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Entre nós , por Luiz Ruffato

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15/4/2014 Entre nós | Opinião | Edição Brasil no EL PAÍS

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OPINIÃO

LUIZ RUFFATO 15 ABR 2014 - 08:55 BRT

Entre nós

Um em cada quatro homens acredita poder aquilatar qual mulher se veste “decentemente” econdenar a que deve ser violentada

 Arquivado em:    Violência doméstica    Violência   Brasil    América do Sul    América Latina   Problemas sociais    América    Acontecimentos   Sociedade   Justiça

Causou escândalo a descoberta de que estava errado o resultado do levantamento divulgadopelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostrando que 65% dos brasileirosacham que mulheres que usam roupa curta merecem ser estupradas. Respiramos aliviados:corrigidos os dados, constatamos que “apenas” 26% pensam desta maneira... Na verdade,deveríamos nos sentir envergonhados que um em cada quatro homens acredita ter poder de

aquilatar quais mulheres se vestem “decentemente” e, a partir desse julgamento, condenar asque, não cumprindo este padrão, devem ser violentadas. Até porque, outros dados da mesmapesquisa, que passaram quase despercebidos, explicitam, por exemplo, que 58% pensam quese as mulheres “soubessem se comportar” haveria menos estupros...

Outro fato estarrecedor: a mesma pesquisa aponta que 23% concordam parcialmente e 58%concordam totalmente que em briga de marido e mulher não se mete a colher – tristeconstatação, a maioria absoluta dos brasileiros é conivente com a violência doméstica. Não é àtoa que ocupamos o vergonhoso sétimo lugar, entre 84 países pesquisados, com maior número de mulheres vítimas de brigas entre quatro paredes com marido ou companheiro. São4,5 assassinatos, em média, a cada grupo de 100 mil – foram 243 denúncias de agressão por 

dia no ano passado, com um saldo, na última década, de 50 mil mulheres mortas. E é sabidoque, como também acreditamos que roupa suja se lava em casa, esses números são bastantesubestimados...

Logo ao chegar em Juiz de Fora, no começo dos anos oitenta, conheci L., cinco anos maisvelha. Bonita, inteligente, sensível, culta, mas triste, imensamente triste. Sucumbia a umainsônia colossal, que além de amarfanhar seu rosto, cativo de uma aparência sempre exausta,dirigia seu humor errático. Ela me adotou como uma espécie de irmão caçula – nossa históriade penúria e sobrevivência nos aproximava, soldando uma mútua admiração. Filha depequenos comerciantes de Muriaé, L. decidira aos 17 anos mudar-se para Juiz de Fora paracontinuar os estudos. Aos 18 entrou para o curso de Letras na Universidade Federal. Semapoio financeiro, conseguiu emprego como professora de literatura num cursinho pré-vestibular.

L. estava imbuída daquela certeza, que nos acomete na idade dourada, de que promover mudanças no mundo só depende do empenho que colocamos na realização de nossastarefas. Então, ela frequentava reuniões políticas na Igreja da Glória, participava de encontrosde grupos feministas e comitês de solidariedade os mais diversos, desfilava em passeatas,envolveu-se com grupos de estudo, cineclubes, teatro alternativo, poesia marginal, tornou-semembro do diretório acadêmico da faculdade. E ainda administrava tempo para ler, sair, porquea vida, essa, pulsava sempre urgente.

Nas horas em que a melancolia a abraçava, L. gostava de se refugiar na solidão das galerias de

arte que pululavam na cidade, em uma época em que os artistas, para além do compromissoestético, cultivavam o engajamento político. Num dia de chuva, ela entrou num pavilhão queabrigava a mostra de um artista plástico local, de cerca de quarenta anos, e que já angariaracerto renome no Rio de Janeiro e Belo Horizonte. L. transitava de um quadro a outro, extasiada,quando surgiu à sua frente um homem simpático e de bela feição. Ele perguntou se estava

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gostando da exposição, ela respondeu entusiasmada e ele pronto se apresentou como o autor daquelas obras. L., que pensava que os artistas pertenciam a uma casta superior, estremeceu.

Imediatamente, ele a convidou para tomar um café ali por perto. Ela acatou, porque desejavaembeber-se das palavras daquele ser que se comunicava com os deuses. Terminado o café eestiada a chuva, ele a chamou para conhecer seu ateliê. L. sem titubear aceitou, e caminharamcomo mestre e discípula pelas ruas molhadas em direção a um velho galpão numa parte ermada cidade. Quando entraram, ela observou com arrebatamento a bagunça do local: espalhados,pincéis, tubos de pigmentos, aventais, cavaletes, espátulas, telas em branco, um quadrosemiesboçado, dois ou três em processo de f inalização. O cheiro forte de tinta e aguarráspenetrou em suas narinas, deixando-a tonta. Ele perguntou se ela desejava beber algo, L.respondeu que sim, um copo d'água. Ele sorriu, mas ela não entendeu, encantada com a luzque, entrando pelas frestas do teto esburacado, descia encachoeirada mulplicando-se em milcores.

Daí para a frente, de pouca coisa L. se recordava. Quando deu por si, estava deitada no chãoimundo do ateliê, o vestido levantado, sem calcinha, marcas roxas espalhadas pelos braços,pescoço, pernas. O homem, na semiescuridão de um canto, arfava bestial, entre saciado eassustado, um cigarro aceso entre os dedos. Ela levantou-se com dificuldade, ajeitou a roupa,e em silêncio dirigiu-se à porta. Ele sussurrou, imperativo, que ela não contasse para ninguém

o que havia ocorrido porque podia ser pior, pertencia a uma família importante, tinha dinheiro,prestígio, influência...

Quando a conheci, pouco mais de um ano depois, L. cursava o último período da faculdade.Não freqüentava reuniões políticas, não participava de encontros de grupos feministas ecomitês de solidariedade, não desfilava em passeatas, não se envolvia com grupos de estudo,cineclubes, teatro alternativo, poesia marginal, renunciara ao cargo no diretório acadêmico dafaculdade. Não saía para bater papo nos bares, não se interessava por nada. A vida perdera aurgência.

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