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 Revista FAMECOS • Porto Alegre • nº 12 • junho 2000 • semestral   Autor inovador e preocupado com a “incomunicabilidade” no mundo contemporâneo, nesta entrevista o romancista Michel Houellebecq apresenta-se como uma sociólogo ficci- onista ou um ficcionista sociólogo da comunicação. I NCLASSIFICÁVEL , IRREVERENTE E SURPREENDENTE nas suas posições intelectuais e políticas, Michel Houellebecq é um serial killer  da cul- tura, em luta contra os dogmas da narrativa literária do século XX, pautada pelo forma- lismo vazio, e contra as utopias pseudoli-  bertárias que geraram o narcisismo deste fi- nal de século. Sempre disposto a combater o política, estética, intelectual e cultural- mente correto, ousa preferir Auguste Comte a Karl Marx e o século XIX ao XX. Com ele, nunca se sabe onde termina a provocação nem onde começa a desmitifica- ção. Defensor do amor contra o egocentris- mo e de valores contra a indiferença con- temporânea, vê nas utopias de maio de 68 o detonador de um efeito perverso: o neolibe- ralismo comportamental dominante neste final de milênio. Em todo caso, Houellebecq não encontra a solução para isso nos clássi- cos projetos das esquerdas partidarizadas e sempre sectárias. Escritor de idéias, não de mensagens, constrói cenários nos quais a humanidade aparece despida, cruamente tratada, exposta em todas as suas contradi- ções e hipocrisias. Dono de um texto límpi- do, cortante, direto, ignora os floreios e os  barroquismos, atendo-se ao choque frontal e impiedoso. Na entrevista que segue, Houellebecq abre o jogo e mostra as suas escolhas, dúvi- das e mesmo o desconhecimento de certos temas, entre os quais o do imenso universo  brasileiro, abordado de forma transversal e irônica em Partículas elementares , livro que o consagrou (lançado no Brasil pela Editora Sulina) no mundo inteiro. Para quem pen- sava que a grande linhagem dos escritores malditos franceses estava esgotada, Michel Houellebecq e o seu Partículas elementares representam o absolutamente inesperado.   The writer Michel Houellebecq, in this interview, portrays himself as being either a fictional sociologist or a sociologi- cal fictionist of communication.

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 Revista FAMECOS • Porto Alegre • nº 12 • junho 2000 • semestral

 

Autor inovador e preocupado com a “incomunicabilidade”no mundo contemporâneo, nesta entrevista o romancistaMichel Houellebecq apresenta-se como uma sociólogo ficci-onista ou um ficcionista sociólogo da comunicação.

I NCLASSIFICÁVEL, IRREVERENTE  E  SURPREENDENTE

nas suas posições intelectuais e políticas,Michel Houellebecq é um serial killer da cul-tura, em luta contra os dogmas da narrativaliterária do século XX, pautada pelo forma-lismo vazio, e contra as utopias pseudoli-

 bertárias que geraram o narcisismo deste fi-nal de século. Sempre disposto a combatero política, estética, intelectual e cultural-

mente correto, ousa preferir AugusteComte a Karl Marx e o século XIX ao XX.Com ele, nunca se sabe onde termina a

provocação nem onde começa a desmitifica-ção.

Defensor do amor contra o egocentris-mo e de valores contra a indiferença con-temporânea, vê nas utopias de maio de 68 odetonador de um efeito perverso: o neolibe-ralismo comportamental dominante nestefinal de milênio. Em todo caso, Houellebecqnão encontra a solução para isso nos clássi-cos projetos das esquerdas partidarizadas esempre sectárias. Escritor de idéias, não demensagens, constrói cenários nos quais ahumanidade aparece despida, cruamentetratada, exposta em todas as suas contradi-ções e hipocrisias. Dono de um texto límpi-do, cortante, direto, ignora os floreios e os

 barroquismos, atendo-se ao choque frontale impiedoso.

Na entrevista que segue, Houellebecqabre o jogo e mostra as suas escolhas, dúvi-das e mesmo o desconhecimento de certostemas, entre os quais o do imenso universo

 brasileiro, abordado de forma transversal eirônica em Partículas elementares, livro que oconsagrou (lançado no Brasil pela EditoraSulina) no mundo inteiro. Para quem pen-sava que a grande linhagem dos escritoresmalditos franceses estava esgotada, Michel

Houellebecq e o seu Partículas elementaresrepresentam o absolutamente inesperado.

 The writer Michel Houellebecq, in this interview, portrayshimself as being either a fictional sociologist or a sociologi-cal fictionist of communication.

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Mais corrosivo e menos previsível do que o bug do milênio.

 — Afirma-se, com fre-qüência, que a literatura francesa está emcrise. O seu livro, Partículas elementares, com

a polêmica que provocou e com o sucessode público, demonstra o contrário. O Se-nhor considera-se como o “papa” de umaescola da lucidez e também como renova-dor da ficção do seu país?

  —  Ninguém podeautoproclamar-se papa ou líder de nada;são sempre os outros que decidem sobreisso. De fato, constato que muitos jovens es-

critores franceses de hoje se sentem próxi-mos de mim, ou, até mesmo, declaram-seinfluenciados pelo que escrevo. Num certosentido, isso me constrange um pouco, poisnão tenho a mentalidade de um “líder”. De-testo estabelecer diretivas ou dar ordens.Por outro lado, evidentemente, fico orgu-lhoso. Já a impressão de declínio da litera-tura francesa no estrangeiro vem do fatoque depois do “Novo Romance”, há já 40anos, nada mais em literatura conseguiu ul-trapassar as nossas fronteiras. Ora, o “NovoRomance” é chato, sem perspectiva de per-manência, nascido morto. Mas não exerceuqualquer influência sobre os autores france-ses contemporâneos.

 — O senhor defende que é preciso cons-truir romances também com idéias, poisconsidera que as reflexões teóricas constitu-em um material romanesco tão bom quanto

outro qualquer. Trata-se de uma rupturaconsciente e provocativa em relação aosque preferem uma literatura de intriga ou aliteratura contemporânea parece-lhe vazia edominada por um formalismo estéril?

 — Na vida real, é certo queas pessoas agem; mas elas também pensame, por vezes, o pensamento tem relação comas ações praticadas. Não me situo de forma

alguma em oposição à “literatura de intri-ga”. Nesta, inclusive numa grande parte

dos romances populares de aventura, ospersonagens expõem, às vezes longamente,as suas concepções de mundo e os motivosdas suas ações. Sinto-me muito mais emoposição à literatura em que os persona-gens praticam ações indiferentes, vazias de

sentido, num ambiente de total neutralida-de. A neutralidade para mim não existe. Esó pode ser experimentada no registro dador. O mundo, humano, em outras pala-vras, é sempre patético.

 — Se a teoria pode entrar no romance, apoesia parece-lhe ser a única a resistir a talintegração. Por quê? Trata-se de um privilé-gio, oriundo da admiração pela poesia, ou

da especificidade discursiva desta?

 — Não digo que seja impos-sível integrar a poesia ao romance; confessoque senti enorme dificuldade ao tentar fazê-lo. Contudo, a parte viva, parte ativa, deum romance é sempre de ordem poética;mas se trata, na maior parte das vezes, deprosa poética, o que não é a mesma coisa. Agrande dificuldade, que exigiria considerá-vel trabalho e até mesmo, provavelmente, ainvenção de uma nova linguagem, seria aintegração harmoniosa, passando pelas in-termediações necessárias, de fragmentosversificados e líricos numa narrativa emprosa.

  — Partículas elementares  é um livro ex-traordinário pela sua capacidade de derru-

 bar mitos, especialmente os de maio de 68.Como o senhor reage, em função disso,

quando o acusam de ser reacionário?

 — No plano político, já mesituei, explicitamente, várias vezes, na estei-ra de Auguste Comte. Não o Comte vulga-rizado pelo positivismo primário, mas oque sobressai de uma leitura profunda dasua obra. Sem entrar muito, por agora, nosdetalhes, a divisa comtiana “Ordem e Pro-gresso” permite, já de início, entender por

que rejeito, com energia, de posicionar-mecom base na oposição progressistas/reacio-

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nários, ou esquerda/direita, à qual se resu-me o debate na França. Creio ser possívelpensar fora dessa redução. InfelizmenteAuguste Comte está esquecido em seu pró-prio país e foi, quase sempre, interpretadode forma inadequada. Ele é desconhecido

do grande público, muito pouco estudadonas universidades e os seus principais li-vros tornaram-se quase impossíveis de en-contrar. Não seria exagerado afirmar quesou o único escritor francês que o leu real-mente. Em conseqüência, até agora, não fuicompreendido. Talvez no Brasil, em funçãoda sua história, a situação seja diferente.

Com efeito, o Brasil representa certa-mente a minha última chance de conseguir

explicar as minhas posições filosóficas e po-líticas.

 — Dado que o senhor não rejeita as idéi-as na obra romanesca, qual era o seu objeti-vo “ideológico” com a construção de umromance que investe contra os clichês utó-picos?

 — Nunca acreditei nas “uto-pias” que denuncio. Sinto uma verdadeiraantipatia pela valorização do egoísmo, peladepreciação da moral, pela exaltação exage-rada da liberdade individual, derivados demaio de 68. Mas o meu livro, além de seruma crítica disso tudo, é também uma ho-menagem a certos valores que me parecempositivos: o amor, a piedade, a ternura, oprazer sexual e toda uma dimensão femini-na da existência.

  — Crítico da deriva individualista demaio de 68, o senhor considera-se como umlibertário, escritor maldito, ou simplesmen-te como um marginal que se tornou célebregraças ao sucesso de um livro?

 — Sou um marginal que setornou famoso, o que me parece totalmentesurpreendente, pois as minhas característi-cas e as minhas aptidões predispunham-me

muito mais ao destino de “poeta maldito”.Ainda tenho, porém, a possibilidade de de-

sacreditar-me por conta própria, o que meabriria o caminho para uma nova forma demaldição, bastante “moderna”, quanto aoprincípio, mas real.

 — Escritor em ruptura com as conven-

ções literárias hegemônicas, o senhor admi-te ter sofrido influências decisivas ou o pas-sado parece-lhe descartável?

  — Represento, certamente,uma ruptura em relação à literatura france-sa do século XX; mas de forma alguma umaruptura no que se refere à totalidade dopassado literário. A maioria das minhas re-ferências, em realidade, dizem respeito ao

século XIX, que me parece de uma energiacriativa e de um talento excepcionais. Essarejeição do século XX não me incomoda ne-nhum pouco; afinal de contas, estamos pordeixá-lo para trás. Gostaria muito, ao con-trário, de figurar como um precursor do sé-culo XXI.

 — Numa passagem de Partículas elemen-tares, há uma sátira impiedosa do Brasil. Osenhor conhece a literatura brasileira e quevalor tem de fato o Brasil na sua vida?

  — Com razão ou não, os brasileiros parecem aos franceses as criatu-ras mais eróticas do planeta. Por causa dis-so, o Brasil goza na França de um extraordi-nário prestígio, sempre em voga. Enquantoisso, tudo o que, de resto, adivinha-se oupercebe-se, como a violência, a corrupção ea miséria, por serem desagradáveis, restam

encobertos. Mais do que uma sátira do Bra-sil, a passagem citada cumpre o papel desátira da condição do macho ocidental,sempre pronto a aceitar seja o que for paraatiçar ligeiramente a sua fibra erótica lan-guescente. Afora esses poucos clichês, parti-lhados pela maioria dos meus compatriotas,nada sei do Brasil nem da sua literatura.

 — Os seus personagens masculinos de

Partículas elementares são duplos um do ou-tro ou, de acordo com a linguagem atual,

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clones. Ambos desfavorecidos pela sorte. Olivro representa uma crítica deste final deséculo decadente em que as pessoas nãotêm mais identidade clara nem referenciaisválidos?

  — Com certeza. Sem reli-gião, sem moral, a vida tornou-se impossí-vel, insuportável para o homem. As mulhe-res, ao menos até agora, possuem o amor, oque as salva. Mas os homens, no estado atu-al da nossa civilização, não passam de con-denados, de excomungados.

 — Até certo ponto sociológico, embora bastante envolvente do ponto de vista nar-

rativo, Partículas elementares  é um romanceque explora uma “teoria do capital simbóli-co sexual”. O senhor é um discípulo de Pi-erre Bourdieu, cuja obra trata desse tipo deassunto? De resto, que lugar ocupa o sexona época atual?

 — Não sou, de forma algu-ma, um discípulo de Pierre Bourdieu. Possomesmo dizer que nos meus livros, quantoao campo sexual, o “capital simbólico” de-sempenha cada vez mais um papel decres-cente; enquanto a sedução física pura e sim-ples ocupa um espaço crescente. De fato, oOcidente parece-me, atualmente, caracteri-zar-se por uma grande nostalgia do reinoanimal. Nostalgia que deveria, de maneiraao mesmo tempo lógica e desejável, levá-loà perdição

(Entrevista concedida a Juremir Machado da Silva)