítimadoarbítrio.315Masoespaçodemaiorcomunicaçãodointelectualcom um público leitor mais amplo foi a chamada “imprensa alternativa”.Seuper ilmaismilitantedoqueacadêmiconão implicavaqueosdebatesoriundos da pesquisa universitária estivessem totalmente ausentes dosjornais.

Jornais comoCorreio da Manhã ouFolha da Semana (1965/1966, 67edições), que se abriram aos grandes debates, crônicas ou críticasintelectuais do inal dos anos 1960, praticamente desapareceram da“grande imprensa” liberal. Os “anos de chumbo” e o susto com a lutaarmada deixaram os grandes jornais brasileiros ressabiados,emparedados entre a crítica ao arbítrio e a defesa do combate ao“terrorismode esquerda”. Se nãohavia uma censura prévia rigorosa aosgrandes veículos, exceção feita aoEstado de S. Paulo (1972-1975) e àrevistaVeja (1974-1976), alguns temas críticos eram evitados peloseditores,bemcomoqualquerpautapolíticaquepudesseperturbaralógicapalacianadosmilitaresemconduzirosnegóciosdopaís.Maisparao inaldosanos1970einíciodosanos1980,otemadapolíticaeodebateculturalvoltariam à grande imprensa, cujo grande exemplo é o Projeto Folha apartir de 1976, conduzido pelos editores Perseu Abramo e,posteriormente,porBorisCasoy,assimcomooFolhetim,tabloidedetemasculturais epolíticos veiculadoaosdomingospelo jornalpaulistano (1977-

1989). Ao lado das publicações da Editora Brasiliense 316 e doJornal doBrasil,aFolhaconstituiráaexperiênciadeleituramaisin luentenosmeios

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intelectuais e acadêmicos em tempos de abertura e transição política,afirmandoumprojetocomercialepolíticoaumsótempo.

Paraalémdaimprensa,decarátermaisrestritoeaprofundado,osanos1960 e 1970 viram lorescer várias revistas de caráter acadêmico, masnãonecessariamenteligadasainstituições,partidosouprogramasdepós-graduaçãoespecí icos.Atradiçãoderevistas intelectuaisvinhadocomeçodoséculo,sendoumdosespaçosmais importantesdeativismointelectualemumambienteaindacarentedegrandesinstituiçõesdeensinosuperior.Mesmocomcriaçãoeexpansãodasuniversidades,nosanos1940e1950,algumas revistas ainda eram centro de convergência para os debates,comoasrevistasClima,SenhorouaBrasiliense.

Após o golpe militar, aRevista Civilização Brasileira , criada por ÊnioSilveira, foi o principal periódico de debates intelectuais entre 1965 e1968,tornando-seomaisimportanteespaçoeditorialdere lexãoedebateno campo da esquerda que gravitava em torno do Partido ComunistaBrasileiro.Emseus22números,foiumadasexpressõesmaisvigorosasdaesferapúblicaqueseformaraapósogolpe,momentoemqueointelectualaindanãohavia sido incorporado totalmentepelomeiouniversitárionem

pelaindústriadacultura.317Paraangariarintelectuaiseleitoresligadosaocatolicismodeesquerda,omesmoÊnioSilveiralançouarevistaPazeTerra(1966-1969), que sob a chave do catolicismo progressista discutia temasdapautaintelectualdosanos1960,taiscomoasexualidade,asguerras,asartes, o marxismo, o papel social e político da Igreja. As correntes deesquerdaqueaderiramàlutaarmadatinhamnasrevistas TeoriaePrática(dirigidapeloarquitetoeartistaplásticoSérgioFerro)e Aparte (ligadaaoTeatrodaUniversidadedeSãoPaulo) seusprincipais redutos.A segundaestampou uma frase que se tornou lapidar do debate intelectual nocontexto da luta armada: “O intelectual deve suicidar-se enquantocategoria social para renascer como revolucionário”. Ambas tiveram vida

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editorialefêmeranofinaldosanos1960.318

Nos anos 1970, as revistas tornaram-semais acadêmicas, ligadas aosinúmeroscentrosdepesquisaquecomeçavamaseespalhar,ere letindoaampliação das pesquisas especializadas e temáticas. OsCadernos Cebrap(Cebrap),Revista de Cultura Contemporânea (Cedec) eDados (IUPERJ)podem ser citados como exemplos de revistas acadêmicas in luentesnaqueladécada.Nosanos1970,Debate&Críticafoiumexemploderevistade ciências sociais que se constituiu em um espaço de debate acadêmicoindependente, fazendo a ponte entre os professores que ainda atuavamnas universidades, sobretudo paulistas, e os cassados. Criada por JaimePinsky,entãoprofessordehistórianaUnesp-Assis,eapoiadapelaEditoraHucitec,arevistatinhacomopartedoConselhoEditorial(alémdopróprioPinsky)FlorestanFernandeseJosédeSouzaMartins.Apublicaçãoexistiude1972a1975,sendoautodissolvidapeloConselho(erelançadaumanodepois sob o nomeContexto) após a imposição da censura prévia, ação

inéditaemsetratandodeumperiódicoacadêmicobrasileiro.319

Outrograndeespaçodearticulaçãoedebatedaesquerdaintelectualfoia chamada “imprensa alternativa”. O Pasquim eOpinião podem serconsideradas as duas matrizes dos jornais “nanicos”. Tomada comocontraponto à grande imprensa liberal – seus interesses políticos ediretrizes comerciais–a imprensaalternativa fezhistórianosanos1970,nãoconseguindosobrevivercomomesmovigoràviradadadécada.Entre1964 e 1980, surgiram mais de 150 periódicos de oposição ao regimemilitar nesse formato, dividindo-se em dois grandes conjuntos: umalinhagemmaispropriamentepolítica,sobin luênciadaesquerdamarxista,

eoutraideologicamentemaisdifusa,voltadaàcríticacomportamental.320

O suplementoPifPaf (maio a setembro de 1964, 8 edições), deMillôrFernandes,veiculadopelarevistaOCruzeiro,éconsideradoofundadorda

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nova imprensa alternativa.321 Utilizando-se de uma diagramação ousada,muitos recursos grá icos e linguagem humorística, a revista foi fechadadepois de lançar o concurso “Miss Alvorada 65”, satirizando a corridapresidencialprometidaparaoanoseguinteaogolpe.Serviudeinspiraçãográ ica paraO Pasquim, lançado em 1969, e que reuniu parte da equipequehaviatrabalhadocomMillôr,comooscartunistasJaguareZiraldo.

OPasquim foiograndesucessodepúblicoda imprensaalternativa.Ostemas comportamentais, a visualidadeousada, a sátirapolítica e ohumorde costumes angariavam um público jovem bem mais amplo do que osdensos textosdeanálisede conjunturados jornaismaispolitizados.Alémda crítica política e comportamental,O Pasquim abrigou, sobretudo até1972, um núcleo importante do jornalismo contracultural, que trouxetemas como sexualidade, drogas, cultura pop, movimentohippie, emmatériasassinadasporLuisCarlosMacieleporCaetanoVeloso.

Opinião, fundado em 1972 pelo empresário e ex-militante do PartidoSocialista Brasileiro Fernando Gasparian, foi um importante espaço deconvergênciadosdebates intelectuais, entre1972e1977. Seu editor eraRaimundo Pereira, que mais tarde fundaria outro jornal importante,Movimento(1975-1981).Ambosprocuravamdarespaçoparaváriasvozes

críticas ao regime, e foram duramente censurados. 322 A censura préviacomprometia não apenas a liberdade de conteúdo desses jornais, mastambémdificultavaasuavidafinanceira.Alémdeatrasarapublicação,nãoforampoucososcasosderecolhimentodeedições inteirasquandoelas jáestavam nas bancas, o que acarretava grandes prejuízos comerciais.Opinião eMovimento foram espaços plurais do ponto de vista das váriasfacções e partidosde esquerdanamaior parte de sua existência.O temadas “liberdades democráticas” e dos “interesses nacionais” na áreaeconômicaeculturalpropiciavamumaconvergênciadedebatespolíticoseideológicos,trazendoparaojornala ina lordaintelectualidadebrasileira

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de esquerda, de jovensprofessores iniciantes a docentes consagradosnacarreira. Havia diferenças no foco dos dois jornais: Opinião era maissensível ao nacionalismo e à política institucional, eMovimento, mais

voltado a temas culturais e aos movimentos populares.323 Este últimopassará por uma séria dissidência interna a partir de 1977, quandoabraçou a causa da “Assembleia Constituinte”, que não era pauta comumdasesquerdaspor ser identi icada comumaproposta liberal.Apartirdeentão,Movimento passou a ser cada vezmais identi icado com o PartidoComunista do Brasil (PCdoB), embora tentasse manter o espírito de uma“frentedeesquerda”.Osgruposmaisàesquerda,ligadosaotrotskismoeàantiga Polop, fundaram o jornalEm Tempo, em 1978. Na rede iniçãopartidáriadasesquerdas,pós-1979,oEmTempoficoumaispróximodoPT.

Muitos jornais que existiram ao longo dos anos 1970 tinham focotemático mais especí ico. A questão cultural e os novos movimentos deminorias tinham lugar privilegiado no jornalVersus (1975-1979). Ofeminismo tinha como veículos principais os jornaisBrasil Mulher (maisfocadoemquestõespropriamentefeministas,1975-1980)eMariaQuitéria(1977-1979),porta-vozdoMovimentoFemininopelaAnistia,maisvoltadopara a participação da mulher na política geral. OLampião (1978) foi oprimeirojornaladarvozaomovimentohomossexualnoBrasil.

Quando a censura política inalmente arrefeceu, em1979, a imprensaalternativa teve que enfrentar o medo dos jornaleiros, que tinham suasbancasatacadasedestruídaspela extrema-direita.Esses atentados, juntocoma fragmentaçãodas esquerdas nosmarcos da “abertura” do regime,impossibilitando um frentismomais amplo, foram fatais para a imprensa

alternativa.324 Nos anos 1980, os grupos e partidos de esquerdainvestiriammaisna imprensapartidária,buscandoumleitormais ielaosseus grupos e uma formação doutrinária mais estrita. As redações dosjornais como espaços de debate e de convivência, ainda que con litava,

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entre várias tendências de esquerda era coisa do passado. O sucessoeditorial, que chegou a possibilitar tiragens de 20 a 40 mil exemplares,também. Ficou a memória de um jornalismo heroico em vários sentidos,seja porque enfrentou o regime nos tempos duros, seja por ter saído dalógica comercial restritiva das grandes empresas jornalísticas. Sempretender a neutralidade, a imprensa alternativa talvez tenha sido maisplural que muitos jornais que bradam suas virtudes de isenção e depluralismo.

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“Ademocraciarelativa”:osanosGeisel

Os anos de governo do presidente Ernesto Geisel constituem umparticular exercício de compreensão dialética da história, ou seja, aquelaque levaemcontaas contradições intrínsecasaoperíodo.Tesee antíteseconvivemnelesdemaneiratãoadensada,cujamelhorexpressãoencontra-sena fórmuladeElioGaspari,aodizerquequandoGeiselassumiu“haviaumaditadura semditador.No imdo seu governo, haviaumditador sem

ditadura”.325Talvezabelaformulação,emseujogoinstigantedepalavras,seja um tanto questionável como explicação histórica, mas tem seumomento de verdade. O fato é que Geisel passou para a história como opresidente autocrático que iniciou o processo de abertura e,consequentemente,detransiçãopolítica.

Na ocasião de sua morte, em 1996, essa percepção construída aindasob seu mandato presidencial consagrou-se na memória. A imprensaliberal,artí iceearautodessamemória,nãosecansouderepetiroquadroexplicativoquecolocouopresidentesobaperspectivadeumacontradiçãosuspensa pelo balanço positivo do saldo inal do seu governo para oprocessodemocrático.

AFolha de S.Paulo, por exemplo, estampou em suamanchete: “Geisel,

quefezaabertura,morreaos88”. 326Eemendou:“Pode-sedizerquefoiaação irme do presidente Geisel que permitiu oturning point de initivorumo à democracia”, diz o editorial do mesmo jornal, referindo-se às

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demissões de Silvio Frota e Ednardo D’Ávila Mello, consideradosexpressõesda“linhadura”.

A imagem se repete na revistaVeja: “Geisel tinha uma característicaincomumentreospresidentesmilitares:mandava.Foiassimque,commão

de ferro, inviabilizouaditadura”. 327MarcosSáCorreiadesenvolvea tesenoartigoprincipaldarevista,apelandoparaamemóriadosjovens:

Autoritário e imperial, Geisel botouordemnas ForçasArmadas [...].Os 59milhõesdebrasileiros que nasceramdepois de 1979 não sabem o que é temer um governo [...] notempo do presidente Ernesto Geisel temia-se [...] quem não temeu seu governodi icilmentesaberáquevivehádezesseteanossemmedodoarbítriopolíticoporherançadogeneralautoritárioquenasemanapassada,aos89anos,morreudecâncernoRiodeJaneiro.328

Acuriosatesedaditaduracomo“anarquia”esubversãodaordemnãopelaesquerda,maspela“tigrada”dosquartéis,temumaformulaçãodiretanoartigo:

Antes de Geisel, havia um sistema que, apesar das aparências, era um regime depresidentes fracos, generais submetidos de baixo para cima à tutela dos quartéis. Paraacabar com esta subversão hierárquica Geisel não precisou de pruridos liberais [...]encarando a anarquia militar, ele personalizou o autoritarismo que, antes, era exercidopelos fantasmas das Forças Armadas e pelas legiões quase clandestinas da repressãopolítica.329

Thomas Skidmore, umdos intérpretes liberais da história republicanabrasileira, chancelou: “Será lembrado como o soldado austero que deu

outrachanceparaademocracia”.330

O complexo personagemhistórico recebeu o reconhecimento pela sua“chanceparaademocracia”doprópriopresidentequeconcluiuoprocessode transiçãodemocrática,FernandoHenriqueCardoso.Em1995, FHC, seuopositor nos temposda ditadura, lhe prestouhomenagememumalmoçonoPaláciodasLaranjeiras.Comsuamorte,decretou-selutodeoitodias.

Essas falas e episódios, ocorridos depois de terminada a ditadura,

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consagram uma interpretação eventualmente plausível da trajetória dopresidente Geisel, sem dúvida um dos governos mais complexos edinâmicosdoregimemilitar.Nessesentido,podemserexpressõesdeumacontradição efetiva, inscrita na dialética da história, dos projetos e dasaçõesdogovernoGeisel.Poderíamosjuntaroutrasaparentescontradições.Anticomunista convicto, foi o primeiro a reconhecer o governo comunistade Angola, em 1975.Mandatário de um regime acusado de ser braço doimperialismo estadunidense, entrou em con lito com o “grande irmão doNorte” por conta do acordo nuclear com a Alemanha e por causa dosdireitos humanos. Abusou da censura para controlar a oposição, maspatrocinou uma política cultural que bene icioumuitos artistas que eramnotoriamente contrao regime.Essaspolíticas, longede seremexpressõesde um governo hesitante ou inde inido, inscrevem-se em uma estratégiaclara de reforçar a autoridade do Estado e, consequentemente, dotar oregime e o governo de instrumentos para conduzir a transição para ogovernocivilcommãodeferro.

Masháoutroaspectoquederivamenosdadialéticadahistóriaesuascontradições, e mais da construção de uma memória em torno dopresidente e seu governo. Esse aspecto envolve a forma de situar ogovernoGeiselnahistória,surfandonomagmaconceitualdapolíticaentreditaduraedemocracia, cujos sentidos foramalvode rede iniçõesduranterecomposiçãodeforçaspolíticasnoprocessode“abertura”etransição.Aoincensar o papel do ex-presidente, inegavelmente um homem deautoridade,capacidadedeaçãoeinformadoporum“projetodetransição”,cujo sentido inicial era incerto e vago, a memória liberal constrói seupróprio lugar nesse projeto, legitimando-se. Igualmente, consagra-se umaforma de transição entendida como retirada negociada dos militares nopoder, contenção dos atoresmais radicais, em nome da “paz social” e daordempública.

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Geiselacabousendooúnicopresidentedoregimemilitarcomlugardehonranamemórialiberalsobreaditaduraqueseconstruiuparalelamenteaoprocessodeabertura,aoladodofalecidoCasteloBranco.Seesteétidocomoumliberaldefarda,ninguémseiludecomGeisel.Eraumautoritário,mas que teria utilizado seu poder autocrático para acabar com o regimemilitar,quejáteriarealizadoseupapelhistórico–afastaroreformismoeaameaçada revolução socialista do horizonte histórico – cumprindo uma

espéciede“destinomanifesto”.331

Nessasconstruçõessimbólicas(eideológicas)sobreGeiseleaabertura,subjazummovimentoexplicativomaissutilsobreoregimecomoumtodo.As mazelas da política durante o regime militar não se devem às boasintenções do golpe de 1964, desagradávelmas necessário, que por sinalcontoucomamploapoiocivileliberal.Osdesviosdoregimeéquepuseramocaráter“redentor”ecívicoda“Revolução”emxeque.Seguindoalinhaderaciocínio histórico, o desvio fundamental teria ocorrido quando Costa eSilva se apoiouna linhadurapara emparedarCasteloBranco e se imporcomoseu sucessor.A consequência teria sidooAI-5eosanosde chumbodo governo Médici, incrementados pelo radicalismo da esquerda.Aterrorizada pela guerrilha, a sociedade impotente se tornou tambémvítima do arbítrio e da violência das forças de repressão, vistas comoautônomas,quaseumatorpolíticoemsimesmo.Nessaótica,achegadadeGeisel ao poder retoma a rota originalmente traçada, delineia umprojetoretilíneo de transição e o conduz a partir do Palácio, impondo-se às ruastomadaspelaesquerdaeaosquartéis tomadospelaextrema-direita.Esseesquemaexplicativo,consagradopelamemória liberaleporhistoriadores

identi icados com esta perspectiva ideológica,332 sustenta-se sobrealgumaspremissas.

Em primeiro lugar, restringe o processo político ao projeto de“distensão” e de “abertura”, que teriam sido frutos de uma política

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deliberadaeautoconscientedegoverno,conduzidapeloalto,desdeapossedeGeisel.ApresençadeGolberydoCoutoeSilvanogovernoseriaaprovadessaintenção.Cabeperguntarseaquiloaquechamamosdeaberturafoifruto,exclusivaouprioritariamente,dasintençõeseconduçõesdoPalácio.Qual o papel dos agentes sociais, sobretudo aqueles ligados à oposição

nesseprocesso?333

Em segundo lugar, adistensão anunciada é vista como tendo umarelação direta e causal com aabertura, continuada por João BaptistaFigueiredo, eixo que por sua vez explica a transição como um todo. Omovimentodistensão-abertura-transição,vistodessamaneira,nãodáconta

dasmarchasecontramarchasdahistória.334

Por im, delimita demaneiramuito restrita os conceitos de ditadura edemocracia.Aprimeirapassaasersinônimoapenasderepressãopolicialdireta de caráter semiclandestino e violento, simbolizadapela imagemdo“porão” e da “tigrada”. A segunda, é restrita à volta de “normalidadejurídico-institucional” e um mínimo de “liberdades civis” (sobretudo,liberdade de expressão). Aqui, obviamente, não podemos ser levianos nocriticismoapontodedesmereceresses importanteselementoscomobasepara a democracia, pois sua ausência explica a tragédia dos anos dechumbo.Trata-sede forçarade iniçãoparaalémdestes limitese revisarcriticamente a relação do governo Geisel com o processo dedemocratização.

Pelo teordasdeclaraçõesdamídia,depersonalidadespolíticas, epeloolhardealgunshistoriadores,parecequeháumaidentidadequasediretaentreo governoGeisel e a abertura.Asmortesviolentasdemilitantesdeesquerdaparecemsermais obradeum “porãodo regime”, incontrolávelaté então, e as cassações, o fechamento do Congresso e as imposiçõesinstitucionais,meras táticas paramelhor realizar a distensão. Em ambas,

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não apenas a igura de Geisel, mas também a memória liberal a quealudimossobreoex-presidente, icapreservada.Comoseoresultadodassuas ações políticas, “a outra chance para a democracia”, explicasse anatureza e o percurso do processo histórico desde o lançamento da“distensão”.

Quandoolhamosparaalgunsdadosisoladamente,osaldorepressivodogovernoGeiselnãoautorizafalaremdemocraciaoumesmoemdistensão:duranteseugovernohouve39opositoresdesaparecidose42mortospelarepressão.A censura à imprensa, às artes e àsdiversões foi amplamenteutilizada, abrandando-se somente em meados de 1976; o Congresso foifechadodurante15dias.

Se não é possível, nessa perspectiva, falar de uma “chance para ademocracia”dadademaneirainequívoca, linearediretadesdeoiníciodoseugoverno,comosefosseumavontadedeferrodopresidenteemacabarcom o regime, então o que teria sido a “abertura”? Como pensar aquelemomento histórico para além de uma memória liberal que nele sereconhece?

O processo de “distensão” e “abertura” era, sobretudo, um projeto deinstitucionalização do regime. Como estadista de visão estratégica, Geiselsabiaqueoaparatopolicialescoderepressãoera insu icienteearriscadopara tutelar o sistema político, sob risco do governo isolar-se dele.Efetivamente, há uma agenda de abertura, quandomuito, só após 1977.Até então “abertura”, dentro da concepção palaciana, era sinônimo deinstitucionalização da exceção, descompressão pontual, restrita e tática eprojeto estratégico de retirada para os quartéis sine die. A agenda detransição iniciada em 1977 se rea irma em 1978, seguida da indicaçãoo icial de João Figueiredo para Presidência. Ou seja, a partir de então, jácomapressãodasruasedoprópriosistemapolítico(nestaordem),équea abertura se transforma emumprojeto de transição democrática, ainda

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que de longo prazo. Havia uma pressão cada vezmaior dosmovimentos

sociaisunidos,ocupandode formacrescenteapraçapública 335 em tornodademocracia,oquesemdúvidaeraumfatordepressãoamaissobreaspolíticas de distensão e abertura no caso brasileiro. Eram fatos novos,imprevistos, que colocavam novas demandas políticas, sociais eeconômicas,paraasquaisaestratégiadogovernoofereciapoucarespostaalém da repressão. A pressão das ruas talvez tenha sido o elo perdido eesquecidoentreatímidadistensãode1974eaefetivaagendadeaberturaem1978.

O iel da balança no processo de transição foram os atores liberais,apoiadosporpartedaesquerda(comunistasdoPCBePCdoB)ereunidosemtorno da oposição partidária (MDB/PMDB) e da “grande” imprensa. Oprocesso inal da transição, a partir de 1982, foi hegemonizado pelosliberais,emnegociaçãocomosmilitares.Elafoivantajosaparaambos,poissegarantiaumaretiradasempuniçãoàsviolaçõesaosdireitoshumanosesem mudanças abruptas do modelo econômico fundamental, sancionadopelaselites,aomesmotempoemqueseretomavamdemaneiragradualasliberdades civis e o jogo eleitoral. A morte de Tancredo complicou umpouco esse projeto estratégico, pois Sarney era um homem criado etuteladopelosmilitares, ao contrário deTancredo, conservador,mas combrilhopróprioecoerenteemsuaoposiçãomoderadaporémconstante.

Ocontroledadireitamilitaredarepressãoseinserenaestratégia,semdúvida,deprepararterrenoparainstitucionalizaroregime,economizandoa violência direta e abrindo novas possibilidades de legitimaçãoinstitucional. A politização dessas forças do “porão” se relaciona mais aojogosucessóriodoqueumarealforçadepressãodosquartéis.

Mesmo quando rea irmada com mais clareza enquanto agenda detransição, a “abertura” era parte de uma política de passagem gradual

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para um governo civil, ainda tutelado pelos militares. Esse tipo deestratégia de “retirada” negociada foi comum aos regimesmilitaresmaisso isticadosequegovernaramsociedadesmaiscomplexasemodernizadas(Brasil, Chile, Uruguai), pois os atores militares sabiam ser impossível amanutenção do regime sem combinar “institucionalização” doautoritarismoedatutelaeaprogressivaretiradaparaosquartéis,paraopanode fundodapolíticadeEstado.Notemosqueosmilitaresargentinosnãodesenvolveramestetipodepolítica,eoregimefoiumdesastrepolítico,combinando alto grau de violência (caótica num certo sentido) e baixainstitucionalização,oqueimplodiuoExércitoargentinocomoinstituição.AGuerradasMalvinasfoioápicedoserrosdoregimemilitarargentino,eaderrota para a Inglaterra selou seu destino, invertendo a energianacionalista que animava o con lito inicialmente e mobilizava parte da

população.336

OprocessosucessóriodogeneralMédicicomeçouemmeadosde1972,conforme notícias veiculadas pelo jornalO Estado de S. Paulo. O bravomatutino, que desde a edição do AI-5 andava se estranhando com aditadura que ajudara a implantar em 1964, ganhou alguns anos de

censura prévia por vazar informações sobre a sucessão presidencial. 337

Este era um tema sensível, pois sempre envolvia con litos dentro do altoescalão,poistodososgeneraisgraduadossesentiamaptosparaocargo.

O lançamento o icial do candidato Geisel ocorreu apenas em 18 dejunho de 1973, depois de obtido o “consenso militar”, ou seja, o aval dogeneralato. Pela primeira vez, um processo sucessório parecia não sertraumáticoparaasForçasArmadasdesdequetomaramopoderem1964.Médici, ecoando vozes na tropa e da linha dura, tomou até o cuidado desaberseGeiselaindaerapróximodeGolberydoCoutoeSilva, iguramalvista pelo próprio presidente e pela linha dura. “Estão completamenteseparados”, respondeuogeneral JoãoBaptistaFigueiredo,entãochefedo

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Gabinete Militar. Mal sabia Médici que Figueiredo era do círculo decon iança do grupo castelista-geiselista, disposto a retomar o controle do

Estado.338 Essa idelidade lhe garantiu a futura indicação para apresidência da República e um constrangimento público no velório deMédici, quando o ilho e o neto do defunto chamaram Figueiredo de“canalha”.

A oposição institucional reunida noMDB, que vivia dias patéticos edi íceisemumaconjunturadominadapelarepressãoepeloapoiopopulardogoverno,foicriativaeconseguiuexporaarti icialidadedoprocessodito“eleitoral”. A chapa, sem nenhuma chance de vitória, foi apelidadaironicamente de anticandidatura, composta pelo deputado UlyssesGuimarães e por Barbosa Lima Sobrinho. O primeiro era um quadropolíticoegressodoPSD,deputadodesdeosanos1950,equenosanos1970se destacou como uma das vozes liberaismais críticas ao regimemilitar,destoandodo tommoderadoquemarcava boa parte dos políticos que sediziamliberaisnoBrasil.Ovicenachapa,eraex-parlamentar,advogadoejornalista historicamente ligado à Associação Brasileira de Imprensa daqualforapresidentenosanos1920e1930evoltariaasê-loem1978.

Em janeiro de 1974, Geisel foi eleito presidente da República pelo

Colégio Eleitoral (400 contra 76 e 21 abstenções).339 Seu irmão, OrlandoGeisel, colocou duas Companhias de prontidão em Brasília. De quem onotório irmão teria medo? Da esquerda armada em frangalhos ou dadireitamilitarvitaminada?

Atoconsumado,comGeiselindicado,“eleito”eempossado,descobriu-seatramaparadiminuiraresistênciadoseunomejuntoàlinhadura,poisogeneralGolbery foi indicadopara a importante Casa Civil da Presidência.Antesmesmodaposse,emfevereirode1974,pan letosanônimoscontrao“mago”, como era conhecido Golbery, cérebro do golpe e do regime,

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começamacircularnoscírculoscivisemilitares. 340Paraaextrema-direitamilitar,avoltadochamado“grupocastelista”ou“Sorbonne”–comoeramchamadososmilitarescomvisãopolíticaestratégica–poderiasigni icaroaumento da corrupção, início de um processo de transição política edesmontagemdoaparatorepressivo.Aomenos,esseeraotemordosqueseagitavamnosquartéis.

A discussão sobre o “modelo político” brasileiro, eufemismo paradesignaravontadedaditaduraemseinstitucionalizar,ganhouespaçoem1972, ainda durante o governo Médici. Logo após a indicação o icial deGeiselcomoseusucessor,oInstitutodePesquisas,EstudoseAssessoriadoCongresso(Ipeac)patrocinouumapalestradocientistapolíticoWanderleyGuilhermedosSantos,seguidadedebatecomosparlamentares,naqualseapresentou a tese da “descompressão política gradual” para evitar o

retrocesso.341

Esse“debate”,naverdadeaindamuitorestritoaoscírculoscentraisdopoder,partiadoprincípiodequeeranecessáriaumaretiradaestratégicados militares do coração do Estado, sem ameaçar os princípios da“Revolução” de 1964: segurança e desenvolvimento. Em outras palavras,eraprecisoiniciarumanormalizaçãodavidapolítica,quenojargãopolíticoda época signi icava consolidar o espírito de tutela doAI-5 emprincípiosconstitucionais, abrandar o controle da sociedade civil, semnecessariamentedaraelaespaçopolíticoefetivonoprocessodecisório,e,em um futuro incerto, devolver o poder a civis identi icados com asdoutrinasque inspiraram1964ouque,aomenos,não lhes fossemhostis.Em outras palavras, os militares sonhavam um regime com um partidoo icial hegemônico, chancelado pelo voto, majoritariamente civil e umEstadoblindadocontra“crises”,sejamoriundasdaextremadireitamilitar,sejamadvindasdaspressõesdaesquerdanasruasemovimentossociais.

A fórmula era inspirada na longevidade bem-sucedida do modelo

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político mexicano,342 referência que aparece claramente no texto deSamuel Huntington, cientista político norte americano, “Approaches toPolitical Decompression” (“Abordagens para descompressão política”).Nele,o famosoprofessordeHarvard,antesdeseconsagrarcomoumdosideólogosdomundopós-GuerraFria,aconselhaosmandatáriosbrasileirosa iniciar uma “descompressão lenta e gradual” o quanto antes, para nãoperderocontroledoprocessosoboriscodeumnovoemaisterrívelciclorepressivo,oucoisapior,oaumentodescontroladodaparticipaçãopopular

noprocessopolítico.343

Emagostode1974,jácomGeiselempossado,HuntingtonveioaoBrasilparticipar do seminário “Legislaturas e Desenvolvimento”. O generalGolbery,queseconsideraumdospaisdaabertura,nãoseempolgoumuitocom o nobre conselheiro, quali icando seu famoso artigo como

“pedestre”.344 Paraele, a aberturaestavadadanobojodomovimentode1964,sendoumdosprincípiosdo“castelismo”.

Qualquer que seja a paternidade teórica do processo de “abertura”,suas razões e objetivos estratégicos, a sua forma básica, ancorada nobinômio “lentidão e gradualidade”, prevaleceu, supondoum controle totaldoprocessopolíticoporpartedogovernoGeisel,talcomoseconsagrounamemória liberal sobre o período. Nesta, a tese da democracia outorgadaparecelevarligeiravantagemsobreatesedademocraciaconquistada.Emlinhas gerais, consagrou-se a imagem de que os movimentos sociaisvoltaramaseratoresnalutapelademocraciaapartirdomomentoemquea abertura foi desencadeada, sendo esta a causa daquelas lutas. Essaimagemsupõequeaaberturafoiumadecisãoinequívocadogoverno,umprojetouniformeedemovimentohistóricoretilíneoque teriapermitidoaexpressão da contestação política e social. Um exame mais detalhado daconjuntura e do processo histórico articulado, entretanto, pode suscitaralgumasdúvidas.

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AocontráriodeCastelo,CostaeSilvaeMédici,Geiselnãofalouemvoltaà democracia em seu discurso de posse. Em pronunciamento econômico,fez muitos elogios à “Revolução” e às suas realizações econômicas epolíticas, reconhecendo que foi “dramaticamente nascida de um dissensodilacerador”, mas que era hora de perseguir um “generoso consensonacional”. Nada mais, portanto, do que uma vã esperança apoiada empalavras vagas. Mas não demorou muito que o tema da “distensão” seconsolidasse,aindaquecarecessedeumaefetivaagendapolítica.

OdiscursonareuniãodoMinistério,em19demarçode1974,de iniuo“gradualismo” como estratégia de distensão. Nas palavras de Geisel, ogovernoesperavaum“gradual,masseguroaperfeiçoamentodemocrático,empenhando um diálogo honesto e estimulando maior participação daselitesresponsáveisedopovoemgeral”.Masavisouqueos“instrumentosexcepcionais” paramanter a segurança continuariam como “potencial de

açãorepressiva”paraevitardesviosàrotatraçada.345

Apesar dos sinais de busca de diálogo, a transição para a democraciaestava claramente subordinada à segurança do regime que, na ótica dosseus estrategistas, passava pelo rearranjo institucional e pelo diálogoseletivo com a sociedade civil. Esse projeto incluía eventuais recursos amedidas liberalizantes, mas não signi icava efetivamente “retorno à

democracia”,aindaquenomédioelongoprazos.346

Onovogovernotinhaquelidarcomumaconjunturadiferentedoiníciodos anos 1970. Se, por um lado, a guerrilha de esquerda estavapraticamente derrotada, dando seus últimos suspiros nas selvaslongínquas do Araguaia, a economia, grande trunfo da era Médici, nãotinha perspectivas promissoras. A crise do petróleo demonstrara afragilidadeeadependênciadodinamismoeconômicobrasileiro,eabuscadaampliaçãodaofertaedasmatrizesenergéticastornou-seumaobsessão

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do governo, já anunciada na primeira reunião presidencial. A in lação de1974maisqueduplicaraemrelaçãoaoanoanterior, eo PIB cresceupelametade. Para retomar o crescimento com taxas aceitáveis de in lação,dentrodoprojetodeexpansãodasindústriasdebaseedeenergia,afestado consumo dos tempos do milagre iria se tornar mais comedida. Era achamada “reversão das expectativas” que tinha um alvo certo: a classemédia.Emmaio, icavaaindamaisclaraamudançaderumosnaeconomia,comaprimeirareuniãodoConselhodeDesenvolvimentoEconômico(CDE),epicentro do planejamento econômico, que dava mais espaço aostecnoburocratas e executivos das estatais do que aos empresários dainiciativaprivada.Emsetembrode1974,foilançadoo IIPlanoNacionaldeDesenvolvimento, que explicitava a reorientação da economia, mas

prometiaaltastaxasdecrescimentoparaospróximosanos.347

Énotórioqueo regimemilitar se esforçouparadespolitizaro cidadãocomum e manter o debate dentro dos círculos restritos e tutelados dosistema político. Mas os acenos de distensão e os apelos à “imaginaçãocriadora dos políticos e da sociedade” para substituir os instrumentos derepressão do governo trouxeram à luz a questão política. Não que essaquestão houvesse sumido, mas o clima repressivo reinante desde 1969transformava a ação política (de oposição) em negócio de alto risco. Arepressão policial, a censura e o clima de vigilância não diziam respeitoapenas ao combate da luta armada. Acabou por contaminar todos osespaçossociaisdapolítica.

Nesse contexto, a fome de participação por parte de vários atoressociais e políticos a lorou no debate em torno de uma nova questão: “aquestão democrática”. O governo, ao seumodo, falava em democracia, osempresários falavam em democracia, os intelectuais falavam emdemocracia,ospartidosfalavamemdemocracia,emboraapalavrativesse

diversasconotações.348

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Para o governo, o país já era democrático, posto que iel aos valorescristãoseocidentaisedefensordaliberdadeindividualedalivre-iniciativacontrao“totalitarismodeesquerda”,masnãoabriamãodosinstrumentosderepressão,atéqueumnovosistemadevaloresestivesseinternalizado.Essesistemaerabaseadonainteriorizaçãodoslimitesdaaçãoopositoraedo grau de reivindicações de ordem socioeconômica. O governo entendia

democraciacomomerodebatedeideiase“críticasconstrutivas”.349

Paraosintelectuais,asposiçõessobreaquestãodemocráticavariavam.Algunsaceitaramarealpolitikimpostapelogoverno,afirmandoqueaúnicaopção para a construção da democracia era aceitar os limites e

incrementos da distensão o icial.350 Outros denunciavam a questãodemocrática como mera estratégia de renovação da “hegemonia

burguesa”.351Outrosaindaentendiamque,apartirdanovaconjunturadedistensão, era preciso conquistar mais espaços e abrir mão da visão

instrumentaldedemocracia,queafligiaaesquerdaeadireita.352

Aderrotatraumáticadaesquerdaarmadaeaviolênciasemlimitesdoterror de Estado acabaram por mostrar a urgência desse debate, aceitoinclusivepelaesquerda,sempremaisconfortávelemdiscutirarevolução.A inal, a democracia em seu formato institucional e representativo eravista como um valor burguês. Mas novos conceitos de democracia, dita“substantiva”(emcontrapontocomademocraciaformalerepresentativa),começaram a surgir. Além disso, a esquerda representada pelo PCBreiterava a política ampla de alianças para democratizar o país,privilegiandoumaação frentistaeuni icadadasoposições,parlamentare

institucional, que isolasse o regime.353 Paralelamente, intelectuaiscomunistasassumiamodebatesobreaquestãodemocrática,aceitandoostermos da democracia representativa burguesa como base para a

ampliaçãodosdireitosedaparticipaçãopopular.354

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Mesmo os sobreviventes da luta armada derrotada, ainda que nãoabrissem mão da revolução como objetivo inal, passaram a fazerautocríticas nas quais o problema da política demassa se colocava comoalternativa ao colapso da esquerda armada. Em quase todos essesdocumentos, é visível a preocupação em rever posições que levaram aoisolamentoeàcrençaceganavanguardaemarmas.Otrabalhodemassas,comosedizia,ao imeaocabo,tangenciavaoproblemadademocracia.Asautocríticas ocorriam em um momento em que alguma lentes maissensíveis jácaptavamocrescimentodosmovimentossociaisdenovo tipo,formadoporvizinhos, abrigadosemcomunidades religiosas, e avessosaovanguardismodirigistaeinstrumentaldatradiçãoleninista.

Para o conjunto das oposições, começou a se de inir um conceito dedemocracia “participativa”, que tentava criar uma zona de convergênciaentre os conceitos elitistas e formais de democracia liberal e ademocratizaçãodasociedadecombasenaa irmaçãodosdireitossociaise

daparticipaçãoefetiva.355

Opartidodeoposição,partedosistemapolíticoinstitucionalaoqualerasolicitada “criatividade” por parte do governo, também foi contaminadopelos debates intelectuais sobre a questão democrática. Aproveitando-sedoclimadedebate,oMDB sepropôsa fazerumacampanhaeleitoralmaisousada, incorporando em seu programa para as eleições de 1974 temasmais sensíveis, como a crítica ao modelo econômico, à repressão, aautocracia das decisões de governo e as preocupações dos assalariadoscomoaumentoda in lação.Para tal, oprogramadoPartido foi concebidopelosintelectuaisdoCebrap(CentroBrasileirodeAnáliseePlanejamento),quetinhaacabadodesofrerumatentadoàbombaperpetradopeladireitaem abril, ao mesmo tempo em que davam um novo ânimo à esquerdaabrigadanopartido,acomeçarpeloPCB.

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Ulysses Guimarães percebeu que o debate na esquerda intelectualpaulista poderia se transformar em uma plataforma política sintética, aoalcancedoeleitormédio.Comesseespírito,elevisitouoCebrapepediuaFernandoHenrique Cardoso que nomeasse uma comissão de intelectuais

pararedigiroprogramadopartidoparaaseleiçõesde1974.356

Depoisde icaratrásdosvotosnulosnaeleiçãode1970,quesomaram30%, oMDB se renovou a partir da legislatura de 1971, com a aguerridaatuação dos deputados chamados de “autênticos”, que se diferenciavam

dos adesistas e dos moderados “pessedistas”. 357 A anticandidatura de1973 também havia sido um momento de vitrine do partido para asociedade. A aproximação com os intelectuais foi uma forma de chegar asetoresmais críticos da sociedade civil, que até então advogavamo “votonulo”comoformadeprotestoàditadura.

Antesdaeleição,opartidoassumiuumtemasensívelparaaesquerdaepara o meio intelectual de oposição: a questão dos desaparecidos, temaqueexplodiuparaodebatepúbliconocomeçodogovernoGeisel.Emjulhode 1974, oMDB interpela o governo sobre o tema, ameaçando convocar oministrodaJustiça,ArmandoFalcão,paradepornoCongresso.Otemados“desaparecidos” incomodava a opinião pública, mesmo aquela que eracontrária ao marxismo e avessa à revolução. Os liberais viviam umacontradição, perceptível nas páginas da imprensa desde 1968: pediamrigorno combateao “terrorismodeesquerda”,masquandoogovernoosatendia, com todososmeiosprópriosaumaditadura, assustavam-secomosefeitoscolateraisediretosdarepressão.Ossequestros,astorturaseassimulações de mortes por enfrentamento policial dão lugar à igura dosdesaparecidos.Dos169militantesdesaparecidosnoBrasil,53ocorrências

foramno ano de 1974, boa parte após a posse de Geisel.358 Assim comonão reconhecia a existência de torturas e execuções extrajudiciais, ogoverno continuou não reconhecendo qualquer responsabilidade na

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questãodosdesaparecidos,imputandoosprópriosporessasituação,dadaa sua condição de clandestinos e “terroristas”. Com isso, como vimos, ogovernoselivravadedarqualquersatisfaçãoàsociedade.

O fatoéqueos temasda torturaedosdesaparecimentos tornaram-seumaverdadecadavezmaisinconvenienteparaasconsciênciasliberaisoureligiosas,mesmodecoresmaisconservadoras.

A Igreja Católica, cujas bases mais progressistas sofriam a violênciadiretadoregimedesde1968,abraçavacadavezmaisacausadosdireitoshumanos, dentro da qual o tema dos desaparecidos era central. Desde1970, bispos e generais se encontravam sigilosamente para conversar

sobre o tema, na chamada Comissão Bipartite.359 Apesar desse canal dediálogo,asrelaçõesentreaIgrejaeoEstadoseazedaramde initivamenteem1973por causadamortedoestudantedeGeologiadaUSP, Alexandre

VannuchiLeme.360

Emmarçodaquele ano,Alexandre foimortonas dependências do DOI-Codi em São Paulo, ao que tudo indica por “acidente de trabalho” dostorturadores.Ocasocomoveunãoapenasacomunidadeestudantil,masacomunidadecatólicadeSãoPaulo.Ojovemde22anosfoienterradocomoindigentenocemitériodePerus,easautoridadesdemoraramalgunsdiasparareconhecersuaprisãoemorte.Aversãoo icialeraadesempre:fugaseguidadeatropelamento.ElafoiprontamenterechaçadapeloscolegasdomovimentoestudantilepelaIgreja.

Alexandre, o Minhoca, era um líder popular do movimento estudantiluspiano emembro de uma tradicional família católica do interior de SãoPaulo. Desde 1972, militava na já alquebradaALN, que depositavaesperanças em um novo ciclo de recrutamento para a guerrilha nomeio

estudantil,ondeatuavaabertamente.361

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AmortedeVanucchiLeme fezcomqueacúpulada IgrejaCatólicanoBrasil abraçasse de initivamente o tema dos direitos humanos como eixo

principal das críticas ao regime.362 Na verdade, o tema dos direitoshumanos e, sobretudo, da justiça social, tinha aparecido em vários

documentosdobispadobrasileiro.363Arepressãoentraraemchoquecomo clero diretamente, tanto no caso dos frades dominicanos presos e

torturados durante a caçada a Marighella 364 quanto no assassinato dopadreHenriquePereiraNeto,assessordeDomHelderCamara,arcebispodeOlindaeRecifeesímbolodaIgrejaprogressistanosanos1960e1970.Essas tensões explodiram de initivamente por ocasião da morte deVanucchiLeme.AgoraeraaarquidiocesedeSãoPaulo, lideradaporDomPaulo Evaristo Arns, tornado cardeal pelo papa PauloVI, que comprava abriga com o regime. A Igreja, pressionada pelas bases laicas e clericais,assumia-se como opositora institucional do regime. Não por acaso, emfevereirode1973,avozinstitucionaldaIgreja,aConferênciaNacionaldosBispos do Brasil (CNBB), em suaXIII Assembleia Geral, rememorou os 25anosdaDeclaraçãoUniversaldosDireitosHumanos.

Asautoridadesgovernamentais,bemcomosetoresmaisconservadoresda sociedade, icaram profundamente insatisfeitos com amissa realizadaemmemória deAlexandre Vannuchi Leme no dia 30 demarço de 1973,véspera do aniversário da “Redentora” (como os golpistas chamaramoriginalmenteadeposiçãodeGoulartem1964),emplenaCatedraldaSé.Cerca de 5 mil pessoas compareceram à missa, com direito ao coro deCaminhando, a música proibida de Geraldo Vandré, e puderam ouvir orecado de Dom Paulo ao governo: “Só Deus é o dono da vida. D’Ele aorigem e só Ele pode decidir seu im”. A rigor, a missa de AlexandreVannucchi Leme era o primeiro ato público de massa contra o regimedesde1968.

Portanto, comapossedeGeisel, a relaçãoentreo regimeea Igreja já

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estava tensa, mas havia a expectativa de um novo canal de diálogo econtrole dos aparatos e meios ilegais da repressão. Entretanto, paradecepção dos mais crédulos, a repressão continuou ativa, ampliando orecurso ao “desaparecimento” de militantes. Em agosto de 1974, DomPaulo Evaristo Arns entregou a relação de 22 desaparecidos ao generalGolberydoCoutoeSilva (21delesocorridosapartirdapossedeGeisel),listaquecrescianosmesesseguintes.Sinalquenadamudariatãocedo,emfevereiro de 1975, o ministro da Justiça, Armando Falcão, foi à TV dar aversão do governo, ou melhor, a dos órgãos de repressão. Conforme ogoverno, dos 27 desaparecidos cobrados pela oposição, constavam 6foragidos, 7 colocados em liberdade, 5 com destino ignorado, 1morto naBolívia, 1 banido, 2 ainda na clandestinidade e 1 refugiado naTchecoslováquia. A criatividade do governo não encontrou sequer uma

versão,aindaquefantasiosa,para4nomes.365

A Ordem dos Advogados do Brasil, que recebera o golpe militar com

certoentusiasmo366edistanciara-sedoregimeporcontadoAI-5,deuumavirada de initiva nas suas posições em 1974, na suaV ConferênciaNacional,cujotemaerasintomático:“Oadvogadoeosdireitosdohomem”.

Assim,outravozliberalimportantesevoltavacontraogoverno.367

Nesse clima de intenso debate sobre a questão dos direitos humanos,oposiçãocrescentedaIgrejaerevisãodo“modelopolítico”,aconteceramaseleições de novembro.Osmilitares calcularamque tutelando a sociedadepolíticaeaindaseaproveitandodostrunfosdaeconomia,aindaqueacriserondasse o Brasil, a sociedade civil iria a reboque dos seus projetos eagendas.

As eleições legislativas de 1974 eram vistas como estratégicas para ogoverno.Dispostoatestararespostadasociedadeao“diálogo”propostoeaferirainternalizaçãodosvaloresdoregime,ogovernodeixoucorreruma

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campanha relativamente livre. Temas importantes, veiculados peloPrograma doMDB, foram debatidos com amplo uso dos meios decomunicaçãoedohorárioeleitoral.Comaseleiçõesrealizadascomrelativaliberdadededebate,oresultado foialentadorparaaoposição.Elaobteve50% dos votos para o Senado (contra 37% da Arena) e 37% para aCâmara (contra 40% da Arena). Mais do que isso, saiu vitoriosa nasgrandes cidades e nos estados mais desenvolvidos. Conseguiu a maioriadas assembleias legislativas de São Paulo, Rio Grande do Sul, Rio deJaneiro,AcreeAmazonas.Fez16dos22senadoreseleitos,e165dos364deputadosfederais(nalegislaturaanterior,tinhaapenas87).Commaisdeum terço no Congresso, oMDB poderia bloquear emendas constitucionais,complicandooprojetode“institucionalizaroregime”,atrapalhando,assim,oprojetodedistensão.

Nenhumgoverno gosta de derrotas eleitorais, aindamais um governoautoritárioqueapenasvianaseleiçõesumaformaderea irmarsuafrágillegitimidade.Ogoverno,surpreendido,reagiudeformaambígua.

Em um primeiro momento, o presidente Geisel saudou os eleitos eanunciou o im da censura prévia à imprensa liberal, ensaiando umareaproximaçãocomsetores liberaisdecorteconservador.A imprensa,naestratégia da distensão, deveria cumprir um papel duplo. Por um lado,ajudar na sondagem da opinião pública mais in luente, mapeando suasinsatisfações e demandas. Por outro, levar recados do governo a estamesma opinião pública, leia-se a classe média leitora da “opiniãopublicada”dos jornais,ajudandoaconstruira “reversãodeexpectativas”,ufanismoque traduziaanecessidadedepreparara classemédiaparaos

tempos di íceis da economia da era pós-milagre.368 Mas em agosto, emmeio à nova onda repressiva que recaiu sobre o Partido ComunistaBrasileiro,consideradooarticuladorinsidiosodaderrotadopartidoo icialeleitoral do governo, o próprio Geisel se encarregou de esclarecer os

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limitesda “distensão”.Em1ºdeagostode1975,opresidente foià TV, emcadeia nacional, e proferiu o discurso conhecido como “pá de cal”,rede inindo o sentido da “distensão”. Nele, rejeitou o im do AI-5, arevogaçãodoDecreto-Leinº477,arevisãodaLeideSegurançaNacional,a promulgação de uma anistia e redução das prerrogativas do Poder

Executivo.369

OEstadoisolou-seedeclarouguerraàsociedadecivil.Avitóriaeleitoraldaoposição, quase simultânea ao colapsoda luta armadae àperspectivade uma hegemonia absoluta do regime, deu novo fôlego à “questãodemocrática”. Entre os elementosmais surpreendentes estava a extremacon iança do governo na aprovação do eleitorado, tal como haviaacontecido em1970. Para tal, osmilitares contavam até com o voto nulo,que atraía o eleitorado mais crítico e educado das grandes cidades,chegando a 30% dos votos. Em 1974, tudo indica que uma boa partedessesvotosmigrouparaaoposição.Talvez,porqueela tenhaseportadocomo tal na campanha eleitoral. O resultado da primeira eleição dogovernoGeisel foi,portanto,comoumraioemcéuazul,parausarovelhoclichê.Entreosváriosatorespolíticos,emesmoentresetoresdogoverno,cresceuapercepçãodequeoEstado,dominadoporumregimeautoritário,haviaperdidoasconexõescomasociedadeque,mesmotuteladaevigiada,semoviaporcaminhosinsondáveis.EracomoseoEstadofosseolugardoautoritarismo,easociedadecivil,olugardademocracia.Essaimagem,umtanto simplista aos olhos de hoje, esboçada nos protestos de massa de1968,marcariade initivamenteosdebatessobreaquestãodemocráticaapartirdeentão.

A visão homogênea da sociedade civil como um bloco democráticocontra um Estado ilegítimo e autoritário teve sua função histórica nodesgaste do regime, mas pode esconder contradições se utilizada comoreceita única para a construção da democracia. A sociedade civil é um

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conjunto heterogêneo de atores, divididos em classes sociais, gruposcorporativos, associações pro issionais, frações ideológicas, instituições emovimentossociaisquedi icilmenteconseguemestabelecerumprograma

políticocomum.370

Se a questão democrática era um ponto de convergência, as váriasleituras do que signi icava democracia e os vários projetos de transiçãopolítica que elas encerram eram pontos de tensão dentro da sociedade.Paraasassociaçõespro issionaisidenti icadascomatradiçãoliberal,comoaOABeaAssociaçãoBrasileiradeImprensa( ABI),democraciaerao“estadode direito”, marcado pelo império da lei, pelo equilíbrio dos poderes deEstado, pelas liberdades civis (reunião,manifestação e expressão) e pelaigualdade jurídica entre os indivíduos. Para os movimentos sociais deesquerda, era isso e algo mais, con igurando a chamada “democraciasubstantiva”,marcada pela efetiva participação popular nas decisões dosgovernos,pelaconstruçãodepolíticasdedistribuiçãoderendaelimitesaodireito de propriedade. Para setores aindamais à esquerda, de tradiçãomarxista, era a realização da democracia popular de massas, de caráterdelegativo e calcada mais em direitos sociais do que propriamentepolíticos.

Sobum regime autoritário que ainda censurava, reprimia, torturava ematava, essas diferenças icavam suspensas, mas na medida em que oprocessode transição avançava elas tendiama se tornarmais con litivas,como a história o demonstrou. A partir de 1974, esboçou-se uma grandefrente oposicionista formada por empresários, políticos liberais, políticosde esquerda, movimentos sociais, movimento estudantil. Mesmo asorganizaçõesarmadasdeesquerda izeramsuaautocríticaeassumirama“questão democrática” como sua plataforma. Esse frentismo durou atécomeço de 1980, implodido sintomaticamente quando a questãodemocrática encontrou a questão operária. A entrada desse novo e

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vigoroso ator na luta pela democracia assustou os liberais e autoritários,queaceleraramasarticulaçõesparaumasaídanegociadadoregime.

Mas é preciso tomar cuidado coma valorização excessivadopapel dasociedade civil no processo de “abertura” e não subestimar os efeitosdessanovaculturademocrática,apesardesuasfragilidadesprogramáticas

eideológicas.371O conceitode sociedadecivil, que se consagrounosanos1970, como lugar da democracia em si mesma contra um Estadoautoritário pelo simples fato de ser Estado, é problemático. Essa visãoobscureceu as íntimas conexões do autoritarismo do regime no tecidosocial,aomesmotempoemqueserviudeálibiparamuitosaliadoscivisdoregimeseremabsolvidosdiantedahistória,poissecolocavamsoboepíteto

vagodemembrosda“sociedadecivil”.372

Masessassutilezaspolíticasnãosecolocavamnodebatedominanteemmeados dos anos 1970. A oposição, em todos os seus matizes, estavaanimada com a derrota do regime, depois de dez anos de uma ditaduraque parecia triunfante e invencível. Além doMDB, as associaçõespro issionais, os sindicatos, os movimentos de bairro, os artistas e osintelectuais passaram a acreditar que “amanhã, será outro dia”. Até aesquerdaoriundadalutaarmada,quesobrevivianoexílioequenãotinhamuitasimpatiaporprocessosinstitucionais,animou-secomasnotíciasque

vinhamdoBrasil.373

Oresultadoeleitoral,aomesmotempoemqueanimavaaoposição,erasintomadoseucrescimentoanterioraopleito.Alémdasmásperspectivasparaaeconomia,sinalizandoofimdo“milagre”,outrostemascomeçaramacomporumaagendadaoposição.

O ciclo repressivo que se inaugurou em 1975 é uma espécie de faceesquecidadatransição,consideradopormuitosanalistasmeroacidentedepercursonoprojetogeiselista,acuadopelasartimanhasdo“porão”.

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Enquanto o presidente saudava os eleitos de maneira protocolar, onúcleo de segurança do governo procurava os culpados pela derrotaeleitoral. Em janeiro de 1975, o ministro Armando Falcão elegeu o novoinimigoprioritáriodoregime:oPCB.Nomêsseguinteanunciouamídia,compompaecircunstânciaadescobertadeumagrá icaclandestinadoPartidoComunista Brasileiro e de sua “relativa in luência” nas eleições do anoanterior. A “comunidade de segurança” entendeu o recado e foi além,fazendo-se a clássica pergunta: quem foi o responsável pela derrota dogoverno e pela articulação do insidioso voto na oposição? A resposta eracristalina:aoposiçãofoiarticuladapeloscomunistasdoPCB,aproveitandoahesitaçãodogoverno“liberalizante”.Essarespostaconduziriaaumnovoetrágicociclorepressivo.

Antesmesmo do palácio sinalizar os limites da distensão, oMinistérioda Justiça e a comunidade de segurança já semoviam em outra direção.

Desde1973, aOperaçãoRadar374 vinha dizimando oPCB, que, apesar denão ter aderido à luta armada, não foi poupado da repressão.Sintomaticamente, quando a esquerda armada tinha sido já liquidada, osesforços da repressão se concentraram na eliminação da “esquerdadesarmada”, sob a máxima de que qualquer comunista solto ou vivo éinimigo e perigoso. É plausível que o “estouro” da grá ica do PCB em SãoPaulo, em fevereiro, tenha sido uma resposta direta à suspeita departicipaçãodoscomunistasnaarticulaçãodaoposiçãoeleitoral.Emagostode 1975, a Operação Radar foi vitaminada pela Operação Jacarta, cujo

objetivobásicoeraaeliminaçãodoPCBemSãoPaulo.375

AsequênciadeprisõesemortesenvolvendooPCBconsternavaapartecrítica e democrática da sociedade,mas amorte do respeitado jornalistaVladimirHerzog,depoisdeseapresentarvoluntariamenteaoDOI-Codi, foi

agotad’águaparaumagrandemanifestaçãodedescontentamento.376

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Aversãoesdrúxuladesuicídio,377comdireitoàmacabrafotoplantadanos jornais, só revoltou ainda mais seus companheiros e as váriascorrentes da oposição, cada vez mais ampla e adensada. Novamente, aCatedraldaSéeraolugardecultoemmemóriaaummortosobtortura.Oato para Herzog foi ecumênico, celebrado por Dom Paulo Evaristo, pelo

pastorJaimeWrightepelorabinoHenrySobel,poisHerzogerajudeu,378ereuniu8milpessoasnaCatedraldaSé, transbordandoparaapraça, sobgrande vigilância policial. O evento aconteceu apesar das mais de 300barreiraspoliciaismontadasparaimpediroacessodaspessoasaocentro.

A morte de Herzog causou um profundo mal-estar entre donos dejornaisepro issionaisdaimprensa,justamenteemummomentoemqueogoverno Geisel apostava em construir pontes com a opinião pública

utilizandoaimprensaliberalcomocanal.379

“Vlado” Herzog era um afamado pro issional da imprensa e tinhacomparecido depois de ser intimado aoDOI-Codi para prestaresclarecimentos. Saiu de lá morto. Geisel, discretamente, solicitou aocomando doII Exércitoque controlasse seusagentes;portanto, apesardarepercussão,nenhumamedidamaissériafoitomada.Emjaneirode1976,com a morte do sindicalista Manuel Fiel Filho, o presidente chegou àconclusão de que a linha de comando falhara e trocou, sumariamente, ocomandante doII Exército. Seguindo a tradição de contemporizar com os“excessos”,foiomáximodepuniçãoreservadaaoporãoeseuszeladores.

O episódio das mortes noDOI-Codi de São Paulo foi visto como umamanifestação de rebeldia da linha dura ao projeto de distensão-

abertura.380 O próprio presidente alimentou essa visão, embora seudesagrado tenha sidomenos com asmortes em si emais com a falta decomando local. Mas não podemos esquecer que o próprio Palácio deusinais de endurecimento ao longo de 1975. As mortes causadas pela

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repressão ao PCB jáeramnotóriasdesdeocomeçodoseumandato, sobarubricade“desaparecidos”.

O que teria havido para Geisel mudar de rota? A percepção de umaextrema-direitamilitar sem controle sendo gestada emanipulada para oainda longínquo jogo sucessório? A reação massiva da sociedade e daimprensa,mesmo em seus enclaves liberaismoderados, diante damortedo jornalista? O risco de perder o controle do processo deinstitucionalizaçãodoregime?

Em princípio, o clima de aprofundamento da distensão, com oreconhecimento das eleições e o im da censura prévia a jornais,convivendo com caça violenta aos comunistas e a ins, pode parecer umsinaldeesquizofreniagovernamental.Naverdade,revelamaestratégiadadistensão, ao menos até meados de 1977: abrir espaços institucionais ecanaisdediálogocomvozesseletivaseautorizadas,semnecessariamenteabrandararepressãoàesquerdaeaosmovimentossociaiscomoumtodo.A visão de uma “abertura” inequívoca, linear e sem recuos, desde oanúnciodoprojeto,apagouaduplafacedestaestratégia,taxando-adeumapuraconspiraçãodoporão.Mas,aoquetudo indica,oPaláciosabiaqueoporãoeraútil,atécertamedida,desdequenãoatrapalhasseosplanosdeinstitucionalização do regime e desa iasse abertamente a autoridade dopresidente.Esseeraolimite.Quandoultrapassado,comamortedeHerzoge,principalmente,deFielFilho,oPalácioesvaziouoporão.

O fato é que a demissãodo general EdnardoD’ÁvilaMello em janeirode 1976, com a nomeação do general Dilermando Gomes Monteiro,atenuou o furor da repressão clandestina.Mas o porão continuaria ativo,agora em franca atividade terrorista. Em agosto de 1976, atentados daextrema-direitacontraa ABIeaOABaprofundamaindamaisadescon iançados liberais e da oposição como um todo na capacidade do governo em

controlaromonstroqueelemesmocriouealimentou.381

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Paracomplicarasituaçãopolítica,asForçasArmadasdavamsinaisdedivisão crescente no segundo semestre de 1976, entre aqueles quequeriamrecrudesceroautoritarismopolicialesco (“duros”)eaquelesquequeriam a volta aos quartéis e o aprofundamento das medidas

democratizantes.382

Em 1977, com a aproximação do jogo sucessório, momento sempre

tenso na história da ditadura,383 não faltaram generais que se diziamreservas morais e ideológicas da “Revolução de 1964”. O ministro doExército,generalSilvioFrota,eraumdeles,etinhaprestígioecomandonatropa com ascendência sobre a “linha dura”. Em outubro de 1977, aquestão militar quase selou a questão democrática, com a tentativa degolpe de Estado por parte de Silvio Frota, que queria se a irmar comocandidato o icial, emparedando Geisel como Costa e Silva havia feito com

Castelo.384ComocontragolpedeGeiseleademissãodeFrota,seguidadamudançanos comandosdos22batalhõesde Infantaria, o lancoàdireitadogovernoficavadesobstruído.

O governo Geisel não enfrentava questionamentos apenas no frontinterno. A superpotência líder do bloco ao qual o Brasil se alinharadefinitivamente,comogolpede1964,osEstadosUnidos,estavaemrotadecolisãoporcausadoanúnciodoacordonuclearcomaAlemanhaOcidental,emmaiode1975.Oepisódio transformou-seemumacrise internacional.Estavam previstos vários reatores e uma usina de enriquecimento deurânio,comodomíniodociclocompletodaenergianuclear.

O nacionalismo econômico de Geisel, que seduzia até setores daoposição, avançou para a indústria de armamentos, tradicional redutocomercialdasgrandespotências.Emjulhode1975,ogovernocriouotrustImbel(IndústriadeMaterialBélicodoBrasil).Opaísentravana indústria

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bélica,deolhonolucrativomercadodoTerceiroMundo.

No inal de 1975, a política externa brasileira ousou ao reconhecerprontamente Angola, ex-colônia portuguesa sob regime comunista, eindicar um voto antissionista naONU, consagrando o reconhecimento àOrganização para Libertação da Palestina, fato que desagradavaWashington,tradicionalaliadodeIsrael.ComaGuerraFriaaindaemcursoecomaUniãoSoviéticaaindaumasuperpotênciamilitareeconômica,essadiplomacia independente vinda de um regime anticomunista e, emprincípio,alinhadocomWashingtonsurpreendia.

Ossinaisdeumapolíticaexternaautônomaeheterodoxae,sobretudo,a suspeita de que o Brasil queria chegar à bomba atômica e se a irmarcomoumapotênciacomdinâmicapróprianageopolíticamundialforamosgrandesmotivosdecon litocomaadministraçãodeJimmyCarter.Nobojo,veioacríticaàviolaçãodosdireitoshumanosporpartedogovernoCarter,tema central em sua diplomacia, isolando ainda mais o regime no planointernacional. O reconhecimento o icial dosEUA de que o Brasil nãorespeitavaosdireitoshumanossomava-seàantigacampanhadosexiladose da esquerda,marxista e católica, europeia nas denúncias de torturas e

desaparecimentos.385

Em1977,jácomváriossetoressóciosocupandoasruasparaprotestar,avisitadaprimeira-damadosEstadosUnidos,RosalynCarter,foioaugedapressão contra o acordo nuclear e contra a violação dos direitos

humanos.386

Para constranger ainda mais o governo brasileiro, o relatório doCongressonorte-americanosobreaquestãocolocouemriscoatéaslinhas

de inanciamento internacionais.387 Como reação a essa pressão, o BrasilrompeuoacordomilitarcomosEUA,datadode1952.

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O governo Geisel não se deu por vencido, apesar das pressões. Nomáximo,controlouseuporão.Asperspectivasparaademocracianoanode1976 não eram promissoras e apontavam para um re luxo na tímidadistensão.Emjunho,oCongressoacuadoaprovouaLeiFalcão,mesmosobboicote doMDB, que restringia apropagandapolíticanamídia,permitindoapenas a foto e umbreve currículo do candidato.Apesar das pressões, ogovernopareciatercontroledoroteirodesuasonhadainstitucionalizaçãodo modelo político autoritário, propondo uma abertura mais lenta egradual do que segura, posto que o próprio governo parecia recuar dassuaspromessasdeliberalização,cedendoespaçoàpurarepressãopolicial.Masnovosatoresentrariamemcena.

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AsociedadecontraoEstado

Ao longo de 1976, o Governo Federal parecia retomar o controle doambiente político, ao menos sob o ponto de vista institucional. A“comunidadedesegurança”,a contragosto, icoumenosousadadepoisdademissão do general Ednardo D’ÁvilaMello do comando do II Exército. ALei Falcão tinha esvaziado o debate potencial que poderia marcar aseleiçõesmunicipaisde1976.Asvozesdasociedadecivil,emboracadavezmais críticas ao regime, pareciam aceitar o ritmo e as vicissitudes daabertura o icial. Os movimentos sociais ainda não tinham saído às ruas,atuando discretamente nos bairros através de inúmeras formas deorganizaçãocapilar.

Amodorrenta campanha eleitoral na TV, reduzidaàexposiçãode fotosdos candidatos e a leitura, emvozoff, do seu currículo edadoseleitorais,tinha dado certo resultado. A Arena havia se recuperado da derrotaeleitoralde1974,elegendoquase30milvereadoresemtodoopaís,contra

poucomaisde5,8mildoMDB.388Mesmoaoposição sendo forteem todasas capitais, somente em Porto Alegre, Manaus e Natal ela tinha elegidomaisvereadoresdoqueopartidodogoverno.

Com força institucional e eleitoral revigorada,ogovernoGeisel acenouparaaoposiçãopartidáriacomum“diálogo”,escolhendocomomediadorosenador Petrônio Portela (Arena-PI). O objetivo era preparar o terrenopara a revogação do AI-5 e avançar no projeto de institucionalização do

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regime.AescolhadePortelanãoforaaleatória.Respeitadopelaoposiçãoetidocomoumliberal,PortelatinhasedestacadonapresidênciadaArenaeno Senado, não se furtando a criticar o governo na ocasião damorte dojornalistaVladimirHerzog.Assim,tinhatrânsitonogovernoenaoposição.Em fevereiro de 1977, Portela foi conduzido à Presidência do Senado,iniciandoaMissãoPortela,nomedadoaoscontatoso iciaisentregovernoeoposição. O objetivo era obter um consenso mínimo para as reformaspolítico-institucionais pretendidas pelo governo como parte dainstitucionalização do regime e do restabelecimento de certas liberdadesdemocráticas.

Algunsmeses depois, o presidente Geiselmudou de tom, pois avaliouque a oposição “cooperava” menos do que o esperado, o que revela ocaráter do diálogo. No inal de março, o governo propôs um pacote(EmendaConstitucional nº7), tendo comoeixo a reformado judiciário.Areforma foi recusada pelo Congresso. Geisel andava impaciente com oandamentodasconversaçõescomaoposição,earecusadoCongressoemacatar a dinâmica política proposta pelo governo foi a gota d’água.Utilizando-se das prerrogativas do AI-5, no dia 1º de abril, o AtoComplementar 102 fechou o Congresso, visando impor ao país sem odevidodebateparlamentarasEmendasConstitucionaisnº7(adareformado Judiciário) e nº 8, além de vários decretos-lei. Os “pacotes de abril”,como icou conhecido esse conjunto de propostas de reformaconstitucionaisejurídicas,tinhaumobjetivoestratégico:visavaprepararocaminho para a institucionalização do regime e impedir que a oposiçãoganhassemaiorianoCongressonaseleiçõesde1978.

Emresumo,os“pacotesdeabril” instituíamaeleição indiretaparaumterçodo Senado (cujosmembros eram indicados por um colégio eleitoralestadual demaioria governista),mantinham as eleições indiretas para ospróximos governadores estaduais, aumentavam a representatividade dos

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estados menos populosos (onde a Arena era mais bem votada),sacramentavamasrestriçõesàpropagandaeleitoralealteravamo quorumparlamentarparaaprovaçãodeemendasconstitucionaisdedoisterçosdaCâmara paramaioria simples. Omandato presidencial foi ampliado paraseis anos, valendo a partir do sucessor de Geisel. Para pavimentar ocaminhodainstitucionalização,ogovernoutilizavaumverdadeirotrator.Orecadoeradireto.Acondiçãoparaaliberalizaçãodoregimeseconsolidarera o controle absoluto do processo institucional por parte do PoderExecutivo.QuestionadoseospacotesnãoeramumapedranocaminhodademocratizaçãodoBrasil,Geiselcunhouumadasmaismemoráveisfrasesdoregimemilitar:“Nossademocracianãoéigualàsoutras[...].Democracia

érelativa”.389

Apesar da gritaria doMDB, o campo de batalha parlamentar estavacontrolado e a democracia relativa do regime parecia triunfar. Mas ogovernonão contava que o palco da luta iria ser deslocadopara as ruas,ondepersonagensmenosdóceisiriamocuparoteatrodapolítica.

No dia 1º de maio de 1977, o prefeito de São Paulo, Olavo Setubal,discursou na Vila Carrão, bairro operário da periferia de São Pauloescolhidoparaascomemoraçõeso iciaisdoDiadoTrabalhadornacidade:“A juventude não se lembra de outros ‘primeiros de maios’, onde só seencontravam con litos e tumultos. Hoje, é isto que vemos aqui: música e

alegria”.390 Cincodiasdepoisdoprefeito indicadopelo regime celebrar apazsocialquesupostamenteenterravaopassadodeconflitossociais,cercade setemil estudantes se concentravam no Largo São Francisco, em SãoPaulo,emfrenteàhistóricaFaculdadedeDireitoemnomedas“liberdadesdemocráticas” e pela libertação de colegas presos em uma pan letagemperto das fábricas doABC. Depois de nove anos, o movimento estudantilrealizavaprotestospúblicosnocentrodeumagrandecidadebrasileira.

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Mesmo durante a fase mais repressiva do regime, o movimentoestudantil nunca deixou de existir e atuar. Quandomuito, icou recolhidoa oscampi universitários, aos diretórios acadêmicos e aos eventos decaráterpolítico-cultural.Apesardalegislaçãorepressiva,omovimentonãodeixou de fazer greves e passeatas para protestar contra a política

universitáriaqueemmuitos casosemulavaoautoritarismodo regime.391

Em 1973, a morte de Alexandre Vanucchi Leme tinha deixado os campipaulistasempédeguerracontraoregime,eamissaemsuahomenagempode ser considerada o primeiro grande ato público contra o regimemilitardesde1968.Aoqueparece,novasarticulaçõessefizeramdentrodomovimento estudantil, deslocando o foco da revolução socialista para otema das liberdades democráticas, ao menos no plano tático da luta

estudantilcontraoregime.392Asorganizaçõesetendênciasestudantisquenão tinham apostado na luta armada ou que avançaram na autocríticadesta opção começavam a ganhar espaço, apostando na chamada política

de massa para combater o regime.393 No jargão da esquerda, issosigni icava ações políticas voltadas para a mobilização de amploscontingentes entre estudantes, operários e cidadãosemgeral, enãomaisaçõesviolentaslevadasacaboporpequenosgruposarmados.

Portanto, aspasseatasde1977nãoapareceramdonada. Foram frutode tensões e articulações acumuladas havia anos pelo movimentoestudantil, que inalmente transbordava dos limites dos campi e ocupava

aspraçaseruascentrais.394

Naquele5demaiode1977,oobjetivodosmanifestanteseramarchardoLargoSãoFranciscoparaaPraçadaRepública,indodochamadocentrovelhoparaocentronovodacidadedeSãoPaulo,emhoráriocomercial.Apasseata foibarradanoViadutodoChápelatropadechoqueda PMeporagentesàpaisana. Impedidosde continuar comapasseata,osestudantessentaram-se no asfalto do Viaduto e leram um manifesto que começava

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compalavrasmemoráveis,queanunciavamumnovociclodelutas:

Hoje,consentequemcala.Porquenãomaisaceitamosasmordaçaséquehojeexigimosa imediata libertação dos nossos companheiros presos [...]. É por isso que conclamamostodos, nestemomento, a aderirem a estamanifestação pública sob asmesmas e únicasbandeiras: imàs torturas,prisõeseperseguiçõespolíticas[...]anistiaamplae irrestritaatodosospresos,banidoseexiladospolíticos;pelasliberdadesdemocráticas.395

Asejulgarpelospapéispicadosquecaíamdosprédiosepelosaplausosvindosdospopularesqueassistiam,meioatônitos,aoprotesto,omanifestoecoouentreosarranha-céusdasempreocupadaSãoPaulo.

As palavras e os atos estudantis ecoaram também em Brasília. Orepresentante do lado escuro da abertura, o ministro Armando Falcão,lançou uma nota ameaçadora, proibindo “[...] qualquer manifestaçãocoletiva que envolva passeatas ou concentrações de protesto emlogradourospúblicos,ououtros tiposdedemonstraçõesqueperturbema

ordem”.396

Aimprensamoderada,sempreassustadaquandoapolíticachegavaàsruas, reverberava a mensagem do governo: “Adiamento das eleições,fechamentodoCongressoeendurecimentopolíticosãoospresságiosmaisouvidosnosmeiospolíticosdepoisdasmanifestaçõesestudantisocorridas

em São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte”. 397 Entre a notícia e aadvertênciaveladaaos“radicais”,aimprensaliberalmantinha-senalógicademanteroambientecalmoeapolíticadentrodasinstituiçõespermitidas,

ainda que violentadas pelo regime.398 A memória traumática de 1968,quando o país foi da euforia das passeatas à depressão causada pelofechamentopolíticodoregime,pareciadar-lherazão.

Mascomoparaosmaisjovensnemsempreahistóriaémestradavida,as passeatas estudantis continuaram não apenas em São Paulo, mas emoutras cidades. Para o dia 19 de maio, foi convocada uma grandemanifestação estudantil, mas as tendências políticas que conduziam o

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movimentonãoseentenderamsobrea formaeo local.Amaiorpartedosestudantes preferiu se manifestar em um espaço estudantil de grandevisibilidade pública, a Faculdade de Medicina daUSP, situada em umagrandeemovimentadaavenidadeSãoPaulo. Jáumaminoria comandadapelos trotskistas,mais aguerrida e disposta ao combate ( ísico, inclusive),organizou uma passeata no centro, duramente reprimida pela polícia. Ogoverno se armou de todas as precauções e voltou a lançar recadosatravés da imprensa, ameaçando com o “fechamento completo das

instituições”.399

Em junho de 1977, apesar das ameaças e da crescente repressãopolicial, foi marcado um novo “Dia Nacional de Luta pela Anistia”, compasseatasemtodoopaís,comdestaqueparaoprotestoquemaisumavezagitouocentrodeSãoPaulo.No inaldodia,osestudantesserefugiaramdentrodaFaculdadedeDireitodoLargoSãoFrancisco,eocoronelErasmoDias, secretáriode SegurançadoEstadode SãoPaulo, ameaçou invadir ahistóricafaculdade.Depoisdemuitasnegociações,osestudantespuderamsairsemserempresos.

Acriseestudantil seampliava.EmBrasília, aUnBentrouemgrevenoinal de maio, da qual só sairia dois meses depois. No começo de junho,uma tentativa de realizar um encontro nacional estudantil terminou comváriospresosemBeloHorizonte.No IIIDiaNacionaldeLuta,emagosto,aviolência daPMpaulista recrudesceu.Mesmomobilizandocercade20milsoldados, não conseguiu impedir as minipasseatas, como os estudantesnomearama táticadeprotestaremvários locaisdiferentesdocentroporalgunsminutosparaqueocorressemduranteodia todo.Ocadavezmaisraivoso coronel Erasmo Dias vociferou: “Foi um dia de luta, de luta

inglória”.400 Outros protestos estudantis aconteceram em Porto Alegre eSalvador, e a repressão policial aos estudantes que gritavam pordemocraciacomeçavaaincomodarogoverno,quebatianamesmateclada

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ameaça do “fechamento”. Mas 1977 não era 1968, apesar da visívelpreocupação do governo em impedir a volta das entidades estudantisproscritas,comoaUNE,eosgrandesencontrosorganizativos.

A invasão de um espaço estudantil, atitude sempre arriscada edesgastantemesmoemcontextosditatoriais, foiprovocada,precisamente,pela realização do III Encontro Nacional dos Estudantes. Inicialmente foianunciado que ocorreria na Cidade Universitária daUSP, que foi cercadapelaPolíciaMilitar.Naverdade, tratava-sedeuma táticaparadespistarapolícia, pois no mesmo dia 22 de setembro as efetivas lideranças domovimento estudantil realizaram o encontro clandestinamente naPonti íciaUniversidadeCatólicadeSãoPaulo.Quandoapolíciadescobriu,oevento já tinha terminado,masa tropanãoperdeuaviagem, invadindoaPUC e prendendo os estudantes que realizavam uma assembleiacomemorativa do encontro. A violência da invasão foi impactante. Detevecercademilestudantes,dosquaiscercadenoventa foramencaminhadosparaoDopsequatro icaramgravementeferidos.Cercadetrintasalasdeaulaouadministrativasforamcompletamentedestruídaspelapolícia.

Somente em agosto de 1979, com a revogação do Decreto nº 477, asentidades locaispuderamsereorganizarna formadosdiretórioscentraisde estudantes, tornando-se espaços de disputas entre as tendênciasestudantisquenãomaisconseguiramprotagonizarasgrandeslutascontraoregime, icandoàreboquedospartidosdeesquerdaoudosmovimentossociais.As energiasdomovimentoestudantil, apartirde insde1977, sevoltaram para a reconstrução das suas entidades e da própria UNE,recriada dois anos depois em Salvador. Com o retorno das massasoperáriasàcenapolítica,osestudantespassaramasesentirummistodecoadjuvantes e missionários nas novas lutas sociais, mesmo que osoperários não fossem muito receptivos a eles nas assembleias sindicais,por considerá-los “porras-loucas” e pequeno-burgueses. No jargão da

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esquerda, isso signi icava muito barulho e pouca capacidade real demobilização.

A dramática invasão daPUC, se por um lado diminuiu o ímpeto daspasseatas estudantis, por outro reforçou os elos da causa estudantil, queno limite se confundia com a própria causa democrática, com outrossetores da sociedade. Rompendo o tabu de não ir às ruas para protestarcontra o regime, uma das leis de ferro da era AI-5, os estudantesconseguiram dar visibilidade para a questão democrática e apontar oslimites da chamada “abertura”. A “questão democrática” saía dasenfadonhas discussões institucionais sobre o “modelo político” maisadequadoparainstitucionalizaroregimeeganhavaaopiniãopúblicamaisampla.Seessasmobilizaçõesnãoconseguiram“derrubaraditadura”pelapressãodasruas,comodiziaapalavradeordem,implodiramoslimitesdatímida abertura de Geisel. Ou seria mera coincidência o fato de que, emsetembro de 1978, cada vez mais criticado por vários atores sociais epolíticos,ogovernoanunciouaEmendaConstitucionalnº11,queacabavacom o AI-5, com a cassação de deputados pelo Poder Executivo, com acensuraprévia,quepreviaavoltado habeascorpuseextinguiaapenade

morteeaprisãoperpétua?401Seráqueestasmedidasestavamprevistas,em sua plenitude, desde o começo da “distensão”?Mesmo previstas, nãopoderiamser consideradascomorespostasaosprotestosqueexplodiramapartirde1977?

O fato é que só no inal do seu governo o presidente que icouconhecidocomooartí icedaabertura,o “ditador semditadura”,delineoucomclarezaocaminhodatransiçãopolíticaparaumregimecivil,processoqueaindaconheceriaalgunssustos,masnenhumretrocessoefetivo.Atéocomeçode1977, a abertura eraumamiragem, umprojeto ainda incerto,maispreocupadoemreorganizaro“modelopolítico”doregime.Apartirde1978, transformou-se em uma agenda política voltada para a transição

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democrática.

Mas a batalha das ruas estava apenas começando. Durante a criseestudantil de 1977,muitas vozes expressivas de diversos setores sociais,pro issionais, religiosos e culturais se manifestaram na carona dosprotestos de rua. Não houve dia, naquele ano, em que a imprensa nãopublicasse notícia sobre as “siglas da democracia”. Foi uma verdadeirasopa de letras que se tornaram sinônimas da oposição democrática aoregime:OAB, CNBB, SBPC, ABI. Era o apogeu da crença na “sociedade civil”,termo que se consagrava como expressão da luta por democracia,contrapondo-seaolugardopoderautocrático,oEstado.

Antesmesmodos estudantes iremàs ruas, aCNBB lançouumdosmaiscontundentes manifestos contra o regime em fevereiro de 1977, aotérmino daXV Conferência Nacional dos Bispos do Brasil: “Exigênciascristãs de uma ordempolítica”. Em umdos trechosmais contundentes, odocumento dizia que antes do Estado moderno, os grupos humanos jáexistiamcom

[...]devereseobrigaçõesde inidasecomdireitosnaturais inalienáveis[...]nãoéoEstadoqueoutorgaestesdireitosàspessoas[...]todaforçaexercidaàmargemeforadessedireitoé violência [...] quando se inspiram numa visão de ordem social concebida como vitóriaconstantesobreasubversãoouumaincessanterevoluçãointerna,taisregimesdeexceçãotendemaprolongar-seindefinidamente.402

Emumtomdiretamentevoltadoparaacríticadoregime,odocumentoainda a irmava a necessidade de participação política do ser humano,calcada na liberdade de discussão, bases para a verdadeira “ordempública”. O documento completava o longo ciclo de afastamento entre acúpula da Igreja Católica e o regime militar, iniciado em 1968. Paracomplicar a situação, a Igreja suspeitava que o protestante Geisel tinhadado carta branca para que o ex-aluno dos jesuítas, senador NelsonCarneiro, se articulasse e, inalmente, conseguisse aprovar a Lei doDivórcioem insde1977.Efetivamente,aLeifoibene iciadapelamudança

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d equorum para aprovação de emendas constitucionais por maioriasimples,embutidanospacotesdeabril.

Em ins de maio, aABI lançou um manifesto “Pelas liberdadesdemocráticas”, ecoando a palavra de ordem dos protestos estudantis. Noatoocorridonasededaentidade,noRiodeJaneiro,aleituradomanifesto,subscritopormaisdemilsignatários,revelouumanovidade.Odocumentonãoseriaentregueànenhumaautoridade, comoera comumocorrer com

outrosmanifestos.403 Tratava-se de uma comunicação da sociedade civilconsigo mesma, reforçando a crença de que só a volta da democraciapoderia resolverosproblemasdopaís.Em julho,a29ªReuniãoAnualdaSociedadeBrasileirapeloProgressodaCiência( SBPC) foimaisumatopelademocracia do que, propriamente, uma reunião técnico-cientí ica.Boicotada pelo governo e proibida de ser realizada nas universidadespúblicas, a reunião foi organizada pelos intelectuais e cientistas daentidadenaPUC/SP.Emquepeseograndeinvestimentodoregimenapós-graduação e na ampliação do sistema universitário, o meio era cada vezmais marcado pela cultura da oposição, ecoando as mobilizaçõesestudantis. Uma das preocupações do governo era que o movimentoestudantil e os partidos clandestinos de esquerda utilizassem a entidadepara se rearticular. A PUC, ao sediar o encontro proibido pelo governo,demonstrouindependênciaea irmou-secomoumdosespaçosdalutapelademocracia acadêmica e política nos anos 1970 e 1980. Especulava-se àépocaqueaaçãoviolentadaPM contraopatrimôniodaPUC, na repressãoao movimento estudantil, tinha sido uma resposta do governo à atitudeindependenteeoposicionistadauniversidade.

Entre todos os manifestos pela democracia lançados em 1977, o quetevemaiorcoberturadaimprensafoia“Cartaaosbrasileiros”,lidaematopúbliconaFaculdadedeDireitodaUSP,emagostode1977,quandoocursocompletava 150 anos. Tratava-se de um longo documento, de 14 laudas,

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dividido em várias partes nas quais seu autor, o jurista Gofredo da SilvaTellesJúnior,discutiaosfundamentos jurídicose ilosó icosdopoderedademocracia. Em uma das suas passagens mais citadas, dava um recadodireto ao regime e sua obsessão legalista: “Partimos de uma distinçãonecessária. Distinguimos entre legal e legítimo. Toda lei é legal.Mas nemtoda lei é legítima”. Ou ainda: “A fonte genuína da Ordem não é a Força,masoPoder[...]OPoderaquenosreferimosnãoéoPoderdaForça,masoPoderdapersuasão. IlegítimoéogovernocheiodeForça,masvaziodePoder”. Em outra passagem, o texto era ainda mais direto na crítica aoregime, dizendo que no binômio “segurança e desenvolvimento” fora doestado de direito, ou seja, apropriado pelas ditaduras, segurança ésinônimo de terror contra o cidadão, e desenvolvimento, de miséria e

ruína.404

A leitura soleneda carta, ocorridaemmeioao turbilhãodosprotestosestudantis, reuniu cerca de 600 pessoas no Salão Nobre da Faculdade,alémdosmaisde3milnopátiointerno.Ao imdoato,houveumapasseatacomcercade10milpessoaspelocentrodeSãoPaulo.Semassumirocustode estragar a festa de uma das mais tradicionais e insuspeitavelmenteliberais faculdades do país, que inclusive havia gerado algunsproeminentesquadrosjurídicosparaoregime,apolícianãointerveio.

Com a Carta, a oposição liberal ganhava uma base ideológicaconsistente, que se encaminhava para a defesa da convocação de umaAssembleia Nacional Constituinte como forma de marcar a transição esuperar a ditadura, projeto que nem de longe passara pelos planos doGoverno Federal. Mas esse não podia fazer ouvidos moucos. Dada amobilizaçãocrescentedassiglasdademocracia(OAB,SBPC,CNBB),quereuniaaclassemédiaea ina lor intelectualda sociedade,ogovernoreativouaMissãoPortela, agora voltada para “dialogar” com a sociedade civil e nãocom oMDB.Sintomaquemesmoopoderdaforçatentavachegaraopoder

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doconsenso.

O partido da oposição, oMDB, depois de amplo debate interno, tentouaproveitar o clima de contestação que se espalhava pela sociedade. Oprograma nacional de TV doMDB, em 27 de junho, causou atrito com o

governodevidoàsfortesdeclaraçõesdodeputadoAlencarFurtado:405

Hoje,menos que ontem, ainda se denunciam prisões arbitrárias, punições injustas edesaparecimentode cidadãos.OprogramadoMDB defende a inviolabilidadedosdireitosdapessoahumanaparaquenãohajalaresemprantos; ilhosórfãosdepaisvivos–quemsabe?;mortos?–talvez.Órfãosdotalvezedoquemsabe.Paraquenãohajaesposasqueenviúvem commaridos vivos, talvez; oumortos, quem sabe? Viúvas do quem sabe e dotalvez.

O governoGeisel cassou omandado do deputado, e o próprioUlyssesGuimarães, presidente do partido, foi ameaçado com um processo nostermosdaLeideSegurançaNacional.

Tentando retomar uma agenda mais agressiva, o MDB lançou acampanha pela Assembleia Constituinte, o icializada em setembro na

ConvençãoNacional,juntocomaFrenteNacionaldeRedemocratização. 406

Entretanto, a campanha popular pela Constituinte não vingou, pois oMDBestava dividido entre setores moderados e “autênticos”, sendo que osprimeiros não estavamdispostos a politizar as ruas.No ano seguinte, emjunho de 1978, Petrônio Portella e Ulysses Guimarães se encontram, epoucotempodepoisoúltimoanunciavaqueacampanhapelaConstituinte

seria feita “a portas fechadas”, no Parlamento e nas entidades civis.407 Ofato é que oMDB, apesar da combatividade de alguns dos seus quadros,estava sendo emparedado de dois lados: pelo governo, que o via comomero sócio das reformas institucionais para perpetuar os princípios doregime, e pela sociedade civil, que o considerava um partido semcapacidadedeaçãoefetivacontraaditadura.AreediçãodaMissãoPortela,sintomaticamente, passou por cimadoMDB nas conversas que teve coma“sociedade civil”.O governopoderia até utilizar a forçapara combater os

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estudantes,masa rebeliãodos setores tradicionalmente liberais eramaisproblemática.Osintomadoseucrescimentoeraafrancaoposiçãodassuasprincipais entidades pro issionais, como aOAB e aABI, em crescimentodesde1974.Acampanhapelavoltadohabeascorpus,suspensodesdeoAI-5, galvanizava todos os matizes ideológicos da advocacia brasileira,transformada em tema central da VII Conferência da entidade (maio de1978).

Desenhava-seopiordoscenáriosparaoregime:aconvergênciaentreaoposiçãodasentidadescivis,opartidodeoposiçãoeoprotestodasruas,lugar tradicionalmente ocupado pelas esquerdas e pelos movimentossociais.

Demonstração do isolamento ainda maior do regime foi o fato de a

rebeliãoliberaltersidoadensada,tambémem1977,pelosempresários.408

Estes, em nome do liberalismo econômico, mas bem mais preocupadosinicialmente em reconquistar espaços de interferência nos conselhosgovernamentais no lugar da tecnoburocracia e dos militares, já seestranhavam com o governo Geisel desde 1974. Nesse ano, teve início acrise com o empresariado, quando Eugenio Gudin, ao ganhar o título de

“HomemdeVisão”doano,de lagroua campanha contraa estatização.409

Nocomeçodoanoseguinte,ojornalOEstadodeS.PaulosejuntaàrevistaVisão, tornando-se porta-vozes do liberalismo econômico na campanhacontraaestatização.Eraumsintomadeummal-estarquesócresceriaaolongo do governo Geisel, atingindo seu auge em 1977, quando aslideranças empresariais fazem convergir a crítica à estatização com a

defesadademocraciapolítica.410

OdiscursodeJoséPapaJúnior,liderançadaFederaçãodoComércio,noqualchamouoregimede “espúrio”, transformou-seemummarco.Elodoempresariadonacionalcomogoverno,oindustrialSeveroGomesdeixouo

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Ministério da Indústria e Comércio, engrossando a oposição. No anoseguinte, os empresários explicitaram suas posições em defesa das“liberdades democráticas”, para eles corolário da “livre iniciativa” e dodesenvolvimento econômico, com o “Manifesto do Grupo dos 8”, lançadoem26dejunhode1978,assinadoporAntonioErmíriodeMoraes,SeveroGomes, Laerte Setubal, JoséMindlin, Claudio Bardella, Luis Eulálio BuenoVidigal. Boa parte dos magnatas da indústria que alimentava oPIBbrasileiro se colocavam como críticos ao governo, aumentando seuisolamentoeagregandomaisvozesaoprocessodedeslegitimaçãopolíticado regime. Na verdade, diga-se, nem todo o empresariado brasileiroinclinou-se para o projeto de redemocratização, pois havia uma velhaguardaempresarialquenãoeratãosimpáticaàcausademocrática,aindaquedentrodoslimitesdoliberalismo.NadirFigueiredo,queaté1980eraonomemaisin luentenaFiesp,atuouaoladodeAdolphoLindenberg,para

limitaracorrentepró“aberturapolítica”nomeioempresarial.411

A oposição liberal contra o regime, naquele surpreendente ano de1977,olhavaoprotestoestudantilcomummistodecarinho,descon iançaeatenção.Eracomoseosestudantesfossemosarautosmenospolidosdasverdades que tinham que ser ditas. Como o governo não escutava ossussurros, era preciso gritar. Havia certa tolerância, apesar do temor daradicalizaçãodasruasedogoverno.Apalavradeordemqueseouvianasruas – “Pelas liberdades democráticas!” – era a frágil argamassa dessaimprovável aliança. O teste para conhecer o verdadeiro grau do credodemocrático da oposição liberal ainda estaria por vir. Mas antes disso, adireitamilitar,inimigadadistensão,tentoumostrarosdentes.

Umdoseditoriaisdo jornalOEstadodeS.Paulode6de julhode1977anunciavaoroteiroparaonovoatodapolíticabrasileira,quesedelineava

por“contornosgravesdeumquadroinquietante”.412Citandoumeminentearenista,mantidoemanonimato,amatériadiziaqueoproblemamaiordo

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governoGeiselnãoeraainsatisfaçãodaoposição,nocasooMDB,masofatodeninguém estarsatisfeitocomogovernoe, comoaconteceemcontextosautoritários, com o próprio regime. Estudantes, intelectuais, empresários,clero, trabalhadores, ruralistas e até políticos da Arena eram citados nobalaio dos insatisfeitos. No plano externo, o presidente estadunidenseJimmy Carter e o papa PauloVI se juntavam aos críticos do governobrasileiro. Explicitamente, por causa da violação dos direitos humanosperpetrada pelo regime. Implicitamente, pelas aventuras brasileiras nocampo nuclear, no caso de Carter, e pela forma que se encaminhava aaprovaçãododivórcio,nocasodoVaticano.

Na sequência, outro editorialista traçou o roteiro político que,supostamente, seria seguido pelo Governo Federal. Condicionar oprosseguimento da “institucionalização” (outro nome que se dava entãopara a “distensão” programada) à questão sucessória. Segundo o jornal,como imdomandatodeGeiselprevistopara1979,oequacionamentodaquestãosucessóriade iniriaacontinuidadedapolíticadedistensão“lenta,gradual e segura”. A alternativa era sombria: suspender a agenda dainstitucionalização“atéoano2000”.

O roteiro para salvar a “institucionalização do regime”, sugerido pelotexto do jornal, parece até um oráculo da história que efetivamente sepassou: conseguir recompor uma base parlamentar, que incluísse aoposição, para encontrar uma fórmula constitucional que substituísse oodioso AI-5, extinguir o bipartidarismo e conseguir apoio doMDB para ocandidatoo icialdogoverno,queseriaanunciadono inaldoano.SabemosqueesseroteirofoiimpostopelaEmentanº11,emsetembrode1978,poisoMDB se reveloumenos dócil do que o governoprevira, embora tambémnão fosse tão radical a ponto de galvanizar o conjunto da oposição queocupava as ruas. Mas o que importa é que o princípio de condicionar ainstitucionalização,oudistensão,aocontroledoprocessosucessórioestava

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dadocomoestratégiadogovernoGeisel.

Entretanto,esseerao“x”doproblema.Desdeoiníciodoseumandato,o tema da distensão desagradava a direita militar, à qual Geiselcontemporizava com discursos duros e uma boa dose de tolerância paracom as ações repressivas clandestinas. Aomenos, até o começo de 1976,essa foi a forma que o governo lidava com os “duros”. Depois do ato decomandodopresidenteGeiselque,aodemitirocomandantedo IIExército,lembrou que antes de ser presidente era um general, a direita militarrecolheuseubraçorepressivo,masnãooseubraçopolítico.Eeletinhaumnome: general Silvio Frota. Alias, a demissão de Ednardo D’Ávila Mellotinhacausadoumacolisãodiretaentreopresidenteeoministro,poisesteerapróximododemitidoe,emprincípio,caberiaaeletomarestaatitude.

Apesardeserconsideradoporta-vozdos“duros”, seusauxiliaresmaispróximos a irmam que Frota não permitia torturas quando che iara o I

ExércitosediadonoRiodeJaneiro,apartirde1972. 413Entretanto,elenãoescondiasuainsatisfaçãocomadistensão,quepermitiaavoltainsidiosada“subversão comunista”. Anticomunista convicto, suas ordens do dia ediscursos comemorativos eram poesia no ouvido da extrema-direitamilitar.

FrotaeraministrodoExércitodesde1974,quandoogeneralescolhidoporGeisel, Dale Coutinho, faleceu e Frota colocou-se como reservamoralda “Revolução” ameaçada pela distensão. Para ele, esse projetoenfraqueciaogovernonocombateaocomunismo.Desde1977, remetiaàPresidência da República longos relatórios alarmistas e críticos àorientação do governo e à “in iltração” de comunistas e subversivos. Taisrelatórios expressavam as posições da comunidade de segurança,momentaneamente limitada nas suas ações. Ao mesmo tempo, taispronunciamentospúblicosou reservados cacifavamFrotapara concorrerà sucessão comomantenedor do espírito de 64, supostamente ameaçado

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pelaprópriapolíticadedistensãodogoverno.AténoCongresso,porvoltademaiode1977,esboçou-seumaarticulaçãoparaacampanhadeFrotaàPresidência,comosucessordeGeisel,comapoiodecercade90políticosdaArena. O general não escondia suas críticas ao governo Geisel, feitas emqualquer evento público onde comparecia comoministro e, virtualmente,

comocandidato.414

Astensõesculminaramnacrisede12deoutubro,comcheirodegolpedeEstado.Frotajáesperavasuademissão,masacreditouqueboapartedoExército icariaaoseulado,ajulgarpeloapoioquetinhadao icialidadedaativa, de alguns generais da reserva, e mesmo dos políticos civis queapoiavamo regime.Logopelamanhã, foi comunicadodoseuafastamentopelopresidente,masnãose fezderogado.Foiaoseugabinetedispostoalutar. Redigiu, ou desengavetou, um longo manifesto de oito páginas noqualdenunciavaogovernocomosendo“complacentecomocomunismo”e,portanto, ferindo o espírito da “Revolução”. Distribuiu o manifesto àimprensa e a todos os comandos militares, na esperança de que fosseredistribuído aos quartéis e provocasse um levante militar contra ogoverno.Paraselarogolpe,convocouumareuniãodeemergênciadoalto-comandodoExército,àqualosgeneraisacederam.

Mas no xadrez da política, o xeque-mate foi do presidente Geisel, emumaoperaçãoqueentrouparaosanaisdahistóriadapolíticapalacianadoBrasil.AntesdedemitirFrota,GeiseleGolberyneutralizaramoseventuaisapoios dos comandos dos Exércitos a Frota, além de deixar todo o ritualburocráticodademissãodevidamentepreparado, comdireitoadecretoeedição extra doDiário O icial, para selar sua demissão, com todos osdevidosrituaisburocráticos.Odiadademissãofoiescolhidoadedo,poissetratavadoferiadode12deoutubro,DiadaPadroeiradoBrasil.Oferiadofazia de Brasília uma cidade vazia e fantasma, ao menos de repartiçõespúblicaseexpedientesburocráticosquepoderiamseagitar,próecontra,

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osrumoresdegolpe.ComoomanifestodeFrotanãochegaraaosquartéis,estes permaneceram calmos nas horas fatais. Sem ordens superiores, osmilitares não se movem ou se movem com muita hesitação, 1964 já oprovara. Uma curta nota pública foi lida pelo ministro Hugo de AbreudizendoqueademissãodeFrotatinhasidoporquestõesdeordempessoal

“semqualquervinculaçãocomaquestãodasucessãopresidencial”. 415Porviadasdúvidas, caso todaessa contraoperaçãopolíticanão funcionasseeasarmasfalassemmaisalto,astropasmais iéisaopresidenteestavamemregimedeprontidão.

Restava, entretanto,umaportaabertaparaogolpe: a reuniãodoalto-comando. Caso conseguisse se reunir com os generais, Frota poderiareverterasituaçãodesfavorável,mobilizandoosquartéis.Mas,novamente,a ação política da Presidência foimais ágil, convocando os generais parairemaoPaláciodoPlanalto, enãoaoMinistériodoExército.Chegandoaoaeroporto, os generais foram virtualmente “sequestrados” pelos agentesdoPlanalto,antesdechegaremaosemissáriosdeFrotaqueosesperavam.Com o decreto publicado na edição “extra” do Diário O icial, Frota já nãotinhamaiscargo.Paraoseulugar,GeiselespertamentenomeouFernandoBelfort Bethlem, um “ex-duro”. A sua nomeação foi acompanhada pelatrocadecomandodedezenasdebatalhõesparatirardafrentedasarmasqualquersimpatizantedo“frotismo”.Acanetadopoderhavia faladomaisfortedoqueasarmasdaforça.

Resolvida a ameaça de Frota ao processo de institucionalização,con irmou-se a nomeaçãodo general JoãoBaptista Figueiredo, cujo nomejá circulavadesdeo iníciode1977.Entretanto, a crisemilitarnão cessouporcompleto,poisaindicaçãodeFigueiredofoicriticadaporHugoAbreu,igura-chavenocontragolpequehaviasalvadoogoverno,equesesentiu

preterido,demitindo-sedoemmarçode1978.416

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O lançamentodacandidaturaFigueiredo foiacompanhadode todoumesforço publicitário paramudar a imagem sisuda do ex-chefe do SNI, quecomeçouaapareceremfotossorridenteseinformais,fazendoginásticadesungaeexibindosimpatiaevigor ísico.UmpoucoparademonstrarqueoBrasil teria um presidente à altura dos tempos agitados que seavizinhavam.Umpoucopara criar uma facemais humanado regimedosgenerais. A campanha eleitoral ganhou ares dos “velhos tempos” dopopulismo,comviagensecomíciosdocandidatoo icialpeloBrasilafora.Aoposição escolheu também um general para concorrer às eleições. Emagostode1978,EulerBentes,militarnacionalista, éo icializadocandidatodoMDB.

Em 15 de outubro de 1978, o Colégio Eleitoral elege Figueiredo comumamargem não tão folgada (355 a 266 e 4 abstenções). A derrota noColégioEleitoraldoMDB foicompensadapelaexcelentevotaçãodoPartidonas eleições gerais de 1978, apesar da Lei Falcão. Novos candidatosassumiam ainda mais o discurso oposicionista, agora alimentado pelaagitaçãodasruas,fábricaseuniversidades.

SobogovernoFigueiredo,adistensãoteriaoutronome:“abertura”.Eabatalhadasruasseriaaindamaisdramática.

Em 1971, no auge dos anos de chumbo, duas freiras foramministrarumcursosobre“ovalordapessoahumana”emumadistanteparóquiadaperiferiasuldacidadedeSãoPaulo.Aproveitaramaocasiãoparaproporacriaçãodeum “clubedemães”que começoua se tornar realidade coma

adesão de cinco moradoras do bairro. 417 Estes e outro microeventos,invisíveis ao governo e mesmo ao olhar sociológico, izeram nascer os“novosmovimentossociais”.

AperiferiadacidadedeSãoPaulonosanos1970eraasíntesedoladoB do milagre brasileiro. Nos bairros distantes, carentes de transporte,

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equipamentos de saúde, escolas e urbanização, amontoavam-se ostrabalhadores,viaderegramigrantesquechegavamdeváriasregiõesdoBrasil rural em busca de trabalho e vida melhor. Ali moravam asempregadasdomésticas, trabalhadoresdaconstruçãocivil eooperariadodasgrandesemédiasindústriasdamaiormetrópoledoBrasil.Seavidanacidade era melhor do que aquela vivida em meio à tradicional misériarural brasileira, as di iculdades ainda eram imensas. A precariedade dascondiçõesmateriais e serviços públicos ensejava tanto a violência,muitasvezes banal entre vizinhos, quanto a solidariedade.A tradição associativadosbairrospopularesvinhadesdeosanos1940,masatéo inaldosanos1950eracanalizadapelospolíticosdematizpopulistaconservadora,comoJânio Quadros, que utilizara sua ligação paroquial de vereador com umbairroespecífico,aVilaMaria,paraseprojetarnapolítica.

Alógicapredatóriadocapitalismobrasileiro,aliadaaumpoderpúblicoine iciente quando não corrupto, se reproduzia na (des)organização doespaçourbano.Nocentro,grandesterrenosvaziosesperandovalorização.No primeiro anel em volta do centro tradicional, bairros de classemédiaremediada, com enclaves ricos de ruas arborizadas e calmas. Nos anéisexternos da cidade, a pobreza grassava emarcava a paisagem, indo dosbairros operários mais ou menos estruturados a regiões de ocupaçãodesordenada e caótica. Nesses espaços surgiram movimentos sociais detiponovo,quasesempreapoiadospela IgrejaCatólica,mascomtendênciaàauto-organizaçãoeàvalorizaçãodaconstruçãodaconsciênciaindividual

na linha do “ver-julgar-agir”.418 O trabalho organizativo da Igreja,

materializado nas comunidades eclesiais de base,419 deu nova forma eideologiaà tradiçãoassociativapopular.Aprecariedadedavida cotidianadeumotivo às organizaçõesque surgiam.O cotidiano, o bairro, a praça, obotequim, o salão da igreja, foram politizados não a partir dos grandesprojetos revolucionários, mas pela realização da pequena utopiademocrática.Como fracassodasorganizaçõesarmadas,muitosmilitantes

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deesquerdamarxistatambémforamparaosbairros,morarentreaclasseoperária. Mesmo para estes, o momento não era de realização daestratégia revolucionária da tomada do poder, mas de pequenas açõescotidianas que adensassem a consciência de classe. Assim, ao longo dosanos1970, foi se construindoo cinturãovermelho, que se fechava comaconcentração das grandes indústrias multinacionais na região do ABCreunindo o setor mais avançado da classe operária brasileira. Muitosoperários que trabalhavam no ABCmoravam nas periferias de São Paulo,ligando a experiência sindical com a luta cotidiana pela melhoria dosbairros.Nesseuniversofervilhantedosbairrospopulares,ondeliderançascomunitárias, religiosas, políticas e revolucionárias se encontravam,

nasceramosnovosmovimentossociais.420Oregime,maispreocupadoemmatar guerrilheiros, não deu muita importância a estas associaçõespopulares, pois con iava que a Igreja saberia conter seus eventuaisradicalismos.Lembremosque,nocomeçodosanos1970,arupturaentreaIgreja e o regime ainda não era um dado tão evidente. Nessas brechassociais e políticas, inicialmente de maneira discreta, as associações devizinhosemovimentossociaisurbanosforamcrescendoantesdeganharavisibilidade das ruas. E esse processo não foi exclusivo da Grande SãoPaulo, disseminando-se em várias cidades brasileiras, adaptando-se àstradições culturais e condições sociais locais. Em quase todos os casos,ganhouapoiodepadreseoutrossetoresdaIgrejaCatólica.

Por exemplo, o pequeno clube de mães que começou com cincoparticipantes,nasuaprimeirareunião,emjaneirode1972,jácontavacommaisdequarenta.Osclubesdemãesseespalharampelaperiferia suldacidade. Além de fazer trabalhos comunitários, os participantes discutiamquestõesdocotidianoapartirdaleituradetextosreligiosos.Dentretantosproblemas, um deles começou a ser percebido com um elemento comumdaspreocupações:ocustodevida,tambémchamadodecarestia.Agravadopela política de arrocho salarial, o aumento dos preços de itens de

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consumoealuguéisseagravouapartirde1975,quandoain laçãovoltou

asernotada.NasciaoMovimentodoCustodeVida(MCV).421 OMCVdeSãoPaulo, antesmesmo domovimento sindical, foi a associação popular queconseguiuamaiorvisibilidadeduranteoregimemilitar,transformando-senumaespéciedecentraldosmovimentospopularesdebairro.Aestratégiapassava pela organização de assembleias massivas para apresentarpetições contra o aumento do custo de vida, cujo endereço eram osmandatários federais. Em 1976, a primeira assembleia do Movimentocontoucom4milpessoas,ocasiãoemque foi lançadaapetiçãocommaisde18mil assinaturas.Dois anosdepois, ganhouumagrande visibilidade,com o lançamento de ummanifesto emmarço exigindo congelamento depreços dos itens básicos de subsistência e aumento de salários. OMovimentolançouumdesa ioparasimesmo:coletarmaisde1milhãodeassinaturas e entregar o documento aoPaláciodoPlanalto. Emagostode1978, um ato público na Praça da Sé anunciava que a meta tinha sidoatingida: 1,24 milhão de assinaturas. Nada mal para um movimento emcujobigbangcontavacomcincomãeseduasfreiras.

O ato foimarcadopara umdomingo, 27de agosto, e o governador deSão Paulo e o presidente da República foram convidados. O governoproibiu o ato em praça pública e mandou como seus representantes atropa de choque daPM. O resultado foi o esperado. Mesmo que osorganizadoresdoatorespeitassemoslimitesimpostospelaautoridade,ouseja,realizaroatodentrodaigrejaenãopromoverpasseataspelacidade,apolíciadispersouosmanifestantescomaviolênciadesempre.Nasexta-feiraanterior,osestudantestinhamvoltadoàsruasparaprotestarcontrao regimedepois dequaseumanode ausência, e suapresençano atodoMCVfoiadesculpaparainiciarapancadaria.

Em outubro, oMCV voltou a realizarmanifestações simultâneas dentrodeigrejasdasperiferiasdacidadedeSãoPaulo,nosbairrosdeSãoMiguel

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Paulista, Cidade Dutra e Brasilândia. O tom destes atos era francamentepolitizado, com palavras de ordem que iam contra o alto custo de vida econtra a repressão. A greve metalúrgica em várias indústrias da cidadeaumentava ainda mais o sentido de protesto doMCV contra a políticaeconômica do governo, pois em grande parte omovimento era compostopelas famílias dos operários em greve. A politização crescente de 1978aprofundou-se ainda mais em 1979, quando militantes do PartidoComunista do Brasil (PCdoB) assumiram a liderança do movimento, queganhououtronome,MovimentodeLutacontraaCarestia.

Se a luta contra ospreços eraumadaspontasdomovimento social, aoutrapontaeraalutapormelhoressaláriosecondiçõesdetrabalho.Comessapautatradicional,masdemaneirainusitadaeinesperada,ressurgiuomovimentooperário.

Em 12 de maio de 1978, quase todas as correntes de opinião dasociedade brasileira, da direita à esquerda, se surpreenderam com aeclosãodeumagreveoperáriaemSãoBernardodoCampo,quando2miloperáriosdaSaab-Scaniacruzaramosbraços.Oqueseriamaisumagrevelocalizadaemumaempresa,tipodemovimentoatétoleradopelosmilitaresdesde que restrito a questões puramente salariais, transformou-se emuma greve massiva, quando muitos milhares de operários de outrasmontadoras multinacionais também pararam. A estratégia inovadoradaquelagrevenãopassoudespercebidanaimprensamaisprogressistadaépoca:

Faziadezanos,mas inalmenteaconteceu.Deformaespontânea,suave,tranquilacomoumsuspiro,masaconteceu.Nãohouvepiquetes,comícios,pan letos,violência.Nãohouvepelegos.Masapenassimplesoperáriosqueiniciaramseusdiasdetrabalhocomotodososoutros[...]bateramseuscartõesdeponto,cumprimentaramsuasmáquinas,companheirasdetantotempo,masnãocomeçaramatrabalhar.422

Asaçõespolíticasdaclasseoperária,aolongodahistóriadoBrasiledomundo, eram signo de terror para os conservadores e luz de esperança

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para os revolucionários. De maneira sutil e inovadora, em uma grevenascidadasarticulaçõesquaseinvisíveisdocotidianodafábrica,emmeioà

pausaparaocaféeàs idasaobanheiro.423AgrevedoABCde1978,diga-se,assumiaaresdeconfrontocomoregime,driblandoaLeideSegurançaNacional,que,por sinal, seria reformadaaindanaqueleanoparaabarcarmelhor os grevistas. Sem piquetes, a repressão policial icavamomentaneamente desnorteada. Dentro das fábricas, qualquerintervenção policial colocaria em risco o patrimônio dos patrões.Autoridades civis emilitares não conseguiam fazer uma leitura clara dosacontecimentos.OministrodoTrabalho,ArnaldoPrieto,nãopodiaintervirnosindicato,poisestenãoassumira,depronto,aarticulaçãodagreve.Umcoronel do II Exército foi aindamais direto: “Repressão, como?Este é umfato absolutamente novo, greve sem violência, sem agitação. É necessárioreconhecerquenestagrevenãoháingerênciasexternas.Dessaformanãose pode fazer nada”. Reféns dos manuais da Doutrina de SegurançaNacional, os militares não podiam conceber uma greve sem agitadores

“comunistas” e sem aparelhos sindicais “subversivos”. 424 Apesar dasurpresa e di iculdade de enquadrar o movimento como “subversivo”, oTRTdeclarouagreve ilegal,oquesó fezaumentaronúmerodegrevistas,quenodiaseguinteàilegalidadebeiravaos40miloperários.

Haviamais dedez anos que os operários tinham sido alijadosda vidapolítica a fórceps pelo controle governamental dos sindicatos e pelarepressãopolicial.AmemóriadasgrevesdeOsascoeContagemem1968ainda povoava a mente do governo e da oposição. Naquele contexto, arepressãotinhaconseguidoevitarqueafagulhadaguerrilhachegasseaomundo do trabalho. Em 1978, não havia mais guerrilha, mas a luta civilpela redemocratização se ampliava, isolando o governo. Estudantes,intelectuais, pro issionais liberais, en im, a nata da classe média que,supunha-se, deveria apoiaro regime já tinha rompido comogoverno.Nocomeço de 1978, os movimentos sociais de bairro, ainda discretos, já

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davam sinais de politização crescente, mas ainda não tinham ocupado apraça pública, o que fariam em breve. Quando o operariado entrou emcena, ainda que o palco também não fosse a rua, posto que a greve seconfundia com a ocupação das fábricas, todos os holofotes do teatro dapolítica se voltaram para os trabalhadores. A inal, qualquer pessoa comalgumsensocríticosabiaquea“distensão”doregimenãoeraendereçadaaos operários, vistos tradicionalmente pelas elites como um grupo semdireito à participação política, a não ser como indivíduos eleitoresatomizados.

Masagreveoperáriado ABC,quepareciaserumraioemcéuazul,eraoresultado de umamassa crítica que vinha semovimentando havia algumtempo, sobretudo nos sindicatos ligados às grandes indústriasmultinacionais.Commaiorpoderdenegociação,poisreuniatrabalhadoresespecializadosquenãopoderiamsersubstituídosdeumahoraparaoutra,os metalúrgicos doABC perceberam este trunfo. A base territorial dosindicato de São Bernardo compreendia 670 fábricas. Cerca de 50% dacategoria trabalhava em cinco empresas automobilísticas e 75%, em

fábricascommaisdequinhentosempregados.425

Emsetembrode1977,quandoacenasocialepolíticaseagitavacomoprotesto estudantil, os metalúrgicos de São Bernardo lançaram a“campanha de reposição dos 34%”, índice de perdas calculado devido àmanipulaçãodastaxasdein laçãoem1973.Acampanha,alémdeexporamanipulaçãoeocaráterantipopulardomilagreeconômico,marcouavoltadas assembleias operárias massivas. Nos discursos sindicais construídosem torno desta campanha, surgia o tema da democracia: “Para nós,interessa muito aquela democracia que também dê liberdade aossindicatos.Essenegóciodedemocraciasóparapolíticosnãodápé,poisa

gente vai continuar espremido [sic] aqui no pedaço”. 426 A questãodemocráticaencontravaaquestãooperária.

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O “novo sindicalismo”, como se autodenominou à época o movimentooperário nascido noABC paulista, entrou em choque com a estruturavertical e o icialesca do sindicalismo brasileiro, herança dos tempos deGetúlioVargasedoEstadoNovo.Emjulhode1978,animadoscomagrevemetalúrgica de maio, durante a Conferência Nacional da ConfederaçãoNacional dos Trabalhadores da Indústria, à qual os metalúrgicos do ABCeram iliados, um grupo de sindicatos questionou a estrutura sindicalo icial,lançandoasbasesdeumsindicalismoqueseviacomo“combativoeindependente”. A plataforma de reivindicações incluía a liberdade deorganização, sem a rigidez imposta pelaCLT, a autonomia diante dospatrões e do Ministério do Trabalho, a criação de comissões de fábrica,além das tradicionais lutas pelamelhoria salarial,melhores condições detrabalhoesegurançalaboralepelaestabilidadenoemprego.

Essa era a senha para que militantes que ainda não ocupavam adireção dos sindicatos, nas várias cidades doBrasil, se organizassemnas“oposiçõessindicais”particularmentefortesnaregiãosuldacidadedeSãoPaulo, que concentravamuitas unidades fabris demédio porte, e eram abase de apoio do sindicalismo conservador e moderado, cujo maiorexemploeraJoaquimdosSantosAndrade,oJoaquinzão.

Depois de ser nomeado interventor no sindicato dos metalúrgicos deGuarulhos em 1964, se tornou diretor do Sindicato dos Metalúrgicos de

São Paulo, o maior da América Latina, do qual só saiu em 1987.427 Em1978,umaforteoposiçãosindicalperdeuumaeleiçãotidacomofraudada,e,percebendoosnovos tempos, Joaquinzãoaliou-seaoPartidoComunistaBrasileiro, do qual era inimigo nos tempos do golpe, contribuindo para apecha de “pelegos” que os sindicalistas comunistas passaram a carregar.Estes, assustados com o crescimento do sindicalismo mais à esquerda,radical e aguerrido, preferiram ceder às orientações do partido, queenfatizavaanecessidadedesubordinaras lutaspopularesàsarticulações

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parlamentares e institucionais, visando consolidar uma grande frente de

oposiçãocivilaoregime.428

Como símbolo do novo sindicalismo, irmava-se a liderança de LuizInácio da Silva, o Lula. Presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de SãoBernardo desde 1975, Lula inicialmente não era um líder que podia serconsiderado radical. Migrante nordestino, conseguiu se tornar torneiromecânico nas indústrias Villares, onde iniciou sua militância sindicalin luenciado pelo irmão, Frei Chico. Ironicamente, este era iliado ao PCB,partidonoqualLulanãosónuncamilitoucomo,aocriaroPT,suscitouumverdadeiroanátemaprotagonizandoumadasmaisruidosasdissidênciasàesquerda no contexto da transição. Lula era um pragmático, in luenciadopelo catolicismo progressista e dotado de carisma e perspicácia política,que foi atropelado, no bom sentido, pelo bonde da história. Tornou-senosso “herói da classe trabalhadora” ao perceber que o operariadodeveria se auto-organizar em um partido novo e conduzir seu própriodestino.

Nosdoisanosseguintesàmíticagrevede1978,nasceriaa “Repúblicade São Bernardo”, capital do cinturão vermelho de São Paulo, para ondeconvergiramasesperançasdeconstruçãodeumademocraciaefetiva,quenão apenas icasse limitada aos direitos formais dos indivíduos, sempreimportantesmas incompletos se não se traduzissememdireitos sociais eem efetiva distribuição de riqueza. Em 1978, essas palavras ainda eramdifusas,compartilhadasportodaaoposição.Aideiadeumagrandefrentepolítica e social da qual os operários eram coadjuvantes,mas não atoresprincipais,animavaasoposiçõesaoregime,comexceçãodosempresáriosque, pormotivos óbvios, não viam com bons olhos os grevistas alçados aposiçõesdedestaque.

Osonhodagrandefrentedeoposiçãonãosobreviveriaaoanode1979,esseoutroanodahistóriadoBrasilqueaindanãoacabou.

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Temposdecaoseesperança

No seu discurso de posse, o presidente João Baptista Figueiredorea irmouogestoquedeveriasimbolizaroseugoverno:“amãoestendida

em conciliação”.429 Obviamente, o governo militar tinha uma mãoestendidaemconciliação,masaoutraestavapertodaarma,paraqualquereventualidade.Entretanto,nãosepodenegarqueo regimeea sociedadeentravamemumanova fasepolítica,naqualdemocracia “aindanãoera”,mas a ditadura “já não era mais tão ameaçadora...”. Nas palavras de

FernandoHenriqueCardoso,eraumaditaduradegravata-borboleta. 430Adistensão transformara-se em abertura, apontando o caminho para atransiçãodemocrática,comavoltadosexilados.Jáemdezembrode1978,ainda sob Geisel, o governo revogava o banimento de 120 exilados, masmanteveLuísCarlosPrestes e LeonelBrizola forada lista. Entretanto, nocomeçodogovernoFigueiredo,oregimemilitaraindanãotinhadataparaacabar.

Todas as transições de regimes autoritários da história recente daAméricaedaEuropamediterrânea forammarcadasporumacombinaçãode incertezaseesperanças.Nastransições,mesmoaquelastuteladaspeloregimevigente,comonoBrasil,asregrasseafrouxameojogopolítico ica

aberto.431Sãomomentosemquesebuscamnovoslimitesparaosvaloresdemocráticos,procurandocaminhosparao“ dayafter”dasditaduras.Masé justamente essa busca por uma democracia renovada por parte dos

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movimentos sociais e políticosmais à esquerda, para alémdos princípiosformais e jurídicos de igualdade, aliada à imprevisibilidade do processopolítico, que faz com que liberais conservadores e moderados negociem

com os autoritários no poder.432 Mas naquele início de 1979, essaaproximaçãoaindanãoestavadada.Aocontrário,nosdoisanosseguintes,tudo pressagiava que o regime autoritário não aguentaria a pressão deumasociedadeque,contrasuaprópriahistória,pareciaaderiremblocoaumademocraciaquecombinasseamplodireitoaovotocomjustiçasocial.Aoposição crescia, ocupando ruas, circuitos artístico-culturais, variadasformasassociativaseespaçosinstitucionais.Masoregimeestavalongedeser “derrubado”, como sonhavam os setores oposicionistas maiscontundentes.

No caso do Brasil, dois aspectos são importantes para entendermos osignificadohistóricodatransiçãomoderadaegradualista.

Primeiro, a fragilidade do regime na tutela do sistema político e dasociedade civil foi acompanhada por uma nova hegemonia liberal-moderada (para não dizer conservadora) que se estabeleceu após1981/1982 e apontou um horizonte curto para negociar a transiçãopolítica. Isso permitiu vislumbrar que os grandes interesses capitalistasnãoseriamcontrariados, fazendocomqueopodereconômicoaceitasseeaté ajudasse a construir a transição (leia-se capital inanceiro nacional emultinacional, assim como as grandes corporações). Em uma situação decriseeincerteza,odesa ionessaáreaeracontrolarain laçãosemgrandesmudanças no modelo socioeconômico. Os empresários estavam cada vezmais críticos à intervenção do Estado na economia, apostando em umaagenda neoliberal que, entretanto, ainda não estava completamente

delineada.433

Doladodoregime,osmilitarestinhamduasgrandespreocupações.Em

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primeiro lugar,evitaraemergênciadegrupospolíticosmuitoàesquerda,de corte comunista ou socialista, capazes de in luenciar no processopolítico,aindaquetivessempresençanosmovimentossociais.Emsegundo,mas não menos importante, o regime queria evitar que no processo dapassagem do poder aos civis se a irmassem políticas de apuração dasviolaçõesdedireitoshumanosnoBrasilporagentesdarepressãopolítica.Eraoqueconsideravamrevanchismo,palavraquesetornouanátemanosmeios militares e uni icava todas as correntes. Apesar da sua notória ecrescentefragilidadepolítica,emcontrastecomoestiloimperialdeGeisel,o presidente Figueiredo conseguiu manter a transição nestes marcos.Menos, talvez,pela suahabilidadepolíticaemaispela tibiezadaoposiçãomoderadaqueganhavaforçaaolongodoprocesso.

Nocomeçode1979,ogovernoFigueiredoprometiaumanovaformadegovernar, mais próxima das demandas da sociedade, embora sem abrirmão dos valores e princípios do regime, a começar pela Doutrina deSegurançaNacional.Antesmesmodasuaposse,animadocomosucessodaconduçãodoprocessopolíticoeeleitoral,ogovernoGeiselrevogouapenade banimento aplicada a alguns exilados e abrandou a Lei de SegurançaNacional, permitindo a soltura de alguns presos políticos. QuandoFigueiredotomouposse,oBrasilaindanãotinhaumaleiformaldeanistia,mas essa era uma das prioridades da agenda da abertura, até paraesvaziar o crescente movimento social pela anistia “ampla, geral eirrestrita”. O habilidoso Petrônio Portela foi colocado no Ministério daJustiçaparaevitarqueEstadoesociedadefossemseparadosporumfossoinstransponíveldeprojetoseexpectativas.

Se a política animava, a economia preocupava. Para compor seuMinistério, Figueiredo tentou incorporar correntes diversas do regime.Para a economia, isso signi icouuma situação curiosa, fazendo conviver oortodoxo monetarista Mário Henrique Simonsen na Secretaria do

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Planejamento da Presidência da República e o não tão ortodoxo Del imNetto,gerentedomilagreeconômico.Diga-se,aposiçãodeDel imnãoeradigna de um czar, pois ele havia sido escalado para o não tão poderosoMinistério da Agricultura, na esperança de produzir superávits naexportação dos produtos da terra. O objetivo de Simonsen era conter ain lação,quenocomeçodogovernoFigueiredojábeiravaos50%aoano,àbasedeumapolíticarecessivadecontroledecréditoesalários.Nissoeracriticado por Del im, que apostava no crescimento para superar osproblemas, mesmo tendo que conviver com a in lação alta. A grita deempresáriose trabalhadoresnaqueleagitado1979ajudouesteúltimonobraçodeferrocomSimonsen.Emagosto,Del imocupouaSeplan,deondepassou a ter carta branca para conduzir a economia. Mas desta vez nãohavia nem magia, nem milagre possíveis para animar a economia. ARevolução Islâmicano Irãexplodiunocomeçodoanodesorganizandoumdos maiores parques produtores de petróleo do planeta, e os preços do

barrilaumentaramdemaneiraexponencial.434

Comoseumadesgraçanãofossepouca,oquadroexternopiorouaindamais.Paracontrolarosefeitosdacriseedain laçãoeatraircapitaisparaoseu país, o governo americano aumentou os juros básicos da economia,impulsionando a taxa cobrada dos empréstimos bancários como um

todo.435Comoosempréstimosbrasileirosparabancaro IIPND tinhamsidofeitosapartirdejuros lutuantes,ocustodadívidabrasileiraexplodiu.Asexportações não cobriam os custos da dívida, e com o país altamentedependente de petróleo importado o dé icit da balança comercial saiu docontrole.Em1982,ocustodadívida(juros+amortizações)consumiamaisde90%dasexportaçõesbrasileiras.

Para Simonsen, o governo Figueiredo foi atropelado pela história,

levando consigo as promessas desenvolvimentistas deDel imNetto.436 Jáno segundo semestre de 1980, o otimista Del im capitulou à ortodoxia

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econômica recessiva, voltando a conter o crédito, pois o Brasil estava àbeiradainsolvência,epreocupandoosbanqueiroscredores,outrora greatfriends do regime.Agora, eles sóqueriamemprestardinheiroparapagaros jurosdadívida, fazendocomque,ao imeaocabo,odinheirovoltassepara elesmesmos. A in lação de 1980 chegou aos 110%,marca históricade1964,índiceamplamentealardeadocomoumdosmotivosdaquedadeJoão Goulart. Mesmo recuando um pouco nos anos seguintes, a in laçãoicouna faixados90%aoano.Os reajustes semestraisde salário apenasevitavam que a questão social saísse do controle, mas não impediam asperdas paulatinas no poder de compra de operários e da classe média.Esta,de initivamente,encerravaseucasamento,jáemcriseterminaldesde1974,comoregimemilitar.

Mas não foi só na área econômica que a história atropelou o governoFigueiredo. Em janeiro de 1980, morria Petrônio Portela, deixando oregime sem o seu principal articulador político com a sociedade civil. Emagosto de 1981, outra baixa de peso: Golbery do Couto e Silva saiu dogoverno,percebendoqueobarcoestavaafundandomaisrapidamentedoqueoprevisto.Agotad’águafoiofatodeograndeideólogodoregimeterse incomodado com a condução das investigações sobre o atentado noRiocentro, comoveremosadiante.Apartirdaí, LeitãodeAbreu se tornouumaespéciedesuperministropolítico,semacapacidadedeplanejamentoou diálogo de Golbery ou Portela. O resultado foi uma longa agonia nãoapenasdogoverno,masdopróprio regime, oquenãoquerdizerquenojogodeforçascomaoposiçãoestativessegrandesvantagens.Umgovernocadavezmaisfraco,masqueaindamostravaosdentesquandonecessário,encontrava inesperado respaldoemumaoposição cadavezmaisdivididaentre radicais e moderados, com estes últimos tentando negociar umatransiçãopolíticacomosmilitares.

O candidato simpático e sorridente, que havia se transformado no

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presidente que prometia irmeza na condução da abertura, perdeu ocontrolequandovaiadoporestudantesemFlorianópolis,emnovembrode1979.Quasechegouàsviasdefatocomamolecada,deixandoqueoantigomilitardeóculosescuros,chefedoSNI,tomassemomentaneamenteolugardo sorridentehomempolítico. Emquepese esse atodedescontrole, umadas melhores de inições sobre seu governo veio do próprio presidente,

anosdepois:“Natransiçãoeunãofiznada,sóeviteiquesaíssebofetão”.437

Em 13 de março de 1979, dois dias antes da posse do generalFigueiredo,osoperáriosmetalúrgicosdo ABCpaulista iniciaramumagrevequeiriademonstraroslimitesdaabertura.Esta,peloseuprópriocaráter,não previa participação política do movimento operário, liberdade paraprotestos de rua ou redistribuição de renda, mantendo-se apenas noslimites institucionais e, quandomuito, chegando a uma anistiamoderada

aospresoseexiladospolíticos.438Cercade180milmetalúrgicospararamde trabalhar,mas dessa vez, ao contrário de 1978, omovimento foimaisbarulhento,comassembleiasepiquetescomgrandeparticipaçãodamassaoperária. Também ao contrário de 1978, a direção do sindicato assumiuumprotagonismoassertivo.Ospatrõesnãoestavamdispostosapermitiraocupação das fábricas pelos grevistas, tática que di icultava a repressãopolicial.Umpanfletoapócrifo,provavelmentedeorigempatronal,intitulado“Plano antigreve: como prevenir e desmobilizar” era claro nesse sentido,a irmandoqueospatrõesnãodeveriampermitiroacessodosgrevistasàs

fábricas.439Narua,oassuntoeracomapolícia,calculavam.

O governo recém-empossado sugeriu que o melhor caminho era anegociaçãoentrepatrõeseempregados. Issonão impediuoMinistériodoTrabalho de intervir no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo,destituindosuadiretoriadezdiasdepoisdoiníciodomovimento,tentandoesvaziar o epicentro da organização sindical que apoiava os grevistas. Aslideranças sindicais, a começar pelo próprio Lula, de início trataram de

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dissociar a greve de qualquer motivação ideológica ou política, masreconheciam que “se brigar pormelhores salários é fazer política, então

nossagreveépolítica”.440OgovernadordeSãoPauloàépoca,PauloMaluf,

deixou claro que o assunto era policial, e não econômico. 441 Portanto,querendo ou não, a greve metalúrgica assumia um caráter político, deconfrontocomoregime,ganhandoapoiodeestudantes, intelectuaisedostrabalhadores do setor burocrático, público e privado, que formavam abasedaclassemédia.Apesarde reconhecereagradecera solidariedade,as lideranças sindicais enfatizavam que a classe operária deveria terautonomiaemsuasdecisões,evitandoalianças feitasareboquedeoutros

movimentos.442

AdireçãodaFederaçãodas IndústriasdoEstadodeSãoPaulo (Fiesp)apostou que a greve duraria “dois dias”, pois não haveria pagamento dedias parados.Durou14.Os operários semostrarammais organizados doque o previsto, com um forte movimento de solidariedade nos bairros,apoiadopela Igreja Católica, fundamental paramanter a subsistência dasfamílias. Os con litos com a PolíciaMilitar foram constantes e violentos, eemalgunscasosterminoucomaretiradada PM,comoemSãoBernardonodia 23 de março. Os impasses na negociação e a repressão policialdesgastaram o movimento, que encerrou a greve no dia 27 de março.Apesar das poucas conquistas efetivas, o movimento operário e asliderançassindicaissaíramprestigiadas,sensaçãocon irmadapelagrandecomemoração do Dia do Trabalhador no estádio Vila Euclides, em SãoBernardo.Paraláconvergiramestudantes,movimentosdebairro(comooMovimentoContraaCarestia/doCustodeVida) emilitantesdeesquerdaque lutavam pela anistia, cuja campanha estava nas ruas. As liderançaspolíticas a inadas com o governo, como o senador Jarbas Passarinho,temiam uma “reação termidoriana”, e a imprensa liberal, apesar de não

condenar a greve, temia a volta do “clima 68”. 443 A República de São

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Bernardo, nascida na greve de 1978, proclamava sua independência daditadura.

SehaviaumaRepúblicadeSãoBernardo,tambémhaviaumpresidentede honra: Luiz Inácio Lula da Silva, ainda uma igura enigmática para amaiorpartedaoposiçãoeparaoprópriogoverno.Principalnomedeuma

diretoriametalúrgica de fortes lideranças,444 o Lula de 1979 já não erasaudado pelas lideranças patronais, que gostavam de enfatizar sualiderançapuramentesindicaleafastadadospartidos,sobretudodoPartido

Comunista.445 Mas também não havia ainda se convertido no líder maisradical doperíododa abertura. Seu carisma, consagradona conduçãodeassembleias com mais de cem mil pessoas, fascinava e preocupava aesquerda e a direita. Sua ênfase na autonomia da classe operária soavacomopoesiapara intelectuais socialistas foradaórbitadoPartidão.Essesintelectuais começavam a romper com as tradições do assim chamado“nacional-populismo”dos trabalhistase comunistasque, segundoa críticada nova esquerda, levara os trabalhadores do Brasil a sucumbir semresistência ao golpe de 1964, em nome de uma aliança com a burguesiaque nunca existira de fato. A República de São Bernardo, epicentro daclasseoperáriaqueousavaparticipardavidapolíticanacional,aindateriaseu grande teste na greve de 1980, quando o regime militar nãoeconomizariameiosparaesvaziaromovimentooperário,diantedaameaçadesteemtornar-seoatorprincipaldaabertura.

Masantesdagrandegrevemetalúrgicaexplodir,aclasseoperáriateriaumbatismodesangue.SantoDiasdaSilva,líderoperárioligadoàPastoralOperáriaeàOposiçãoSindicalMetalúrgicadeSãoPaulo,foimortopelaPMemumpiquetenodia30deoutubrode1979,nobairrodeSantoAmaro.Santo Dias era uma liderança conhecida entre os operários paulistanos,encabeçando a oposição ao “pelego” Joaquim dos Santos Andrade noSindicato dosMetalúrgicos de São Paulo. A inado com a Igreja Católica e

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com o novo sindicalismo basista e autônomo que emergira noABC, suamorte causou grande comoção em meio à greve que se desenrolava nacidade.SeucorpofoilevadoparaaIgrejadaConsolação,deondecercade15milpessoasacompanharamo cortejo fúnebrepelas ruasdo centrodeSãoPauloatéaCatedraldaSé,ondefoirezadaumamissaporDomPauloEvaristoArns.Duranteotrajeto,“aslojasbaixaramasportasemqueeram

a ixados avisos de luto. Dos prédios chovia papel picado”. 446 Como diziasabiamente uma das faixas estendidas pela multidão, para a classeoperária, simbolizada ali por Santo Dias, a “abertura era a porta do

cemitério”.447

AssimcomoamortedoestudanteEdsonLuis,em1968,proporcionaragrandes atos públicos contra o regime, a morte do operário em 1979tambémmobilizara milhares de pessoas, parando o centro da cidade deSão Paulo por algumas horas. Entre tantas, essas foram duas mortesexemplaresdaditadura, catalisandoemoçõese revoltas coletivasemdoisanos-chaves – 1968 e 1979 – para se compreender as tensões econtradições entre o regime e a sociedade que ele dizia proteger dasubversão.

O agravamentoda crise econômica aindanão tinhamostrado todososseusefeitosentreos trabalhadores.Em1980,a in laçãoassustava,masodesemprego em massa apenas rondava. Em 31 de março de 1980,aniversárioda“revolução”,maisumavezosoperáriosestragavama festado regime. Uma grande greve foi decretada depois que os patrões serecusaram a pagar 7% de produtividade e manter a estabilidade doemprego.Nos41dias seguintes, oBrasil olhariaparaaRepúblicadeSãoBernardo com um misto de apreensão e admiração. Nem as telenovelasmais dramáticas poderiam competir com o drama real que lá sedesenrolava.

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Ogovernoassumiuainterlocuçãocomosoperários,tirandoopatronatodecena,aomesmotempoquedeixavaaretóricada“negociação”deladoeassumiaumdos ladosdo con lito trabalhista.Nodia2de abril, quandoagreve quase sem piquetes já atingia 95% da categoria, o governoproporcionouumadascenasmaisdramáticasdaabertura.Diantede100milpessoasreunidasnoestádiodaVilaEuclides,helicópterosdoExércitoBrasileiro faziam voos rasantes, com metralhadoras de grosso calibreapontadas para amultidão. As sinistras peruas “Veraneio”/C-14 azuis doDOI-Codi voltaram à cena, rondando o sindicato e os agrupamentosoperários.

As armas legais da força também se ajuntaramà força das armas.Nodia 14 de abril, com as negociações mais uma vez caminhando para oimpasse, oTRT decretou a greve ilegal e três dias depois o Ministério doTrabalho decretou intervenção nos sindicatos que apoiavam a greve.Foram afastados 42 dirigentes. No dia 19, 15 dirigentes sindicais, entreelesLula,forampresoseencaminhadosaoDopsparaseremenquadradosnaLeideSegurançaNacional.AcidadedeSãoBernardofoi,virtualmente,ocupadapelasforçasdesegurança.

Em tempos normais, essas medidas esvaziariam qualquer greve. Masaquelagrevemetalúrgicaeraalgomaisdoqueumareivindicaçãosalarialou trabalhista. Era a a irmação de um grupo que tinha sido alijado doespaço público desde o golpe militar. As assembleias massivas, quasediárias, decidiam continuar em greve, apesar de a liderança estar nacadeia.Nomeio de tanta repressão policial, uma vitória simbólica. Em24deabril,maisde40milmetalúrgicosobrigaramatropadechoqueabateremretiradadaPraçadaMatrizemSãoBernardo.

Depoisdemaisdeummêsdegreve,osatoscomemorativosaoPrimeirodeMaiodaqueleanoconvergiramparaSãoBernardo.Aliestavaocoraçãoda lutademocráticabrasileira e, ao invésdos comícios comemorativosde

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praxe, foi marcada uma passeata pela cidade. O governo tomou umadecisão que parecia irreversível: a passeata estava proibida e qualquerincidenteseriaculpadosorganizadores.Acidade foicercadapelas forçasde segurança, para evitar quemilitantes e ativistas de outras localidadesconseguissem chegar à cidade. Pelamanhã, após amissa o iciada por D.ClaudioHummes na IgrejaMatriz, o plano era caminhar até o estádio daVila Euclides. Nem a repressão, nem os trabalhadores e suas famíliasestavamdispostosaceder.Oqueseanunciavacomoummassacredecivisfoi evitadonoúltimomomento,quandoumaordemdeBrasília,depoisdemuitanegociaçãocomparlamentaresdaoposição,autorizouapasseata.ArevistaIstoÉescreveu:

Nãosesabe,comcerteza,quaisforamasrazõesqueinduziramasautoridadesarecuarda decisão de reprimir a passeata. Não houve qualquer esclarecimento para explicar arápida retirada da polícia [...]. Mas não é improvável que a única razão tenha sido asimplespresençadetodosaquelesbrasileirosconscientesdosseusdireitos.448

A vitória moral dos grevistas e daqueles “brasileiros conscientes dosseusdireitos” foi cobrada com juros cincodias depois pela repressão.Nopiordiade confronto entreoperários epoliciais,maisde setentapessoasseferiram.Agrevechegavaaoseulimite.Ogoverno,dispostoabancaratéoprejuízodasgrandesfábricas,estabeleceraumaestratégiadeconfrontaro movimento, pois se sentia desa iado. As lideranças sindicais icariampresasatéodia20demaio.Àépoca,chegou-seatemerum“terceirogolpe

deEstado”449pararefrearacontestaçãooperária,sempreoelomaisfrágildastransiçõesderegimesautoritáriosparaademocracia,masnãoporisso

menosameaçador.450

Entretanto, no começo demaio, o movimento grevista esgotara quasetodasassuaspossibilidadesderesistênciaechegaraaolimitedoseulequede alianças. E elas não eram poucas: incluía a Igreja Católica, váriossindicatos, movimentos de bairro, movimento estudantil e oPMDB, que

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tambémassinaraopanfletoconvocatóriodoPrimeirodeMaio.

ARepúblicadeSãoBernardoeravistacomoasíntesedasociedadecivil

oprimida, em lutapelademocracia.451Apesardasderrotaspropriamentesindicais, na medida em que as principais reivindicações operárias nãoforamatendidas,o“saldodeconsciência”,comoasliderançasgostavamdedizer, tinha sido positivo. Imaginava-se que a década de 1980 seria operíododeumanovademocracia, impulsionadapelaclasseoperária,aptaa estender os estreitos limites da abertura e da transição. Mas a criseeconômica e o desemprego, realidade a partir de 1981, deixaram ossindicatos na defensiva, reiterando uma lei de ferro das lutas sindicais:quantomaiscrise,menospoderdebarganha.

Arepressãoaosoperáriospareciaaprofundaraindamaisofossoentre“Estado” e “sociedade”, imaginário alimentado tanto por liberais quantopor esquerdistas. Mas a imagem idealizada da sociedade civil, lugar dademocracia, parecia contrastar com a paulatina quebra das aliançaspolíticasnocampodaoposição.

A imagemda “sociedade civil contraoEstado”,muitodisseminadanosanos 1970 e 1980 para delimitar o lugar da democracia, é um tanto

imprecisa.452Oqueseentendiaporsociedadecivilabrigavaumconjuntodeatorespolíticosegrupossociaisqueconvergiamnascríticasaoregime,mas compartilhavam concepções díspares do que era e deveria ser ademocraciaeaprópriasociedade.OsdebatesnoPlenárioDemocráticodaSociedadeCivil,entidadequereuniamaisdecinquentaorganizaçõesentrepartidosdeoposição,associaçõesdeclasseemovimentossociais, revelamosimpassesqueseaprofundariamnamedidaemqueaprópriatransiçãosedesenhavanohorizontehistórico.Surgidaemsetembrode1980,atestaessasdiferentesconcepções.Nasreuniões,ouaspropostaseramgenéricasdemaisapontodeagradarliberaismoderadoseesquerdistasradicais,ou

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eramumespaçopara irmarposiçõeseespaçosàcustadoconsenso.Umadasprimeirasreuniõesdaentidade,em9deoutubrode1980,estabeleceu15 pontos programáticos gerais, considerados fundamentais para apassagemda“aberturaparaademocracia”, taiscomo: imda LSN,eleiçõesdiretas em todos os níveis, autonomia para os Poderes Legislativo eJudiciário, melhores condições de vida, direito de greve e reforma

agrária.453 Se o programa comum da sociedade civil pouco avançou nosanos subsequentes para uma agenda mais concreta, é inegável que aautonomeaçãodesseespaçodeconvergênciada lutademocráticase faziasob o impacto dos movimentos sociais e do conjunto da esquerda,visivelmente hegemônica na entidade. O problema era que sequer aesquerda constituía um bloco convergente nas formas de luta contra oregime,apesardeformalmenteaderiraocorodas“lutasdemocráticas”.

Antes da reforma partidária de 1979, a esquerda era constituída porváriosgrupose“tendências”,atuando,sobretudo,nomovimentoestudantile sindical. O velhoPCB, ainda que desgastado pelas dissidências, eraatuante junto aos políticos liberais, na imprensa, na cultura e nossindicados. Mas, visivelmente, sua tática de priorizar as articulaçõesamplas, de base institucional e parlamentar, não conseguiu lidar com os

protestosde ruano inaldadécada.454 No inal dos anos 1970, oPCB viu

crescer uma corrente interna próxima do “eurocomunismo”, 455 quepassou a defender a democracia “como valor universal”, o que equivaliareconhecer a legitimidade do jogo eleitoral e abrir mão da “ditadura doproletariado”nalutapelastransformaçõesrumoaosocialismo.

O PCdoB passou por um processo de discussão interna, no bojo daterrível derrota militar e política na guerrilha do Araguaia, e conseguiurenovar-se, optando por militar com movimentos sociais e estudantis,alocarseusmilitantesnasperiferiasurbanas,semabrirmãodeumaaçãojunto à oposição institucional, na senha de uma aliança nacional-popular

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contraoregime.456

Os grupos trotskistas eram particularmente fortes no movimentoestudantil, enfatizando a necessidade de organização da “luta de massa”nas entidades de base, mas muitas vezes se digladiavam entre si, cadacorrentesearvorandocomoaverdadeiratributáriadaherançateóricadeTrotski.Basicamente,sedividiamemdoisgrupos,aOrganizaçãoSocialistaInternacionalista (OSI) e a Convergência Socialista. Tinham como marcauma leitura intelectualmente re inada do capitalismo brasileiro, de cortemenos nacionalista que os dois partidos comunistas “stalinistas”, e umaabertura maior para temas ligados à “questão jovem”, como a questão

comportamental,asdrogas,aliberdadesexual.457

A esquerda católica, herdeira da Ação Popular e de suas dissidênciasque explicitamente se iliaram aomarxismo e das novas organizações debase nos bairros e sindicatos, também era forte, presente nomovimentoestudantil e nos novos movimentos sociais. A sua ênfase era em uma“democraciadapessoahumana”,consubstanciadanaauto-organizaçãodebase, eventualmente tutelada pela Igreja, que se a irmava mais comoanticapitalistadoquecomosocialistadelinhagemmarxista.

Militantes socialistas de tradição “basista”, ancorada na defesa dos“conselhos operários” em detrimento do partido centralizado de tipoleninista como condutores do processo revolucionário, completavam oquadro geral das esquerdas nos anos 1970. O principal grupo, nestatradição,eraoMovimentodeEmancipaçãodoProletariado(MEP).

Comovimos,aomenosatéaLeideAnistia,aimprensaalternativaeraopontode encontrode todas as esquerdas, apesarda cadagrupo tambéminvestir em seupróprio jornal, como aVozOperária doPCB,Em Tempo doMEPeOTrabalhodaOSI.Afragmentaçãodosprojetosdeesquerdafoiumadasmarcasda“abertura”,umavezqueasbandeirascomuns–denunciar

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aditadura,lutarpelaanistia,investirounãonaConstituinte–foramsendosubstituídaspelaagendadeorganizaçãodo “partidooperáriodemassas”oupelofortalecimentodasaliançasdeclasse,oqueincluíapensaropapelda “burguesia” na redemocratização. Estas duas opções se desenhavamcomoautoexcludentesdepoisdosurgimentodoPartidodosTrabalhadores,em1980.

Se a esquerda era desunida, a extrema-direita, ainda queminoritária,parecia agir em bloco. Concentrada sobretudo nos meios militares, mascontrolada nos quartéis, a extrema-direita partiu para a luta armadaclandestina contra a esquerda em processo de rearticulação e contra ossetoresdemocráticos,aindaque iliadosaoliberalismo,comodemonstramosatentadosaOABeaoutrasentidadescivis.

Em1978,umasequênciadeatentadosabombacontrapessoas,órgãosda imprensa, livrarias, universidades e instituições identi icadas com aoposição marcaram a escalada de violência de direita que duraria atémeados de 1981. Velhas siglas, muito atuantes em 1968, voltaram àsmanchetes:MAC (Movimento Anticomunista),CCC (Comando de Caça aosComunistas) eGAC (Grupo Anticomunista). Minas Gerais e Paranáconcentraram os atentados de 1978. Entre abril e outubro de 1978, 26atentados;entre julhode1979aabrilde1980,25atentados,conformeo

jornalEmTempo.458Oanode1980concentrouomaiornúmerodecasos,começando pela bomba colocada no quarto de Leonel Brizola, recém-chegadodoexílio,noHotelEverestnoRiodeJaneiro.

Normalmente, eram atentados para criar pânico e como forma deenviar recados aosmovimentos sociais e ao próprio governo,masmuitasvezes izeramvítimas,algumasfatais.Umrecursomuitocomumdadireitaarmada era o sequestro de militantes e de personalidades ligadas àoposição, muitos deles submetidos a espancamentos. Foi o caso dosequestro do jurista Dalmo Dallari, de grande repercussão na imprensa,

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acontecido às vésperas da retumbante visita do papa João Paulo II aoBrasil,emjulhode1980.

AsbombasenviadasàsedecariocadaOABeàCâmaraMunicipaldoRiodeJaneiroexplodirame izeramduasvítimas.Umadelas,fatal,asecretáriaLydaMonteiro. O servente José Ribamar, atingido no atentado à Câmara,icou cego e mutilado. O caso de ambos provocou uma grande comoçãopública. Na ocasião, até o presidente se indignou, vindo a público pararepudiarosatentadosedizerque“nemmilbombasmeimpedirãodefazer

desse país uma democracia”. 459 Bem ao seu estilo, chamou para si osatentados.

A indignação pessoal de Figueiredo pouco se traduziu em apuraçõesefetivasde investigaçãoepuniçãodosenvolvidos,oquesinalizavaparaaimpunidade dos extremistas de direita. Um dos alvos mais bizarros dadireita explosiva foram as bancas que vendiam jornais alternativos deesquerda. Entre abril e setembro de 1980, dezenas de bancas em váriascidades brasileiras foram incendiadas durante a noite, provocando umaondadepânicoentreosjornaleiroseumacrisededistribuiçãodosjornaisalternativos.

Os atentados a bomba continuaram em 1981, mas um acidente detrabalhoexpôs, involuntariamente,onúcleodosextremistasdedireita.Nanoite de 30 de abril de 1981 acontecia o show deMPB pelo Primeiro deMaio, patrocinado pelo Cebrade (Centro Brasil Democrático, entidade

ligada ao Partido Comunista).460 Enquantomilhares de jovens ouviam osartistas símbolos da oposição cultural ao regime dentro do enormepavilhão, no estacionamento dois homens preparavam um atentado.Conforme o plano, uma bomba deveria explodir na caixa de energia,cortando a luz do interior do pavilhão, e a outra no estacionamento. Oefeito seria devastador, pois nele se aglomeravam 20 mil pessoas que,

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provavelmente, entrariam em pânico e sairiam correndo. É possívelimaginaroqueteriaacontecido.

Efetivamente,umabombaexplodiunacaixa,massemconseguircortara luz interna. A segunda bomba explodiu dentro do carro, quando erapreparadapelosdoisextremistas.Visivelmente,umacidentedetrabalho.Apolíciafoichamadaeoconstrangimentofoigeral,poisanotíciajáchegaraà imprensa. Os dois homens atingidos no carro eram agentes do DOI-Codi

doRiodeJaneiro.461

Impossibilitados de limpar a área a tempo, o Exército reconheceu aidentidadedosdoisagentes.UmInquéritoPolicialMilitarfoiinstauradoeaconclusão, se não foi surpreendente, assim mesmo causou indignação: aesquerdahaviacolocadoasbombasnocarroparamatarosmilitaresqueestavamláapenasparacumprir“missõesrotineiras”devigilância.

Ogoverno icoudivididoentrelevarasérioainvestigaçãoeacobertarocasoesaiudesgastadodoepisódio.Poroutrolado,oesquemadaextrema-direitaarmada icouperigosamenteexposto,correndooriscodedesgastaropróprioExércitocomoinstituição.Ofatoéque,depoisdoRiocentro,suasaçõesminguaram.Ogoverno,desgastadoporpactuarcomossetoresquequeriamsabotar suaprópria estratégiade abertura, tambémperdeu seupouco capital político para conduzir o processo. A partir daí, sua agendaseria mais reativa do que propositiva. As oposições, sobretudo suascorrentesdeesquerda,teriamumagrandechancedeocuparmaisespaçopolítico, dada a comoção causada pelo episódio. Mas tampouco elasconseguiriamconstruirumcaminhocomumdeação.

Nenhumregimeautoritárioemfrancoprocessodedesagregaçãoesemlegitimidadejuntoaosatoreseàsinstituiçõessociopolíticasmaisin luentesquerenfrentarumaoposiçãounidaevigorosa, capazdeditara formadatransição. Em 1978 e 1979, a oposição brasileira parecia conseguir se

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manter unida, apesar dapluralidade ideológica interna, fazendo comque

setores liberais-democráticos 462 se encaminhassem sensivelmente para aesquerda, na trilha dos movimentos sociais em um ciclo de mobilização

crescente.463Maisdoqueisso,entre1978e1980,temaspolíticos,lutapordireitos sociais e mudanças na estrutura econômica pareciam convergiremumprojetodepaísqueemtudonegavaaqueleconstruídopeloregime.Arededesolidariedades, reaiseretóricas,emtornodaRepúblicadeSãoBernardo durante as greves de 1979 e 1980 con irmava o triunfo daestratégia frentista de oposição. Se aquele contexto histórico não eramarcado pelo “assalto ao céu” da revolução socialista, aomenos tambémparecia distanciado da opçãomoderada e conciliatória sempre preferidapelos liberaisde cortemais conservadornosmomentosde criseao longodahistóriabrasileira.Umaromadeprojetosocial-democratapairavanoar,equilibrando o cabo de guerra dos vários grupos e ideologiasoposicionistas. Esse equilíbrio, levemente pendente para o lado maisprogressista,logoserevelariafrágileprecário.Àesquerda,aconvergênciadosgruposerabaseadanalutacomumpelaanistia.Aoposiçãoliberal,emseus vários matizes, apoiava sua unidade, sobretudo na luta pelasliberdadesdemocráticasformais( imdacensura, liberdadedeexpressão,manifestação e organização) e pelo direito do voto direto para cargosexecutivos.Osdoisgrandesblocosdaoposição– liberaiseesquerdistas–até 1980 tentaram criar alianças e programas comuns para enfrentar oregime,masoconsensopareciacadavezmaisdistante.Arigor,aunidadeda oposição não sobreviveu à agenda de reformas do regime quesintomaticamentepassouportrêsmomentosdecisivosentre1979e1980:a Lei de Anistia, a reforma partidária e a volta das eleições diretas paragovernadores.

A campanha pela Anistia que já existia organizadamente desde 1975,

com a fundação doMFPA liderado por Therezinha Zerbine,464 tornou-setambém uma bandeira dos exilados brasileiros no exterior, onde se

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formarammais de trinta comitêspara lutar pelo tema.Mas ganhou forçacoma fundação do Comitê Brasileiro pela Anistia (CBA), em fevereiro de1978, que tinha a proposta de articular a luta pela anistia com ademocratização geral da sociedade, levando o tema para as ruas. Adivulgaçãodeumadasprimeiras listasde torturadores(com233nomes)em matéria doEm Tempo teve grande impacto. Inclusive na extrema-direita,quepassouaatacararedaçãoeosjornalistasligadosaoperiódico.Em novembro daquele ano, realiza-se o Congresso pela Anistia, dandoconsistência às reivindicações da campanha que não apenas pediam“anistia, ampla, geral e irrestrita”, mas exigiam punição para ostorturadores, informações sobre os desaparecidos e incorporavam a lutapelas“liberdadesdemocráticas”epela“justiçasocial”,cobrindotodooarcodas oposições. A campanha queria ter um caráter aglutinador dasoposições, ao mesmo tempo em que se inseria no ciclo maior de

mobilizaçõescontraoregime,iniciadasem1977.465

A campanha ganhou as ruas em 1979, realizando comícios econseguindoespaçonaimprensa.Emjunho,emumarespostaàspressõesdasruas,ogovernoenviouseuprojetoaoCongresso,iniciando-seodebateparlamentarpararegulamentarumaleideanistia.Atendênciadogovernoera outorgar uma anistia parcial, que excluísse os guerrilheiros. Mesmoassim, Figueiredo exultavano ato da assinaturadoprojeto: “É o diamais

felizdaminhavida”. 466Naverdade,váriosprojetosdeanistiahaviamsidoapresentadosnoCongressodesde1968,semconseguiraprovação,apesarde muitos terem caráter restrito. O projeto de 1979, portanto, era umprojeto o icial, parte de uma estratégia maior do governo visando atransiçãopolíticacontrolada.

Emmeioàcampanhaeaosdebatesparlamentares,ospresospolíticosiniciaramem julhode1979umagrevede fomede caráternacional paralutar pela anistia ampla, geral e irrestrita, denunciando o caráter

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excludente do projeto apresentado pelo governo. 467 O movimento daanistia, hegemonizadopeloCBA entrouemum impasse.Diga-se,nemoCBAeramonolítico, pois incorporava várias organizações de esquerda e tinhadiferenças de ênfase de um estado para outro. O movimento deveriaentrareseposicionarnosdebatesparlamentaresemtornodoprojetodelei do governo? Deveria apoiar o voto contrário à lei ou apoiar algumsubstitutivo em discussão? Deveria pautar suas ações pela agenda docongressooumanter-senasruas,comomovimentosocial?

Enviado o projeto o icial ao congresso, formou-se uma comissãomistadeparlamentares, cujo presidente era o senadorTeotônioVilela ( MDB-AL),

que se projetou como um parlamentar favorável aos presos. 468 Apesardisso,coubeaodeputadoErnaniSatyro(Arena-PB)arelatoriadacomissãomista, o que redundou na elaboração de um projeto substitutivo que naverdade con irmava a anistia restrita e parcial proposta pelo governo erejeitavatodasasalternativasmaisamplas.

Um pequeno grupo de parlamentares “autênticos” doMDB469 preferiasimplesmente votar contraoprojetodo governoou abster-se.No começode 1979, cerca de um terço dos parlamentares do MDB eram contra uma

anistia ampla, que incluísse os presos da luta armada.470 Para evitar aaprovação deste substitutivo que não contemplava as reivindicações domovimento pela anistia, boa parte doMDB decidiu apoiar a emendasubstitutiva de Djalma Marinho (Arena-RN), que ampliava o projeto dogoverno, tornando a anistia irrestrita, embora também anistiasse ostorturadores.Entretanto,amaioriadosarenistasarecusou,poisogovernoconsiderava-o uma ameaça à transição, por conta da sua amplitude. EmvotaçãonominalnoCongressoaemendadeMarinhoperdeuapenaspor4votos (206 a 202). Paralelamente, o voto de liderança con irmava osubstitutivo de Ernani Satyro, sancionado quase em sua totalidade pelopresidente.

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A Lei nº 6.683 era basicamente o projeto do governo. Já no seuprimeiro artigo anunciava a anistia aos crimes políticos e a polêmicaconectividadedestes “crimes”,estendendoaanistiaaoscrimescorrelatos.Em bom português, isso signi icava a possibilidade legal de anistiartorturadoreseassassinosaserviçodasforçasdesegurança.Comosenãobastasse,a leideixavade foraaquelesenvolvidosem“crimesdesangue”,ouseja,osmilitantesdeesquerdaquepegaramemarmascontraoregime,o que à época totalizava cerca de 195 pessoas. Estes, na prática, foramsendo libertados por outros recursos jurídicos, como revisões de pena eindultos.

Quanto ao movimento popular pela anistia, o debate era o que fazerdepoisdalei?Comomantereampliaramobilizaçãoparareverteraanistiaparcial e o perdão “implícito” aos torturadores? Em meio a este debate,uma nova agenda se impôs às esquerdas que hegemonizavam oCBAquando o governo propôs a reforma partidária para acabar com obipartidarismo. O que priorizar: reorganizar os partidos de esquerda oufocarpor justiçaeverdade?Continuarnacampanhaderuaoumobilizar-se pela Constituinte? Na cultura etapista da esquerda, as duas coisas seanulavam, e, com o tempo, a luta pela justiça acabou icando restrita aos

familiaresdosmortosedesaparecidos.471

ALeideReformaPartidária,aprovadapeloCongressoemnovembrode1979,correspondiaaoprojetoestratégicodogovernodepartiraoposiçãoemmuitasfacçõesemanteropartidoo icialunido.OPartidoDemocráticoSocial(PDS),novonomedaArena,eraalardeadocomoomaiorpartidodoOcidenteetinhaascanetas,cargoseverbasdogovernomilitarparafazereacontecer.

Nos cálculos do governo, as principais lideranças do exílio, Brizola eArraes, organizariam seus próprios partidos, dividindo a esquerda

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considerada “perigosa”. Os partidos comunistas continuariam proibidos,dentro das regras da Doutrina de Segurança Nacional. Os “novos”movimentos sociais eram considerados barulhentos, mas inaptos para avida institucional-partidária. Por im, o governo sonhava com um partidoforte de centro-direita, encabeçado por Tancredo Neves. O MDB queriacontinuarunido,masnocálculodogovernoissonãoseriaimpossível.

A nova lei di icultava aomáximo a vida da oposição: proibia alianças,voto vinculado, exigia diretórios organizados em vários estados dafederação,exigiaqueospartidoslançassemcandidatosemtodososníveis.

Asoposiçõesefetivamentesedividiram,enquantoaArenapermaneceuunida. Nisto o governo acertou sua previsão. De resto, não. O PMDB, novonome doMDB de Ulysses Guimarães, manteve parte dos quadrosparlamentaresdaoposiçãoextinta,conseguindoamploapoiodoeleitoradonaseleiçõesgeraisde1982.

Leonel Brizola não conseguiu a legenda “PTB”, praticamente dada aogoverno para Alzira Vargas, liderança expressiva apenas no sobrenomefamoso, o que tornou a tradicional legenda um agrupamento de centro-direita isiológica. Sem recuar, Brizola criou o Partido DemocráticoTrabalhista, verdadeira continuidade do trabalhismo histórico. O PDT erafortenoRiodeJaneiroenoRioGrandedoSul.Emoutrosestados,porém,erafrágil.

OPartidoPopular,decentro-direita,criadoemfevereirode1980,tevevidacurta.Decidiupelaautodissoluçãoemdezembrode1981epelafusãocom oPMDB. Sua criação seguiu, em parte, a estratégia do Planalto,concebidaporPetrônioPortela,visandoàcriaçãodeumgrandepartidodecentro-direita que não se confundisse com o partido o icial, o PDS, e fosseuma alternativa aceitável para um futuro governo civil de moderado aconservador.Resultadodadi ícilaproximaçãodedoisantigosdesafetosda

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política mineira, Magalhães Pinto e Tancredo Neves, o PP se viuinviabilizado pelas próprias regras que o governo criou para favorecer oPDS, proibindo coligações e exigindo o voto vinculado, na prática,municipalizandoaseleiçõesgeraisde1982emboapartedoBrasil.Comaentrada dos “moderados”, o PMDB se cacifou para conduzir a transiçãonegociada. Era preciso, entretanto, controlar a vocação autenticamenteliberal de algumas lideranças peemedebistas que não convergiamcompletamente para uma negociação com o regime, como UlyssesGuimarães,preferindoaopçãodaseleiçõesdiretas.

O quadro foi completado pela criação do Partido dos Trabalhadores

(PT), anunciado em agosto de 1979 e fundado em fevereiro de 1980.472

Reunindoaesquerdanãocomunista,oPTemprincípiopoderiaassustaroregime.Mas,noscálculosdogoverno,onovopartidoteriavidacurta,poisatradiçãosectáriadosgruposdeesquerdaqueo formavamouaderiramaele e o caráter de movimento social e sindical de suas principais basesseriamumobstáculo a uma ação institucional efetiva. Passado o susto dacriação doPT, amplamente comemorado por intelectuais socialistas eradicaisemgeral,ogovernoatéassimiloubemanova legenda,queaindatinhaavantagemdetirarvotosdaesquerdasocialistaetrabalhista.

A criação doPT, com efeito, aprofundou a crise do aliancismo deoposição no cenário pós-anistia. O racha das esquerdas, com as durascríticas dos petistas aoPCB e ao trabalhismo, se aprofundou. Para ospetistas,aestratégiadealiançasdeclasseeonacionalismodastradicionaislegendasdeesquerda foramos responsáveispelodesastrede1964,poistirou o poder de reação da classe operária, submetendo-a a armadilhasideológicaseàtuteladaselitespolíticasoriundasdeoutrasclassessociais.As novas palavras de ordem do petismo eram autonomia dostrabalhadores e democracia interna na luta “contra a exploraçãocapitalista”. O racha das esquerdas que começara com a questão da

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Constituinteaprofundava-secomafundaçãodonovopartidooperário,quetambém não conseguia a irmar sua identidade claramente, se reformistaourevolucionário.

A passagem da luta sindical para a luta política mais ampla era umapromessadasliderançasdo“novosindicalismo”,queapostaramnoPartidodosTrabalhadores.Masocaminhoentreumretumbantemovimentosocialeumvigorosomovimentopolítico-partidáriocapazdeserumaalternativarealdepodereramaislongoeacidentadodoqueospetistasimaginavam.ARepúblicadeSãoBernardonãotinhasetornadoanovaComunadeParisdos trópicos. Depois de 1981, os ventos que conduziam o barco daaberturaseriambemmaismoderados.

Depoisdaseleiçõesde1982,quandoogovernodosprincipaisestadoscaiunasmãosdaoposição, a sensaçãodeambiguidade,oscilandoentreaderrota tática e a vitória estratégica, tomou conta do governo. Osresultadoseleitorais emsi, tendoemvistao tamanhoda criseeconômica,atéquenãoforamtãodesastrosos.O PDStinhaconseguidoquase50%dascadeirasdaCâmaraeamaioriadosdeputadosestaduaisemgrandepartedas Assembleias, o que lhe davamaioria no futuro Colégio Eleitoral para

eleger o presidente da República, conforme as regras vigentes. 473 Alémdisso, na medida em que as eleições eram parte de um processo maiorvisando“tirarapolíticadasruas”,haviaaexpectativadequeo PMDB,bem-sucedido nas eleições, assumisse um tom moderado no processo detransição,dando-lheumcarátermaisinstitucionalenegociado.Oproblemaera que icava cada vez mais claro para o governo que o PDS, que searvorava ser o “maior partido político do Ocidente”, era um Titanic emdireção ao iceberg. Militares, civis, líderes regionais e lideranças maisconsequentesnãoseentendiamparalançarumcandidatoforteaoColégioEleitoral.Alémdisso, opartido sofria forte rejeiçãonosprincipais centrosurbanos,agregandoapenasumvotoinorgânico,clientelistaefisiológico.

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Alémdegovernarosestadosmaisricosda federação,comoSãoPaulo,Paraná,MinasGerais eRioGrandedoSul, o PMDB tinha se saídobemnaseleiçõesparlamentares, conseguindopoucomaisde40%das cadeirasdaCâmara.Mas isso aindanão era su iciente para garantir sua participaçãocomreaischancesdevitórianoColégioEleitoralde1985.O PMDB tambémtinha seus dilemas e impasses, e não eram poucos. Manter o espírito deuma oposição “autêntica”, conciliando a luta parlamentar e institucionalcoma lutadasruas?Aderirprioritariamenteao jogopolítico institucional,sob o risco de perder suas bases sociais mais quali icadas, em grandeparte perdida para o PT em alguns estados, como a esquerda e osintelectuais?Apostartodasas ichasnalutapelavoltadaseleiçõesdiretasou preparar-se para aderir aos limites do jogo eleitoral de inido peloregimemilitar?

A fusão com oPP em ins de 1981 tinha aumentado os dramasexistenciais e políticos doPMDB, isolando seus elementos mais à

esquerda474. A entrada dos pepistas tinha dado bases eleitoraisfortíssimas ao partido no estratégico estado deMinas Gerais, que elegeuTancredoNevescomogovernador.Mas,poroutrolado,tinhaaprofundadoas lutas e dilemas internos doPMDB. Tancredo Neves era um candidatoviávele fortenaseleições indiretas,masatéaquelaaltura,aomenos,nãotinha carisma e reconhecimento do conjunto das oposições para disputaruma eleição presidencial direta. Já Ulysses Guimarães, líder histórico dopartido, tinha trânsito com a oposição liberal-democrática e de esquerda,mas também era uma aposta arriscada, pois não se sabia sua realcapacidadeemangariarvotoseconstruiraliançasparaneutralizarovetomilitar que recaía sob seu nome. Em São Paulo, o governador FrancoMontoro, eleito com mais de 5 milhões de votos, era um iel da balançaimportantenessejogointerno.

Apesar do avanço doPMDB, o partido do governo militar manteve a

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maior bancada na Câmara e no Senado. Neste, a oposição elegeu 10senadores entre os 23 cargos em disputa. Na Câmara dos Deputados, ojogo entre oposição e governo estava empatado, conforme demonstra oquadroabaixo.

Fonte: Arsênio Eduardo Correa,A Frente Liberal e a democracia noBrasil(1984-1985),SãoPaulo,Nobel,2006,p.25.

Aentradadospepistas teve outro signi icadopara o PMDB. Tancredo etancredistas rapidamente desalojaram as correntes mais à esquerda dadireção doPMDB, ocupando a secretaria-geral e mantendo Ulysses napresidência. Paralelamente, Tancredo arrumou seu território eleitoral,estabelecendo um pacto de apoio mútuo para neutralizar o desafeto e

adversário Aureliano Chaves, principal liderança do regime em MG.475

Aureliano,vice-presidente,começavaaaparecerparaumaopiniãopúblicaum tanto desorientada ideologicamente como um democrata, crítico daspolíticasdoregimemilitareumliberalconvicto.Essaimagem,diga-se,nãoresistiriaaumaexposiçãomaissistemática,menoscontroladaeampladopolítico na mídia, mas no vazio político que se transformava o inal dogovernoFigueiredoseunomeatépodiacolar.

Tancredo também não descuidava da área militar. Mesmo não tendofortes resistências ao seunome,por ser consideradoummoderadoeumconciliador, afastando o fantasma do “revanchismo” que tantoamedrontava as Forças Armadas, alguns setoresmais à direita não viamcom bons olhos um sucessor civil (e da oposição) para Figueiredo. Paradesarmarosespíritos,foirealizadaumasériedeencontrosdiscretosentre

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TancredoeogeneralWalterPires,jáapartirdofinalde1982.

Tudo parecia se encaminhar para a grande negociação à brasileira,quandoasmassasressurgiramnasruas.Dessavez,demaneiraimprevistaedescontrolada.

No começo de abril de 1983, a cidade de São Paulo viveu quatro diastensos,comsaquesemotinspelacidadetoda.OtumultocomeçouemSantoAmaro,localdeforteconcentraçãodedesempregados,vitimadospelacriseeconômica.Osdesempregados se concentraramna frentedeuma fábricaquesupostamenteofereceriatrezentasvagas,masaofertanãopassavadeum boato. Alguns líderes tentaram organizar uma passeata até o centrocomercialdobairro,masaolongodotrajetoamultidãoexplodiuemraiva,saqueando lojas e quebrando fachadas. Após essa primeira explosãolocalizada,oprotestosemcontrole, semcentro,sem liderançaorganizada,se espalhou pela cidade. Em um dos minicomícios que aconteceram, umpintor desempregado resumiu o sentimento da multidão: “Enquanto não

quebrar tudo eles não acreditam”. 476 Uma das melhores síntesessociológicas foi de um palhaço que animava omovimentado Largo 13 de

Maio:“Nuncavinadaigualnavida.Éaguerradafome”.477

A“guerradafome”seespalhoupelacidadenodiaseguinte,ganhandoaimprensa.Gruposerrantesdedesempregados,comliderançasdifusasedispersas que não conseguiam conter a raiva coletiva, vagavam pelacidade.APolíciaMilitar foi acionada,masnão conseguiu contero tumultoapesar da violência repressiva. O governador Franco Montoro, recém-empossado,oscilavaentreacompreensãodasreivindicaçõesearepressãopolicial. O “cassetete democrático”, como a oposição apelidou a políticarepressivaaossaques,doíatantoquantoocasseteteditatorial.Namedidaemqueoprotestoavançava,todosossegmentospolíticoscomeçaramaseacusar mutuamente. Para a extrema-direita malu ista, a culpa era da

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esquerdaradicaleda“fraqueza”donovogovernoestadual.ParaoPMDBdeMontoro, a culpa era dos agitadores malu istas, derrotados na eleiçãoestadual,edaextrema-direitaquequeriadesestabilizá-lo.Paraospetistas,aculpaeradetodos,masprincipalmentedapolíticaeconômicadoGovernoFederal.

OprotestochegouaoPaláciodosBandeirantes,sededogovernodeSãoPaulo, onde a multidão enfurecida forçou as grades até derrubá-la,apontando para uma iminente invasão das dependências.No terceiro diadeprotestos, a situaçãocomeçoua seacalmar,maso saldodedestruiçãomaterial foi grande: 40 kmde ruas e avenidas atingidaspelosdistúrbios,500 detidos, 127 feridos, 23 veículos destruídos e 1 morto. Já o saldopsicológico sobre as elites e uma classemédia assustada era bemmaiorque tudo isso. Prenunciava-se o “grande medo” das multidões em fúria,sinaldecrisessociaisepolíticasmaiores.

Em julho de 1983, ainda sob o impacto dos motins e saques, omovimento sindical tentou se articular para dar uma resposta política àcriseeconômica.Arecém-fundadaCentralÚnicadosTrabalhadores ( CUT),

ligada aoPT,478 convocou uma greve geral, palavra de ordem com poucacapacidade de mobilização na história do movimento sindical brasileiro.Apesardenão se efetivar comoesperado, a greve geral cutista provocoutensão junto às autoridades, mobilizando um grande aparato policial derepressãonoABC,ondeoapelogrevistafoimaisouvido,enoRiodeJaneiro,ondeumagrandepasseataocupouasruas.

As ruas voltaram a se politizar, dessa vez por um ator imprevisível etemido: as multidões. Estas não pareciam dispostas a acatar nem suassupostaslideranças.Mesmoasliderançasmoderadasperceberamquenãoera possívelmanter a política apenas dentro dos parlamentos e palácios,comoqueriaoregime.

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Superado o “grande medo” da explosão das massas pelos setoresliberais, o receio de uma politização violenta das ruas canalizada pelaesquerda, petista ou comunista, alimentada não apenas pelosdesempregados desesperados com a crise econômica, mas pelolumpesinato das grandes cidades brasileiras, não foi completamentesuperado. A greve geral de julho tinha sido um relativo fracasso, masindicava que os movimentos sociais e sindicais não estavam dispostos aaceitarfacilmentesuaretiradadecenanoteatrodatransição.Aestratégiade esvaziar as ruas corria o risco de jogar as massas para açõesextrainstitucionaisderesultadoimprevisto,menospelasuacapacidadedetomaropoderemaispelaconfusãoquecriariamnacenasocialepolítica.OPMDB,quedependiadovotopopular,nãopodiaignoraressefato.Nãoporacaso,nomesmocontextoemqueoPT,ruimdevotomasbomdecomício,lançou uma campanha pela volta das eleições diretas para presidente daRepública emumcomício emSãoPaulono inaldenovembrode1983, oPMDBresolveuagir.

Estabeleceu-se no partido uma dupla estratégia. Ir às ruas pelasdiretas, mas não fechar a porta da negociação palaciana e parlamentar.Ulysses seria o candidato se a primeira estratégia desse certo. Tancredoseriaocandidato,seoColégioEleitoralfosseaopção.Aomesmotempo,osgovernadoresdeoposiçãoseposicionaram lançandoumManifestoem26denovembrode1983.

Enquanto isso, oPDS encalhava na de inição dos seus candidatos. Emdezembro de 1983, Figueiredo foi à TV e praticamente anunciou queabdicava de conduzir a sucessão, depois demeses tentando coordenar o

PDS.479 Aplêiade de candidaturas complicou a estratégia do governo.Aureliano Chaves, Paulo Maluf e Mário Andreazza não se entendiam etinham ambições próprias. O presidente preferia este último e vetavaMaluf, que também era inimigomortal de outro nome forte do partido, o

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governador da Bahia, Antonio Carlos Magalhães. “O turco [Maluf] não

senta naminha cadeira demaneira nenhuma”. 480 Figueiredo desabafou:“como coordenar se já tem cinco candidatos à minha revelia no

partido?”.481

Diantedestequadro,oqueoregimepoderiafazer?Apesardostrunfosrepressivos,sejadopontodevistamilitarelegalqueaindapossuía,acenapolíticaeracomplexa,dadootamanhodacriseeconômicaeapresençadasociedade civil de oposição, ainda mobilizada. Um documento doSNI em

fevereirode1984 construiuquatro cenáriospossíveis: 482 a)prorrogaçãodo mandato por dois anos, seguido de eleições diretas e convocação deumaAssembleiaConstituinte;b)eleiçãodireta“já”,comavaldogoverno;c)sucessão, via Colégio Eleitoral, conforme Constituição vigente; d)“fechamento”eretrocesso,comsuspensãodoprojetoderedemocratização.

As opções estudadas pelo governo eram a prorrogação do mandato,quedesagradavapessoalmenteaFigueiredo,eoavalàsucessãodentrodoColégio Eleitoral, mesmo com o risco de derrota para um candidato daoposição. Dentro dos quartéis, a resistência a um nome da oposição civilmoderada diminuía cada vez mais, até pela aproximação de Tancredo eGeisel, ex-presidente commuita in luênciana caserna.Aseleiçõesdiretascomoopçãoàsucessãoeo“retrocesso”eramoscenáriosaseremevitadospelo governo. A primeira, pela imprevisibilidade político-ideológica e pelamobilizaçãopopularemtornodopleito.Asegunda,peloriscode fecharatampadapaneladepressão,comosedizia,eelaexplodirdevez.

Naquele início de 1984, as ruas estavam tomadas pelo furor cívico dacampanhadas“Diretas Já”.Encampadapelo PMDB, sobretudoporMontoroeUlysses,quenãoqueriamdeixaracampanhaderuanamãodospartidosmais à esquerda, omovimento visava pressionar o CongressoNacional aaprovar a emenda constitucional proposta pelo deputado Dante de

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Oliveira.

Oscomícios,desdeodia12dejaneirode1984,vinhamemumaespiralcrescente e empolgante. O clima de “festa cívica”, amplamente alardeadopelaimprensa,pareciaaantítesedamultidãocaóticaefuriosadossaquesquetinhasacudidoascidadesbrasileirasmenosdeumanoantes.Mesmoos setores mais moderados e conservadores da opinião pública eramvisíveis nos comícios, famílias inteiras e cidadãos ditos “comuns”, fazendocoro pelas “diretas” junto com militantes de esquerda, sindicalistas,estudantes e ativistas dos movimentos sociais. A catarse proporcionadapelapolítica serviaparaaliviaras tensões socioeconômicaseprojetarumfuturonoqualtodososproblemasseriamresolvidospela livreescolhadopróximo presidente da República. Era o auge da pequena utopiademocrática que encantava pelo espírito progressista e cívico, mas nãoconseguia de inir uma agenda de programa e de ação muito clara. Aomesmotempo,aamplitudesociale ideológicadacampanhaeraseupontofraco.Nelanãosepropunhaumaagendamaisconcretade transiçãoededesmontagem da herança autoritária nas instituições e na máquina derepressão.

Outro ponto enfraquecia o movimento, de maneira silenciosa. Nemtodos noPMDBacreditavam,ouapostavam,navitóriadaEmendaDantedeOliveira ou na viabilidade das Diretas Já. Em março de 1984, AffonsoCamargo, secretário geral do PMDB, previu a derrota da emenda noCongresso, dando a senha para negociar a transição indireta com ogoverno dentro doPMDB, no que recebeu apoio de Fernando HenriqueCardoso, Severo Gomes, Roberto Gusmão em São Paulo, minando a

estratégiadeUlyssesGuimarãesdeapostarnaforçadasruas. 483Masnãoerasimplesesvaziarummovimentoqueempolgavaasociedade.

Oscomíciosdeabrilderamnovofôlegoàcampanha.NoRiodeJaneiro,1milhãodepessoassaíramàsruas.Algunsdiasdepois,SãoPaulocolocou

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10% de sua população na praça, com mais de 1,6 milhão de pessoasgritando pelas Diretas Já no Vale do Anhangabaú. Esperando que omovimento re luísse, atépeloesvaziamentoqueos setoresmoderadosdoPMDB articulavam, o governo resolveu agir. Perto do dia da votação daemenda, Brasília viveu, virtualmente, um estado de sítio sob a batuta dogeneralNewtonCruz,comandantemilitardoPlanalto.Atécarroseroupasamarelas, símbolos da campanha, foram proibidos de circular no dia davotação. A imprensa icou mantida sob censura. A linha dura que tinhaprotagonizado a tragédia agora estrelava uma farsa. Mas em política, afarsatambémfazpartedorepertórioepodeconduziranovastragédias.

A vigília cívica convocada para a noite da votação não sensibilizou oscongressistas.Emumacampanhaorquestradapeladissidênciado PDS,queseria chamada de “Frente Liberal”, com apoio tácito dos setoresmoderados da oposição que lhe garantiriam espaço político em futurasnegociações,muitoscongressistasfaltaramàvotação, impedindooalcanced oquorum mínimo para a reforma constitucional. Salvo algumasmanifestações mais violentas dos militantes que estavam nas ruas parazelar pelasDiretas, a campanhamorreudedepressãopós-votação. Como

escreveuFernandoGabeira,“ocoraçãodoBrasilestavanasruas”, 484masocérebroestavanoPalácioenoParlamento.

Depoisdaderrotadaemenda,oPMDB tancredistabuscouneutralizaraopção de prorrogação domandato de Figueiredo, angariando o apoio dadissidência doPDS e trabalhando para uni icar o PMDB em torno da opçãopeloColégioEleitoral. Coma consolidaçãoda candidaturadePauloMaluf,dentro doPDS, o trabalho de Tancredo, diga-se, icou mais fácil. O ex-governador de São Paulo era símbolo da corrupção para os liberais e da

violência política fascistoide para a esquerda.485 O estilo clientelista deMaluf, bem-sucedido na sua eleição indireta em São Paulo em 1978,quandosolapouacandidaturaLaudoNatel,enaConvençãodoPDS,quando

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derrotou Mário Andreazza, ambos preferidos pelo Governo Federal, nãoteria o mesmo êxito. Maluf conseguiu, a um só tempo, implodir oPDS e

unificarboapartedaoposição.486

A candidatura de Tancredo Neves, costurada havia muito, foio icializada em junho de 1984 pelos governadores de oposição (9, entrePMDB ePDT), com apoio de Ulysses Guimarães e, posteriormente, até deAurelianoChaves.Atocontínuo,Tancredoassumia formalmente, emcartapública, que não haveria “revanchismo”, abrindo a porta dos quartéis ao

seu nome.487 Dizia Tancredo: “Corrupção não é um problema derevanchismo,masdeCódigoPenal.RevanchismonoBrasiléuma lorque

nãogermina”.488Comefeito,odenominado“revanchismo”,quenadamaisera do que investigar as graves violações dos direitos humanos peloregimee esclarecer aquestãodosdesaparecidospolíticos, não germinou.Sobretudo porque foi uma semente que ninguém regou, a não ser osfamiliaresdosmortosedesaparecidosealgunspoucosmilitantesdacausados direitos humanos. Mesmo a esquerda estava em outra chave deatuação no processo de transição. Primeiro organizar o movimento ederrubar a ditadura, depois pensar na investigação das violações. Sob ahegemonia liberal moderada, essa possibilidade se esvaziou ainda mais,deixandoumaquestãonãoresolvidaatéosdiasdehoje.

A Convenção doPMDB emagostoo icializoua candidaturadeTancredoNeves,permitindoqueadissidênciadoPDSposassededemocrata.Assim,aFrenteLiberal se aliouao PMDB para lançaraAliançaDemocrática (14dejulhode1984).Parteda imprensa liberalapostounacontinuidadedeummovimento de ruas em apoio a Tancredo. Efetivamente, a massacompareceu aos comícios,mas sem amesmamagnitude ou amplitude dacampanhadasDiretasJá.

Partedadireitamilitaraindaqueriacomplicaroprocessodesucessão

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ou,nomínimo,mostrarqueo“espíritodarevolução”aindaestavavigilante.Em21desetembrode1984,oalto-comandoemitiuumanotacondenandoo “radicalismo da campanha” e o apoio das organizações clandestinas deesquerda, mas os generais Ivan de Souza Mendes e Adhemar Machadoatenuaramo clima de apreensão ao a irmar a “neutralidade do Exército”noprocesso.MaistardeogeneralWalterPires(malu istaeumadavozesda “linha dura”) reiterou que o Exército aceitaria o resultado do Colégio

Eleitoral,comoseissofosseumagrandeconcessãopolítica.489

Em 14 de setembro, primeiro comício da Campanha em Goiânia,ocorreu o episódio das “bandeiras vermelhas” do PCB ePCdoB, quepassaramaserutilizadaspelogoverno,comojáaconteceranasDiretasJá,para desquali icar a candidatura aparentementemoderada de Tancredo.Não colou,nemnosquartéis,maso alerta foi seguidodeuma reuniãodeemergênciaentreosministrosmilitareseopresidenteFigueiredo,em17desetembro,quandoesteteriafechadoquestãoemtornodaaceitaçãodacandidaturaedaeventualvitóriatancredista.Osencontrossigilososcomoministro do Exército, Walter Pires, criaram uma zona de convergência.“Controle seus radicais que eu controlo osmeus”, teria ditoTancredo em

umdestesencontros.490

A vitória de Tancredo sobre Maluf consumou-se em janeiro de 1985,

soboboicotedaesquerdapetista, anódinadopontodevistadevotos,491

mas que representava a corrente de opinião que se sentiu traída pelasabotagemdasDiretasJá.Oquepareciaum inalfelizparaosquequeriamuma transição sem rupturas e sobressaltos era, na verdade, o começodeum novo drama. De tão notórios, poderíamos dizer sobre os fatosvindouros: “o resto é história”. Complementemos: quase uma história deficçãomelodramática.

Tancredo caiu gravemente enfermo e foi internado antes de tomar

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posse. O que fazer? Como empossar o vice, José Sarney, se o cabeça dechapa não estava apto para tomar posse do cargo? A rigor, a opçãoconstitucionaleraUlyssesGuimarães,presidentedaCâmara.MasovetodeLeonidasPires,comandantedo IIIExército,importantealiadodeTancredo,

fez com que Ulysses abrisse mão.492 Outra faceta do drama era queFigueiredotinhaquestõespessoaiscontraSarney,aquemjulgavatraidorenão queria dar-lhe posse. Mas assim como Ulysses abriu mão de umaprerrogativa constitucional, o presidente abriu mão das suasidiossincrasias,saindopelaportadosfundosnodiadaposseeproferindoumafraseque,paradoxalmente,entrouparaahistória:“Meesqueçam!”.

Era o começo da Nova República, tendo à frente José Sarney umpresidente imprevisto, tutelado pelos militares, mas que prometiarecuperar as liberdades democráticas plenas e instaurar um processoconstituinte.QuantoaTancredo,sualongaagonialhedeuumcarismaquenãotinhaemvida,atépeloseuestilodiscretoenegociador.Seuenterrofoiuma das maiores manifestações populares do Brasil. As massas quetinham saqueado em fúria, que haviam festejado pelas Diretas, agorachoravamo novo santo laico doBrasil. E, talvez, também chorassempelaincertezadatransiçãoqueseprolongava.

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Aditaduraentreamemóriaeahistória

Golpes de Estado, guerras civis, revoluções e ditaduras constituem,obviamente, momentos particularmente traumáticos na história dassociedades.Expressõesdeprofundasdivisõesideológicasnocorposocialepolítico de uma nação, aqueles que saem vencedores desses processosfazemumgrandeesforçoparareescreverahistória, justi icaros fatosnoplano ético, controlar o passado e impor-se na memória doscontemporâneos. Os regimes que emergem desses eventos precisam dahistóriaparasejustificar.Serevolucionários,precisamexplicararupturaebuscarnopassadoas raízesdanovasociedadequepretendemconstruir.Se conservadores, eles precisam justi icar a ruptura como forma demanterosvaloresdominantes,ashierarquiaseasinstituiçõesvigentesnasociedade,regenerando-aseafastandooquejulgamserameaçasàordemtradicional. O curioso é que regime militar implantado em 1964 tentoumesclaremseudiscursolegitimadorosdoiselementos.

Hoje em dia, nenhum historiador, não importa suas simpatiasideológicas, duvida que o regime militar foi um regime conservador dedireita.Masoteordesseconservadorismopodeatéserdiscutido,poiselese combinou com a tradição do reformismo autoritário da históriarepublicana brasileira. Em linhas gerais, essa tradição de pensamentotinha uma vocação modernizadora que nem sempre se conciliava comoutros grupos historicamente conservadores, como os católicos e as

oligarquiasliberais.493Osmilitaresde1964eramanticomunistasecontra

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o reformismo democratizante da esquerda trabalhista, mas tinham umaleitura própria do que deveriam ser as reformas modernizantes dasociedadebrasileira,nadireçãodeumcapitalismoindustrialdesenvolvidoe de uma democracia institucionalizada e sem con litos, com as classes

populares sob tutela.494 Os militares golpistas se apresentaram como“revolucionários” ao mesmo tempo em que defendiam a ordem, poispretendiam modernizar o capitalismo no país sem alterar sua estruturasocial. Eram antirreformistas, mas falavam em reformas. Falavam nadefesadapátria,mascriticavamonacionalismoeconômicodasesquerdas.Prometiam democracia, enquanto construíam uma ditadura. O viésconservador anticomunista era o único cimento da coalizão golpista de1964 liderada pelos militares, que reunia desde liberais hesitantes atéreacionários assumidos, golpistas históricos e golpistas de ocasião,anticomunistas fanáticos e “antipopulistas” pragmáticos, empresáriosmodernizanteselatifundiáriosconservadores.

Aheterogeneidade ideológicadosgolpistaseosvários interesses,nemsempre convergentes, que motivaram a queda do regime de 1964 e dogoverno Goulart foram desa ios para a construção de um discursohomogêneoe,consequentemente,deumamemóriaoficialsobreogolpeeoregimemilitar.Osdissensosquerapidamentesurgiramdentrodacoalizãocivil-militar vitoriosa em março de 1964 aprofundaram essa tendência.Muitos liberais históricos que haviam apoiado o golpe se afastaram doregime,mesmoantesdoAI-5,adensandoumdiscursocríticoàcensura,àfalta de liberdades civis e à tortura. Os católicos de vários matizes, deesquerdaededireita,tambémdescon iaramdaspolíticasmodernizadorasefundamentalmentelaicasdoregime,mesmoqueestefalasseemnomedo“Ocidente cristão”. A violência repressiva e a exclusão social crescentesizeramcomqueaIgreja,comoinstituição,setornassecríticaaoregime,navozdaCNBB.

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Asesquerdasvencidastampoucoconstruíramumdiscursoconvergentesobreaderrotade1964.ParaoPartidoComunistaBrasileiro,ascausasdaderrota foram o “aventureirismo” radical de correntes trabalhistas,notadamenteobrizolismo.OPCBnuncaassumiuquesuapolíticadealiançade classes em nome da revolução nacional e democrática, lançada em

1958, tivesse enfraquecido o poder de reação ao golpe.495 A imaginada“burguesia nacional”, que deveria defender a democracia nos manuaispolíticosdoPCB,aderiuaogolpe.OtrabalhismobrizolistaculpouahesitaçãodopresidenteGoulartpeladerrota,primeiroaonãoreforçarapolíticademassasemnomedaconciliação,edepoisaonãoresistiràrebeliãomilitariniciada pelo general Olimpio Mourão em Minas Gerais. Os gruposmarxistas adeptos da luta armada culparam o “paci ismo” reformista doPCB, que o distanciou do suposto “ímpeto revolucionário” de operários ecamponeses e selou a derrota diante dos golpistas.Muitos desses grupossaíram dos próprios quadros do PCB após o golpe, quando o Partidãoreiterousuapolítica“paci ista”ealiancistacomoestratégiadelutacontraoregime. Nos anos 1980, a nova esquerda reunida no Partido dosTrabalhadoresapontouumaverdadeirametralhadoragiratóriaparatodosos lados, explicando a derrota pelo “autoritarismo” e “vanguardismo”dasesquerdascomunistasetrabalhistas,quesupunhafalaremnomedopovo,mas não organizava efetivamente as suas bases sociais nem lhespropiciavaaformaçãodeumaconsciênciaadvindadaautonomia.

Amemória,umtantoerráticae fragmentada,sobreogolpeeoregimemilitar foi o resultado lógico e simbólico desta divisão, não apenas entreesquerdaedireita,masdentrodeambasascorrentesideológicasbásicas.A cacofonia de vozes críticas da sociedade sobre os acontecimentos queestãonaorigemdoregimecomeçaasofrer,paulatinamente,umprocessode reconstrução em meados dos anos 1970, concomitante à política de“distensão e abertura”. Poderíamos de inir o resultado desse processocomoaa irmaçãodeumamemóriahegemônicasobreaditadura,quenão

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deveserconfundidacomumahistóriao icial.Estaéfrutodeumasimbioseentre amemória das elites e a história dos grupos que ocupam o poderpolíticodeEstadoedeveserproduzidaesancionadaporhistoriadoresdeo ícioeminstituiçõeslegitimadaspelopoder.Ahistóriao icialfazcomqueo discurso das elites sociais e políticas seja mais ou menos homogêneosobre um período histórico, admitindo-se pequenas nuancesinterpretativas. A memória hegemônica sobre o golpe (e sobre o regimecomoumtodo)éexatamenteocontráriodisso, criandoumfossoentreaselitespolíticasquemandavamnopaíseosgrupossociaisquetinhammaisinfluênciana“sociedadecivil”eatuavamsobosignoda“resistência”.

Emoutraspalavras,houvedesdeoprimeiromomentodo regimeumaclara e crescentedissociação entreos gruposmilitaresquedominavamoEstado e boa parte da elite social (incluindo-se aí os intelectuais, gruporesponsávelpelaconstruçãosimbólicaediscursiva).Nosanos1970,comovimos, parte da elite econômica rompeu com o regime, criticando,sobretudo, o estatismo e o burocratismo da política econômica. Assim,lideranças liberais, políticas e empresariais adensaram um discursooposicionista e crítico ao regime, incorporando inclusive elementos dodiscursodaesquerdamoderada,ouseja, aquelaquenãoadvogavaa lutaarmadaearadicalizaçãodasaçõesdemassa.Essadissociaçãopermitiuaconstruçãoprogressivadeumdiscursocríticosobreoregimeque logosetransformou emmemória hegemônica e que fez convergir elementos doliberalismo com a crítica de esquerda. A melhor expressão dessaconvergênciaéarelaçãoambíguadaimprensaliberal,amesmaquepediuacabeçadeGoulartem1964,comoregime.DepoisdoAI-5,a torturaeafalta de liberdades civis tornaram-se um problema, toleradas porque aameaça da guerrilha era maior. Ao mesmo tempo, essa imprensaconsagrou a cultura de esquerda e algumas vozes intelectuais críticas aoregime,construindoumaarquiteturadamemóriacomelementosdacríticaliberaledacríticadeesquerda.AopçãoaliancistaemoderadadoPartido

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ComunistaBrasileirofacilitouesseprocesso.

Dessaconvergênciaimprovável,entreliberaisdissidentesecomunistascríticos, nasceu a memória hegemônica sobre o regime militar. Para osprimeiros, funcionou como álibi para eximirem-se das responsabilidadeshistóricas na construção de um regime autoritário e violento. Para ossegundos,funcionavadentrodaestratégiade“ocuparespaços”,denunciare deslegitimar a ditadura. Consagrou-se nas pesquisas universitárias, naimprensa liberal,nosmeiosdecomunicação, isolandoodiscursoo icialdoregimequeperdia cadavezmais adeptos àmedidaquea crisepolítica eeconômicacrescia.Nessamemória,asociedadesea irmoucomoaantítesedos grupos de poder no Estado, impedindo a conquista de corações ementes pelos ideólogos do regime, objetivo inal de qualquer luta por

hegemonia.496 Por isso, a legitimação simbólica da ditadura sempre foifrágil e dependeu das benesses materiais que ela conseguisse distribuirentreasclassesmédiaseaoempresariado.Sehaviaumamassasilenciosadesimpatizantes,ousegruposdepressãoin luentessempreselheforamiéis, isso não foi su iciente para evitar o desgaste perante a memória, àguisadetribunaldahistória.

Nãoporacaso,osmilitaresdageraçãode1964–triunfantesnapolítica,vitoriososnasarmascontraaguerrilha,donosdoEstadopormaisdevinte

anos – são profundamente ressentidos.497 Ao perderem a batalha damemória os militares se tornaram vilões de um enredo no qual sesupunham heróis. Hoje em dia, poucas vozes com in luência nos meios

políticos e culturais defendemo legadodo regime.498 As próprias ForçasArmadas, como instituição, não sabembemo que dizer para a sociedadesobre 1964 e sobre o regime, e frequentemente optam pelo silêncio oupelalógicareativa,taiscomo“ogolpefoireativo”ou“nósmatamosporqueooutroladopegouemarmas”.Apartirdo inaldosanos1970,oregimeseviu aindamais isolado, com sua obra política e econômica cada vezmais

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questionada por empresários, intelectuais, trabalhadores, classesmédias.Foinessemomentoqueseconsagrouaderrotadosmilitaresnabatalhadamemória, iniciada bem antes, e que, paradoxalmente, serviu para selar aimagemda“sociedade-vítima”doEstadoautoritário,resistenteecríticaao

arbítrio.499

Mas não nos enganemos. A vitória da crítica ao regime autoritário noplanodamemóriasefezdemaneiraseletiva,sutile,aoinvésderadicalizaracríticasobreosgolpistascivisemilitarespeladerrocadadademocraciaem1964,culparamosradicalismos,àesquerdaeàdireita.Nessediscurso,o radicalismo dos reformistas de esquerda foi responsável pela crise dogoverno Goulart, que perdeu o seu espaço de negociação institucional.Igualmente, o radicalismo da “linha dura” militar e da guerrilha deesquerdaem1968 foramosresponsáveispelacriseque fezmergulharopaís nos “anos de chumbo”. Trata-se, pois, de uma versão brasileira da“teoriadosdoisdemônios”quevitimouasociedadeinocenteefezcomqueosideaismoderadosedemocratizantesde1964fossemdeturpados.Nãoédi ícil imaginar que, ao rejeitar os radicalismos da extrema direita e daextrema esquerda, essa memória atribui responsabilidades moraisidênticas para atores politicamente assimétricos, motivados por valorescompletamente diferentes. Ao mesmo tempo, constrói um espaço políticoque incorpora desde setores moderados das Forças Armadas atémilitantes da esquerda não armada, inclusive a comunista. Essa lógicaexplicaporque,ao lembrardogolpeedoregime,boapartedaimprensa,termômetrodasopiniõesliberais,conseguesercríticaàcensura,àtorturaeà faltade liberdadescivis,comose fossemdesdobramentos indesejadosde 1968, e não de 1964. A boa intenção dos militares “castelistas” foratraída e emparedada pela linha dura, ao mesmo tempo em que a justacríticadeesquerdaaoregimetinhasidoequivocadamenteradicalizadaporjovenstantoidealistasquantoinconsequentesqueaderiramàguerrilha.Acondenaçãodalinhaduraedaguerrilha,porviasemotivosdiferentes,éo

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cerne dessa memória que pretendia reconciliar o Brasil pós-anistia. Opreçoapagareraoperdãoeoesquecimento.Perdãonãoapenasparaostorturadores, a “tigrada” supostamente sem controle que defendeu oregime, mas também para a juventude equivocada da guerrilha. Se osprimeiros eram vistos como psicopatas e os segundos como idealistas, asdiferençasparavamporaí,nalógicaliberal.Oresultadopolíticoproduzidopor ambos fora desastroso e arrastara a sociedade para a cisão,estimulada pelo clima de “Guerra Fria”. O colapso do modelo soviético,consolidado com a “queda do Muro de Berlim” no inal dos anos 1980,reforçou ainda mais o triunfo de uma visão liberal que se pensavaequidistantes dos radicalismos que marcaram o choque entre o modelocapitalista-liberaleomodelosocialista-soviético.

Em resumo, a memória hegemônica sobre o regime, em que pese aincorporação de elementos importantes da cultura de esquerda, éfundamentalmente uma memória liberal, que tende a privilegiar aestabilidadeinstitucionalecriticarasopçõesradicaiseextrainstitucionais.Essa memória liberal condenou o regime, mas relativizou o golpe.Condenou politicamente osmilitares da linha dura, mas absolveu os queizeramatransiçãonegociada.Nãoporacaso,namemórialiberal,Geiseléumquaseheróidademocracia,enquantoMédicieCostaeSilvasãovilõesdoautoritarismo,poraçãoouomissão.Denunciouoradicalismoativistadaguerrilha de esquerda, mas compreendeu o idealismo dos guerrilheiros.Condenouacensuraeimortalizouaculturaeartesdeesquerdadentrodalógica abstrata da “luta por liberdade”. E, mais do que tudo, a memórialiberalautoabsolveuosprópriosliberaisqueprotagonizaramoliberticídiode1964–naimprensa,nasassociaçõesdeclasse,nospartidospolíticos–,culpando a incompetência de Goulart e a demagogia de esquerda pelogolpe.

A memória hegemônica foi bem-sucedida em seus objetivos

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estratégicos.Ouseja,propiciaroaplacamentodasdiferençasideológicaseo apagamento dos traumas gerados pela violência política, propiciando areconstrução de um espaço político conciliatório e moderado, sob ahegemonialiberal.ALeideAnistiade1979foiseubatismoinstitucional.

Mas o fato de haver uma memória hegemônica não quer dizer queoutrasmemórias, subordinadas,não tenhamexistidoenão lutempara sea irmar. Tampouco quer dizer que seus termos e princípios sejamimutáveis, pois a memória é mutável e, assim como a história, sujeita arevisõesfrequentes.Aoqueparece,estamosemmeioaumprocessocomo

este,desdeoiníciodonovoséculo.500

Os regimes militares anticomunistas da América Latina, na sanha dereprimir “comunistasesubversivos”,desenvolverammétodoscomunsemescalasdiferenciadas.O imdasliberdadescivis,aviolaçãosistemáticaaosdireitos humanos, com uso e abuso de tortura ísica, amontagem de umaparato semiclandestino de repressão e o recurso aos desaparecimentosde militantes foram métodos de repressão compartilhados por Brasil,Uruguai,ChileeArgentina.Oknow-howadquiridonaEscoladasAméricase nos cursos de contrainsurgência dados por militares franceses eestadunidenses foi aperfeiçoado emnuestra America. Em todos essespaíses a violência do Estado provocou traumas que penetrarammais oumenosnocorposocialedeixaramemsegundoplanoastensõescausadaspela própria guerrilha de esquerda. Mesmo as vozes que não tinhamnenhuma simpatia pela esquerda em armas a irmaram-se chocadasquando os relatos dos sobreviventes da tortura começaram a aparecer,nos processos de transição democrática. A má consciência dos setoressociais que apoiaram as ditaduras frequentemente se manifestou comoignorância, real ou inventada, sobre as práticas sórdidas da repressão. Ograu de atrocidades indizíveis nas câmaras de tortura e as práticas dedesaparecimento forçado de inimigos, ilegítimas mesmo em caso de

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estados de guerra, criaram um mal-estar generalizado que permitiu umprocessodereconstruçãodaverdadehistóricaeaaberturadeprocessosjudiciaisparapunirostorturadoresegenocidas.Eracomoseasociedade,em seus vários matizes, necessitasse voltar sobre seus passos, refazer ahistóriarecenteecompreendercomosechegouàquelegraudebarbárieecorrosão das relações políticas. Para tal, foram instituídas “comissões deverdade”, o iciais ou extrao iciais, que produziram relatórios detalhadossobreasviolaçõesdosdireitoshumanosemnomedasegurançanacional.Esseeraopontosensível.

Porqueonome“comissõesdaverdade”segeneralizou?Aexplicaçãoémais simples do que parece, longe de qualquer conceito ilosó ico. Eraprecisoproduzirumaverdadeque correspondesseaos fatosobjetivosdarepressão,enãoaosfatosalegadospelas“verdadeso iciais”dasditaduras,que sempre negaramqualquer tortura ou desaparecimentos forçados demilitantes. Quandomuito se falava em “excessos” de alguns agentes semcontrole, mas jamais os Estados envolvidos assumiram as práticascriminosas que abrigaram. Na ausência de arquivos o iciais quedocumentassem as violências, a forma mais óbvia era promover eincentivar o testemunho dos sobreviventes. Assim, o testemunho setransformou,aumsótempo,empeça jurídicaedocumentohistóricopara

recomporaverdade.501

Testemunhar implica lembrar. No caso de torturados, lembrar desituações limites,nasquaisasubjetividadeatingea fronteiradasanidadee, em muitos casos, a ultrapassa. Lembrar, nesses casos, é superar otrauma. Note o leitor que não se trata de uma lembrança de guerra. Setoda a guerra deixa sequelas naqueles que dela participaram, issonecessariamente não se transforma em trauma, pois nas guerrastradicionais a destreza do combate, a disciplina, o heroísmo e a covardia

podem se transformar em narrativas prolixas e subjetivantes. 502 Nas

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guerras sujas das ditaduras contra seus dissidentes, a tortura e oextermínio de prisioneiros provocam, inicialmente, o efeito contrário: osilêncio.Silênciodostorturadosquenãoqueremounãopodemlembrardesituações de humilhação e dor extrema. Silêncio dos mortos edesaparecidosquejánãopodemnarrarsuador.Silênciodasociedadequesabe,pormedoouconivência.Acreditavamosmilitaresqueosilêncioseriaa primeira etapa do esquecimento, do apagamento da memória e dahistória das cisões que ameaçavam cindir a sociedade. Para aqueles queteimavamemfalar,emdenunciar,emplenavigênciado terrordeEstado,este lhes reservava mais repressão ou, simplesmente, o descrédito. Nãopor acaso, as mães e avós da Praça de Maio que reclamavam por seusfamiliaresdesaparecidoseramchamadasde“laslocas”naArgentina.

Entretanto, a linhade forçaque impõeo silêncio, individual e coletivo,gera seu contrário. A necessidade de narrar e lembrar, de superar otrauma que impele ao silêncio e ao autoesquecimento. Nos processoshistóricos marcados pela crise das ditaduras e pela redemocratizaçãorecentedoEstado,asduaslinhasdeforçasedigladiam.Osistemapolítico,cultural e jurídico é remodelado dentro desse embate. Se estimular otestemunhodasvítimas, reconstróiaverdadeabafadapelasditaduras.Seesses testemunhos forem além do valor histórico, transformam-se empeças jurídicas. Quanto maior o trauma, quase sempre proporcional àescala e ao impacto social dos crimes do Estado e da violência política,maioranecessidadedenarrar.Masae icáciadasnarrativas comopeçasde memória demanda um sistema que estimule o testemunho e a

narrativa. Aquilo que era esquecimento transforma-se em memória. 503

Gera-se, assim, um novo direito, um “direito à memória” por parte dosgruposoutroraperseguidospeloEstadoesilenciadospelaverdadeepelahistóriaoficial.

É claro que o direito subjetivo à memória nem sempre consegue dar

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conta de todas as contradições objetivas da história. Pode abrir espaçopara vitimizações, para distorções ideológicas, para invenção de um

passadoquenuncaexistiu.504A inal,porque lutávamos?– interrogam-semuitos ex-guerrilheiros. Pela democracia, tal como a palavra se impôs namídia,oupelarevolução,ouseja,peladitaduradoproletariado?Aviolênciarevolucionária da esquerda é feita damesmamatériamoral da violênciacontrarrevolucionáriadarepressão, comoa irmamaquelesque justi icama repressão sem limites? Sucumbir à sorte das armas é o mesmo quemorrernoporãodatortura?Asrespostasaessasperguntasmovimentamnão apenas debates entre a esquerda e a direita, entre liberais esocialistas, mas também dentro desses grupos. E também desa iam oshistoriadoresque,comprometidoscomalgumaideologia,nãoqueremabrirmãodaobjetividade.Portanto,asnarrativasconstruídasemprocessosdesuperação de violências políticas e terror de Estado nem sempre sãocaminhos para a verdade histórica, pois também estão marcadas pelostraumas, pelo indizível, pelas feridas abertas mesmo entre as vítimasmaiores,pelasdissidênciaspolíticasentreosgruposderrotados,abafadasmasnão superadas.Quandoasditaduras acabam,ninguémquerpagar aconta.Asociedade,mesmoaparteconivente,sedizvítima.Grupossociaisque aderiram se a irmam como resistentes.Militantes que apostavam naguerrarevolucionáriasecolocamcomovítimas.Militaresquecerravamosdentes e aplaudiam a repressão se dizem reféns das circunstâncias. Otraumatambéméhistórico.

Mas há outro plano do trauma provocado pelas violações aos direitoshumanos das ditaduras: o trauma dos familiares, sobretudo dosdesaparecidos, que sematerializa e perpetua na impossibilidade do luto.Comohaver lutosenãohácorpo?Senãohácorpo,nãoháritual fúnebre,esse corte doloroso com um corpo que um dia foi vivo e feixe de afetos.Nessecaso,otraumaémenosesquecimentodoquepresença-ausênciadodesaparecido para seus familiares e amigos. Sem dúvida,

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independentemente das razões e da legitimidade das ditaduras, essa é a

facemais perversa dos regimesmilitares que se prolonga até hoje. 505 Écomo se uma guerra acabasse,mas os corpos dos soldados não tivessempousonemdescanso.

Aspolíticasdememória,oestatutodeverdadeeolugardotestemunhose formatam de maneiras diversas, conforme o país, e dependem dosprocessos de transição. Em transições negociadas com os militares, atendênciaéqueos con litos seacirremmenos, impondo-seumamemóriahegemônica atenuantequeneutraliza as vozesque clamampor justiça.OcasodoBrasilpareceserexemplarnestesentido.

A transição brasileira foi longa, tutelada pelos militares, com grandecontrole sobreo sistemapolítico, apesardodesgastedeanosocupandoopoder de Estado. Foi altamente institucionalizada na forma de leis esalvaguardas. Foi negociada, ainda que as partes fossem assimétricas,posto que os civis liberais e moderados foram ganhando um espaçopaulatino no sistema político até voltarem ao Poder Executivo federal em1985. Além do mais, a hegemonia liberal e moderada, nesse processo,neutralizou as demandas por justiça da esquerda atingida diretamentepelarepressão.

A esquerda, por sua vez, teve posturas diversas diante da questão dapunição aos violadores dos direitos humanos. Os sobreviventes da lutaarmadavoltandodoexílioousaindodasprisõesinseriram-senamilitânciadosmovimentos sindicais e dos bairros. A esquerda comunista/pecebistaabriumão de qualquer pressão por punição em nome das alianças e daconsolidação da abertura, jogando para frente, para um futuro regimedemocrático, a resolução dessa questão. O núcleo da nova esquerdapetista, omovimento social e os grupos católicos construíamuma agendamais voltada para amilitância social em nome dasmudanças estruturaisdo que para o reforço e ampliação dosmovimentos de direitos humanos,

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aindaqueessetema izessepartedasplataformasgeraisdoPTedeoutrospartidos e grupos de esquerda. En im, no processo de transição, se asesquerdas não esqueceramos crimes da ditadura contra seusmilitantes,tambémnãoinvestiramsuasprincipaisenergiasnotemadaverdadeedajustiça. E não se pode explicar essa tendência como fruto de qualquerimposturaouoportunismo.Asensaçãonocampodaoposição,no inaldosanos1970,eraqueaditaduraperderaabatalhadamemóriaedabuscapela legitimação político-ideológica, portanto a verdade histórica sobre anatureza do regime não exigia mobilizações especí icas para tal. Ocrescimento do movimento social de oposição e a possibilidade de açãooposicionista dentro do sistema político consumiram as energias dasesquerdas e abriram novas perspectivas para a transição que, àquelaaltura,aindanãoestavadadacomoumanegociataconservadora.

Comoaanistiacoincidiucomarecomposiçãodoambientepolíticoedosistema partidário, dentro do qual setores perseguidos pelo regimepuderam se acomodar e voltar a exercer umamilitância mais ou menos

tolerada, o tema da justiça icou em suspenso.506 Naquele contexto, erapreciso priorizar a luta social e política pela derrubada do regime e pelamudança na estrutura social, reforçando a presença dos movimentossociais no cenário político. A literatura de testemunho que abundou nosanos1980sobreoregime,frequentementeescritaporex-guerrilheirosdeesquerda,serviuparasolidi icaramemóriahegemônicaemmuitoscasos,poisoslivrosdemaiorsucessofaziamumaautocríticaexplícitaouveladaàluta armada, como se fosse um capítulo necessário, mas superado, de

oposiçãoaoregime.507

NocomeçodaNovaRepública,adivulgaçãodorelatóriodaComissãodeJustiçaePazna formado livroBrasil:nuncamais tevegrande impactona

opiniãopública.508Pelaprimeiravez,demaneirasistemática,detalhadaedocumentada,serevelavaomecanismoderepressãonoBrasileasformas

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de torturas que se praticavam contra os presos. E não se poderia alegarque a documentação era falsa, pois fora retirada, clandestinamente, dosarquivos do Supremo Tribunal Militar. Era o primeiro grande corpodocumental que emergia dos porões. Esses documentos chancelavam otestemunhodos torturados,dadosaos tribunaisdeapelaçãoe,emmuitoscasos,levadosemcontapelosjuízesparaatenuarpenas.

Mas a cada vaga de pressão social para apurar os crimes de tortura,sequestro,assassinatos,todostipi icadosaténoquadrojurídicovigentenoregimemilitar,arespostadosmilitares,nareservaenaativa,éamesma:houve uma Lei de Anistia que “perdoou” os crimes da esquerda e darepressão, chamados de “conexos” ou reativos. No embate ideológico, adenúnciadaimpunidadedosmilitantesdedireitoshumanosécontrapostapelos militares com a pecha de “revanchismo” daqueles que foramderrotados.

Najustiça,oembateaindanãoestácompletamenteencerrado.Emabrilde2010,consultadoapartirdeumaaçãodaOABsobrevalidadedaLeideAnistia para esse caso, o Supremo Tribunal Federal considerou-aconstitucional e válida, bloqueando outras ações na justiça criminal. Apartir do caso dos desaparecidos da guerrilha do Araguaia, as violaçõesaos direitos humanos no período do regime foram parar na CorteInteramericanadeJustiça,queinterpelouoEstadobrasileiroemdezembrodomesmoano.Antes,em2008,ajustiçadeSãoPaulodeuganhodecausapara os torturados da família Teles, atingida pela repressão ilegal no DOI-Codi, em ação civil contra o coronel Brilhante Ustra, que tem tomado adefesadosistemarepressivoedahistóriao icialdoregimedesdeque foireconhecido emmeadosdos anos1980 comomembroda repressãopelaatrizeex-deputadaBeteMendes,militantedaesquerdaarmadanosanos1960.

Conformeosprocedimentosconsagradosde justiçade transição, 509 as

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políticas de Estado em processos de redemocratização passam por trêsfases, mais oumenos sucessivas. Em primeiro lugar, busca-se a verdadedos fatos para desquali icar a “verdade o icial” imposta pelas ditaduras,quase sempre puramente mentirosas sobre as circunstâncias de prisão,tortura, mortes e desaparecimentos. Em segundo lugar, uma vezestabelecidademaneiraponderadae circunstanciadaa verdade, passa-seà faseda justiçaoudapuniçãoaosresponsáveisdiretose indiretossobreasviolaçõesdedireitoshumanosduranteoestadodeexceção.Emmuitoscasos, a apuração da verdade se dá concomitantemente aos processosjudiciais, situações em que abundam testemunhos de acusação. Ao im,estabelecem-se critérios para uma política o icial de reparação, moral,políticaoumaterial,aosatingidos.

No Brasil, dada as particularidades históricas da transição, vivemosuma situação curiosa, que foge aos padrões teóricos. Desde 1995, aomenos, temos uma política de reparação sistemática e até generosa,acompanhadasdeumapolíticadememóriaquenãoconsegueiralémdasmeias-verdades,dadoquemuitosmortosedesaparecidosaindanãotêmoparadeiro esclarecido o icialmente. Para completar a tríade, nenhumapolítica de justiça. Essa combinação de reparação, alguma verdade enenhuma justiça, portanto, tem sido o arremedo de uma política dememóriadoEstadobrasileiroemrelaçãoao regime.No limite,querdizerqueaindanãotemosumahistóriao icialsobreoperíodo,entendidacomoa narrativa do passado aceita como base para uma política homogênea ecoerente de Estado. Essa característica explica por que as posturas doEstado brasileiro diante da questão da investigação das violações dosdireitos humanos perpetradas pelos agentes do regime é, no mínimo,esquizofrênica. Enquanto a Secretaria de Direitos Humanos dos últimoscinco governos federais tem sido o baluarte de um esboço de política dememória,oMinistériodaDefesanãoconsegueacompanharessatoada,pormotivos óbvios, dada a pressão militar sobre este assunto sensível. Se o

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PoderExecutivonãoseentende,tampoucooPoderJudiciário.OMinistérioPúblico até luta contra a impunidade, mas não conseguiu criar umasituaçãoderevisãodaLeideAnistia.Emoutrainstânciadaáreajurídica,opedidodaOABpararevisaraLeifoinegadopeloSupremoTribunalFederalem2010, comovimos, sob o argumentode que essa seria uma tarefa doLegislativo. Este Poder, por outro lado, nem sequer cogita a revisão daanistia de 1979, que certamente seria motivo de acalorados debates ecisões profundas em uma instituição já problemática para compormaiorias. Diante desse conjunto de impasses, o argumento liberal, iel dabalançadestapolíticadeequilíbrionacontradição–condenaçãomoraldaditadura, sem condenação jurídica efetiva aos seus agentes – parececonseguirdarotomdodebate.

Masessesdesencontrose tensõesnão impedemquehajaumapolíticade memória por parte do Estado brasileiro, que tem privilegiado areparação aos atingidos pela repressão. Em1995, no começodo governoFernando Henrique Cardoso, a Lei n° 9.410, conhecida como a Lei dosDesaparecidos, criou a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos(CEMDP), subordinada ao Ministério da Justiça do Brasil. Na prática, oEstado brasileiro assumia sua responsabilidade nos atos de repressãoarbitrários e ilegais que redundaram em mortes e desaparecimentos,responsabilidadequefoiplenamenteassumidaporumanovaleiem2002.Mas já apartirde1995abria-se apossibilidadeparaumaampla revisãodosprocessosdeanistiaparacorrigireventuais injustiçaseomissões.Até2009, dos 62mil pedidos de revisão, 38mil tinham sido julgados, 23mil

deferidos e 10 mil tiveram direito à reparação econômica. 510 Não poracaso,apartirdeentãoabatalhadamemóriaseacirrou.

Apolíticade reparações e o incômodo comamemória hegemônicadecentro-esquerda eram patentes nos artigos do coronel da reserva JarbasPassarinho,que foraumquadrodealto escalãodo regimea inado como

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grupo Costa e Silva/Médici. Em seus artigos de imprensa, nota-se umaparticularidade. Tanto a memória de esquerda é criticada quanto amemóriaheroicaqueseatribuiao“grupocastelista”,supostamentedotadode intenções democratizantes sempre ameaçadas pela “linha dura”.“Vencidospelasarmas,oscomunistassãohojetodosheróis”,queixava-seo

coronel em um de seus artigos,511 ao mesmo tempo que “tudo o queizemosdebom[...]énegado”.Emquepeseoressentimentodaspalavras,Passarinho toca no ponto central da questão, a singular condição dederrota nas armas (e, por que não, na política, posto que as utopias deesquerdasedissiparamcomoprojeto)evitóriana“batalhadamemória”.

Em 2004, ainda no começo do governo Lula, explodiu a questão daabertura dos arquivos da repressão. O Correio Braziliense publicousupostasfotosinéditasdeVladimirHerzogaindavivonaprisão.Defato,afoto mostrava uma pessoa nua, de lado, com as mãos cobrindo o rosto,semelhante a Herzog. Posteriormente, a foto foi o icialmente declaradacomo não sendo do jornalista assassinado em 1975, e sim de um padre

canadense(LeopoldD’Astous).512

Provocado por essa reportagem, o Centro de Comunicação Social doExércitoreagiudemaneiradura,reiterandoodiscursoo icialdaépocadoregime.Valeapenaalongacitação:

NotadoCentrodeComunicaçãoSocialdoExército(18deoutubrode2004):

1.Desdemeadosdadécadade60atéiníciodosanos70ocorreunoBrasilummovimentosubversivo, que, atuando a mando de conhecidos centros de irradiação do movimentocomunista internacional, pretendia derrubar, pela força, o governo brasileiro legalmenteconstituído.

Àépoca,oExércitobrasileiro,obedecendoaoclamorpopular,integrou,juntamentecomasdemaisForçasArmadas,aPolíciaFederaleaspolíciasmilitaresecivisestaduais,umaforçade paci icação, que logrou retornar o Brasil à normalidade. As medidas tomadas pelasForças Legais foram uma legítima resposta à violência dos que recusaram o diálogo,optarampelo radicalismoepela ilegalidadee tomarama iniciativadepegaremarmasedesencadearaçõescriminosas.

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Dentrodessasmedidas,sentiu-seanecessidadedacriaçãodeumaestrutura,comvistasaapoiar, em operação e inteligência, as atividades necessárias para desestruturar osmovimentosradicaiseilegais.

O movimento de 1964, fruto de clamor popular, criou, sem dúvidas, condições para aconstrução de umnovoBrasil, em ambiente de paz e segurança. Fortaleceu a economia,promoveu fantástica expansão e integração da estrutura produtiva e fomentoumecanismos de proteção e quali icação social. Nesse novo ambiente de amadurecimentopolítico, a estrutura criada tornou-se obsoleta e desnecessária na atual ordem vigente.Dessa forma, e dentro da política de atualização doutrinária da Força Terrestre, noExércitobrasileironãoexistenenhumaestruturaquetenhaherdadoasfunçõesdaquelesórgãos.

2. Quanto às mortes que teriam ocorrido durante as operações, o Ministério da Defesatem, insistentemente, enfatizado que não há documentos históricos que as comprovem,tendoemvistaqueosregistrosoperacionaisedaatividadedeinteligênciadaépocaforamdestruídosemvirtudededeterminaçãolegal.Talfatoéamparadopelavigência,até08dejaneirode1991,doantigoRegulamentoparaaSalvaguardadeAssuntosSigilosos(RSAS),que permitia que qualquer documento sigiloso, após a acurada análise, fosse destruídoporordemdaautoridadequeoproduzira, caso fosse julgadoque já tinhacumpridosuafinalidade.

Depoimentos divulgados pelamídia, de terceiros ou documentos porventura guardadosemarquivospessoaisnãosãoderesponsabilidadedasForçasArmadas.

3. Coerente com seu posicionamento, e cioso de seus deveres constitucionais, o Exércitobrasileiro,bemcomoasforçascoirmãs,vêmdemonstrandototalidentidadecomoespíritoda Lei da Anistia, cujo objetivo foi proporcionar ao nosso país um ambiente pací ico eordeiro,propícioparaaconsolidaçãodademocraciaeaonossodesenvolvimento, livrederessentimentos e capaz de inibir a reabertura de feridas que precisam ser,de initivamente,cicatrizadas.PoressemotivoconsideraosfatoscomopartedahistóriadoBrasil.

Mesmo sem qualquer mudança de posicionamento e de convicções em relação ao queaconteceu naquele período histórico, considera ação pequena reavivar revanchismos ouestimulardiscussõesestéreissobreconjunturaspassadas,queanadaconduzem.

Oepisódioprovocouummal-estar entreopresidenteLuiz Inácio LuladaSilvaeosmilitares,queforamobrigadosaseretratar.Umdiadepoisdaprimeira nota (19 de outubro de 2004), uma curta retratação assinadapelo general de Exército Francisco Roberto de Albuquerque, atenuou acrise:

O Exército Brasileiro é uma instituição que prima pela consolidação do poder dademocraciabrasileira.OExército lamentaamortedo jornalistaVladimirHerzog.Cumprerelembrarque,àépoca,estefatofoiumdosmotivadoresdoafastamentodocomandantemilitardaárea,pordeterminaçãodopresidenteGeisel.

Portanto, para o bem da democracia e comprometido com as leis do nosso país, o

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ExércitonãoquerficarreavivandofatosdeumpassadotrágicoqueocorreramnoBrasil.Entendoque a formapela qual esse assunto foi abordadonão foi apropriada, e que

somenteaausênciadeumadiscussãointernamaisprofundasobreotemapôdefazercomque uma nota do Centro de Comunicação Social do Exército não condizente com omomentohistóricoatualfossepublicada.

ReiteroaosenhorpresidentedaRepúblicaeaosenhorministrodaDefesaaconvicçãode que o Exército não foge aos seus compromissos de fortalecimento da democraciabrasileira.

Entreasduasnotas,épatenteadi iculdadedopróprioExércitoemseposicionar,o icialmente,sobreoperíodo.Odebatequeseseguiutocouno

problemacentraldamemóriaedaverdade:oacessoaosdocumentos, 513

poisafotofoidescobertaemmeioaumconjuntodocumental,entregueporumcabodoExércitoquetrabalhavanosetordeinteligênciaàComissãodeDireitos Humanos da Câmara, nunca divulgado ou analisado. Em quepesemosavançosdesdeentão,osarquivosdosserviçosdeinteligênciadas

trêsarmasaindacontinuampraticamenteinacessíveis.514

Em 2007, foi lançado um livro produzido pela Comissão Especial deMortos e Desaparecidos (subordinada à Secretaria Especial dos DireitosHumanos da Presidência) intituladoDireito à memória e à verdade . Este,talvez, possa ser visto comoum esboço de umahistória o icial, posto queeraumapublicaçãodogovernodaépocaemnomedoEstado,eseustextossobre a conjuntura histórica se aproximam muito da referida “memóriahegemônica” sobre o regime, com um toque a mais de esquerda. AComissão contava com um representante dos militares quefrequentementediscordavamdoméritoedoresultadodo julgamentodasrevisõeseresponsabilidadesesea irmavamcomopartesdo“exercíciodo

contraditório”, ou seja, a posição das Forças Armadas. 515 Aliás, estaexpressãoutilizadapeloso iciaismilitaresé interessante,poisrevelaumacorrenteminoritáriadeopiniãoe,portanto,deconstruçãodamemóriaemjogo.

Ao longo do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010),

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sintomaticamente, a memória hegemônica sobre o regime começou aapresentar issuras, antigas mas até então pouco visíveis. Os gruposatingidos pela repressão conseguiram marcos institucionais importantesna a irmação de uma política dememória, ainda que um tanto erráticas,

em várias esferas de governo. O projeto Memórias Reveladas,516 do

Governo Federal, e o Memorial da Resistência,517 ligado ao governo doEstado de São Paulo, são exemplos de tentativas de políticas dememóriasobre o regime, com foco nos perseguidos e em busca de rea irmar umamemóriahegemônicadematrizesquerdista,quecomeçaaserquestionadainclusivenaimprensaliberalqueajudouaconstruí-la.

Tendoemvistaqueeraumgovernodeesquerda,compostopormuitosex-guerrilheiros e enfrentando descon iança da imprensa liberal, ogoverno Lula reacendeu tensões entre liberais e esquerdistas e,indiretamente, estimulou certo revisionismo sobre amemória do regime.Nesseprocesso,cresceuaversãobrasileirada“teoriadosdoisdemônios”e da responsabilidade da própria esquerda e do governo Goulart nosacontecimentos de 1964 e no endurecimento do regime em 1968. Essaequivalênciadaresponsabilidadepolíticaemoralentreesquerdaedireitaem momentos capitais da história recente é uma das marcas dorevisionismo,aindaemcurso,cujosdesdobramentosparaahistóriaeparaamemóriaaindaestãoabertosnomomentodaconclusãodestelivro.

Dentro desse clima, no qual uma política de memória convive comdebatessobreasresponsabilidadesdasesquerdasnastragédiasde1964e 1968, foi instalada a Comissão Nacional da Verdade (CNV) em maio de2012.Elatemcomomissãoesclareceroparadeirodosdesaparecidoseascadeiasde responsabilidadesnos casosde violaçõesdedireitoshumanosentre1946e1988,emboranapráticaestejaseconcentrandonoperíodo

do regime militar. 518 O icialmente, a data expandida foi proposta na leicomo formade diminuir a resistência das ForçasArmadas. A Comissão é

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composta por sete integrantes escolhidos entre vários setores dasociedade civil, sem poder de punição, embora seu relatório inal possaembasar futuras ações na justiça. A imprensa deu ampla cobertura àsolenidade,destacandoumaspectocuriososobreopapeldaComissão:“Apartir de agora a Comissão terá dois anos para apresentar um relatóriosobre a violação dos direitos humanos. Esse relatório será considerado a

históriaoficialdoBrasil”.519

Some-se a isso, o trabalho de dezenas de comissões regionais einstitucionais,consideradascomplementaresà CNV.En im,estamosvivendoum verdadeiroboom de produção de memórias sobre o regime militar,expressado na febre de construção de memoriais sobre o período pelo

Brasilafora.520Aomesmotempo,ahistoriogra ia tambémdesenvolveumdebatepróprio,nemsempreconvergentecomaspolíticasdememória.

Com a instalação daCNV, alguns focosmilitares se agitaram, sobretudoentreoso iciaisdareserva,fazendoecoemalgumasvozescivisdedireita,ainda minoritárias no debate. A principal argumentação é que a“Comissão” é revanchista e parcial, focando apenas as violências dosagentesdoEstadoeesquecendoadosguerrilheirosdeesquerda.Diga-se,uma argumentação frágil, pois, independentemente de qualquerconsideraçãodeordemideológica,ofatoéqueamaioriadosguerrilheirosfoi de alguma forma punida, com prisão, exílio, tortura e morte. Já osagentes do Estado que participaram de atos ilícitos e crimes de lesa-humanidade sequer foram nominados ou intimados o icialmente pelajustiça.

Uma das reações dos militares da reserva, ato contínuo aoestabelecimento daCNV, foi propor uma Comissão paralela e voltar abrandir o livro o icial do regime, organizado desde os anos 1980, masnunca publicado, chamado de “Orvil” (contrário de “livro”, em alusão ao

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livroBrasilNuncaMais).Emartigodiretamenterelacionadoàinstalaçãoda

Comissão, o general Romulo Bini Pereira 521 rea irma a culpa do “outrolado”eocaráterreativodarepressãodoregimecontraalutaarmadaquevisava implantar o “totalitarismo” de tipo soviético. Mais do que isso,sugerequeoscomandosmilitaressepronunciememdefesadoExércitoeseus métodos nos anos 1960 e 1970, sob pena de assistir a dissensosinternos entre seus comandados. A “lei do silêncio” que os militares (daativa)seautoimpuseram,navisãodogeneral,precisasersubstituídapor

Umapalavraquenãosigni iqueummeaculpaouumpedidodeperdão.Estivemos,noperíododaGuerra Fria, em combate bipolarizado, noqual os extremistas forambanidosemtodoomundoemrazãodeseuobjetivototalitárioeúnico:aditaduradoproletariado.Correremosriscos,maselessãoinerentesaoprocessodemocráticoeànossaprofissão.

No momento em que este livro foi inalizado, o relatório inal daComissão ainda não tinha sido elaborado. Portanto, às vésperas derememorarmosos cinquenta anosdo golpemilitar, as lembranças sociaisdo período oscilam entre uma memória hegemônica, perpassada portensõese issurascrescentes, eumprojetodehistóriao icialqueassumeasresponsabilidadesdoEstado.Odesa ioestáemfazercomqueasForçasArmadas o aceitem, como parte da burocracia e do governo, propiciandoumamaiorcoerênciadaspolíticasdeEstadosobreotema.Omaiscuriosoéqueesseprocessoocorresobumgovernodeesquerda,presididoporumaex-guerrilheira que foi presa e torturada, cujo partido – o PT –, na suaorigem,foicontratodasashistóriasoficiais,querendoreescreverahistóriaapartirdos“debaixo”.

De initivamente, Tom Jobim tinha razão. O Brasil não é paraprincipiantes.

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Notas

UTOPIAEAGONIADOGOVERNOJANGO

1FlávioTavares,Memóriasdoesquecimento:ossegredosdosporõesdaditadura,RiodeJaneiro,Globo,1999,p.247.

2 Para uma visão crítica do governo Jango e seus opositores, ver Caio Toledo, “Golpe contra asreformaseademocracia”,emRevistaBrasileiradeHistória,24/47,SãoPaulo,2004,pp.13-28.

3VercomoexemplosolivrodeLuizAlbertoMonizBandeira,OgovernoJoãoGoularteaslutassociaisnoBrasil,Riode Janeiro,CivilizaçãoBrasileira,1977,ouodocumentáriodeSilvioTendler, Jango(CalibanProduções,1984).

4Mesmoduranteseugoverno,Jangosofriacríticasàesquerda.AlémdascríticasdaalabrizolistadoPTB, da Ação Popular e do Partido Comunista Brasileiro, correntes que eventualmente estavamabertasaaliançascomopresidente,outrascorrentesdeesquerdaapostavamemumaoposiçãomaisaberta,comoasliderançasdasLigasCamponesasqueapostavamemumaguerrilhaapoiadapor Cuba e a Polop – Política Operária –, muito presente entre os secundaristas. Também seopunham ao governo Jango os trotskistas do Partido Operário Revolucionário (POR-T) e osmaoistas doPCdoB (fundado em 1962, como dissidência doPCB),mas ambas as correntes erammuitopequenasnaquelemomento.

5AmirLabaki,1961:acrisedarenúnciaeasoluçãoparlamentarista,SãoPaulo,Brasiliense,1986.6ClaudioBojunga,JK:oartistadoimpossível,RiodeJaneiro,Objetiva,p.282.7ElioGaspari,Aditaduraenvergonhada,SãoPaulo,CompanhiadasLetras,2002a,p.46.8MarcoAntonioVilla,Jango,umperfil,RiodeJaneiro,Globo,p.238.9DanielA.ReisFilho,Ditaduramilitar,esquerdasesociedade,RiodeJaneiro,JorgeZahar,2000,p.32.10 Wanderley G. Santos,Sessenta e quatro: anatomia de uma crise, Rio de Janeiro,IUPERJ/Vértice,1986; e Argelina Figueiredo,Democracia ou reformas? Alternativas democráticas à crise política ,SãoPaulo,PazeTerra,1992.Ambososautores,porcaminhosdiferentes,entendemogolpedeEstadode1964comofrutodacrisepolíticaqueseabateusobreogovernoJango,causandouma“paralisia decisória”, acirrada pela “radicalização dos atores”. Portanto, de umamaneira ou deoutra,aincapacidadedogovernoJangodesuperarosimpassespolíticoscriaramoclimapropícioparaumgolpedeEstado.

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11DarcyRibeiro,Jangoeeu,EditoraUnB/FundaçãoDarcyRibeiro,2010,p.81.12 Há certa polêmica na historiogra ia quanto à existência de umprojeto golpista prévio. Para osmilitaresgolpistaseparaamemórialiberalsobreogolpe,oprojetogolpistaouerainexistenteouirrelevanteparaexplicaraquedadeJango.Nestesentido,ogolpeévistocomoreativoàcrise,à“subversão”eàfaltadecomandopolíticoqueacirravaacrisepolíticaeeconômicadoBrasil.Ver,nesse sentido, Elio Gaspari, 2002a, op. cit., e Adriano Codato, “O golpe de 1964 e o regime de1968”,emRevistaHistória,Questões&Debates,40,2004,pp.11-36.

13MarceloRidenti,Brasilidaderevolucionária,SãoPaulo,EditoradaUnesp,2010.14MarceloRidenti,Embuscadopovobrasileiro,RiodeJaneiro,Record,2000.15 O texto completo do anteprojeto do Manifesto doCPC pode ser visto em Heloisa Buarque deHollanda,Impressõesdeviagem:CPC,vanguardaedesbunde,SãoPaulo,Brasiliense,1980.

16 Miliandre Garcia,Do teatro militante à música engajada: a experiência do CPC da UNE, São Paulo,FundaçãoPerseuAbramo,2007.Nesselivro,MiliandreGarciapropõeumaanálisehistóricamaiscomplexa e matizada da arte de esquerda e doCPC, enfatizando mais os impasses, a pesquisaestéticaeosdebatesinternosdoqueosvaloressupostamentedogmáticosdaquelemovimento.

17JalusaBarcellos,CPCdaUNE:umahistóriadepaixãoeconsciência,RiodeJaneiro,Minc,1994,p.97.18 Rogerio Duprat, “Em torno do ‘pronunciamento’”, em Revista de Arte de Vanguarda, ano 2, SãoPaulo,1963.

19GlauberRocha,“Estéticadafome(1965)”,emArteemRevista,1/1,SãoPaulo,Ceac/Kairós,1979,p.17.

20 Pedro Pomar,Democracia intolerante:Dutra, Adhemar e a repressão ao Partido Comunista (1946-1950),ArquivodoEstado/ImprensaOficial,2002.

21 A UniãoDemocráticaNacional era antigetulista desde a sua origem, frequentemente apelandopara intervençõesmilitares e golpes políticos para inviabilizar os governos identi icados com ogetulismo.Agregava,sobretudo,ovotoliberal-conservadordascamadasmédiasurbanas.

22JorgeFerreira,JoãoGoulart:umabiografia,RiodeJaneiro,CivilizaçãoBrasileira,2010.23 A imagem da “República sindicalista”, que no imaginário da direita era sinônimo de anarquiapolítica, caos econômico e manipulação de massas pelos líderes “populistas”, cristalizou-se aolongo dos anos 1950 nas críticas que a imprensa conservadora brasileira fazia do governo deJuan Domingos Peron (1943-1955). Ver Rodolpho Gautier Santos, “Um fantasma chamadoPeron: imprensa e imaginário político no Brasil (1951-1955)”, paper apresentado noXXVISimpósio Nacional de História, São Paulo, 2011 (disponível em:http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1308011800_ARQUIVO_TextoRodolpho-V.2.0.pdf,acessoem:16set.2013).

24Comoexemplodeste“denuncismo”,veraediçãodo CorreiodaManhãde16jun.1953,citadaemJorgeFerreira,op.cit.,p.80.

25JorgeFerreira,2010,op.cit.,p.133.26Idem,pp.137-8.27Idem,p.134.

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28MiltonCamposeraovicedeJango,enquantoHenriqueTeixeiraLotteracandidatoapresidentenachapaPSD-PTB.

29 APolíticaExterna Independente (PEI) sematerializou ainda durante o governo Jânio Quadros,expressando-se como uma nova posição da diplomacia brasileira no mundo, sobretudo emrelação aos países subdesenvolvidos e socialistas. Conforme esta nova doutrina, o Brasil nãodeveria se alinhar automaticamente na política ocidentalista e anticomunista conduzida pelosEstadosUnidos,mas,sim,ocuparnovosespaçosdageopolíticamundialcombasenoconceitodeautodeterminaçãodospovos,paraalémdadivisãobipolardaGuerraFria.OchancelerSanTiagoDantaseraconsideradoumdosrepresentantesdestacorrentediplomática.

30JorgeFerreira,2010,op.cit.,p.236;AmirLabaki,1986,op.cit.31JorgeFerreira,2010,op.cit.,p.242.32 Alzira A. Abreu, “A imprensa e seu papel na queda de João Goulart”, CPDOC/FGV (disponível em:http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/Jango/artigos/NaPresidenciaRepublica/A_imprensa_e_seu_papel_na_queda_de_Goulart,acessoem:24jun.2013).

33 Conformeos documentos “Declaraçãode princípios daUDN”, de fevereirode1962, e “CartadeBrasília”doPSD,demaiode1962.

34JorgeFerreira,2010,op.cit.,p.272.35 João Goulart (disponível em: http://www.gedm.ifcs.ufrj.br/upload/documentos/13.pdf, acessoem:17set.2013).

36ArgelinaFigueiredo,1992,op.cit.,pp.55-62.37 O principal embate no Congresso Camponês de 1961 deu-se entre a Ultab (União dosLavradoreseTrabalhadoresAgrícolasdoBrasil, ligadadoPCB)easLigasCamponesas.Enquantoo primeiro grupo defendia a ampliação dos direitos trabalhistas e o reconhecimento dasindicalização rural, as Ligas defendiam uma reforma agrária radical, em caráter de ruptura.Mesmo sem expressar essa radicalidade, o tema da reforma agrária deu o tom do documentoinal do encontro. Ver Luiz Flávio de Carvalho Costa (org.),O Congresso Nacional Camponês:trabalhadoresruraisnoprocessopolíticobrasileiro,RiodeJaneiro,Mauad/Edur,2010.

38HouvecincograndesconjuntosministeriaisduranteogovernoJango:set./61ajul./62;jul./62aset./62;set./62ajan./63;jan./63ajun./63.Primeiro,soboparlamentarismo,86%doMinistériofoirecrutadocombasenoCongresso(Senado,Câmara).OquintoeúltimoMinistério(jun./63aabr./64) contava apenas com 63% de congressistas. Apesar da diminuição, o recrutamento deministros dentro do Congresso revela os mecanismos de “presidencialismo de coalizão”, bemcomo a tentativa do Poder Executivo em manter portas abertas dentro do Legislativo. LuciaHipolito,De raposas a reformistas: o PSD e a experiência democrática brasileira (1945-64), Rio deJaneiro,PazeTerra,1985.

39DavidRicardoRibeiro,DacrisepolíticaaogolpedeEstado:oscon litosentreopoderexecutivoeopoder legislativo durante o governo João Goulart , dissertação de Mestrado em História Social,UniversidadedeSãoPaulo,2013.Nessadissertação,oautorexaminaopapeldoscongressistasedopróprioCongresso,comoinstituição,nocaminhoparaogolpedeEstado.

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40JorgeFerreira,“Aestratégiadoconfronto:aFrentedeMobilizaçãoPopular”,em RevistaBrasileiradeHistória,24/47,2004,pp.181-212.

41 JoséLuisSegattopropõeumainstiganterevisãoparaestecon litoentrereformaerevoluçãonointeriordoPCB,sugerindoque,naverdade,setratavadeumfalsodilema,postoqueaestratégiareformistaeraconsideradaaformadeconsolidarumapolíticarevolucionáriadelongoprazo,decaráter aliancista. José Luis Segatto,Reforma ou revolução: as vicissitudes políticas do PCB (1954-1964),RiodeJaneiro,CivilizaçãoBrasileira,1995.

42 Um acidente aéreo comum avião da Varig no Peru, em 1962, no qual viajava o correio o icialcubano, revelou o esquema de apoio cubano a ummovimento armado no Brasil, oMovimentoRevolucionárioTiradentes,braçodasLigasCamponesas.VerClodomirMoraiseDenisMoares,Aesquerdaeogolpede1964:vinteecincoanosdepoisasforçaspopularesrepensamseusmitos,sonhose ilusões, Rio de Janeiro, Espaço Tempo, 1989, p. 84; Elio Gaspari, 2002a, op. cit., p. 179. VertambémFlávioTavares,1999,op.cit.,pp.76-9.

43ArgelinaFigueiredo(1992,op.cit.,p.89)étaxativa:“ambas[asiniciativas]fracassaramporqueogovernofoiincapazdeobterumacordosobreasquestõessubstantivasqueelasenvolviam”.

44DavidRicardoS.Ribeiro,2013,op.cit.

OCARNAVALDASDIREITAS:OGOLPECIVIL-MILITAR

45 Sobre os detalhes das negociações em torno da reforma agrária no Congresso, ver David R. S.Ribeiro,2013,op.cit.,pp.127-51.

46 Pablo de Oliveira Mattos,Para onde vamos? Crise e democracia no governo João Goulart ,dissertaçãodeMestrado,HistóriaSocialdaCultura,PUC,RiodeJaneiro,2010,pp.82-5.

47 Jair Dantas Ribeiro (verbeteDicionário Histórico Biográ ico Brasileiro Pós-1930, DHBB/FGV-CPDOC(disponível em: http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/Jango/biogra ias/jair_dantas_ribeiro,acessoem:24jun.2013).

48JorgeFerreira,2010,op.cit.,pp.362-3.49RodrigoPattoS.Motta,Jangoeogolpede1964nacaricatura,RiodeJaneiro,JorgeZahar,2006,pp.45-6;JorgeFerreira,2010,op.cit.,p.364.

50JornaldoBrasil,13set.1963,p.6.51Sobrea“rededademocracia”verostrabalhosdeAloisioCarvalho,Rededademocracia:OGlobo,OJornal e o Jornal do Brasil na queda do governo Goulart (1961-64), Nitpress, Niterói, 2010; eEduardoGomesSilva,Arededademocraciaeogolpede64,dissertaçãodeMestradoemHistória,Universidade Federal Fluminense, 2008 (disponível em:http://www.historia.uff.br/stricto/teses/Dissert-2008_SILVA_Eduardo_Gomes-S, acesso em: 17set.2013).

52 Trata-se de duas pesquisas do Ibope feitas entre 9 e 26 de março de 1964, quando a crisepolítica era aguda e o golpe já estava no ar. A pesquisa do Ibope sobre a intenção de voto foirealizada em oito capitais e a pesquisa sobre a popularidade do presidente foi feita sob

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encomenda da Federação de Comércio de São Paulo, ouvindo a população de três cidades doestadodeSãoPaulo(capital,AraraquaraeAvaí).Sintomaticamente,nuncaforamdivulgadaspelaimprensa, e foram descobertas em 2003 no acervo do Arquivo Edgar Leuenroth, da Unicamp.Folha de S.Paulo , 9 mar. 2003 (disponível em:http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc0903200307.htm,acessoem:17set.2013).

53 A evasão de divisas tornou-se um grande problema econômico, pois o dé icit das transaçõescorrenteschegouaUS$2bilhões.Emcontrapartida,oapoio inanceirodeWashingtonminguavadeUS$74milhões(1962)paraUS$37milhões(1963).Apropostadaleieralimitararemessadas iliais para asmatrizes a 10%dos lucros.Mas o pomodadiscórdia, principalmente comosnorte-americanos, era que estes consideravam o reinvestimento como “capital estrangeiro”enquanto o governo insistia ser “capital nacional”, pois fora gerado em operações lucrativasdentrodomercadobrasileiro.Emoutraspalavras,asmultinacionais consideravamcomocapitalestrangeironãoapenaso investimentovindode fora,mas tambémoreinvestimentodos lucros.Essaseoutrasoperaçõescontábeis,tantolegaisquantoilegais,incrementavamasremessasparao exterior. Além disso, no caso de concessões públicas, como as companhias de força e luz outransportes,o capitalestrangeiro investia sempreabaixodasobrigaçõescontratuais.VerLuizA.MonizBandeira,OgovernoJoãoGoulart:as lutassociaisnoBrasil ,8. ed.,EditoradaUnesp,2010,pp.232-4.

54GolberydoCoutoSilva,“OBrasileadefesadoOcidente”,em Conjunturapolíticanacional:opoderexecutivoegeopolíticadoBrasil,3.ed.,Brasília,Ed.UnB,1981,pp.225-6.

55 Luiz A. Moniz Bandeira, 2010, op. cit., p. 174; Rene Dreifuss,1964: a conquista do estado,Petrópolis,Vozes,1981.

56Em1963,líderessindicaispaulistascriaramoMovimentoSindicalDemocrático(MSD),decaráteranticomunista, que teria sido inanciado pelo empresariado, pelo Ipes e pelaCIA. Ver VitorGianotti,Históriada lutados trabalhadoresdoBrasil,Riode Janeiro,EditoraMauad/NPC,2007,p.165.

57 Re iro-me, sobretudo, a uma parte doPSD que, no inal de 1963, começou a conspirar contra opresidente Goulart, a começar pelo presidente do CongressoNacional, senador Auro deMouraAndrade,queconvocouuma“vigíliacívica”norecessoparlamentar,disseminandoaideiadeumagolpedeEstadoqueestavasendopreparadoporJango,cujoprimeiropassoseriaofechamentodoCongresso.NasForçasArmadas,acrisedesetembrode1963e,posteriormente,arebeliãodosmarinheiros, em março de 1964, fez com que os conservadores ainda legalistas aderissem aogolpismo.

58LuizA.MonizBandeira,2010,op.cit.,pp.257-8.59DeclaraçãosobreapolíticadoPartidoComunistaBrasileiro,marçode1958,emPCB:vinteanosdepolítica,SãoPaulo,LivrariaEditoraCiênciasHumanas,1980,pp.3-27.

60 “O Pacto de Unidade e Ação foi uma organização intersindical de trabalhadores ferroviários,marítimos e portuários criado em1961durante o governo JoãoGoulart (1961-1964). Emboratenha pretendido uma ação em âmbito nacional, icou restrito basicamente ao Rio de Janeiro.Atuou, juntamente com outras organizações sindicais, na luta pelas reformas de base, na

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antecipaçãodoplebiscitonacionalquedecidiriasobreacontinuidadedoregimeparlamentaristano país ou o retorno ao presidencialismo, posição do presidente. Era considerado ilegal peloMinistério do Trabalho. Com o desencadeamento do movimento político-militar que depôs opresidente em 1964, foi extinto e teve seus principais líderes, Osvaldo Pacheco e RafaelMartinelli, presos” (conforme verbete doDossiê João Goulart, CPDOC/FGV, disponível em:http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/Jango/glossario/pua,acessoem:17set.2013).

61 As Ligas Camponesas tiveram sua origemno EngenhoGalileia, emVitória do Santo Antão (PE),comoumaespéciedesociedademutualistadecamponesesquetrabalhavamnaterrasemteremsuapropriedade.Em1955,elafoioficializadacomaajudadoadvogadoFranciscoJuliãoetornou-seoprincipalsímbolodelutapelareformaagráriaatéogolpede1964.

62 A formação dos “Grupos dos Onze” foi proposta em 1963 por Leonel Brizola, como células dedefesadasreformasedalegalidade,emcasodeumgolpedeEstadodadireita.Aomesmotempo,seriamosembriõesdeumamilíciapopular,organizadasemcélulasde11pessoaspreviamenteinstruídasparaaação.Chegou-seacogitaraexistênciademaisde5milcélulas,mas,defato,suaorganização e açãoprática revelaram-se incipientes e insu icientes para fazer frente àsmilíciasdedireitaqueseorganizavamdesdeoiníciode1963.Sobreessasmilíciasdedireita,verLuizA.MonizBandeira,2010,op.cit.,pp.253-5.

63Estaéuma tendênciaquevemcrescendo,mesmoentrehistoriadoresdeesquerda, como JorgeFerreira,DanielAarãoReisFilhoeRodrigoPattoSáMota.Seusartigose livrosrevisamatesedagrandeconspiraçãoinvencível,muitofortenahistoriografiadosanos1970e1980.

64DavidRicardoS.Ribeiro,2013,op.cit.,pp.175-86.65Idem,p.186.66Idem,p.187.67PanfletodoCGTtranscritoemSérgioAmadCosta,OCGTeaslutassindicaisbrasileiras(1960-64), SãoPaulo,EditoraGrêmioPolitécnico,1981,p.143.

68DiscursodeJoãoGoulart,Comíciode13demarçode1964,emDavidR.Ribeiro,2013,op.cit.,p.183.

69SobreaCamdeeaLimde,verJanainaM.Cordeiro,Direitasemmovimento:aCampanhadaMulherpela Democracia e a ditadura no Brasil, São Paulo, EditoraFGV, 2009. Para uma descrição maisdetalhada da marcha e do conteúdo dos discursos, ver Banco de Dados da Folha de S.Paulo(disponível em: http://almanaque.folha.uol.com.br/brasil_20mar1964.htm, acesso em: 17 set.2013).

70 InstruçãoreservadadogeneralHumbertodeAlencarCasteloBranco,chefedoestado-maiordoExército, em Octávio Ianni,O colapso do populismo no Brasil, 2. ed., Rio de Janeiro, CivilizaçãoBrasileira,1971,p.138.

71JosephPage,Arevoluçãoquenuncahouve,RiodeJaneiro,Record,1972.72TadSzulc,“NortheastBrazilPovertyBreedsThreatofaRevolt”,em TheNewYorkTimes , oct.,31,1960.

73LuizA.,MonizBandeira,2013,op.cit.;DarcyRibeiro,Golpeeexílio,Brasília,EditoraUnB/FundaçãoDarcyRibeiro,2010,p.27.

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74Paraumadescriçãodetalhadadesteseventosenvolvendoasmultinacionaisestadunidenses,verLuizA.M.Bandeira,2013,op.cit.,pp.221-4.

75Idem,pp.154-7e180-4.76CamiloTavares,ODiaqueDurou21Anos,2012,PequiFilmes,77min.77 Frank Márcio Oliveira,Attaché extraordinaire: Vernon Walters in Brazil , Washington,NDIC Press,2004,p.140.

78 Telegrama da Embaixada norte-americana no Brasil, 27 de março de 1964 (disponível em:http://www.gwu.edu/~nsarchiv/NSAEBB/NSAEBB118/bz02.pdf,acessoem:24jun.2013).

79A “OperaçãoBrotherSam”,negadaaprincípio, foi comprovadahistoriogra icamenteatravésdeuma fartadocumentaçãono livrodePhyllisParker, 1964:opapeldosEstadosUnidosnogolpedeEstado de 31 de março, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1977 (publicado no original em1975).

80OlimpioMourãoFilho,Averdadedeumrevolucionário,PortoAlegre,L&PM,1978,pp.361-96.81ElioGaspari,2002a,op.cit.p.69.Entreaspáginas66e125,háumadetalhadacrônicadogolpeesuasmovimentaçõesdebastidores.

82 Jorge Ferreira, 2010, pp. 472, 526.Dantas obteve a informaçãodiretamente deAfonsoArinos,aliadodeMagalhãesPinto,quematéaquelemomentosesupunhachefecivildomovimento.

83CláudioBojunga,JK:oartistadoimpossível,RiodeJaneiro,Objetiva,2010,p.820.84Aprimeira listadecassados,com102nomes,éanexaàpromulgaçãodoAtoInstitucional,em9deabrilde1964.

85ArgelinaFigueiredo,1992,op.cit.;JorgeFerreira,2004,op.cit.86 SebastiãoV. Cruz e Carlos EstevamMartins, “De Castelo a Figueiredo: uma incursão pela pré-históriadaabertura”,emMariaH.T.AlmeidaeBernardoSorj(orgs.), Sociedadeepolíticapós-64,SãoPaulo,Brasiliense,1984.

OMITODA“DITABRANDA”

87 “Limites a Chavez”. Folha de S.Paulo , Editorial, 17 fev. 2009 (disponível em:http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz1702200901.htm,acessoem:1jul.2013).

88ElioGaspari,2002a,op.cit.89LuisVianaFilho,OgovernoCasteloBranco,2.ed.,RiodeJaneiro,LivrariaJoséOlimpio,1975.90 Para uma análise das dinâmicas e do alcance dosIPM, principalmentena esfera intelectual, verRodrigo Czajka,Praticando delitos, formando opinião: intelectuais, comunismo e repressão (1958-1968),tesedeDoutoradoemSociologia,Unicamp,2009.

91 Neste sentido, ver o relatório “Camponeses mortos e desaparecidos: excluídos da justiça detransição”,coordenadoporGilneyVianacomopartedoprojeto“Direitoàmemóriaeàverdade”(SecretariadeDireitosHumanosdaPresidênciadaRepública).O estudomostraquemenosdametadedoscamponesesatingidospelarepressãoforamcontempladospelaComissãodeMortos

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eDesaparecidos,equemuitasvítimasnosetorruralnãotinhammilitânciapartidária.Alémdisso,fornece dados sobre a participação de milícias privadas e ex-agentes do Serviço Nacional deInformaçõesnamontagemdoesquemaderepressãoaoscamponeses,quadroqueseestendeuatéosanos1980.

92 Sobre a extrema direita militar no governo Castelo, ver Maud Chirio,A política nos quartéis:revoltas e protestos de o iciais à ditaduramilitar brasileira, Rio de Janeiro, Zahar, 2012. A autoradestaca a existência de duas ondas de “linha dura” nos quartéis, sendo que a primeira atuouentre1964e1967,sobretudo.

93ElioGaspari,2002a,op.cit.94MaudChirio,2012,op.cit.,pp.74-5.95 O rol das sanções incluía: aposentadoria; banimento; cassação de aposentadoria; cassação dedisponibilidade; cassação de mandato; con isco de bens; demissão; destituição de função;dispensa de função; disponibilidade; exclusão; exoneração; reforma; rescisão de contrato;suspensãodedireitospolíticos;transferênciaparaaReserva.

96 Paulo Afonso M. Oliveira,Atos Institucionais: sanções políticas, Brasília, Câmara dos Deputados,2000.

97 Ruth Leacock,Requiem for Revolution: The United States and Brazil (1961-1969) , Kent, The KentStateUniversityPress,1990.Aautorasustentaqueapartirde1969,pressionadospelaopiniãopública interna e descontentes com a guinada “ditatorial” e “nacionalista” do governo militar,sobretudopós-AI-5,osEUAseafastamdoregime.

98Lembremosqueem1968,sintomaticamente,ogovernobrasileironãoassinouoTratadodeNãoProliferaçãodeArmasNucleares,causandodescon iançadosEstadosUnidossobreas intençõesdeoBrasilpossuirartefatosnuclearesnofuturo.

99EduardoChammas,Aditaduramilitareagrande imprensa:oseditoriaisdo“JornaldoBrasil”edo“CorreiodaManhã”entre1964e1968,dissertaçãodeMestradoemHistóriaSocial,UniversidadedeSãoPaulo,SãoPaulo,2012,p.51.

100SebastiãoCruzeCarlosE.Martins,1984,op.cit.101 João Roberto Martins Filho, Opalácio e a caserna: a dinâmica militar das crises políticas naditadura (1964-1969), São Carlos, Editora UFSCar, 1994. Neste livro, o autor revisa o caráter“liberal”dogovernoCasteloeadicotomiaentre linhaduraemoderadosquecostumamarcaraanálisedapolíticadosmilitares,imputandoaosprimeirosaresponsabilidadesobreofechamentodoregime.Nestesentido,vale lembrarqueháumdebatesobreoefetivopapelda“linhadura”noregimemilitar,envolvendoseurealprotagonismopolítico,seautônomooumanipulado.AlfredStepanéumdosquelhereservamumprotagonismoativo,autônomoedecisivosobreoprocessopolítico, sobretudo nos anos 1970, como obstáculo à “liberalização”. Ver Alfred Stepan, Osmilitares:daaberturaàNovaRepública,4.ed.,PazeTerra,1986,p.39.

102Velhaslegendasliberais,comoSobralPintoeAlceuAmorosoLima,nãoderamseuapoiomoraleintelectualaoregimemilitarimplantadopelogolpe.

103EduardoChammas,2012,op.cit.104 Carlos Heitor Cony, O ato e o fato: o som e a fúria das crônicas contra o golpe de 1964, Rio de

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Janeiro,Objetiva,1994,(publicadooriginalmenteem1964).105Paraumavisãomaisaprofundada,verJosephComblin,Aideologiadesegurançanacional:opodermilitar na América Latina, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1978; Ananda Fernandes, “Areformulação da Doutrina de Segurança Nacional pela Escola Superior de Guerra no Brasil: ageopolíticadeGolberydoCoutoeSilva”,em Antíteses,2/4, jul./dez./2009,pp.831-56,Londrina(disponívelem:http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/antiteses,acessoem:16set.2013).

106 O acordo das organizações Globo como grupo estadunidense Time-Life foi irmado em1962,tornando-se uma questão pública em 1965, ano de inauguração da tv Globo, quando CarlosLacerda denunciou o acordo. Segundo ele, a Constituição proibia participação inanceira eadministrativadegruposestrangeirosemempresasdecomunicação.OcasogerouumaComissãoParlamentar de Inquérito, tornando-se bandeira dos nacionalistas e da oposição. Mesmoafirmandoquesetratavadeumacordodeassistênciatécnica,orelatóriodaCPIfoidesfavorávelàempresadeRobertoMarinho.Dadooimpactodocaso,oregimemilitarmodi icoualeiem1967,proibindoqualquerparticipaçãodegruposestrangeirosemempresasdecomunicaçãodoBrasil.

107EmNossoSéculo,volumeV(1960-1980),SãoPaulo,AbrilCultural,1980,p.129.108PauloMoreiraLeite,Amulherqueeraogeneraldacasa:históriasdaresistênciacivilàditadura,SãoPaulo,ArquipélagoEditorial,2012,pp.29-30.

109EmEdgarCarone,OPCB,vol.3,RiodeJaneiro,Difel,1982,p.26.110 Em setembro de 1967, foram expulsos nomes históricos do Partido, como Carlos Marighella,CâmaraFerreiraeApolôniodeCarvalho,alémdeJacobGorender,MiguelBaptistae JoverTeles.EssasexpulsõessetornaramosnúcleosdaALNedoPCBR.

111ConformeFlávioTavares(199,op.cit.),porvoltade1967,depoisdo iascodoCaparaó,Brizolajáabdicaradeapoiaralutaarmada.

112EduardoChammas,2012,op.cit.113ZuenirVentura,1968:oanoquenãoacabou,RiodeJaneiro,NovaFronteira,1998.114Ojornalquemais“aderiu”àcausaestudantilnocomeçode1968foioCorreiodaManhã,quesenotabilizavapelascríticasaoregime.VerEduardoChammas,2012,op.cit.

115Na ótica repressiva, temos comoexemplo a Lei Suplicy (1964) e oDecretonº 477 (1969), osquais estabeleciam restrições e sanções às atividades políticas dos estudantes (entidadesestudantis autônomas da estrutura administrativa, greves, propaganda ideológica etc.). Naperspectiva da reforma, temos a Lei de Reforma Universitária, em 1968 (Lei nº 5.540,23/11/1968), que consolidou a feição atual da universidade brasileira, criando osdepartamentos, o regime de créditos disciplinares e o vestibular classi icatório (que,formalmente, acabava com o problema dos “excedentes”, foco de agitação damassa estudantildesde o começo da década). O governo militar buscava uma administração mais “racional” ecentralizada da universidade, ao mesmo tempo que procurava despolitizar os cursos,aprofundando a especialização técnica entre professores e alunos. Em parte, tais medidas játinhamsidosugeridasnosrelatóriosdeRudolphAtcon,baseadonoacordoMEC-USAID(U.S.Agencyfor International Development) e no Relatório Meira Matos (abril/1968). Para mais detalhesdeste processo, verMaria de Lourdes de Albuquerque Fávero,Da universidade “modernizada” à

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universidadedisciplinada:AtconeMeiraMattos,SãoPaulo,Cortez,1991.116 O RelatórioMeiraMatos foi apresentado no começo de 1968, no contexto de acirramento docon lito entre estudantes e governo militar, Maria Ribeiro Valle,1968, o diálogo é a violência:movimentoestudantileditaduramilitarnoBrasil,Campinas,EditoraUnicamp,2008,p.288.

117Idem,p.289.118Idem,p.288.119 Após o AI-5, o governo tevemais instrumentos para cercar a vida política nas universidades.ComoDecreto-Leinº477,estudantesconsideradossubversivos icamproibidosdesematricularemqualquerescolasuperior.

120Paraumaanálisedacomposiçãosocialdosgruposguerrilheiros,verDanielA.Reis,Arevoluçãofaltou ao encontro , São Paulo, Brasiliense, 1990; e Marcelo Ridenti,O fantasma da revoluçãobrasileira,SãoPaulo,Ed.Unesp,1995.

121MariaRibeiroValle,1968,odiálogoéaviolência:movimentoestudantileditaduramilitarnoBrasil,op.cit.,pp.280-5.

122 Sergio Miceli, “O papel político dos meios de comunicação”, em S. Solsnowski (org.), Brasil: otrânsitodamemória,SãoPaulo,Edusp,1994,pp.41-68.

123Estadivisãoentremilitaresliberaiselinhas-duras,comaconsequenteresponsabilizaçãodestesúltimos pelo fechamento do regime, tem sido questionada pela historiogra iamais recente. VerJoãoRobertoMartinsFilho,1994,op.cit.

124 Ações da esquerda em1968 tornampública e notória a existência da guerrilha: atentado daVanguarda Popular Revolucionária (VPR) ao Quartel doII Exército, no qual morreu o recrutaMarioKoselFilho(junho),reconhecimentodaAçãoLibertadoraNacionalcomopatrocinadoradeassaltosabancos(novembro).

125OmaiorexemplodestetipodeliderançaeraJoséIbraim,ligadoàVPR.126Citadoemhttp://www.gedm.ifcs.ufrj.br/cronologia.php?ano=1968,acessoem:1ºjul.2013.127MárcioM.Alves,Torturaetorturados,EditoraIdadeNova,1966.128 A íntegra do discurso está disponível emhttp://www.fundacaomariocovas.org.br/mariocovas/pronunciamentos/ai-5, acesso em: 18 set.2013.

129 Ver registro sonoro, ilustrado por animação grá ica nosite especial daFolha de S.Paulo(disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/treinamento/hotsites/ai5/, acesso em: 18set.2013).

130 A expressão “terrorismo cultural” icou famosa já nos primeirosmeses após o golpe de 1964paradesignaraperseguiçãoaintelectuaiseocerceamentodaliberdadedeopinião.VerAlceuA.Lima, “O terrorismocultural”, em Revolução,reaçãooureforma ,Riode Janeiro,TempoBrasileiro,1964,pp.231-2.

131 Adriano Codato, “O golpe de 1964 e o regime de 1968”, emHistória, Questões e Debates, 40,Curitiba,UniversidadeFederaldoParaná,2004,pp.11-36.

132JoãoRobertoMartinsFilho,1994,op.cit.

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133 JoãoR.Martins Filho,Movimento estudantil e ditaduramilitar (1964-1968), Campinas, Papirus,1987.

NOENTANTOÉPRECISOCANTAR:ACULTURAENTRE1964E1968

134Neste sentido, ver o artigodeAlceuAmorosoLima e as crônicas deCarlosHeitorCony, textoscitadosaseguir,quecausaramfurorem1964.

135TatyanaA.Maia,Cardeaisdaculturanacional:oConselhoFederaldeCulturanaditaduracivil-militar(1967-1975),1.ed.,SãoPaulo:InstitutoItaúCultural/Iluminuras,2012,V.1,p.236.

136CaioNavarroToledo,Iseb:fábricadeideologias,2.ed.,Campinas,EditoradaUnicamp,1997.137MarcosNapolitano,Seguindoacanção:engajamentopolíticoeindústriaculturalnaMPB, SãoPaulo,Annablume/Fapesp,2001.

138RenatoOrtiz,Amodernatradiçãobrasileira,SãoPaulo,Brasiliense,1988.139M.Garcia,Ouvocêsmudam,ouacabam: teatroe censuranaditaduramilitar (1964-1985), tesedeDoutoradoemHistória,UFRJ,RiodeJaneiro,2008.

140 Beatriz Kushnir, Cães de guarda: jornalistas e censores do AI-5 à Constituição de 1988, Rio deJaneiro,Boitempo,2004.

141VanderliMariaSilva,Aconstruçãodapolíticaculturalnoregimemilitar,dissertaçãodeMestradoemSociologia,USP,SãoPaulo,2001.

142Em1980,maisde400músicasvetadas,parcialoutotalmente.MaikaL.Carocha,Pelosversosdascanções:umestudosobreofuncionamentodacensuramusicalduranteaditaduramilitar,dissertaçãodeMestradoemHistória,UFRJ,RiodeJaneiro,2007.

143 Sobre oCPC daUNE, verMiliandre Souza,Do teatromilitante àmúsica engajada: a experiência doCPC/UNE(1959/1964),SãoPaulo,FundaçãoPerseuAbramo,2007.

144 Marcos Napolitano,Coração civil: arte, resistência e lutas culturais durante o regime militarbrasileiro(1964-1980),tesedeLivreDocênciaemHistóriadoBrasil,USP,SãoPaulo,2011.

145R.Czajka,2009,op.cit.146 O crítico Roberto Schwarz, em um dos primeiros textos sobre o tema, apontou a culturaengajadacomoumaespéciede“ideiaforadolugar”,semolastrohistóricoquelhedavasentidoantes do golpe militar, e cada vez mais ligada às artes de espetáculo operadas num circuitorestritodeconsumocultural.RobertoSchwarz,“Culturaepolítica:1964-69”,emCulturaePolítica,RiodeJaneiro,PazeTerra,2001,pp.7-58.

147 Segundo alguns autores, depois do golpe militar, os intelectuais e artistas de esquerdaproduziram ideiaseobrasapenaspara suaprópria classe social,postoque jánão tinham laçosorgânicos com osmovimentos sociais e populares por conta da repressão a estes últimos. Estecircuito fechado teria ensejado uma revisão crítica das bases conceituais e formais queinformavam a cultura de esquerda: o que produzir? Para quem produzir? Como ocupar omercado?Asvanguardas,comooTropicalismo,seriamumarespostaradicalaestesimpasses.VerHeloisaBuarquedeHollanda,1980,op.cit.

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148Vistocinquentaanosdepois,comasvantagensdohistoriadorquejásabeoquesepassou,estaopção parece um erro tático do regime, pois reconheceu a incapacidade de construir umahegemoniaculturalnaclassemédiaescolarizada.Estaderrotanaáreacultural teria implicaçõesna perda da batalha da memória e na di iculdade de construir intelectuais orgânicos quedefendessemoregimecomalgumgrauderespeitabilidade juntoàclassemédia.Nãoporacaso,para voltar a ter alguma interlocução com essa classe, o regime teve que lançar um canto desereia para os artistas e intelectuais de oposição, através da Política Nacional de Cultura. Istoimplicava permitir espaços de expressão nem sempre bem-vistos pelo governo,mas úteis paracriar pontes com a classe média hostil. Heloisa Buarque de Hollanda e Celso Favarettoreconhecemestecircuitofechadodeconsumoculturaldeesquerda,masdestacamomovimentode construçãodeumaartede vanguardaque ampliará o sentidoda contestaçãopara alémdopolíticostricto sensu, do qual a Tropicália foi o exemplomais impactante.MarceloRidenti vê asmanifestações do ano de 1968 como o “epílogo da socialização da cultura” no Brasil, cujadinâmicafoisubstituídaporoutroprocesso,ode“massi icaçãocultural”dominadopelomercado,e pelo esvaziamento da função pública da experiência cultural e estética. Roberto Schwarz,“Culturaepolítica:1964-1969”,emOpaidefamíliaeoutrosestudos,SãoPaulo,PazeTerra,1978;CelsoFavaretto,Tropicália:alegoria,alegria,SãoPaulo,Ateliê,1995;MarceloRidenti,“Ensaiogeralde socialização da cultura: o epílogo tropicalista”, em Maria Luiza Carneiro (org.),Minoriassilenciadas:históriadacensuranoBrasil,SãoPaulo,Edusp/Fapesp,2002,pp.377-402.

149 Stanislaw Ponte Preta,Febeapá:O Festival deBesteira queAssola o País 1, 2 e 3 , Rio de Janeiro,Agir,2006.

150NelsonW.Sodré,“Oterrorismocultural”,emRevistaCivilizaçãoBrasileira,1,maio1965,pp.239-97.

151 Marcos Napolitano,Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB, SãoPaulo/Fapesp,2001.

152MarcosNapolitano,2001,op.cit.153HélioOiticica,Oaparecimentodosuprassensorialnaartebrasileira,1968emArteemRevista7,pp.41-2.

154HélioOiticica,CatálogodaExposiçãonaWhitechapelGallery,Londres,1969(traduçãonossa).155Programa-manifestoOReidaVela,GrupoOficina,set.1967.156Sobreocinemabrasileirodevanguardafeitoapósogolpemilitar,verIsmailXavier, Alegoriasdosubdesenvolvimento: cinema novo, tropicalismo e cinema marginal , São Paulo, Brasiliense, 1993.Xavier aponta as homologias entre os impasses ideológicos causados pelo processo demodernizaçãocapitalistaexcludenteeperiféricopós-1964eocinemabrasileiro.

157MarcosNapolitano,“OolhartropicalistasobreacidadedeSãoPaulo”,em VariaHistória,21/34,UFMG,BeloHorizonte,julho2005,pp.504-22.

158ArturFreitas,Artedeguerrilha:vanguarda,conceitualismonoBrasil,SãoPaulo,Edusp,2013.159 Bernardo Kucinski, Jornalistas e revolucionários: nos tempos da imprensa alternativa , São Paulo,ScrittaEditorial,1991.

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160ApudIvoLucchesi&G.Diaguez.Caetano,porquenão?Umaviagementreaauroraeasombra,p.274.

161ZuenirVentura,1988,op.cit.

“OMARTELODEMATARMOSCAS”:OSANOSDECHUMBO

162 A junta era formada pelo general Aurélio Lira Tavares, pelo almirante Augusto Rademaker epelobrigadeiroMarciodeSousaeMelo.

163 Conforme depoimento do jornalista Carlos Chagas, assessor de imprensa do Planalto, emRonaldodaCostaCouto,Memóriavivadoregimemilitar(Brasil,1964-1985),RiodeJaneiro,Record,1999,p.82.

164Idem,p.83.165Médicifoiescolhidopelovotodoso iciais-generaisdastrêsarmas,apartirdecritériosconfusosque,arigor,nãogarantiam isonomiadovoto individual.SeuprincipalcompetidoreraogeneralAlbuquerqueLima,bemmaiscarismáticoedefensordeumnacionalismoautoritário,inclusivenaeconomia.Ao imeaocabo,Médici foibemvotadonoExército(77votosem102registrados)eganhouporpequenamargemnaAeronáutica.NaMarinha,o impassefoimaioresóseresolveucomumavirtualrebeliãodocomandodosFuzileirosNavaisemfavordeMédici.OCongresso,emmais uma pantomima eleitoral, apenas rati icou o nome do general, com 293 votos contra 76abstenções.Paramaisdetalhes,verElioGaspari,Ditaduraescancarada,SãoPaulo,CompanhiadasLetras,2002b,pp.118-22.

166 JoséPedroMacarini, “PolíticaeconômicadogovernoMédici (1970-1973)”,emNovaEconomia,BeloHorizonte,15(3),pp.53-92,setembro-dezembrode2005,p.59.

167 “Discurso de posse”, Biblioteca da Presidência da República, p. 39 (disponível em:http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/sobre-a-biblioteca/biblioteca-da-presidencia-da-republica,acessoem:22set.2013).

168ElioGaspari,2002b,op.cit.,p.472.169 Fiuza Castro, em Maria Celina D’Araujo et al., Os anos de chumbo: a memória militar sobre arepressão,CPDOC/RelumeDumará,1994,p.76.

170“Resoluçãodemaio,1965”,emEdgarCarone,1982,op.cit.,pp.15-27.171 Jacob Gorender,Combate nas trevas: esquerda brasileira das ilusões perdidas à luta armada, SãoPaulo,Ática,1987.

172 Para uma trajetória de Carlos Marighella, ver a alentada e detalhada biogra ia de MárioMagalhães,Oguerrilheiroqueincendiouomundo,SãoPaulo,CompanhiadasLetras,2013.

173Emmarçode1970,houveosequestrodocônsul japonêsemSãoPaulo, trocadopor5presos;emjunhode1970,foisequestradooembaixadordaAlemanhanoRio,trocadopor40presos.Emdezembro1970,oembaixadorsuíçofoisequestradonoRio,trocadopor70presos.

174 O jornalO Estado de S.Paulo publicou reportagem sobre a guerrilha na edição de 24 desetembrode1972.

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175MarceloRidenti,1995,op.cit.176Idem,p.122.177Idem.178MarianaJof ily,“Quandoamelhordefesaéoataque:interrogatóriospolíticosdaObanedo DOI-Codi”,Antíteses, Londrina,V.2,n.4, jul./dez.de2009,pp.786.Paraumaanálisemaisampla,vertambémo livroda autoraNocentrodaengrenagem:os interrogatóriosnaOperaçãoBandeiranteenoDOIdeSãoPaulo(1969-1975),RiodeJaneiro,ArquivoNacional;SãoPaulo,Edusp,2013.

179MiliandreGarcia,“Ouvocêsmudamouacabam”: teatroecensuranaditaduramilitar(1964-1985),tesedeDoutoradoemHistória,UFRJ,2008.

180 Cecilia Heredia, “A censura musical no Brasil dos anos 1970”, relatório de IniciaçãoCientífica/Fapesp,SãoPaulo,2011.

181MaikaL.Carocha,2007,op.cit.182BeatrizKushnir,2004,op.cit.;MariaAparecidaAquino, Censura,imprensaeestadoautoritário:oexercíciocotidianodadominaçãoedaresistência,Bauru,Edusc,1999.

183Paraumpanoramasobreacensuraalivros(de icção)duranteaditadura,verSandraReimão,Repressão e resistência: censura a livros na ditaduramilitar, São Paulo, Edusp/Fapesp, 2011. VertambémoestudodecasodeEloisaAragão,Censuranaleienamarra:comoaditaduraquiscalarasnarrativas sobre a violência, São Paulo, Humanitas/Fapesp, 2013, centrado no livroEm câmaralenta,deRenatoTapajós,umadasprimeirasobrasanarraraexperiênciadatortura.

184CarlosFico,Comoelesagiam:OssubterrâneosdaDitaduraMilitar:espionagemepolíciapolítica,RiodeJaneiro,Record,2001,pp.95-8.

185VerdepoimentodeAdyrFiuzadeCastroemMariaC.D’Araujoetal.,1994,pp.35-80.186ConformegeneralRobertoFrançaDomingues,emRonaldoC.Couto,op.cit.,p.148.187Entrevistadoex-tenenteMarceloPaixãodeAraujo,emVeja,9dez.1998,nº1.576,pp.42-53.188 Flavio Tavares, op. cit., 1999, pp. 71-4. Nas suasmemórias, Tavares descreve os dois tipos deinterrogatório, de caráter propriamentemilitar, à base de torturas, e o jurídico, feito dentro deregrascivilizadasepolidas.

189DepoimentodeAdyrFiuzadeCastro,emMariaC.D’Araujoetal.,1994,op.cit.190Idem.191ConformeElioGaspari,GeiselteriaditoaogeneralDaleCoutinho:“Essenegóciodemataréumabarbaridade, mas tem que ser [...]”. Elio Gaspari, A ditadura derrotada, Companhia das Letras,2003,p.324.

192AdyrFiuzadeCastroemMariaC.D’Araujo,etal.,1994,op.cit.,p.68.193 O livro de Mariana Jof ily, 2009, op. cit., demonstra a racionalidade dos interrogatóriostranscritos e sua função no combate à guerrilha: descobrir contatos, conhecer a estrutura eproduzirprovasparaimputação.

194Conforme J.Teles,osdadosquantitativossãoosseguintes:50milpresosnosprimeirosmesesdo regime; 7.367 pessoas acusadas nos termos da Lei de Segurança Nacional (10.034inquiridos);130banidos;4.862cassados;6.592militarespunidos;388mortosedesaparecidos

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(426 se contadososquemorrerampor sequelasda torturano exterior);milharesde exilados.Aindadevemosconsiderarcentenasdeliderançascamponesasassassinadasemconflitospolíticoseagrários,sobasvistasdasautoridades,emilharesdeindígenasmortosporaçõesdoExércitonaAmazônia, conforme denúncia recente da imprensa. Ver Janaina Teles, “Entre o luto e amelancolia: a luta dos familiares demortos e desaparecidos políticos”, em JanainaTeles, EdsonTeleseCecíliaM.Santos,Desarquivandoaditadura:memóriaejustiçanoBrasil ,SãoPaulo,Hucitec,2009,p.152.

195EdnardoD’ÁvilaMello,comandantedo IIExército, foidemitidoporGeiselem1976,assumindoMiltonTavares,chefedo CIEnogovernoMédici.OPaláciopareciacontrolaroporão.Aindaassim,houvedenúnciade156casosdetortura,conformeElioGaspari,2003,op.cit.,p.492.

196Paraumare lexãosobreolugardatorturanoregimeeseussigni icadoshistóricos,verLucianoOliveira, “Ditaduramilitar, tortura, história”, em RevistaBrasileiradeCiênciasSociais, 26/75, fev.2011,pp.8-25.

197VerBernardoKucinski,K.,SãoPaulo,ExpressãoPopular,2012.Olivromistura icçãoerealidadeaonarraraangustiadabuscadeumpaipela ilha,desaparecidapolítica.AnarrativafoibaseadanocasodeAnaRosaKucinski,irmãdoautor,professorada USP,sequestradaemortapeloregime,e, para colorir aindamais o casode tons absurdos, demitida por abandonode empregodaUSP,comavaldaCongregaçãodaFaculdadedeQuímica.Trata-se,naminhaopinião,domelhor livrodenarrativaliteráriajáfeitosobreoregimemilitarbrasileiro.

198 Fernando Seliprandy, Imagens divergentes, “conciliação” histórica: memória, melodrama edocumentário nos ilmes “O que é isso, companheiro” e “Hércules 56”, dissertação deMestrado emHistóriaSocial,USP,2012.

199 Calcula-se que cerca de 120 pessoas foram mortas em ações armadas da esquerda, fora os“justiçamentos” de ex-membros de organizações. Os números não estão consolidados nemplenamente investigados e comprovados, sendo normalmente veiculados porsites de direita.Entre estes 57 eram agentes das diversas forças de segurança que atuavam na repressão, amaioriasoldadosdaPM.Opicodasmortesdessesagentesfoientre1969e1971,com17,12e10casos, respectivamente. Disponível em: http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/tag/mortos-pela-esquerda,acessoem:22set.2013.

200 Daniel Aarão Reis Filho,A revolução faltou ao encontro: os comunistas no Brasil , São Paulo,CNPq/Brasiliense,1990.

201BrunoPaesManso,Crescimentoequedadoshomicídiosem SPentre1960e2010:umaanálisedosmecanismos da escolha homicida e das carreiras no crime, tese de Doutorado em Sociologia,UniversidadedeSãoPaulo,2012.

202M.Joffily,2009,op.cit.203BrunoP.Manso,2012,op.cit.,p.104.204Idem.205 Pesquisa Veja/Marplan, divulgada na revistaVeja, 29 jul. 1970, p. 30, apontavaque60%dospaulistanosapoiavamoesquadrãodamorte.

206BrunoP.Manso,2012,op.cit.,p.126.

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207 Nos anos 1990, a cidade de São Paulo registrou média de 20 assassinatos por 100 milhabitantes, com alguns bairros periféricos chegando a 70/100 mil. Só a partir de 2001, osnúmeros começaram a baixar, chegando a cerca de 9/100 mil em 2011. O motivo da quedaainda é objeto de debate, mas, em linhas gerais apontam-se novas práticas de policiamentocomunitário associadas a ações culturais voltadas para jovens, ao lado de novas formas deorganizaçãodocrimequeevitavamdisputasdeganguesrivais.

208 SobreamentalidadedaPolíciaMilitarnaditadura,umbomexemploéohonestoe reveladordepoimentodeumex-policialemBrunoManso,2012,op.cit.,p.136.Nele,odepoentedizquesóouviudizerqueapolíciaestáaserviçodapopulaçãoapartirdaConstituiçãode1988.

209 Sobre o conceito de justiça transicional, ver Glenda Mezzaroba,O preço do esquecimento: asreparaçõespagasàsvítimasdoregimemilitar(umacomparaçãoentreBrasil,ArgentinaeChile), tesededoutoradoemSociologia,USP,SãoPaulo,2007,p.17.

NUNCAFOMOSTÃOFELIZES:OMILAGREECONÔMICOESEUSLIMITES

210Paraumaanálisedecoletâneadapolíticaeconômicadoregime,verMariaConceiçãoTavares,Dasubstituiçãode importações ao capitalismo inanceiro, Rio de Janeiro, Zahar, 1972; José Serra, “Omilagreeconômicobrasileiro:realidadeemito”, RevistaLatino-americanadeCiênciasSociais,nº3,1972;Alémdisso,recomendamosoinstiganteensaiodeFranciscoOliveira,Aeconomiabrasileira:crítica à razão dualista, Petrópolis, Vozes/Cebrap, 1981, publicado originalmente emEstudosCebrap (2),1972.Neste,oautorarticulaopadrãodedesenvolvimentoeexploraçãocapitalistasnoBrasilantesedepoisde1964.

211DadosdoIBGE.212 O Plano de Metas foi um conjunto de medidas lançadas no início do governo JuscelinoKubitschek para dinamizar o desenvolvimento brasileiro, concentrando recursos públicos nasáreasdeenergia, transportee infraestrutura,educaçãoealimentação.Os trêsprimeirosgruposde metas receberam cerca de 93% dos recursos. As medidas se completavam com a entradamaciça de capital e empresas estrangeiras nos setores mais lucrativos, de bens duráveis. AmetassínteseeraaconstruçãodeBrasília.OBrasilefetivamentecresceuduranteoquinquênio JK,mas as contradições socioeconômicas, a in lação e as disparidades regionais aumentaramsignificativamente.

213 O cientista político Rene Dreifuss analisou o papel destes grupos nos processos golpistas doperíodo.VerReneDreifuss,1964:aconquistadoEstado,Petrópolis,Vozes,1981.

214Em1979,ataxadedesempregofoide2,8%daPEA.Em1981,foide4,3%.Ain laçãosaltoude38%em1978para76%em1979.No começodosanos1980, emalguns setores sociais, comonas indústrias, o desemprego chegou a 20%. Ver Dinaldo Amorim, “O desemprego no Brasil apartir da década de 1970”,monogra ia do curso de Ciências Econômicas da UFSC, Florianópolis,2005(disponívelem:http://tcc.bu.ufsc.br/Economia295579,acessoem:23set.2013).

215Entre1979e1982, tudooquepodiadarerradoparaaseconomias capitalistasdependentes

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efetivamente deu. Primeiro, por conta da Revolução Iraniana e do colapso da produção nestepaís,omercadoglobaldepetróleosedesestabilizou,comaumentodepreços.Depois,osEstadosUnidos,para inanciarseudé icitpúblico,aumentaramos juros internosquechegaramaquase20% ao ano. As dívidas externas dos países devedores aosEUA, que tinham sido contratadas ajurosflutuantesduranteadécadade1970,explodiram.

216MárioH. SimonseneRobertoCampos,Anovaeconomiabrasileira, Rio de Janeiro, JoséOlimpio,1974,p.119.

217 Adriano Codato, “Processo decisório de política econômica da ditadura militar brasileira e opapel das forças armadas”, paper apresentadonaConferêncianoLaboratóriodeEstudos sobreMilitaresePolítica,UFRJ,RiodeJaneiro,2005.

218 Fernando Veloso, André Vilela e Fábio Giambiagi, “Determinantes do ‘milagre econômico’brasileiro:umaanáliseempírica”,em RevistaBrasileiradeEconomia,RiodeJaneiro,V.62,n.2,pp.221-46,abr./jun.2008,p.228.

219Situaçãoeconômicaquecombinaestagnaçãoeconômicacomin laçãoalta.Naverdade,noBrasileste quadro semesclou ao fenômeno da “in lação inercial” no qual amemória in lacionária (ain lação passada) era repassada ao mês seguinte alimentado por mecanismos de indexaçãoformais (previstos em contratos, ancorados em índices o iciais) ou informais. Trata-se de umain laçãoautoalimentada,quenãodependedomecanismodepreçostípicodomercadocapitalistadefinidopelojogoentreofertaeprocura.

220 O conceito de “ditadura civil-militar” surgiu entre os historiadores da Universidade FederalFluminense,DanielAarãoReisFilhoeDeniseRollemberg,quevêmdestacandoasbasessociaisdoregimeautoritárioeaamplaparticipaçãodecivisnogolpeenoregime.Otermoseconsagrouepassou a ser utilizado na imprensa, suscitando uma revisão da memória sobre o período ematizando o caráter puramente militar do regime, que pode mascarar suas conexões com otecidosocialcomoumtodo.

221 Exemplos destes órgãos colegiados: Conselho Monetário Nacional, 1964, ConselhoInterministerialdePreços,1968,ConselhodeDesenvolvimentoIndustrial,1969.

222AdrianoCodato,2005,op.cit.,p.8.223Nesteponto,nãoendossoavisãodeumaditaduracivil-militar,mesmoqueosquadrostécnicoscivis tenham sido fundamentais na burocracia de Estado, e que o grande empresariado e osbanqueirosnacionaise,sobretudo,estrangeirostenhamsidoosgrandesbene iciáriosdapolíticaeconômicadoregime.Defendoaideiadeumregimemilitar,poisocoraçãodoEstado,oeixodasdecisões políticas e osministérios estratégicos para a integração nacional (transportes, interior,comunicações)foram,fundamentalmente,ocupadospelosmilitaresinformadospelaDoutrinadeSegurançaNacional.Sobreestedebate,alémdeA.Codato,2005,op.cit.,vertambémJoãoRobertoMartins Filho, “Estado e regime no pós-64: autoritarismo burocrático ou ditaduramilitar?”, emRevistadeSociologiaePolítica,n.2,1994,pp.7-23.

224A.Codato,2005,op.cit.,p.6.225 JoséPedroMacarini, “Apolíticaeconômicadaditaduramilitarno limiardomilagrebrasileiro”,emTextosparaDiscussão,99,Unicamp,set.2000.

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226FernandoVeloso,AndréVilelaeFábioGiambiagi,2008,op.cit.227JoséPedroMacarini,2000,op.cit.,p.15.228 Em 1971, conforme pesquisa do Ibope, o governomilitar tinha 82% de aprovação. EmHélioSilva,Opodermilitar,PortoAlegre,L&PM,1984,p.467.

229SebastiãoV.CruzeCarlosEstevamMartins,1984,op.cit.,p.56.VertambémMariaLuciaViana,CMN:aadministraçãodomilagre,RiodeJaneiro,IUPERJ,1982.

230 A crise do petróleo, ou primeiro choque do petróleo, foi produzida pelo aumento de preçopropostopelaOpep,dominadaporpaísesárabescomoretaliaçãoaoapoioocidentala IsraelnaGuerradoYomKippur,em1973.Ospreçosaumentaramquase300%.

231MárioH. SimonseneRobertoCampos,Anovaeconomiabrasileira, Rio de Janeiro, JoséOlimpio,1974.Nestelivro,osautoresdoPaegdefendemseuprojeto.

232 Esta perspectiva foi sintetizada na frase “Deem-me o ano e não se preocupem comdécadas”,títulodeumartigodeDelfimNettonoJornaldoBrasil,31mar.1970.

233Os relatóriosdogovernoGeisel edoBancoMundial reconheceramamanipulaçãoque causouumadefasagemdequase100%noíndicedocustodevida.

234PaulSinger,“Omilagrebrasileiro:causaseconsequências”,em CadernoCebrap,nº6,SãoPaulo,1972.

235AanálisecríticadosefeitossociaisdocrescimentoeconômicoconcentracionistapodeservistanaobracoletivaSãoPaulo,1975:crescimentoepobreza,SãoPaulo,Loyola,1975.Ver tambémtabeladeconcentraçãoderenda.

236LucioKowarick,Aespoliaçãourbana,RiodeJaneiro,PazeTerra,1980.237Paraumaanálisegeraldapolíticasocialdoregimemilitar,verSoniaDraibe,“Políticassociaisdoregimemilitarbrasileiro,1964/1985”,emMariaCelinaD’Araujoetal.,1994,op.cit.pp.271-309.

238 Nicole R. Garcia, “Prorural: a criação da previdência social rural no governo Medici”, paperdisponível em: http://www.coc. iocruz.br/jornada/images/Anais_Eletronico/nicole_garcia.pdf,acessoem:23set.2013.

239 Celso Furtado,Análise do “modelo” brasileiro, 7. ed., Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1982.Destaco o seguinte trecho: “Em 1974 o volume ísico das importações aumentou em 33,5 porcento, enquanto o das exportações declinava em 1,4 por cento. O saldo negativo da conta-correntedabalançadepagamentosalcançou7porcentodoPIBnesseano”.

240 PedroC.FonsecaeSergioMonteiro, “Oestadoe suas razões:oIIPND”, em Revista de EconomiaPolítica,28/1(109),jan./mar.1997,pp.30-1.

241 Carlos Lessa.A estratégia de desenvolvimento 1974-1976: sonho e fracasso , Campinas, Unicamp,1998.

“APRIMAVERANOSDENTES”:AVIDACULTURALSOBOAI-5

242 Na trilha de Antonio Gramsci, entendo “nacional-popular” como um quadro de produçãoartístico-cultural que procura construir um idioma comum a várias classes sociais, mesclando

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elementos da cultura popular tradicional a elementos dos cânones universais, notadamente“ocidentais”daculturaletradaeerudita.Acrescente-seaissoelementosdaculturademassaquecircula no mercado. Portanto, “nacional-popular” não deve ser confundido com nacionalismoxenófobo, nem com imitação do material folclórico, nem com uma expressão necessariamenteconservadoraesimplista,parafacilitaracomunicaçãocomasmassas.VerA.Gramsci, Literaturaevidanacional,RiodeJaneiro,CivilizaçãoBrasileira,1968.

243JoãoRicardo/JoãoApolinário,Secos&Molhados,RiodeJaneiro,Philips,1973.244 Para uma visão inovadora da “contracultura” brasileira, ver Frederico Coelho,Eu, brasileiro,confessominhaculpaemeupecado: culturamarginalnoBrasildasdécadasde1960e1970, Rio deJaneiro, Civilização Brasileira, 2010. Neste trabalho, o autor reconstrói as bases da vanguardacontracultural brasileira e sua atuação no contexto cultural da “resistência” ao regime, dandoênfaseaduas igurasbasilares:TorquatoNetoeHélioOiticica.O livroprocuraanalisar tradiçãodaculturamarginalbrasileiraparaalémdoTropicalismo(musical)eparaalémdas in luênciasdacontraculturainternacional.

245RaulSeixas,“OurodeTolo”,Krig-há,bandolo!,RiodeJaneiro,Philips,1973.246 O conceito de “vazio cultural” surgiu em uma série de reportagens para a revistaVisão nocomeçodadécadade1970,escritasporZuenirVentura,logoreferendadopelacorrenteculturalligada ao nacional-popular e à esquerda comunista.Nesta linha de análise, a repressão políticasomada aos efeitos do “irracionalismo” contracultural teria inviabilizado, momentaneamente,umaproduçãoculturalhegemônicadebasesengajadasecríticas.

247 A Rede Globo de Televisão, uma das maiores corporações de cultura do mundo, foi aliadaestratégica do regime no seu projeto de modernização e integração nacional via comunicação.NemporissodeixoudeabrigarautoreseatoresligadosaoPartidoComunista,comoDiasGomes,OduvaldoVianaFilho,ArmandoCosta,entreoutros,emseunúcleodeteledramaturgia.

248 Marcos Napolitano, “O caso das patrulhas ideológicas na cena cultural brasileira do inal dosanos 1970”, em João Roberto Martins Filho (org.), O golpe de 64 e o regime militar: novasperspectivas,SãoCarlos,Edufscar,2006,pp.39-46.

249RevistaVip/Exame,119,março/95,pp.52-7.250Sobreosfestivaisdacanção,verMarcosNapolitano,2001,op.cit.;ZuzaHomemdeMello,Aeradosfestivais:umaparábola,SãoPaulo,Editora34,2004.

251SobreagravadoraSomLivreeolugardamúsicanaTVdosanos1970,verEduardoScoville,Nabarriga da baleia: a Rede Globo de televisão e a música popular brasileira na primeira metade dadécadade1970,tesedeDoutoradoemHistória,UniversidadeFederaldoParaná,2008.

252 Paulo Cesar Araujo,Eu não sou cachorro, não:música popular cafona e ditaduramilitar , Rio deJaneiro,Record,2002.

253 Nessa época, o “Rei” gravou algumas canções clássicas do seu repertório:Sua Estupidez, AsCurvas da Estrada de Santos ,Detalhes, entre outras, regravadas posteriormente por intérpretesrespeitados. Esta fase era bastante in luenciada pelablack music, sobretudo no padrão dosarranjosàbasedonaiperítmicodosmetais.

254 JoseMiguelWisnik, Ominuto e omilênio ou Por favor, professor, uma década de cada vez: anos

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70/músicapopular,RiodeJaneiro,Europa,1980;MarcosNapolitano,“Amúsicapopularbrasileiranosanosdechumbodoregimemilitar”,emMassimilianoSalaeRobertoIlliano,(orgs.),MusicandDictatorshipinEuropeandLatinAmerica,Turnhout(Belgica)-Lucca,BrepolsPublishers,2009,pp.641-71.

255 Marcos Napolitano, “MPB: a trilha sonora da abertura política”, em Estudos Avançados (USP.impresso),V.69,2010,pp.389-404.

256RafaelaLunardi,Embuscado“FalsoBrilhante”:performanceeprojetoautoralnatrajetóriadeElisRegina (Brasil, 165-1976), dissertação de Mestrado em História Social da Universidade de SãoPaulo,2011.

257ParaumadescriçãodetalhadadestepolêmicoepisódioenvolvendoEliseseusdesdobramentospolíticos e culturais, verRafaela Lunardi, “Mercado e engajamento na trajetóriamusical de ElisRegina”, paper apresentado noXX Encontro Regional de História,ANPUH-São Paulo, Franca, 2010,pp. 8-9 (disponível em:http://www.anpuhsp.org.br/SP/downloads/CD%20XX%20Encontro/PDF/Autores%20e%20Artigos/Rafaela%20Lunardi.pdf,acessoem:25set.2013).

258 Conforme Luciano Martins, a “geração AI-5 seria caracterizada pela disseminação do uso dadroga, pelo modismo psicanalítico e pela desarticulação do discurso racional e politizado, emnomedeuma ‘expansãodamente’eda liberdadedeação individual.Ade iniçãoépolêmica,eesteve no centro de um grande debate, entre aqueles que criticavam a contracultura jovem eaquelesqueatinhamcomoumcaminhoválidodecrítica”.LucianoMartins,“AgeraçãoAI-5:umensaiosobreautoritarismoealienação”,emEnsaiodeOpinião,SãoPaulo,V.2,1979,pp.72-103.

259JoãodasNeves,Oúltimocarro:antitragédiabrasileira,RiodeJaneiro,GrupoOpinião,1976.260 Miriam Hermetto,Gota d’água: um evento no campo artístico-intelectual brasileiro (1975-1980),tese de Doutorado emHistória, Universidade Federal deMinas Gerais, 2010. Neste trabalho, aautora aponta a peça como o centro de um projeto de frentismo cultural e político contra oregime,quereuniamembrosdoPCBedeoutrascorrentesdeesquerdanãocomunistas.

261SilviaFernandes,Gruposteatraisdosanos1970,Campinas,EditoraUnicamp,2000.262IsmailXavier,1993,op.cit.263AlcidesRamos,Ocanibalismodosfracos:cinemaehistóriadoBrasil,Bauru,Edusc,2002.264Paraumaanálisequedestacaahomologiadeste ilmecomasociedadedosanos1970apartirdeseusrecursosnarrativos,verIsmailXavier,“Oolhareavoz:anarraçãomultifocaldocinemaeascifrasdahistóriaemSãoBernardo”,em LiteraturaeSociedade,Dep.deTeoriaLiterária–USP,n.2,1997.

265 JoséMárioOrtizRamos,Cinema,estadoe lutasculturais:anos1950,60e70,RiodeJaneiro,PazeTerra,1987.

266TatyanaMaia,2012,op.cit.267MiliandreGarcia,“Contraacensura,pelacultura:aconstruçãodaunidadeteatralearesistênciaculturalàditaduramilitarnoBrasil”,emArtCultura,UFU,V.14,2012,pp.1-25.

268MiliandreGarcia,2008,op.cit.

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269 I. Simões,Roteiro da intolerância: a censura cinematográ ica noBrasil, São Paulo, Editora Senac,1998.

270MaikaL.Carocha,2007,op.cit.271 Sobre a cena literária nos anos 1970, ver Tania Pellegrini,Gavetas vazias: icção e política nosanos1970,Campinas,MercadodeLetras,1997;RenatoFranco,Itineráriopolíticodoromancepós-64: a festa, São Paulo, Editora Unesp, 1998; Jaime Ginzburg, “A ditadura militar e a literaturabrasileira: tragicidade, sinistro e impasse”, em Cecilia Macdowell Santos, Edson, 2009, op. cit.;Eloisa Maues,“Em Câmara Lenta”, de Renato Tapajós: a história do livro, experiência histórica darepressãoenarrativaliterária,dissertaçãodeMestradoemHistóriaSocial,FFLCH/USP,2008.

272WolneyMalafaia, ImagensdoBrasil:ocinemanovoeasmetamorfosesdaidentidadenacional , tesede Doutorado em História, Política e Bens Culturais, Fundação Getulio Vargas, Rio de janeiro,2012.

273MiliandreGarcia,“Políticasculturaisnoregimemilitar:agestãodeOrlandoMirandanoSNTeosparadoxos da hegemonia cultural de esquerda (1974-1979)”, em Marcos Napolitano, RodrigoCzajkaeRodrigoPattoSáMota(orgs.),Comunistasbrasileiros:culturapolíticaeproduçãocultural,BeloHorizonte,UFMG,2013.

274 Sobre a cena poética nos anos 1970, ver Armando Freitas Filho, “Poesia, vírgula viva”, emAdautoNovaes,Anos1970:aindasobatempestade,RiodeJaneiro,Aeroplano/EditoraSenac,2005,pp.161-205.Paraumavisãoaprofundadadastendênciaspoéticasbrasileirasduranteoregimeautoritário,verVivianaBosi,Poesiaemrisco:itineráriosapartirdosanos60,tesedeLivreDocênciaemLiteraturaBrasileira,USP,SãoPaulo,2011.

275Valelembrarquenaviradadadécadade1970paraadécadade1980haviaumaconsiderávelrede de produção musical alternativa, fora do esquema monopolista da indústria fonográ icabrasileira:os selosKuarup(RJ),Artezanal (RJ), LiraPaulistanae SomdaGente (SP), Bemol (MG),entreoutros,tiveramumimportantepapelnadisseminaçãodamúsicaforadosgrandescircuitoscomerciais, assimcomoos teatrosLiraPaulistanaeSesc-Pompeia,queno começodadécadade1980 foramverdadeiros templosdamúsica (edomovimento) independente e alternativaquemarcouosanos inaisdaditadura.Sobreacenaindependentepaulista,verSeanStroud,“Músicapopular brasileira experimental: Itamar Assumpção, a vanguarda paulista e a tropicália”, emRevistaUSP,87,set./nov.2010,pp.86-97.

LETRASEMREBELDIA:INTELECTUAIS,JORNALISTASEESCRITORESDEOPOSIÇÃO

276 Tatyana de Amaral Maia,A construção da memória em tempos autoritários: a experiência doConselhoFederaldeCultura (1966-1975), tese deDoutorado emHistória,UniversidadedoEstadodo Rio de Janeiro, 2006. O exame de alguns nomes que passaram pelo Conselho Federal deCultura pode servir de base para uma análise de per il da intelectualidade conservadora pró-regime, ainda relativamente pouco estudada. Citamos alguns: Gustavo Corção, Pedro Calmon,Gilberto Freyre, João Guimarães Rosa, Raquel de Queiroz, Helio Vianna, Ariano Suassuna, JosuéMontello(primeiropresidente).TatyanaMaiaapontademaneiraargutaqueonúcleodoCFC era

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formadopelossetoresmodernistasconservadores,atuantesjuntoaoEstadodesdeosanos1930.Poroutrolado,aprogressivamarginalizaçãodessesintelectuaisnaprópriaburocraciafederaldaculturaemmeadosdosanos1970é sintomáticadeumacon iguraçãohistórica completamentediferentedosetorculturalduranteoregime.

277AlceuA.Lima,Revolução,reaçãooureforma ,2.ed.Petrópolis,Vozes,1999.originalpublicadoem1964.

278ConformeRodrigoCzajka:“Acrônica‘terrorismocultural’serviudeelodeligaçãoentrediversascamadas intelectuais com o meio acadêmico e universitário, que se via em processo dedegradação pela ação dos militares”. Rodrigo Czajka, Praticando delitos, formando opinião:intelectuais, comunismo e repressão (1958-1968), tese de Doutorado em Sociologia, Unicamp,2009,p.217.

279AlceuA.Lima,1999,op.cit.,pp.231-2.280CarlosHeitorCony,Oatoeofato:osomeafúriadascrônicascontraogolpede1964,op.cit.281 Emoutra crônica, reitera sua posição anti-Goulart: “Firmominha posição: votei embranco noplebiscito sobre o parlamentarismo. Não poderia votar contra a investidura de um vice-presidente, eleito em regimepresidencialista, nomandatoqueopovo lhe con iara [...].Masnãopoderia votar a favor do Sr. JoãoGoulart, homemcompletamentedespreparadopara qualquercargo público, fraco, pusilânime e, sobretudo, passando os extensos limites do analfabetismo”.CarlosH.Cony,“OMedoearesponsabilidade”,2003,op.cit.,p.23.

282CarlosH.Cony,“Osangueeapalhaçada”,em2003,op.cit.,p.22.283C.H.Cony,2003,op.cit.,p.25.284Idem,p.41.285CarlosH.Cony,“Ahoradosintelectuais”,em2003,op.cit.,pp.89-90.286SobrearelaçãodosintelectuaiscomoEstado,verDanielPecaut,IntelectuaisepolíticanoBrasil:entre o povo e a nação , São Paulo, Ática, 1990; Carlos Guilherme Mota,Ideologia da culturabrasileira(1933-1974),SãoPaulo,Ática,1990.

287 “Manifesto nacional pela democracia e o desenvolvimento” (Manifesto à nação defende aliberdade),emCorreiodaManhã,14mar.1965.

288NelsonW.Sodre, “Oterrorismocultural”,em RevistaCivilizaçãoBrasileira,1,maiode1965,pp.239-97.

289 Sobre a revista, ver R. Czajka,Páginas de resistência: intelectuais e cultura na Revista CivilizaçãoBrasileira(1965-1968),dissertaçãodeMestradoemSociologia,Unicamp,2005;eOziasPaesNeves,Revista Civilização Brasileira: uma cultura de esquerda (1965-1968), dissertação de Mestrado emHistória,UniversidadeFederaldoParaná,2006.

290NelsonW.Sodré,1965,op.cit.,p.240.291Idem,p.247.292 “Resolução política doCC doPCB (maio de 1965)”, em E. Carone, 1982, op. cit., pp. 15-26. Ostermos da resistência de inidos peloPCB, e con irmados noVI Congresso do Partido, em 1967,acabaramporestimularasdissidênciasinternas,fazendocomqueaquelesquedefendiamaluta

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armada rompessem com o Partido. Ver também Hamilton Lima,O ocaso do comunismodemocrático:o PCB na última ilegalidade, dissertação de Mestrado em Ciência Política, Unicamp,1995.

293“ResoluçãopolíticadoComitêCentraldoPCB(maiode1965)”,emE.Carone,1982,op.cit.,p.16.294 Ver o depoimento de Antonio Callado sobre o episódio emMarcelo Ridenti, 2000, op. cit., pp.123-4.

295EmMarceloRidenti,2000,op.cit.,p.122.296ExércitoBrasileiro,IPM709,BibliotecadoExército,1967,p.233.297MarceloRidenti, combases nos processos da justiçamilitar, calcula que57,8%dosmembrosdas organizações armadas de esquerda no período do regime militar eram formados porcamadas intelectualizadas (professores,artistas,estudantesuniversitários,pro issionaisdenívelsuperior), com algumas pequenas variações conforme o agrupamento. Marcelo Ridenti,Ofantasmadarevoluçãobrasileira,SãoPaulo,2.ed.,EditoraUnesp,2010,p.61.

298NocasodoBrasil,oexílioesteve ligadoouàmilitância intelectualemgruposclandestinosouasaídas táticas de cena ligadas às oportunidades de trabalho no exterior que se abriam aosaposentadosecassados.Noexterior, lorescerammuitosgruposde intelectuaispartidarizadosemuitos periódicos que foram veículos de um restrito porém intenso debate. Ver DeniseRollemberg,Exílios:entreraízeseradares,RiodeJaneiro,Record,1999.Noexíliofrancêseitaliano,por exemplo, surgirá um importante núcleo intelectual do Partido Comunista Brasileiro,identi icadocomochamado“Eurocomunismo”quedefendiaapluralidadeeleitoralecriticavaachamada “ditaduradoproletariado”domodelosoviético.Estenúcleoera formadoporArmênioGuedes, Carlos Nelson Coutinho, Leandro Konder, entre outros. Sobre o exílio comunista e aformação desta corrente, Ver Sandro Vaia, Armênio Guedes: o sereno guerreiro da liberdade, SãoPaulo, Barcarola, 2013; e Luiz Hildebrando,Crônicas de nossa épocamemórias de um cientistaengajado,SãoPaulo,PazeTerra,2001.

299MiltonLahuerta,“Intelectuaiseresistênciademocrática.Vidaacadêmica,marxismoepolíticanoBrasil”, em Cadernos AEL, 14/15, Campinas, 2001, pp. 53-96; R. R. Boschi, “Entre a cruz e acaldeira: classes médias e política na terra da transição, em S. Laranjeira (org.),Classes emovimentossociaisnaAméricaLatina,SãoPaulo,Hucitec,1990,pp.158-75.

300MiltonLahuerta,2001,op.cit.,p.64.301SergioMiceli,“Opapelpolíticodosmeiosdecomunicação”,emSaulSosnowskieJorgeSchwarz(orgs.),Otrânsitodamemória,SãoPaulo,Edusp,1994,pp.41-68.

302 O Iseb foi um grande centro de pensamento nacionalista criado em 1955 e fechado pelosmilitares em 1964. Reunia várias correntes ideológicas (nacionalistas, liberais, socialistas,comunistas) que tinham em comuma formulação de valores e estratégias desenvolvimentistasproduzindo ideiascríticassobrea faltade“autenticidade”culturalnoBrasilea “alienação”dasmassas.Tratava-sedeumórgãodeEstado,vinculadoaoMEC, síntesedacrençaquevinhadesdeos anos 1930de que o intelectual deveria ser sócio das elites políticas na superação do atrasobrasileiro,semabrirmãodeumpensamentoautônomoecrítico.Ogolpemilitarinviabilizouestaparceria, pois o tema do nacional-desenvolvimentismo icou ligado à esquerda derrotada em

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1964.VerCaioNavarroToledo,Iseb:fábricadeideologias,Campinas,EditoraUnicamp,1998.303 Paraumavisãodetalhada sobre as correntes acadêmicas (e ideológicas) que se formaramnointerior da Faculdade de Filoso ia Letras e Ciências Humanas daUSP, com grandes implicaçõespara os desdobramentos do “partido intelectual” durante o regime, ver Lidiane Soares,AproduçãosocialdomarxismouniversitárioemSãoPaulo:mestres,discípuloseum“seminário”(1958-1978),tesedeDoutoradoemHistóriaSocial,UniversidadedeSãoPaulo,2011.SobreoCebrapvero livro organizadoporPaulaMontero e FlavioMoura,RetratodeGrupo, Cosac Naify, 2009, bemcomo o documentário homônimo de Henri Gervaiseau que acompanha o livro. Sobre asdiferenças entre o Cebrap e o Cedec, ver Ana Paula Moreira Araujo,Pensando a intelligentsianacional:oCebrapeoCedecnanovainterpretaçãosobreoBrasil,paperapresentadonoIIISeminárioNacional de Sociologia e Política, Curitiba, 2010 (disponível em:http://www.seminariosociologiapolitica.ufpr.br/anais/GT07/Anna%20Paula%20Moreira%20de%20Araujo.pdf,acessoem:27set.2013).OCebrap,órgãoquereuniaintelectuaisdeorigemuspiana,destacou-sepela revisão das teses sobre o estagnacionismo e o dualismo arcaico-moderno na sociedade,afastando-sedas teorias clássicasdas esquerdas sobreoBrasil. A questão era saber comoumaelite conservadora tinha modernizado o país. Além disso, foi marcado pela a irmação dointelectual como “vozes” nãomais do Estado,mas da sociedade.O Cedec, criado em1976, deumaisprimaziaaosocialeàsclassescomosujeitoshistóricos.

304MiriamHermeto,“Olhaagotaquefalta”:umeventonocampoartístico-intelectualbrasileiro(1975-1980),tesedeDoutoradoemHistória,UFMG,BeloHorizonte,2010.

305AntesmesmodeasdissidênciasdoPartidoComunistaBrasileiroiremàsarmas,osex-militaresnacionalistas inspirados pelo trabalhismo brizolista lançaram a chamada à luta armada, em1965/66.A guerrilhadoCaparaó foi seu “balãode ensaio”, estouradopela repressão antesdealçarqualquervoo.

306PauloFrancis,“AtravessiadeCony”,emRevistaCivilizaçãoBrasileira,13,1967,pp.179-83.307Idem,p.183.308 FerreiraGullar, “Quarup ou ensaio de deseducação para brasileiro virar gente”, em Revista deCivilizaçãoBrasileira,15,1967,pp.251-8.

309Pessach: a travessia , desde sua primeira edição em 1967, esteve no centro de uma polêmicaenvolvendoConyealgunsintelectuaisqueformavamo“ComitêCultural”doPartidoComunistaBrasileironoRiodeJaneiro,comoFerreiraGullareLeandroKonder(autordaorelhadaprimeiraedição).ConyacusouosmembrosdoComitêde terem tentadoboicotaro livroeoautor, tendoemvistaqueambosnãoseguiamacartilhadoPCB.Kondernegoutal “censura”,dizendoapenasqueConydigeriramalascríticasepolêmicasemtornodesuasposiçõespolíticaseliterárias.ConyreiterousuacríticaaoscomunistasanosdepoisnojornalOGlobo(27mar.1997),porocasiãoda3ª edição dePessach. Para mais detalhes sobre este episódio, ver Beatriz Kushnir, “Depor asarmas: a travessia deCony e a censuranoPartidão”, emDanielA. Reis Filho (org.), Intelectuais,históriaepolítica,RiodeJaneiro,7Letras,2000,pp.219-46.

310 Eloisa Maues,“Em câmara lenta”, de Renato Tapajós: a história do livro, experiência histórica darepressão e narrativa literária, dissertação de Mestrado em História Social,FFLCH/USP, 2008,

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publicadoemformadelivrosobonomeCensuranaleiounamarra:comoaditaduraquiscalarasnarrativas sobre suas violências , Humanitas/Fapesp, 2013; Renato Franco,Itinerário político doromancepós-64:“Afesta”,SãoPaulo,EditoraUnesp,1998.

311Paraumbalançocríticomaisamplodopapelda literaturaduranteoregimemilitar,ver JaimeGinzburg,“Aditaduramilitarea literaturabrasileira:tragicidade,sinistroeimpasse”,emCeciliaMacdowellSantos,EdsonTeleseJanainadeAlmeidaTeles(orgs.),op.cit.,2009,pp.557-68.Parauma análise da expressão literária crítica ao regime emautores que se a irmaramno inal dosanos 1970 e ao longo dos anos 1980, ver Jaime Ginzburg, “Memória da ditadura em CaioFernandoAbreueLuisFernandoVerissimo”,emLetteratured’America,V.113,2008,pp.95-110.

312Nesteponto,deixamosde ladoocampodapoesia,queparecenãoseenquadrarnesteaxiomade criação literária.Movimentos como Poesia Jovem, na primeirametade dos anos 1970, estãomais próximos de uma poética de vanguarda contracultural, apontando para uma revisão daconsciência de mundo pelo mergulho na fragmentação da linguagem como possibilidade deexpressãoourepresentaçãodorealedosujeito.

313 Neste ponto, destaco a importância dos debates que envolveram a crítica literária nos anos1970,equeproduziram importantesrevisõesanalíticasdahistóriadoBrasilapartirdoestudodo material e da consciência literária propiciada pela prosa e pela poesia. Desde os textosclássicosdeAntonioCandido, “Dialéticadamalandragem”e “Literaturae subdesenvolvimento”,passandopelotambémclássico“Asideiasforadolugar”,deRobertoSchwarz,ou Osereotempona poesia de Alfredo Bosi, a crítica literária acadêmica protagonizou um debate intenso einovador,revisandotemasligadosaosconflitossociais,aonacionalismo,aolugardoliberalismonoBrasil, à subjetividade do fato literário e sua importância para a resistência contra oautoritarismo. A crítica carioca, com destaque para Heloisa Buarque de Hollanda e SilvianoSantiago, por sua vez, dedicou-se particularmente à re lexão sobre a literatura alternativa e àpoesiajovem,valorizandocriaçõesligadasàsvanguardasliteráriasdosanos1960.

314Doisartigosdeépocasãosintomáticosdestedebate,reveladoresdastensõesdomeiointelectualdeoposição:M.Alves, “Aesquerda festiva”, em CorreiodaManhã,1º jul.1965;PauloFrancis, “Acrisedasesquerdas”,emReunião,20out.1965.

315 Exemplar desta perspectiva heroica é o livro de Jefferson Andrade,Um jornal assassinado: aúltimabatalhado“CorreiodaManhã”,JoséOlimpio,1991.VertambémAlbertoDinesetal.,Os idosdemarçoeaquedaemabril,RiodeJaneiro,J.Alvaro,1964.Nestaprecocecrônicadogolpemilitar,já se aponta para um revisionismo da atuação golpista da imprensa, mudando o foco para acríticaaoarbítriodoregime.Aoqueparece,os jornais liberaiseos jornalistasmais identi icadoscom esta variável esperavam, sinceramente, uma “intervenção rápida e saneadora” contra ogovernoJango.Quandoosmilitaresnopoderdeixaramclaroaquevieram,os liberais iniciaramseuafastamentocrítico,aindaquesempremoderado,aproximando-seemmuitosmomentosdacríticadaesquerdaderrotada.

316 Neste quesito, destaco as coleções de bolso da Editora, de caráter formativo, como “Tudo éHistória”e“PrimeirosPassos”,verdadeirasfebreseditoriaisnosanos1980,bemcomoacoleçãode romances e poesia direcionada aos jovens, como “Encanto Radical” e “Cantadas Literárias”.

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Semfalar,também,noimportantecatálogoacadêmicodaBrasiliense,quedeuvazãoàspesquisasdeciênciashumanasproduzidasnosprogramasdepós-graduação.

317VerR.Czajka,Páginasderesistência:intelectuaiseculturana“RevistaCivilizaçãoBrasileira” (1965-1968), dissertação de Mestrado em Sociologia, Unicamp, 2005; e Ozias Paes Neves,“RevistaCivilizaçãoBrasileira”:umaculturadeesquerda (1965-1968),dissertaçãodeMestradoemHistória,UniversidadeFederaldoParaná,2006.

318VerM.Ridenti,2000,op.cit.,p.133.319JosédeSouzaMartins,Asociologiacomoaventura:memórias ,SãoPaulo,Contexto,2013,p.42e65.

320 Bernardo Kucinsky, Jornalistase revolucionários:nos temposda imprensaalternativa , São Paulo,Edusp,2001.

321ElianaCaruso(org.),PifPaf,ediçãocompletafac-similar,Brasília,Argumento,2005.322MariaAparecidaAquino,1999,op.cit.323CarlosAzevedo,“JornalMovimento”:umareportagem,1.ed.,BeloHorizonte,Manifesto,2011.324BernardoKucinski,2001,op.cit.

“ADEMOCRACIARELATIVA”:OSANOSGEISEL

325ElioGaspari,2002a,op.cit.,p.35.326FolhadeS.Paulo,13set.1996,capa.327Veja,nº1.462,18set.1996,p.41.328MarcosSáCorreia,emVeja,nº1.462,18set.1996,p.42.329Idem,p.44.330ThomasSkidmore,emFolhadeS.Paulo,13set.1996,p.6.331 Thomas Skidmore é claro neste sentido: “Um estudo detalhado da ação governamentalbrasileiradesde1974nãopodelevarsenãoàconclusãodequeGeiseleGolberyeoso iciaisqueosapoiavamagiramapartirda crençapessoaldequeoBrasil deveriamudarparaumregimemais democrático. A questão de como continuar este trabalho após 1981 foi deixada paraFigueiredoeumanovageraçãodeo iciaisdoExército”(T.Skidmore,“Alentaviabrasileiraparaademocratização”, em Alfred Stepan (org.), Democratizando o Brasil, Rio de Janeiro, Paz e Terra,1988,p.70).Oproblemadestaa irmaçãoémenosacorretacaptaçãodoresultadodapolíticadeGeisel e mais a leitura desse resultado a partir das intenções inequívocas dos militares emdemocratizaroBrasil.Alémdisso,trata-sederevisaroquesigni icava“democratizar”oBrasilnaótica do regime, imagem que frequentemente se confundia com a construção de basesinstitucionaisestáveise tuteladas,comparticipaçãopolíticarestritaaalgunsatores.Éestavisãoumtantolinearecausalentreintenção,estratégiaeresultadoquedeveserrevisada.

332Entreestesdestacamosoin luentemanualhistoriográ icosobreoregimedeThomasSkidmore,Brasil:deCasteloaTancredo,RiodeJaneiro,PazeTerra,1988.Maisrecentemente(2002a2004)a alentada coleção escrita por Elio Gaspari sobre o regime, em 4 volumes, centrada na dupla

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GeiseleGolbery,reforçaestamemóriahistórica.333Nesteponto, lembro a interessante equaçãopropostapelo cientista políticoAdrianoCodato: apressão popular não determinou a forma de transição, mas o seu ritmo. Ver Adriano Codato,2005,op.cit.,pp.83-106.

334AlfredStepan,emseuestudosobreaabertura,citaumaentrevistaqueErnestoGeisellhedeu,naquala irmaclaramenteque,no iníciodoseugoverno,nãopretendiaacabarcomoAI-5nempermitir a hegemonia da oposição do processo de transição. Por outro lado, rea irma o fato deque, mesmo tendo uma perspectiva de que era preciso preparar uma retirada organizada doExército, “como instituição”, do poder de Estado, não tinha uma agenda pré- ixada. Estasdeclarações são importantes para reiterarmos o papel que a pressão social (o que incluir osprotestosderuaapartirde1977)exerceusobrea“abertura”.A.Stepan,1986,op.cit.,pp.46-7.

335MarcosNapolitano,CulturaepodernoBrasilrepublicano,Curitiba,Juruá,2002.336VicentePalermoeMarcosNovaro,AditaduramilitarnaArgentina,SãoPaulo,Edusp,2007.337 Em 24 de agosto de 1972, surgiu um boato de que o jornal publicaria ummanifestomilitarapoiando a candidatura do general Geisel à Presidência. O governo considerou que a boatariainterferia e perturbava o processo sucessório e instalou censores no jornal que icaram atéjaneirode1975.Nesteperíodo, 1.136 textos foramproibidos, o que levouo jornal a ocuparosespaçosdasnotíciascompoemas, receitasculináriasepeçaspublicitáriascarregadasde ironias.VerMariaAparecidaAquino,op.cit.,1999.

338JarbasPassarinho,“FoiMédiciqueaoderrotaraguerrilhadeesquerdaproporcionouoiníciodaaberturapolítica”,FolhadeS.Paulo,13set.1996,p.5.

339Opinião,63,21jan.1974,p.3.340JoséA.Argolo,KatiaRibeiroeLuizAlbertoM.Fortunato,AdireitaexplosivanoBrasil:ahistóriadogrupo secreto que aterrorizou o país com suas ações, atentados e conspirações, Rio de Janeiro,Mauad,1996,pp.221-2.

341 José Antonio B. Cheibub eMarcus F. Figueiredo, “A abertura política de 1973 a 1981: quemdisseoquê,quando: inventáriodeumdebate, emBIB,Riode Janeiro,nº14,2º sem./1982,pp.29-61.

342Nascidodarevoluçãopopularde1910,omodelopolíticomexicano tornou-seenrijecidocomotempo, sacramentado pela hegemonia absoluta do Partido Revolucionário Institucional (PRI),herdeiro do Partido da RevoluçãoMexicana, que reuniu a nova elite do país, tendo como eixodoutrinárioaConstituiçãode1917.FraudeseleitoraiseclientelismomantiveramoPRInopoderpordécadas,tornandoopaís,paramuitosautores,umregimeautoritário.

343AntonioRagoFilho,OsensinamentosdeSamuelHuntingtonparaoprocessodeautorreformadaautocraciaburguesabonapartista.XIXEncontroRegionaldeHistória,ANPUH,2008,(disponívelem:http://www.anpuhsp.org.br/SP/downloads/CD%20XIX/PDF/Autores%20e%20Artigos/Antonio%20Rago%20Filho.pdf,acessoem:27set.2013).

344ElioGaspari,2002b,op.cit.,p.344.345 Os dois primeiros anos do governo Geisel concentraram o maio número de denúncias detorturas,àexceçãodosanosMédici,com585denúncias.VerElioGaspari,2003,op.cit.,p.490.

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346SebastiãoV.CruzeCarlosEstevamMartins,1984,op.cit.,p.65.347Apartirdesetembrode1976,crisenabalançadepagamentosein laçãoaltafazemogovernodesaqueceraeconomia,decretandovirtualmenteofimdasmetasdoPND.

348MariaJoséRezende,AditaduramilitarnoBrasil:repressãoepretensãodelegitimidade,1964-1984,Londrina,EditoraUEL,2001,pp.162-8.

349Idem,p.170.350WanderleyG.Santos,“Umaestratégiaparaadescompressão”,em JornaldoBrasil,30set.1973,p.3.

351FlorestanFernandes,ArevoluçãoburguesanoBrasil,RiodeJaneiro,Zahar,1975,p.212.352FernandoHenriqueCardoso,Opinião,26ago.1974.353 OPCB lançou a proposta de uma “Frente patriótica contra o fascismo” (novembro de 1973).Embora equivocada, a leitura da ditadura brasileira como uma forma de fascismo tinha avantagemdelegitimarumagrandealiançadeclasseseideologiasnãomarxistascontraoregime.

354Acorrentequeseaproximoudos“eurocomunistas”,organizadaapartirdoexíliodospecebistasnaFrançaenaItália,desde1970,apostavanestaestratégia.OsprincipaisnomeseramArmênioGuedes,CarlosNelsonCoutinhoe,atuandonoBrasil,LuisWerneckVianna.

355C.B.Macpherson,Ademocracialiberal,RiodeJaneiro,Zahar,1978,pp.97-116.356 Os responsáveis pela redação do programa foram Fernando Henrique Cardoso, FranciscoWeffort,FranciscodeOliveira,LuisWerneckViannaePaulSinger.ConformedepoimentodeLuisWerneck Vianna, em Elide Rugai Bastos et al.,Conversa com sociólogos brasileiros , São Paulo,Editora34,p.168.

357RodrigoPatto,Partidoesociedade:atrajetóriadoMDB,OuroPreto,Ed.Ufop,1997,p.140.358 JanainaTeles, “Os testemunhos e a lutados familiaresdosmortos edesaparecidosnoBrasil”,paperapresentadonoIIISeminárioInternacionalPolíticasdelaMemória,BuenosAires,2010.

359 K. Serbin,Diálogosna sombra, São Paulo, Companhia das Letras, 2001. A bipartite, criada porCandidoMendes e o general AntonioMuricy, durou até 1974 e foi um canal de diálogo entreIgrejaeEstadonoBrasildosanosdechumbo.

360Idem,pp.382-99.361 A organização seria virtualmente destruída com a liquidação doIII Exército daALN, que naverdade já era um racha da organização autointitulado Molipo – Movimento de LibertaçãoPopular.FoitreinadoemCubaem1970,atocontínuoàchegadadosmilitantesdopaísem1973,graças à in iltração de agentes na organização. Conforme Denise Rollemberg: “A ALN foi aorganizaçãoquemaisenvioumilitantesparaotreinamento.Emsetembrode1967,foiformadaaprimeiraturma,chamadadeIExércitodaALN,quetreinou16militantesatéjulhode1968,e,emseguida, formaram-se o II Exército (30 militantes treinados entre julho de 1968 e meados de1969), oIII (33 militantes treinados entre maio e dezembro de 1970) e oIV (13 militantestreinados entre ins de 1970 e julho de 1971)”. Paramais detalhes, ver Denise Rollemberg, OapoiodeCubaàlutaarmadanoBrasil,RiodeJaneiro,Mauad,2001.

362K.Serbin,2001,op.cit.,p.407.

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363 “Uma Igreja da Amazônia em con lito com o latifúndio e a marginalização social”, de 10 deoutubro de 1971, carta pastoral divulgada pelo bispo de São Félix do Araguaia (MT), D. PedroCasaldáliga, (disponível em: http://www.prelaziasaofelixdoaraguaia.org.br/uma-igreja-na-amazonia/umaigreja.htm).Poucodepois, em junhode1972, o episcopadopaulista, reunido emBrodósqui, deu uma declaração conjunta crítica ao regime, denunciando a questão da tortura.IntituladoTestemunhodePaz.Declaraçãoconjuntadoepiscopadopaulista,8jun.1972.

364 Sobre este episódio, ver Mario Magalhães,Marighella: o guerrilheiro que incendiou o mundo,CompanhiadasLetras,2012,pp.530-44.

365Veja,nº336,12dez.1975,p.13.366DeniseRollemberg,“Memória,opiniãoeculturapolítica.AOrdemdosAdvogadosdoBrasilsobaditadura(1964-1974)”,emDanielAarãoReiseDenisRolland(orgs.),Modernidadesalternativas ,RiodeJaneiro,EditoraFGV,2008,pp.57-96.

367 A prisão, em março de 1975, de um conselheiro federal daOAB, submetido a cinco dias detorturanoRiodeJaneiro,aumentouaindamaisomal-estarcomogoverno.Veja,nº340,12mar.1975,p.19.

368CelinaDuarte,ImprensaeredemocratizaçãonoBrasil:umestudodeduasconjunturas,1945e1974-78, dissertação deMestrado,PUC, SãoPaulo, 1987.Em janeiro, o governo acabou coma censurapréviaaoOesp,masarevistaVeja,outroórgãodagrandeimprensacensurado,tevequeesperaratéjunhode1976.

369FoinestecontextoqueUlyssesGuimarãeschamouGeiselde “IdiAmim”,o folclórico,violentoemidiáticoditadordeUganda.Geiselnuncaoperdoariaporisso.

370 Para um exame das relações entre a sociedade civil e o Estado autoritário, verMaria HelenaMoreira Alves,Estado e oposição no Brasil (1964-1984), Petrópolis, Vozes, 1984. A autorademonstra, com detalhes, a importância da dialética entre o Estado e a oposição civil (“asociedade”)parasecompreenderahistóriadoregime.

371 Um exemplo de visão que considera os movimentos sociais como elemento menor para oprocessodeaberturapodeservistoemLeonelItaussuMello,“Golberyrevisitado:dademocraciatutelada à abertura controlada”, em José Álvaro Moisés e José Augusto Guilhon Albuquerque(org.),Dilemasdaconsolidaçãodademocracia,SãoPaulo:PazeTerra,1989,pp.199-222.

372Oproblemadeboapartedaliteraturasobre“abertura”,sobretudonaáreadeciênciapolítica,équeelaenfatizaopapeldogovernoedas instituiçõeso iciaiscomooúnico lugardapolítica.Ouseja,háumsuperdimensionamentodooutroladodacorda.

373Sobreasreaçõesdosexiladosedaimprensadeesquerdanoexílioemfacedanovaconjunturapolíticade1974,verDeniseRollemberg,Exílio:entreraízeseradares,RiodeJaneiro,Record,1999,pp. 199-204. Sobre o exílio parisiense e os vários grupos de esquerda na capital francesa naconjunturadosanos1970,verLuizHildebrando,Crônicasdanossaépoca,SãoPaulo,PazeTerra,2001,p.113.

374 Depoimento do ex-agente doDOI-Codi, Marival Dias Chaves do Canto, emVeja, 18 nov. 1992(disponível em: http://veja.abril.com.br/arquivo_veja/capa_18111992.shtml, acesso em: 1º jul.2013).

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375 OPCB perdeu 24 militantes assassinados sob tortura, muitos do Comitê Central, durante ogovernoGeisel.ConformeartigodeMiltonPinheiro,“AditaduramilitarnoBrasil(1964-1985)eomassacrecontraoPCB” (disponívelem:http://www.correiocidadania.com.br,acessoem:7out.2013).

376AprisãodeHerzogfoiprecedidaporumacampanhadedenúnciade“in iltraçãocomunista”naimprensafeitapelojornalistaClaudioMarquesnojornalShoppingNews.

377 Em1978, emdecisão inédita, o juizMárcio JosédeMoraes reconheceua responsabilidadedoEstado (ou melhor, da União) na morte de Herzog, mas apenas em 2013 sua viúva, ClariceHerzog,recebeuacertidãodeóbitocomacausadamorteverdadeira.

378Apesardisso,aCongregaçãoIsraelitaPaulistanãoendossouaparticipaçãodorabino,preferindoacataraversãooficial.

379Seguiram-seosmanifestosdejornalistasapósadivulgaçãode IPM,em19dez.1975,edaABI, emfevereirode1976.AudálioDantas,presidentedoSindicatodeJornalistasdeSãoPaulo,teveumpapelimportantenaarticulaçãodosjornalistasnadenúnciadoregime.

380Estavisãohistórica,muitofortenasanáliseshistóricasliberaissobreoregime,podeservistaemThomasSkidmore,1988,op.cit.,p.348.

381O sequestroe espancamentodeDomAdrianoHypolito, bispodeNova Iguaçu,nomesmoano,eraoutraprovadaousadiadaextrema-direitaparamilitar.Emtrêsoperações,elaacirravaaindamaisa tensãoentreogovernoe trêsnúcleos importantesdaoposiçãocivil,queestava longedesercomunistaouradical:aimprensa,osadvogadoseaIgreja.

382 Exemplos sãoos gruposCentelhaNacionalista, que apoiougeneralEulerBentesMonteironaseleiçõesde1978,eoMMDC-MovimentoMilitarDemocráticoConstitucionalista,demarçode1977,lançadonaVilaMilitar doRio de Janeiro.Na verdade, esses grupos tiveramvida curta e poucacapacidadedeação,emboraagitassemalgunsquartéis.

383 Sobre os con litos palacianos e dinâmicas políticas nas sucessões presidenciais do regime, verCarlosChagas,Guerradasestrelas:osbastidoresdassucessõespresidenciaisentre1964e1985,PortoAlegre,L&PM,1985.

384ElioGaspari,2002a,op.cit.,p.26.385AlémdoFrontBresilliend’Information(FBI),quecirculavanacapitalparisiensedesde1971,edaformaçãodeumComitêdeAnistiaem1974naFrança,destaque-seaimportânciadoTribunalBertrandRusselII,quejulgouoscrimesdetorturaeassassinatosdaditadurabrasileiraem1976,em Roma. Ver Denise Rollemberg. 1999, op. cit., Sobre a oposição ao governo brasileiro e amilitânciapró-direitoshumanosnosEstadosUnidos,verJamesGreen,Apesardevocês.OposiçãoàditadurabrasileiranosEstadosUnidos.SãoPaulo,CompanhiadasLetras,2009

386TerezinhaZerbini, fundadoradoMovimentoFemininopelaAnistia,conseguiu furarobloqueiodossegurançaseentregarummanifestoàprimeira-damaestadunidense.

387JamesGreen,op.cit.

ASOCIEDADECONTRAOESTADO

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388 Dados do Tribunal Superior Eleitoral do Brasil (disponível em: www.tse.jus.br, acesso em: 24jun.2013).

389FolhadeS.Paulo,3maio1977,p.5390FolhadeS.Paulo,2maio1977,p.5.391Sobreasmobilizaçõesestudantisdentroeforadoscampinosanos1970,verAngelicaMuller,Aresistência domovimento estudantil brasileiro contra o regime ditatorial e o retorno daUNEà cenapública,tesedeDoutoradoemHistóriaSocial,UniversidadedeSãoPaulo,2010.

392SobreoimpactodamortedeAlexandreVanuchhiLemenomovimentoestudantileaconstruçãodeumanovaagendapolítica,verCaioTúlioCosta,Cale-se,SãoPaulo,AGirafa,2003.

393Nasegundametadedosanos1970,aesquerdacatólica,cujasorigensresidemnaAçãoPopular(AP) fundada nos anos 1960, e os grupos trotskistas (Organização SocialistaInternacionalista/Liberdade e Luta e Convergência Socialista) eram as correntes mais fortes eatuantes no movimento estudantil. Os militantes doPCdoB e doPCB também eram atuantes,defendendoocaráter“atrasado”docapitalismobrasileiroeaaçãonefastado imperialismoqueimpediaodesenvolvimentodas forçasprodutivas locais.Alémdeles,destaque-sea tradiçãoquevinhadaantigaPolíticaOperária(Polop),quenosanos1970recebiaonomedeMovimentodeEmancipação do Proletariado (MEP), com posições teóricas próximas aos trotskistas, ou seja: ocapitalismobrasileiroeradependente,enão“atrasado”,earevoluçãodeveriasersocialista,enãonacional-democrática(ou,comosedizia,“burguesa”).

394 Em30 demarço de 1977, os estudantes daUSP tentaram fazer uma passeata fora da CidadeUniversitária,masamanifestaçãoterminounobairrodePinheiros,próximodali.

395 Manifesto Pelas Liberdades Democráticas, em Marcos Napolitano,Nós, que amávamos tanto ademocracia: protestos de rua na Grande São Paulo (1977-1984), dissertação de Mestrado emHistóriaSocial,1994(anexos).

396FolhadeS.Paulo,10maio1977,capa.397OEstadodeS.Paulo,12maio1977,p.3.398 Com a exceção daFolhadeS.Paulo , que,mesmo não endossando a radicalização, demonstravasimpatia e destacava a importância dos protestos estudantis como exigência de democracia. OProjetoFolha,viradaeditorialepolíticado jornalnabuscadeumaclassemédia intelectualizadadeoposição,começavaasemostrar.Aoladodarevista IstoÉsobadireçãodeMinoCarta(1977-1981),aFolhaeraoórgãomaisprogressistadaimprensaliberalbrasileira.

399OEstadodeS.Paulo,19maio1977,p.3.400Veja,31ago.1977,p.28.401 A Emenda Constitucional nº 11mantinha certas “salvaguardas” do regime, como a igura doEstadodeemergênciaquepoderiaserdecretadopelopresidente.

402“Exigênciascristãsparaumaordempolítica”,CNBB,1977(acervoCentrodePesquisaVergueiro).403FolhadeS.Paulo,28maio1977,p.6.404RevistadaFaculdadedeDireito,USP,v.LXXII,2ºfasc.,1977,pp.411-25.405 Disponível em: http://www.nucleomemoria.org.br/textos/integra/id/25, acesso em: 27 set.

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2013.406MariaD’AlvaKinzo, Oposiçãoeautoritarismo:agênesedatrajetóriadoMDB, 1966-1979, SãoPaulo,Vértice/EditoraRevistadosTribunais,1988.

407FolhadeS.Paulo,20set.1978,p.4.408 Adriano Codato,Sistema estatal e política econômica no Brasil pós-64, São Paulo,Hucitec/Anpocs/Ed.daUFPR,1997,p.368.

409 Discurso de Eugênio Gudin, “Homem de visão”, em Adriano Codato, “A burguesia contra oestado: crise política, ação de classe e rumos da transição”, p. 26 (disponível em:http://works.bepress.com/adrianocodato/15,acessoem:24jun.2013).

410 Em 28 de janeiro de 1977 aconteceu oXVIII Encontro da Confraternização das ClassesProdutoras, que pedia mais diálogo entre governo e iniciativa privada. Em 1º de fevereiro de1977, JoséPapaJunior,presidentedaFecomércio/SP, reiteraaopçãode1964,masreclamadosdesdobramentosdoregime,chamando-ode“espúrio”.

411 “O elo da Fiesp com o porão da ditadura”, em O Globo, 9 mar. 2013 (disponível em:http://oglobo.globo.com/pais/o-elo-da-fiesp-com-porao-da-ditadura-7794152,acessoem:27set.2013).

412OEstadodeS.Paulo,6jul.1977,p.3.413DepoimentodeAdyrFiuzadeCastro,emMariaCelinaD’Araujoetal.,1994,op.cit.414Verbete,DHBB/CPDOC(disponívelem:www.cpdoc.fgv.br,acessoem:24jun.2013).415VerbeteDHBB/CPDOC(disponívelem:www.cpdoc.fgv.br,acessoem:24jun.2013).416 Ver as memórias do general em Hugo Abreu,O outro lado do poder, Rio de Janeiro, NovaFronteira,1979.

417OSãoPaulo,nº1.209,10a17demaiode1979,p.10.418FreiBetto,Oqueécomunidadeeclesialdebase,SãoPaulo,Brasiliense,1981.419 As comunidades eclesiais de base surgiram em 1970, e tornaram-se núcleos irradiadores daTeologia da Libertação, releitura dos Evangelhos à esquerda, e celeiros de liderançascomunitárias. Em meados dos anos 1970, havia milhares de comunidades eclesiais de baseespalhadasportodooBrasil.

420Paraumbalançoteóricosobreos“novos”movimentossociais,verMariadaGlóriaGohn,Teoriasobreosmovimentossociais,SãoPaulo,Loyola,1997.Normalmente,aanálisesociológicaepolíticasobre os movimentos sociais dos anos 1970 e 1980 oscilou entre a supervalorização de suaatuaçãoeoceticismoemrelaçãoàsuae icácianademocratizaçãodasociedadeedasinstituições.Para uma análise que valoriza os movimentos, ver Eder Sader,Quando novos personagensentraram em cena: experiências, falas e lutas dos trabalhadores nos anos 1970 e 1980, 4. ed., SãoPaulo,PazeTerra,2001.

421OSãoPaulo,nº1.209,10a17demaiode1979,p.10.422IstoÉ,24maio1978,p.67.423AmnérisA.Maroni,Aestratégiadarecusa:análisedasgrevesde1978,SãoPaulo,Brasiliense,1982.424IstoÉ,24maio1978,p.69.

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425LaisW.Abramo,“GrevemetalúrgicaemSãoBernardo”,emL.Kowarick(org.), Aslutassociaiseacidade,SãoPaulo,PazeTerra,sd.

426TribunaMetalúrgica,43,setembrode1977,p.9.427 A base social deste sindicato era diferente da realidade doABC. Reunia cerca de 13 milempresas, 80% com menos de 500 empregados. Em outras palavras, a categoria era menosconcentradaemaisdispersa.VerLaisW.Abramo,sd,op.cit.

428 Sobre a atuação política e a produção teórica doPCB nos anos 1970 e começo de 1980, verHamiltonLima,op.cit.,1995.

TEMPOSDECAOSEESPERANÇA

429DiscursodepossedopresidenteJoãoBaptistaFigueiredo,16mar.1979.430EmRonaldoC.Couto,Memóriavivadoregimemilitar,RiodeJaneiro,Record,1999,p.57.431 Guillermo O’Donnel e P. Schmitter, Transição do regime autoritário: primeiras conclusões, SãoPaulo,Vértice/RevistadosTribunais,1988.

432 ConformemodelodeGuillermoO’DonneleP. Schmitter,1988,op. cit., pp.91-3: “Quantomaisrápidaeinesperada,atransiçãocontémmaispossibilidadesderevoltapopularque,emtodososcasos, tende a ser efêmera, porém não menos signi icante para o grau e ritmo dademocratização”.

433 Francisco Fonseca,Consenso forjado: a grande imprensa e a formação da agenda ultraliberal noBrasil, São Paulo, Hucitec, 2005. A partir do conceito de “aparelhos privados de hegemonia”, ocientistapolíticoehistoriadorFranciscoFonsecaanalisacentenasdeeditoriaisqueconstruíramaagendaliberal,criticandooestatismodoregimemilitar.

434 Preçodobarrildepetróleo:1972:US$2;1978:US$12;1979:US$16;1981:US$34;1983:US$:43(disponívelem:http://veja.abril.com.br/230200/p_130.html,acessoem:1ºjul.2013).

435Entre1978e1980,osjurosnosEUAaumentaramde11%para21%.VerSérgioGoldenstein,Adívidaexternabrasileira(1964/1983):evoluçãoecrise,RiodeJaneiro,Guanabara,1986,p.124.

436EmRonaldoC.Couto,1999,op.cit.p.341.437Idem,p.178.438 Maria Helena Alves,Estado e oposiçãonoBrasil (1964-1984), Petrópolis, Vozes, 1984, op. cit., p.256.

439AcervoCentrodePesquisasVergueiro,SãoPaulo.440FolhadeS.Paulo,15mar.1979,p.35.441Idem,20mar.1979,p.32.442TribunaMetalúrgica,nº51,junho/1979,p.10.443FolhadeS.Paulo,5maio1979.444ADiretoriaExecutivadoSindicatoeracompostapor13nomes(incluindo6suplentes).445LuisBuenoVidigal,presidentedaFiesp.EmNossoSéculo,SãoPaulo,AbrilCultural,V.5,1981,p.

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285.446FolhadeS.Paulo,1ºnov.1979,p.18.447Idem,ibidem.448IstoÉ,7maio1980,p.7.449OctávioIanni,OABCdaclasseoperária,SãoPaulo,Hucitec,1980.450GuillermoO’DonneleP.Schmitter,1988,op.cit.,p.89.451 Conformeo senadorTeotônioVilela, “Sóháumacoisa concreta,honesta, corretaevisível, compropostascertas,queéasociedadecivil lárepresentadapelosmetalúrgicos”.A frasesintetizaosentimentodesolidariedadeemtornodosoperáriosemgreve.EmO.Ianni,1988,op.cit.,p.25.

452AdrianoCodato,“Ogolpede64eoregimede68”emHistória,QuestõeseDebates,40/2004,pp.11-36.

453FolhadeS.Paulo,12out.1980,p.7.454HamiltonLima,1995,op.cit.455 As origens do “eurocomunismo” se encontram nas posições políticas do Partido ComunistaItaliano que, desde 1970, con litava coma orientaçãodaUnião Soviética. Em1973, o dirigenteitaliano Enrico Berlinger sistematizou a “ruptura”, assumindo a legitimidade da democraciarepresentativa liberal e abrindo mão, virtualmente, da “ditadura do proletariado” como etapanecessáriaparaaconstruçãodosocialismo.

456SobreoPCdoBnosanos1970,verJeanR.Sales,“Entreofechamentoeaabertura:atrajetóriadoPCdoB da guerrilha do Araguaia à Nova República (1974-1985)”, emHistória, São Paulo,V. 26,2007,pp.340-35.

457 Sobre o trotskismo no Brasil dos anos 1970, ver RosaM. Marques, “Os grupos trotskistas noBrasil (1960-1990)”, emDanielReis e Jorge Ferreira (orgs.), AsesquerdasnoBrasil,V. 3, Rio deJaneiro,CivilizaçãoBrasileira,2007,pp.149-63.

458“Maisde25atentadosdoterror”,em EmTempo,SãoPaulo,nº104,17a30deabrilde1980,p.24.

459CitadoemNossoSéculo,V.5(1960-1980),SãoPaulo,AbrilCultural,1980,p.288.460OCebradefoifundadoem29dejulhode1978,sobosauspíciosdoPCB,etendocomodiretoresOscarNiemeyer(presidente),ÊnioSilveira(vice-presidente),SérgioBuarquedeHollanda(vice-presidente) e Antonio Houaiss (secretário-geral). No seu programa de trabalho a entidadepropunha várias atividades: 1) organizar um congresso de intelectuais que chegasse a um“programaunitáriodereivindicaçõesdemocráticasespecí icasdaintelectualidade”,entendendo-a como um vasto campo que incluía ciência, universidade, arte e meios de comunicação”; 2)promover,emSãoPaulo,um“seminário”sobreos“direitosdotrabalhador”,afimdelevantarum“programaunitáriodereivindicaçõesespecíficasdostrabalhadores;3)promover,emBrasília,umsemináriosobre“direitoscivis”naConstituição,visandoaelaboraçãodeum“programaunitáriodereivindicaçõesdemocráticasdasociedadecivil”;4)organizarumserviçodeassistênciajurídicae material às vítimas de restrições dos direitos humanos fundamentais; 5) organizar uma“comissãodecontatoparlamentar”;6)lutarpelaanistia,juntocomasorganizaçõesjáexistentes;

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7)criarum“órgãodecomunicação”impresso.461OsargentoGuilhermeFerreiradoRosáriomorreunaexplosão,eocapitãoWilsonLuisChavesMachadofoiferidogravemente.

462 Aqui, entendo como “setores liberais democráticos” os sindicatos de classemédia, parcelas daimprensa,asentidadesdeprofissionaisliberaiscomoaOABeos“autênticos”doMDB.

463 Parauma teoriados “ciclosdemobilização”e seu impactonosprocessospolíticosde lutapelademocracia,verAlbertoTosiRodrigues,DiretasJá:ogritopresonagarganta,SãoPaulo,FundaçãoPerseuAbramo,2003.

464Paraumper ildeTerezinhaZerbini,verPauloM.Leite,Amulherqueeraogeneraldacasa, SãoPaulo,Arquipélago,2012.

465 Lucas Monteiro, relatório de quali icação de Mestrado em História Social,USP, 2013, p. 21(mimeo.).

466EmNossoSéculo,V.5,SãoPaulo,AbrilCultural,p.280.467Dos53presospolíticos,35aderiram,poisoMR8nãoaceitou,acusandoagrevedeesquerdistaepoucoimportanteparasensibilizarosdeputados.VerLucasMonteiro,2013,op.cit.,p.45.

468 Para uma análise detalhada dos trâmites no Congresso, ver GlendaMezzaroba,Um acerto decontas com o futuro: a anistia e suas consequências (um estudo de caso brasileiro), São Paulo,Humanitas/Fapesp,2006,pp.39-50.

469Eramcercade15deputados,conformeojornalMovimento,nº217,27ago./2set.,1979,p.3.470HeloisaGreco,Dimensõesfundacionaisdalutapelaanistia,BeloHorizonte,EditoraUFMG,2003,pp.109-11.

471 Janaina Teles,Osherdeirosdamemória:a lutados familiaresdemortosedesaparecidospolíticosporverdadee justiçanoBrasil , tesedeDoutoradoemHistóriaSocial,UniversidadedeSãoPaulo,2005.

472ParaumahistóriadoPartidodosTrabalhadoresesuasorigens,verLincolnSecco,HistóriadoPT,Cotia,AteliêEditorial,2011,pp.35-76.

473 Sobre as negociações entre oPMDB e os dissidentes doPDS e a eleição presidencial no ColégioEleitoral,verAntonioCarlosRego,Ocongressobrasileiroeoregimemilitar,RiodeJaneiro,EditoraFGV,2008,pp.255-70.

474MariaVictóriaBenevides.AiquesaudadedoMDB!,LuaNova,v.3,n.1,1986,pp.27-34.475GilbertoDimensteineJosiasSouza,OcomplôqueelegeuTancredo,RiodeJaneiro,EditoraJB,1985,p.74.

476FolhadeS.Paulo,5abr.1983,p.13.477Idem,ibidem.478AlémdaCUT,centralligadaaopetismo,surgiutambémaCGT (CentralGeraldosTrabalhadores),lideradaporJoaquimdosSantosAndrade,oJoaquinzão,antigointerventornomeadopeloregimee,posteriormente,eleitopelacategoria.OsindicatodosmetalúrgicosdeSãoPaulo,presididoporJoaquinzão, apoiou a greve geral sem maiores entusiasmos, pedindo para os trabalhadoresficarememcasa,aocontráriodoquepediaaCUT,cujasliderançasqueriamtransformaradataem

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umprotestopúblicocontraoregime.479GilbertoDimensteineJosiasSouza,1985,op.cit.480Idem,p.15.481EmRonaldoC.Couto,1999,op.cit.,p.186.482EmGilbertoDimensteineJosiasSouza,1985,op.cit.p.39.483Idem,p.74.484 A expressão é de Fernando Gabeira, utilizada em uma de suas colunas naFolha de S.PauloduranteaépocadasDiretasJá.

485Alémdasacusaçõesdecorrupção,corroboradasatépela imprensaconservadoraeporsetoresdo regime, Maluf tornou-se o inimigo público nº 1 da esquerda e dos movimentos sociais noestadodeSãoPaulo,sobretudoapósutilizarumatropaparamilitarparaagredirmilitantesqueovaiavamnobairrodaFreguesiadoÓ,em1980.

486ParaGeisel,“MalufimplodiuoPDS”,emRonaldoC.Couto,1999,op.cit.,p.214.OarticuladordacampanhaMaluf,HeitorFerreiradeAquino,saiudogovernoem1983.

487GilbertoDimensteineJosiasSouza,1985,op.cit.,p.86.488TancredoNeves,discursoem21desetembrode1984.Fonte:MemorialTancredoNeves.489 Recentemente (2005), surgiram documentos produzidos pelos espiões de Tancredo NevesdentrodasForçasArmadas,organizadospelaassessoriamilitardoentãocandidato,o “GabineteRio”.OdiscursodeDelioJardimdeMattos,ministrodaAeronáutica,proferidonainauguraçãodoaeroportodeSalvador,criticavaos “traidores”quepularamnobarcodaoposição,emsetembrode 1984. Seria um indício de golpe a caminho? Efetivamente, havia um núcleo que resistia àcandidatura de Tancredo, composto pelo ministro do Exército (Walter Pires), Newton Cruz(comandante militar de Brasília) eSNI (Octavio Medeiros). Os dois últimos negaram qualquerintento golpista em entrevista à revistaVeja (disponível em:http://veja.abril.com.br/200405/p_062.html,acessoem:24jun.2013).

490CitadonarevistaVeja (disponívelem:http://veja.abril.com.br/200405/p_062.html,acessoem:2set.2013).

491OPT tinha8votosnoColégioe suadireção,apoiadapelamilitânciadebase,decidiunãovotarem Tancredo Neves por causa da forma indireta da eleição. Entretanto, 3 deputados serebelarameacabaramexpulsosdopartido(AirtonSoares,BeteMendeseJoséEudes).

492RonaldoC.Couto,1999,op.cit.,pp.332-4.

ADITADURAENTREAMEMÓRIAEAHISTÓRIA

493Opositivismo,profundamentearraigadonaselitesmilitaresbrasileiraseempartedaelitecivil,é uma das expressões desta combinação entre conservadorismo político e modernizaçãosocioeconômica. Além de se manifestar na passagem da Monarquia para a República, estevepresente no movimento tenentista, no primeiro governo Vargas e no regime militar de 1964.Obviamente, sua expressão foi diferente ao longo destes momentos, mas o ideal da “ditadura

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republicana” é uma constante deste pensamento, tanto como promotora da ordem social sobtutela comodamodernização econômica. Esse tipo de conservadorismo é diferente da tradiçãoliberal-oligárquica, que privilegia as instituições tradicionais da política, o jogo partidário eparlamentar. Ambos excluem as massas trabalhadoras do jogo político, mas por motivosdiferenciados.

494 José Luis Beired,Sob o signo da nova ordem: intelectuais autoritários no Brasil e na Argentina(1914-1945), 1. ed., São Paulo: Loyola/Programa de Pós-Graduação emHistória Social-USP, 1999.Nesse livro, Beired aponta a existência de três polos autoritários na história republicanabrasileira, surgidos nos anos 1920/1930: os católicos, os fascistas e os “cienti icistas”. Estesúltimos estão mais abertos ao processo de modernização e veem no autoritarismo uminstrumentoparasechegaraumasociedademoderna,apostandonaação“racional”etutelardoEstado.Aoqueparece,estatradiçãofoimobilizadaem1964,comasdevidasnuances.

495 Tanto o documento conhecido como “Resolução deMaio” (1965), quanto as conclusões doVICongressodoPartido,em1967,apontamparaacríticaao“esquerdismo”voluntaristaqueteriaacirradooscon litospré-golpeeseantecipadoàsefetivasaçõesdemassa.EstafoiabaseparaarecusadalutaarmadaquesedesenhavanoperíododerealizaçãodoreferidoCongresso.

496 Na linha de RaymondWilliams (e Antonio Gramsci), entendo por “hegemonia”: “Um sistemavivido de signi icados e valores – constitutivo e constituidor […], um senso da realidade para amaioria das pessoas na sociedade, um senso de realidade absoluta, porque experimentada, ealémdaqualémuitodi ícilparaamaioriadosmembrosdasociedademovimentar-se,namaioriadas áreas de sua vida […]. [O poder hegemônico] não existe passivamente como forma dedominação. Tem de ser renovado continuamente, recriado, defendido e modi icado. Tambémsofreumaresistênciacontinuada,limitada,alterada,desa iadaporpressõesquenãosãoassuasprópriaspressões”.R.Williams,Marxismoeliteratura,RiodeJaneiro,Zahar,1979,p.115.

497Sobreoressentimentomilitar,verMariaCelinaD’Araujoetal.,1994op.cit.VertambémJoãoR.Martins Filho, “A guerra da memória: a ditadura militar nos depoimentos de militantes emilitares”,paperapresentadonoCongressodel’AssociaçaodeEstudosLatino-Americanas(Lasa),Dallas,mar.2003,pp.27-9.

498Ocoroneleex-ministro JarbasPassarinhoéumdosdebatedoresmaisativossobreamemóriadoregime,emumachavequeprocuraserpositiva,masquerevelaumatensãocomamemórialiberal sobreo regime,aovalorizaroperíodoCostaeSilva-Médici.Aomesmo tempo,ébastantecrítico da valorização da esquerda e da oposição como um todo no plano da memória. Suaargumentação não se confunde com os impropérios comuns à extrema-direita, sendofrequentementebemconstruída.VerAmarilioFerreiraJr.eMarisaBittar,“OcoronelPassarinhoe o regime militar: o último intelectual orgânico?” (disponível em:http://www.gedm.ifcs.ufrj.br/upload/textos/17.pdf,acessoem:2set.2013).

499Essa linhadecríticavemsendodesenvolvidaporDeniseRollembert,SamantaVazQuadradteDanielAarãoReisFilho,professoresdaUFF.VerDanielReisFilho,Ditadura, esquerdase sociedade,JorgeZahar,2000;D.RollembergeS.Quadrat(orgs.),Aconstruçãosocialdosregimesautoritários,RiodeJaneiro,CivilizaçãoBrasileira,2011.

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500 Tenho como hipótese que a subida doPT ao poder, em 2002, provocou uma nova onda deantiesquerdismonaimprensa,naselitesenasclassesmédiasescolarizadas,namedidaemqueseidenti icava o governo Lula com a volta de práticas consideradas “populistas” e “estatizantes”,semfalarnoreceio liberal-conservadordoprotagonismoedain luênciadosmovimentossociaisde esquerda no governo. Mesmo revelando-se um partido moderado e até convencional, oPTgalvanizouumantiesquerdismoquenosúltimosanostemengrossadoocorodadireitaemesmoda extrema-direita, como icou patente na última campanha eleitoral para presidente e nasmanifestaçõesquetomaramcontadoBrasilemjunhode2013.Nestas,abandeiradalutacontraa“corrupção”frequentementecamu lavaoantipetismodasclassesmédias.Todoestenovoclimapolíticodopaís,naminhaopinião,reverberounasrevisões,sobretudoliberais,sobreogolpeeoregimemilitar.

501BeatrizSarlo,Tempopassado:culturadamemóriaeguinadasubjetiva .SãoPaulo,CompanhiadasLetras,2007.NaArgentinaodebate sobreopapeldamemória edo testemunhonaanálisedoperíododitatorialébastantedensoeaprofundado.OlivrodeSarloéumadasvozescríticasdestedebate. Ver também Pilar Calveiro,Poder e desaparecimento. Os campos de concentração naArgentina.SãoPaulo,BoitempoEditorial,2013.

502 Walter Benjamin, “Experiência e pobreza”, em Obras escolhidas, v. 1, “Magia, técnica, arte epolítica”,SãoPaulo,Brasiliense,1985.

503ElisabethJelin,Lostrabajosdelamemoria,BuenosAires,SigloXXI,2002.504EstaéabasedacríticadeBeatrizSarloàhegemoniadotestemunhoedamemórianoprocessoderevisãohistóricadaditaduraargentina.

505 JanainaTeles,emCeciliaMacdowellSantos,EdsonTeleseJanainadeAlmeidaTeles(orgs.),op.cit.,2009,p.154.

506LucasMonteiro,“Aleideanistiaeatransição”,relatóriodequali icaçãodeMestradoemHistóriaSocial,UniversidadedeSãoPaulo,2013.

507Osdois livrosdemaiorsucessoeditorial sobreeste tema,publicadosno inaldosanos1970einíciodosanos1980,apontamparaestaautocrítica,aindaqueemchavesdiferenciadas.Trata-sedaobradeFernandoGabeira,Oqueéisso,companheiro?,SãoPaulo,CompanhiadasLetras,2009;e de Alfredo Sirkis,Os carbonários, Rio de Janeiro, Ed. Record, 1998. O ponto em comum é aa irmação de uma luta digna contra o regime, mas totalmente equivocada do ponto de vistaorganizativo, ideológico e estratégico. Não por acaso, foram os livros quemais inspiraram umamemória audiovisual daquele tempo, de grande sucesso, como a série globalAnos Rebeldes(1992) e o polêmico ilmeO Que É Isso, Companheiro? (1997), de Bruno Barreto. Sobre estasobras, verFernandoSeliprandy,2012,op. cit.;MônicaKornis, Umahistória doBrasil recente nasminissériesdaRedeGlobo,tesedeDoutoradoemComunicação,ECA/USP,2001.

508LucasFigueiredo,Olhoporolho:oslivrossecretosdaditadura,RiodeJaneiro,Record,2009.Nesselivro, o autor descreve o processo de investigação e coleta de documentos para constituição dorelatórioedolivroBrasil:nuncamais,easreaçõesnosmeiosmilitaressobreestapublicação.

509 Em linhas gerais, “justiça de transição” de ine-se como: o conjunto deapproaches que associedades contemporâneas adotam, na passagem ou retorno à democracia, para lidar com

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legados de violência deixados por regimes autoritários ou totalitários, depois de períodos decon lito ou repressão. Ver Glenda Mezzaroba,O preço do esquecimento: as reparações pagas àsvítimasdo regimemilitar (umacomparaçãoentreBrasil,ArgentinaeChile), tesedeDoutoradoemSociologia,USP,SãoPaulo,2007,p.17,

510CeciliaMacdowellSantos,EdsonTeleseJanainadeAlmeidaTeles(orgs.),op.cit.,2009,p.152.511“Réquiememvezdeaçãodegraças”,OEstadodeS.Paulo,21mar.2002,p.2.Emgrandeparteoartigo é uma resposta ao primeiro livro do jornalista Elio Gaspari, 2002a, op. cit., citadonominalmentenotexto.

512 Em entrevista ao Observatório da Imprensa, o jornalista Rudolfo Lago, autor da matéria,rea irma a autenticidades das fotos e ser Herzog um dos retratados, alegando que a própriaviúva o teria reconhecido (disponível em:http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/compraram_facil_a_versao_da_abin,acessoem:2set.2013).

513ODecretonº2.134,de1997,deautoriadopróprioFHC,regulamentouaLeide1991comquatroclassi icações. Determinou o prazo de segredo de cada uma, que poderia ser renovado pelomesmo período só uma vez: documentos ultrassecretos (até 30 anos de sigilo, com renovaçãochegariaa60anos);secretos(20anos,máximode40);con idenciais(10anos,máximode20);reservados(5anos,máximode10).Em2002,os limitesaumentaram,porordem,para50anos(prorrogáveis inde inidamente), 30 anos (até 60), 20 anos (até 40) e 10 anos (até 20). Asmudançasnosprazosnão foramasúnicas.ODecretode1997estipulavaqueaclassi icaçãodeultrassecreto era restrita aos presidentes da República, do Congresso e do Supremo TribunalFederal.OnovodecretovetouessepoderaoschefesdoLegislativoedo Judiciárioeestendeu-oaosministrosdeEstadoeaoscomandantesdoExército,daMarinhaedaAeronáutica.

514 Poderíamos resumir os principais conjuntos de acervos documentais (o iciais) sobre o regimenasseguintesbases:DSI/MJ–ArquivoNacionalRJ(343processos,datadosde1955a1985–focodo Decreto-Lei nº 4.553/30-12-2002); stm (base do Relatório “Brasil: nunca mais”); AcervoDeops–ArquivoPúblicodoEstadodeSãoPaulo (informes, prontuários, informações, dossiês –pessoas, instituições e movimentos sociais e políticos);SNI (Arquivo Nacional, Brasília); Exército(informesCIE, relatório de operações e comandos militares – acesso restrito ou proibido, comfrequentes alegações que tais documentos foramdestruídos);DPF/MJ – a abertura dos arquivospelaPolíciaFederalincluioperíodode2desetembrode1961a5deoutubrode1988.Umaleide janeiro de 1997, assinada pelo então ministro da justiça Nelson Jobim, impede quedocumentos secretos e ultrassecretos sejam abertos em um prazo entre 40 e 100 anos,permitindoapenasaconsultados“confidenciais”e“sigilosos”.

515ConformecitadonolivrodaComissãoEspecialsobreMortoseDesaparecidosPolíticos,Direitoàmemóriaeàverdade,2007,Brasília,p.38.OprópriocoronelJoãoBatistaFagundesexplicaoseupapel:“TenhoprocuradointerpretaropensamentodaForçasArmadas.Temosalgumasfalhasnonossopassado,algunsperíodosdeturbulência,emquedeterminadosmovimentosdeforçaeramjusti icados. E quehoje não sãomais justi icados. As ForçasArmadas têmomaior interesse emrestabeleceraverdadedosfatose,sepossível,quandoforocaso,atépromoveroressarcimento

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dodano.Agora,nósnãopodemoséatribuiraoExércitoeàsForçasArmadasdeterminadoserroseexagerosdosquaisparticiparamnopassado”(p.39).

516 Conforme apresentação do projeto O Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil,denominado “Memórias Reveladas”, “foi institucionalizado pela Casa Civil da Presidência daRepública e implantado no Arquivo Nacional com a inalidade de reunir informações sobre osfatos da história política recente do país [...]. A criação do Centro suscitou, pela primeira vez,acordosdecooperação irmadosentreaUnião,EstadoseoDistritoFederalparaaintegração,emrede,dearquivoseinstituiçõespúblicaseprivadasemcomunicaçãopermanente.Atéomomento,em13estadosenoDistritoFederalforamidenti icadosacervosorganizadosemseusrespectivosarquivos públicos. Digitalizados, passam a integrar a rede nacional de informações do Portal“Memórias Reveladas”, sob administração do Arquivo Nacional. Essa iniciativa inédita estápossibilitandoaarticulaçãoentreosentesfederadoscomvistasaumapolíticadereconstituiçãoda memória nacional do período da ditadura militar. Os acordos irmados entre a União e osestadosdetentoresdearquivosviabilizamocumprimentodorequisitoconstitucionaldeacessoàinformação a serviço da cidadania” (disponível em: http://www.memoriasreveladas.gov.br/,acessoem:28jun.2013).

517Conformeapresentaçãoo icialnositeda instituição: “OMemorialdaResistênciadeSãoPaulo,umainiciativadoGovernodoEstadodeSãoPaulopormeiodesuaSecretariadaCultura,éumainstituição dedicada à preservação de referências dasmemórias da resistência e da repressãopolíticasdoBrasilrepublicano(1889àatualidade)pormeiodamusealizaçãodepartedoedi ícioquefoisede,duranteoperíodode1940a1983,doDepartamentoEstadualdeOrdemPolíticaeSocial de São Paulo – Deops/SP, uma das polícias políticas mais truculentas do país,principalmente durante o regime militar”. A instituição desenvolve uma intensa atividadeexposicionale formativa,comênfasenadifusãodaculturadedireitoshumanos(disponívelem:http://www.memorialdaresistenciasp.org.br/index.php,acessoem:28jun.2013).

518“AComissãoNacionaldaVerdadefoicriadapelaLeinº12.528/2011einstituídaem16demaiode2012.AComissão tempor inalidadeapurargravesviolaçõesdedireitoshumanosocorridasentre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988. Conheça abaixo a lei que criou aComissão da Verdade e outros documentos-base sobre o colegiado” (disponível em:www.cnv.gov.br, acesso em: 2 out. 2013). A Comissão tem poder de requerer documentos(mesmo os “classi icados”) e convocar testemunhas, visando sobretudo o esclarecimento dascondiçõesdemorteedoeventualdesaparecimentodemilitantesdaesquerda.Seurelatório inalestáprevistopara2015.

519 Disponível em: http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2012/05/comissao-de-investigacao-de-crimes-do-periodo-da-ditatura-e-instalada.html, acesso em: 17 jul. 2012. Maisinformações sobre a Comissão Nacional da Verdade pode ser obtida na sua página o icial:http://www.cnv.gov.br.

520ConformereportagemdojornalOEstadodeS.Paulo (18ago.2013,p.A-10),estãoemprocessodeconstruçãooucriação6memoriaisespalhadosporváriascapitaisbrasileiras.EmSãoPaulo,oMemorial da Resistência desenvolve um trabalho intenso junto a professores e ao público em

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geral, recebendo cercade70mil visitantespor ano.Alémdessememorial, estãoprevistosmaisdoismemoriaisnacidadedeSãoPaulo.

521“Aleidosilêncio”,emOEstadodeS.Paulo,12maio2012.

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Oautor

MarcosNapolitanoédoutoremHistóriaSocialpelaUSPeprofessordoDepartamento de História damesma universidade, onde leciona HistóriadoBrasil Independente.Éautorecoautordevários livros,entreosquaisComousarocinemaemsaladeaula,Comousaratelevisãonasaladeaula ,Cultura brasileira: utopia emassi icação ,História na sala de aula eFonteshistóricas,todospublicadospelaEditoraContexto.