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Stanley Jeyaraja Tambiah nasceu em 1929, no antigo Ceilão, atual Sri Lan- ka. Graduou-se na Universidade do Ceilão (hoje, Peradeniya) e obteve seu doutorado em sociologia na Universi- dade de Cornell, em 1954. Trabalhou como assessor da UNESCO na Tailân- dia entre 1960 e 1963, quando ingres- sou como lecturer no King’s College da Universidade de Cambridge. Em 1973, tornou-se professor da Universidade de Chicago e, em 1976, da Universidade de Harvard, onde se encontra até hoje. É membro da National Academy of Sciences e do National Research Council’s Committee for International Conflict Resolution. Em 1991, recebeu, da Universidade de Chicago, o título de doutor honoris causa. Esta entrevista foi concedida a Mariza Peirano, em 29 de novembro de 1996, na Universidade de Harvard, logo após o retorno de Tambiah de uma visita feita ao Brasil, onde foi um dos conferencistas do XX Encontro Anual da Anpocs. Peirano Dada a sua formação, em que momen- to você percebeu que tinha se tornado um antropólogo? Tambiah Em Cornell, eu estava em um Progra- ma de Pós-Graduação que era uma combinação de sociologia, antropolo- gia e psicologia social. Isso ocorreu logo após a Segunda Guerra Mundial, e nessa época vários departamentos, que posteriormente se separaram, fo- ram criados reunindo essas disciplinas. Minha identidade nessa fase em que concluí o doutorado era a de sociólogo. Meu principal professor em Cornell tinha sido Robin Williams, um sociólo- go ex-aluno de Talcott Parsons que estava associado a Robert Merton e outros sociólogos dessa linha. Mas a antropologia era uma das minhas áreas de interesse e eu também estudei mui- ta antropologia. Minha tese foi sobre o Sri Lanka, em uma combinação de esti- los sociológico e antropológico. Peirano Qual dos seus livros é sua tese? Tambiah Minha tese nunca foi publicada, mas começou como um projeto sob a super- visão de um sociólogo americano cha- mado Bruce Ryan – que veio de Har- vard, tinha sido aluno de Parsons e contemporâneo de Merton –, que che- gou ao Sri Lanka logo após o final da Segunda Guerra, na época em que in- gressei na Universidade do Ceilão, con- vidado para criar o Departamento de Sociologia no Sri Lanka. Na verdade, pela primeira vez, sociologia e antro- pologia estavam sendo ensinadas na universidade. Na época, eu cursava a graduação em economia, especializan- do-me em sociologia. No trabalho de ENTREVISTA CONTINUIDADE, INTEGRAÇÃO E HORIZONTES EM EXPANSÃO Stanley J. Tambiah MANA 3(2):199-219, 1997

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Stanley Jeyaraja Tambiah nasceu em1929, no antigo Ceilão, atual Sri Lan-ka. Graduou-se na Universidade doCeilão (hoje, Peradeniya) e obteve seudoutorado em sociologia na Universi-dade de Cornell, em 1954. Trabalhoucomo assessor da UNESCO na Tailân-dia entre 1960 e 1963, quando ingres-sou como lecturer no King’s College daUniversidade de Cambridge. Em 1973,tornou-se professor da Universidade deChicago e, em 1976, da Universidadede Harvard, onde se encontra até hoje.É membro da National Academy ofSciences e do National ResearchCouncil’s Committee for InternationalConflict Resolution. Em 1991, recebeu,da Universidade de Chicago, o títulode doutor honoris causa.

Esta entrevista foi concedida aMariza Peirano, em 29 de novembro de1996, na Universidade de Harvard,logo após o retorno de Tambiah de umavisita feita ao Brasil, onde foi um dosconferencistas do XX Encontro Anualda Anpocs.

PeiranoDada a sua formação, em que momen-to você percebeu que tinha se tornadoum antropólogo?

TambiahEm Cornell, eu estava em um Progra-ma de Pós-Graduação que era umacombinação de sociologia, antropolo-gia e psicologia social. Isso ocorreu

logo após a Segunda Guerra Mundial,e nessa época vários departamentos,que posteriormente se separaram, fo-ram criados reunindo essas disciplinas.Minha identidade nessa fase em queconcluí o doutorado era a de sociólogo.Meu principal professor em Cornelltinha sido Robin Williams, um sociólo-go ex-aluno de Talcott Parsons queestava associado a Robert Merton eoutros sociólogos dessa linha. Mas aantropologia era uma das minhas áreasde interesse e eu também estudei mui-ta antropologia. Minha tese foi sobre oSri Lanka, em uma combinação de esti-los sociológico e antropológico.

PeiranoQual dos seus livros é sua tese?

TambiahMinha tese nunca foi publicada, mascomeçou como um projeto sob a super-visão de um sociólogo americano cha-mado Bruce Ryan – que veio de Har-vard, tinha sido aluno de Parsons econtemporâneo de Merton –, que che-gou ao Sri Lanka logo após o final daSegunda Guerra, na época em que in-gressei na Universidade do Ceilão, con-vidado para criar o Departamento deSociologia no Sri Lanka. Na verdade,pela primeira vez, sociologia e antro-pologia estavam sendo ensinadas nauniversidade. Na época, eu cursava agraduação em economia, especializan-do-me em sociologia. No trabalho de

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Stanley J. Tambiah

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campo que fiz no Sri Lanka eu estavainteressado, naquele momento, em par-te sob a influência de Bruce Ryan, noesquema de Robert Redfield sobre ocontinuum folk-urbano que ele tinhadesenvolvido de maneira muito interes-sante a partir da sua experiência noMéxico – posteriormente, Redfield tam-bém veio a se interessar pela civiliza-ção indiana. Minha tese baseou-se emum estudo de três comunidades situa-das a diferentes distâncias de Colombo,a capital e a cidade mais urbana dopaís: uma comunidade era muito próxi-ma a ela, uma era mais distante, já naárea de plantação de chá, e a outra eraainda mais afastada, na nova área aber-ta para reassentamento de camponeses.O estudo comparou essas comunidadesa partir de certas atitudes expressas emquestionários formais, complementadospor alguma observação participante. Oobjetivo era situar as comunidades nocontinuum folk-urbano e testar a pró-pria hipótese de Redfield. O estudonunca foi publicado, embora um artigomeu em parceria com Bruce Ryan tenhaaparecido na American SociologicalReview1, e eu tenha escrito subseqüen-temente alguns artigos sobre assenta-mentos camponeses que também sãopouco conhecidos.

Quando me tornei um antropólogo?Imagino que o ano decisivo foi 1955/56quando, depois de retornar ao Sri Lan-ka, vindo de Cornell, comecei a fazertrabalho de campo em colaboração comum economista que também era esta-tístico, N. K. Sarkar. Realizamos umsurvey sobre as condições econômicasna área Kandyan do Sri Lanka: regimesde apropriação fundiária, relações dearrendamento, padrões de posse daterra nas aldeias e assim por diante.Combinei com este survey meu própriotrabalho de campo sobre estrutura deparentesco e organização social, reali-

zado nos moldes antropológicos tra-dicionais. Foi então que encontreiEdmund Leach. Ele tinha concluídoseu trabalho de campo em Pul Eliya em1954, e estava de volta em 1956 parauma última verificação dos dados emfunção da monografia que estava es-crevendo. Eu já havia terminado o sur-vey, bem como minha primeira etno-grafia sobre parentesco, e tinha escritoalguns trabalhos sobre parentesco eposse da terra. Meu primeiro artigo foipublicado em Man (JRAI), com o auxí-lio de Leach2, e o survey foi publicado,separadamente, em 19573. Leach nãogostou do survey e escreveu o ensaiono qual afirmava que “Tambiah é umantropólogo inato”, mas que ele, pes-soalmente, não gostava de análisesquantitativas baseadas em dados obti-dos através de surveys4. No entanto,ele havia lido a primeira versão do meuartigo, do qual gostou, e quando retor-nou a Cambridge escreveu-me dizen-do que eu deveria publicá-lo em Man.Naquela época eu já tinha para mimque minha concepção do estudo dosfenômenos sociais estava mais sintoni-zada com a abordagem antropológica.Ou seja, interessava-me mais a obser-vação participante, conversar com aspessoas, observar rituais, e ver situa-ções no seu contexto, tudo aquilo quevocê não pode fazer em um survey, noqual você faz perguntas em série semconhecer ou mapear em profundidadesuas inter-relações. Assim, eu mesmoestava me convertendo, e Leach tornouisto claro para mim com sua crítica aosurvey e com sua demonstração daimportância do parentesco e da orga-nização social reveladas pela pesquisaetnográfica. Eu nunca pude entendermuito bem o que ele quis dizer quandoafirmou que meu ensaio tinha, dealgum modo, influenciado sua com-preensão de Pul Eliya.

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PeiranoPodemos então dizer que Leach o legi-timou como antropólogo…?

TambiahNão foi assim que vi na época, pois eleainda era um estranho para mim. En-contrei-o pela primeira vez, duranteuma tarde apenas, em 1956, quandoele retornou para completar seu traba-lho de campo e esteve na Universidadede Peradeniya. Conversamos e falei aele dos meus ensaios recentes, que pos-teriormente lhe enviei. Mais tarde, eleescreveu sua crítica ao survey e apoioua publicação de meu artigo. Em 1960parti para a Tailândia. Antes, porém,Gananath Obeyesekere juntou-se aoDepartamento de Antropologia da Uni-versidade de Peradeniya, em 1957.Obeyesekere tinha sido treinado naUniversidade de Washington, princi-palmente sob a tutela de Melford Spi-ro, tendo sido influenciado pela teoriapsicanalítica. Ele chegou com uma pers-pectiva diferente da minha, mas deci-dimos fazer uma pesquisa antropológi-ca conjunta em uma aldeia distante,Pata Dumbara, no distrito Matale, naárea Kandyan. Esta foi efetivamenteminha primeira tentativa de trabalhode campo antropológico. De fato, Obe-yesekere, eu e alguns alunos que está-vamos treinando começamos a viver naaldeia e a fazer trabalho de campo,para o qual contávamos com pouquís-simos recursos. Eu tinha então me tor-nado um verdadeiro antropólogo.

PeiranoE Obeyesekere sempre se definiu comotal?

TambiahSim, um antropólogo psicológico. Eleestava interessado em perspectivasmuito diferentes das minhas, mas nós

nos entendíamos bem, e a partir da-quele trabalho de campo escrevemosum longo ensaio sobre a poliandria noCeilão5.

Ainda em 1956, antes de encontrarLeach e Obeyesekere, eu tinha come-çado a trabalhar em um projeto de as-sentamento de camponeses, o recém-criado Multipurpose Irrigation Schemeand Peasant Ressettlement Program, emGal Oya. Levei estudantes comigo e apartir desse trabalho publiquei um arti-go6. Foi nesse momento que os primei-ros conflitos irromperam no Sri Lanka,no meio de nossa pesquisa, e nós tive-mos de ser retirados do campo. A expe-riência desse conflito foi agora – apro-ximadamente quarenta anos depois! –incorporada ao meu novo livro, e podeser encontrada no capítulo 4 de Leve-ling Crowds7.

Enquanto eu fazia esse tipo de pes-quisa na Universidade de Peradeniya,em 1959, Hugh Philp – um amigo, pro-fessor de educação na Universidade deSydney – escreveu-me dizendo quetinha sido indicado para diretor de umnovo instituto de pesquisa na Tailân-dia, patrocinado pela UNESCO e pelogoverno tailandês, e que queria que eufosse o antropólogo da organização. Euteria liberdade para fazer minha pró-pria pesquisa nas aldeias e, ao mesmotempo, teria de treinar estudantes tai-landeses. A principal área de pesquisadesse instituto era a educação: o gover-no tailandês tinha acabado de introdu-zir um programa de educação primárianacional e precisava obter informaçõesacerca das áreas rurais. O dado etno-gráfico era necessário para que fossepossível estabelecer que tipo de currí-culo deveria ser transmitido às crian-ças. Dessa forma, concordei em ir, masdevo mencionar outra coisa acerca damaneira inesperada como esse convitefoi feito.

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Temos de retornar a 1952, quandocheguei a Cornell. Fiz parte da primei-ra leva de estudantes selecionados nomundo todo pela Fulbright para estu-dar nos Estados Unidos, em um progra-ma inovador do governo americano nopós-guerra. Fui selecionado no Sri Lan-ka; Hugh Philp, na Austrália. E, nosEstados Unidos, fomos enviados para oque era chamado “curso de orienta-ção” – ou seja, destinado a nos orientarna cultura americana –, ministrado noBennington College, em Vermont. Foilá que conheci Hugh Philp, que foipara Harvard trabalhar com Allport, opsicólogo social, enquanto eu fui paraCornell. Nós nos tornamos grandesamigos e nos visitávamos com freqüên-cia. Outro que fazia parte de nosso gru-po era um sociólogo norueguês chama-do Reidar Haavie, que também estavaem Cornell. Quando Philp retornou àAustrália para reassumir seu cargo e foiconvidado como o primeiro diretor doinstituto tailandês, pensou logo: “Bem,preciso de um antropólogo… Vou con-vidar Tambiah!”. O convite chegouassim de modo inesperado. Eu já esta-va completamente desencantado como curso dos acontecimentos no Sri Lan-ka devido ao conflito étnico. O proble-ma tamil-cingalês estava se intensifi-cando e eu já havia testemunhado seuinício em 1956. Outros conflitos ocorre-ram em 1958, 1960 e assim por diante.A violência foi a resposta da maioriacingalesa à minoria tamil. Ao mesmotempo, questões ligadas à língua pas-saram a fazer parte da política do SriLanka. O inglês havia se tornado, soba colonização britânica, a língua daadministração e a língua distintiva daspessoas cultas: se alguém quisesse serbem-sucedido, deveria dominá-la.

PeiranoQuando você começou a falar inglês?

TambiahMuito cedo, pois a escola que freqüen-tei ensinava em inglês desde o início,com a minha língua, o tamil, como se-gundo idioma. As escolas de elite noSri Lanka ensinavam primordialmen-te em inglês e produziam os funcioná-rios públicos e os profissionais queviriam a constituir a camada influenteno país. Após a independência, houveuma onda de nacionalismo, especial-mente entre a maioria cingalesa, foca-da nos temas de identidade, retomadada cultura, retomada da religião. Todasessas questões fazem parte da políticapós-independência. O Sri Lanka adqui-riu sua independência em 1948 e umdos principais problemas que logoemergiram foi o da mudança da línguada administração, do inglês para osidiomas locais. Isto fazia parte do queera considerado um processo de demo-cratização: o povo em geral tinha sidoalijado das estruturas e centros de po-der e o inglês era a língua de um seg-mento restrito da população. Lamenta-velmente, esse movimento gerou, comocontrapartida, o problema da escolhaentre as duas línguas locais, o cingalêse o tamil. E embora no começo o sloganfosse “queremos duas línguas mater-nas”, logo a maioria cingalesa, budistae nacionalista, reivindicou que o cinga-lês se tornasse a única língua oficial, oque começou a gerar entre os tamil osentimento de que eram discriminadospela maioria. Havia outras questões,como o reassentamento camponês emáreas reivindicadas pelos tamil comosua terra natal... Tudo isso fervilhavano Sri Lanka ao mesmo tempo, e em1959 o governo estava a ponto de exi-gir que a educação universitária tam-bém fosse ministrada nas línguas nati-

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vas. Eu sabia, portanto, que logo teriade ensinar em cingalês, e eu não esta-va apto para isso.

PeiranoVocê fala cingalês?

TambiahApenas coloquialmente, não fui educa-do nem alfabetizado nessa língua. Pro-fissionalmente seria um retrocesso paramim, pois tentar ensinar antropologiana língua nativa consumiria todas asminhas energias. E mesmo se eu qui-sesse fazer essa mudança, eu estariafora do sistema internacional de conhe-cimento: eu tinha de ir para outros lu-gares e permanecer profissionalmenteaberto para os desenvolvimentos inter-nacionais.

PeiranoNesse contexto, seria possível ensinarantropologia?

TambiahBem, mais tarde percebeu-se que atransformação do cingalês e do tamilem meios de instrução seria um grandeproblema – especialmente no que se re-fere ao ensino superior –, justamenteporque não é possível traduzir os livrosdas principais línguas ocidentais nessesidiomas. A maior parte dos estudanteseducados nas línguas nativas estava vir-tualmente excluída da literatura mun-dial, recebendo uma educação muitolimitada. Desse modo, os padrões aca-dêmicos caíram muito. A Universidadedo Ceilão, à qual eu pertencia, era aprincipal universidade nessa época,que coincide com as últimas fases docolonialismo, porque tinha padrões re-lativamente elevados; estava vinculadaà Universidade de Londres e as provaseram aplicadas por examinadores ex-ternos. Pessoas como eu, Obeyesekere

e muitos outros, tendo feito a gradua-ção no Sri Lanka, podiam sem nenhumproblema vir para o Ocidente e conti-nuar os estudos de pós-graduação.Várias pessoas da minha geração fize-ram isso, não apenas na minha área,mas também em economia, política,ciências, história, literatura. Assim, na-quele momento percebi que estava nahora de partir. Quando o convite deHugh Philp chegou, eu aceitei e fuipara a Tailândia. Isto ocorreu em 1960.

PeiranoQuando você decidiu estudar religiãona Tailândia, essa escolha se baseouem evidências etnográficas ou foi moti-vada por sua própria curiosidade? Emoutras palavras, por que religião?

TambiahEfetivamente eu não estava apenasinvestigando religião na Tailândia, masrealizando um trabalho de camposobre vários aspectos da vida rural. Co-letei material sobre parentesco, orga-nização social, economia agrária, pos-se da terra… e, paralelamente à orga-nização social, sobre os rituais. Alémdisso, já que a maior parte das aldeiasabrigava monastérios habitados pormonges budistas, estudei as relaçõesentre esses monges e a população, bemcomo vários rituais. Na verdade, entre1960 e 1963, participei do estudo detrês diferentes comunidades: uma, naPlanície Central, situada aproximada-mente a cem quilômetros de Bancoc;outra, no nordeste; e a terceira, no nor-te da Tailândia. Como sempre aconte-ce, elaboramos e escrevemos apenassobre um fragmento do nosso trabalhode campo. Escrevi uma etnografia pre-liminar a respeito de uma aldeia situa-da na Tailândia Central, ou seja, foca-lizei aspectos da economia, estruturade parentesco, vida familiar, ritual, e

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assim por diante. Essa monografia nun-ca foi publicada. Foi aceita para publi-cação pela Cambridge UniversityPress, mas àquela altura, em 1963, eujá tinha ido para Cambridge e já esta-va escrevendo minha segunda mono-grafia sobre a segunda aldeia, Bud-dhism and the Spirit Cults in NortheastThailand8. Nesse estágio, também emCambridge, entrei em contato com al-gumas das idéias de Leach: o “estrutu-ral-funcionalismo” estava sendo supe-rado pelo “estruturalismo”, perspectivaque me influenciou bastante. Assim,esse livro foi escrito em sua maior parteem Cambridge, mas só foi finalizado noperíodo em que estive no Center ofAdvanced Studies, em Palo Alto. Entãoeu disse à editora: “não publiquem aprimeira monografia, publiquem esta.E eu reescreverei a primeira”.

PeiranoAssim, você ainda nos deve a primeira.Qual era o tema central dela?

TambiahBem, ela é diferente da segunda. Emcerto sentido, antecipa alguns escritosde Bourdieu a respeito das escolhasestratégicas e das práticas, mas numestilo e num jargão antropológicos dis-tintos. Como a organização social tai-landesa é muito flexível (por exemplo,existem várias maneiras de contrair“casamento”), eu esperava primeiroestabelecer o que eram as normas for-malizadas, e então verificar como essasnormas eram usadas e aplicadas, equais seriam seus resultados enquantopráticas. Algum dia tentarei publicaresse livro. De qualquer maneira, a se-gunda monografia veio a ser escrita deforma diferente. Eu tinha coletado mui-tos dados nas três aldeias que mencio-nei, especialmente sobre estruturasbilaterais de parentesco, mas não tive

tempo para escrever sobre isso porquepassei para outros temas.

PeiranoGostaria de focalizar essas mudanças.Como você as vê? Existem continuida-des, uma coisa leva à outra de modocontínuo?

TambiahBem, existe continuidade e expansão.Esqueci de contar como comecei a es-tudar religião. Uma das coisas que per-cebi quando deixei o Sri Lanka foi que,como membro de uma minoria, eu tinhade compreender o que é o budismo, orevivalismo budista como uma respostaao colonialismo, e o que era o naciona-lismo budista no Sri Lanka após a inde-pendência. Estas eram questões emrelação às quais eu estava “alienado”no Sri Lanka, mas cujo significado erafundamental captar como antropólogo.Percebi que não seria possível estudarplenamente as expressões políticas dobudismo no Sri Lanka; no entanto, euseria capaz de fazê-lo na Tailândia, umpaís mais distante, com o qual eu pode-ria desenvolver uma relação de empa-tia e estudar de dentro. Buddhism andthe Spirit Cults… foi escrito para queeu entendesse de que maneira o budis-mo atuava nas aldeias como uma reli-gião popular. Uma vez que já estavainclinado a compreender o budismocomo uma religião, especialmente emseus aspectos políticos e rituais, a Tai-lândia pareceu-me um bom lugar parainvestigar o que eu não entendia atéentão.

Assim, o segundo projeto, que re-dundou no livro World Conqueror andWorld Renouncer9, foi para mim o resul-tado da elaboração do primeiro, no qualenfoquei a aldeia como um microcosmodo macrocosmo. Em Buddhism and theSpirit Cults... a aldeia fornecia algumas

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idéias acerca da civilização em sentidoamplo, e eu estava interessado justa-mente em como o budismo, enquantouma força civilizatória, influenciou aaldeia ao longo do tempo, e como, emcontrapartida, o budismo em seu senti-do amplo foi tecido e elaborado na vidaaldeã e em seu calendário festivo. Maseu sabia da necessidade de ampliar oenfoque e adotar um referencial maisabrangente para compreender outrosaspectos do budismo que vinculam asociedade à política. Por exemplo: o queé o budismo quando tentamos apreen-dê-lo em sua dimensão nacional? Essaproblemática foi gerada pela redaçãoda minha primeira monografia e pen-sei que teria então de ampliar meus ho-rizontes para entendê-la. Assim, WorldConqueror and World Renouncer foiescrito para compreender o budismoem sua expressão coletiva mais ampla,o que me levou a um envolvimento coma questão da relação entre história eantropologia. Procurei explicar como obudismo enquanto religião, juntamentecom as ordens monásticas, esteve sem-pre relacionado com a monarquia e aorganização política, particularmenteno que se refere às concepções budis-tas do “universal king”.

Com esse ponto de partida, esboceia história do budismo e da organizaçãopolítica na Tailândia. Eu sabia, quandoescrevi a primeira monografia, que vá-rios monges das aldeias chegavam atéa capital, Bancoc, após um percursomarcado pela mobilidade e pelas reali-zações monásticas. Isso me envolveuem um novo tipo de trabalho de cam-po, que tentava traçar a trajetória des-ses monges das aldeias até o centropolítico-religioso, mapeando as rela-ções entre monastério e organizaçãopolítica, e o envolvimento dos mongescom os rituais nacionais. A partir dessetrabalho, desenvolvi o modelo que cha-

mei de “galactic polity”, como umamaneira de representar a organizaçãopolítica pré-colonial “tradicional”, eminha caracterização de como ela mu-dou no século XIX para o que denomi-nei de “radial polity”10. Com esses mo-delos, procurei sugerir um modo delidar com as continuidades históricas eas transformações nesses sistemas delonga duração. Percebi, quando estavarealizando o segundo estudo, como osmonges budistas estavam vinculados àmonarquia, à organização política e àsestruturas de poder correlatas. Poroutro lado, dei-me conta de que haviaoutra ramificação da irmandade dosmonges, os monges da floresta, devo-tados à tradição meditativa. Esses mon-ges reclusos permaneciam fora daordem oficial, na periferia, e eu sabiaque representavam uma busca diferen-te pela libertação, por intermédio dameditação, e que estavam afastadosdos centros oficiais de poder, vivendonas florestas. Acreditava-se que atra-vés da meditação e do regime ascéticoeles tinham acesso a poderes supranor-mais e místicos, de que o público leigoqueria muito se apropriar. Assim, deci-di que um modo adequado de preen-cher uma lacuna existente em WorldConqueror and World Renouncer eraempreender uma nova investigação,que se tornou a base para o meu tercei-ro livro sobre a Tailândia, The BuddhistSaints of the Forest and the Cult ofAmulets11.

Escrevendo este livro, ao lado dodelineamento de um paradigma do sig-nificado histórico do regime de medi-tação e do ascetismo em uma tradiçãobudista, também fiquei interessado naconcepção dos santos e na hagiografiacomo trabalho preliminar para entãofocalizar os monges da floresta na Tai-lândia. Aqui, meu interesse weberianono carisma e em sua rotinização ficou

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mais uma vez evidente. De certo modo,tropecei em algo que Weber nuncapercebeu, ou seja, como o carismapode ser transferido para objetos comoamuletos e imagens. Creio que umadas minhas contribuições foi abordar oculto dos amuletos: como são produzi-dos, como o homem santo transfere seucarisma para eles, como esses objetospromovem a conjunção entre os ho-mens santos e os leigos, e como essesobjetos são usados e manipulados nosprocessos históricos, políticos e econô-micos.

Para encerrar essa história: emboradesde 1983 eu tenha me sentido com-pelido a levantar questões relativas aoconflito étnico, ao etnonacionalismo eà violência política no Sri Lanka, existeum projeto comparativo de longa dura-ção que se prolonga desde The Bud-dhist Saints of the Forest…, ou seja, aconcepção de santos, o carisma atribuí-do aos santos e o culto de relíquias,amuletos, túmulos sagrados, em algu-mas tradições cristãs, budistas, islâmi-cas e Sufi. Quais são as convergênciasentre essas religiões tão diferentes emoutros planos? Em que esses fenôme-nos contribuem para essas religiõesenquanto vividas e praticadas? Come-cei a oferecer alguns cursos sobre essestemas aqui em Harvard, mas precisareide muitos anos para coletar os dadosnecessários. Trata-se de uma tarefa delonga duração.

PeiranoUm projeto weberiano executado porum antropólogo através do trabalho decampo…

TambiahSim, estava tentando remeter as teoriasweberianas (e outras) ao trabalho em-pírico concreto…

PeiranoAssim, enquanto, por um lado, você es-crevia sobre a Tailândia, por outro, re-digia artigos que posteriormente se-riam reunidos em Culture, Thought andSocial Action. Suas reanálises empíri-cas, por exemplo.

TambiahE teóricas, de um modo distinto.

PeiranoEmpíricas e teóricas de um modo dis-tinto…?

TambiahVários desses artigos são uma expres-são do meu interesse pela teoria daclassificação, que era uma preocupa-ção fundamental de Leach e de Lévi-Strauss. “Animals Are Good to Thinkand Good to Prohibit”12 é de fato inspi-rado, antes de mais nada, pelo artigode Leach, “Anthropological Aspects ofLanguage: Animal Categories and Ver-bal Abuse”13. Leach sempre mostravaseus artigos, assim que os terminava,àqueles que estavam mais próximos.Ele me deu uma cópia do trabalho eisso, de certo modo, inspirou meu arti-go. Em uma de minhas viagens à Tai-lândia naquela época para fazer pes-quisa no verão, acabei realizando umtrabalho de campo especialmente paraesse ensaio. Fui inspirado por Leach,mas eu também estava lendo Lévi-Strauss. Assim, os dados que analiseiforam efetivamente coletadas comoresposta à obra de ambos.

Peirano“The Magical Power of Words” é tam-

bém dessa época.

TambiahSim. Em Cambridge, Malinowski eramuito lido. Uma das influências de

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Leach sobre vários de seus alunos eraque nós sempre fazíamos um semináriopara reler Malinowski. Não só nós o lía-mos, como o próprio Leach estava inte-ressado em reanalisar o trabalho deMalinowski, o que explica como passeia me interessar pela etnografia mali-nowskiana. Ao mesmo tempo, eu tinhalido o ensaio de Jakobson que reinter-preta as noções de magia simpática epor contágio de Frazer em termos demetonímia e metáfora, como formas ge-rais de pensamento associativo14. Assim,em função do interesse que eu já tinhano ritual, estava olhando para Mali-nowski, e disso surgiu “The MagicalPower of Words”15. Quando fui convida-do pela London School of Economicspara fazer a Malinowski Memorial Lec-ture, decidi testar minha reanálise deMalinowski sobre a magia trobriandesa.

PeiranoE a Radcliffe-Brown Memorial Lecturesobre ritual?

TambiahEsta conferência foi escrita alguns anosdepois, ainda durante a minha estadaem Cambridge, mas só se completouna Universidade de Chicago, por voltade 1974. A propósito, World Conquerorand World Renouncer surgiu de umtrabalho de campo realizado quandoeu ainda estava em Cambridge. O tra-balho de campo para o terceiro livroestava concluído antes que eu viessepara os Estados Unidos. Assim, todasessas atividades terminaram sendo re-levantes para o meu contínuo interessepelo ritual.

PeiranoMas há uma implicação de que essesartigos são mais teóricos, e as mono-grafias sobre a Tailândia mais etnográ-ficas?

TambiahNão, as monografias sobre a Tailândiasão etnográficas e também teóricas.

PeiranoMas, então, por que separar os doisaspectos?

TambiahEles estão intimamente relacionados.Em Buddhism and the Spirit Cults... háuma interpretação da cosmologia e doritual e de como estão mutuamente in-terligados de modo estrutural. Nestelivro, eu também estava interessadoem como os mitos se relacionam com asações efetivas das pessoas. Esses vín-culos dialéticos foram trabalhados apartir da etnografia. As pessoas podemler meus livros como etnografias, masmuitas não percebem que eles tambémsão teóricos. Já que diferentes antropó-logos trabalham em diferentes áreasdo mundo, apenas alguns deles, namelhor das hipóteses, lêem etnografiasque não pertencem às suas áreas deespecialização. Mas todas as minhasetnografias contêm discussões teóricasreferentes a Weber, Mauss, Durkheim,Malinowski, Evans-Pritchard, Lévi-Strauss, e a todos os autores que supos-tamente lidaram com o que denominoquestões clássicas ou canônicas.

PeiranoVocê acha que até mesmo os antropó-logos leriam seus ensaios dessa manei-ra?

TambiahSim, meus ensaios são consideradosteóricos porque abordam certos proble-mas canônicos acerca dos quais certosautores escreveram. Por exemplo, “TheMagical Power of Words” é uma reaná-lise de Malinowski em termos de asso-ciações metafóricas e metonímicas,

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teoria da informação, inter-relaçãomito/ritual, e assim por diante. Devomencionar, aqui, que meu livro Magic,Science, Religion and the Scope ofRationality16, oriundo das Lewis HenryMorgan Lectures, é considerado umtrabalho “teórico”, mas é uma conti-nuação dos temas abordados em Cul-ture, Thought and Social Action17.

PeiranoIsso é interessante porque aponta paraa questão das diferentes audiênciaspara os trabalhos acadêmicos.

TambiahSim, penso que em geral as pessoaslêem apenas um número limitado demonografias. Muita literatura foi e estásendo produzida, mas só se lê uma pe-quena amostragem do trabalho fora denossas áreas específicas de interesse.Há uma impossibilidade física de lertudo, especialmente com o aumentocrescente da literatura. Ao mesmo tem-po que estou muito familiarizado coma produção relativa ao Sudeste e Sul daÁsia, leio muito menos os trabalhosconcernentes à Amazônia, à Oceania,à Nova Guiné, à China e ao Japão. Mastenho lido textos que alguns colegasrecomendam como significativos, ouque recebem recensões positivas, ouque amigos descrevem para mim comoobjeto de suas preocupações em nossasdiscussões… Creio que é por isso quetoda a discussão que aparece no finalde minha última monografia, sobreWeber, carisma, a noção de objetifica-ção do carisma nos amuletos, a partici-pação das pessoas no carisma, não éamplamente conhecida fora da áreados especialistas. Quando as pessoaslêem a introdução de The Social Life ofThings, de Appadurai, não estão cons-cientes, em sua maioria, de que tenhouma discussão que remete fundamen-

talmente a esse tópico. Mas se eu com-primisse os últimos capítulos de TheBuddhist Saints of the Forest... em umensaio apresentado explicitamentecomo teórico e publicado em um perió-dico, então as pessoas indubitavelmen-te diriam “esse é um ensaio teórico!”.Além do mais, por razões óbvias de ex-tensão, os ensaios são lidos, mas ape-nas os mais dedicados enfrentam umalonga monografia.

PeiranoÉ isto o que teria ocorrido com sua dis-cussão sobre mito e ritual nos últimoscapítulos de Buddhism and the SpiritCults in Northeast Thailand?

TambiahSim, essa discussão também não foiconsiderada como de relevância teó-rica para o estudo dos mitos e dosrituais. Porque está numa monografiae não se espera que as monografiascontenham discussões teóricas dessetipo, embora obviamente a “área dosespecialistas” ache o texto de grandeinteresse pois oferece um quadro dereferência para entender as relaçõesentre o budismo e o culto dos espíritosnas aldeias. Se eu o tivesse escritocomo um ensaio teórico para Man ouAmerican Ethnologist, ele poderia terum público maior, fora do campo doSudeste Asiático. Todavia, é gratifican-te notar que a discussão sobre a rela-ção entre mito e rito em Buddhism andthe Spirit Cults... foi adotada por umestudioso da religião, John Strong, quea utilizou como seu ponto de referên-cia.

PeiranoPassemos, então, ao ritual. Quero repe-tir o que já lhe disse antes, que em umartigo eu comparo sua abordagem deritual com o que Jakobson fez com a

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afasia, Lévi-Strauss com o totemismo,Freud com os sonhos…

TambiahIsso é muito lisonjeiro para mim! Obri-gado.

PeiranoEm geral, podemos dizer que vocêidentifica um fenômeno que, mesmo nadisciplina, é de senso comum, o dissol-ve analiticamente e, finalmente, mos-tra sua universalidade em outro nível.Nesse processo, o que era um objetoempírico, ou uma classe de objetos, tor-na-se uma abordagem analítica. É issoque acredito que você fez com o ritual,entre outras coisas.

TambiahComo um prefácio a esse ponto, deixe-me contar que quando estava em Cam-bridge, descobri Austin acidentalmen-te, comecei a lê-lo e incorporei minhacompreensão de suas idéias em “Formand Meaning of Magical Acts”18. Esseé um desenvolvimento pessoal. Leachnão gostava dessa tendência e era crí-tico em relação à filosofia da lingua-gem desenvolvida em Oxford. A esserespeito, ele era um tanto antiquado eacho que provavelmente concordariacom o ataque de Gellner à filosofia deOxford, em Words and Things. Mas euestava convencido de que a idéia deAustin sobre as locuções performativasera importante. Embora isso possa pa-recer autopromoção, tenho certo orgu-lho de ter sido um dos primeiros a ex-plorar essas idéias no estudo do ritual.

Meu envolvimento com Austinocorreu quase no fim da minha estadaem Cambridge. O convite para a Rad-cliffe-Brown Lecture forneceu o incen-tivo para incorporar e estender a noçãode atos performativos, e o desafio paraformular algo novo. Anteriormente, o

convite para a Malinowski Lecturehavia representado um desafio e umaocasião similares. E “Form and Mea-ning...”, no qual utilizei Austin pelaprimeira vez, foi escrito para um Fers-htcrift para Evans-Pritchard.

PeiranoPoderíamos dizer que Austin, Leach eEvans-Pritchard são alguns de seusinterlocutores privilegiados? Quais se-riam os outros?

TambiahAcho que muitos. Max Weber, é claro;Durkheim; Marx em menor extensão;Malinowski; Evans-Pritchard (o livrosobre os Azande) – “Form and Mea-ning of Magical Acts” é efetivamenteminha resposta à sua compreensão daspráticas rituais Azande. Há ainda Lévi-Strauss e Leach, no que se refere à teo-ria da classificação, liminaridade e te-mas desse tipo. E a lista estende-se nadireção de Austin, Peirce, Foucault,Bourdieu, Bakhtin…

PeiranoE Marcel Mauss com sua noção de efi-cácia?

TambiahVocê quer dizer a teoria de Mausssobre a magia? Sim. Suas formulaçõessobre a magia, o dom, o sacrifício sãoparte fundamental do nosso legado ecapital clássicos, e ponto de referênciado qual não se pode escapar.

PeiranoQuando você passou a se interessar porPeirce?

TambiahPassei a me interessar por Peirce quan-do cheguei a Chicago. Outras pessoas,como Michael Silverstein, também es-

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tavam interessadas na semiótica dePeirce. Assim, quando escrevi “A Per-formative Approach to Ritual”19 disse amim mesmo: “Essa é a ocasião paraintegrar e reunir diferentes perspecti-vas”. O ensaio contém uma crítica umtanto velada a Victor Turner, que vocêtambém partilha. Creio que a estruturatripartite do ritual, que é um esquemade Van Gennep explorado com suces-so por Victor Turner, é inadequadapara uma plena compreensão dos tra-ços dinâmicos do ritual e das diferen-tes maneiras pelas quais múltiplosmeios e modalidades sensoriais estãointer-relacionados. Eu queria dizer algodiferente do que Turner estava dizen-do; também creio que meu mergulhona lingüística estrutural e na sociolin-güística – Chomsky, Peirce, Langer… –forneceu-me algumas diretrizes no quese refere à questão de como essas refle-xões poderiam ser sintetizadas, ou pelomenos situadas.

PeiranoEu gostaria de conhecer sua reaçãodiante da minha impressão de que seutrabalho se inclina sempre para a dis-solução de dicotomias. Por exemplo:ação e pensamento, causalidade e per-formance, semântica e pragmática, nar-rativa cultural e análise formal…

TambiahBem, não sei se de fato cheguei a dis-solver essas dicotomias, mas acreditoque fui desafiado por elas. Existe algona minha maneira de abordar as ques-tões que não entendo conscientemen-te. Tenho uma preferência por relacio-nar dialeticamente componentes queoutros separam e dividem. Você podeestar certa ao formular essa tendênciaque não está clara para mim. Mas háoutra preferência que me é cara: sem-pre gosto de pensar que devemos tra-

balhar dentro da tradição para transfor-má-la. Várias pessoas anunciam “estoudizendo algo novo”, “isso é realmenterevolucionário”, e essa grande reivin-dicação de que todos são inovadores,abolindo o passado, não me soa bem.Pessoalmente, prefiro dizer que estoupensando em como avançar, alargarhorizontes, resolver algumas antino-mias, expandir fronteiras existentes, eassim por diante. Gosto de pensar quese deve trabalhar dentro da tradição,construída a partir do que outros disse-ram, selecionando componentes jáexistentes, recombinando-os e refor-mulando-os, em vez de me recusar areconhecer o passado, e reivindicarque “estou dizendo algo maravilhosa-mente novo”. Essa é a maneira pelaqual prefiro fazer as coisas. E reajo con-tra pessoas apressadas e excessiva-mente ambiciosas que afirmam “tudoestá errado com o passado”, e “existeum novo caminho a seguir, que é ino-vador”… Em virtude do meu tempera-mento, essa não é minha maneira deproceder.

PeiranoÉ interessante que o próprio Lévi-Strauss tenha dito que estava fazendoalgo completamente novo quando tam-bém estava combinando…

TambiahÉ que, como você sabe, um tipo de con-tribuição criativa é tomar uma perspec-tiva, ou alguma idéia, proveniente deum campo, e aplicá-la a outro domínio,o que abre novas possibilidades. Fre-qüentemente, essa é a maneira pelaqual a biologia, a física e outras ciênciasditas “duras” procedem. Esse tambémé um caminho usual em nossa profissão:não existe tábula rasa. Lévi-Straussagiu da mesma maneira quando apli-cou de maneira criativa as teorias lin-

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güísticas de Saussure e Jakobson àmitologia (e até ao parentesco). Masacredito que algumas pessoas possamter a impressão que são inovadoras.Não me considero uma delas.

PeiranoFalando de inovadores, Henri Lefebvre,Lukács e outros, que estavam na van-guarda nos meus tempos de universida-de, estão todos novamente na modahoje.

TambiahSim, reciclados. Outra maneira pelaqual as pessoas são consideradas origi-nais é quando colocam novas etiquetasem velhos problemas. Cunhar novosrótulos também é visto como um exer-cício teórico. Novamente, essa ativida-de não é verdadeiramente inovadora,pois consiste em recondicionar, reci-clar, colocar um novo verniz em umfenômeno conhecido. Você me pergun-tou se continuo com meu interesse emreligião, ritual, política…? LevelingCrowds..., meu último livro, é sobrepolítica e violência, com a violênciacoletiva como uma forma de atuaçãopolítica em conflitos etnonacionalistas,especialmente em arenas onde a de-mocracia política é praticada. Mas asidéias sobre o aspecto performativo doritual estão no centro de minhas consi-derações, explicando o papel e opadrão da violência coletiva na políticamoderna. Espero que aqueles que co-nhecem meu trabalho reconheçam queestou aplicando e estendendo minhasidéias a um novo contexto de modo ailuminar a política etnonacionalista e aviolência coletiva em nossa época.

PeiranoE encontrando novos interlocutores…

TambiahDe fato, voltei, no final do livro, a relerDurkheim e Le Bon. Mas também dia-logo com os teóricos que propuseram anoção de “economia moral”, como E. P.Thompson, com Natalie Davis, que es-creveu sobre “Rites of Violence”, comGeorge Rudé, Jim C. Scott, e a Subal-tern School dos historiadores indianosmodernos. Algumas questões levanta-das por esses autores foram debatidase avaliadas no final do livro.

PeiranoE aí, de novo, a presença de Durkheim.

TambiahExiste algo que Durkheim escreveu emAs Formas Elementares da Vida Reli-giosa que os leitores nem sempre no-tam. Na última parte do livro, ele suge-re que é a participação coletiva nos ritostotêmicos que gera a euforia e a expe-riência da força religiosa. Alguns leito-res conhecem essa formulação, masnem sempre a utilizam. Obviamente,Durkheim foi diretamente influenciadopelas idéias de Le Bon acerca das aglo-merações coletivas. Le Bon tinha aver-são pelo que aconteceu na RevoluçãoFrancesa, mas reconhecia as paixõesque eram produzidas entre as multi-dões. Durkheim também identificouesses sentimentos, mas os utilizou paradizer algo muito distinto. Para Le Bon,os ajuntamentos políticos geravam vio-lência irracional, enquanto para Dur-kheim os ritos praticados coletivamenteproduziam forças religiosas positivasque, de fato, celebravam a sociedade.Em Leveling Crowds... tomo essas duasdiscussões e as transformo, ao conside-rar processos semióticos intersubjetivose comunicacionais que ocorrem quan-do as multidões são mobilizadas para aação, e como esses processos podemexplicar certos aspectos da violência

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coletiva. Assim, algumas questões clás-sicas suscitadas por Le Bon e Durkheimforam, espero, esclarecidas, refinadase ampliadas.

PeiranoDurkheim foi, em geral, apropriado demaneira pobre até mesmo pelos antro-pólogos, que o consideram como al-guém interessado apenas nos aspectosda representação.

TambiahSim, isto é parcialmente verdadeiro aténo caso de Lévi-Strauss em seu traba-lho sobre o totemismo. Lévi-Straussleu apenas parte de Durkheim, os ani-mais totêmicos e os objetos totêmicosremetidos às suas próprias idéiasacerca da classificação. Ele não esta-va interessado na discussão de Dur-kheim sobre como os ritos totêmicosgeram sentimentos e fusões interpes-soais. Acho que muitas das discus-sões em torno de As Formas Elemen-tares da Vida Religiosa ignoram o queDurkheim disse sobre a efervescênciadas grandes aglomerações e a euforiano curso dos rituais coletivos, nos quaisas pessoas reunidas se envolvem emtipos especiais de interação.

É interessante e relevante conside-rar dois aspectos relacionados à violên-cia coletiva das grandes multidões. Aviolência é parte da política, e é dirigi-da por certos políticos e por seus agen-tes. Ao mesmo tempo, desordeiros en-volvem-se em incêndios criminosos eem atos de violência contra outros se-res humanos, quando se aglomeram equebram normas que a maioria delesobserva na vida cotidiana. Em LevelingCrowds... tento apontar os dois lados daquestão. Esses distúrbios são proposi-tais e direcionados: ao mobilizar multi-dões, certos componentes da culturapública e do ritual público são usados

para encenar procissões e formar as-sembléias coletivas. Levando tudo issoem consideração, sempre acontecealgo mais nessas aglomerações: o jogodas paixões coletivas e o papel incitan-te dos rumores destrutivos, o entrela-çamento progressivo de fúria e pânico.Existe algo aí que Le Bon, Durkheim,Freud – que também foi influenciadopor Le Bon em seu Psicologia de Gru-po e Análise do Ego – e Canetti, emCrowds and Power, discutiram em ter-mos de psicologia de grupo, e quepoderia ser resgatado, reformulado edesenvolvido em novas direções.

PeiranoSão essas mobilizações de massa quefazem com que você se interesse poresportes como o futebol?

TambiahSim, agora você sabe por que eu que-ria assistir a um jogo de futebol no Rio.Estou interessado em esportes por ou-tras razões também, mas os jogos sãofenômenos coletivos e espetáculos demassa que me interessam. A torcidadas multidões no estádio é fantástica.As pessoas levantam-se ritmadamentee envolvem-se em movimentos orques-trados de ondas de incentivo, e entãogritam insultos para os jogadores dotime visitante, o “inimigo”, amaldi-çoando-os, e até ensaiando brigas ouquase-brigas, e proferindo impropériospara demonizá-los, e assim por diante.E quem são esses participantes no casodo futebol americano em Boston, porexemplo? São provenientes de umaparte da população de Massachusetts:classe trabalhadora, classe média, pro-fissionais, jovens e velhos, homens emulheres, todos reunidos em contigüi-dade física nessa encenação da culturade massa.

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PeiranoBem, mudemos o ângulo da nossa con-versa. Gostaria de ouvi-lo falar sobreseu retorno ao Sri Lanka como tema depesquisa após o trabalho na Tailândia.

TambiahA última seção de Sri Lanka: Ethnic Fra-tricide and the Dismantling of Democ-racy20 contém uma parte da minha bio-grafia que ajuda a explicar meu retor-no. Os conflitos de 1983 foram terríveis.Nada nessa escala tinha ocorrido no SriLanka antes, em termos de destruiçãoabsoluta de propriedades e incêndioscriminosos, e cujo alvo premeditadoera a minoria tamil, especialmente nacidade de Colombo, mas também emoutras partes da ilha. Embora tenhamocorrido conflitos periódicos desde1956, eles eram de uma escala muitomenor. Em 1983, quando ouvi falar dosconflitos, fiquei traumatizado. Sou ummembro dessa comunidade minoritáriaque foi vitimada. As pessoas mais afe-tadas em Colombo pertenciam à classemédia, eram membros estabelecidos daelite, homens de negócios, que nãotinham idéia de que algo assim pudes-se acontecer com eles. Foi um tipo depogrom, uma tentativa direta e inten-cional de prejudicar uma determinadapopulação. Alguns políticos e agentesdo Estado também estavam envolvidose foram coniventes com o trabalho dedestruição. E, embora eu tenha deixa-do o Sri Lanka, sempre trago a convic-ção de que sou do Sri Lanka, e umaparte fundamental da minha persona éque sou simultaneamente de origemtamil. É claro que também tenho umaidentidade transnacional, em virtudede ter vivido e trabalhado fora, e algu-mas outras identidades também. Esseseventos fraturaram as duas metades daminha identidade, a do Sri Lanka e atamil. Para retornar à minha narrativa:

Ethnic Fratricide… foi escrito para en-contrar uma saída da depressão e paralidar com uma necessidade pessoal deatribuir sentido àquela tragédia, queera apenas o começo do pior que aindaestava por vir.

PeiranoSeus parentes foram atingidos noseventos recentes no Sri Lanka?

TambiahUm irmão mais velho, que é médico,vive em Colombo e teve sua casa ata-cada, mas ninguém foi atingido. Outrosmembros da minha família não foramatingidos em Colombo. Uma irmã viveem um subúrbio cuja população é me-tade cingalesa e metade tamil. Feliz-mente, sua casa, que fica ao lado deuma casa cingalesa, foi poupada por-que a proprietária cingalesa se aproxi-mou e ordenou que os desordeiros seafastassem. Mas minha irmã teve dedeixar sua casa temporariamente e irpara um campo de refugiados, com suafilha e sua neta. Existem muitas pessoasde origem tamil cujas casas foram quei-madas, que tiveram seus negócios ar-ruinados, que foram dispersadas aosmilhares. No princípio, a violência visa-va destruir o que a maioria consideravavantagens desproporcionais gozadaspela minoria tamil. Comecei Ethnic Fra-tricide... com o objetivo de examinar agênese e o processo da violência, e useio material disponível para reconstruir adinâmica política.

O livro subseqüente, BuddhismBetrayed?21, é uma continuação dessaquestão, mas foi motivado por proble-mas mais remotos. As pessoas sempreme perguntam: se o budismo advoga anão-violência, por que os budistas noSri Lanka se envolvem com a violência?É por isso que comecei a escrever esselivro, para tentar explicar a participa-

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ção de monges e líderes budistas no“budismo político”. De fato, não é umlivro a favor da maioria cingalesa do SriLanka, e foi proibido. Obviamente,muitos cingaleses (existem exceçõessignificativas) pensam no livro comotendencioso de vários modos. Mas issoé inevitável quando alguém tenta co-mentar a política contemporânea e pos-sui uma posição política. Vejo essesdesdobramentos como parte de um dis-curso moderno e devemos nos abrir tan-to para críticas quanto para elogios.Não me incomodo com isso; o que meimporta é que existe um grupo de mon-ges e “intelectuais” ativistas que cla-mou pela proibição do livro, vilipen-diando-o como “um ataque ao Buda eao budismo”. O livro não é um ataqueao Buda ou ao budismo; é minha tenta-tiva de caracterizar o modo pelo qual obudismo se desdobrou historicamenteno Sri Lanka. Chegam a me acusar deser um agente terrorista, mas muitosdos meus acusadores nunca leram olivro. No Sri Lanka, o livro tornou-se umjoguete nas mãos de políticos locaisdireitistas de tendências neofascistas.

PeiranoE Leveling Crowds..., o último livrodessa trilogia, é uma continuação des-sa análise…

TambiahSim, mas também uma extensão queinclui eventos que estão ocorrendo naÍndia, no Paquistão e no Sri Lanka.Examino as questões, as convergênciase diferenças que envolvem os conflitosetnonacionalistas e também abordo asimplicações do uso da violência comoum modo de atuação política democrá-tica. Espero que a população do SriLanka venha a compreender que nãoestou dizendo que a política etnonacio-nalista seja peculiar ao nacionalismo

budista cingalês ou ao nacionalismotamil. Tenho tentado considerar os con-flitos etnonacionalistas em termos maisgerais, e explicar o que são os movi-mentos etnonacionalistas e que tipo depolítica desenvolvem. Existem deter-minadas maneiras através das quais asrelações entre minoria e maioria sedesenvolvem e cristalizam. E você nãotem muita sorte se se encontra do ladoda minoria.

PeiranoGostaria que focalizássemos as dife-rentes inserções do trabalho dos antro-pólogos. Em outras palavras: vale apena ser antropólogo fora das corren-tes dominantes?

TambiahAcredito que sim, pois uma coisa que aSubaltern School indiana certamenteestá fazendo é escrever sobre o colonia-lismo e os desenvolvimentos pós-colo-niais de um modo que rompe com o pri-mado de um certo tipo de perspectivaorientalista e colonialista. Aliás, essasidéias também informam alguns escri-tos antropológicos. Eles estão tentandoler os eventos que ocorreram na Índiabritânica nos termos da agenda subal-terna, que contesta a versão britânicaoficial da história colonial.

PeiranoUma das influências marcantes éGramsci.

TambiahSim, Gramsci, talvez Foucault, e a teseda “economia moral”. De fato, emLeveling Crowds... aponto para a ge-nealogia de suas produções, tal como oensaio seminal de Thompson sobre aeconomia moral dos conflitos na Ingla-terra do século XVIII, e sua aplicaçãopor Jim Scott à Ásia, em The Moral

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Economy of the Peasants. Alguns his-toriadores caracterizaram certos movi-mentos camponeses ocorridos duranteo colonialismo como resistência legíti-ma, o que não é uma interpretação en-contrada na literatura oficial. O mesmopoderia ser pensado em relação ao Bra-sil: trata-se de um grande país, social egeograficamente muito diferenciado,dotado de um passado colonial queconstitui um fértil terreno para condu-zir suas próprias contestações e diálo-gos internos sobre um grande númerode questões relacionadas com a consti-tuição do Estado-nação, com o pluralis-mo social e cultural, “etnicidade”,“raça”, estratificação, identidade etc.Esses diálogos e contestações são rele-vantes não apenas para o Ocidente,mas também para a Ásia. Você mesmapreviu isso quando fez a comparaçãoentre intelectuais e tradições intelec-tuais no Brasil e na Índia.

PeiranoVocê mencionou que depois de sua visi-ta ao Brasil você compreendeu melhoras circunstâncias que produzem nossa“locação”.

TambiahO Brasil parece possuir algumas singu-laridades importantes. De um certoponto de vista, é parte de um sistematriangular: está em relação com osEstados Unidos e com a Europa, e essatriangulação fornece um ponto vanta-joso e peculiar para o seu envolvimen-to com os centros metropolitanos. Nes-se sentido, vocês são o terceiro compo-nente desse diálogo. Além disso, naAmérica Latina vocês são diferentesdos demais países porque só vocêsfalam português e grande parte da sualiteratura é em português, dirigindo-seà inteligência local. Existem diálogosimportantes em sua língua dentro do

seu próprio país, o que para mim é umasituação muito especial.

Tomemos, por exemplo, o caso daTailândia. Quando fui para lá, nocomeço da década de 60, havia um nú-mero muito reduzido de pessoas quefalavam inglês ou outras línguas euro-péias. Progressivamente, ao longo dasdécadas de 60 e 70, um número enor-me de estudantes obteve sua formaçãosuperior no exterior, e as universidadesamericanas também começaram a trei-nar professores e a conduzir programasuniversitários na própria Tailândia.Hoje existe uma crescente inteligênciaautônoma nas universidades, e os pro-fessores, que conhecem plenamente asfontes e formas de conhecimento oci-dentais, também estão gerando suaprópria literatura crítica “subalterna”.É claro que também existem teóricosocidentais que adotaram a noção de“resistência”. Uma perspectiva vindade baixo, em contraste com uma pers-pectiva vinda de cima, pode permitir aemergência da “resistência” ao autori-tarismo político na Tailândia. A ditatransição para a democracia é um pro-blema recorrente tanto na Tailândiaquanto no Brasil. Na Tailândia, apesardo autoritarismo estar bem entrinchei-rado, existe uma tentativa de promoveruma transição para a democracia ple-na, e o movimento estudantil, os movi-mentos democráticos e as insurreiçõessão formas de resistência a esse poderautoritário. Essas tendências políticastambém estão produzindo uma reava-liação das maneiras de conceber o pas-sado tradicional, especialmente comrelação às sublevações que ocorreramno século XIX. A principal narrativaortodoxa sobre a Tailândia diz que foia monarquia Chakki que promoveu amodernização a partir do século XIX.Mas o projeto de um Estado-nação nãoera exatamente homogêneo, já que

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diferentes segmentos da população, nonorte, nordeste e sul, foram integradosde forma coercitiva pela burocracia epelas Forças Armadas. Os novos inte-lectuais, historiadores e cientistas so-ciais estão pesquisando as reações e re-sistências das populações locais a esseprocesso de centralização. Acreditoque a partir da assim chamada “perife-ria”, ou países do “Terceiro Mundo”,estamos em via de ter um número cres-cente de produções intelectuais queserão diferentes daquelas elaboradaspelos antigos intelectuais metropolita-nos.

PeiranoA esse respeito, como você avalia seupróprio trabalho na Tailândia?

TambiahWorld Conqueror and World Renoun-cer é, em certo sentido, uma narrativasobre o processo de construção danação na Tailândia, cobrindo eventosaté o início da década de 70, poucoantes da explosão da rebelião estudan-til em 1973. Esse trabalho não lida comacontecimentos políticos recentes, enão houve nenhum ataque dos intelec-tuais tailandeses ao livro. Houve, sim,interesse na noção que desenvolvisobre a transição de uma “galacticpolity” para uma “radial polity”. O li-vro seguinte, sobre os monges budistase o culto dos amuletos em interaçãocom os processos políticos, correspon-de a um interesse moderno e teve umimpacto apreciável. Não produzi ne-nhum trabalho significativo sobre aTailândia referente a eventos ocorridosno final dos anos 80 e 90. Mas, nos anos80, comecei um estudo de cinco wats(complexos de templos), em Bancoc, eum outro – que talvez seja até maisinteressante para mim – sobre a maiorocupação de Bancoc, o chamado Klong

Toei, estudo que continua inacabado.Aliás, foi por causa desse interesse quetive vontade de visitar algumas favelasno Rio.

Comecei a documentar as formasde vida que vinham se constituindo emKlong Toei. A atitude do Estado e dasautoridades municipais em relação aosmoradores é de negligência delibera-da, baseada na suposição de que se tra-ta de criminosos, traficantes e prostitu-tas. Embora alguns deles possam efeti-vamente sê-lo, muitos são operários daconstrução civil, empregados no carre-gamento e transporte no porto, ou, es-pecialmente as mulheres, empregadasna indústria, na embalagem de alimen-tos etc. Em outras palavras, essas pes-soas participam da economia de Ban-coc como trabalhadores especializadosou semi-especializados. Minha inten-ção é descrever esses traços positivos,e também investigar como elas lidamcom os problemas existenciais e astarefas com as quais se deparam emum ambiente urbano hostil; como estãoa um só tempo mantendo e transfor-mando as práticas sociais, rituais eoutros capitais sociais que trouxeramdas áreas rurais de origem.

Já descobri alguns aspectos interes-santes de sua rica vida social: um é aimportância da tatuagem corporal paraos membros das gangues de jovens,visando à proteção física contra aciden-tes e ferimentos nas brigas com gan-gues rivais. Cada gangue tem seupadrão distintivo de tatuagem, elabo-rado pelo mestre tatuador, que trans-mite, ritualmente, invulnerabilidademediante a inscrição de tatuagens.Esta é, como se pode imaginar, umavariante do culto dos amuletos que euhavia descrito antes, mas em outro con-texto. Outra atividade interessante é oflorescimento de escolas de boxe tai-landês nos subúrbios. O boxe tailandês

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é um esporte nacional, e a maioria dosseus praticantes vem dos subúrbios.Para o indivíduo, o cultivo desse tipo deproeza atlética é um passo para aobtenção de fama e dinheiro. Tal car-reira tem duração breve, mas o boxe éo foco de apostas intensas e jogos deazar, que prosperam em uma atmosfe-ra de pobreza temperada pela sorte defortunas caídas do céu.

Ao lado desse, existe o outro estu-do, que já completei mas ainda nãoredigi, sobre cinco wats situados emdiferentes locais de Bancoc. Na Tailân-dia, a palavra wat refere-se ao templobudista e ao complexo do monastério.Um dos wats que pesquisei fica locali-zado em uma zona de classe média ouclasse média alta, o segundo em umazona de classe operária ou classe mé-dia baixa, o terceiro no extremo do su-búrbio de Klong Toei, o quarto no prin-cipal centro administrativo, e o quintona zona comercial de Bancoc. Cadawat atende, assim, a um segmento dis-tinto da população urbana da capital, eem conjunto funcionam como múltiplasjanelas abertas sobre a vida social ereligiosa da cidade. Esses trabalhos so-bre a vida urbana de Bancoc – o gran-de assentamento popular, os cinco wats– são estudos etnográficos de formaslocais de vida, mas estão conectados àquestão mais ampla da globalização edas distintas conseqüências da intera-ção de influências globais e formaslocais de vida.

PeiranoEm que sentido você pensa ampliaressas idéias sobre a abordagem antro-pológica das influências globais e dasformas locais de vida?

TambiahCreio que o potencial do método antro-pológico reside em investigar de que

maneira forças globais e metropolitanassão retratadas através de formas locaisde vida, e como em contrapartida sãoadaptadas pelas formas locais a seuspróprios propósitos, gerando criativa-mente seus padrões distintivos. Aindanão comecei a considerar tais fenôme-nos como processos transnacionais ediásporas populacionais. Mas me pare-ce que muitos dos chamados tratamen-tos pós-modernos dos processos trans-nacionais são etnograficamente super-ficiais e esparsos porque deslizam sobrevastas distâncias e muitos lugares sempenetrar verticalmente nas formas devida que se processam nos planos locale regional. De certo modo, tentei incor-porar em Leveling Crowds... alguns tra-ços das contribuições pós-modernas,especialmente as noções de narrativa ede multiplicidade de vozes e perspecti-vas, que levam a resultados abertosmais do que a conclusões fechadas. Aomesmo tempo, tentei escrever meu tex-to em uma linguagem simples e diretade modo que um público mais amploque os antropólogos pudesse com-preendê-lo. Uma das fraquezas da pro-sa pós-moderna é que ela induz ao jar-gão opaco, a palavras confusas, a fór-mulas destinadas apenas aos iniciados.Palavras da moda servem como umsubstituto para idéias comunicáveis.Um dos nossos objetivos deve serexpressar as idéias em uma linguagemsimples, uma linguagem que não anulea comunicação. Além do mais, é umamá concepção pensar que autores comoFoucault, Bakhtin e outros são profetase exemplares do pós-modernismo. Elessão fundamentais para todos nós,modernos.

PeiranoAo menos em um sentido forte, os cul-tural studies parecem representar umesforço para esvaziar a antropologia de

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qualquer vestígio de exotismo. No pro-cesso a antropologia se dissolve.

TambiahO questionamento pós-moderno dopoder autoral e da objetividade, da re-lação assimétrica de poder entre o an-tropólogo e o “outro” nativo, bem comoa ênfase nas compreensões negociadasentre o antropólogo e os informantes,tenderam a desestabilizar, e até mes-mo subverter, a escrita antropológica,especialmente nos Estados Unidos. Mi-nha visão particular é que os antropó-logos devem ponderar essas considera-ções, digerir as críticas, e então prosse-guir com seu trabalho de campo e es-crita antropológicos, que devem incor-porar criativamente as considerações

pós-modernas. Por outro lado, devemadmitir e assumir que diferentes for-mas de vida podem ser documentadase que as circunstâncias e contextos decoleta de dados e representação auto-ral são parte do texto. Seria um errodissolver a antropologia como discipli-na ou reduzi-la a confrontos de egos al-tamente personalizados, que revelammais as preocupações neuróticas de umoutro invasor do que a riqueza das for-mas de vida das outras sociedades,cujo conhecimento vai sempre apro-fundar e iluminar nossas próprias vidase sociedades. Essa é a razão e a justifi-cação para a prática da antropologia.

Tradução: Kátia Maria Pereira de Almeida

Revisão técnica: Mariza Peirano

Notas

1 “Secularization of Family Values inCeylon”. American Sociological Review,June 1957.

2 “The Structure of Kinship and its Rela-tionship to Land Possession and Residencein Pata Dumbara, Central Ceylon”. Journalof the Royal Anthropological Institute,88(1):21-44, 1958.

3 The Disintegrating Village: Report ofa Socio-Economic Survey (em colaboraçãocom N. K. Sarkar). Colombo: Ceylon Univer-sity Press, 1957.

4 LEACH, E. R. “An Anthropologist’sReflections on a Social Survey”. In: D. G.Jongmans e P. C. W. Gutkind (orgs.), Anthro-pologists in the Field. Van Gorcum & Comp.N. V., 1967.

5 “Poliandry in Ceylon”. In: Von Furer-Haimendorf (org.), Caste and Kin in Nepal,India and Ceylon. New York: Asia Publish-ing House, 1966.

6 “Agricultural Extension and Obsta-cles to Improve Agriculture in Gal Oya Peas-ant Colonization Scheme”. Proceedings ofthe Second International Conference of Eco-nomic History, Aix-en Provence, 1962.

7 Leveling Crowds. EthnonationalistConflicts and Collective Violence in SouthAsia. Berkeley: University of California Press,1996.

8 Buddhism and the Spirit Cults inNortheast Thailand. Cambridge: CambridgeUniversity Press, 1970.

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9 World Conqueror and World Renounc-er. A Study of Religion and Polity in ThailandAgainst a Historical Background. Cam-bridge: Cambridge University Press, 1976.

10 “The Galactic Polity: The Structure ofTraditional Kingdoms in Southeast Asia”. In:S. Freed (org.), Anthropology and the Cli-mate of Opinion. New York: Annals of theNew York Academy of Sciences (vol. 293),1977; “The Galactic Polity in South Asia”. In:Culture, Thought and Social Action. Cam-bridge, Mass.: Harvard University Press,1985.

11 The Buddhist Saints of the Forest andthe Cult of Amulets. A Study in Charisma,Hagiography, Sectarianism and MillenialBuddhism. Cambridge: Cambridge Univer-sity Press, 1984.

12 “Animals Are Good to Think and Goodto Prohibit”. Ethnology, 8(4):423-459, 1969.

13 LEACH, E. R. “Anthropological Aspectsof Language: Animal Categories and VerbalAbuse”. In: E. H. Lenneberg (org.), NewDirections in the Study of Language. Cam-bridge, Mass.: MIT Press, 1964.

14 JAKOBSON, Roman. “Two Aspects ofLanguage and Two Types of Aphasic Distur-bance”. In: R. Jakobson e M. Halle, Funda-mentals of Language. The Hague: Mouton,1956.

15 “The Magical Power of Words” (Mali-nowski Memorial Lecture 1968). Man,3(2):175-208, 1968.

16 Magic, Science, Religion and theScope of Rationality (The Lewis Henry Mor-gan Lectures 1984). Cambridge: CambridgeUniversity Press, 1990.

17 Culture, Thought and Social Action.Cambridge, Mass.: Harvard University Press,1985.

18 In: Culture, Thought and Social Action.Cambridge, Mass.: Harvard University Press,1985.

19 In: Culture, Thought and Social Action.Cambridge, Mass.: Harvard University Press,1985.

20 Sri Lanka: Ethnic Fratricide and theDismantling of Democracy. Chicago: TheUniversity of Chicago Press, 1986.

21 Buddhism Betrayed? Religion, Politicsand Violence in Sri Lanka. Chicago: Univer-sity of Chicago Press, 1992.