8

Click here to load reader

ENTREVISTA ALEJANDRO ARAVENA

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: ENTREVISTA ALEJANDRO ARAVENA

19/07/2010 - 03h00

É preciso levar o DNA da classe médiapara a favela, diz arquitetoMARIO CESAR CARVALHOENVIADO ESPECIAL A SANTIAGO

O arquiteto chileno Alejandro Aravena criou uma equação para atacar o que considera oponto mais frágil dos projetos de arquitetura social: a qualidade da moradia. "É melhorfazer meia casa boa do que uma casa ruim", disse à Folha.

Aravena, 44, dirige o Elemental, grupo que ganhou o Leão de Prata da Bienal de Venezade 2008 e fará o primeiro projeto no Brasil, em Paraisópolis, favela da na zona sul deSão Paulo. As obras dos 120 apartamentos devem começar no próximo mês.

O percentual de autoconstrução caiu de 50% para cerca de 10% por causa de leibrasileira. Se fosse maior do que 50 m2, o apartamento não seria considerado habitaçãode interesse social e perderia os subsídios, o que inviabilizaria o projeto.

Aravena concilia projetos de moradia social com os de vanguarda. Tem obras nos EUA,na Alemanha e na China, pelas quais é apontado como um dos grandes criadores daarquitetura contemporânea.

Na fábrica da Vitra na Alemanha, a maior concentração de estrelas da arquiteturamundial, ele projetou um centro que ficará ao lado de obras da anglo-iraniana ZahaHadid e dos suíços Herzog e De Meuron.

Em seu escritório em Santiago, uma torre de vidro de ar corporativo, ele critica oprograma "Minha Casa, Minha Vida", do governo Lula, por não se valer da capacidadedas famílias de construir por conta própria: "Se essa capacidade informal existe, nãoseria melhor usá-la?".

Folha - Como um arquiteto de vanguarda descobre que precisava fazer habitaçãosocial?Alejandro Aravena - Foi por um sentido de vergonha própria. Eu estudava naUniversidade Harvard, havia sido convidado para dar aulas e estava numa mesa com oministro chileno de Habitações, um engenheiro e um advogado. Todos começaram afalar de habitação social e eu, o único arquiteto da mesa, Não tinha nada para dizer.Fiquei envergonhado por não poder dizer nada sobre habitação social numa discussãoimportante.

Harvard te põe em contato com o poder, um tipo de oportunidade que não se podeperder. Havia três ou quatro ganhadores do prêmio Pritzker. Eu não podia falar doestado da arte da arquitetura, porque as pessoas que estavam ali produzem o que euconsumo lendo livros ou revistas. O único assunto que eu poderia ter alguma vantagemem relação a eles estava relacionado com o contexto de escassez. Os prédios que euprojetara tinham a ver com isso. Comparando com outros prédios, nós tirávamos leitedas pedras.

Page 2: ENTREVISTA ALEJANDRO ARAVENA

Quanto custaram esses prédios?O edifício da faculdade de arquitetura da Universidade Católica custou US$ 125 o metroquadrado. Isso não é nada para arquitetura contemporânea. No Chile, somos treinadospara trabalhar com escassez. Com a escassez, como não se pode fazer tudo, tem defazer o mais relevante. Ao mesmo tempo, 60% do que se constrói no Chile tem algumtipo de subsídio. Era ridículo que eu não tivesse trabalhado em algo social no Chile. Eufazia arquitetura para o 1% da população que vive como se estivesse em qualquer lugardo mundo.

Não te interessa trabalhar para a elite?Fazer um edifício para uma universidade privada é trabalhar para a elite. Mas naquelemercado em que 60% das obras recebem subsídio não havia arquitetos de qualidadeporque os valores pagos eram muito baixos. Um dos problemas mais difíceis doElemental foi como pagar arquitetos de qualidade.

Outra pergunta difícil é como fazer moradia social. Não é só por uma questãohumanitária ou porque é socialmente importante. Era um desafio profissional trabalharonde é mais difícil dar uma resposta certa. É uma pergunta que tem mérito intelectual,como dizia outro chileno que estava em Harvard, Andrés Velasco, que foi ministro dasFinanças. Um milímetro que se mova nessa área será multiplicado por mil metrosquadrados.

A maioria dos arquitetos deu respostas arquitetônicas a essa pergunta. Por quevocê entrou no campo econômico?Isso é muito importante, esse é o ponto. Há variáveis econômicas, sociais, políticas,financeiras, urbanas. A minha resposta é, de certa forma, uma crítica à arquitetura,principalmente a que se desenvolveu na última década. A arquitetura só se ocupa deproblemas que interessam a outros arquitetos, que é o uso estratégico da forma. Era umconhecimento específico para problemas específicos.

A sua pergunta tem a ver com o que aconteceu com a arquitetura nos anos 1930 e 1940e foi uma das questões explícitas do começo do Elemental. Entre os anos 1960 e 1970,houve uma bifurcação no mundo da arquitetura e alguns arquitetos vivem uma espéciede foro criativo, como se dissessem: "Me deixem ser gênio. Sou talentoso. Deixem-mecriar essas obras de arte, mas não me peçam para ter relação com o mundo real. Euvou criar as regras do jogo".

Esse caminho vai dar numa certa arquitetura de impacto. Um professor de Harvard quefoi muito importante para mim, um tipo do Oriente, Hashim Sarkis, dizia que arquiteturaque tomou esse caminho adotou a estratégia do choque, do impacto. O preço quepagaram por isso foi serem irrelevantes. A estratégia que se seguiu à irrelevância foi oimpacto.

Outro caminho que se abriu nos anos 1960 e 1970 foi o dos problemas inespecíficos:pobreza, segregação, desenvolvimento, violência. Esse discurso levou muitos arquitetosa tratar desses temas duros, que interessam à sociedade como um todo.

São problemas transversais, que poderiam ser tratados por um economista. Não épreciso ser arquiteto ou urbanista para opinar. Todos podem opinar. O problema é queos arquitetos que se dedicavam a essas questões abandonaram o projeto e osconhecimentos. Em vez de projetar, faziam "papers", informes, para organismosinternacionais. Perderam a capacidade de fazer projetos. Entendem o fenômeno, masnão propõem nada.

O desafio a partir do ano 2000, quando começou o Elemental, foi cruzar conhecimento

Page 3: ENTREVISTA ALEJANDRO ARAVENA

específico com problemas inespecíficos. Ocupamo-nos de problemas que interessam àsociedade em geral. Todo mundo pode opinar: o economista, o político e a senhora quenão sabe ler nem escrever. Um comitê da periferia pode opinar tanto quanto um político.Usamos o conhecimento de arquitetura, o manejo estratégico da forma, o uso sintéticodo projeto, para tratar de problemas inespecíficos.

Você não acompanhou outros arquitetos que trabalham com habitação social?Não, porque sou muito ignorante. Eu não tinha tempo para estudar o que fizeram outrosarquitetos. No entanto, sei fazer projetos. No Elemental fomos muito rigorosos com anossa ignorância. A imobilidade é um risco muito alto quando se enfrenta problemas emque há muita informação acumulada. Quanto se sabe muito, conhece-se tanto asconsequências negativas de fazer mal alguma coisa, que você pode ficar paralisado. Porisso fazíamos perguntas estúpidas de quem não sabe nada. Muitas vezes essasperguntas bobas te levam a mover o estado das coisas.

Que tipo de pergunta boba?Em 2001, quando estava em Harvard, havia uma política habitacional nova no Chile, quedava US$ 7.500 por unidade, para famílias que não podiam ter dívidas hipotecárias.Dava uma habitação de 36 metros quadrados.

Como era uma política nova, o mercado não sabia o que fazer. Eu tive a ideia dedestinar o tempo em que estava na universidade a pensar em como fazer uma habitaçãomelhor nessas condições. Aceitamos todas as regras do jogo: o tamanho, o valor, tudo.A pergunta que fiz em Harvard foi: qual é a melhor unidade que podemos fazer com US$7.500?

Começamos a fazer um exercício para cem famílias. Nunca se faz uma só casa nessesprojetos. Hashim Sarkis propôs outra pergunta. Se são 100 casas, cada uma custandoUS$ 7.500, qual é o melhor edifício que dá para fazer com US$ 750 mil? Eu estavapensando em como fazer o melhor com US$ 7.500 multiplicando os projetos por cem.

No dia seguinte, disse aos estudantes: peguem tudo o que fizeram até agora e joguemno lixo. A questão agora era como fazer um edifício de US$ 750 mil, em que caibam cemfamílias e que possa crescer. Um edifício não pode crescer, a não ser no último piso e notérreo.

Então o que vamos fazer é um edifício do qual vamos retirar todos os andares que nãosejam o térreo e o último. Para cada apartamento de 36 m2, deixamos 36 m2 para afamília aumentar. Com 72 m2 você tem um apartamento de classe média. Isso duplica adensidade, dá para ter duas famílias por lote. Com isso, você pode comprar terreno nãona periferia, a duas horas do centro. Dá para comprar em bairro de classe média. Toda anossa preocupação era que as casas aumentassem de valor com o tempo.

A ideia de valorização era uma estratégia para mudar a vida dos moradores?No Chile, a política habitacional era orientada pela ideia de propriedade. O Estadofinancia, dá subsídio e as pessoas tornam-se proprietárias. Para uma família pobre issosignifica a ajuda mais importante que ela vai receber do Estado de uma só vez. Umacasa é a garantia de valorização segura com o tempo. Minha casa, sem que eu tenhafeito nada, custa o dobro do valor que paguei há sete anos. Como o solo é um recursoescasso, há valorização. A casa precisa ser um investimento, não gasto social.

O economista peruano Hernando de Sotto diz que uma casa de favela, no Rio ou emSão Paulo, é um ativo caro, custa US$ 20 mil, US$ 30 mil. Ele pode ir a um banco e usaresse patrimônio como garantia para comprar um táxi, por exemplo. Se projetarmos essa

Page 4: ENTREVISTA ALEJANDRO ARAVENA

casa para aumentar de valor com o tempo, ela vai poder pegar mais dinheiro no bancoquando precisar. Foi o que ocorreu com a maioria dos projetos do Elemental. As casasvalem o dobro do que quando foram construídas. Valorização depende muito dalocalização. Você só pode pagar por uma boa localização, se tem alta densidade demoradores. A equação que fizemos é a seguinte: a densidade tem de sersuficientemente alta para pagar terrenos bem localizados na cidade, em bairros quevalorizem o imóvel.

No Brasil, os projetos de habitação social ficam distante das áreas valorizadas.As famílias pobres se mudam para as cidades por uma razão muito clara: as cidadesconcentram oportunidades. Quando você está bem localizado, está inserido na rede deoportunidades: oportunidade de trabalho, de educação, de saúde, de transporte.

As pessoas que mais necessitam da rede de oportunidades estão excluídas dessa rede.Demoram duas horas para chegar até aonde estão concentradas as oportunidades.Temos que inserir as famílias no local que reúnem as oportunidades. Esse solo é maiscaro. Para pagá-lo, a única maneira é ter uma densidade suficientemente alta pararatear o preço. O filho de uma família que mora num local assim vai poder frequentarescolas melhores do que as da periferia, hospitais melhores. E o patrimônio familiarvaloriza.

Isso nos fez entender que a casa deve ser mais investimento do que gasto social.

Se não houver um projeto, isso não ocorre. A pergunta que precisa ser feita não équantos metros quadrados terá o imóvel, mas onde ele fica. O que faz o mercado?

A classe média, em São Paulo, Santiago ou Londres, vive em imóveis de 70 a 80 m2.Quando há dinheiro, você compra casas com esse valor, com mais luxo ou menos luxo.É o grosso do mercado imobiliário do planeta. Quando não há dinheiro [para pagar esseimóvel], o que faz o mercado? Pega esse imóvel e o faz menor, com 36 m2. Faz duascoisas: diminui e isola. Isola ao comprar terreno onde ele custa bem pouco. Isso explicaa periferia latinoamericana. Se tem dinheiro, compra na cidade. Se não tem, reduz oimóvel e o constrói onde o solo custa quase zero. O que fez o Elemental? Quarentametros quadrados, em vez de uma casa pequena, podia ser a metade de uma casa boa.

Esse é o projeto de Elemental em Paraisópolis?Originalmente era. Depois tivemos de mudar o projeto e a porcentagem de auconstruçãoserá mínima. Os políticos não gostam da ideia de auconstrução. No Chile foi parecido.Em 2001, havia uma política nova de habitação, e 95% das licitações não tinhamconcorrentes. Aproveitamos essa oportunidade. Foi sorte. Havia dinheiro, pressão social,mas o mercado não sabia como fazer.

Foi quando o Elemental teve a ideia da meia casa boa?Sim. Tem de ser boa. Não é a mesma coisa fazer uma casa pequena de 40 m2 e fazer ametade de uma casa boa também de 40 m2. A política previa 40 m2 para sala, cozinha,banheiro e dois dormitórios. Tudo ruim. Foi aí que surgiu a ideia central do Elemental: émelhor fazer meia casa boa do que uma casa ruim. Mas se você olha 40 m2 com metadede uma casa boa, a pergunta é: que metade fazemos? A resposta foi: a metade queuma família nunca vai fazer bem.

A casa precisa estar na frente do lote. Pelo menos 50% da frente do lote seria construídapor nós. Tinha a estrutura para os 80 metros finais. Como tinha uma estrutura pronta, osprimeiros 40 m2 custavam US$ 7.500 e os 40 m2 seguintes, US$ 1.500. Porque aestrutura é cara. Custa 70% do preço da obra. E sei que a casa não vai cair porque fui

Page 5: ENTREVISTA ALEJANDRO ARAVENA

eu que a projetei. Os primeiros 40 m2 têm de ter o banheiro, a cozinha, o muro quesepara do vizinho, a escada. Porque é muito pouco provável que uma família saiba fazerbem um banheiro. Não fazíamos um banheiro de 1,2 m x 1,2 m. Ficaria defasado parauma casa de 80 m2. Fazíamos banheiro de 1,5 m x 2 m. Cabe uma banheira. Como obanheiro era mais caro, teríamos de deixar de fazer algo para pagar esse banheiro.

Era uma negociação?Sim. Sugerimos que a casa fosse entregue sem pintura. Houve 100% de aprovação. Apintura é acessória. Porém, pedimos coisas mais extremas. Pedimos às famílias que osdormitórios não tivessem acabamento em troca de um banheiro de classe média.Também houve 100% de aprovação. Tivemos que ir ao Ministério da Habitação e pedirque não cumpríssemos a lei que obrigava a entrega a casa pronta. As famíliasconcordavam com a troca. Quando um banco olha um banheiro assim, diz que é de umapropriedade de US$ 20 mil, não de US$ 7.500.

O projeto da Quinta Monroy era tão inovador que tivemos que fazê-lo contra a lei. Foi omomento mais difícil do projeto. Fizemos porque havia o respaldo das famílias.

Normalmente, nos movimentos sociais as pessoas querem mais coisas, não menoscoisas. O ponto era ter não mais coisas, mas melhores coisas. Eles perceberam queestávamos dando coisas que custam meses de salário. Fazer metade de uma casa boa,em vez de uma casa pequena, foi de longe a mais importante reconceitualização. É otipo de pergunta que só fazem os ignorantes. É uma pergunta boba. Os especialistasolham e riem de você.

A ideia é levar para as favelas um DNA de classe média?Sim. É preciso levar o DNA da classe média para a favela para que a habitação setransforme em investimento e deixe de ser gasto social. O DNA de classe média é umadas cinco condições dos projetos do Elemental: 1) localização; 2) projeto do conjuntourbano; 3) 50% de frente para o lote urbano; 4) estrutura para os 80 metros finais, nãopara os 40 metros iniciais; 5) DNA de classe média nas partes mais complexas da casa --banheiro, cozinha e escada.

O governo brasileiro criou um dos maiores programas habitacionais do mundo, o"Minha Casa, Minha Vida", que repete o conceito de conjuntos longe das áreasmais valorizadas. Isso faz sentido hoje?Não. As evidências mostram que há uma capacidade de investimento das própriaspessoas. Elas são capazes de construir 30, 40 m2 sem qualquer tipo de apoio estatal.Se essa capacidade informal existe, não seria melhor usá-la nas políticas públicas? Seos fundos públicos não são capazes de construir casas de boa qualidade, por que nãofazer a parte que as famílias não farão bem por conta própria? O ponto é que essaspessoas não conseguem construir com qualidade, e por qualidade entendo aumentar ovalor do imóvel com o tempo e fazê-lo com segurança. Essa estratégia de aproveitar ascapacidades individuais gera sociedade com responsabilidade compartilhada.

O Elemental defende a construção feita pelos moradores por razões econômicasou estratégia antiautoritária?Defendemos por uma razão pragmática. Mas o pragmatismo tem certas direções quesão muito profundas. Como não há dinheiro para fazer tudo, a personalização e acustomização da casa iriam ocorrer naturalmente. Como há um projeto para a metademais difícil da casa, dá para conduzir na direção correta os metros quadrados que serãofeitos pela própria família. O espaço que eu deixo, em vez de funcionar comodeterioração, vira espaço de personalização. Alguns veem isso como uma filosofiaantiautoritária, mas só respondemos às evidências de como as pessoas constroem.

Page 6: ENTREVISTA ALEJANDRO ARAVENA

Não era uma preocupação do Elemental. Essa ideia de personalização pode seraplicada às construções prefabricadas, que é a melhor maneira de fazer habitaçãosocial. A crítica que se fazia é que o prefabricado deixava tudo monótono e repetitivo.

Quando vou fazer só a metade de uma casa, quando mais repetitivo e monótono eu for,o crescimento será incerto.

Junta-se uma questão filosófica com outra pragmática e uma econômica. É socialmentedesejável, economicamente eficiente e politicamente correto. Quando a família constrói asua parte, ela terá mais responsabilidade pelo imóvel. Não é a casa que lhe deu oEstado. É a casa que ela fez.

Em todos os lugares do mundo em que os fundos públicos não podem construir todas ashabitações necessárias, que é o caso de dois bilhões de pessoas, é melhor construir aparte mais difícil e deixar aberto o processo de autoconstrução, que inevitavelmente iriaocorrer.

Todas as obras do Elemental foram feitas para o Estado. O mercado não poderiaadotar essa solução?Pode. No Chile, o Estado dá um subsídio para as famílias e elas vão ao mercado buscaruma solução de moradia.

O financiamento é estatal, mas a operação imobiliária é privada. As construtoras vivemde lucro. Mas há no México um projeto que é quase puro mercado. Lá, a habitação maisbarata custa US$ 35 mil e são vendidas por empresas que têm ações na Bolsa. Oprojeto do Elemental custa US$ 20 mil, 50% mais barato que a mais barata dasmoradias. Construímos em bairros em que as casas ao redor valem US$ 50 mil. É umlocal estratégico.

As pessoas mais pobres são as que mais necessitam viver em lugares assim. Elas sãoas mais pobres porque não têm renda regular. Os programas baseados em dívidashipotecárias não atingem os mais pobres. Isso explica o grau de informalidade daAmérica Latina: 50% no México, 40% no Brasil, 60% na Venezuela e só 5%, 10% noChile.

O Elemental pode fazer moradia por US$ 10 mil. Por isso é tão importante encontrarmecanismos que permita focalizar os mais pobres, os que não tem salário regular.

É possível conciliar criação de vanguarda, como seus projetos nos EUA e naAlemanha, com habitação social?Não são atividades incompatíveis. Habitação social é o que você faz quando não temalternativa, não tem mais dinheiro. A palavra Elemental é por definição retirar tudo quenão é necessário, é atender o núcleo mais irredutível de algo. Pode ser na química, numprojeto financeiro ou de moradia.

O projeto que fazemos na Suíça ou Alemanha também vai no osso do problema. É comoum golpe seco de espada. Não tenho oportunidade de fazer 35 pequenos cortes.

O projeto Elemental é algo desejável de se fazer sempre porque elimina o supérfluo, oarbitrário.

Me parece um desafio interessante fazer o estritamente necessário nesses projetos dealto perfil. É como escalar uma montanha com as mãos desnudas, sem equipe e semapoio. É uma escolha.

Page 7: ENTREVISTA ALEJANDRO ARAVENA

Em habitação social, eu não tenho opção: sou obrigado a fazer isso. É melhor ter treinopara fazer o estritamente necessário porque não há espaço para o supérfluo. Aqui háuma polinização cruzada entre os projetos de alto perfil, que funcionam no limite dadisciplina, como uma corrida de 100 metros, e a moradia social. Precisamos desse treinodo alto perfil para fazer moradia social. Se não tivéssemos feito os projetos naAlemanha, provavelmente seríamos maus criadores num projeto de 30 m2, emoperações que têm de ter o máximo de efetividade. Em projetos de moradias sociais,treinamos para fazer a elementaridade das coisas, o núcleo mais duro das respostas, elevamos essa filosofia para os projetos de alto perfil. O projeto de alto perfil é um treinopara a pergunta mais difícil de todas: como fazer uma moradia de 30 m2? Há uma certatensão na escassez que me parece desejável. Aprendemos a trabalhar melhor quandofazemos projetos tão extremos.

O Brasil tem uma tradição de arquitetos comunistas Oscar Niemeyer, Lina BoBardi, Vilanova Artigas que praticamente não tinham propostas para a habitaçãosocial. Qual é a origem desse descompasso?A resposta vale para a esquerda e para a direita. A discussão sobre a cidade tende a serdemasiado ideológica. São discussões ferozes sobre se a cidade dever ser compacta ouextensa, se deve ter transporte público ou automóveis. Por serem discussõesideológicas, as respostas são pouco eficientes. Há cidades extensas que são boas ecidades extensas que são ruins. É a mesma discussão sobre o tamanho do Estado. HáEstados gigantescos, como na Escandinávia, que são supereficientes, e casos deEstados gigantes que são ineficientes, como na Argentina. O que é preciso saber é emque condições uma cidade compacta é boa ou uma cidade extensa é boa.

A discussão de urbanismo, quando é ideológica, perde a oportunidade de ser rigorosa eprecisa com as condições do problema. É preciso estar desnudo diante de cadaproblema específico.

A ideologia é equivalente a uma religião, que te dá uma certa certeza e uma certadebilidade para enfrentar os problemas. A ideologia é uma rede de segurança quandonão tem tempo, disposição, força e segurança suficiente para partir da incerteza totalcada vez. Não tenho religião nem fetiche com formas nem materiais.

Você já disse que a arquitetura contemporânea brasileira é muito ruim. Por quê?Não tenho uma resposta porque não estudei o fenômeno. Mas me chama muitíssimo aatenção que, dado o tamanho e a tradição arquitetônica do Brasil, o país não tenhasuficiente massa crítica de arquitetura de qualidade sendo construída.

O mercado imobiliário tem paixão pelo neoclássico.Pelo neoclássico e pelo pós-modernismo. Não posso acreditar que no Brasil tenhahavido um pós-modernismo tão forte e tão ruim. No Chile, uma das coisas boas que aditadura fez foi nos deixar distante do resto do mundo e do pós-modernismo. Éramostambém muito pobres para fazer as coisas pós-modernistas. Ficamos de certa formaprotegidos por um certo isolamento intelectual e por uma certa pobreza.

Vou fazer uma especulação. Em 2008, quando estive em São Paulo, no Urban Age, fizesse comentário com pessoas do Banco Mundial e da Universidade de Londres.

No Brasil, pode-se ouvir música brasileira quase o tempo todo. O Brasil não precisaolhar para o resto do mundo. O chileno médio sabe da cena musical de Londres ou daHolanda. A cultura chilena é suficientemente fraca para termos que olhar para fora.

No Brasil, não é necessário saber dessas coisas porque a cultura interna é muito

Page 8: ENTREVISTA ALEJANDRO ARAVENA

potente. Os melhores momentos acontecem quando você está exposto à concorrênciaexterna, quando nada está assegurado. Quanto mais concorrência, melhor.

Muitos arquitetos brasileiros criticaram o fato de Herzog e De Meuron terem sidoconvidados para projetar um teatro de dança em São Paulo.Isso é pura insegurança. O Brasil tem uma cultura que pode se dar ao luxo de não olharpara o resto do mundo.

É como a Índia. O Brasil mandou nos anos 1970 e 1980 um contingente enorme degente para estudar fora. E os anos 1970 foram o último momento poderoso daarquitetura brasileira. Provavelmente era o momento em que o país estava maiscontaminado pelo mundo.

Hoje, os programas de mestrado e doutorado de arquitetura no Brasil são todos internosnas universidades. Em engenharia aeronáutica, o Brasil precisa competir com o mundo.Mas em arquitetura o país se fechou. Acontece como em "Cem Anos de Solidão" deGabriel García Marquez: as sociedades endogâmicas produzem filhos com rabo deporco. Os termos com que se discute arquitetura no Brasil são de 20, 25 anos atrás. Émuito impressionante que um país que está exposto ao mundo, de frente para oAtlântico, para a Europa, tenha uma discussão tão obsoleta em arquitetura.

A hipótese de isolamento é correta?É um cruzamento de isolamento com autocomplacência. O modernismo frutificou noBrasil porque o modernismo europeu sonhava com climas como o brasileiro.

Não consigo entender como em milhões e milhões de metros de arquitetura imobiliária, ecom o clima que o Brasil tem, tudo é fechado.

Seria mais econômico, mais eficiente e mais fácil de fazer, se a relação entre exterior einterior fosse mais fluída.

A arquitetura do Brasil parece o pós-modernismo italiano dos anos 1980. Parece que osarquitetos sonham com o clima mais frio da Europa.

O modernismo brasileiro parece que nunca se repensou.As reinvenções culturais passam para matar os pais. No Brasil, porém, não se podematar os pais. São os mesmos pais de sempre. O Chile tem uma vantagem: não tempais. Qual é a grande figura do movimento moderno há no Chile? Nenhuma. No Brasil, ociclo de matar os pais dos anos 1970 não acabou.

Endereço da página:

http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/768241-e-preciso-levar-o-dna-da-classe-media-para-a-favela-diz-arquiteto.shtml

Copyright Folha Online. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta páginaem qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folha Online.