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ENTRE MEMÓRIA E HISTÓRIA 1 A problemática dos lugares Pierre Nora 2 Tradução: Yara Aun Khoury 3 I. O fim da história-memória Aceleração da história. Para além da metáfora, é preciso ter a noção do que a expressão significa: uma oscilação cada vez mais rápida de um passado definitivamente morto, a percepção global de qualquer coisa como desaparecida - uma ruptura de equilíbrio. O arrancar do que ainda sobrou de vivido no calor da tradição, no mutismo do costume, na repetição do ancestral, sob o impulso de um sentimento histórico profundo. A ascensão à consciência de si mesmo sob o signo do terminado, o fim de alguma coisa desde sempre começada. Fala-se tanto de memória porque ela não existe mais. A curiosidade pelos lugares onde a memória se cristaliza e se refugia está ligada a este momento particular da nossa história. Momento de articulação onde a consciência da ruptura com o passado se confunde com o sentimento de uma memória esfacelada, mas onde o esfacelamento desperta ainda memória suficiente para que se possa colocar o problema de sua encarnação. O sentimento de continuidade toma-se residual aos locais. Há locais de memória porque não há mais meios de memória. Pensemos nessa mutilação sem retomo que representou o fim dos camponeses, esta coletividade-memória por excelência cuja voga como objeto da história coincidiu com o apogeu do crescimento industrial. Esse desmoronamento central de nossa memória só é, no entanto, um exemplo. É o mundo inteiro que entrou na dança, pelo fenômeno bem conhecido da mundialização, da democratização, da massificação, da mediatização. Na periferia, a independência das novas nações conduziu para a historicidade as sociedades já despertadas de seu sono etnológico pela violentação colonial. E pelo mesmo movimento de descolonização interior, todas as etnias, grupos, famílias, com forte bagagem de memória e fraca bagagem histórica. Fim das sociedades-memória, como todas aquelas que asseguravam a conservação e a transmissão dos valores, igreja ou escola, família ou Estado. Fim das ideologias-memórias, como todas aquelas que asseguravam a passagem regular do passado para o futuro, ou indicavam o que se deveria reter do passado para preparar o futuro, quer se trate da reação, do progresso ou mesmo da revolução. Ainda mais: é o modo mesmo da percepção histórica que, com a ajuda da mídia, dilatou-se prodigiosamente, substituindo 1 In: Les lieux de mêmoire. I La Republique, Paris, Gallimard, 1984, pp. XVIII - XLII. Tradução autorizada pelo Editor. © Editions Gallimard 1984. 2 Diretor de estudos na “Ecole de Hautes Etudes en Sciences Sociales”. 3 Departamento de História, PUC-SP. Proj. História, São Paula, (10), Dez. 1993

Entre Memória e História - Pierre Nora

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Entre memória e história

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ENTRE MEMRIA E HISTRIA[footnoteRef:1] [1: In: Les lieux de mmoire. I La Republique, Paris, Gallimard, 1984, pp. XVIII - XLII. Traduo autorizada pelo Editor. Editions Gallimard 1984.]

A problemtica dos lugaresPierre Nora[footnoteRef:2] [2: Diretor de estudos na Ecole de Hautes Etudes en Sciences Sociales.]

Traduo: Yara Aun Khoury[footnoteRef:3] [3: Departamento de Histria, PUC-SP.]

I. O fim da histria-memriaAcelerao da histria. Para alm da metfora, preciso ter a noo do que a expresso significa: uma oscilao cada vez mais rpida de um passado definitivamente morto, a percepo global de qualquer coisa como desaparecida - uma ruptura de equilbrio. O arrancar do que ainda sobrou de vivido no calor da tradio, no mutismo do costume, na repetio do ancestral, sob o impulso de um sentimento histrico profundo. A ascenso conscincia de si mesmo sob o signo do terminado, o fim de alguma coisa desde sempre comeada. Fala-se tanto de memria porque ela no existe mais.A curiosidade pelos lugares onde a memria se cristaliza e se refugia est ligada a este momento particular da nossa histria. Momento de articulao onde a conscincia da ruptura com o passado se confunde com o sentimento de uma memria esfacelada, mas onde o esfacelamento desperta ainda memria suficiente para que se possa colocar o problema de sua encarnao. O sentimento de continuidade toma-se residual aos locais. H locais de memria porque no h mais meios de memria.Pensemos nessa mutilao sem retomo que representou o fim dos camponeses, esta coletividade-memria por excelncia cuja voga como objeto da histria coincidiu com o apogeu do crescimento industrial. Esse desmoronamento central de nossa memria s , no entanto, um exemplo. o mundo inteiro que entrou na dana, pelo fenmeno bem conhecido da mundializao, da democratizao, da massificao, da mediatizao. Na periferia, a independncia das novas naes conduziu para a historicidade as sociedades j despertadas de seu sono etnolgico pela violentao colonial. E pelo mesmo movimento de descolonizao interior, todas as etnias, grupos, famlias, com forte bagagem de memria e fraca bagagem histrica. Fim das sociedades-memria, como todas aquelas que asseguravam a conservao e a transmisso dos valores, igreja ou escola, famlia ou Estado. Fim das ideologias-memrias, como todas aquelas que asseguravam a passagem regular do passado para o futuro, ou indicavam o que se deveria reter do passado para preparar o futuro, quer se trate da reao, do progresso ou mesmo da revoluo. Ainda mais: o modo mesmo da percepo histrica que, com a ajuda da mdia, dilatou-se prodigiosamente, substituindo uma memria voltada para a herana de sua prpria intimidade pela pelcula efmera da atualidade.Acelerao: o que o fenmeno acaba de nos revelar bruscamente, toda a distncia entre a memria verdadeira, social, intocada, aquela cujas sociedades ditas primitivas, ou arcaicas, representaram o modelo e guardaram consigo o segredo - e a histria que o que nossas sociedades condenadas ao esquecimento fazem do passado, porque levadas pela mudana. Entre uma memria integrada, ditatorial e inconsciente de si mesma, organizadora e toda-poderosa, espontaneamente atualizadora, uma memria sem passado que reconduz eternamente a herana, conduzindo o antigamente dos ancestrais ao tempo indiferenciado dos heris, das origens e do mito - e a nossa, que s histria, vestgio e trilha. Distncia que s se aprofundou medida em que os homens foram reconhecendo como seu um poder e mesmo um dever de mudana, sobretudo a partir dos tempos modernos. Distncia que chega hoje num ponto convulsivo.Esse arrancar da memria sob o impulso conquistador e erradicador da histria tem como que um efeito de revelao: a ruptura de um elo de identidade muito antigo, no fim daquilo que vivamos como uma evidncia: a adequao da histria e da memria. O fato que s exista uma palavra em francs para designar a histria vivida e a operao intelectual que a toma inteligvel (o que os alemes distinguem por Geschichte e Historie), enfermidade de linguagem muitas vezes salientada, fornece aqui sua profunda verdade: o movimento que nos transporta da mesma natureza que aquele que o representa para ns. Se habitssemos ainda nossa memria, no teramos necessidade de lhe consagrar lugares. No haveria lugares porque no haveria memria transportada pela histria. Cada gesto, at o mais cotidiano, seria vivido como uma repetio religiosa daquilo que sempre se fez, numa identificao carnal do ato e do sentido. Desde que haja rastro, distncia, mediao, no estamos mais dentro da verdadeira memria, mas dentro da histria. Pensemos nos judeus, confinados na fidelidade cotidiana ao ritual da tradio. Sua constituio em povo da memria exclua uma preocupao com a histria, at que sua abertura para o mundo moderno lhes imps a necessidade de historiadores.Memria, histria: longe de serem sinnimos, tomamos conscincia que tudo ope uma outra. A memria a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela est em permanente evoluo, aberta dialtica da lembrana e do esquecimento, inconsciente de suas deformaes sucessivas, vulnervel a todos os usos e manipulaes, susceptvel de longas latncias e de repentinas revitalizaes. A histria a reconstruo sempre problemtica e incompleta do que no existe mais. A memria um fenmeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente; a histria, uma representao do passado. Porque afetiva e mgica, a memria no se acomoda a detalhes que a confortam, ela se alimenta de lembranas vagas, telescpicas, globais ou flutuantes, particulares ou simblicas, sensvel a todas as transferncias, cenas, censura ou projees. A histria, porque operao intelectual e laicizante, demanda anlise e discurso crtico. A memria instala a lembrana no sagrado, a histria a liberta, e a toma sempre prosaica. A memria emerge de um grupo que ela une, o que quer dizer, como Halbwachs o fez, que h tantas memrias quantos grupos existem, que ela , por natureza, mltipla e desacelerada, coletiva, plural e individualizada. A histria, ao contrrio, pertence a todos e a ningum, o que lhe d uma vocao para o universal. A memria se enraza no concreto, no espao, no gesto, na imagem, no objeto. A histria s se liga s continuidades temporais, s evolues e s relaes das coisas. A memria um absoluto e a histria s conhece o relativo.No corao da histria trabalha um criticismo destrutor de memria espontnea. A memria sempre suspeita para a histria, cuja verdadeira misso destru-la e a repelir. A histria deslegitimao do passado vivido. No horizonte das sociedades de histria, nos limites de um mundo completamente historicizado, haveria dessacralizao ltima e definitiva. O movimento da histria, a ambio histrica no so a exaltao do que verdadeiramente aconteceu, mas sua anulao. Sem dvida um criticismo generalizado conservaria museus, medalhas e monumentos, isto , o arsenal necessrio ao seu prprio trabalho, mas esvaziando-os daquilo que, a nosso ver, os faz lugares de memria. Uma sociedade que vivesse integralmente sob o signo da histria no conheceria, afinal, mais do que uma sociedade tradicional, lugares onde ancorar sua memria.

Um dos sinais mais tangveis desse arrancar da histria da memria , talvez, o incio de uma histria da histria, o despertar recente, na Frana, de uma conscincia historiogrfica. A histria e, mais precisamente, aquela do desenvolvimento nacional, constituiu a mais forte de nossas tradies coletivas, nosso meio de memria, por excelncia. Dos cronistas da Idade Mdia aos historiadores contemporneos da histria total, toda a tradio histrica desenvolveu-se como exerccio regulado da memria e seu aprofundamento espontneo, a reconstituio de um passado sem lacuna e sem falha. Nenhum dos grandes historiadores, desde Froissart, tinha, sem dvida, o sentimento de s representar uma memria particular. Comynes no tinha conscincia de recolher s uma memria dinstica, La Popelinire uma memria francesa, Bossuet uma memria monrquica e crist. Voltaire a memria dos progressos do gnero humano, Michelet unicamente aquela do povo e Lavisse s a memria da nao. Muito pelo contrrio, eles estavam imbudos do sentimento que seu papel consistia estabelecer uma memria mais positiva do que as precedentes, mais globalizante e mais explicativa. O arsenal cientfico do qual a histria foi dotada no sculo passado s serviu para reforar poderosamente o estabelecimento crtico de uma memria verdadeira. Todos os grandes remanejamentos histricos consistiram em alargar o campo da memria coletiva.Num pas como a Frana, a histria da histria no pode ser uma operao inocente. Ela traduz a subverso interior de uma histria-memria por uma histria-crtica, e todos os historiadores pretenderam denunciar as mitologias mentirosas de seus predecessores. Mas alguma coisa fundamental se inicia quando a histria comea a fazer sua prpria histria. O nascimento de uma preocupao historiogrfica, a histria que se empenha em emboscar em si mesma o que no ela prpria, descobrindo-se como vtima da memria e fazendo um esforo para se livrar dela. Num pas que no daria histria um papel diretor e formador da conscincia nacional, a histria da histria no se encarregaria desse contedo polmico. Nos Estados Unidos, por exemplo, pas de memria plural e de contribuies mltiplas, a disciplina foi sempre praticada. As diferentes interpretaes da Independncia ou da guerra civil, apesar de suas implicaes, por mais pesadas que sejam as tramas, no questionam a Tradio americana, seja porque, num certo sentido, ela no exista, ou no passe principalmente pela histria. Ao contrrio, na Frana a historiografia iconoclasta e irreverente. Ela consiste em tomar para si os objetos melhor constitudos da tradio - uma batalha chave, como Bouvines, um manual cannico, como o pequeno Lavisse - para demonstrar o mecanismo e reconstituir ao mximo as condies de sua elaborao. introduzir a dvida no corao, a lmina entre a rvore da memria e a casca da histria. Fazer a historiografia da Revoluo Francesa, reconstituir seus mitos e suas interpretaes, significa que ns no nos identificamos mais completamente com sua herana. Interrogar uma tradio, por mais venervel que ela seja, no mais se reconhecer como seu nico portador. Ora, no so unicamente os objetos mais sagrados de nossa tradio nacional que se prope uma histria da histria: interrogando-se sobre seus meios materiais e conceituais, sobre os procedimentos de sua prpria produo e as etapas sociais de sua difuso, sobre sua prpria constituio em tradio, toda a histria entrou em sua idade historiogrfica, consumindo sua desidentificao com a memria. Uma memria que se tomou, ela mesma, objeto de uma histria possvel.Houve um tempo em que, atravs da histria e em torno da Nao, uma tradio de memria parecia ter achado sua cristalizao na sntese da III Repblica. Desde Lettres sur lhistoire de France, de Augustin Thierry (1827) at a Histoire sincre de la nation franaise, de Charles Seignobos, adotando uma larga cronologia. Histria, memria, Nao mantiveram, ento, mais do que uma circulao natural: uma circularidade complementar, uma simbiose em todos os nveis, cientfico e pedaggico, terico e prtico. A definio nacional do presente chamava imperiosamente sua justificativa pela iluminao do passado. Presente fragilizado pelo traumatismo revolucionrio que impunha uma reavaliao global do passado monrquico; fragilizado tambm pela derrota de 1870 que s tornava mais urgente, com relao cincia alem como ao instrutor alemo, o verdadeiro vencedor de Sadowa, o desenvolvimento de uma erudio documentria e da transmisso escolar da memria. Nada se equipara ao tom de responsabilidade nacional do historiador, meio padre, meio soldado: ele manifesta-se, por exemplo, no editorial do primeiro nmero da Revue historique (1876) onde Gabriel Monod podia legitimamente ver a investigao cientfica, doravante lenta, coletiva e metdica trabalhar de uma maneira secreta e segura para a grandeza tanto da ptria quanto do gnero humano". Lendo-se um tal texto como cem outros semelhantes, pergunta-se como se pode acreditar na ideia que a histria positivista no era cumulativa. Na perspectiva finalizada de uma constituio nacional, o poltico, o militar, o bibliogrfico e o diplomtico so, ao contrrio, os pilares da continuidade. A derrota de Azincourt ou o punhal de Ravaillac, o dia dos Dupes ou uma tal clusula adicional dos tratados de Westphalia sobressaem de uma contabilidade escrupulosa. A erudio a mais aguda soma ou subtrai um detalhe ao capital da nao. Unidade poderosa desse espao de memria: de nosso bero greco-romano ao imprio colonial da III Repblica, no mais cesura do que entre a alta erudio que anexa ao patrimnio novas conquistas e o manual escolar que impe a vulgata. Histria santa porque nao santa. pela nao que nossa memria se manteve no sagrado.Compreender porque a conjuno se desfez sob um novo impulso dessacralizante resultaria em mostrar como, na crise dos anos trinta, substituiu-se progressivamente a dupla Estado-Nao pela dupla Estado-Sociedade. E como, ao mesmo tempo, e por razes idnticas, a histria, que se tinha tomado tradio de memria, se fez, de maneira espetacular na Frana, saber da sociedade sobre si mesma. Nesse sentido, ela pde multiplicar, sem dvida, os lances de projetores sobre memrias particulares e se transformar em laboratrio das mentalidades do passado; mas liberando-se da identificao nacional, ela deixou de ser habitada por um sujeito portador e, no mesmo lance, ela perdeu sua vocao pedaggica na transmisso de valores: a crise da escola est a para demonstr-lo. A nao no mais o quadro unitrio que encerrava a conscincia da coletividade. Sua definio no est mais em questo, e a paz, a prosperidade e sua reduo de poder fizeram o resto; ela s est ameaada pela ausncia de ameaas. Com a emergncia da sociedade no lugar e espao da Nao, a legitimao pelo passado, portanto pela histria, cedeu lugar legitimao pelo futuro. O passado, s seria possvel conhec-lo e vener-lo, e a Nao, servi-la; o futuro, preciso prepar-lo. Os trs termos recuperaram sua autonomia. A nao no mais um combate, mas um dado, a histria tomou-se uma cincia social; e a memria um fenmeno puramente privado. A nao-memria ter sido a ltima encarnao da histria-memria.

O estudo dos lugares encontra-se, assim, na encruzilhada de dois movimentos que lhe do, hoje na Frana, seu lugar e seu sentido: de um lado um movimento puramente historiogrfico, o momento de um retomo reflexivo da histria sobre si mesma; de outro lado, um movimento propriamente histrico, o fim de uma tradio dc memria. O tempo dos lugares, esse momento preciso onde desaparece um imenso capital que ns vivamos na intimidade de uma memria, para s viver sob o olhar de uma histria reconstituda. Aprofundamento decisivo do trabalho da histria, por um lado, emergncia de uma herana consolidada, por outro. Dinmica interna do princpio critico, esgotamento de nosso quadro histrico poltico e mental, suficientemente poderoso ainda para no nos deixar indiferentes, bem pouco consistente para s se impor por um retomo sobre seus mais evidentes smbolos. Os dois movimentos se combinam para nos remeter de uma s vez, e com o mesmo lan, aos instrumentos de base do trabalho histrico e aos objetos mais simblicos de nossa memria: os Arquivos da mesma forma que as Trs Cores, as bibliotecas, os dicionrios e os museus com o mesmo atributo que as comemoraes, as festas, o Pantheon ou o Arco do Triunfo, o dicionrio Larousse e o muro dos Federados.Os lugares de memria so, antes de tudo, restos. A forma extrema onde subsiste uma conscincia comemorativa numa histria que a chama, porque ela a ignora. a desritualizao de nosso mundo que faz aparecer a noo. O que secreta, veste, estabelece, constri, decreta, mantm pelo artifcio e pela vontade uma coletividade fundamentalmente envolvida com sua transformao e sua renovao. Valorizando, por natureza, mais o novo do que o antigo, mais o jovem do que o velho, mais o futuro do que o passado. Museus, arquivos, cemitrios e colees, festas, aniversrios, tratados, processos verbais, monumentos, santurios, associaes, so os marcos testemunhas de uma outra era, das iluses de eternidade. Dai o aspecto nostlgico desses empreendimentos de piedade, patticos e glaciais. So os rituais de uma sociedade sem ritual; sacralizaes passageiras numa sociedade que dessacraliza; fidelidades particulares de uma sociedade que aplaina os particularismos; diferenciaes efetivas numa sociedade que nivela por princpio; sinais de reconhecimento e de pertencimento de grupo numa sociedade que s tende a reconhecer indivduos iguais e idnticos.Os lugares de memria nascem e vivem do sentimento que no h memria espontnea, que preciso criar arquivos, que preciso manter aniversrios, organizar celebraes, pronunciar elogios fnebres, notariar atas, porque essas operaes no so naturais. por isso a defesa, pelas minorias, de uma memria refugiada sobre focos privilegiados e enciumadamente guardados nada mais faz do que levar incandescncia a verdade de todos os lugares de memria. Sem vigilncia comemorativa, a histria depressa os varreria. So basties sobre os quais se escora. Mas se o que eles defendem no estivesse ameaado, no se teria, tampouco, a necessidade de constru-los. Se vivssemos verdadeiramente as lembranas que eles envolvem, eles seriam inteis. E se, em compensao, a histria no se apoderasse deles para deform-los, transform-los, sov-los e petrific-los eles no se tornariam lugares de memria. este vai-e-vem que os constitui: momentos de histria arrancados do movimento da histria, mas que lhe so devolvidos. No mais inteiramente a vida, nem mais inteiramente a morte, como as conchas na praia quando o mar se retira da memria viva.A Marselhesa ou os monumentos aos mortos vivem, assim, essa vida ambgua, sovada do sentimento misto de pertencimento e de desprendimento. Em 1790, o 14 de julho j era e ainda no um lugar de memria. Em 1880, sua instituio em festa nacional em lugar de memria oficial, mas o esprito da Repblica fazia dele um recurso verdadeiro. E hoje? A prpria perda de nossa memria nacional viva nos impe sobre ela um olhar que no mais nem ingnuo, nem indiferente. Memria que nos pressiona e que j no mais a nossa, entre a dessacralizao rpida e a sacralizao provisoriamente reconduzida. Apego visceral que nos mantm ainda devedores daquilo que nos engendrou, mas distanciamento histrico que nos obriga a considerar com um olhar frio a herana e a inventari-la. Lugares salvos de uma memria na qual no mais habitamos, semi-oficiais e institucionais, semi-afetivos e sentimentais; lugares de unanimidade sem unanimismo que no exprimem mais nem convico militante nem participao apaixonada, mas onde palpita ainda algo de uma vida simblica. Oscilao do memorial ao histrico, de um mundo onde se tinham ancestrais a um mundo da relao contingente com aquilo que nos engendrou, passagem de uma histria totmica para uma histria crtica: o momento dos lugares de memria. No se celebra mais a nao, mas se estudam suas celebraes.

II. A memria tomada como histriaTudo o que chamado hoje de memria no , portanto, memria, mas j histria. Tudo o que chamado de claro de memria a finalizao de seu desaparecimento no fogo da histria. A necessidade de memria uma necessidade da histria.Sem dvida impossvel no se precisar dessa palavra. Aceitemos isso, mas com a conscincia clara da diferena entre memria verdadeira, hoje abrigada no gesto e no hbito, nos ofcios onde se transmitem os saberes do silncio, nos saberes do corpo, as memrias de impregnao e os saberes reflexos e a memria transformada por sua passagem em histria, que quase o contrrio: voluntria e deliberada, vivida como um dever e no mais espontnea; psicolgica, individual e subjetiva e no mais social, coletiva, globalizante. Da primeira, imediata, segunda, indireta. 0 que aconteceu? Pode-se apreender o que aconteceu, no ponto de chegada da metamorfose contempornea., antes de tudo, uma memria, diferentemente da outra, arquivstica. Ela se apoia inteiramente sobre o que h de mais preciso no trao , mais material no vestgio, mais concreto no registro, mais visvel na imagem. O movimento que comeou com a escrita termina na alta fidelidade e na fita magntica. Menos a memria vivida do interior, mais ela tem necessidade de suportes exteriores e de referncias tangveis de uma existncia que s vive atravs delas. Da a obsesso pelo arquivo que marca o contemporneo e que afeta, ao mesmo tempo, a preservao integral de todo o presente e a preservao integral de todo o passado. O sentimento de um desaparecimento rpido e definitivo combina-se preocupao com o exato significado do presente e com a incerteza do futuro para dar ao mais modesto dos vestgios, ao mais humilde testemunho a dignidade virtual do memorvel. J no lamentamos o bastante, em nossos predecessores, a destruio ou o desaparecimento daquilo que nos permitiria saber, para no cair na mesma recriminao por parte de nossos sucessores? A lembrana passado completo em sua reconstituio a mais minuciosa. uma memria registradora, que delega ao arquivo o cuidado de se lembrar por ela e desacelera os sinais onde ela se deposita, como a serpente sua pele morta. Colecionadores, eruditos e beneditinos consagravam-se antigamente acumulao documentria, como marginais de uma sociedade que avanava sem eles e de uma histria que era escrita sem eles. Pois a histria-memria havia colocado esse tesouro no centro de seu trabalho erudito para difundir o resultado pelas mil etapas sociais de sua penetrao. Hoje onde os historiadores se desprenderam do culto documental, toda a sociedade vive na religio conservadora e no produtivismo arquivstico. O que ns chamamos de memria , de fato, a constituio gigantesca e vertiginosa do estoque material daquilo que nos impossvel lembrar, repertrio insondvel daquilo que poderamos ter necessidade de nos lembrar. A memria de papel da qual falava Leibniz tornou-se uma instituio autnoma de museus, bibliotecas depsitos, centros de documentao, bancos de dados. Somente para os arquivos pblicos, os especialistas avaliam que a revoluo quantitativa, em algumas dcadas, traduziu-se numa multiplicao por mil. Nenhuma poca foi to voluntariamente produtora de arquivos como a nossa, no somente pelo volume que a sociedade moderna espontaneamente produz, no somente pelos meios tcnicos de reproduo e de conservao de que dispe, mas pela superstio e pelo respeito ao vestgio. medida em que desaparece a memria tradicional, ns nos sentimos obrigados a acumular religiosamente vestgios, testemunhos, documentos, imagens, discursos, sinais visveis do que foi, como se esse dossi cada vez mais prolfero devesse se tornar prova em no se sabe que tribunal da histria. O sagrado investiu-se no vestgio que sua negao. Impossvel de prejulgar aquilo de que se dever lembrar. Da a inibio em destruir, a constituio de tudo em arquivos, a dilatao indiferenciada do campo do memorvel, o inchao hipertrfico da funo da memria, ligada ao prprio sentimento de sua perda e o reforo correlato de todas as instituies de memria. Uma estranha vira-volta operou-se entre os profissionais, a quem se reprovava antigamente a mania conservadora, e os produtores naturais de arquivos. So hoje as empresas privadas e as administraes pblicas que engajam arquivistas com a recomendao de guardar tudo, quando os profissionais aprenderam que o essencial do ofcio a arte da destruio controlada.Assim, a materializao da memria, em poucos anos, dilatou-se prodigiosamente, desacelerou-se, descentralizou-se, democratizou-se. Nos tempos clssicos, os trs grandes produtores de arquivos reduziam-se s grandes famlias, Igreja e ao Estado. Quem no se cr autorizado hoje a consignar suas lembranas, a escrever suas Memrias, no somente os pequenos atores da histria, como tambm os testemunhos desses atores, sua esposa e seu mdico? Menos o testemunho extraordinrio, mais ele parece digno de ilustrar uma mentalidade mdia. A liquidao da memria foi soldada por uma vontade geral de registro. Numa gerao, o museu imaginrio do arquivo enriqueceu-se prodigiosamente. O ano do patrimnio, em 1980, forneceu um exemplo evidente, levando a nao at s fronteiras do incerto. Dez anos mais cedo, o Larousse de 1970 limitava ainda o patrimnio ao bem que vem do pai ou da me. O Petit Robert de 1979 faz da propriedade transmitida pelos ancestrais, o patrimnio cultural de um pas. Passou-se, muito bruscamente, de uma concepo muito restritiva dos monumentos histricos, com a conveno sobre os stios de 1972, a uma concepo que, teoricamente, no poderia deixar nada escapar.No somente tudo guardar, tudo conservar dos sinais indicativos de memria, mesmo sem se saber exatamente de que memria so indicadores. Mas produzir arquivo o imperativo da poca. Tem-se o exemplo perturbador com os arquivos da Segurana Social - soma documental sem equivalente, representando, hoje, trezentos quilmetros lineares, massa de memria bruta cujo inventrio pelo computador permitiria, idealmente, ler tudo sobre o normal e sobre o patolgico da sociedade, desde os regimes alimentares at os modos de vida, por regies e por profisses; mas, ao mesmo tempo, massa cuja conservao, tanto quanto a explorao concebvel demandariam escolhas drsticas e, portanto, impraticveis. Arquive-se, arquive-se, sempre sobrar alguma coisa! No outro exemplo gritante, o resultado a que chega, de fato, a muito legtima preocupao das enquetes orais recentes? H atualmente, somente na Frana, mais de trezentas equipes ocupadas com o recolhimento destas vozes que vem do passado (Philippe Joutard). Muito bem. Mas quando se pensa, por um instante, que a se trata de arquivos de um gnero muito especial cujo estabelecimento exige trinta e seis horas por uma hora de gravao e cuja utilizao s pode ser pontual, pois elas tiram seu sentido da audio integral, impossvel no se indagar sobre as possibilidades de sua explorao. Que memria elas testemunham, a dos entrevistados ou a dos entrevistadores? O arquivo muda de sentido e de status simplesmente por seu peso. Ele no mais o saldo intencional de uma memria vivida, mas a secreo voluntria e organizada de uma memria perdida. Ele dubla o vivido, que se desenvolve, muitas vezes, em funo de seu prprio registro - as atualidades so feitas de outra coisa? -, de uma memria secundria, de uma memria - prtese. A pro-(??) indefinida do arquivo o efeito aguado de uma nova conscincia, a mais clara expresso do terrorismo da memria historicizada. que esta memria nos vem do exterior e ns a interiorizamos como uma obrigao individual, pois que ela no mais uma prtica social.A passagem da memria para a histria obrigou cada grupo a redefinir sua identidade pela revitalizao de sua prpria histria. O dever de memria faz de cada um o historiador de si mesmo. O imperativo da histria ultrapassou muito, assim, o crculo dos historiadores profissionais. No so somente os antigos marginalizados da histria oficial que so obsecados pela necessidade de recuperar seu passado enterrado. Todos os corpos constitudos, intelectuais ou no, sbios ou no, apesar das etnias e das minorias sociais, sentem a necessidade de ir em busca de sua prpria constituio, de encontrar suas origens. No h mais nenhuma famlia na qual pelo menos um membro no se tenha recentemente lanado reconstituio mais completa possvel das existncias furtivas de onde a sua emergiu. O crescimento das pesquisas genealgicas um fenmeno recente e macio: o relatrio anual dos Arquivos nacionais o cifra cm 43% em 1982 (contra 38% da frequncia universitria). Fato surpreendente: no devemos a historiadores profissionais as histrias mais significativas da biologia, da fsica, da medicina, ou da msica, mas a bilogos, fsicos, mdicos e msicos. So os prprios educadores que tomaram em mos a histria da educao, a comear pela educao fsica, at o ensino da filosofia. Com o abalo dos saberes constitudos, cada disciplina se colocou o dever de verificar seus fundamentos pelo caminho retrospectivo de sua prpria constituio. A sociologia parte em busca de seus pais fundadores, a etnologia, desde os cronistas do sculo XVI at os administradores coloniais se pe a explorar seu prprio passado. At mesmo a crtica literria dedica-se a reconstituir a gnese de suas categorias e de sua tradio. A histria toda positivista, mesmo a chartista no momento em que os historiadores a abandonaram, encontra nessa urgncia e nessa necessidade uma difuso e uma penetrao em profundidade que ela ainda no havia conhecido. O fim da histria-memria multiplicou as memrias particulares que reclamam sua prpria histria.Est dada a ordem de se lembrar, mas cabe a mim me lembrar e sou eu que me lembro. O preo da metamorfose histrica da memria foi a converso definitiva psicologia individual. Os dois fenmenos esto to estreitamente ligados que no se pode impedir de salientar at sua exata coincidncia cronolgica. No no fim do sculo passado, quando se sentem os abalos decisivos dos equilbrios tradicionais, particularmente o desabamento do mundo rural, que a memria faz sua apario no centro da reflexo filosfica, com Bergson, no centro da personalidade psquica, com Freud, no centro da literatura autobiogrfica, com Proust? A violao do que foi, para ns, a prpria imagem da memria encarnada e a brusca emergncia da memria no corao das identidades individuais so como as duas faces da mesma ciso, o comeo do processo que explode hoje. No devemos efetivamente a Freud e a Proust os dois lugares de memria ntimos e ao mesmo tempo universais que so a cena primitiva e a clebre pequena madalena? Deslocamento decisivo que se transfere da memria: do histrico ao psicolgico, do social ao individual, do transissivo ao subjetivo, da repetio rememorao. Inaugura-se um novo regime de memria, questo daqui por diante privada. A psicologizao integral da memria contempornea levou a uma economia singularmente nova da identidade do eu, dos mecanismos da memria e da relao com o passado.Porque a coero da memria pesa definitivamente sobre o indivduo e somente sobre o indivduo, como sua revitalizao possvel repousa sobre sua relao pessoal com seu prprio passado. A atomizao de uma memria geral em memria privada d lei da lembrana um intenso poder de coero interior. Ela obriga cada um a se relembrar e a reencontrar o pertencimento, princpio e segredo da identidade. Esse pertencimento, em troca, o engaja inteiramente. Quando a memria no est mais em todo lugar, ela no estaria em lugar nenhum se uma conscincia individual, numa deciso solitria, no decidisse dela se encarregar. Menos a memria vivida coletivamente, mais ela tem necessidade de homens particulares que fazem de si mesmos homens-memria. como uma voz interior que dissesse aos Corsos: Voc deve ser Corso, e ao Bretes: preciso ser Breto!. Para compreender a fora e o chamado deste desgnio, talvez fosse necessrio voltar-se para a memria judaica, que conhece hoje, em tantos judeus desjudaizados, uma recente reativao. Nesta tradio que s tem como histria sua prpria memria, ser judeu, se lembrar de ser judeu, mas esta lembrana irrefutvel, uma vez interiorizada, o aprisiona cada vez mais. Memria de que? Em ltima instncia, memria da memria. A psicologizao da memria deu a cada um o sentimento que sua salvao dependeria, finalmente, do quitar uma dvida impossvel.

Memria arquivo, memria dever, preciso um terceiro trao para completar esse quadro de metamorfoses: memria-distncia.Porque nossa relao com o passado, ao menos do modo como ele se revela atravs das produes histricas as mais significativas, completamente diferente daquela que se espera de uma memria. No mais uma continuidade retrospectiva, mas o colocar a descontinuidade luz do dia. Para a histria-memria de antigamente, a verdadeira percepo do passado consistia em considerar que ele no era verdadeiramente passado. Um esforo de lembrana poderia ressucit-lo; o presente tornando-se, ele prprio, sua maneira, um passado reconduzido, atualizado, conjurado enquanto presente por essa solda e por essa ancoragem. Sem dvida, para que haja um sentimento do passado, necessrio que ocorra uma brecha entre o presente e o passado, que aparea um antes e um depois. Mas trata-se menos de uma separao vivida no campo da diferena radical do que um intervalo vivido no modo da filiao a ser restabelecida. Os dois grandes temas de inteligibilidade da histria, ao menos a partir dos Tempos modernos, progresso e decadncia, ambos exprimiam bem esse culto da continuidade, a certeza de saber a quem e ao que devamos o que somos. Donde a imposio da ideia das origens, forma j profana da narrativa mitolgica, mas que contribua para dar a uma sociedade em via de laicizao nacional seu sentido e sua necessidade do sagrado. Mais as origens eram grandes, mais elas nos engrandeciam. Porque venervamos a ns mesmos atravs do passado. esta relao que se quebrou. Da mesma forma que o futuro visvel, previsvel, manipulvel, balizado, projeo do presente, tornou-se invisvel, imprevisvel, incontrolvel; chegamos, simetricamente, da ideia de um passado visvel a um passado invisvel; de um passado coeso a um passado que vivemos como rompimento; de uma histria que era procurada na continuidade de uma memria a uma memria que se projeta na descontinuidade de uma histria. No se falar mais de origens, mas de nascimento. O passado nos dado como radicalmente outro, ele esse mundo do qual estamos desligados para sempre. colocando em evidncia toda a extenso que dele nos separa que nossa memria confessa sua verdade, como na operao que, de um golpe, a suprime.Porque no se deveria crer que o sentimento da descontinuidade se satisfaz com o vago e o difuso da noite. Paradoxalmente, a distncia exige a reaproximao que a conjura e lhe d, ao mesmo tempo, sua vibrao. Nunca se desejou de maneira to sensual o peso da terra sobre as botas, a mo do Diabo do ano mil, e o fedor das cidades no sculo XVIII. Mas a alucinao artificial do passado s precisamente concebvel num regime de descontinuidade. Toda a dinmica de nossa relao com o passado reside nesse jogo sutil do impenetrvel e do abolido. No sentido inicial da palavra, trata-se de uma representao radicalmente diferente daquela trazida pela antiga ressurreio. To integral quanto ela se quis, a ressurreio implicava, com efeito, numa hierarquia da lembrana hbil em ajeitar as sombras e a luz para ordenar a perspectiva do passado sob o olhar de um presente finalizado. A perda de um princpio explicativo nico precipitou-nos num universo fragmentado, ao mesmo tempo em que promoveu todo objeto, seja o mais humilde, o mais improvvel, o mais inacessvel, dignidade do mistrio histrico. Ns sabamos, antigamente, de quem ramos filhos e hoje somos filhos de ningum e de todo mundo. Se ningum sabe do que o passado feito, uma inquieta incerteza transforma tudo em vestgio, indcio possvel, suspeita de histria com a qual contaminamos a inocncia das coisas. Nossa percepo do passado a apropriao veemente daquilo que sabemos no mais nos pertencer. Ela exige a acomodao precisa sobre um objeto perdido. A representao exclui o afresco, o fragmento, o quadro de conjunto; ela procede atravs de iluminao pontual, multiplicao de tomadas seletivas, amostras significativas. Memria intensamente retiniana e poderosamente televisual. Como no fazer a ligao, por exemplo, entre o famoso retomo da narrativa que pudemos notar nas mais recentes maneiras de se escrever a histria e o poder total da imagem e do cinema na cultura contempornea? Narrativa, na verdade, bem diferente da narrativa tradicional, fechada sobre si mesma e com seu recorte sincopado. Como no ligar o respeito escrupuloso pelo documento de arquivo - colocar a prpria pea sob seus olhos -, o particular avano da oralidade - citar os atores, fazer ouvir suas vozes -, autenticidade do direto ao qual fomos habituados? Como no ver, nesse gosto pelo cotidiano no passado, o nico meio de nos restituir a lentido dos dias e o sabor das coisas? E nessas biografias de annimos, o meio de nos levar a apreender que as massas no se formam de maneira massificada. Como no ler nessas bulas do passado que nos fornecem tantos estudos de micro-histria, a vontade de igualar a histria que reconstrumos histria que vivemos? Memria-espelho, dir-se-ia, se os espelhos no refletissem a prpria imagem, quando ao contrrio, a diferena que procuramos a descobrir; e no espetculo dessa diferena, o brilhar repentino de uma identidade impossvel de ser encontrada. No mais uma gnese, mas o deciframento do que somos luz do que no somos mais.Esta alquimia do essencial contribui de maneira bizarra, para fazer do exerccio da histria, cujo impulso brutal em direo ao futuro deveria tender a nos proporcionar, o depositrio dos segredos do presente. Alis, a operao traumtica realiza-se menos pela histria do que pelo historiador. Estranho destino o seu. Seu papel era simples antigamente e seu lugar inscrito na sociedade: se fazer a palavra do passado e barqueiro do futuro. Nesse sentido, sua pessoa contava menos do que seu servio: cabia-lhe ser apenas uma transparncia erudita, um veculo de transmisso, um trao de unio o mais leve possvel entre a materialidade bruta da documentao e a inscrio na memria. Em ltima instncia, uma ausncia obsessiva de objetividade. Da exploso da histria-memria emerge um novo personagem, pronto a confessar, diferentemente de seus predecessores, a ligao estreita, ntima e pessoal que ele mantm com seu sujeito. Ou melhor, a proclam-lo, a aprofund-lo e a fazer, no o obstculo, mas a alavanca de sua compreenso. Porque esse sujeito deve tudo a sua subjetividade, sua criao, sua recriao. ele o instrumento do metabolismo, que d sentido e vida a quem, em si e sem ele, no teria nem sentido nem vida. Imaginemos uma sociedade inteiramente absorvida pelo sentimento de sua prpria historicidade; ela estaria impossibilitada de produzir historiadores. Vivendo integralmente sob o signo do futuro, ela se contentaria dc processos de gravao automticos de si mesma e se satisfaria com mquinas de se auto contabilizar, mandando de volta para um futuro indefinido a tarefa de se compreender a si mesma. Em contrapartida, nossa sociedade, certamente arrancada de sua memria pela amplitude de suas mudanas, mas ainda mais obcecada por se compreender historicamente, est condenada a fazer do historiador um personagem cada vez mais central, porque nele se opera aquilo de que ela gostaria mas no pode dispensar: o historiador aquele que impede a histria de ser somente histria.Da mesma forma que devemos distncia panormica o grande plano e ao estranhamento definitivo uma hiperveracidade artificial do passado, a mudana do modo de percepo reconduz obstinadamente o historiador aos objetos tradicionais dos quais ele se havia desviado, os usuais de nossa memria nacional. Vejam-na novamente na soleira da casa natal, a velha morada nua, irreconhecvel. Com os mesmos mveis de famlia, mas sob uma nova luz. Diante da mesma oficina, mas para uma outra obra. Na mesma pea, mas para um outro papel. A historiografia inevitavelmente ingressada em sua era epistemolgica, fecha definitivamente a era da identidade, a memria inelutavelmente tragada pela histria, no existe mais um homem-memria, em si mesmo, mas um lugar de memria.

III. Os lugares de memria, uma outra histriaOs lugares de memria pertencem a dois domnios, que a tornam interessante, mas tambm complexa: simples e ambguos, naturais e artificiais, imediatamente oferecidos mais sensvel experincia e, ao mesmo tempo, sobressaindo da mais abstrata elaborao.So lugares, com efeito nos trs sentidos da palavra, material, simblico e funcional, simultaneamente, somente em graus diversos. Mesmo um lugar de aparncia puramente material, como um depsito de arquivos, s lugar de memria se a imaginao o investe de uma aura simblica. Mesmo um lugar puramente funcional, como um manual de aula, um testamento, uma associao de antigos combatentes, s entra na categoria se for objeto de um ritual. Mesmo um minuto de silncio, que parece o exemplo extremo de uma significao simblica, ao mesmo tempo o recorte material de uma unidade temporal e serve, periodicamente, para uma chamada concentrada da lembrana. Os trs aspectos coexistem sempre. Trata-se de um lugar de memria to abstrato quanto a noo de gerao? material por seu contedo demogrfico; funcional por hiptese, pois garante, ao mesmo tempo, a cristalizao da lembrana e sua transmisso; mas simblica por definio visto que caracteriza por um acontecimento ou uma experincia vividos por um pequeno nmero uma maioria que deles no participou.O que os constitui um jogo da memria e da histria, uma interao dos dois fatores que leva a sua sobredeterminao recproca. Inicialmente, preciso ter vontade de memria. Se o princpio dessa prioridade fosse abandonado, rapidamente derivar-se-ia de uma definio estreita, a mais rica em potencialidades, para uma definio possvel, mais malevel, susceptvel de admitir na categoria todo objeto digno de uma lembrana. Um pouco como as boas regras da crtica histrica de antigamente, que distinguiam sabiamente as fontes diretas, isto , aquelas que uma sociedade voluntariamente produziu para serem reproduzidas como tal - uma lei, uma obra de arte, por exemplo - e a massa indefinida dc fontes indiretas, isto todos os testemunhos deixados por uma poca sem duvidar de sua utilizao futura pelos historiadores. Na falta dessa inteno de memria os lugares de memria sero lugares de histria.Em contrapartida, est claro que, se a histria, o tempo, a mudana no interviessem, seria necessrio se contentar com um simples histrico dos memoriais. Lugares portanto, mas lugares mistos, hbridos e mutantes, intimamente enlaados de vida e de morte, de tempo e de eternidade; numa espiral do coletivo e do individual, do prosaico e do sagrado , do imvel e do mvel. Anis de Moebius enrolados sobre si mesmos. Porque, se verdade que a razo fundamental de ser de um lugar de memria parar o tempo, bloquear o trabalho do esquecimento, fixar um estado de coisas, imortalizar a morte, materializar o imaterial para - o ouro a nica memria do dinheiro - prender o mximo de sentido num mnimo de sinais, claro, e isso que os torna apaixonantes: que os lugares de memria s vivem aptido para a metamorfose, no incessante ressaltar de seus significados e no silvado imprevisvel de suas ramificaes.Dois exemplos, em registros diferentes. Veja-se o calendrio revolucionrio: se lugar de memria, visto que, enquanto calendrio, ele deveria fornecer os quadros a priori de toda memria possvel e enquanto revolucionrio, ele se proporia, por sua nomenclatura e por sua simbologia, a "abrir um novo livro para a histria" como ambiciosamente diz seu organizador, e "transportar inteiramente os franceses para si mesmos", segundo um outro de seus relatores. E, nesse objetivo, parar a histria no momento da Revoluo, indexando o futuro dos meses, dos dias, dos sculos, e dos anos sobre a imagem da epopeia revolucionria. Ttulos j suficientes! O que, no entanto, o constitui ainda mais como lugar de memria, aos nossos olhos, sua derrota em se tomar aquilo que quiseram seus fundadores. Estivssemos, ainda hoje, vivendo sob seu ritmo, ele teria se nos tornado to familiar, como um calendrio gregoriano, que teria perdido sua virtude de lugar de memria. Ele teria se fundido nossa paisagem memorial e s serviria para compatibilizar todos os outros lugares de memria imaginveis. Mas sua derrota no total: datas-chaves, acontecimentos emergem para sempre a ele ligados. Vendmiaire, Thermidor, Brumaire. E os motivos de memria viram-se sobre si mesmos, duplicam-se em espelhos deformantes que so sua verdade. Nenhum lugar de memria escapa aos seus arabescos fundadores.Tomemos, desta vez, o clebre caso "Tour de la France par deux enfants": lugar de memria igualmente indiscutvel, pois que, da mesma forma que o Petit Lavisse formou a memria de milhes de jovens Franceses, no tempo em que um ministro da instruo pblica podia tirar seu relgio de seu bolso para declarar de manh, s oito horas e cinco minutos: Todas as nossas crianas passam os Alpes. Lugar de memria, tambm, pois que inventrio do que preciso saber sobre a Frana, narrao identificadora e viagem iniciadora. Mas as coisas se complicam: uma leitura atenta logo mostra que, desde o seu aparecimento, em 1877, "Le Tour" esteriotipa uma Frana que no existe mais e que, nesse ano do 16 de maio, que v a solidificao da Repblica, tira sua seduo de um sutil encantamento pelo passado. Livro para crianas cujo sucesso se deve, em parte, memria dos adultos, como sempre. Eis para o montante da memria, e para o seu jusante? Trinta e cinco anos aps sua publicao, quando a obra ainda reina s vsperas da guerra, ela certamente lida como chamada, tradio j nostlgica: prova disso, apesar de seu remanejamento e de sua atualizao, a edio antiga parece vender melhor do que a nova. Depois o livro fica mais raro, s utilizado nos meios residuais, no fundo de campos distantes; ele esquecido. "Le Tour de la France" toma-se aos poucos raridade, tesouro de sto, ou documento para os historiadores. Ele deixa a memria coletiva para entrar na memria histrica, depois na memria pedaggica. Para o seu centenrio, em 1977, no momento em que "Le Cheval dOrgueil" alcana um milho de exemplares e quando a Frana giscardiana e industrial, mas j atingida pela crise econmica, descobre sua memria oral e suas razes camponesas, ele reimpresso, e "Le Tour" entra novamente na memria coletiva, no a mesma, enquanto espera novos esquecimentos e novas reencarnaes O que patenteia essa vedete dos lugares da memria, sua inteno inicial ou o retomo sem fim dos ciclos de sua memria? Evidentemente os dois: iodos os lugares de memria so objetos no abismo.Esse mesmo princpio de duplo pertencimento que permite operar, na multiplicidade dos lugares, uma hierarquia, uma delimitao dc seu campo, um repertrio de suas escalas. Se vemos efetivamente as grandes categorias de objetos que sobressaem do gnero - tudo o que vem do culto dos mortos, tudo que sobressai do patrimnio, tudo o que administra a presena do passado no presente - est portanto claro que alguns, que no entram na estrita definio, podem isso pretender e que, inversamente, muitos, a maior parte mesmo, daqueles que dele fazem parte por principio, devem, de fato ser excludos. O que constitui certos stios pr-histricos, geogrficos ou arqueolgicos em lugares, e mesmo em lugares de destaque, muitas vezes o que deveria precisamente lhes ser proibido, a ausncia absoluta de vontade de memria, compensada pelo peso esmagador de que o tempo, a cincia, o sonho e a memria dos homens os carregou. Em contrapartida, qualquer limite que tem a mesma importncia que o Rhin, ou o Finistre, esse fim de terra, as quais as clebres pginas de Michelet, por exemplo, deram seus ttulos de nobreza. Toda constituio, todo tratado diplomtico so lugares de memria, mas a constituio e 1793, no da mesma forma que a de 1791, com a Declarao dos direitos do homem, lugar fundador de memria; e a paz dc Nimgue, no da mesma forma que as duas extremidades da histria da Europa, a diviso de Verdun e a conferncia de Yalta.Na mistura, a memria que dita e a histria que escreve. por isso que dois domnios merecem que nos detenhamos, os acontecimentos e os livros de histria, porque, no sendo mistos de memria e histria, mas os instrumentos, por excelncia, da memria em histria, permitem delimitar nitidamente o domnio. Toda grande obra histrica e o prprio gnero histrico no so uma forma de lugar da memria? Todo grande acontecimento e a prpria noo de acontecimento no so, por definio, lugares de memria? As duas questes exigem uma resposta precisa.Entre os livros de histria so unicamente lugares de memria aqueles que se fundam num remanejamento efetivo da memria ou que constituem os brevirios so pedaggicos. Os grandes momentos de fixao de uma nova memria histrica no so to numerosos na Frana. No sculo XIIII, as "Grandes Chroniques de France" condensam a memria dinstica e estabelecem o modelo de vrios sculos de trabalho histrico. , no sculo XVI, durante as guerras dc religio, a escola dita da "histria perfeita" destri a lenda das origens troianas da monarquia e restabelece a antiguidade gaulesa: as "Recherches de la France", de Etienne Pasquier (1599), constituem, na prpria modernidade do ttulo, uma ilustrao emblemtica. A ilustrao do fim da Restaurao introduz bruscamente a concepo moderna de histria: as "Lettres sur l'histoire de France" , de Augustin Thierry (1820) constituindo o incio e sua publicao definitiva em volume, em 1827 coincidindo, prximo de alguns meses, com o verdadeiro primeiro livro de um ilustre debutante, o "Prcis dhistoire moderne" de Michelet, e o comeo do curso de Guizot sobre a histria da civilizao da Europa e da Frana. Enfim, a histria nacional positiva cuja "Revue historique" representa o manifesto (1876) e cuja "Histoire de France" de Lavisse, em vinte e sete volumes, constitui o monumento. O mesmo as memrias que, por seu prprio nome, poderiam parecer lugares de memria; ou mesmo as autobiografias ou os jornais ntimos. As "Mmoires doutre-tombe", a "Vie de Henry Brulard", ou o "Journal d'Amiel" so lugares de memria, no porque so melhores ou maiores, mas porque eles complicam o simples exerccio da memria com um jogo de interrogao sobre a prpria memria. Pode-se dizer o mesmo das Memrias de homens de Estado. De Sully a de Gaulle, do "Testament" de Richelieu ao "Memorial de Sainte-Helne" e ao "Journal" de Poincar, independentemente do valor desigual dos textos, o gnero tem suas constantes e suas especificidades: implica num saber de outras Memrias, num desdobramento do homem de escrita e do homem de ao, na identificao de um discurso individual com outro coletivo e na insero de uma razo particular numa razo de Estado: tantos motivos que obrigam, num panorama da memria nacional, a consider-los como lugares.E os grandes acontecimentos? Somente dois tipos dentre eles so relevantes, que no dependem, em nada, de seu tamanho. De um lado os acontecimentos, por vezes nfimos, apenas notados no momento, mas aos quais, em contraste, o futuro retrospectivamente conferiu a grandiosidade das origens, a solenidade das rupturas inaugurais. De outro lado, os acontecimentos onde, no limite, nada acontece, mas que so imediatamente carregados de um sentido simblico e que so eles prprios, no instante de seu desenvolvimento, sua prpria comemorao antecipada; a histria contempornea, interposta pela mdia, multiplicando todos os dias tentativas de natimortos. De um lado, por exemplo, a eleio de Hugo Capeto, incidente sem destaque mas ao qual uma posteridade de dez sculos terminada no cadafalso atribui um peso que ele no tinha na origem. De outro lado, o vago de Rethondes, o apertar a mo de Montoire ou a descida dos Champs-lyses na Liberao. O acontecimento fundador ou o acontecimento espetculo. Mas em nenhum caso o prprio acontecimento; admiti-lo dentro da noo significaria negar a especificidade. , ao contrrio, sua excluso que a delimita: a memria pendura-se em lugares, como a histria em acontecimentos.Nada impede, em contrapartida, no interior do campo, que se imaginem todas as distribuies possveis e todas as classificaes necessrias. Desde os lugares mais naturais, oferecidos pela experincia concreta, como os cemitrios, os museus, e os aniversrios, at os lugares mais intelectualmente elaborados, dos quais ningum se privar; no somente a noo de gerao, j evocada, de linhagem, de "regio-memria, mas aquela de "partilhas", sobre as quais todas as percepes do espao francs; ou as de "paisagem como pintura, imediatamente inteligvel, se pensamos particularmente em Corot ou em "Sainte-Victoire" de Czanne. Se insistimos sobre o aspecto material dos lugares, eles prprios se dispem num vasto degrad. Veja-se, primeiro, os portteis, no os menos importantes visto que o povo da memria d um exemplo maior com as tbuas da lei; veja-se o topogrfico, que devem tudo a sua localizao exata e a seu enraizamento ao solo: assim, por exemplo, todos os lugares tursticos, assim a Biblioteca nacional to ligada ao hotel Mazarin quanto os Arquivos nacionais ao hotel Soubise. Veja-se os lugares monumentais, que no saberamos confundir com os lugares arquiteturais. Os primeiros, esttuas ou monumentos aos mortos, conservam seu significado em sua existncia intrnseca; mesmo se sua localizao est longe de ser indiferente, uma outra encontraria sua justificao sem alterar a deles. O mesmo no acontece com os conjuntos construdos pelo tempo, e que tiram sua significao das relaes complexas entre seus elementos: espelhos do mundo ou de uma poca, como a catedral de Chartres ou o palcio de Versalhes.Apegar-nos-emos, ao contrrio dominante funcional? Desdobrar-se- o leque dos lugares nitidamente consagrados manuteno de uma experincia intransmissvel e que desaparecem com aqueles que o viveram, como as associaes de antigos combatentes, aqueles cuja razo de ser, tambm passageira, de ordem pedaggica, como os manuais, os dicionrios, os testamentos ou os livros de razo" que, na poca clssica, os chefes de famlia redigiam para o uso de seus descendentes. Seremos ns, enfim, mais sensveis ao componente simblico? Oporemos, por exemplo, os lugares dominantes aos lugares dominados. Os primeiros, espetaculares e triunfantes, imponentes e geralmente impostos, quer por uma autoridade nacional, quer por um corpo constitudo, mas sempre de cima, tem, muitas vezes a frieza ou a solenidade das cerimnias oficiais. Mais nos deixamos levar do que vamos a eles. Os segundos so lugares refgio, o santurio das fidelidades espontneas e das peregrinaes do silncio. o corao vivo da memria. De um lado o Sacr-Coeur, de outro a peregrinao popular a Lourdes; de um lado, os funerais nacionais de Paul Valry, de outro, o enterro de Jean-Paul Sartre; de um lado a cerimnia fnebre de De Gaulle em Notre Dame, de outro, o cemitrio de Colombey.Poderamos refinar infinitamente as classificaes. Opor os lugares pblicos aos lugares privados, os lugares dc memria puros, que esgotam inteiramente sua funo comemorativa - como os elogios fnebres, Douaumont ou o muro dos Federados -, e aqueles cuja dimenso dc memria uma s entre o feixe de suas significaes simblicas, bandeira nacional, circuito de festa, peregrinaes, etc. O interesse desse esboo de tipologia no est nem em seu rigor nem em sua exausto. Nem mesmo em sua riqueza evocadora. Mas no fato que ela seja possvel. Ela mostra que um fio invisvel liga objetos sem uma relao evidente, e que a reunio sob o mesmo chefe do Pre-Lachaise e da Estatstica geral da Frana no o encontro surrealista do guarda chuva e do ferro de passar. H uma rede articulada dessas identidades diferentes, uma organizao inconsciente da memria coletiva que nos cabe tomar consciente de si mesma. Os lugares so nosso momento dc histria nacional.Uma caracterstica simples, mas decisiva, os coloca radicalmente a parte de todos os tipos de histria, antigos e novos, aos quais estamos habituados Todas as aproximaes histricas e cientficas da memria, sejam elas dirigidas a da nao ou a das mentalidades sociais, tinham a ver com a "realia", com as prprias coisas cuja realidade em sua maior vivacidade elas se esforavam por apreender. Diferentemente de todos os objetos da histria, os lugares de memria no tem referentes na realidade. Ou melhor, eles so, eles mesmos, seu prprio referente, sinais que devolvem a si mesmos, sinais em estado puro. No que no tenham contedo, presena fsica ou histria; ao contrrio. Mas o que os faz lugares dc memria aquilo pelo que, exatamente, eles escapam da histria. Templum: recorte no indeterminado do profano - espao ou tempo, espao e tempo - de um crculo no interior do qual tudo conta, tudo simboliza, tudo significa. Nesse sentido, o lugar de memria um lugar duplo: um lugar de excesso, fechado sobre si mesmo, fechado sobre sua identidade, e recolhido sobre seu nome, mas constantemente aberto sobre a extenso de suas significaes. o que faz sua histria a mais banal e a menos comum. Assuntos evidentes, material o mais clssico, fontes disponveis, os mtodos menos sofisticados. Teramos a impresso de retomar histria de anteontem. Mas trata-se de outra coisa. Esses objetos s so apreensveis na empiria a mais imediata, mas o mecanismo, a trama est em outro lugar, inapto para se exprimir nas categorias da histria tradicional. Critica histrica tornada toda histria critica, e no somente de seus prprios instrumentos de trabalho. Despertada de si mesma para viver no segundo grau. Histria puramente transferencial que, como a guerra, uma arte de execuo, feita da felicidade frgil da relao com o objeto refrescado e do envolvimento do historiador com seu sujeito. Uma histria que s repousa, afinal das contas, sobre o que ela mobiliza, um lao firme, impalpvel, apenas dizvel, o que permanece em ns de apego carnal desenraizvel a esses smbolos, no entanto, j murchos. Revivncia de uma histria moda Michelet, que faz invencivelmente pensar nesse acordar do luto do amor do qual Proust falou to bem, esse momento quando a influncia obsessiva da paixo se levanta, enfim, mas quando a verdadeira tristeza de no mais sofrer daquilo que nos fez tanto sofrer e que s passamos a compreender com as razes da cabea e mais o irracional do corao.Referncia bem literria. Deve-se lament-la ou, ao contrrio, justific-la completamente? Ela a conserva uma vez mais da poca. A memria, com efeito, s conheceu duas formas de legitimidade: histrica ou literria. Elas foram, alis, exercidas paralelamente mas, at hoje, separadamente. A fronteira hoje desaparece e sobre a morte quase simultnea da histria-memria e da histria-fico, nasce um tipo de histria que deve seu prestgio e sua legitimidade sua nova relao com o passado, um outro passado. A histria nosso imaginrio de substituio. Renascimento do romance histrico, moda do documento personalizado, revitalizao literria do drama histrico, sucesso da narrativa de histria oral, como seriam explicados seno como a etapa da fico enfraquecida? O interesse pelos lugares onde se ancora, se condensa e se exprime o capital esgotado de nossa memria coletiva ressalta dessa sensibilidade. Histria, profundidade de uma poca arrancada de sua profundidade, romance verdadeiro de uma poca sem romance verdadeiro. Memria, promovida ao centro da histria: o luto manifesto da literatura.Proj. Histria, So Paula, (10), Dez. 1993