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ENTRE O ALUNO REAL E O IDEAL: REFLEXÕES SOBRE A FORMAÇÃO DOCENTE E A PRÁTICA PEDAGÓGICA Esse painel decorre de uma reflexão conjunta entre professores da Educação Básica de uma escola pública Federal do Rio de Janeiro e o Grupo de Pesquisa Linguagem, Cognição Humana e Processos Educacionais do Programa de Pós-graduação em Educação na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). A temática central dessa discussão está relacionada ao modo como se concebe o aluno em contextos que perpassam pela formação docente, planejamento e prática pedagógica. No primeiro artigo, procurou-se lançar luz sobre questões relativas à formação de professores, considerando a dimensão autoral do trabalho pedagógico e a postura de pesquisador frente ao cotidiano escolar. No segundo trabalho, ao analisar o discurso de professores e alunos a respeito de suas vivências num projeto de inclusão da referida escola, buscou- se discutir a importância do planejamento pedagógico voltado para questões relacionadas à autoestima e ao fracasso escolar. No terceiro, partindo de um relato de experiência de ensino, procurou-se discutir a viabilidade, limites e possibilidades de utilização de atividades gastronômicas como elemento central de práticas pedagógicas que considerem a individualidade e a ressignificação dos saberes escolarizados. Tais reflexões nos levam a crer que, a partir do momento em que o professor recria sua prática docente com o objetivo de alcançar o aluno estigmatizado, que foge aos padrões determinados pela sociedade, ele contribui diretamente para o processo de inclusão e aprendizagem. Entende-se que a teoria e a prática estão intrinsecamente relacionadas e se influenciam em um movimento dialético, de tal modo que a ação pedagógica não pode distanciar-se da teorização e da reflexão. Há que se levar em conta que os elementos teóricos só podem adquirir existência e validade no campo da Educação se encontrarem reciprocidade no exercício da atividade docente. Palavras-Chave: Formação Docente, Inclusão, Práticas Pedagógicas XVIII ENDIPE Didática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira 1693 ISSN 2177-336X

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ENTRE O ALUNO REAL E O IDEAL: REFLEXÕES SOBRE A FORMAÇÃO

DOCENTE E A PRÁTICA PEDAGÓGICA

Esse painel decorre de uma reflexão conjunta entre professores da Educação Básica de

uma escola pública Federal do Rio de Janeiro e o Grupo de Pesquisa Linguagem,

Cognição Humana e Processos Educacionais do Programa de Pós-graduação em

Educação na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). A temática central

dessa discussão está relacionada ao modo como se concebe o aluno em contextos que

perpassam pela formação docente, planejamento e prática pedagógica. No primeiro

artigo, procurou-se lançar luz sobre questões relativas à formação de professores,

considerando a dimensão autoral do trabalho pedagógico e a postura de pesquisador

frente ao cotidiano escolar. No segundo trabalho, ao analisar o discurso de professores e

alunos a respeito de suas vivências num projeto de inclusão da referida escola, buscou-

se discutir a importância do planejamento pedagógico voltado para questões

relacionadas à autoestima e ao fracasso escolar. No terceiro, partindo de um relato de

experiência de ensino, procurou-se discutir a viabilidade, limites e possibilidades de

utilização de atividades gastronômicas como elemento central de práticas pedagógicas

que considerem a individualidade e a ressignificação dos saberes escolarizados. Tais

reflexões nos levam a crer que, a partir do momento em que o professor recria sua

prática docente com o objetivo de alcançar o aluno estigmatizado, que foge aos padrões

determinados pela sociedade, ele contribui diretamente para o processo de inclusão e

aprendizagem. Entende-se que a teoria e a prática estão intrinsecamente relacionadas e

se influenciam em um movimento dialético, de tal modo que a ação pedagógica não

pode distanciar-se da teorização e da reflexão. Há que se levar em conta que os

elementos teóricos só podem adquirir existência e validade no campo da Educação se

encontrarem reciprocidade no exercício da atividade docente.

Palavras-Chave: Formação Docente, Inclusão, Práticas Pedagógicas

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

1693ISSN 2177-336X

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AUTOESTIMA E APRENDIZAGEM: REFLEXÕES SOBRE UMA PRÁTICA

PEDAGÓGICA INCLUSIVA

Carolina Barreiros de Lima

Colégio Brigadeiro Newton Braga, [email protected]

Janaína Moreira Pacheco de Souza

Universidade Estadual do Rio de Janeiro, [email protected]

RESUMO

No presente trabalho discutiremos a importância do planejamento pedagógico voltado

para questões relacionadas à autoestima e ao fracasso escolar. Os dados analisados são

provenientes de duas pesquisas realizadas com alunos e professores de um projeto de

inclusão, no ano de 2015, em uma escola pública federal do Rio de Janeiro. Para

obtenção desses dados, aplicou-se na primeira pesquisa, uma atividade para quinze

alunos do 1º ano do ensino médio, intitulada “representação por metáfora”, cujo

objetivo era conhecer através de metáforas e de uma breve narrativa, um pouco da

autoimagem que eles faziam após um ano de inserção no projeto piloto da referida

escola. Os dados da segunda pesquisa resultaram da análise de um questionário aplicado

a doze professores, durante um dos encontros semanais que teve como pauta a reflexão

sobre o processo ensino-aprendizagem dos/para alunos da turma em questão. Os

resultados das representações dos alunos indicaram que houve uma mudança na imagem

que eles faziam de si mesmos durante esse primeiro ano de projeto e que a elevação da

autoestima estava relacionada ao modo como os profissionais conduziram sua prática

pedagógica. Já os resultados da segunda pesquisa, indicam que os professores

reconhecem a importância de estarem inseridos em um projeto que visa o

desenvolvimento de alunos que têm dificuldade de aprendizagem e baixa autoestima,

porém, não aparece explicitamente nas falas que o trabalho pedagógico estava

direcionado para a questão da autoestima. Todavia, fica notório que, a partir do

momento que o professor ressignifica sua prática pedagógica com o objetivo de alcançar

o aluno estigmatizado que foge aos padrões determinados pela sociedade, ele contribui

diretamente para o processo de inclusão e aprendizagem. Para findar a discussão,

propõe-se uma reflexão sobre a iminência entre o planejamento pedagógico e questões

do fracasso escolar.

Palavras-chave: Práticas pedagógicas, fracasso escolar, autoestima.

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INTRODUÇÃO

Iniciaremos nossa reflexão a partir de uma indagação fundamental: será que

direcionamos nosso trabalho pedagógico para a figura do aluno real que temos em nossa

sala de aula?

Pensar sobre essa proposição é questionar que sistemas definem primariamente

o que é o aluno e qual o interesse desse indivíduo. Mas infelizmente isso não é

discutido, porque a figura do aluno chega muitas vezes até nós, professores, como uma

abstração, como algo dado pelo sistema vigente. E, a escola contribui para isso, quando

não propicia uma política interna que possibilite o debate amplo a respeito do

planejamento docente, que deveria ir além do conteúdo.

A grande discussão é fazer com que os professores pensem sobre a realidade que

os cerca, para assim poderem compreender que muitas vezes ser professor é ir além de

ser instrutor. Ensinar coisas como se estivesse transmitindo pacotes prontos para

pessoas que absorvem tudo da mesma maneira não deveria ser a realidade da educação.

Antes disso, esse valioso espaço de encontros e trocas poderia ser visto como algo

muito mais abrangente e rico. Alargar essa concepção faz com que deixemos de

acreditar no protótipo que a escola cria, de que parte dela é feita de sujeitos não-

aprendentes, e faz com que o professor tenha que pensar naquilo que ensina, no modo

como ensina e o porquê daquele ensino.

Na educação é fundamental que o “aluno” seja um conceito aberto, um sistema

amplo, complexo, para que possamos transitar entre a diversidade da sala de aula. É

preciso assisti-lo sem tentar coletivizar. É pensar na ideia de que o aluno vai variar em

todos os sentidos, em todas as horas e, quanto mais o aluno variar, menos controle eu

terei sobre a turma. É pensar na possibilidade de levar ao professor uma reflexão do

aluno não como um sujeito estável, sem transitoriedade.

A chave epistemológica para a educação multifacetada precisa ser encontrada

dentro de uma concepção de sistema escolar que não seja estática, pois temos uma

sociedade que modifica a cada hora, na instabilidade. As pessoas parecem buscar na

escola a todo o momento uma estabilidade inexistente. Para mudar a escola, é

importante mudar a concepção de sistema, e torná-lo instável. Porque além de coerente

com a sociedade, admite ter diferentes tipos sociais, com desejos e capacidades

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diferentes. Nós somos instáveis dentro de uma sala de aula que se baseia na

estabilidade.

Implementar esse tipo de fazer pedagógico mais reflexivo e individualizado tem

sido o grande desafio de um grupo de professores pertencentes a uma escola tradicional

do Rio de Janeiro. Esse desafio implica em transgredir a cultura escolar sustentada pela

instituição há anos. E para que esse trabalho se torne viável, promover um planejamento

escolar que reconheça a diversidade da sala de aula, atendendo alunos com

desenvolvimento diferenciado e com necessidades educativas diversas são fatores

fundamentais a fim de ressignificar a prática docente.

Não se pretende que a discussão aqui proposta tenha um tom de sensibilização,

sob o risco de não se conseguir alcançar o professor. Para se discutir a implementação

de políticas que visem alcançar o aluno que possui déficit de aprendizagem, baixa

autoestima e problemas sociais, é importante levar o professor a discutir de que forma

ele, como educador, pode contribuir para a transformação desses alunos. Ressaltando

que essa transformação, obrigatoriamente, deve partir da via intelectual, para não

destituir a condição de uma escola que promove o conhecimento.

Diante dessas reflexões, pretende-se que esse estudo traga à tona algumas

circunstâncias que nos levem a pensar sobre a realidade do aluno excluído e a posição

do professor como agente da situação que deve tratá-lo como um ser possível. Um

professor que seja capaz de sair da zona de conforto e que se permita entender seu

aluno, levando em consideração suas verdades. Para tanto, o cerne deste trabalho é

entender em que medida o planejamento da atividade docente está relacionado à

manutenção do processo de exclusão de alunos com dificuldade de aprendizagem e

baixa autoestima. Procurou-se através da comparação de relatos de alunos e professores

responder ao seguinte problema de pesquisa: em que medida o planejamento considera

as individualidades presentes nas salas de aula? Buscou-se também tratar de questões

como: de que modo alunos e professores percebem a relação entre autoestima e

aprendizagem? No planejamento docente dessas turmas, há um olhar dos professores

focado para questões da autoestima?

Também é válido ressaltar que essa reflexão não propõe modelos prontos, já que

não existe uma única alternativa ou uma única prática pedagógica que consiga alcançar

todas as demandas do processo ensino-aprendizagem. Seria uma falácia dizer que uma

única metodologia serviria de exemplo para contemplar todos os problemas que nos

deparamos em salas de aula.

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Para entendermos o contexto deste estudo, retrataremos a problemática na qual

estavam inseridos os sujeitos da pesquisa na escola em questão. O conselho de classe

final do ano de 2013 apontou um número expressivo de alunos reprovados no 9º ano, os

quais apresentavam sérias dificuldades de aprendizagem e defasagem série/idade. Tendo

em vista a real situação e a hipótese de que os métodos que estavam sendo aplicados há

anos não estavam resolvendo efetivamente os problemas referentes à aprendizagem

desses alunos, propôs-se à direção do colégio, um projeto de ensino diferenciado.

Experimentalmente, a proposta era abrir uma turma com os alunos que tinham

os piores rendimentos e a maior defasagem série/idade. O objetivo era trabalhar com

eles de uma forma diversa, com vistas a enxergar o indivíduo real que tínhamos em sala,

para assim podermos entender e trabalhar suas reais dificuldades. A proposta convergia

com o pensamento de Vygotsky (1984), ao dizer que “o ser humano se desenvolve de

dentro para fora e de fora para dentro”.

A questão de rever a metodologia de ensino-aprendizagem foi baseada na

experiência pedagógica de que se o aluno souber ler e escrever de modo a compreender

e transmitir com clareza e objetividade o que leu e escreveu, além de realizar com

propriedade as operações matemáticas no conjunto dos números reais, acreditar-se-ia

que ele poderia compreender os demais conteúdos curriculares. Uma das preocupações

apresentadas era evitar a reprovação e, o consequente jubilamento, pois, na instituição

pesquisada, o aluno que não consegue a promoção ao ano de escolaridade seguinte, por

duas vezes consecutivas, tem a sua matrícula cancelada.

Para tanto, do ponto de vista curricular priorizou-se, com a adoção de uma carga

horária ampliada, as disciplinas de Matemática e Língua Portuguesa. Além das

disciplinas obrigatórias, foram inseridas na grade dessa turma outras como Filosofia,

Sociologia e Música, com a finalidade de pautar algumas discussões e socializar o

grupo. O Serviço de Orientação Psicopedagógica (SOPP) da escola se planejou para

fazer um acompanhamento efetivo da turma, através de encontros semanais com

professores e reuniões frequentes de pais, que de fato ocorreram ao longo do ano.

A questão estrutural e pedagógica já estava traçada, porém, ao iniciar o trabalho

não contou-se com a rejeição desses alunos. As primeiras semanas foram difíceis e eles

não aceitavam fazer parte de um projeto que estava sendo rotulado pela escola como o

“projeto dos repetentes”. Na visão deles, “se os diluíssem em outras turmas, seria

melhor”.

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Foram muitas e muitas conversas até que compreendessem que buscávamos não

excluí-los ao conduzir um trabalho de maneira diferenciada, uma vez que o modelo

antigo não surtia efeito.

Aos poucos os professores enxergaram que paralelamente à dificuldade de

aprender estava a questão da autoestima. Eles não se viam como alunos, mas como um

conjunto de pessoas que estavam fadados ao fracasso e à jubilação dentro da escola.

No início de 2015, uma pesquisa realizada com os professores (LIMA; et al,

2015) e outra feito com os alunos do projeto (SOUZA; LIMA, 2015) apontaram que o

trabalho realizado vinha promovendo uma melhora na autoestima desses alunos. As

falas das famílias nas reuniões de pais também apontavam para esse resultado. Porém,

os professores visualizaram que a proposta vinha se desenvolvendo de forma muito

intuitiva e sem um aporte teórico que os auxiliasse no processo. E foi a partir disso, que

uma série de ações e reflexões foram propostas no sentido de aprimorar o trabalho e as

ações pedagógicas que vinham sendo desenvolvidas.

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS:

Para a realização da investigação proposta, reunimos aqui os resultados de duas

pesquisas realizadas com alunos e professores do projeto, no ano de 2015. A coleta de

dados se deu em dois momentos diferenciados. A primeira foi feita com quinze alunos

de uma turma do ensino médio através de uma atividade em sala, denominada

“representação por metáfora”, no primeiro semestre; a segunda resultou de questionário

aplicado aos professores durante reuniões semanais na própria escola, no segundo

semestre.

A atividade “representação por metáfora” consistiu em solicitar aos alunos que

procurassem representar através do uso de figura a maneira como ele se via no momento

da sua entrada na turma de projeto (2014) e também no momento atual (2015). A

aplicação dessa atividade se deu por dois motivos: primeiro porque essa era uma boa

oportunidade para que eles pudessem exercitar o uso do conceito da figura como

marcadora de um significado, que estava sendo discutido nas aulas de língua portuguesa

e, segundo, porque através dessa aplicação pretendia-se visualizar o resultado das

representações que eles teriam sobre si próprios, no início e no decorrer do projeto.

Para Mazzotti (1998), a metáfora proporciona a solução de um enigma, fazendo

com que um objeto que é imediatamente desconhecido, torne-se conhecido pelos

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membros de um grupo social. O autor posiciona-se a respeito da importância desse tipo

de investigação, dizendo que as pesquisas sobre fracasso escolar tendem a priorizar as

representações obtidas junto à equipe escolar e às famílias, deixando de fora aqueles que

ocupam o lugar central nesse processo, ou seja, os alunos.

A atividade serviu também para validar a necessidade que sentíamos em ouvir o

sujeito desse processo educativo, tendo em vista que, esse feedback traduziria o

funcionamento ou não de algumas propostas do projeto.

Após a identificação e análise dos resultados dessa atividade, buscamos

relacioná-los aos objetivos e à visão dos professores, através do planejamento da sua

prática pedagógica. Para tanto, foi utilizado um questionário aplicado a doze professores

do referido projeto, durante um dos encontros semanais que teve como pauta uma

reflexão sobre o processo ensino-aprendizagem dos/para alunos da turma em questão.

As perguntas realizadas tinham como objetivo levar os profissionais a

(re)pensarem sobre a sua prática pedagógica. Para tanto, eles responderam aos seguintes

questionamentos:

a) Quais critérios você utiliza para selecionar os conteúdos para trabalhar nessa

turma?

b) Esses conteúdos são relevantes para os alunos?

c) Existe alguma estratégia diferenciada em suas aulas?

d) Você considera importante desenvolver os conteúdos de forma participativa?

Se sim, você utiliza de algum método para que suas aulas sejam mais abertas

à participação dos alunos?

Ressaltamos aqui, o fato de que após um ano do projeto, não tínhamos uma

avaliação formal sobre o que os alunos e professores pensavam, mas era visível que a

turma não era mesma, e, que a postura reflexiva da maioria dos professores também. É

possível afirmar empiricamente que nenhum dos membros da equipe tinha trabalhado

nessa perspectiva antes, e que parte significativa deles (re)construíram um olhar e uma

metodologia de trabalho para essa proposta, tentando acertar e conciliar diferentes

visões de formação acadêmica.

DISCUSSÃO E RESULTADOS

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Para traçar uma visão geral do que foi apresentado pelos alunos na atividade de

“representação por metáfora”, construiu-se a tabela comparativa abaixo, que explicita

uma primeira visão das metáforas elencadas pelos discentes.

Tabela 1: Metáforas apresentadas pelos alunos do projeto.

Como eu me via no início do projeto Como me vejo agora

Um gatinho de rua Um leão

Uma tartaruga Uma águia

Um bicho preguiça Uma Fênix

Um bicho preguiça Um cachorro

Um cachorro abandonado Um cachorro de estimação observando o sol

Um leão velho Uma águia

Um bicho preguiça Um bicho preguiça sorrindo

Um patinho feio Um tubarão

Um passarinho na gaiola Um puma

Um urso panda Uma borboleta

Um abajur sem luz Uma Fênix

Um Panda Um leão

Um livro fechado Uma linda gata

Um camelo Uma águia

Um calendário Um balão

A relação estabelecida pelos alunos através das metáforas entre o período de

entrada no projeto e o momento posterior demonstra claramente o sentimento de

pertença ao grupo que eles fazem parte. Vários autores (BRANDEN, 2000; MIRANDA,

2010) defendem uma relação positiva entre autoestima e aprendizagem. Segundo eles, a

autoestima é um fator condicionante para que as pessoas se fortaleçam e consigam

enfrentar seus desafios com maior firmeza.

Através das descrições apresentadas, é possível perceber o quanto eles

compreendiam sobre a zona de desconforto em que estavam inseridos. Os resultados

acabam por negar a visão do senso comum de que alunos imersos numa realidade de

repetência e fracasso acabam naturalizando tal situação.

Numa visão global, as descrições demonstram, de algum modo, que a exclusão

praticada através da pedagogia da repetência deixa marcas, e que, se não tratadas,

podem trazer consequências irreversíveis.

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O pensamento de Vygotsky (2001) relaciona a questão do compreender o

sentimento do outro nesse processo de inclusão. O entendimento dessa significação de

pertença desses alunos nesta perspectiva faz com que haja um processo de aprendermos

a entender o mundo do outro que nos cerca, e que por vezes, tendemos a não enxergar.

A afetividade é um componente do sistema conceitual quer auxiliará no processo de

aprendizagem.

Percebe-se também, através da narrativa dos alunos, o reconhecimento do papel

exercido pelos seus professores e outras pessoas nesse processo de melhora da

autoestima.

(...) quando as aulas começaram, tudo foi mudando, começando

por eu mesma, pois estava disposta a mudar esse jeito, largar o

desânimo, a preguiça, estava retirando tudo o que me atrasava.

O que não faltaram foram pessoas fazendo tudo para o meu

bem. Tive a oportunidade de fazer tudo novamente com mais

atenção, dedicação e confiança. (A1)

No início de 2015, eu me assemelho a um cachorro observando

o pôr do Sol na praia (calmo e relaxado), porque eu consegui

passar pro primeiro ano do ensino médio e se não fossem os

professores da turma 905/2014 que se importaram e tiveram

paciência comigo, eu não estaria onde estou hoje. Agradeço a

todos por me ajudarem no ano de 2014 e acreditarem no meu

potencial. (A2)

Ao descrever como se sentia no início do ano de 2014, o aluno A1 relata que se

sentia muito mal, mas indica a ajuda externa como um forte elemento para a mudança

no seu comportamento. O mesmo ocorre com o aluno A2 que expressa sua mudança

através de representações muito fortes. Partindo de um cachorro amarrado no poste para

um cachorro que observa o pôr do sol, o aluno aponta o papel decisivo dos professores

nessa mudança.

Branden (2000) contribui para essa discussão, quando ressalta que o processo de

elevação da autoestima está intrinsecamente ligado à consciência responsável do sujeito,

trazendo para si a responsabilidade sobre suas escolhas. A disposição íntima para

exercitar as capacidades próprias de sua consciência faz com que a pessoa busque um

sentido para si e para aquilo que o cerca. Percebe-se assim que, tanto o autoconceito

quanto a autoestima são atributos individuais, embora possam ser norteados pelas

relações habituais.

Parece-nos importante pensar em um trabalho pedagógico que contribua para

essa disposição íntima que o autor cita. A questão que se coloca é: em que medida esse

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tipo de preocupação está presente no planejamento dos professores das turmas de

projeto da escola em questão? Para subsidiar tal reflexão, buscou-se nas falas dos

professores, no que se referem às suas práticas pedagógicas desenvolvidas nessa turma

de inclusão, elementos que nos permitam abordar a questão posta.

Destacaremos aqui, parte do que foi abordado pelos professores no questionário.

O primeiro ponto a ser levado em consideração refere-se à questão do conhecimento das

premissas fundamentais do projeto. Acredita-se que compreender a proposta é

fundamental para que o trabalho com aqueles alunos tenha êxito, já que não se trata de

“mais uma turma” para fechar qualquer carga horária. Ao se integrar ao grupo, o

docente precisa ter objetivos claros e interesses que permitam o sucesso dos discentes.

Percebeu-se que grande parte dos profissionais envolvidos no projeto conhece

seus fundamentos e os considera importantes. A relevância do projeto esteve presente

na fala e foi apontado como fundamental pela maioria dos docentes. Vários aspectos

foram pontuados para sustentar sua importância em uma escola que ainda não tinha

instituído tal prática. Dentre as falas, destacamos algumas:

“Vejo como uma oportunidade mútua para professores e alunos

(...) Para a equipe docente, é a oportunidade de observar de perto

as práticas que não deram certo. Oportunidade ímpar!”. (E5)

“O projeto foi extremamente interessante, pois aponta para uma

preocupação com aqueles que são alvos de estereótipos.”. (E1)

Apesar de o projeto estar em processo de formação, como foi citado por alguns

docentes, atribui-se a ele um poder transformador, tanto por parte dos alunos, quanto

pelos professores envolvidos.

Tendo em vista que esses professores nunca trabalharam com uma proposta de

inclusão no ensino regular e que a partir de toda nova prática precisamos pensar antes

de agir, para que as ações não se deem de forma intuitiva, não ocorram ao sabor das

circunstâncias e resultem em improvisações, falar sobre estratégias metodológicas foi

fundamental nesse instante.

As falas dos docentes demonstram a preocupação de ir além do conteúdo

programático dentro da sala de aula, já que nosso aluno não é tábula rasa e precisa

adotar uma postura mais reflexiva. Para tanto, a valorização dada a outros aspectos é

considerada importante pelos professores:

“Englobo competências como cooperação, concentração,

velocidade de raciocínio e criticidade em minhas aulas.” (E6).

“Sinto-me com liberdade para selecionar, com os alunos,

aqueles conteúdos que têm significado para eles. Assuntos que

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permeiam a Biologia e que povoam suas vidas, pensamentos e

atividades.” (E5)

A fala da professora E5, no trecho acima, assinala que os alunos participam do

planejamento do processo de ensino-aprendizagem, fazendo com que eles se tornem

sujeitos ativos, o que permite que eles tenham conhecimento dos propósitos das aulas e

tenham a chance de compreender o que fazem.

Para alcançar o tão sonhado sucesso na apreensão dos conteúdos, torna-se

necessário repensar as práticas metodológicas utilizadas nos anos anteriores com esses

mesmos alunos. Nesse projeto, o conteúdo conceitual procura ultrapassar a passividade

dos alunos, o “ouvir”. Pretende-se que eles deem significado àquilo que recebem, para

que assim se sintam motivados para transpor dificuldades que apresentam até aquele

momento. Nesse contexto, o potencial apresentado pelo desenvolvimento de atividades

interdisciplinares ganha espaço na fala de uma professora ao se referir a um trabalho

desenvolvido naquele ano com a turma:

Ao escolher o tema representação da mulher brasileira, tive a

oportunidade de trabalhar a matemática em conjunto com os

professores de língua portuguesa e sociologia, fato inédito na

minha vida profissional. (...) observei um maior envolvimento

dos alunos quando consegui que eles pensassem na estatística

dentro de uma situação mais ampla, que foi o balanço da Central

de Atendimento à Mulher do ano de 2014. (E3)

Percebe-se também na fala de alguns professores uma preocupação,

compartilhada com Vygotsky, que está relacionada à premissa de que o

desenvolvimento não pode ser entendido sem referência ao contexto social e cultural no

qual ele ocorre, como menciona Moreira (1999). A fala da professora exemplifica tal

perspectiva.

Sempre que possível, tento evidenciar a necessidade de haver

uma parceria entre o que é ensinado e o que eles já conhecem ou

convivem. Aproveito ao máximo as experiências que eles

trazem e tento conscientizá-los de que elas devem ser

valorizadas na escola e servem para vida. (E7)

O que deve prevalecer neste estudo é a reflexão sobre haver pertinência e

direcionamento do trabalho pedagógico realizado para a figura do aluno real que temos

em nossa sala de aula, já que, como reitera Senna (1997, p. XIII),

A falta de rendimento nas provas não é de modo algum indício

de que os alunos sejam incapazes de apender, porque qualquer

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professor sabe que, QUANDO ELES QUEREM, aprendem

coisas mais complicadas. “Querer e aprender” é algo que só se

manifesta quando há motivação, seja por prazer, seja por

necessidade (ainda que por conveniência).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A atividade desenvolvida nos permitiu várias reflexões. Visualizamos por meio

das representações elaboradas pelos alunos o quanto a baixa autoestima prejudica a

aprendizagem, tornando-os desmotivados, descrentes e sem perspectiva. Em

contrapartida à tantas descrenças, eles sinalizaram a possibilidade que os educadores

têm de ajudá-los a transformar uma realidade de insucesso escolar e contribuir para uma

formação inclusiva de melhor qualidade.

E nesse sentido, é adequado considerar o perfil dos alunos, o conhecimento de

mundo e a vivência que eles apresentam, além da proposta da Instituição na qual estão

inseridos, para um planejamento voltado para a inclusão de alunos com deficiência de

aprendizagem, baixa autoestima e defasagem série-idade.

No que tange ao questionário aplicado ao corpo docente, verificou-se que não há

explicitamente um discurso psicopedagógico direcionado às estratégias de como

trabalhar a autoestima desses alunos, porém aparecem questões importantes que

interferem ativamente nesse processo.

A primeira delas é a legitimação do projeto, reconhecendo-o como um processo

de mútuo aprendizado. A segunda se dirige as ações direcionadas pelos professores, as

quais proporcionam o reconhecimento e respeito às individualidades. A preocupação em

ir além da cultura conteudista se faz presente no discurso analisado quando se propõe a

valorização das vivências e do trabalho interdisciplinar como possibilidade de acesso a

novas experiências e aprendizagens.

Vislumbramos que resultado desta análise sirva de subsídio para a elaboração

dos novos planejamentos a serem construídos pelo corpo docente, a fim de melhorar a

qualidade do trabalho que vem sendo desenvolvido e contribuir para uma formação

inclusiva de melhor qualidade, analisando e modificando as práticas pedagógicas.

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FORMAR-SE PROFESSOR: ENTRE OS SABERES ACADÊMICOS E OS

SABERES DA ESCOLA

Paula da Silva Vidal Cid Lopes

Maria Letícia Cautela de Almeida Machado

Luiz Antônio Gomes Senna

Universidade do Estado do Rio de Janeiro – Faculdade de Educação

Resumo

Este trabalho tem por objetivo discutir dois aspectos da formação do professor: a

dimensão autoral do trabalho pedagógico e a dimensão pesquisadora do cotidiano

escolar. Busca-se problematizar o contexto de formação a partir de um paradigma

histórico-cultural. Tal perspectiva de compreensão dos fenômenos educacionais e

sociais torna-se a base teórica que desafia a elaboração de pesquisas em Educação

voltadas para análises contextuais tanto das práticas pedagógicas quanto dos modos de

interação com os conhecimentos escolares. Como metodologia, desenvolve-se uma

pesquisa científica de base teórica, que se insere num contexto mais amplo de

investigação do Grupo de Pesquisa Linguagem, Cognição Humana e Processos

Educacionais, a respeito da formação inicial de agentes de letramento na Educação. Os

resultados dessa pesquisa apontam que assumir uma posição de autoria quanto à

organização curricular e às propostas metodológicas é premissa da condição de formar-

se professor. Tal posição implica a organização de planejamentos didáticos

diversificados, adequados contextualmente. Revela-se, ainda, que o caráter autoral das

ações pedagógicas está diretamente relacionado à possibilidade de o professor assumir

uma postura de pesquisador frente ao cotidiano de demandas de seus alunos, da escola e

da comunidade ao redor. Assim, evidencia-se a pesquisa como elemento essencial na

formação do professor. Trata-se da formação de um professor que pesquisa e um

pesquisador que ensina: um profissional que pensa, reflete sobre a própria prática e

elabora estratégias motivadas por essa prática; que assume a sua realidade escolar como

um objeto de pesquisa, de reflexão e de análise. Conclui-se que tal formação

compromete-se com o afastamento do simplório e limitado universo do tecnicismo,

resgatando o lugar do professor na escola e na sociedade, assumindo sua instância

mediadora frente aos processos de aprendizagem de seus alunos.

Palavras-chave: Formação; Prática de Ensino; Letramento.

Introdução

O artigo que aqui se apresenta tem como objetivo abarcar duas dimensões da

formação do professor que, somadas à sua formação profissional e à formação em

serviço, assumem um caráter especialmente determinante na atuação junto aos seus

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alunos. Trata-se da dimensão autoral do trabalho pedagógico e da postura de

pesquisador frente ao cotidiano de demandas de seus alunos, da escola e da comunidade

ao redor.

Em contexto de pesquisa teórica, conforme definida por Demo (2000, p. 20)

como a modalidade na qual são reconstruídos “teoria, conceitos, ideias, ideologias [...]”,

este artigo insere-se em um cenário de investigações mais abrangente, desenvolvido

pelo Grupo de Pesquisa Linguagem, Cognição Humana e Processos Educacionais. Em

seu ciclo de estudos sobre a formação inicial de agentes de letramento na Educação, este

grupo investe na produção de estudos que possam contribuir para práticas de ensino

diversificadas, democráticas e inclusivas.

Neste âmbito, assume-se o letramento, em sua vertente enquanto processo

educacional, como um processo formativo interdisciplinar cuja função é promover a

integração do sujeito social às práticas de construção de conhecimento e de expressão.

O desenvolvimento de tal processo é tarefa do coletivo dos professores que atuam

especialmente na Educação Básica (mas não somente neste segmento de ensino). Ainda

no que concerne à definição do processo de letramento, consideram-se como domínios

específicos, ainda que complementares: - a formação com vistas ao desenvolvimento de

diferentes modalidades de leitura e experienciação do mundo; - o desenvolvimento da

produção de formas textuais, em suas mais que diferenciadas formas, desde as não

verbais, as verbais (orais e escritas) e científicas propriamente ditas, como a

matemática.

Desta maneira, a perspectiva histórico-cultural de compreensão dos fenômenos

educacionais e sociais torna-se a base teórica que desafia a elaboração de pesquisas em

Educação voltadas para análises contextuais tanto das práticas pedagógicas quanto dos

modos de interação com os conhecimentos escolares. Conforme ressalta Lewis (1999, p.

208), a perspectiva contextual de desenvolvimento humano “fundamenta-se na ideia de

que as causas do comportamento e do desenvolvimento social encontram-se na estrutura

corrente do próprio sistema social”. Assim, qualquer tipo de comportamento, relação ou

modo de interação só é explicado se analisado em seu contexto.

Dimensão autoral do trabalho pedagógico

Estudos como os de Rodrigues & Oliveira (2013), sinalizam que a relação entre

as identidades e o trabalho pedagógico organizado em forma de currículo representa um

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importante fator para a construção de práticas mais coerentes aos contextos sociais e

históricos em que se vive.

Uma vez que a sociedade não é uma totalidade estruturada, as relações

hegemônicas passam a ser compreendidas como múltiplas e provisórias. De

modo que, não reconheceremos, no campo do currículo, projetos curriculares

hegemônicos que se perpetuarão continuamente. (RODRIGUES &

OLIVEIRA, 2013, p. 394).

Além deste estudo, encontram-se em Lopes (2008), Macedo (2006) e Mello &

Frangella (2009), que até mesmo as questões curriculares podem ser ajustadas aos

aspectos culturais dos grupos de trabalho nas escolas. Tendo em vista que o

funcionamento, a seleção de conteúdos e a forma como estes conteúdos são tratados

possuem base científica, não sendo, portanto, as mesmas bases de constituição da maior

parte dos modos de interação com outros tipos de conhecimentos não escolares, as

questões didáticas são, necessariamente, atreladas aos aspectos culturais. Remar contra

isto representa fechar os olhos para a inerente diversidade cultural dos seres humanos.

Ocorre, entretanto, que, tanto quanto seus alunos, os professores vivem a

dicotomia entre o que se vive na escola e o que se vive para além dela e, em diversas

situações, também não se identificam com as suas próprias práticas em sala de aula.

Ao longo da história da Educação no Brasil, especialmente nas últimas décadas,

o professorado caiu em descrédito na sociedade brasileira, deixando de ser visto como

aquele que possuía um conhecimento a ser transmitido para alguém, passando a ser

visto como um profissional sempre mal formado e despreparado para o trabalho,

fomentando-se, assim, também ao professor, a ideia de fracasso escolar. Ao tratar da

formação docente com fins de educação inclusiva, Senna sinaliza:

A zona de ambiguidade com que cultivamos a crença em uma suposta

categoria de fracasso escolar na educação esconde, antes de tudo, uma zona

de conhecimento que não se tem desejado conhecer, uma zona de

experiências intelectuais e socioafetivas que reflete a condição cognoscente

daqueles que a cultura moderna não deseja emancipar. Diante da ausência de

fundamentos que expliquem como se estrutura o sujeito escolar em demanda

por inclusão, resta ao professor balizar-se na normatividade que

tradicionalmente fundou a história da exclusão escolar e do banimento

social. (SENNA, 2008, p.202).

Sem acreditar em sua própria capacidade de exercer a profissão e na capacidade

de seus alunos na produção de conhecimentos, é possível observar uma grande

aceitação de materiais didáticos padronizados e generalistas que minimizam uma

possível má atuação, instaurando a ilusória sensação de que o ensino está em pleno

desenvolvimento quando se adota um livro ou um modelo didático já publicado.

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Entretanto, vale destacar duas questões aqui cruciais: a primeira é a de que o professor

possui uma função que não é apenas a de quem executa atos mecânicos, mas sim de

alguém que reflete, elabora, seleciona, tornando-se autor de suas práticas.

Freire (1996) registra a educação como um ato de intervenção no mundo e

afirma ser este fator algo central quando se pensa em ensino. Esta intervenção no

mundo está relacionada ao direito de “ser você mesma e nunca, jamais, lutar por essa

coisa impossível, acinzentada e insossa que é a neutralidade” (p.112), conforme Freire

sinaliza ao leitor de Pedagogia da Autonomia.

A autonomia pedagógica sonhada, portanto, há vinte anos, representa a

consciência de que o que se produz em sala de aula é intencional e relaciona-se

diretamente às práticas reflexivas dos professores sobre o seu próprio trabalho, sobre a

organização curricular e sobre a “curiosidade epistemológica” (FREIRE, 1996, p. 64)

que permitirá avaliar o próprio trabalho.

Assim, a dimensão autoral do trabalho pedagógico envolve as escolhas

relacionadas tanto aos conhecimentos selecionados e sugeridos quanto às metodologias

que os apresentam. De modo que a autoria do professor é premissa: na eleição dos

pontos de apoio para as atividades - projetos temáticos ou textos motivadores -; no

planejamento das propostas pedagógicas; na organização da rotina, dos materiais e dos

grupos de trabalho; nas mediações entre os modos de elaborar os conhecimentos dos

alunos e os modos convencionais; na elaboração ou seleção do material didático, nos

conteúdos e nas formas de fazê-los circular.

No entanto, entende-se que tais escolhas não são neutras. Reconhecidamente,

toda escolha metodológica articula uma posição política e revela teorias de

compreensão e leitura das várias realidades. Logo, traduz as escolhas, os valores e as

histórias dos professores, ou seja, expressam e revelam a sua formação.

Deste modo, sinaliza-se para a necessidade de uma formação que possibilite ao

professor dialogar com outras formas de conhecimento, numa perspectiva multicultural

que, mostrando as incompletudes de cada cultura, leva à tolerância a diferentes leituras

e à abertura ao conhecimento do outro. Trata-se de buscar o desenvolvimento de uma

pedagogia coerente com um ensino capaz de qualificar os diferentes sujeitos para o/no

mundo, compreendendo e considerando a realidade e os interesses dos alunos.

Assume-se, assim, uma postura rigorosa no que diz respeito aos procedimentos

didáticos que viabilizem práticas inclusivas de interação com o conhecimento, mas

também aos aspectos culturais que definam os contextos sempre novos de atuação. A

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dimensão autoral do trabalho docente corresponde aos contornos próprios de leitura de

mundo e ao exercício criativo constante de trabalhar para o imprevisível. Envolve

disponibilidade, portanto, para planejamentos didáticos diversificados, adequados

contextualmente.

Dimensão pesquisadora do cotidiano escolar

O caráter autoral das ações pedagógicas está diretamente relacionado à

possibilidade de o professor assumir uma postura de pesquisador frente ao cotidiano

escolar.

O conhecimento do professor sobre a realidade de seus alunos, suas preferências,

seus interesses e seus gostos, aliado à capacidade de análise crítica das metodologias e

dos recursos pedagógicos disponíveis - ou mesmo indicados para uso - podem embasar

a elaboração das práticas e das estratégias a serem desenvolvidas no contexto escolar.

As escolhas assumidas nesta elaboração vão determinar a contribuição da formação

escolar para os processos de letramento de seus alunos, com chances, ou não, de incidir

para além do processo de escolarização.

No que tange à formação de agentes para o letramento, é importante saber

desafiar o aluno para a elaboração de alguns procedimentos que caracterizam um

escritor e leitor que já se encontra em processo de letramento. Trata-se de estratégias

pedagógicas que incitem o aluno a elaborar conceitos, interrogar o texto (oral ou escrito)

e a si próprio, mobilizando competências cognitivas, linguísticas, discursivas, sociais

para sentir, produzir e compreender os diferentes textos que circulam não apenas na

escola, mas para além dela. Para alcançar tal fim, as práticas pedagógicas devem ser

pensadas e elaboradas tendo em vista o aluno real, considerando suas necessidades e

realidades.

Neste conceito de aluno real compreendem-se, conforme assinala Senna (2008),

dois sujeitos: o sujeito social, que ainda é um desconhecido pela escola, e o sujeito

cognoscente, pois não cremos que, após quase quatro décadas de estudos de abordagem

sociointeracionista, se possa sustentar alguma ideia de universalidade no modo pelo

qual as pessoas pensam. Deste modo, tal identidade perpassa por aspectos sócio-

histórico-culturais, psico-afetivos, cognitivos, psicomotores, entre outros.

A possibilidade de o professor ir ao encontro desse aluno real e assumir sua

instância mediadora frente aos processos de aprendizagem desses sujeitos remete a uma

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das dimensões fundamentais da formação do professor: trata-se da formação do

professor pesquisador.

Segundo Fagundes (2011), o professor pesquisador é aquele que procura

enxergar seu aluno – seu modo de ser, seu conhecimento e sua forma de aprendizagem -

e, a partir disso, elabora formas de atuações para e com ele, com vistas a desenvolver

um processo de ensino-aprendizagem coerentes com as demandas que se lhe impõem.

Trata-se de “compreender a pesquisa para além da produção de conhecimento

científico, mas, como processo que deve estar implicado num compromisso ético e

social para o entendimento de um mundo complexo e permeado por sujeitos plurais”

(FAGUNDES, 2011, p. 147).

Entendida desta maneira, “a pesquisa é um elemento essencial na formação do

professor” (ANDRÉ, 2005, p.55). Como definem as Diretrizes Curriculares Nacionais

para a Formação de Professores da Educação Básica, em seu artigo 5º, no parágrafo

único: “A aprendizagem deverá ser orientada pelo princípio metodológico geral, que

pode ser traduzido pela ação-reflexão-ação e que aponta a resolução de situações-

problema como uma das estratégias didáticas privilegiadas” (BRASIL, 2002).

É imperativo, portanto, formar um professor reflexivo: que pensa, reflete sobre a

própria prática e elabora estratégias motivadas por essa prática, que assume a sua

realidade escolar como um objeto de pesquisa, de reflexão e de análise. Trata-se da

formação de “um professor que pesquisa e um pesquisador que ensina” (GARCIA,

2015, p.17). Pesquisa em ação e que visa à ação-pesquisa-ação no sentido estrito dos

termos.

Garcia (2015) sinaliza que quando o professor se torna pesquisador se rompem

as barreiras entre quem faz pesquisa e quem aplica pesquisa, de modo que o professor

aprende a:

Ver com outros olhos, a escutar o que antes não ouvia, a observar com

atenção o que antes não percebia, a relacionar o que não lhe parecia ter

qualquer relação, a testar suas intuições através de experimentos, a registrar o

que observa e experimenta, a ler teoricamente a sua própria prática, a

acreditar em sua capacidade profissional na medida em que elabora

estratégias metacognitivas e metalinguísticas (GARCIA, 2015, p.17).

Portanto, tornar-se professor pesquisador significa mudar as lentes com que foi

ensinado a olhar os seus alunos e, melhor compreendendo-os, contribuir efetivamente

para seus processos de aprendizagem.

Trata-se de pensar uma formação que possibilite ao professor apreender que as

ações pedagógicas precisam ser planejadas conforme a realidade da sala de aula,

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considerando-se: quem são seus alunos, seus modos de ser e aprender, suas realidades

sociais e culturais, seus conhecimentos e suas vivências.

Portanto, a formação do professor pesquisador busca, exatamente, sensibilizá-lo

para a importância de se considerar essa realidade do aluno para o planejamento: dos

objetivos e das metas a serem alcançadas; dos meios para a sistematização de

aprendizagens e práticas de ensino; dos instrumentos de avaliação desses processos de

aprendizagens e de novas estratégias para a solução de problemas detectados; bem como

da avaliação e a (re)elaboração de propostas pedagógicas.

Deste modo, as questões didáticas são incorporadas à formação dos

pesquisadores como estratégias pedagógicas para o diálogo entre as diferentes culturas

que se entrecruzam nas escolas. Pressupõe-se, portanto, que o investimento nos aspectos

didáticos seja ancorado em princípios inclusivos e disponíveis para escolas reais, alunos

reais e, somente assim, havendo inserção de professores em projetos contínuos de

formação em serviço.

Quando o professor pesquisador, sempre em formação, assume seus alunos

como pessoas de valor cultural legítimo e de modos de aprender diferenciados, vale

perguntar-se, entre outras questões: De que maneira contemplo a cultura de origem dos

alunos em meu planejamento? Que conhecimentos escolares são essenciais na etapa

escolar em que leciono? Que estratégias posso utilizar para realizar atividades

diversificadas? Como aproveito a rotina da escola em favor de múltiplos processos de

letramento? O que interessa aos meus alunos e pode ser um ponto de partida para o

trabalho com conceitos escolarizados? Que textos do mundo podem dar base aos

processos de letramento que desafiem meus alunos a pensar sobre os diferentes sistemas

semióticos?

No entanto, para que o professor seja capaz de refletir sobre seu cotidiano

escolar e entenda o que está fazendo e o porquê de suas ações, estando seguro de suas

escolhas metodológicas, é preciso que sua formação, profissional e em serviço,

contribua, ao mesmo tempo, para a fundamentação teórica do professor e a viabilização

de modos de articulação dos conhecimentos teóricos com a prática pedagógica

(MACHADO E SIGNOR, 2014).

Entende-se que a teoria e a prática estão intrinsicamente relacionadas e se

influenciam em um movimento dialético, de tal modo que a prática pedagógica não

pode distanciar-se da teorização e da reflexão. Há que se levar em conta que os

elementos teóricos só podem adquirir existência e validade no campo da Educação se

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encontrarem reciprocidade no exercício da prática pedagógica. Igualmente, a prática

também não pode prescindir da teoria, para não correr o risco de cair em um agir

intuitivo ou passional.

Conforme assinala Garcia (2015), é no cotidiano da sala de aula que a teoria é

validada, iluminando a prática e fazendo-a avançar, confirmando-se ou sendo negada

pelas evidências empíricas, o que desafia à construção de novas explicações.

Deste modo, compreende-se que a formação do professor precisa resgatar essa

unidade dialética teoria e prática, de modo que o professor seja capaz de ler a realidade

escolar em sua complexidade.

Para tanto, essa formação deve considerar o professor como o sujeito da ação,

valorizar suas experiências pessoais, suas incursões teóricas, seus saberes da prática e

possibilitar-lhe que, durante o processo, atribua novos significados a ela (BRASIL,

2012).

Trata-se de uma formação que considera a prática como um espaço de produção

de conhecimentos pois, como aponta Garcia (2015), a escola é um espaço de teoria em

movimento permanente de construção, desconstrução e reconstrução. A autora explica

que:

A professora no exercício da prática docente é portadora de uma teoria

adquirida em seu curso de formação inicial, teoria atualizada a cada dia, em

sua relação com as crianças na sala de aula e com as suas colegas professoras

nas reuniões pedagógicas, nas experiências que vive dentro e fora da escola,

nas leituras que faz, nos cursos de que participa, nas reflexões que produz. A

cada sucesso ou fracasso, ela se faz perguntas, para as quais busca ou

constrói respostas explicativas sobre o sucesso ou fracasso. Ao se tornar

pesquisadora vai se tornando capaz de encontrar/construir novas explicações

para os problemas que enfrenta em seu cotidiano (GARCIA, 2015, p.17).

Assim, conforme afirma o MEC (Brasil, 2012, p.1), a formação de professores

“deve desenvolver uma atitude investigativa e reflexiva, tendo em vista que a atividade

profissional é um campo de produção de conhecimento, envolvendo aprendizagens que

ultrapassam a simples aplicação do que foi estudado.

Enfim, formar-se professor pesquisador significa reconhecer que teoria e prática

estão em permanente ancoragem, e que é necessário aproximar os conhecimentos

estabelecidos cientificamente às experiências e saberes constituídos na prática.

Considerações Finais

Assumir a dimensão pesquisadora do cotidiano escolar na formação docente,

assim como a dimensão autoral do trabalho pedagógico, significa o afastamento do

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simplório e limitado universo do tecnicismo, resgatando o lugar do professor na escola e

na sociedade.

Pois, conforme afirma Senna (2008):

O professor tende a persistir na crença de que sua missão social consiste no

ensino de conteúdos programáticos, uma crença das mais frágeis na

sociedade contemporânea, dada a fartura de fontes de saber não ligadas à

escola, como a TV e a internet. [...] Os objetivos da educação formal situam-

se para além dos conteúdos, na ordem de coisas que instaura as condições

necessárias para se ter acesso ao saber e dele dispor de maneira satisfatória.

Desse modo, o saber cede lugar ao conhecer, não como estado, porém como

potencialidade humana, uma faculdade que proporciona ao homem tornar-se

leitor do mundo (SENNA, 2008, p. 203-4).

Desta forma, é coerente que o professor não limite seu trabalho simplesmente ao

ensino de conteúdos programáticos, mas a formação de um leitor do mundo, um leitor

que investiga, analisa, constrói hipóteses, avalia e transforma. Segundo Senna (2008),

um leitor que busca e elabora ferramentas materiais, sociais e intelectuais, e se projeta

para o futuro, em busca de sua autonomia, sua emancipação.

Não se trata de retroceder à ideia ultrapassada, vinculada por séculos, à figura do

professor: “aquele sujeito que transmite conhecimentos a alguém”. Autores como Senna

(2007) e Libânio (2010) permitem (re)colocar o professor em um lugar de “quem

ensina” - de quem forma cidadãos, sujeitos criativos, críticos e pensantes.

O professor não apenas expõe conteúdos curriculares sistematizados, mas

possibilita a relação ativa do aluno com esses conteúdos. O que significa que o

professor proporciona e intervê oportunidades para a formulação de conceitos

pragmaticamente expressivos e provoca a expectativa de que estes possam ser

continuamente reformulados. Ele ensina o aluno a buscar e a selecionar informações e a

analisá-las, atribuindo-lhes significados pessoais. Enfim, ensina o aluno a pensar de

modo reflexivo, possibilitando-o a ser sujeito do seu próprio conhecimento.

Para tanto, o professor cria problemas, pergunta, dialoga, escuta os alunos,

ensina-os a argumentar, abre espaço para expressarem seus pensamentos, sentimentos,

desejos, de modo que tragam para a aula a realidade vivida. E, fundamentalmente, provê

condições e meios cognitivos para que o aluno ajuize e conceitue essas experiências.

Atrelados a esta concepção de formação, encontram-se os debates sobre a

diversidade cultural, especialmente àquelas motivadas por experiências formativas que

se constroem nas bases escolares, no dia a dia do fazer-se professor, nas interações com

as tecnologias contemporâneas, nas experiências curriculares e nas histórias vividas.

A consideração dos contextos de produção dos conhecimentos torna-se,

portanto, uma condição para práticas autorais que pesquisem sobre como as pessoas

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ajuízam e constituem conhecimentos, de forma independente dos modelos

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LUGAR DE ALUNO É NA COZINHA: UMA EXPERIÊCIA DE TRABALHO

INTERDISCIPLINAR

Janaína Moreira Pacheco de Souza

Universidade Estadual do Rio de Janeiro, [email protected]

Fabrício Nelson Lacerda

Colégio Brigadeiro Newton Braga, [email protected]

Carolina Barreiros de Lima

Colégio Brigadeiro Newton Braga, [email protected]

RESUMO

Diante das mudanças que experimentamos nas últimas décadas, com a forte presença de

artefatos tecnológicos no nosso cotidiano e o desenvolvimento de tecnologias da

informação e comunicação, é inevitável reconhecer que a escola também precisa mudar.

Se o ensino fragmentado e sustentado na transferência de saberes ao aluno de forma

passiva já não atende às demandas de formação do cidadão do século XXI, se faz

necessário avançar na construção de alternativas. Consoante com as perspectivas

apontadas por Chrispino (2009), acredita-se que a interdisciplinaridade e a

contextualização dos saberes escolares devem assumir papel central no processo de

formação dos educandos. Nessa perspectiva, apresentaremos uma experiência docente

com alunos do primeiro ano do Ensino Médio de uma escola pública federal da cidade

do Rio de Janeiro. Partindo da vivência de preparação de alimentos no ambiente escolar,

os professores de Física e Língua Portuguesa desenvolveram, com a referida turma, uma

sequência de ensino interdisciplinar. Discutiu-se alguns conceitos e questões das áreas

de linguagens e ciências da natureza, de maneira contextualizada, objetivando

potencializar a aprendizagem dos conteúdos e motivar um maior engajamento dos

alunos com as atividades escolares. Esse tipo de abordagem mostrou-se, na experiência

em questão, extremamente positiva para o alcance dos objetivos propostos. Verificou-se

através dos relatos dos alunos que a aprendizagem dos conceitos apresentados se deu de

forma bastante prazerosa e significativa, o que sinaliza para a riqueza e o potencial

motivador que as atividades interdisciplinares apresentam no contexto da educação

formal.

Palavras-chave: interdisciplinaridade, ensino de ciências, ensino de língua portuguesa.

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INTRODUÇÃO

Recentemente, percebemos o nosso cotidiano ser invadido por uma avalanche de

artefatos tecnológicos. A crescente popularização da informática e o notável

desenvolvimento das tecnologias da informação e comunicação (TIC´s), nos últimos 30

anos, vêm promovendo transformações de ordem física e comportamental em nossa

sociedade.

A crescente mecanização do trabalho no campo, automatização e informatização

dos processos industriais e de prestação de serviços, bem como a popularização da

internet e das redes sociais são elementos que evidenciam a forte presença da tecnologia

em nossas vidas. O avanço acelerado de algumas áreas da ciência, sustentado pelo

emprego da microinformática acoplada às TIC’s, vêm promovendo não somente

descobertas e produtos, mas trazem consigo uma série de reflexões éticas e morais sobre

a relação do homem com a natureza.

As transformações sociais afetam diretamente o trabalho da escola. Diante dessa

nova forma de se relacionar com o conhecimento e a informação, em que a tecnologia e

a comunicação assumem papel fundamental, a escola se depara com o desafio de

preparar os jovens para uma inserção crítica e atuante na sociedade, inclusive nas

atividades produtivas, em um mundo em rápida transformação. Fica para a escola a

tarefa de dar aos jovens e adultos, muitos deles trabalhadores, na interação com a

sociedade, os elementos para compreender e discutir os saberes que movem os

processos produtivos e se apresentam na vida cotidiana.

Como apontado por Kuenzer (2000), Frigotto (2007), Bremer e Kuenzer (2012),

um dos grandes desafios enfrentados pelos educadores que atuam no nível médio é a

integração da educação geral à formação profissional, que busca a superação da

chamada “dualidade estrutural da sociedade brasileira”. Essa dualidade destina o ensino

médio propedêutico, aos que pretendem acessar o ensino superior e à formação da

intelectualidade, e o ensino profissional aos desfavorecidos da fortuna, aos filhos de

trabalhadores, herdeiros das funções subalternas e das atividades manuais (CIAVATTA,

2006, p. 922). Essa integração tão defendida, mas ainda distante da prática pedagógica,

expressa uma concepção de formação humana com base na integração de todas as

dimensões da vida no processo educativo.

Dentro desse contexto do Ensino Médio no Brasil, em relação especificamente

ao ensino de ciências, Rezende et al (2008, p.2) argumentam que “ao longo das últimas

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décadas, a educação em ciências tem sido impulsionada por interesses políticos voltados

para a formação da força de trabalho técnica e cientificamente preparada.” Apoiadas nas

ideias de Lenke, as autoras apontam ainda que, aliada a essa valorização da formação

propedêutica, uma supervalorização da aprendizagem abstrata em relação à

aprendizagem prática, vem contribuindo para reforçar a ênfase na apreensão dos

conceitos no ensino de ciências e o seu distanciamento de questões relativas à realidade

social.

Outro elemento levantado pelas autoras, que contribui para o afastamento dos

estudantes da dimensão social, é a dicotomia entre cultura humanística e científica.

Segundo Snow (SNOW apud REZENDE, 2008, p. 3), os humanistas desconhecem

conceitos básicos de ciência, enquanto os cientistas desprezam as componentes

psicológicas, sociais e culturais da ciência. A existência das “duas culturas” contribui

para formar sujeitos cada vez mais especializados em uma ou duas subculturas dentro

de uma das culturas mencionadas. Para o autor, esta separação representa “um perigo

sério para a nossa vida criativa, intelectual e, sobretudo, para a nossa vida cotidiana”.

Essa dicotomia também se apresenta nas questões relacionadas ao ensino da

linguagem no nível médio, apesar de todo esforço pós-moderno de dizer que é

necessário associá-las às práticas sociointeracionistas. Pensar que todo significado é

contextualizado (ROJO, 2004), seria uma maneira de nos permitir compreender um

pouco mais sobre o mundo semiotizado no qual estamos inseridos, abrindo assim,

espaço para uma discussão que vai na contra-mão das práticas educacionais vigentes em

nossas escolas.

Santos (2010) corrobora com essa ideia quando aponta em sua tese, que na

ciência moderna, os conteúdos são tidos como objetos que devem ser assimilados pelos

estudantes, que os procedimentos metodológicos ainda privilegiam o domínio da

informação através de estratégias de memorização e, que nesse modelo, a aprendizagem

é medida pela capacidade de reprodução das informações e o fracasso é sempre

atribuído ao estudante, que não foi capaz de memorizar e/ou reproduzir o que foi

transmitido pelo professor.

Há tempos que essa discussão tem chamado a atenção do meio educacional e

tem sido pauta de reuniões sobre a elaboração de currículos orientados para o

desenvolvimento de competências e habilidades. Domingues et al (2000) apontam que a

ideia para o novo currículo é a de que a base comum deve ter tratamento metodológico,

que assegure a interdisciplinaridade e a contextualização. A parte diversificada deverá

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ser organicamente integrada com a base nacional comum, por contextualização que

pode ocorrer por enriquecimento, ampliação, diversificação, desdobramento, por

seleção de habilidades e competências da base nacional comum e por outras formas de

integração.

Tal percepção traria implicações práticas para professor, possibilitando-o

trabalhar em sala de aula com uma visão que perpassaria por diferentes áreas,

abrangendo um maior entendimento de significados que ultrapassariam o discurso

hegemônico, utilizado geralmente nas aulas de língua portuguesa. Isso permitiria aos

alunos aprenderem, na prática escolar, a elaborar saberes através dos vários discursos

que permeiam seu cotidiano.

As questões apresentadas acima perpassam pelo ensino e ajudam a compor o

quadro da educação básica brasileira. Dessa forma, não é difícil identificar a presença

dessas ideias nos documentos que estruturam a educação no país. Pode-se identificar

nos Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio (PCNEM) uma forte intenção

de aproximação dos objetivos das três áreas do conhecimento.

Os objetivos explicitamente atribuídos à área de Ciências e

Matemática incluem compreender as Ciências da Natureza como

construções humanas e a relação entre conhecimento científico,

tecnológico e a vida social e produtiva; objetivos usualmente restritos

ao aprendizado das Ciências Humanas. Igualmente, à área de

Linguagens e Códigos se atribuem objetivos comuns com a Ciências

da Natureza e Matemática. (BRASIL, 1999, v.3, p. 11)

Essa aproximação, ainda pouco presente no trabalho docente, aparece aqui como

um possível caminho para a superação da dicotomia cultural tratada por Snow. A

preocupação com a aproximação do educando às questões sociais do seu tempo também

está presente nos PCNEM. Entre as competências e habilidades que devem ser

desenvolvidas na área de Ciências da Natureza, Matemática e suas tecnologias, podem-

se destacar algumas que evidenciam tal preocupação:

Articular o conhecimento científico e tecnológico numa perspectiva

interdisciplinar;

Fazer uso dos conhecimentos da Física, da Química e da Biologia para

explicar o mundo natural e para planejar, executar e avaliar

intervenções práticas;

Aplicar as tecnologias associadas às Ciências Naturais na escola, no

trabalho e em outros contextos relevantes para sua vida;

Reconhecer o sentido histórico da ciência e da tecnologia, percebendo

seu papel na vida humana em diferentes épocas e na capacidade

humana de transformar o meio;

Compreender as ciências como construções humanas, entendendo

como elas se desenvolveram por acumulação, continuidade ou ruptura

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de paradigmas, relacionando o desenvolvimento científico com a

transformação da sociedade. (BRASIL, 1999, v.3, p. 12-13)

Assim, a contextualização e a interdisciplinaridade aparecem como ferramentas

muito importantes no trabalho docente, que tem como foco a formação de um cidadão

crítico e socialmente atuante. Em estreito diálogo com essa perspectiva de educação

integradora, o presente trabalho tem como objeto principal uma abordagem do tema

“Alimentação”, realizada por um professor de Física e outro de Língua Portuguesa, em

uma turma de primeiro ano do Ensino Médio de uma escola pública federal do

município do Rio de Janeiro. Partindo da vivência de preparação de alimentos no

ambiente escolar, os professores desenvolveram com a referida turma, uma sequência

de ensino interdisciplinar. Discutiu-se alguns conceitos e questões das áreas de

linguagens e ciências da natureza, de maneira contextualizada, objetivando potencializar

a aprendizagem dos conteúdos selecionados e motivar um maior engajamento dos

alunos com as atividades escolares. Pretende-se aqui, mais que relatar essa experiência

de ensino, discutir, através de um exemplo prático, a viabilidade, os limites e

possibilidades de utilização de atividades gastronômicas como elemento desencadeador

de discussões no contexto da educação formal, no nível médio.

Nesse sentido, faremos no presente trabalho um relato da experiência docente,

apresentando a metodologia empregada pelos docentes e, através da análise qualitativa

de relatos dos alunos, alguns dos resultados obtidos. Ensaiando uma conclusão,

discutiremos brevemente o potencial de uso das atividades gastronômicas como

ferramentas para o desenvolvimento de abordagens com maior potencial integrador no

Ensino Médio.

A sequência de ensino analisada nesse trabalho desenvolveu-se numa turma

qualificada como “especial”, de uma Instituição Militar de Ensino do Rio de Janeiro,

reconhecida por sua visão conteudista e tradicional. A escola tem por prática selecionar

os alunos de melhor desempenho acadêmico em cada série e agrupá-los em uma única

turma no ano seguinte. A turma em questão, portanto, é uma destas compostas por

alunos sem histórico de repetência, valorizados no ambiente escolar, marcados pelo

“sucesso”, habituados a reproduzir com competência nas avaliações os conteúdos

memorizados em sala de aula e com poucas vivências de práticas pedagógicas

diferenciadas.

METODOLOGIA

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A presente pesquisa caracteriza-se como um estudo de caso de observação. De

maneira mais geral, pode-se identificar esse trabalho como uma investigação qualitativa.

Reconhecendo aqui a inexistência de univocidade no uso da expressão “pesquisa

qualitativa”, julga-se pertinente explicitar o sentido que atribuímos a esse termo no

trabalho que ora se apresenta.

Conforme nos adverte Bogdan e Biklen (1991) a definição exata do termo

“investigação qualitativa”, assim como tantos outros que se aproximam deste como

interacionismo simbólico, perspectiva interior, Escola de Chicago, fenomenologia,

estudo de caso, etnometodologia, ecologia e descritivo, tem variado ao longo do tempo

entre diferentes utilizadores (p. 17). Tais termos não são sinônimos, mas ajudam a

delimitar com seus sentidos um campo de investigação com características próprias.

Fala-se aqui em pesquisa qualitativa em oposição àquela realizada através do controle

de variáveis em um laboratório. O pesquisador fará a coleta de dados no ambiente da

escola privilegiando a sala de aula através do contato com os alunos, interessado em

compreender os significados que esses sujeitos conferem à abordagem proposta para a

turma.

Pretende-se aproximar ao máximo nesse trabalho de investigação, as ações

observadas ao contexto em que elas se desenvolvem, sob pena de perder seu real

significado. Assumimos aqui, portanto, a perspectiva de que o comportamento humano

é significativamente influenciado pelo contexto em que ocorre. Isso significa que, ao

registrar e analisar a maneira como alunos e o professor vivenciaram a experiência,

procurou-se levar em conta o contexto daquela turma (o histórico de trabalhos nas

disciplinas, o tipo de interação que os alunos em questão estabelecem com os

professores, a imagem da turma perante os professores), do professor (o histórico de

trabalho desse professor naquela escola, a imagem desse professor perante os alunos),

bem como da escola (a proposta pedagógica, a maneira como a escola se relaciona com

os alunos e professores).

No planejamento do trabalho com a referida turma, optou-se por dividi-lo em

três etapas. Como ressaltam Bogdan e Biklen (1991), a palavra escrita assume papel

extremamente importante na pesquisa qualitativa. Nesse sentido, em cada uma delas,

solicitou-se aos alunos que registrassem em texto suas impressões. Os professores

também procuraram anotar o que foi experienciado com os alunos, na medida em que o

trabalho se desenvolvia. O registro partiu da ideia de que nada é trivial, que tudo tem

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potencial para constituir uma pista que nos permita estabelecer uma compreensão mais

esclarecedora do nosso objeto de estudo.

No primeiro momento com os alunos, que se deu na cozinha e no refeitório, eles

observaram o professor preparar um pão integral rosa, feito com beterraba. Os alunos

foram orientados a acompanhar com atenção e tentar reconhecer os elementos da

comunicação presentes na linguagem usada pelo professor. Deveriam ainda se

concentrar nos cuidados na utilização dos instrumentos de medida e nos processos de

medição.

Na semana seguinte, em outro momento de preparação de alimentos, os alunos,

divididos em grupos, foram orientados a pesquisar receitas, providenciar os insumos e

preparar na escola um bolo, sem a interferência do professor. Eles precisavam ter

liberdade nas escolhas para que pudessem vivenciar de forma independente a

preparação da receita, para que em um momento futuro pudessem refletir sobre as

escolhas que fizeram em relação às medições. Nessas duas primeiras fases, o registro

dos alunos foi feito na forma de um diário de campo.

Optou-se no terceiro momento, por fazer uma aula compartilhada. No diálogo

com os alunos, os professores buscaram retomar os elementos da comunicação e as

funções comunicativas com base na vivência que eles tiveram na produção dos bolos e,

refletir sobre a importância da realização de medidas precisas na Gastronomia e na

Ciência. Solicitou-se que os alunos redigissem um relatório desse momento,

produzissem uma receita poética e reescrevessem a receita do bolo, tentando explicitar

com mais detalhes os processos de medição, facilitando sua reprodutibilidade.

Os resultados apresentados a seguir são oriundos da análise detalhada de todos

os registros produzidos pelos alunos durante a sequência de ensino. Nessa análise,

procurou-se identificar nos textos, ideias significativas para expressar o modo como eles

perceberam essa experiência. Para facilitar a organização dos dados e sua posterior

categorização, cada estudante foi identificado aleatoriamente por um número. As ideias

recorrentes que apareceram nos textos dos alunos foram selecionadas e agrupadas em

categorias temáticas.

Ao tentar compreender os impactos dessa nova forma de organização do

trabalho escolar nas aulas de Física e Língua Portuguesa, pretende-se tomar

conhecimento da maneira como os atores da escola dão sentido a essa experiência.

Deseja-se conhecer que tipo de atitudes de professores e alunos são valorizadas ou

desvalorizadas, quais são as implicações desse tipo de abordagem no desenvolvimento

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da turma e nas relações que se estabelecem na escola, com foco no ambiente de sala de

aula.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A escola é um lugar onde as pessoas estão envolvidas num processo coletivo de

produção de conhecimento e, o processo de ensino deve possibilitar, no maior grau

possível, a atuação conjunta dos indivíduos. Dessa maneira, ao organizar o trabalho

escolar, buscou-se contemplar as diversas formas de organização espacial dos alunos

dentro e fora da sala de aula, na intenção de potencializar a interação entre eles e o

ambiente. Como se pode observar nos trechos transcritos abaixo, essa preocupação dos

professores de realizar as atividades em contextos diferentes daqueles em que os alunos

estavam acostumados, também é identificada pelos alunos como um fator positivo.

Quando fomos para o refeitório fazer o pão fiquei bem animada por

estar saindo de sala para aprender algo diferente. (...) Espero que

tenhamos a oportunidade de repeti-la. E6

Foi, foi muito lega! Foi uma aula ... diferente do que a gente

normalmente tem. Porque a gente tá acostumado a chegar na escola e

só assistir a aula. Só fazer isso o dia todo. E9

Foi divertido e diferente, saindo totalmente do convencional, foi

realmente uma experiência incrível. E12

Apesar de todos esses imprevistos eu adorei essa atividade, porque eu

gosto muito de culinária e foi um método diferente de aprender as

matérias. E14

Cabe ressaltar que a utilização dessas variadas formas de organização do

ambiente de ensino-aprendizagem representou um desafio para a manutenção da

disciplina, mas acredita-se que o maior envolvimento com a tarefa é um fator que

diminuiu a dispersão dos alunos e contribuiu para a construção de um ambiente propício

ao desenvolvimento do que foi proposto.

Na análise do relato produzido pelos alunos, fica também evidente a satisfação

deles durante o desenvolvimento da atividade.

Eu achei a aula muito legal e interativa, pena que o tempo passou

muito rápido pois gostaria que essa aula durasse por mais tempo. E11

(...) um bagulho que vai ficar marcado para sempre no nosso tempo de

escola, e é também uma coisa que nunca tínhamos tido contato na

escola, (...) E3

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No dia 26 de maio tive a incrível aula de gastronomia, com minha

turma, (...) organizada pelos professores de Português e Física. E4

Só deu para concluir que valeu a pena ter acordado cedo hoje. E8

Depois de bem misturada e pronta, levei a massa para a forma com

bastante cuidado e dedicação. Eu mesmo não entendia essa

empolgação toda. Lá vai o bolo para o forno. Que emoção! E10

Um dos objetivos dessa intervenção era minimizar a distância entre os saberes

escolarizados e compartimentados dentro da escola, tendo em vista que quase tudo que é

aprendido fora, é recebido com reserva e desconfiança. Porém, a fala de um dos alunos

nos faz crer que a experiência foi bem sucedida, nesse sentido.

Concluímos que enquanto estávamos no refeitório utilizamos todos os

seis elementos da comunicação, e identificar isso foi muito legal

porque deste modo aprendemos mais a identificar os elementos e

vimos a relação de uma coisa [a preparação da receita] com a outra [os

elementos da comunicação]. E2

A capacidade dos alunos aprenderem sob a orientação do professor varia muito.

É importante, pois, que os atores da sala de aula estejam engajados uns com os outros,

na tentativa de compreender conceitos. Essa atuação conjunta, em grupos, pode

desencadear nos alunos abertura a novas perspectivas de interpretação. Graças à ajuda

oferecida pelo professor ou por outro aluno, um colega pode realizar uma tarefa em um

nível que não seria capaz individualmente. Isso está diretamente ligado ao conceito de

zona de desenvolvimento proximal. Oferecer instrumentos de ajuda à aprendizagem

supõe criar zonas de desenvolvimento proximal e nelas oferecer ajuda, para que por

meio da participação e graças a esse auxílio, os alunos possam ir conferindo

significados e sentidos (Onrubia, 1998). Nesse sentido, durante o desenvolvimento da

proposta na escola, os professores envolvidos procuraram ficar atentos ao seu papel

mediador e ao potencial das atividades desenvolvidas em grupos. Essas interações entre

membros de um mesmo grupo e, entre um grupo e outro, também aparecem na fala de

alguns discentes:

Tivemos que ter cuidado com as medidas dos ingredientes, com a

divisão de tarefas entre os participantes do meu grupo, com cada

detalhe que pudesse comprometer nossa receita, e além de nos

concentrarmos só em nossa receita, também tivemos a oportunidade

de participar um pouco, de certa forma, das receitas dos outros grupos,

já que eles estavam no mesmo ambiente que o meu grupo e muitas

vezes até nos faziam perguntas sobre o que achávamos melhor e nos

deixavam opinar, ou seja, existia essa separação entre grupos e suas

receitas, mas como não tínhamos a interferência do professor em

nosso trabalho, acabou virando algo coletivo, onde cada um ajudava o

outro. E7

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Meu grupo de hoje se ajudou e o interessante foi que quando

precisamos de outros ingredientes os nossos amigos de outros grupos

nos ajudaram. E10

Na atividade, procurou-se não trazer aos alunos respostas prontas, mas estimulá-

los a levantar questões e oferecer o suporte necessário para desencadear o processo de

construção de sentidos e significados. Nessa direção, os conteúdos disciplinares fazem

pouco sentido se observados de forma isolada. Importava-nos explicitar a importância

dos conceitos abordados dentro do contexto que envolve a manipulação de alimentos.

Contexto esse, que é por natureza interdisciplinar, permeado por questões que não se

vinculam a um conteúdo ou disciplina específica.

A imagem historicamente transmitida de que as disciplinas são individuais e

podem ser ensinadas como “conhecimentos armazenados em gavetas” e que, a cada

tempo de aula, professores transmitem conhecimentos que são exclusivos de

determinadas áreas do saber, aparece no presente estudo. O atuar mutuamente, a inter-

relação com o conteúdo a ser ensinado e a interação entre duas disciplinas

compreendidas como tão distantes, aparece na fala dos alunos “(...) foi bom ver duas

matérias com objetivos bem diferentes de ensino aparecerem em uma mesma

atividade.” E1.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise dos textos produzidos pelos alunos sinaliza para questões muito

relevantes no que se refere ao trabalho na sala de aula. Entre as questões levantadas pelo

corpo discente, chamou-nos atenção o papel central assumido pela dimensão do prazer

no desenvolvimento do trabalho escolar. A demonstração de satisfação e alegria

apresentava-se em cada etapa do trabalho, o que influenciava o envolvimento dos

alunos com a tarefa. Visualizamos o quanto práticas prazerosas estimulam o

envolvimento dos alunos e potencializam os seus resultados.

A avaliação que fazemos é que o próprio contexto da alimentação contribuiu

bastante para que os alunos julgassem a atividade como prazerosa e, consequentemente

estivessem envolvidos com ela. Há uma forte ligação entre alimentação e prazer.

Entendendo a alimentação como uma atividade cultural, somos levados a crer que

durante sua preparação e consumo estão naturalmente presentes trocas afetivas nas

interações entre os comensais e com o alimento, o que encaminham essas experiências

para o território do prazer. Trata-se de um contexto capaz de reviver lembranças

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agradáveis como aquelas trazidas por Marcel Proust (2008) ao descrever o consumo das

madeleines molhadas numa xícara de chá1. Nesse sentido, a gastronomia nos parece

uma importante ferramenta na tentativa de superar a dicotomia entre o aprender, com

prazer fora da escola e, o aprender dentro do espaço escolar.

Em consonância com o que vem propondo vários autores no campo da educação,

fica evidente também através dessa análise, a relevância da adoção de metodologias e

espaços de aprendizagem diversificados. Ao ampliar a perspectiva de formação na

escola, incluindo práticas e espaços não tão tradicionais quanto a sala de aula e as aulas

expositivas, abre-se caminho para um maior envolvimento dos alunos. Essa

diversificação ganha ainda mais relevância na medida em que o professor adota como

um de seus objetivos o reconhecimento e o trabalho com a diversidade no ambiente

escolar. Se desejamos educar sujeitos com características, interesses e desejos próprios,

não nos parece adequado que isso seja feito de um único modo e em um único espaço.

De forma complementar, o caráter interdisciplinar do trabalho também foi

evidenciado pelos educandos como algo bastante positivo. Se mostraram surpresos com

a possibilidade de interação entre disciplinas aparentemente distantes. Essa surpresa nos

mostra o quanto esse aluno está comprometido com uma visão fragmentada dos saberes

escolares. Sinaliza a existência de um longo caminho a ser percorrido até que seja

possível, na escola básica, transitar entre as barreiras que separam os conteúdos

curriculares. Não é pequeno o desafio que se apresenta para a adoção de abordagens

interdisciplinares que abarquem problemas realmente significativos.

Verificou-se, portanto, através do relato dos alunos, que a aprendizagem dos

conceitos apresentados se deu de forma bastante prazerosa e significativa, o que sinaliza

para a riqueza e o potencial motivador que as atividades interdisciplinares baseadas em

experiências gastronômicas apresentam no contexto da educação formal.

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científicas: diretrizes para uma abordagem transdisciplinar. Tese de doutorado.

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1 O escritor francês Marcel Proust atribuiu ao paladar e ao olfato a função de “convocar o passado”.

Proust foi um importante autor a usar o olfato e o paladar como gatilho de memória. Segundo Proust,

depois de saborear esse bolinho no formato de concha chamado de madeleine molhado no chá, surgiu o

romance “Em busca do tempo perdido”. Editado em sete volumes, é considerado um dos principais

clássicos da história da literatura.

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

1729ISSN 2177-336X