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26 ENTREVISTA S implicidade. É disso que o planeta precisa, acredita Tomás de Mello Breyner, professor de ioga há 10 anos. Diz que conheceu as pessoas mais felizes do mundo na Índia. Eram mestres yogi que viviam na rua, sem nada. Simplicidade, mais uma vez. E foi dessa forma que explicou a Madonna, rainha da pop, que ficou encantada pelo seu estúdio de ioga na Comporta, que tinha de tirar os sapatos enquanto ali estivesse. Foi aos 21 anos que Tomás de Mel- lo Breyner, descendente do conde de Mafra, descobriu o caminho da me- ditação. A doença – tem síndrome de Ménière, um distúrbio no ouvido que causa zumbidos e vertigens – levou- -o à meditação. Acredita que esse é o caminho para uma vida mais saudá- vel e menos acelerada. E pretende começar pelas crianças. Procuraram-no mais neste confi- namento para fazer meditação? Sim. Não sou muito ligado às tecno- logias, mas em fevereiro fiz lives de meditação no Instagram. Decidi fa- zer uma meditação por dia, porque senti que as pessoas estavam a pre- cisar. Vivemos tempos de incerteza e a meditação é uma ferramenta excelente para ajudar. Porque é que a meditação é im- portante para as crianças? Criou o projeto O Pequeno Buda para elas. Porque vivemos numa sociedade frenética, a uma velocidade incrível e as crianças são seres muito sensí- veis, são como esponjas, absorvem tudo. Depois comem muito açúcar, agarram-se aos videojogos, tudo isso faz com que fiquem ainda mais ace- lerados. É o oposto do que é natural nas crianças que é estar no campo, brincar com os outros. A meditação surge como uma ferramenta incrível para trazer as crianças de volta à sua essência. Aprendem a acalmar-se e a concentrar-se para que, quando estão na escola, consigam aprender. Ninguém consegue aprender sem atenção. A meditação ajuda também na gestão emocional, saber que atra- Com 32 anos, o professor de ioga criou o projeto Pequeno Buda, de meditação para crianças. O seu estúdio na Comporta tornou-o tão conhecido que até Madonna passou por lá. A semana TOMÁS DE MELLO BREYNER Por Vanda Marques (texto) e Duarte Roriz (fotos) “O feedback das crianças é incrível: ter uma criança de 6 anos a dizer que os exercícios a ajudaram a ficar calma” F “Queríamos trazer a meditação para a escola como se fosse Matemática” Retiro de silêncio Durante 10 dias, acordava às 4h da manhã, para meditar. Na Índia fez este retiro, em que ficava oito horas em silêncio. “É a tropa da meditação”

ENTREVISTA · 26 ENTREVISTA S implicidade. É disso que o planeta precisa, acredita Tomás de Mello Breyner, professor de ioga há 10 anos. Diz que conheceu as pessoas mais felizes

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Page 1: ENTREVISTA · 26 ENTREVISTA S implicidade. É disso que o planeta precisa, acredita Tomás de Mello Breyner, professor de ioga há 10 anos. Diz que conheceu as pessoas mais felizes

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ENTREVISTA

Simplicidade. É disso que o planeta precisa, acredita Tomás de Mello Breyner, professor de ioga há 10 anos.

Diz que conheceu as pessoas mais felizes do mundo na Índia. Eram mestres yogi que viviam na rua, sem nada. Simplicidade, mais uma vez. E foi dessa forma que explicou a Madonna, rainha da pop, que ficou encantada pelo seu estúdio de ioga na Comporta, que tinha de tirar os sapatos enquanto ali estivesse.

Foi aos 21 anos que Tomás de Mel-lo Breyner, descendente do conde de Mafra, descobriu o caminho da me-ditação. A doença – tem síndrome de Ménière, um distúrbio no ouvido que causa zumbidos e vertigens – levou--o à meditação. Acredita que esse é o caminho para uma vida mais saudá-vel e menos acelerada. E pretende começar pelas crianças.

Procuraram-no mais neste confi-namento para fazer meditação? Sim. Não sou muito ligado às tecno-logias, mas em fevereiro fiz lives de

meditação no Instagram. Decidi fa-zer uma meditação por dia, porque senti que as pessoas estavam a pre-cisar. Vivemos tempos de incerteza e a meditação é uma ferramenta excelente para ajudar. Porque é que a meditação é im-portante para as crianças? Criou o projeto O Pequeno Buda para elas. Porque vivemos numa sociedade frenética, a uma velocidade incrível e as crianças são seres muito sensí-veis, são como esponjas, absorvem tudo. Depois comem muito açúcar, agarram-se aos videojogos, tudo isso faz com que fiquem ainda mais ace-lerados. É o oposto do que é natural nas crianças que é estar no campo, brincar com os outros. A meditação surge como uma ferramenta incrível para trazer as crianças de volta à sua essência. Aprendem a acalmar-se e a concentrar-se para que, quando estão na escola, consigam aprender. Ninguém consegue aprender sem atenção. A meditação ajuda também na gestão emocional, saber que atra-

Com 32 anos, o professor de ioga criou o projeto Pequeno Buda, de meditação para crianças. O seu estúdio na Comporta tornou-o

tão conhecido que até Madonna passou por lá.

A semana

TOMÁS DE MELLO BREYNER Por Vanda Marques (texto) e Duarte Roriz (fotos)

“O feedback das crianças é incrível: ter uma criança de 6 anos a dizer que os exercícios a ajudaram a ficar calma”

F

“Queríamos trazer a meditação para a escola como se

fosse Matemática”

Retiro de silêncio

Durante 10 dias, acordava às 4h da manhã, para

meditar. Na Índia fez este retiro, em

que ficava oito horas em silêncio.

“É a tropa da meditação”

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www.sabado.ptwww.sabado.pt11 MARÇO 2021

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Instagram Na página com-portayogashala

pode fazer os 30 vídeos de medita-ção disponíveis. É um curso gratuito

de meditação guiada, criado por Tomás de Mello

Breyner

vés da respiração se fica mais tran-quilo. Queríamos trazer a meditação para a escola como se fosse uma matéria, como Matemática ou Portu-guês. Era muito simples, uma rotina de cinco minutos antes das aulas. Trabalham com várias escolas e chegaram já a 10.000 crianças. Mas manter uma criança parada, a meditar, parece muito difícil. Há truques? Tudo o que é ensinado às crianças tem de ser de forma divertida e existem técnicas para passar a mensagem às crianças. Por exem-plo, contar histórias e dessa forma induzir um estado de meditação. Também temos uma ferramenta chamada o pote da calma. É um frasco com água e glitter, lá dentro, e chocalhamos e mostramos às crianças: “Vês o copo a mexer cheio de glitter, é como a tua men-te, os teus pensamentos.” Depois pousamos o copo na mesa e per-guntamos: “Vês o que acontece? Quando paramos, a mente fica mais tranquila e organizada e temos maior facilidade de apren-der.” O feedback das crianças é in-crível, por exemplo, ter uma crian-ça de 6 anos a dizer que os exercí-cios a ajudaram a ficar calma, ou outra que os usa antes dos testes. O desafio é saber parar? Nunca ninguém nos ensinou a parar ou a tentar meditar. A mente é uma fábrica de pensamentos – existem cerca de 80 mil por dia – e as pes-soas não estão habituadas a fechar os olhos e a observar a respiração. Queremos plantar essa semente nas crianças. Elas aprendem o que são as emoções, como geri-las, o que é a respiração, como pode acalmar a mente. A meditação leva-nos a en-tender a realidade tal como ela é. É incrível como estão a surgir tantos estúdios de ioga e de meditação. As pessoas precisam da meditação. O planeta precisa, senão estamos a ir em direção ao abismo. Como descobriu o ioga? Há 10 anos. O ioga veio ter comigo Q

“Eram drogas de todo o tipo,

mas nunca me tornei

adito, era um escape que usava para esquecer”

F

j Vive em Azeitão numa quinta de permacultura. O seu próximo pro-jeto é criar uma quinta pedagógi-ca – ligada à per-macultura – para os miúdos “porem as mãos na terra”

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de uma forma interessante, princi-palmente a meditação. Quando vivi em Nova Iorque, enquanto fazia um estágio em Gestão de Marketing, senti a necessidade de parar. Come-cei a praticar meditação de uma for-ma muito intuitiva. Mais tarde fui aprofundar os estudos. Fiz um retiro de silêncio no México, durante cinco dias. Foi o que me abriu para a espi-ritualidade de uma forma muito for-te. Depois do retiro pensei: “É neste estado que quero estar.” O que lhe trazia o ioga? Aceitação. Muitas vezes fala-se que o ioga é pôr as pernas atrás da cabeça ou que é flexibilidade, isso é só 5% da prática. O resto é um mundo gigante, que leva a aceitar a realidade como ela é, e aceitar-nos como somos. Ok, tenho este zumbido [síndrome de Ménière], tudo bem, não vou lutar contra isto. É preciso parar e escutar o corpo. Caso contrário, perdemo--nos no ego e em julgamentos. Andei assim um ou dois anos, em negação. A doença apareceu de súbito. Pri-meiro foi um zumbido no ouvido, depois tive as tonturas mais agressi-vas, em que vemos tudo a andar à volta e começamos a perder o con-trolo sobre o corpo, a vomitar. Queria negar aquilo e era muita festa, muita noite, drogas também, foi um perío-do difícil. Eram drogas de todo o tipo, mas nunca me tornei adito, era um escape que usava para esquecer.

Porque é que decidiu criar um estúdio na Comporta e dar aulas? Investi muito nos treinos de ioga, andei muitos anos a viajar e fiquei sem dinheiro. Pensei: “Tenho de trabalhar.” Aprendi isto tudo, vou para Portugal ser professor de ioga. Tive a sorte de montar um estúdio na Comporta, que recebe pessoas de todo o mundo. Por dia, recebe-mos em média 20 pessoas e esta-mos abertos de junho a agosto. Por isso são cerca de duas mil pessoas de todo o mundo – China, Estados Unidos, Austrália. Todos dizem que é dos sítios mais incríveis para fazer ioga pela simplicidade. São quatro postes e um telhado em frente aos arrozais, a ouvir as ondas do mar lá ao fundo, rodeados pela natureza.

foi-se embora. Mas fomos à conver-sa no regresso e ficou tudo bem. É uma história engraçada.

Para si, qual é a melhor reação que um aluno seu pode ter? Todas as pessoas saem dali com uma marca, uma experiência. Acho que é a simplicidade, de estar rodeado pela natureza, e a minha aula, o que lhes ensino. Consigo tocar bem fundo nas pessoas através das meditações. Vindo de uma família aristocrata, descendente de um conde, aceitam bem a sua carreira? Foi engraçado porque no início eu vivia numa caravana, e a minha família chamava-me o hippie da ca-ravana e ligavam pouco ao que dizia. Há uns anos a família foi abalada pela crise e as pessoas que faziam piadas, vieram ter comigo a pedir conselhos: “Podes ajudar-me com as meditações para aliviar o stress”. Não podemos julgar os outros, não sabe-mos as voltas que a vida dá. Sempre fui o alternativo e continuo a ser, mas aceitam e valorizam. Fui convidado para escrever um livro, O Pequeno Buda [Arena, 2016], na minha família quase ninguém o fez. Se calhar, é im-portante ouvirem o que digo. Numa altura tão desafiante como a que vivemos, o que é que precisamos todos de ouvir? Temos de abrandar, se continuar-mos a esta velocidade a consumir e a produzir, não dá. A ciência ajuda a perceber o que se passa no planeta. Não podemos continuar assim, as pessoas estão a entrar em burnout, mas também a ganhar esta cons-ciência. Nesta altura, ainda estamos um bocado apreensivos, em choque com a pandemia, mas vai mudar muita coisa. Também acho que é preciso cuidado com as medidas excessivas. O governo está a gerar muito medo e o medo causa doen-ça, há ansiedade, depressão, pes-soas a suicidar-se. Temos de ter cuidado com estas medidas que são demasiado agressivas para todos. A meu ver deviam ser feitas de outra forma: proteger os que são de risco, mas deixar as outras pessoas, com algum cuidado, viver a vida. W

Isso é o ioga. O ioga é estarmos uni-dos com a natureza. O Comporta Yoga Shala tornou-se ainda mais conhecido quando Madonna partilhou fotografias no Instagram. Teve mais procura? Sim, teve impacto. Ela partilhou duas fotografias no espaço e tive muito mais gente a seguir a isso. Mas, para ser honesto, não foi nada de especial estar com ela. Porque ela é fechada, parece que vive numa prisão. Nem olha nos olhos quando fala com as pessoas. Ela esteve ali a tocar umas músicas com a minha guitarra. Fez ioga? Não fez ioga, foi só visitar. Acabou por ficar imenso tempo a conversar com uns amigos, um grupo para aí de 20 pessoas. Eu disse que podiam ficar à vontade, mas tinham de res-peitar as regras. Por exemplo, ela entrou com sapatos dentro do meu estúdio de ioga. Quando vi aquilo, disse-lhe: “Desculpe, mas vocês não podem estar aqui com os sapatos. Está até escrito na entrada: no shoes.” E ela respondeu: “Tens que escrever em letras maiores, que eu não vi.” Grande lata. Aquela é a mi-nha casa. Bem, disse tudo com edu-cação, mas acho que ficou um boca-do ofendida. Passado um bocado

g Tomás diz que o estúdio na Com-porta atrai pela simplicidade. Está aberto no verão e em 2020 houve uma quebra de procura devido à pandemia

Q

A semana

“A Madonna é fechada, parece que vive numa

prisão. Nem olha nos

olhos quando fala com as

pessoas”

F

PREMIUMwww.sabado.pt

ÁUDIO DISPONÍVEL EM

i

www.sabado.pt y