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ENTIDADES ESPIRITUAIS NÃO AFRICANAS NA RELIGIÃO AFRO-BRASILEIRA E SINCRETISMO AFRO- AMERÍNDIO - 1995 Mundicarmo Ferretti ENTIDADES ESPIRITUAIS NÃO AFRICANAS NA RELIGIÃO AFRO-BRASILEIRA E SINCRETISMO AFRO-AMERÍNDIO Mundicarmo Ferretti Este texto se originou de um trabalho apresentado no Simpósio "Religious Pevitalization and Syncretism in Africa and the Americas", organizado pelos Drs. Sidney Greenfield e André Droogers, na reunião anual da American Anthropological Association, realizada em Washington, em 1995. No final de 1996 o texto apresentado no simpósio foi transformado em capítulo para um livro coordenado pelos organizadores do evento, ampliando-se as partes referentes ao conceito de caboclo e ao estudo do caso de sincretismo ocorrido em São Luís (capital do Maranhão), no Terreiro da Turquia. Para esta publicação foi feita uma revisão no texto original e acrescentado um tópico que será apresentado logo a seguir. A RELIGIÃO AFRO-BRASILEIRA NO MARANHÃO Não se pode falar em religião afro-brasileira do Maranhão sem falar em Tambor de Mina e nos dois terreiros mais antigos dessa denominação religiosa: a Casa das Minas-Jeje, consagrada ao vodum Zomadonu, e a Casa do Nagô, consagrada ao orixá Xangô - abertas na capitais, em meados do século XIX, por africanos. A Casa das Minas-Jeje foi muito visitada no passado por pessoas pertencentes a um terreiro cambinda de um povoado negro do Codó (no interior do Estado), sobre o qual dispõe-se de poucas informações. O Tambor de Mina surgiu em São Luís, se expandiu pelo interior do Maranhão, pelo Pará, Amazonas, por outros listados da região e para as capitais quais receberam grande número de migrantes do Norte e Nordeste como: Rio de Janeiro e São Paulo. Embora hegemônico no Maranhão, o Tambor de Mina-Jeje, Nagô, Cambinda, foi muito sincretizado no passado com a manifestação religiosa de origem indígena denominada Cura/Pajelança e com uma tradição religiosa afro-brasileira, surgida em Codó (no interior do Estado), denominada Encantaria de Barba Soera, Mata ou Terecô. A partir dos anos sessenta a Mina e a Mata passaram também a ser influenciadas pela Umbanda, tanto na capital como no interior do Estado. Hoje, embora as casas de Mina mais antigas não tenham se filiado a Federações de Umbanda, muitos terreiros de Mina e de Mata adotaram a Umbanda e, apesar de continuarem realizando rituais tradicionais de Mina, Mata e Cura, se apresentam como umbandistas e participam de atividades promovidas pela Federação de Umbanda como: a Festa de Iemanjá, no Ano Novo, e a Procissão dos Orixás, no aniversario da fundação da cidade de São Luís. O Candomblé só penetrou de forma mais visível no Maranhão depois dos anos setenta, na Casa Fantí-Ashanti (na capital). No Tambor de Mina são cultuados voduns e orixás (africanos), gentis (nobres europeus ou entidades africanas com nomes brasileiros associados a orixás) e caboclos (entidades surgidas nos terreiros brasileiros, geralmente, não associadas a orixás). Essas entidades são organizadas em "nações" e em famílias, e possuem diferenças de idade bem marcadas. Embora as mais velhas sejam mais prestigiadas, as mais novas (às vezes crianças) podem ser também "donas da cabeça" e podem ser recebidas em todos os toques. No Maranhão, os terreiros de Mina abertos por africanos são chefiados espiritualmente por vodum ou orixá (Zomadonu e Xangô), mas a chefia de terreiro por entidade cabocla é bastante antiga nos terreiros de São Luís e parece ter começado com o Terreiro da Turquia (que, segundo seu atual dirigente, é de 1889).

Entidades Espirituais Não Africanas Na Religião Afro

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Este texto se originou de um trabalho apresentado no Simpósio "Religious Pevitalization and Syncretism in Africa and the Americas", organizado pelos Drs. Sidney Greenfield e André Droogers, na reunião anual da American Anthropological Association, realizada em Washington, em 1995.

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ENTIDADES ESPIRITUAIS NÃO AFRICANAS NA RELIGIÃO AFRO-BRASILEIRA E SINCRETISMO AFRO-AMERÍNDIO - 1995Mundicarmo Ferretti

ENTIDADES ESPIRITUAIS NÃO AFRICANAS NA RELIGIÃO AFRO-BRASILEIRA E SINCRETISMO AFRO-AMERÍNDIO

Mundicarmo Ferretti

Este texto se originou de um trabalho apresentado no Simpósio "Religious Pevitalization and Syncretism in Africa and the Americas", organizado pelos Drs. Sidney Greenfield e André Droogers, na reunião anual da American Anthropological Association, realizada em Washington, em 1995. No final de 1996 o texto apresentado no simpósio foi transformado em capítulo para um livro coordenado pelos organizadores do evento, ampliando-se as partes referentes ao conceito de caboclo e ao estudo do caso de sincretismo ocorrido em São Luís (capital do Maranhão), no Terreiro da Turquia. Para esta publicação foi feita uma revisão no texto original e acrescentado um tópico que será apresentado logo a seguir.

A RELIGIÃO AFRO-BRASILEIRA NO MARANHÃO

Não se pode falar em religião afro-brasileira do Maranhão sem falar em Tambor de Mina e nos dois terreiros mais antigos dessa denominação religiosa: a Casa das Minas-Jeje, consagrada ao vodum Zomadonu, e a Casa do Nagô, consagrada ao orixá Xangô - abertas na capitais, em meados do século XIX, por africanos. A Casa das Minas-Jeje foi muito visitada no passado por pessoas pertencentes a um terreiro cambinda de um povoado negro do Codó (no interior do Estado), sobre o qual dispõe-se de poucas informações.

O Tambor de Mina surgiu em São Luís, se expandiu pelo interior do Maranhão, pelo Pará, Amazonas, por outros listados da região e para as capitais quais receberam grande número de migrantes do Norte e Nordeste como: Rio de Janeiro e São Paulo. Embora hegemônico no Maranhão, o Tambor de Mina-Jeje, Nagô, Cambinda, foi muito sincretizado no passado com a manifestação religiosa de origem indígena denominada Cura/Pajelança e com uma tradição religiosa afro-brasileira, surgida em Codó (no interior do Estado), denominada Encantaria de Barba Soera, Mata ou Terecô.

A partir dos anos sessenta a Mina e a Mata passaram também a ser influenciadas pela Umbanda, tanto na capital como no interior do Estado. Hoje, embora as casas de Mina mais antigas não tenham se filiado a Federações de Umbanda, muitos terreiros de Mina e de Mata adotaram a Umbanda e, apesar de continuarem realizando rituais tradicionais de Mina, Mata e Cura, se apresentam como umbandistas e participam de atividades promovidas pela Federação de Umbanda como: a Festa de Iemanjá, no Ano Novo, e a Procissão dos Orixás, no aniversario da fundação da cidade de São Luís. O Candomblé só penetrou de forma mais visível no Maranhão depois dos anos setenta, na Casa Fantí-Ashanti (na capital).

No Tambor de Mina são cultuados voduns e orixás (africanos), gentis (nobres europeus ou entidades africanas com nomes brasileiros associados a orixás) e caboclos (entidades surgidas nos terreiros brasileiros, geralmente, não associadas a orixás). Essas entidades são organizadas em "nações" e em famílias, e possuem diferenças de idade bem marcadas. Embora as mais velhas sejam mais prestigiadas, as mais novas (às vezes crianças) podem ser também "donas da cabeça" e podem ser recebidas em todos os toques.

No Maranhão, os terreiros de Mina abertos por africanos são chefiados espiritualmente por vodum ou orixá (Zomadonu e Xangô), mas a chefia de terreiro por entidade cabocla é bastante antiga nos terreiros de São Luís e parece ter começado com o Terreiro da Turquia (que, segundo seu atual dirigente, é de 1889).

Na Mina as festas são muito freqüentes, acompanham o calendário santoral católico e costumam incluir três noites de toque. Algumas datas que são festejadas em quase todos os terreiros e outras comemoradas só em algumas casas, mas, no Maranhão, quase não há toques durante a Quaresma.

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Embora, excetuando-se a Casa das Minas-Jeje, os médiuns no Maranhão recebam mais de uma entidade espiritual, na Mina, geralmente, se dança a noite toda com a mesma entidade - com a "dona da cabeça" ou com o seu "guia-chefe" (caboclo). Nos terreiros onde os médiuns têm muitas entidades e estas são de categorias diferentes, costuma ocorrer um toque anual para cada categoria de entidade. Estes toques podem ter uma estrutura idêntica ao que é freqüentemente realizado, como a Festa das Moças, ou pode ter uma estrutura bem diferente, como é o caso: 1) do Tambor de Borá (para índios, precedido, geralmente, por acampamento "na mata"); 2) do Tambor de Fulupa (para os Surrupiras, onde se prepara uma "cama de espinhos" para os encantados) ; 3) do Baião (para entidades femininas ligadas á Cura/Pajelança, em que se toca acordeon, violão, pandeiros e castanholas); 4) do Tambor para os "Pretos-Velhos" da Mina, realizado no dia em que se celebra a libertação dos escravos no Brasil, quando se costuma organizar para eles uma brincadeira folclórica denominada Tambor de Crioula.

Alguns terreiros realizam também para determinadas categorias de entidades ritos especiais como: a Bancada (sem tambor), para as entidades femininas mais importantes, genericamente denominadas "Tobôssas".

Na Mina não há toques para Exu nem incorporação com ele e com Pombagíras. Mas, algumas entidades caboclas possuem características semelhantes as daquelas entidades. Alguns caboclos, como os turcos, os da família de Légua Boji e os Surrupiras, são brincalhões e, ao mesmo tempo, fortes, perigosos e vingativos. Alguns deles fazem uso de bebida alcoólica e costumam, em algumas casas, falar palavras e fazer gestos meio obscenos, o que é rigorosamente reprimido em muitos terreiros.

Nos terreiros de Mina mais antigos, como mostrou Sergio FERRETTI (1985), Légba é saudado com respeito, de forma discreta, "para que não perturbe os trabalhos" e outras entidades assumem alguns dos papeis lhes são tradicionalmente atribuídos em outras denominações religiosas africanas ou de origem africana. Na Mina-Jeje Averequete é quem faia pelos voduns da família de Queviosô (Sobô, Badé e outros que, sendo nagô não podem falar no terreiro Jeje). No Tambor da Mata (Terecô) e na Mina-Nagô é ele quem “abre as portas" para caboclo - no Terecô é saudado na abertura do ritual e na Mina-Nagô é homenageado quando "o tambor vira prá mata" (quando se faz um corte no toque e, em vez de se cantar para vodum, passa-se a cantar para os caboclos) e os voduns costumam "dar passagem" a eles (os médiuns saem do transe com vodum e entram em outro com caboclo).

A PRESENÇA DE ENTIDADES ESPIRITUAIS NÃO AFRICANAS NA RELIGIÃO AFRO-BRASILEIRA: UM CASO DE SINCRETISMO AFRO-AMERÍNDIO? 1

A presença de entidades espirituais não africanas na religião afro-brasileira tem sido freqüentemente interpretada por pesquisadores e praticantes como resultado do contato do negro africano e/ou de seus descendentes com a cultura indígena (dos nativos - primeiros “donos da terra” brasileira). Esta idéia é reforçada quando se observam rituais onde há transe com entidades não africanas e se constata que grande numero daquelas entidades são conhecidas por nomes indígenas e que em muitas manifestações religiosas afro-brasileiras os médiuns incorporados com caboclo costumam usar peças de indumentária indígena ou nela inspiradas.

Embora não se possa afirmar que o caboclo da religião afro-brasileira tenha vindo da África, tal como os orixás e voduns, e não se queira negar o impacto causado na religião afro-brasileira da absorção da cultura indígena pelo africano e da valorização do índio enquanto herói e símbolo nacional brasileiros, após a independência do Brasil, pesquisas realizadas no Tambor de Mina - manifestação religiosa afro-brasileira predominante no Norte do Brasil - têm demonstrado a ineficácia da idéia de sincretismo afro-ameríndio na compreensão das entidades caboclas. Essas pesquisas têm também chamado atenção para

1 Texto apresentado originalmente no Simpósio "Revitalizations and Syncretism in Africa and America" -AAA, Washington, 15-19/11/1995. Deu origem a trabalho encaminhado para publicação em livro coordenado pelos organizadores do evento nos USA: GREENFIELD,S. & DROOGERS, A. Syncretism and the syncretic process: Africa and the Americas. O texto elaborado para a publicação americana fornece maiores informações sobre o Terreiro da Turquia e sobre a integração dos encantados da família do Rei da Turquia no Tambor de Mina.

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a necessidade de elaboração de um conceito de caboclo menos dependente do fator etnicidade e menos influenciado pelo ideal de pureza africana, que tem levado muitos a encarar os elementos não africanos daquela religião como “contaminação” pela cultura indígena.

O CABOCLO NA RELIGIÃO AFRO-BRASILEIRA

As entidades espirituais não africanas cultuadas em terreiros de Candomblé, Xangô, Mina, Batuque e Umbanda têm sido classificadas, em conformidade com o mito das “três raças formadoras da sociedade brasileira” nas seguintes categorias:

1) caboclos (representantes da população nativa/indígena ou de segmentos populares da sociedade brasileira ligados a área rural);

2) pretos-velhos (representantes dos escravos africanos); 3) e senhores ou “gente fina” (representantes do colonizador europeu-branco).

Os caboclos parecem mais antigos e surgiram, tanto na Bahia como no Maranhão, em terreiros nagôs (iorubanos) e bantos (congo, angola e outros). Mas, desde o final do século passado, existem, tanto na Bahia quanto no Maranhão, casas de culto para caboclo, como o Terreiro da Turquia, em São Luís-MA.

Os pretos-velhos são mais ligados à Umbanda e parecem ter surgido inicialmente no Rio de Janeiro, em terreiros de Macumba (de onde a Umbanda teria se originado).

Os brancos/senhores são também conhecidos na Umbanda e muito antigos na religião afro-brasileira do Maranhão, onde foram associados a orixás (divindades africanas), como ocorre com o Rei Sebastião, associado a Xapanã, nos terreiros de São Luís (capital maranhense).

Existem ainda na religião afro-brasileira, como caboclo ou constituindo outra categoria de entidade espiritual surgida no Brasil, os boiadeiros, mais conhecidos na Umbanda e em terreiros de Candomblé. Estas entidades, apesar de ligadas a atividades rurais, não tem origem indígena e muitas delas se apresentam como angolanas (originárias de terreiros baniu?) ou provenientes da Hungria (ciganos?).

No Tambor de Mina do Maranhão o termo caboclo não designa apenas entidades espirituais indígenas (como o Caboclo Velho) ou ligadas à criação de gado (como as da família de Légua-Boji). Designa também turcos, europeus de origem nobre (como os encantados da família de Dom Luís, Rei de França) e entidades “da mata”, de origem ameríndia discutível e sem ligação com a pecuária, como os Surrupiras (classificados como “fulupa”/felupe?, ou como “do Gangá” - África?).

A idéia da origem indígena (generalizada) das entidades não africanas ou classificadas como caboclo, tão recorrente na obra de pesquisadores e no discurso de pais-de-santo, tem sido, às vezes, reforçada pela interpretação apressada de elementos de rituais observados, onde elas são incorporadas e podem aparecer com nomes e, às vezes até, com trajes indígenas. Um exame mais aprofundado do perfil das entidades incorporadas nos rituais observados, uma análise das letras de músicas cantadas por elas ou para elas, e uma leitura atenta de relatos míticos recolhidos naqueles terreiros, podem levar o pesquisador a encara-las de modo bastante diferente.

Na Mina maranhense, o nome da entidade mítica incorporada e o uso nos rituais de peças de indumentária indígena não são suficientes para atestar sua origem ameríndia, embora falem da valorização do índio no Tambor de Mina e sugiram alguma conexão dela com ele. Assim, a explicação da adoção de nomes indígenas por turcos não deve ser buscada em sua origem étnica ou em um possível empréstimo cultural indígena. Deve ser buscada no contexto histórico e social em que surgiram no Tambor de Mina enquanto entidades espirituais.

O uso de nomes indígenas por vários filhos não adotivos do Rei da Turquia (“turcos “verdadeiros”) pode ser interpretada:

1) como estratégia utilizada por descendentes de africanos para desviar a atenção da classe dominante, católica, de sua origem não cristã (maometana ou, simplesmente, pagã) origem esta que deve ter sido responsável por sua estigmatização e, às vezes, por sua associação no folclore brasileiro ao demônio;

2) como resultado de necessidade de afirmação de sua diferença em relação as entidades espirituais africanas -voduns e orixás (para as quais foram abertos os dois terreiros

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maranhenses mais antigos: a Casa das Minas-jêje, consagrada a Zomadonu, e a Casa de Nagô-iorubana, consagrada a Xangô);

3) como decorrente da necessidade de afirmação de sua identidade brasileira - de encantados que começaram a ser recebidos no Brasil -, o que facilitaria a aceitação da abertura de mais um terreiro em São Luís (para turcos), procedimento ainda hoje proibido na Casa das Minas e desencorajado na Casa de Nagô.

A adoção pelos turcos de nomes e traços culturais de índios brasileiros (pagãos, como eles, pelo menos até a chegada dos jesuítas) deve ter muito a ver com a idealização do ameríndio ocorrida após a independência do Brasil, interpretação esta já apresentada por Roger BASTIDE (1974) e por tantos outros pesquisadores para o surgimento do caboclo na religião afro-brasileira. Pode ser também explicada pela abertura do Terreiro da Turquia (1889?) um ano após a abolição da escravatura no Brasil, quando é possível que os ex-escravos tenham sido mais motivados a se afirmarem como brasileiros do que como africanos, no seu desejo de integração social e na sua pressa em apagar as marcas deixadas pela escravidão.

No Tambor de Mina do Maranhão existem outros caboclos que podem ser mais associados do que os turcos à cultura indígena. Um deles é, sem dúvida, Surrupira do Gangá - chefe de outra família de caboclos, menos aceita do que a dos turcos nos terreiros mais antigos e tradicionalistas da capital (como a prestigiada na Casa de Nagô, matriz iorubana). O nome Surrupira do Gangá fala tanto de sua vinculação à África (Gangá) quanto de sua relação com o Curupira do folclore de origem indígena - negrinho da floresta, sem origem humana, que tem os pés voltados para trás, que protege a mata e a caça, e que é temido pelos povos da floresta (CASCUDO, L. 1962: 262).

O Surrupira do Tambor de Mina, tal como o Curupira do folclore brasileiro, apresenta características da entidade espiritual da floresta, de mesmo nome, temido pelos índios, de quem falou no século XVI o Padre José de Anchieta, em suas cartas (LEITE,S. 1954): perigoso e temido, responsável por rumores inexplicáveis, pavores súbitos, morte, desaparecimento, e perda de caminho por caçadores na floresta. E sobre essa complexa entidade que pretendemos centrar nossa atenção em próximo trabalho.

CONCLUSÃO

O caso dos turcos no Tambor de Mina mostra os riscos de se interpretar a presença do caboclo da religião afro-brasileira como sincretismo afro-ameríndio. Dificilmente eles poderiam ser encarados como entidades da mitologia ou ancestrais indígenas (espíritos de índios mortos - heróis, caciques, pajés...) que entraram na religião africana:

1) pelo contato de africanos ou crioulos com a população nativa e assimilação de sua cultura;2) ou pelo costume africano de, ao chegar em terra alheia, saudar os ancestrais "donos da

terra".

Os turcos não podem ser também encarados como entidades espirituais de terreiros abertos por descendentes de índios ou especialistas religiosos ligados à cultura ameríndia (curador ou pajé). Foram introduzidas na religião afro-brasileira em terreiros de crioulos e descendentes de africanos. Sua mitologia tem como matriz principal gestas (estórias) de Carlos Magno, bastante difundidas na Península Ibérica, e não mitologia de índios tupi, como os Surrupiras. E, embora sua mitologia não seja mera reprodução da "História do Imperador Carlos Magno e os Doze Pares de França", narrada ainda hoje em folhetos de Cordel e em representações folclóricas como Cheganças, os nomes, a estória e o perfil de muitos turcos corresponde a de personagens daquela obra literária. No Tambor de Mina do Maranhão, Almirante Balão, Ferrabrás de Alexandria, Princesa Florípes não são apenas personagens literários ou de representações folclóricas, são encantados, sem nenhuma origem indígena. Os empréstimos culturais indígenas no Tambor de Mina devem ser procurados nos rituais de Cura/Pajelança realizados em muitos terreiros de São Luís e na mitologia de outras entidades espirituais, como o Surrupira.

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BIBLIOGRAFIA

BASTIDE, Roger. La rencontre des dieux africains et des esprits indiens. In: DESROCHE, Henri. Roger Bastide: ultima scripta, Arquives de Sciences Sociales des Religions, Paris, n.38, p.19-28, 1974. (Publicado também em BASTIDE, Roger. Le sacré sauvage. Paris, Payot, 1975).

CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. Segunda edição revista e aumentada. Rio de Janeiro: INL/MEC, 1962.

FERRETTI, Mundicarmo Rei da Turquia, o Ferrabrás de Alexandria?: a importância de um livro na mitologia do Tambor de Mina. In: Meu sinal está no teu corpo. São Paulo: EDICON/EDUSP, 1989. p. 202-218. Cap.8.--------. Desceu na guma: o caboclo do Tambor de Mina no processo de mudança de um terreiro de São Luís - a Casa Fanti-Ashanti. São Luís: SIOGE, 1993.---------. Repensando o turco no Tambor de Mina. AFRO-ÁSIA., n.15 p.56-70, 1992

FERRETTI, Sergio. Repensando o Sincretismo. São Paulo: EDUSP; São Luís: FAPEMA, 1995

HISTÓRIA DO IMPERADOR CARLOS MAGNO E OS DOZE PARES DE FRANÇA. Traduzida do castelhano por Jerônimo Moreira de Carvalho. Seguida de FLAVIENSE, Alexandre Gumes. Bernardo del Carpio que venceu em batalha aos doze pares de França. Rio de Janeiro: Livraria Império, s.d

LEACOCK, Seth and Ruth. Spirits of the Deep: a study of an Afro-Brazilian Cult. New York: Anchor, 1975.

LEITE, Serafim S.I. Cartas dos primeiros jesuítas do Brasil-III: 1558-1563. São Paulo: Comissão do IV Centenário, 1954.

Publicado em: FERRETTI, Mundicarmo. Non-african spiritual entities in afro-brazilian religion and afro-amerindian syncretism. In: CLARKE, Peter B. New Trends and developments in african religions. London: Greenwood Press, 1998, ps.37-44. Cap.3